Como e Porque Sou Romancista

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José de Alencar

Apresentação

Como e Porque Sou Romancista é a autobiografia intelectual de José
de Alencar, importante para o conhecimento de sua personalidade e dos alicerces
de sua formação literária.

O texto sob a forma de carta, foi escrito em 1873 e publicado em 1893, pela
Tipografia Leuzinger. Entre suas reedições, merece menção
a da Academia Brasileira de Letras, de 1987, conservando a ortografia original,
apresentada pelo Prof. Afrânio Coutinho, com a erudição
e clareza marcantes de sua crítica.

A presente edição, com o objetivo de tornar mais acessível
a leitura, atualizou a ortografia do texto alencariano. Manteve-se, entretanto,
a pontuação original que, no dizer de M. Cavalcanti Proença,
é elemento característico da prosa alencariana, subordinando-se
muito menos às regras vigentes na época do que ao ritmo fraseológico,
tal qual o concebera e criara.

Afrânio Coutinho definiu esta carta como autêntico roteiro de
teoria literária, o qual, reunido a outros ensaios de sua lavra, pode
bem constituir um corpo de doutrina estética literária, que
o norteou em sua obra de criação propriamente dita, sobretudo
no romance.

O autor enfatizou, em sua formação escolar, a importância
dada à leitura, com a correção, nobreza, eloqüência
e alma que o mestre Januário Mateus Ferreira sabia transmitir a seus
alunos. Ainda menino, como ledor dos serões da família, teve
oportunidade de contínuo e repetido contacto com um escasso repertório
de romances, cujos esquemas iam ficando gravados em seu espírito.

Já cursando a Faculdade de direito, em São Paulo, com grande
esforço, dominou o idioma francês para ler obras de Balzac, Dumas,
Vigny, Chateaubriand e Victor Hugo.

A escola francesa, que eu então estudava nesses mestres da moderna
literatura, achava-me preparado para ela. O molde do romance, qual mo havia
revelado pôr mera casualidade aquele arrojo de criança a tecer
uma novela com os fios de uma ventura real, fui encontra-lo fundido com, a
elegância e beleza que jamais lhe poderia dar.

À influência das leituras na sua formação de escritor,
sobrepôs Alencar o valor da imaginação:

Mas não tivera eu herdado de minha santa mãe a imaginação
de que o mundo apenas vê flores, desbotadas embora, e de que eu sinto
a chama incessante, que essa leitura de novelas mal teria feito de mim um
mecânico literário, desses que escrevem presepes em vez de romances.

Discordou da crítica literária que atribuía à
influência de Cooper o paisagismo de O Guarani.

Disse alguém, e repete-se pôr aí, de outiva, que O Guarani
é um romance ao gosto de Cooper. Se assim fosse, haveria coincidência,
e nunca imitação; mas não é. Meus escritos se
parecem tanto com os do ilustre romancista americano, como as várzeas
do ceará com as margens do Delaware.

Segundo Heron de Alencar, já houve quem colocasse em dúvida
algumas das afirmativas que Alencar inseriu em sua autobiografia literária.
Ao escrevê-la, já era um escritor de renome e no auge de sua
carreira, quatro anos antes de falecer. É possível, desse modo,
que tenha, alguma vez querido vestir de fantasia a realidade de sua formação
literária, para que a posteridade – sua grande e permanente preocupação
– não lhe regateasse admiração e fidelidade. Isso
em nada altera o julgamento que deve resultar da leitura de sua obra, e esse
é o único julgamento que prevalece.

Para Antônio Cândido, O escrito mais importante para conhecimento
da personalidade é a autobiografia literária Como e Porque Sou
Romancista…., um dos mais belos documentos pessoais da nossa literatura.
Não há ainda biografia à altura do assunto, podendo-se
dizer o mesmo da interpretação crítica. Mas há
um conjunto de estudos que, somados, permitem bom conhecimento.

Capítulo I

Meu amigo,

Na conversa que tivemos, há cinco dias, exprimiu V. o desejo de colher
acerca de minha peregrinação literária, alguns pormenores
dessa parte íntima de nossa existência, que geralmente fica à
sombra, no regaço da família ou na reserva da amizade.

Sabendo de seus constantes esforços para enriquecer o ilustrado autor
do Dicionário Bibliográfico, de copiosas notícias que
ele dificilmente obteria a respeito de escritores brasileiros, sem a valiosa
coadjuvação de tão erudito glossólogo, pensei
que me não devia eximir de satisfazer seu desejo e trazer a minha pequena
quota para a amortização desta dívida de nossa ainda
infante literatura.
Como bem reflexionou V., há na existência dos escritores fatos
comuns, do viver quotidiano, que todavia exercem uma influência notável
em seu futuro e imprimem em suas obras o cunho individual.

Estes fatos jornaleiros, que à própria pessoa muitas vezes
passam despercebidos sob a monotonia do presente, formam na biografia do escritor
a urdidura da tela, que o mundo somente vê pela face do matiz e dos
recamos.

Já me lembrei de escrever para meus filhos essa autobiografia literária,
onde se acharia a história das criaturinhas enfezadas, de que, pôr
mal de meus pecados, tenho povoado as estantes do Sr. Garnier.

Seria esse o livro de meus livros. Se alguma hora de pachorra, me dispusesse
a refazer a cansada jornada dos quarenta e quatro anos, já completos
os curiosos de anedotas literárias saberiam, além de muitas
outras coisas mínimas, como a inspiração d’O Guarani,
pôr mim escrito aos 27 anos, caiu na imaginação da criança
de nove, ao atravessar as matas e sertões do norte, em jornada do Ceará
à Bahia.

Enquanto não vem ao lume do papel, que para o da imprensa ainda é
cedo, essa obra futura, quero em sua intenção fazer o rascunho
de um capítulo.

Será daquele, onde se referem as circunstâncias, a que atribuo
a predileção de meu espírito pela forma literária
do romance.

Capítulo II

No ano de 1840, freqüentava eu o Colégio de Instrução
Elementar, estabelecido à Rua do Lavradio, nº 17, e dirigido pelo
Sr. Januário Matheus Ferreira, a cuja memória eu tributo a maior
veneração.

Depois daquele que é para nós meninos a encarnação
de Deus e o nosso humano Criador, foi esse o primeiro homem que me incutiu
respeito, em quem acatei o símbolo da autoridade.

Quando me recolho da labutação diária com o espírito
mais desprendido das preocupações do presente, e sucede-me ao
passar pela Rua do Lavradio pôr os olhos na tabuleta do colégio,
que ainda lá está na sacada do nº.17, mas com diversa designação;
transporto-me insensivelmente àquele tempo, em que de fraque e boné,
com os livros sobraçados, eu esperava ali na calçada fronteira
o toque da sineta que anunciava a abertura das aulas.

Toda a minha vida colegial se desenha no espírito com tão vivas
cores, que parecem frescas de ontem, e todavia mais de trinta anos já
lhes pairaram sobre. Vejo o enxame dos meninos, alvoriçando na loja,
que servia de saguão; assisto aos manejos da cabala para a próxima
eleição do monitor geral; ouço o tropel do bando que
sobe as escadas, e se dispersa no vasto salão, onde cada um busca o
seu banco numerado.

Mas o que sobretudo assoma nessa tela é o vulto grave de Januário
Mateus Ferreira, como eu o via passeando diante da classe, com um livro na
mão e a cabeça reclinada pelo hábito da reflexão.

Usava ele de sapatos rinchadores; nenhum dos alunos do seu colégio
ouvia de longe aquele som particular, na volta de um corredor, que não
sentisse um involuntário sobressalto.

Januário era talvez ríspido e severo em demasia; orem nenhum
professor o excedeu no zelo e entusiasmo com que desempenhava o seu árduo
ministério. Identificava-se com o discípulo; transmitia-lhe
suas emoções e tinha o dom de criar no coração
infantil os mais nobres estímulos, educando o espírito com a
emulação escolástica para os grandes certames da inteligência.

Dividia-se o diretor pôr todas as classes, embora tivesse cada uma
seu professor especial; desse modo andava sempre ao corrente do aproveitamento
de seus alunos, e trazia os mestres como os discípulos em constante
inspeção. Quando, nesse revezamento de lições,
que ele de propósito salteava, acontecia achar atrasada alguma classe,
demorava-se com ela dias e semanas, até que obtinha adianta-la e só
então a restituía ao respectivo professor.

Meado o ano, porém, o melhor dos cuidados do diretor voltava-se para
as últimas classes, que ele se esmerava em preparar para os exames.

Eram estes dias de gala e de honra para o colégio, visitado pôr
quanto havia na Corte de ilustre em política e letras.

Pertencia eu à sexta classe, e havia conquistado a frente da mesma,
não pôr superioridade intelectual, sim pôr mais assídua
aplicação e maior desejo de aprender.

Januário exultava a cada uma de minhas vitórias, como se fora
ele próprio que estivesse no banco dos alunos, a disputar-lhes o lugar,
em vez de achar-se como professor dirigindo os seus discípulos.

Rara vez sentava-se o diretor; o mais do tempo levava a andar de um a outro
lado da sala em passo moderado. Parecia inteiramente distraído da classe,
para a qual nem volvia os olhos; e todavia nada lhe escapava. O aparente descuido
punha em prova a atenção incessante que ele exigia dos alunos,
e da qual sobretudo confiava a educação da inteligência.

Uma tarde ao findar a aula, houve pelo meio da classe um erro. – Adiante,
disse Januário, sem altear a voz, nem tirar os olhos do livro. Não
recebendo resposta ao cabo de meio minuto, repetiu a palavra, e assim de seguida
mais seis vezes.

Calculando pelo número dos alunos, estava na mente de que só
à sétima vez, depois de chegar ao fim da classe é que
me tocava responder como o primeiro na ordem da colocação.

Mas um menino dos últimos lugares tinha saído poucos momentos
antes com licença, e escapava-me esta circunstância. Assim, quando
sorrindo eu esperava a palavra do professor para dar o quinau, e ao ouvir
o sétimo adiante, perfilei-me no impulso de responder; um olhar de
Januário gelou-me a voz nos lábios.

Compreendi; tanto mais quanto o menino ausente voltava a tomar seu lugar.
Não me animei a reclamar; porém creio que em minha fisionomia
se estampou, com a sinceridade e a energia da infância, o confrangimento
de minha alma.

Meu imediato e êmulo, que me foi depois amigo e colega de ano em São
Paulo, era o Aguiarzinho (Dr. Antônio Nunes de Aguiar), filho do distinto
general do mesmo nome, bela inteligência e nobre coração
ceifados em flor, quando o mundo lhe abria de par em par as suas portas de
ouro e pórfiro.

Ansioso aguardava ele a ocasião de se desforrar da partida que lhe
eu havia ganho, depois de uma luta porfiada – Todavia não lhe
acudiu a resposta de pronto; e passaria a sua vez, se o diretor não
lhe deixasse tempo bastante para maior esforço do que fora dado aos
outros e sobretudo a mim – Afinal ocorreu-lhe a resposta, e eu com o
coração transido, cedi ao meu vencedor o lugar da honra que
tinha conquistado de grau em grau, e conseguia sustentar havia mais de dois
meses.

Nos trinta anos vividos desde então, muita vez fui esbulhado do fruto
de meu trabalho pela mediocridade agaloada; nunca senti senão o desprezo
que merecem tais pirraças da fortuna, despeitada contra aqueles que
não a incensam.

Naquele momento, porém, vendo perdido o prêmio de um estudo
assíduo, e mais pôr surpresa, do que eu traguei silenciosamente,
para não abater-me ante a adversidade.

Nossa classe trabalhava em uma varanda ao rés do chão, cercada
pelo arvoredo do quintal.

Quando, pouco antes da Ave-Maria, a sineta dava sinal da hora de encerrar
as sulas, Januário fechava o livro; e com o tom breve do comando ordenava
uma espécie de manobra que os alunos executavam com exatidão
militar.

Pôr causa da distância da varanda, era quando todo o colégio
já estava reunido no grande salão e os meninos em seus assentos
numerados, que entrava em passo de marcha a sexta classe, a cuja frente vinha
eu, o mais pirralho e enfezadinho da turma, em que o geral se avantajava na
estatura, fazendo eu assim as vezes de um ponto.

A constância com que me conservava à frente da classe no meio
das alterações que em outras se davam todos os dias, causava
sensação no povo colegial; faziam-se apostas de lápis
e canetas; e todos os olhos se voltavam para ver se o caturrinha do Alencar
2º (era o meu apelido colegial) tinha afinal descido de monitor de classe.

O general derrotado a quem a sua ventura reservava a humilhação
de assistir à festa da vitória, jungido ao carro triunfal de
seu êmulo, não sofria talvez a dor que eu então curti,
só com a idéia de entrar no salão, rebaixado de meu título
de monitor, e rechaçado para o segundo lugar.

Se ao menos se tivesse dado o fato no começo da lição,
restava-me a esperança de com algum esforço recuperar o meu
posto; mas pôr cúmulo da infelicidade sobreviera o meu desastre
justamente nos últimos momentos, quando a hora estava a findar.

Foi no meio dessas reflexões que tocou a sineta, e as suas badaladas
ressoaram em minha alma como o dobre de uma campa.

Mas Januário que era acerca de disciplina colegial de uma pontualidade
militar, não deu pelo aviso e amiudou as perguntas, percorrendo apressadamente
a classe. Poucos minutos depois eu recobrava meu lugar, e erguia-me trêmulo
para tomar a cabeça do banco.

O júbilo, que expandiu a fisionomia sempre carregada do diretor, eu
próprio não o tive maior, com o abalo que sofri. Ele não
se pôde conter e abraçou-me diante da classe.

Naturalmente a questão proposta e cuja solução deu-me
a vitória, era difícil; e pôr isso atribuía-me
ele o mérito, que não provinha talvez senão da sorte,
para não dizer do acaso.

Momentos depois entrava eu pelo salão à frente da classe, onde
me conservei até o exame.

Capítulo III

Mais tarde, quando a razão, como o fruto, despontou sob a flor da
juventude, muitas vezes cogitei sobre esse episódio de infância,
que deixara em meu espírito, uma vaga dúvida a respeito do caráter
de Januário.

Então o excessivo rigor que se me tinha afigurado injusto, tomava
o seu real aspecto; e me aparecia como o golpe rude, mas necessário
que dá têmpera ao aço. Porventura notara o diretor de
minha parte uma confiança que deixava em repouso as minhas faculdades,
e da qual proviera o meu descuido.

Este episódio escolástico veio aqui pôr demais, trazido
pelo fio das reminiscências. Serve entretanto para mostrar-lhe o aproveitamento
que deviam tirar os alunos desse método de ensino.

Sabíamos pouco; mas esse pouco sabíamos bem. Aos onze anos
não conhecia uma só palavra de língua estrangeira, nem
aprendera mais do que as chamadas primeiras letras.

Muitos meninos, porém, que nessa idade tagarelam em várias
línguas e já babujam nas ciências, não recitam
uma página de Frei Francisco de São Luís, ou uma ode
do Padre Caldas, com a correção, nobreza, eloqüência
e alma que Januário sabia transmitir a seus alunos.

Essa prenda que a educação deu-me para toma-la pouco depois,
valeu-me em casa o honroso cargo de ledor, com que me eu desvanecia, como
nunca me sucedeu ao depois no magistério ou no parlamento.

Era eu quem lia para minha boa mãe não somente as cartas e
os jornais, como os volumes de uma diminuta livraria romântica formada
ao gosto do tempo.

Morávamos, então, na Rua do Conde, nº 55. Aí nessa
casa preparou-se a grande revolução parlamentar que entregou
ao Sr. D. Pedro II o exercício antecipado de suas prerrogativas constitucionais.

A propósito desse acontecimento histórico, deixe passar aqui
nesta confidência inteiramente literária, uma observação
que me acode e, se escapa agora, talvez não volte nunca mais.

Uma noite pôr semana, entravam misteriosamente em nossa casa os altos
personagens filiados ao Clube Maiorista de que era presidente o Conselheiro
Antônio Carlos e Secretário o Senador Alencar.

Celebravam-se os serões em um aposento do fundo, fechando-se nessas
ocasiões a casa às visitas habituais, a fim de que nem elas
nem os curiosos da rua suspeitassem do plano político, vendo iluminada
a sala de frente.

Enquanto deliberavam os membros do Clube, minha boa mãe assistia ao
preparo de chocolate com bolinhos, que era costume oferecer aos convidados
pôr volta de nove horas, e eu, ao lado com impertinências de filho
querido, insistia pôr saber o que ali ia fazer aquela gente.

Conforme o humor em que estava, minha boa mãe às vezes divertia-se
logrando com histórias a minha curiosidade infantil; outras deixava-me
falar às paredes e não se distraía de suas ocupações
de dona de casa.

Até que chegava a hora do chocolate. Vendo partir carregada de tantas
gulosinas a bandeja que voltava completamente destroçada, eu que tinha
os convidados na conta de cidadãos respeitáveis, preocupados
dos mais graves assuntos, indignava-me ante aquela devastação
e dizia com a mais profunda convicção:

-O que estes homens vêm fazer aqui é regalarem-se de chocolate.

Essa, a primeira observação do menino em coisas de política,
ainda a não desmentiu a experiência do homem. No fundo de todas
as evoluções lá está o chocolate embora sob vários
aspectos.

Há caracteres íntegros, como o do Senador Alencar, apóstolos
sinceros de uma idéia e mártires dela. Mas estes são
esquecidos na hora do triunfo, quando não servem de vítimas
para aplacar as iras celestes.

Suprima este mau trecho que insinuou-se malgrado e contra todas as usanças
em uma palestra, senão au coin du feu, em todo o caso aqui neste cantinho
da imprensa.

Afora os dias de sessão, a sala do fundo era a estação
habitual da família.

Não havendo visitas de cerimônia sentava-se minha boa mãe
e sua irmã D. Florinda com os amigos que pareciam, ao redor de uma
mesa redonda de jacarandá, no centro da qual havia um candeeiro.

Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as
amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados os primeiros momentos
à conversação, passava-se à leitura e era eu chamado
ao lugar de honra.

Muitas vezes, confesso, essa honra me arrancava bem a contragosto de um sono
começado ou de um folguedo querido; já naquela idade a reputação
é um fardo e bem pesado.

Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia tão
interessantes que eu era obrigado à repetição. Compensavam
esse excesso, as pausas para dar lugar às expansões do auditório,
o qual desfazia-se em recriminações contra algum mau personagem,
ou acompanhava de seus votos e simpatias o herói perseguido.

Uma noite, daquelas em que eu estava mais possuído do livro, lia com
expressão uma das páginas mais comoventes da nossa biblioteca.
As senhoras, de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto, e poucos
momentos depois não puderam conter os soluços que rompiam-lhes
o seio.

Com a voz afogada pela comoção e a vista empanada pelas lágrimas,
eu também cerrando ao peito o livro aberto, disparei em pranto e respondia
com palavras de consolo às lamentações de minha mãe
e suas amigas.

Nesse instante assomava à porta um parente nosso, o Revd.º Padre
Carlos Peixoto de Alencar, já assustado com o choro que ouvira ao entrar
– Vendo-nos a todos naquele estado de aflição, ainda mais
perturbou-se:

-Que aconteceu? Alguma desgraça? Perguntou arrebatadamente.

As senhoras, escondendo o rosto no lenço para ocultar do Padre Carlos
o pranto e evitar seus remoques, não proferiram palavra. Tomei eu a
mim responder:

-Foi o pai de Amanda que morreu! Disse, mostrando-lhe o livro aberto.
Compreendeu o Padre Carlos e soltou uma gargalhada, como ele as sabia dar,
verdadeira gargalhada homérica, que mais parecia uma salva de sinos
a repicarem do que riso humano. E após esta, outra e outra, que era
ele inesgotável, quando ria de abundância de coração,
com o gênio prazenteiro de que a natureza o dotara.

Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro
imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária
que é entre todas a de minha predileção?

Não me animo a resolver esta questão psicológica, mas
creio que ninguém contestará a influência das primeiras
impressões.

Já vi atribuir o gênio de Mozart e sua precoce revelação
à circunstância de ter ele sido acalentado no berço e
criado com música.

Nosso repertório romântico era pequeno; compunha-se de uma dúzia
de obras entre as quais primavam a Amanda e Oscar, Saint-Clair das Ilhas,
Celestina e outras de que já não me recordo.

Esta mesma escassez, e a necessidade de reler uma e muitas vezes o mesmo
romance, quiçá contribuiu para mais gravar em meu espírito
os moldes dessa estrutura literária, que mais tarde deviam servir aos
informes esboços do novel escritor.

Capítulo IV

O primeiro broto da semente que minha boa mãe lançara em meu
espírito infantil, ignara dos desgostos que preparava a seu filho querido,
veio dois anos depois.

Entretanto é preciso que lhe diga. Se a novela foi a minha primeira
lição de literatura, não foi ela que me estreou na carreira
de escritor. Este título cabe a outra composição, modesta
e ligeira, e pôr isso mesmo mais própria para exercitar um espírito
infantil.

O dom de produzir a faculdade criadora, se a tenho, foi a charada que a desenvolveu
em mim, e eu teria prazer em referir-lhe esse episódio psicológico,
se não fosse o receio de alongar-me demasiado, fazendo novas excursões
fora do assunto que me produz.

Foi em 1842.

Já então havíamos deixado a casa da Rua do Conde e morávamos
na Chácara da Rua Maruí, nº 7, donde também saíram
importantes acontecimentos de nossa história política. E todavia
ninguém se lembrou ainda de memorar o nome do Senador Alencar, nem
mesmo pôr esse meio econômico de uma esquina de rua.

Não vai nisso mais que um reparo, pois sou avesso a semelhante modo
de honrar a memória de beneméritos; além de que ainda
não perdi a esperança de escrever esse nome de minha veneração
no frontispício de um livro que lhe sirva de monumento. O seu vulto
histórico, não o atingem pôr certo as calúnias
póstumas que, sem reflexão, foram acolhidas em umas páginas
ditas de história constitucional; mas quantos dentre vós estudam
conscienciosamente o passado?

Como a revolução parlamentar da maioridade, a revolução
popular de 1842 também saiu de nossa casa, embora o plano definitivo
fosse adotado em casa do Senador José Bento, à Rua do Conde,
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Nos paroxismos, quando a abortada revolução já não
tinha glórias, mas só perigos para os seus adeptos, foi na Chácara
do Senador Alencar que os perseguidos acharam asilo, em 1842 como em 1848.

Entre os nossos hóspedes da primeira revolução, estava
o meu excelente amigo Joaquim Sombra, que tomara parte no movimento sedicioso
do Exu e sertões de Pernambuco.

Contava ele então os seus vinte e poucos anos: estava na flor da mocidade,
cheio de ilusões e entusiasmos. Meus versos arrebentados à força
de os esticar, agradavam-lhe ainda assim, porque no fim de contas eram um
arremedo de poesia; e porventura levavam um perfume da primavera da alma.

Vendo-me ele essa mania de rabiscar, certo dia propôs-me que aproveitasse
para uma novela o interessante episódio da sedição, do
qual era ele o protagonista.

A idéia foi aceita com fervor e tratamos logo de a pôr em obra.

A cena era em Pajeú de Flores, nome que só pôr si enchia-me
o espírito da fragrância dos campos nativos, sem falar dos encantos
com que os descrevia o meu amigo.

Esse primeiro rascunho foi-se com os folguedos da infância que o viram
nascer. Das minhas primícias literárias nada conservo; lancei-as
ao vento, como palhiço que eram da primeira copa.

Não acabei o romance do meu amigo Sombra; mas em compensação
de não te-lo feito herói de um poema, coube-me, vinte e sete
anos depois, a fortuna mais prosaica de nomeá-lo coronel, posto que
ele dignamente ocupa e no qual presta relevantes serviços à
causa pública.

Um ano depois, parti para São Paulo, onde ia estudar os preparatórios
que me faltavam para a matrícula no curso jurídico.

Capítulo V

Com a minha bagagem, lá no fundo da canastra, iam uns cadernos escritos
em letra miúda e conchegada. Eram o meu tesouro literário.

Ali estavam fragmentos de romances, alguns apenas começados, outros
já no desfecho, mas ainda sem princípio.

De charadas e versos, nem lembrança. Estas flores efêmeras das
primeiras águas tinham passado com elas. Rasgara as páginas
dos meus canhenhos e atirara os fragmentos no turbilhão das folhas
secas das mangueiras, a cuja sombra folgara aquele ano feliz de minha infância.

Nessa época tinha eu dois moldes para o romance.

Um merencório, cheio de mistérios e pavores; esse, o recebera
das novelas que tinha lido. Nele a cena começava nas ruínas
de um castelo, amortalhadas pelo baço clarão da lua; ou nalguma
capela gótica frouxamente esclarecida pela lâmpada, cuja luz
esbatia-se na lousa de uma campa.

O outro molde, que me fora inspirado pela narrativa pitoresca do meu amigo
Sombra, era risonho, loução, brincado, recendendo graças
e perfumes agrestes. Aí a cena abria-se em uma campina, marchetada
de flores, e regada pelo sussurrante arroio que a bordava de recamos cristalinos.

Tudo isto, porém, era esfumilho que mais tarde devia apagar-se.

A página acadêmica é para mim, como para os que a viveram,
riquíssima de reminiscências, e nem podia ser de outra forma,
pois abrange a melhor monção da existência.

Não tomarei dela, porém, senão o que tem relação
com esta carta.

Ao chegar a São Paulo, era eu uma criança de treze anos, cometida
aos cuidados de um parente, então estudante do terceiro ano, e que
atualmente figura com lustre na política e na magistratura.

Algum tempo depois de chegado, instalou-se a nossa república ou comunhão
acadêmica à Rua de São Bento, esquina da Rua da Quitanda,
em um sobradinho acachapado, cujas lojas do fundo eram ocupadas pôr
quitandeiras.

Nossos companheiros foram dois estudantes do quinto ano; um deles já
não é deste mundo; o outro pertence à alta magistratura,
de que é ornamento. Naqueles bons tempos da mocidade, deleitava-o a
literatura e era entusiasta do Dr. Joaquim Manuel de Macedo que pouco havia
publicado o seu primeiro e gentil romance. – A Moreninha.

Ainda me recordo das palestras em que meu companheiro de casa falava com
abundâncias de coração em seu amigo e nas festas campestres
do romântico Itaboraí, das quais o jovem escritor era o ídolo
querido.

Nenhum dos ouvintes bebia esses pormenores com tamanha avidez como eu, para
quem eram completamente novos. Com a timidez e o acanhamento de meus treze
anos, não me animava a intervir na palestra; escutava à parte;
e pôr isso ainda hoje tenho-as gravadas em minhas reminiscências,
a estas cenas do viver escolástico.

Que estranho sentir não despertava em meu coração adolescente
a notícia dessas homenagens de admiração e respeito tributados
ao jovem autor d’A Moreninha! Qual régio diadema valia essa auréola
de entusiasmo a cingir o nome de um escritor?

Não sabia eu então que em meu país essa luz, que dizem
glória, e de longe se nos afigura radiante e esplêndida, não
é senão o baço lampejo de um fogo de palha.

Naquele tempo o comércio dos livros era, como ainda hoje, artigo de
luxo; todavia, apesar de mais baratas, as obras literárias tinham menor
circulação. Provinha isso da escassez das comunicações
com a Europa, e da maior raridade de livrarias e gabinetes de leitura.

Cada estudante, porém, levava consigo a modesta provisão que
juntara durante as férias, e cujo uso entrava logo para a comunhão
escolástica. Assim correspondia São Paulo às honras de
sede de uma academia, tornando-se o centro do movimento literário.

Uma das livrarias, a que maior cabedal trazia a nossa biblioteca, era de
Francisco Otaviano, que herdou do pai uma escolhida coleção
das obras dos melhores escritores da literatura moderna, a qual o jovem poeta
não se descuidava de enriquecer com as últimas publicações.

Meu companheiro de casa era dos amigos de Otaviano, e estava no direito de
usufruir sua opulência literária. Foi assim que um dia vi pela
primeira vez o volume das obras completas de Balzac, nessa edição
em folha que os tipógrafos da Bélgica vulgarizam pôr preço
módico.

As horas que meu companheiro permanecia fora, passava-as eu com o volume
na mão, a reler os títulos de cada romance da coleção,
hesitando na escolha daquele pôr onde havia de começar. Afinal
decidia-me pôr um dos mais pequenos; porém, mal começada
a leitura, desistia ante a dificuldade.

Tinha eu feito exame de francês à minha chegada em São
Paulo e obtivera aprovação plena, traduzindo uns trechos do
Telêmaco e da Henriqueida; mas, ou soubesse eu de outiva a versão
que repeti, ou o francês de Balzac não se parecesse em nada com
o de Fenelon e Voltaire; o caso é que não conseguia compreender
um período de qualquer dos romances da coleção.

Todavia achava eu um prazer singular em percorrer aquelas páginas,
e pôr um ou outro fragmento de idéia que podia colher nas frases
indecifráveis, imaginava os tesouros que ali estavam defesos à
minha ignorância.

Conto-lhe este pormenor para que veja quão descurado foi o meu ensino
de francês, falta que se deu em geral com toda a minha instrução
secundária, a qual eu tive de refazer na máxima parte, depois
de concluído o meu curso de direito, quando senti a necessidade de
criar uma individualidade literária.

Tendo meu companheiro concluído a leitura de Balzac, a instâncias
minhas, passou-me o volume, mas constrangido pela oposição de
meu parente que receava dessa diversão.

Encerrei-me com o livro e preparei-me para a luta. Escolhido o mais breve
dos romances, armei-me do dicionário e, tropeçando a cada instante,
buscando significados de palavra em palavra, tornando atrás para reatar
o fio da oração, arquei sem esmorecer com a ímproba tarefa.
Gastei oito dias com a Grenadière; porém um mês depois
acabei o volume de Balzac; e no resto do ano li o que então havia de
Alexandre Dumas e Alfredo Vigny, além de muito de Chateaubriand e Victor
Hugo.

A escola francesa, que eu então estudava nesses mestres da moderna
literatura, achava-me preparado para ela. O molde do romance, qual mo havia
revelado pôr mera casualidade aquele arrojo de criança a tecer
uma novela com os fios de uma ventura real, fui encontra-lo fundido com a
elegância e beleza que jamais lhe poderia dar.

E aí está, porque justamente quando a sorte me deparava o modelo
a imitar, meu espírito desquita-se dessa, a primeira e a mais cara
de suas aspirações, para devanear pôr outras devesas literárias,
onde brotam flores mais singelas e modestas.

O romance, como eu agora o admirava, poema da vida real, me aparecia na altura
dessas criações sublimes, que a Providência só
concede aos semideuses do pensamento; e que os simples mortais não
podem ousar, pois arriscam-se a derreter-lhes o sol, como a Ícaro,
as penas de cisnes grudadas com cera.

Os arremedos de novelas, que eu escondia no fundo de meu baú, desprezei-os
ao vento. Pesa-me ter destruído as provas desses primeiros tentamens
que seriam agora relíquias para meus filhos e estímulos para
fazerem melhor. Só pôr isso, que de valor literário não
tinham nem ceitil.

Os dois primeiros anos que passei em São Paulo. Foram para mim de
contemplação e recolhimento de espírito. Assistia arredio
ao bulício acadêmico e familiariza-me de parte com esse viver
original, inteiramente desconhecido para mim, que nunca fora pensionista de
colégio, nem havia até então deixado o regaço
da família.

As palestras à mesa do chá, as noites de cinismo conversadas
até o romper da alva, entre a fumaça dos cigarros; as anedotas
e aventuras da vida acadêmica, sempre repetidas; as poesias clássicas
da literatura paulistana e as cantigas tradicionais do povo estudante; tudo
isto sugava o meu espírito a linfa, para mais tarde desabrochar a talvez
pálida florinha.

Depois vinham os discursos recitados nas solenidades escolares, alguma nova
poesia de Otaviano, os brindes nos banquetes de estudantes, o aparecimento
de alguma obra recentemente publicada na Europa e outras novidades literárias,
que agitavam a rotina de nosso viver habitual e comoviam um instante a colônia
acadêmica.

Não me recordo de qualquer tentâmen literário de minha
parte, até fins de 1844. Os estudos de filosofia e história
preenchiam o melhor de meu tempo, e de todo me traíam..

O único tributo que paguei então à moda acadêmica,
foi o das citações. Era nesse ano bom-tom ter de memórias
frases e trechos escolhidos dos melhores autores, para repeti-los a propósito.

Vistos de longe, e através da razão, esses arremedos de erudição,
arranjados com seus remendos alheios, nos parecem ridículos; e todavia
é esse jogo de imitação que primeiro imprime ao espírito
a flexibilidade, como ao corpo o da ginástica.

Em 1845, voltou-me o prurido de escritor; mas esse ano foi consagrado à
mania, que então grassava, de baironizar. Todo estudante de alguma
imaginação queria ser um Byron; e tinha pôr destino inexorável
copiar ou traduzir o bardo inglês.

Confesso que não me sentia o menor jeito para essa transfusão;
talvez pelo meu gênio taciturno e concentrado que já tinha em
si melancolia de sobejo, para não carecer desse empréstimo.
Assim é que nunca passei de algumas peças ligeiras, das quais
não me figurava herói e nem mesmo autor; pois divertia-me em
escreve-las, com o nome de Byron, Hugo ou Lamartine, nas paredes de meu aposento,
à Rua de Santa Tereza, onde alguns camaradas daquele tempo, ainda hoje
meus bons amigos, os Doutores Costa Pinto e José Brusque talvez se
recordem de as terem lido.

Era um discurso aos ilustres poetas atribuir-lhes versos de confecção
minha; mas a broxa do caiador, incumbido de limpar a casa pouco tempo depois
de minha partida, vingou-os desse inocente estratagema, com que nesse tempo
eu libava a delícia mais suave para o escritor: ouvir ignoto o louvor
de seu trabalho.

Que satisfação íntima não tive eu, quando um
estudante que era então o inseparável amigo de Otaviano e seu
irmão em letras, mas hoje chama-se o Barão de Ourém,
releu com entusiasmo uma dessas poesias, seduzido sem dúvida, pelo
nome de pseudo-autor! É natural que hoje nem se lembre desse pormenor;
e mal saiba que todos os cumprimentos que depois recebi de sua cortesia, nenhum
valia aquele espontâneo movimento.

Os dois anos seguintes pertencem à imprensa periódica. Em outra
ocasião escreverei esta, uma das páginas mais agitadas da minha
adolescência. Daí datam as primeiras raízes de jornalista;
como todas as manifestações de minha individualidade, essa também
iniciou-se no período orgânico.

O único homem novo e quase estranho que nasceu em mim com a virilidade,
foi o político. Ou não tinha vocação para essa
carreira, ou considerava o governo do estado coisa tão importante e
grave, que não me animei nunca a ingerir-me nesses negócios.
Entretanto eu saía de uma família para quem a política
era uma religião e onde se haviam elaborado grandes acontecimentos
de nossa história.

Fundamos, os primeiranistas de 1846, uma revista semanal sob o título
– Ensaios Literários.

Dos primitivos colaboradores desse periódico, saudado no seu aparecimento
pôr Otaviano e Olímpio Machado, já então redatores
da Gazeta Oficial, faleceu, ao terminar o curso, o Dr. Araújo, inspirado
poeta. Os outros aí andam dispersos pelo mundo. O Dr. José Machado
Coelho de Castro é presidente do Banco do Brasil; o Dr. João
Guilherme Whitaker é juiz de direito em São João do Rio
Claro; e o conselheiro João de Almeida Pereira, depois de ter luzido
no ministério e no parlamento, repousa das lides políticas no
remanso da vida privada.

Capítulo VI

Foi somente em 1848 que ressurgiu em mim a veia do romance.

Acabava de passar dois meses em minha terra natal. Tinha-me repassado das
primeiras e tão fagueiras recordações da infância,
ali nos mesmos sítios queridos onde nascera.

Em Olinda onde estudava meu terceiro ano e na velha biblioteca do convento
de São Bento a ler os cronistas da era colonial, desenhavam-se a cada
instante, na tela das reminiscências, as paisagens de meu pátrio
Ceará.

Eram agora os seus tabuleiros gentis; logo após as várzeas
amenas e graciosas; e pôr fim as matas seculares que vestiam as seras
como a ararróia verde do guerreiro tabajara.
E através destas também esfumavam-se outros painéis,
que me representavam o sertão em todas as suas galas de inverno, as
selvas gigantes que se prolongam até os Andes, os raios caudalosos
que avassalam o deserto, e o majestoso São Francisco transformado em
um oceano, sobre o qual eu navegara um dia.

Cenas estas que eu havia contemplado com olhos de menino dez anos antes,
ao atravessar essas regiões em jornada do Ceará à Bahia;
e que agora se debuxavam na memória do adolescente, e coloriam-se ao
vivo com as tintas frescas da palheta cearense.

Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com o primeiro broto d’O
Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas
dos alfarrábios de notícias coloniais, buscava com sofreguidão
um tema para o meu romance; ou peço menos um protagonista, uma cena
e uma época.

Recordo-me de que para o martírio do Padre Francisco Pinto, morto
pelos índios do Jaguaribe, se volvia meu espírito com predileção.
Intentava eu figurá-lo na mesma situação em que se achou
o Padre Anchieta, na praia de Iperoíg; mas sucumbindo afinal à
tentação. A luta entre o apóstolo e o homem, tal seria
o drama, para o qual de certo me faleciam as forças.

Atualmente que, embora em cena diversa, já tratei o assunto em um
livro próximo a vir a luma, posso avaliar da dificuldade da empresa.

Súbito todas aquelas lucubrações literárias apagaram-se
em meu espírito. A moléstia tocara-me com sua mão descarnada
; e deixou-me uma espécie de terror da solidão em que tanto
se deleitava o meu espírito, e onde se embalavam as cismas e devaneios
de fantasia. Foi quando desertei de Olinda, onde só tinha casa de estado,
e aceitei a boa hospitalidade de meu velho amigo Dr. Camarim, então
colega de ano e um dos seis da colônia paulistana, a que também
pertenciam o conselheiro Jesuíno Marcondes e o Dr. Luís Álvares.

Dormiram as letras, e creio que também a ciência, um sono folgado.
De pouco se carecia para fazer então em Olinda um exame sofrível
e obter a aprovação plena. Em novembro regressei à Corte,
com a certidão precisa para a matrícula do 4º ano,. Tinha
cumprido o meu dever.
Nessas férias, enquanto se desenrolava a rebelião de que eu
vira o assomo e cuja catástrofe chorei com os meus olhos, refugiei-me
da tristeza que envolvia nossa casa, na literatura amena.

Com as minhas bem parcas sobras, tomei uma assinatura em um gabinete de leitura
que então havia à Rua da Alfândega, e que possuía
copiosa coleção das melhores novelas e romances até então
saídos dos prelos franceses e belgas.

Nesse tempo, como ainda hoje, gostava de mar; mas naquela idade as predileções
têm mais vigor e são paixões. Não somente a vista
do oceano, suas majestosas perspectivas, a magnitude de sua criação,
como também a vida marítima, essa temeridade do homem em luta
com o abismo, me enchiam de entusiasmo e admiração.

Tinha em um ano atravessado o oceano quatro vezes, e uma delas no brigue-escuna
Laura que me transportou do Ceará ao Recife com uma viagem de onze
dias à vela. Essas impressões recentes alimentavam a minha fantasia.

Devorei os romances marítimos de Walter Scott e Cooper, um após
outro; passei aos do Capitão Marryat e depois a quantos se tinham escrito
desse gênero, pesquisa em que me ajudava o dono do gabinete, em francês,
de nome Cremieux, se bem me recordo, o qual tinha na cabeça toda a
sua livraria.

Li nesse discurso muita coisa mais: o que me faltava de Alexandre Dumas e
Balzac, o que encontrei de Arlincourt, Frederico Soulié, Eugênio
Sue e outros. Mas nada valia para mim as grandiosas marinhas de Scott e Cooper
e os combates heróicos de Marryat.

Foi então, faz agora vinte e seis anos, que formei o primeiro esboço
regular de um romance, e meti ombros à empresa com infatigável
porfia. Enchi rimas de papel que tiveram a má sorte de servir de mecha
para acender o cachimbo.

Eis o caso. Já formado e praticante no escritório do Dr. Caetano
Alberto, passava eu o dia, ausente de nossa chácara, à Rua do
Maruí, nº 7 A.

Meus queridos manuscritos, o mais precioso tesouro para mim, eu os trancara
na cômoda; como, porém, tomassem o lugar da roupa, os tinham,
sem que eu soubesse, arrumado na estante.

Daí, um desalmado hóspede, todas as noites quando queria pitar,
arrancava uma folha, que torcia a modo de pavio e acendia na vela. Apenas
escaparam ao incendiário alguns capítulos em dois canhenhos,
cuja letra miúda a custo se distingue no borrão de que a tinta.
Oxidando-se com o tempo,saturou o papel.

Tinha esse romance pôr título – Os Contrabandistas. Sua
feitura havia de ser consoante à inexperiência de um moço
de 18 anos, que nem possuía o gênio precoce de Victor Hugo, nem
tinha outra educação literária, senão essa superficial
e imperfeita, bebida em leituras a esmo. Minha ignorância dos estudos
clássicos era tal, que eu só conhecia Virgílio e Horácio,
como pontos difíceis do exame de latim, e de Homero apenas sabia o
nome e a reputação.

Mas o traço d’Os Contrabandistas, como o gizei aos 18 anos,
ainda hoje o tenho pôr um dos melhores e mais felizes de quantos me
sugeriu a imaginação. Houvesse editor para as obras de longo
fôlego, que já essa andaria a correr mundo, de preferência
a muitas outras que dei à estampa nestes últimos anos.

A variedade dos gêneros que abrangia este romance, desde o idílio
até a epopéia, era o que sobretudo me prendia e agradava. Trabalhava,
não pela ordem dos capítulos, mas destacadamente esta ou aquela
das partes em que se dividia a obra. Conforme a disposição do
espírito e veia da imaginação, buscava entre todos o
episódio que mais se moldava às idéias do momento. Tinha
para não perder-me nesse Dédalo o fio da ação
que não cessava de percorrer.

A estas circunstâncias atribuo ter o meu pensamento, que eu sempre
conheci ávida de novidade, se demorado nesse esboço pôr
tanto tempo; pois, quatro anos depois, já então formado, ainda
era aquele o tema único de meus tentamens no romance; e se alguma outra
idéia despontou, foi ela tão pálida e efêmera que
não deixou vestígios.

Capítulo VII

Eis-me de repente lançado no turbilhão do mundo.

Ao cabo de quatro anos de tirocínio na advocacia, a imprensa diária,
na qual apenas me arriscara como folhetinista, arrebatou-me. Em fins de 1856
achei-me redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro.

É longa a história dessa luta, que absorveu cerca de três
dos melhores anos de minha mocidade. Aí se acrisolaram as audácias
que desgostos, insultos, nem ameaças conseguiram quebrar até
agora; antes parece que as afiam com o tempo.

Ao findar o ano, houve idéia de oferecer aos assinantes da folha,
um mimo de festa. Saiu um romancete, meu primeiro livro, se tal nome cabe
a um folheto de 60 páginas.

Escrevi Cinco Minutos em meia dúzia de folhetins que iam saindo na
folha dia pôr dia, e que foram depois tirados em avulso sem nome do
autor. A prontidão com que em geral antigos e novos assinantes reclamavam
seu exemplar, e a procura de algumas pessoas que insistiam pôr comprar
a brochura, somente destinada à distribuição gratuita
entre os subscritores do jornal; foi a única, muda mas real, animação
que recebeu essa primeira prova.

Bastou para suster a minha natural perseverança. Tinha leitores e
espontâneos, não iludidos pôr falsos anúncios. Os
mais pomposos elogios não valiam, e nunca valerão para mim,
essa silenciosa manifestação, ainda mais sincera nos países
como o nosso de opinião indolente.

Logo depois do primeiro ensaio, veio A Viuvinha. Havia eu em época
anterior começado este romancete, invertendo a ordem cronológica
dos acontecimentos. Deliberei porém mudar o plano, e abri a cena com
o princípio da ação.

Tinha eu escrito toda a primeira parte, que era logo publicada em folhetins;
e contava aproveitar na segunda o primeiro fragmento; mas, quando o procuro,dou
pela falta.

Sabidas as contas, Leonel que era então o encarregado da revista semanal,
Livro do Domingo, como ele intitulou, achando-se um sábado em branco,
pediu-me alguma coisa com que encher o rodapé da folha. Ocupado com
outros assuntos, deixei que buscasse entre os meus borrões. No dia
seguinte lograva ele aos leitões dando-lhes em vez da habitual palestra,
um conto. Era este o meu princípio de romance ao qual ele tinha posto,
com uma linha de reticências e duas de prosa, um desses súbitos
desenlaces que fazem o efeito de uma guilhotina literária.

Fatigado do trabalho da véspera, urgido pelas ocupações
do dia, em constantes tribulações, nem sempre podia eu passar
os olhos pôr toda a folha.

Nesse domingo não li a revista, cujo teor já me era conhecido,
pois saíra-me da pasta.

Imagine, como fiquei, em meio de um romance, cuja continuação
o leitor já conhecia oito dias antes. Que fazer? Arrancar do Livro
do Domingo, as páginas já publicadas? Podia-o fazer; pois o
folhetinista não as dera como suas, e deixara entrever o autor; mas
fora matar a ilusão.

Daí veio o abandono desse romance, apesar dos pedidos que surgiam
a espaços, instando pela conclusão. Só três anos
depois, quando meu amigo e hoje meu cunhado, Dr. Joaquim Bento de Souza Andrade,
quis publicar uma segunda edição de Cinco Minutos, escrevi eu
o final d’A Viuvinha, que faz parte do mesmo volume.

O desgosto que me obrigou a truncar o segundo romance, levou-me o pensamento
para um terceiro, porém este já de maior fôlego. Foi O
Guarani, que escrevi dia pôr dia para o folhetim do Diário, entre
os meses de fevereiro e abril de 1857, se bem me recordo.

No meio das labutações do jornalismo, oberado não somente
com a redação de uma folha diária, mas com a administração
da empresa, desempenhei-me da tarefa que me impusera, e cujo alcance eu não
medira ao começar a publicação, apenas com os dois primeiros
capítulos escritos.

Meu tempo dividia-se desta forma. Acordava, pôr assim dizer, na mesa
do trabalho; e escrevia o resto do capítulo começado no dia
antecedente para envia-lo à tipografia. Depois do almoço entrava
pôr novo capítulo que deixava em meio. Saía então
para fazer algum exercício antes do jantar no “Hotel de Europa”.
A tarde, até nove ou dez horas da noite, passava no escritório
da redação, onde escrevia o artigo editorial e o mais que era
preciso.

O resto do serão era repousar o espírito dessa árdua
tarefa jornaleira, em alguma distração, como o teatro e as sociedades.

Nossa casa no Largo do Rocio, nº 73, estava em reparos. Trabalhava eu
num quarto do segundo andar, ao estrépito do martelo, sobre uma banquinha
de cedro, que apenas chegava para o mister da escrita; e onde a minha velha
caseira Ângela servia-me o parco almoço. Não tinha comigo
um livro; e socorria-me unicamente a um canhenho, em que havia em notas o
fruto de meus estudos sobre a natureza e os indígenas do Brasil.

Disse alguém, e repete-se pôr aí de outiva que O Guarani
é um romance ao gosto de Cooper. Se assim fosse, haveria coincidência,
e nunca imitação; mas não é. Meus escritos se
parecem tanto com os do ilustre romancista americano, como as várzeas
do Ceará com as margens do Delaware.

A impressão profunda que em mim deixou Cooper foi, já lhe disse,
como poeta do mar. D’Os Contrabandistas, sim, poder-se-ia dizer, apesar
da originalidade da concepção, que foram inspirados pela leitura
do Piloto, do Corsário, do Varredor do Mar etc. Quanto à poesia
americana, o modelo para mim ainda hoje é Chateaubriand; mas o mestre
que eu tive, foi esta esplêndida natureza que me envolve, e particularmente
a magnificência dos desertos que eu perlustrei ao entrar na adolescência,
e foram o pórtico majestoso pôr onde minha alma penetrou no passado
de sua pátria.

Daí, desse livro secular e imenso, é que eu tirei as páginas
d’O Guarani, as de Iracema, e outras muitas que uma vida não
bastaria a escrever. Daí e não das obras de Chateaubriand, e
menos das de Cooper, que não eram senão a cópia do original
sublime, que eu havia lido com o coração.

O Brasil tem, como os Estados Unidos, e quaisquer outros povos da América,
um período de conquista, em que a raça invasora destrói
a raça indígena. Essa luta apresenta um caráter análogo,
pela semelhança dos aborígenes. Só no Peru e México
difere.

Assim o romancista brasileiro que buscar o assunto do seu drama nesse período
da invasão, não pode escapar ao ponto de contacto com o escritor
americano. Mas essa aproximação vem da história, é
fatal, e não resulta de uma imitação.

Se Chateaubriand e Cooper não houvessem existido, o romance americano
havia de aparecer no Brasil a seu tempo.

Anos depois de escrito O Guarani, reli Cooper a fim de verificar a observação
dos críticos e convenci-me de que ela não passa de um rojão.
Não há no romance brasileiro um só personagem de cujo
tipo se encontre o molde nos Moicanos, Espíão, Ontário,
Sapadores e Leonel Lincoln.

N’O Guarani derrama-se o lirismo de uma imaginação mpça,
que tem como a primeira rama o vício da exuberância; pôr
toda a parte a linfa, pobre de seiva, brota em flor ou folha. Nas obras do
eminente romancista americano, nota-se a singeleza e parcimônia do prosador,
que se não deixa arrebatar pela fantasia, antes a castiga.

Cooper considera o indígena sob o ponto de vista social, e na descrição
dos seus costumes foi realista; apresentou-o sob aspecto vulgar.

N’O Guarani o selvagem é um ideal, que o escritor intenta poetizar,
despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o
ao ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase
extinta raça.

Mas Cooper descreve a natureza americana, dizem os críticos. E que
havia ele de descrever, senão a cena de seu drama? Antes dele Walter
Scott deu o modelo dessas paisagens à pena, que fazem parte da cor
local.

O que se precisa examinar é se as descrições d’O
Guarani têm algum parentesco ou afinidade com as descrições
de Cooper; mas isso não fazem os críticos, porque dá
trabalho e exige que se pense. Entretanto basta o confronto para conhecer
que não se parecem nem no assunto, nem no gênero e estilo.

A edição avulsa que se tirou d’O Guarani, logo depois
de concluída a publicação em folhetim, foi comprada pela
livraria do Brandão, pôr um conto e quatrocentos mil réis
que cedi à empresa. Era essa edição de mil exemplares,
porém trezentos estavam truncados, com as vendas de volumes que se
faziam à formiga na tipografia. Restavam pois setecentos, saindo o
exemplar a 2$000.

Foi isso em 1857. Dois anos depois comprava-se o exemplar a 5$000 e mais.
Nos belchiores que o tinham a cavalo do cordel, embaixo dos arcos do Paço,
donde o tirou o Xavier Pinto para a sua livraria da Rua dos Ciganos. A indiferença
pública, senão o pretensioso desdém da roda literária,
o tinha deixado cair nas pocilgas dos alfarrabistas.

Durante todo esse tempo e ainda muito depois, não vi na imprensa qualquer
elogio, crítica ou simples notícia do romance, a não
ser em uma folha do Rio Grande do Sul, como razão para a transcrição
dos folhetins. Reclamei contra esse abuso, que cessou; mas posteriormente
soube que aproveitou-se a composição já adiantada para
uma tiragem avulsa. Com esta anda atualmente a obra na sexta edição.

Na bela introdução que Mendes Leal escreveu ao seu Calabar,
se extasiava ante os tesouros da poesia brasileira, que ele supunha completamente
desconhecidos para nós. “E tudo isto oferecido ao romancista,
virgem, intacto, para escrever, para animar, para reviver”.

Que ele o dissesse, não há estranhar, pois ainda hoje os literatos
portugueses não conhecem da nossa literatura, senão o que se
lhes manda de encomenda com um ofertório de mirra e incenso. Do mais
não se ocupam; uns pôr economia, outros pôr desdém.
O Brasil é um mercado para seus livros e nada mais.

Não se compreende, porém, que uma folha brasileira, como era
o Correio Mercantil, anunciando a publicação do Calabar, insistisse
na idéia de ser essa obra uma primeira lição do romance
nacional dada aos escritores brasileiros, e não advertisse que dois
anos antes um compatriota e seu ex-redator se havia estreado nessa província
literária.

“Há muito que o autor pensava na tentativa de criar no Brasil
para o Brasil um gênero de literatura para que ele parece tão
afeito e que lhe pode fazer serviços reais”. Quando Mendes Leal
escrevia em Lisboa estas palavras, o romance americano já não
era uma novidade para nós; e tinha n’O Guarani um exemplar, não
arreado dos primores do Calabar, porém incontestavelmente mais brasileiro.

Capítulo VIII

Hoje em dia quando surge algum novel escritor, o aparecimento de seu primeiro
trabalho é uma festa, que celebra-se na imprensa com luminárias
e fogos de vistas. Rufam todos os tambores do jornalismo, e a literatura forma
parada e apresenta armas ao gênio triunfante que sobe ao Panteão.

Compare-se essa estrada, tapeçada de flores, com a rota aspérrima
que eu tive de abrir, através da indiferença e do desdém,
desbravando as urzes da intriga e da maledicência.

Outros romances é de crer que sucedessem a O Guarani no folhetim do
Diário; se meu gosto não se voltasse então para o teatro.
De outra vez falarei da feição dramática de minha vida
literária; e contarei como e porque veio-me essa fantasia. Aqui não
se trata senão do romancista.

Em 1862 escrevi Lucíola, que editei pôr minha conta e com o
maior sigilo. Talvez não me animasse a esse cometimento, se a venda
da segunda e terceira edição ao Sr. Garnier, não me alentasse
a confiança, provendo-me de recursos para os gastos da impressão.
O aparecimento de meu novo livro fez-se com a etiqueta, ainda hoje em voga,
dos anúncios e remessa de exemplares à redação
dos jornais. Entretanto toda a imprensa diária resumiu-se nesta notícia
de um laconismo esmagador, publicada pelo Correio Mercantil: “Saiu à
luz um livro intitulado Lucíola”. Uma folha de caricaturas trouxe
algumas linhas pondo ao romance tachas de francesia.

Há de ter ouvido algures, que eu sou um mimoso do público,
cortejado pela imprensa, cercado de uma voga de favor, vivendo da falsa e
ridícula idolatria a um romance oficial. Aí tem as provas cabais;
e pôr elas avalie dessa nova
conspiração do despeito que veio substituir a antiga conspiração
do silêncio e da indiferença.

Apesar do desdém da crítica de barrete, Lucíola conquistou
seu público, e não somente fez caminho como ganhou popularidade.
Em um ano esgotou-se a primeira edição de mil exemplares, e
o Sr. Garnier comprou-me a segunda, propondo-me tomar em iguais condições
ouro perfil de mulher, que eu então gizava.

Pôr esse tempo fundou a sua Biblioteca Brasileira, o meu amigo Sr.
Quintino Bocaiúva, que teve sempre um fraco pelas minhas sensaborias
literárias. Reservou-me um de seus volumes, e pediu-me com que enche-lo.
Além de esboços e fragmentos, não guardava na pasta senão
uns dez capítulos de romance começado.

Aceitou-os, e em boa hora os deu a lume; pois esse primeiro tomo desgarrado
excitou alguma curiosidade que induziu o Sr. Garnier a editar a conclusão.
Sem aquela insistência de Quintino Bocaiúva, As Minas de Prata,
obra de maior traço, nunca sairia da crisálida e os capítulos
já escritos estariam fazendo companhia a Os Contrabandistas.

De volta de São Paulo, onde fiz uma excursão de saúde,
e já em férias de política, com a dissolução
de 13 de maio de 1863, escrevi Diva que saiu a lume no ano seguinte, editada
pelo Sr. Garnier.

Foi dos meus romances – e já andava no quinto, não contando
o volume d’As Minas de Prata – o primeiro que recebeu hospedagem
da imprensa diária, e foi acolhido com os cumprimentos banais da cortesia
jornalística. Teve mais: o Sr. H Muzzio consagrou-lhe no Diário
do Rio um elegante folhetim, mas de amigo que não de crítico.

Pouco depois (20 de junho de 1864) deixei a existência descuidosa e
solteira para entrar na vida da família onde o homem se completa. Como
a literatura nunca fora para mim uma Boêmia, e somente um modesto Tibur
para o espírito arredio, este sempre grande acontecimento da história
individual não marca época na minha crônica literária.

A composição dos cinco últimos volumes d’As Minas
de Prata ocupou-me três meses entre 1864 e 1865, porém a demorada
impressão estorvou-me um ano, que tanto durou. Ninguém sabe
da má influência que tem exercido na minha carreira de escritor,
o atraso de nossa arte tipográfica, que um constante caiporismo torna
em péssima para mim.

Se eu tivesse a fortuna de achar oficinas bem montadas com hábeis
revisores, meus livros sairiam mais corretos; a atenção e o
tempo pôr mim despendidos em rever, e mal, provas truncadas, seriam
melhor aproveitados em compor outra obra.

Para publicar Iracema em 1869, fui obrigado a edita-lo pôr minha conta;
e não andei mal inspirado, pois antes de dois anos a edição
extinguiu-se.

De todos os meus trabalhos deste gênero nenhum havia merecido as honras
que a simpatia e a confraternidade literária se esmeram em prestar-lhes.
Além de agasalhado pôr todos os jornais, inspirou a Machado de
Assis uma de suas mais elegantes revistas bibliográficas.

Até com surpresa minha atravessou o oceano, e granjeou a atenção
de um crítico ilustrado e primoroso escritor português, o Sr.
Pinheiros Chagas, que dedicou-lhe um de seus ensaios críticos.

Em 1868 a alta política arrebatou-me às letras para só
restituir-me em 1870. Tão vivas eram as saudades dos meus borrões,
que apenas despedi a pasta auri-verde dos negócios de estado, fui tirar
da gaveta onde a havia escondido, a outra pasta de velho papelão, todo
rabiscado, que era então a arca de meu tesouro.

Aí começa outra idade de autor, a qual eu chamei de minha velhice
literária, adotando o pseudônimo de Sênio, e outros querem
seja a da decrepitude. Não me afligi com isto, eu que, digo-lhe com
todas as veras, desejaria fazer-me escritor póstumo, trocando de boa
vontade os favores do presente pelas severidades do futuro.

Desta segunda idade, que V. tem acompanhado, nada lhe poderia referir de
novo, senão um ou outro pormenor de psicologia literária, que
omito pôr não alongar-me ainda mais. Afora isso, o resto é
monótono, e não passaria de datas, entremeadas da inesgotável
serrazina dos autores contra os tipógrafos que lhes estripam o pensamento.

Ao cabo de vinte e dois anos de gleba na imprensa, achei afinal um editor,
o Senhor B. Garnier, que espontaneamente ofereceu-me um contrato vantajoso
em meados de 1870.

O que lhe deve a minha coleção, ainda antes do contrato, terá
visto nesta carta; depois, trouxe-me esta vantagem, que na concepção
de um romance e na sua feitura, não me turva a mente a lembrança
do tropeço material, que pode matar o livro, ou fazer dele uma larva.

Deixe arrotarem os poetas mendicantes. O Magnus Apollo da poesia moderna,
o deus da inspiração e pai das musas deste século, é
essa entidade que se chama editor e o seu Parnaso uma livraria. Se outrora
houvesse Homeros, Sófocles, Virgílios, Horácios e Dantes,
sem tipografia nem impressor, é porque então escrevia-se nessa
página imortal que se chama a tradição. O poeta cantava;
e seus carmes se iam gravando no coração do povo.

Todavia ainda para o que teve a fortuna de obter um editor, o bom livro é
no Brasil e pôr muito tempo será para seu autor, um desastre
financeiro. O cabedal de inteligência e trabalho que nele se emprega,
daria em qualquer outra aplicação, lucro cêntuplo.

Mas muita gente acredita que eu me estou cevando em ouro, produto de minhas
obras. E, ninguém ousaria acredita-lo, imputaram-me isso a crime, alguma
cousa como sórdida cobiça.

Que país é este onde forja-se uma falsidade, e para que? Para
tornar odiosa e desprezível a riqueza honestamente ganha pelo mais
nobre trabalho, o da inteligência!

Dir-me-á que em toda a parte há dessa praga; sem dúvida,
mas é praga; e não tem foros e respeitos de jornal,admitindo
ao grêmio da imprensa.

Excedi-me além do que devia; o prazer da conversa…

Maio de 1873.

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