A Terra que Precisa de um Homem

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Leon Tolstoi

I

Uma mulher veio visitar sua irmã mais nova que vivia no campo; a primeira
estava casada com um mercador da cidade, a outra com um camponês da
aldeia; quando estavam a tomar o chá, começou a mais velha a
gabar a vida da cidade, dizendo que se vivia por lá com todo o conforto,
que toda a gente andava bem arranjada, que as filhas tinham vestidos lindíssimos,
que se bebiam e comiam coisas magníficas e que se ia ao teatro, a passeios
e a festas. A irmã mais nova, um pouco despeitada, mostrou todos os

inconvenientes da vida do comércio e exaltou as vantagens da existência
dos camponeses.

– Não trocaria a minha vida pela vossa; é certo que vivemos
com alguma rudeza, mas, pelo menos, não estamos sempre ansiosos; vocês
vivem com mais conforto e mais elegância, mas ganham muitas vezes mais
do que precisam e estão sempre em riscos de perder tudo; lá
diz o ditado: «Estão juntos na merca o ganho e a perca»;
quem está rico num dia pode, no dia seguinte, andar a pedir pão
pelas portas; a nossa vida é mais segura; se não é farta
é, pelo menos, comprida; nunca seremos ricos, mas sempre teremos bastante
que comer.

A irmã mais velha replicou com zombaria: – Bastante? Sim, bastante,
se vocês se contentarem com a vida dos porcos e das vitelas. Que sabem
vocês de elegância e de boas maneiras? Por mais que o teu marido
trabalhe como um escravo, vocês hão-de morrer como têm
vivido – num monte de estrume; e os vossos filhos na mesma.

Bem, e depois? – retorquiu-lhe a outra. – Não nego que o nosso trabalho
seja rude e grosseiro; mas em compensação é seguro e
não precisamos de nos curvar diante de ninguém; vocês,
na cidade, vivem rodeados de tentações; hoje tudo corre bem,
mas amanhã o Diabo pode tentar o teu marido com a bebida, o jogo ou
as mulheres – e lá se vai tudo. Bem sabes que é o que sucede
muitas vezes.

Pahóm, o dono da casa, estava deitado à lareira e escutava
a conversa das mulheres.

– «É realmente assim – pensava ele -. Os lavradores ocupados
desde meninos no amanho da terra não têm tempo para pensar em
tolices; só o que nos consome é não termos terra bastante;
se tivesse toda a terra que quero, nem o Diabo seria capaz de meter-me medo.»
As mulheres acabaram o chá, palraram ainda um bocado de vestidos, depois
arrumaram a louça e deitaram-se a dormir. Mas o Diabo tinha estado
sentado num desvão da lareira e tinha ouvido tudo o que se dissera;
ficara contentíssimo quando vira que a mulher do camponês arrastara
o marido para a gabarolice e quando percebera que o homem pensava que, se
tivesse terra à vontade, não temeria o Diabo.

– «Muito bem! – pensou o Diabo. Vamos lutar um com o outro; dou-te
toda a terra que quiseres e há-de ser por essa terra que te hei-de
apanhar.»

II

Perto da aldeia vivia uma senhora, pequena proprietária, que possuía
um terreno de cerca de 120 desiatines(1). Tinha mantido sempre com os camponeses
excelentes relações, até o dia em que tomou como feitor
um antigo soldado que se pôs a multar toda a gente. Por mais cuidado
que Pahóm tivesse, ora um cavalo lhe fugia para os campos de aveia
da senhora, ora uma vaca ia para os jardins, ora as vitelas andavam pelos
prados; e a multa lá vinha.

Pahóm pagava, resmungava e, irritado, tratava mal a família;
todo o Verão, o camponês teve conflitos com o feitor e só
o alegrou a chegada do Inverno em que o gado tinha de ir para o estábulo;
dava-lhe a ração de má vontade, mas ao menos estava livre
de sustos. Durante o Inverno, correu que a senhora ia vender as terras e que
o estalajadeiro se preparava para lhas comprar; toda a aldeia ficou alarmada.

– Bem – pensavam os camponeses – se o estalajadeiro comprar as terras, as
multas serão mais fortes ainda; o caso é sério.

Foram então, em nome da Comuna, pedir à senhora que não
vendesse as terras ao estalajadeiro, porque estavam dispostos a pagar-lhe
melhor; a senhora concordou e os camponeses reuniram-se para que o campo fosse
comprado por todos e cultivado por todos; houve duas assembleias, mas o Diabo
semeava a discórdia e não chegaram a nenhuma combinação;
cada um compraria a terra que pudesse; a senhora acedeu de novo.

Pahóm ouviu dizer que um seu vizinho ia comprar 20 desiatines e que
a proprietária receberia metade em dinheiro e esperaria um ano pela
outra metade; sentiu inveja e pensou: – «Ora vejam isto; vão
comprar toda a terra e eu não apanho nenhuma.» Falou depois à
mulher: – Toda a gente está a comprar terras; vamos nós comprar
também uns 10 desiatines; a vida assim é impossível;
o feitor mata-nos com multas.

A mulher concordou e consideraram sobre a maneira de realizar o seu desejo;
tinham uns cem rublos de parte; venderam um potro e metade das abelhas, meteram
um filho a jornaleiro, recebendo a soldada adiantada, e pediram emprestado
a um cunhado o que faltava para perfazer metade da quantia necessária.

Feito isto, escolheu Pahóm um campo de uns quinze desiatines, com
um pouco de bosque, e foi ter com a senhora para tratarem do negócio;
chegaram a acordo e o camponês pagou adiantada uma certa quantia; depois
foram à cidade e assinaram a escritura em que ficava estabelecido pagar
ele logo metade da quantia e entregar o resto dentro de dois anos.

Agora tinha Pahóm terra sua; pediu sementes emprestadas, semeou-as
na terra que comprara; como a colheita foi boa, pôde, dentro de um ano,
pagar ao cunhado e à senhora; tornou-se assim proprietário,
lavrando e semeando a sua terra, fazendo feno na sua terra, abatendo as suas
árvores, alimentando o seu gado nos seus pastos. Sentia-se cheio de
contentamento quando ia lavrar ou olhava para os trigais ou para os prados;
a erva que ali crescia e as flores que ali desabrochavam pareciam-lhe diferentes
de todas as outras; a princípio parecera-lhe que a sua terra era igual
a qualquer outra; agora, porém, via-a totalmente diversa.

III

O contentamento de Pahóm teria sido completo se os vizinhos não
lhe atravessassem as searas e os prados; falou-lhes muito delicadamente, mas
os homens continuaram; umas vezes eram os pastores da comuna que deixavam
ir as vacas para as suas pastagens, outras vezes os cavalos que se soltavam
à noite e lhe iam para as searas. Pahóm enxotava-os, perdoava
aos donos e, durante muito tempo, não fez queixa de ninguém;
por fim, perdeu a paciência e queixou-se ao tribunal; bem sabia que
era a falta de terra dos camponeses e não qualquer má intenção
que os fazia proceder daquele modo, mas pensava: «Se não tomo
cuidado, dão-me cabo de tudo; tenho que lhes dar uma lição.»
Foi o que fez: deu-lhes uma lição, depois segunda, e dois ou
três camponeses foram multados; ao fim de certo tempo, os vizinhos tinham-lhe
raiva e era de propósito que lhe metiam o gado pelas terras; houve
mesmo um que, uma noite, lhe cortou cinco limoeiros para lhes tirar a casca;
Pahóm passou pelo bosque e viu umas coisas brancas: aproximou-se e
deu com os troncos sem casca estendidos no chão; quase ao lado estavam
os cepos; Pahóm, furioso, pensou: «Já bastaria para mal
que este patife tivesse cortado uma árvore aqui e além; mas
foi logo uma fila inteira; ah! se o apanho!…» Pôs-se a ver quem
poderia ter sido; finalmente, disse consigo: «Deve ter sido o Simão;
ninguém mais ia fazer uma coisa destas.» Deu uma volta pelas
propriedades de Simão, mas nada viu e só arranjou a zangar-se
com o vizinho; tinha, no entanto, a certeza que era ele e apresentou queixa;
Simão foi chamado, julgado e absolvido porque não havia provas;
Pahóm ficou ainda mais furioso e voltou-se contra os juizes:

– A gatunagem unta-vos as mãos; se aqui houvesse vergonha, não
iam os ladrões em paz.

As zangas com os juizes e com os vizinhos trouxeram como resultado ameaças
de lhe queimarem a casa; Pahóm tinha mais terra do que dantes, mas
vivia muito pior. E foi por esta altura que se levantou o rumor de que muita
gente ia sair da terra. «Por mim, não tenho que me mexer – pensou
Pahóm -. Mas se os outros se fossem embora, haveria mais terra para
nós; havia de comprá-la e de arredondar a minha propriedadezinha;
então é que era viver à farta; assim, ainda estou muito
apertado.» Estava um dia Pahóm sentado em casa quando calhou
de entrar um camponês que ia de viagem; deu-lhe licença para
passar ali a noite e, à ceia, puseram-se de conversa; Pahóm
perguntou-lhe donde vinha e o forasteiro respondeu que de além-Volga,
onde tinha estado a trabalhar; depois disse o homem que havia muita gente
que se estava a fixar por aqueles lados, mesmo lavradores da sua aldeia; tinham
entrado na comuna e obtinham setenta e cinco desiatines; a terra era tão
boa que o centeio crescia à altura de um cavalo e era tão basto
que com meia dúzia de foiçadas se fazia um feixe; havia um camponês
que tinha chegado de mãos a abanar e possuía agora seis cavalos
e duas vacas.

O peito de Pahóm inflamava-se de cobiça: «Para que hei-de
eu continuar neste buraco se noutra parte se pode viver tão bem? Vou
vender tudo e, com o dinheiro, vou começar a vida de novo; aqui há
muita gente e sempre sarilhos; mas, primeiro, vou eu mesmo saber as coisas
ao certo.» Pelos princípios do Verão, preparou-se e partiu;
desceu o Volga de vapor até Samara, depois andou a pé noventa
léguas; por fim chegou; era exactamente o que o forasteiro tinha dito;
os camponeses tinham imensa terra: cada homem possuía os setenta e
cinco desiatines que a comuna lhe dera e, se tivesse dinheiro, podia comprar
as terras que quisesse, a três rublos o desiatine. Informado de tudo
o que queria saber, voltou Pahóm a casa no Outono e começou
a vender o que lhe pertencia; vendeu a terra com lucro, vendeu a casa e o
gado, saiu da comuna; esperou pela Primavera e largou com a família
para os novos campos.

IV

Logo que chegaram à nova residência, pediu Pahóm que
o admitissem na comuna de uma grande aldeia; tratou com os dirigentes e deram-lhe
os documentos necessários; depois, concederam-lhe cinco talhões
de terra para ele e para o filho, isto é, trezentos e setenta e cinco
desiatines em campos diferentes, além do direito aos pastos comuns.
Pahóm construiu as casas precisas e comprou gado; só de terra
da comuna tinha ele três vezes mais do que dantes e toda ela era excelente
para trigo; estava incomparavelmente

melhor, com terra de cultivo e de pastagem, e podia ter as cabeças de
gado que quisesse.

A principio, enquanto durou o trabalho de se estabelecer, tudo satisfazia
Pahóm, mas, quando se habituou, começou a pensar que ainda não
tinha bastante terra; no primeiro ano, semeou trigo na terra da comuna e obteve
boa colheita; queria continuar a semear trigo, mas a terra não chegava
e a que já tinha não servia porque, naquela região, era
costume semear o trigo em terra virgem, durante um ou dois anos, depois deixar
o campo de pousio, até se cobrir de novo de ervas de prado. Havia muitos
que desejavam estas terras e não havia bastantes para todos, o que
provocava conflitos; os mais ricos queriam-nas para semear trigo e os que
eram pobres para as alugar a negociantes, de modo a terem dinheiro para pagar
os impostos. Pahóm queria semear mais trigo e tomou uma terra de renda
por um ano; semeou muito, teve boa colheita, mas a terra era longe da aldeia
e o trigo tinha de ir de carro umas três léguas. Certo tempo
depois, notou Pahóm que alguns camponeses viviam em herdades não
comunais e enriqueciam; pensou consigo: «Se eu pudesse comprar terra
livre e arranjar casa, então é que as coisas me haviam de correr
bem.» A questão de comprar terra livre preocupava-o sempre; mas
continuou durante três anos a arrendar campos e a cultivar trigo; os
anos foram bons, as colheitas excelentes, começou a pôr dinheiro
de lado.

Podia ter continuado a viver assim, mas sentia-se cansado de ter que arrendar
terras de outros todos os anos e ainda por cima disputando-as; mal aparecia
uma terra boa todos os camponeses se precipitavam para a tomarem, de modo
que, ou se andava ligeiro, ou se ficava sem nada. Ao terceiro ano, aconteceu
que ele e um negociante arrendaram juntos a uns camponeses uma pastagem: já
a tinham amanhado quando se levantou qualquer disputa, os camponeses foram
para o tribunal e todo o trabalho se perdeu.

«Se fosse terra minha – pensou Pahóm – já eu era independente
e não me via metido nestas maçadas.» E começou
a procurar terra de compra; encontrou um camponês que tinha adquirido
uns quinhentos desiatines mas que, por causa de dificuldades, os queria vender
barato; Pahóm regateou com o homem e assentaram por fim num preço
de 1 500 rublos, metade a pronto, a outra metade a pagar depois. Tinham arrumado
o negócio, quando se deteve em casa de Pahóm um comerciante
que queria forragem para os cavalos; tomou chá com Pahóm e travou-se
conversa; o comerciante disse que voltava da terra dos Baquires, que era muito
longe, e onde tinha comprado cinco mil desiatines de terra por 1000 rublos.

Pahóm fez-lhe mais perguntas e o negociante respondeu: – Basta fazer-nos
amigos dos chefes. Dei-lhes coisa de cem rublos de vestidos de seda e de tapetes,
além duma caixa de chá, e mandei distribuir vinho por quem o
quisesse; e arranjei a terra a cinco kopeks(2) o desiatine.

E, mostrando a Pahóm as escrituras, acrescentou: – A terra é
perto dum rio e toda ela virgem.

Pahóm continuou a interrogá-lo e o homem respondeu: – Há
por lá mais terra do que aquela que se poderia percorrer num ano de
marcha; e toda ela pertence aos Baquires. São como cordeirinhos e arranja-se
a terra que se quer, quase de graça.

– «Bem – pensou Pahóm – para que hei-de eu, com os meus mil
rublos, arranjar só os quinhentos desiatines e aguentar ainda por cima
com uma dívida? Na outra terra compro eu dez vezes mais, e pelo mesmo
dinheiro.»

V

Perguntou Pahóm de que maneira havia de ir lá ter e, logo que
o negociante o deixou, preparou-se para empreender a viagem; ficou a mulher
a tomar conta da casa e ele partiu com o criado; pararam numa

cidade e compraram uma caixa de chá, vinho e outros presentes, conforme
o conselho do negociante.

Foram andando sempre até que, já percorridas mais de noventa
léguas, chegaram ao lugar em que os Baquires tinham levantado as suas
tendas; era exactamente como o homem tinha dito: viviam nas estepes, junto
dum rio, em tendas de feltro; não lavravam a terra, nem comiam pão:
o gado e os cavalos andavam em rebanhos pelos pastos da estepe; os potros
estavam peados atrás das tendas e duas vezes por dia lhes levavam as
éguas; ordenhavam-nas e do leite faziam kumiss(3); eram as mulheres
quem preparavam o kumiss e faziam queijo; quanto aos homens, passavam o seu
tempo a beber kumiss e chá, a comer carneiro e a tocar gaitas-de-foles;
eram gordanchudos e prazenteiros, e, durante todo o Verão, nem pensavam
em trabalhar; eram ignorantes de todo, não sabiam falar russo, mas
eram de boa qualidade.

Mal viram Pahóm, saíram das tendas e juntaram-se à
volta do visitante; apareceu um intérprete e Pahóm disse-lhes
que tinha vindo à procura de terra; os Baquires, segundo parecia, ficaram
muito contentes; levaram Pahóm para uma das melhores tendas onde o
fizeram sentar numas almofadas de pernas postas num tapete, sentando-se eles
também à volta; deram-lhe chá e kumiss, mataram um carneiro
para a refeição; Pahóm tirou os presentes do carro, distribuiu-os
pelos Baquires e dividiu também o chá; os Baquires ficaram encantados;
conversaram muito uns com os outros e depois disseram ao intérprete
que traduzisse: – O que eles estão a dizer é que gostaram de
ti e que é nosso costume fazermos tudo o que podemos para agradar aos
hóspedes e lhes pagar os presentes; tu deste presentes: tens que dizer
agora que te agrada mais de tudo o que possuímos, para que to entreguemos.

– O que me agrada mais – respondeu Pahóm – é a vossa terra.
A nossa está cheia de gente e os campos já não dão;
vocês têm muita e boa; nunca vi coisa assim.

O intérprete traduziu. Os Baquires falaram um bocado, sem que Pahóm
compreendesse o que diziam; mas percebeu que estavam muito divertidos e viu
que gritavam e se riam; depois calaram-se e olharam para Pahóm, enquanto
o intérprete dizia: – O que eles me mandam dizer é que, em troca
dos teus presentes, te darão a terra que quiseres; é só
apontá-la a dedo.

Os Baquires puseram-se outra vez a falar e discutiram; Pahóm perguntou
o motivo da discussão e o intérprete respondeu que uns eram
de opinião que não deviam resolver nada na ausência do
chefe e outros que não havia necessidade de esperarem que voltasse.

VI

Enquanto os Baquires discutiam, entrou um homem com um barrete de pele de
raposa; todos se levantaram em silêncio e o intérprete disse:
– É o chefe!

Pahóm foi logo buscar o melhor vestuário e cinco libras de
chá e ofereceu tudo ao chefe; o chefe aceitou, sentou-se no lugar de
honra e os Baquires começaram a contar-lhe qualquer coisa; o chefe
escutou, depois fez um sinal com a cabeça para que se calassem e, dirigindo-se
a Pahóm, disse-lhe em russo:

– Está bem. Escolhe a terra que queres; há bastante por aí.

-«A que eu quiser ?- pensou Pahóm – Como é isso possível?
Tenho que fazer uma escritura para que não voltem com a palavra atrás.»
Depois disse alto: – Muito obrigado pelas suas boas palavras: os senhores
têm muita terra, e eu só quero uma parte; mas que seja bem minha;
podiam talvez medi-la e entregá-la. Há morrer e viver… Os
senhores, que são bons, dão-ma, mas os vossos filhos poderiam
querer tirar-ma.

– Tens razão – disse o chefe -; vamos doar-te a terra.

– Soube que esteve cá um negociante – continuou Pahóm – e
que os senhores lhe deram umas terras, com uns papéis assinados…
Era assim que eu gostava.

O chefe compreendeu: – Bem, isso é fácil; temos aí
um escrivão e podemos ir à cidade para ficar tudo em ordem.

– E o preço? – perguntou Pahóm.

– O nosso preço é sempre o mesmo: mil rublos por dia.

– Por dia? Que medida é essa? Quantos desiatines? – Não sabemos;
vendemos terra a dia; fica a pertencer-te toda a terra a que puderes dar volta,
a pé, num dia; e são mil rublos por dia.

Pahóm ficou surpreendido.

– Mas num dia pode-se andar muito!…

O chefe riu-se: – Pois será toda tua! Com uma condição:
se não voltares no mesmo dia ao ponto donde partiste, perdes o dinheiro.

– Mas como hei-de eu marcar o caminho? – Vamos ao sítio que te agradar
e ali ficamos. Tu começas a andar com uma pá; onde achares necessário
fazes um sinal; a cada volta cavas um buraco e empilhas os torrões;
depois nós vamos com um arado de buraco a buraco. Podes dar a volta
que quiseres, mas antes do sol-posto tens que voltar; toda a terra que rodeares
será tua.

Pahóm ficou contentíssimo e decidiu-se partir na manhã
seguinte; falaram ainda um bocado, depois beberam mais kumiss, comeram mais
carneiro, tomaram mais chá; em seguida, caiu a noite; deram a Pahóm
uma cama de penas e os Baquires dispersaram-se, depois de terem combinado
reunir-se ao romper da madrugada e cavalgar antes que o Sol nascesse.

 

VII

Pahóm estava deitado, mas não podia dormir, a pensar na terra.

«Que bom bocado vou marcar! – pensava ele. – Faço bem dez léguas
por dia; os dias são compridos e, dentro de dez léguas, quanta
terra! Vendo a pior ou arrendo-a a camponeses e faço uma herdade na
melhor; compro duas juntas e arranjo dois jornaleiros; ponho aí sessenta
desiatines a campo, o resto a pastagens.

Ficou acordado toda a noite e só dormitou pela madrugada; mal fechava
os olhos, teve um sonho; sonhou que estava deitado na tenda e que ouvia fora
uma espécie de cacarejo; pôs-se a pensar o que seria e resolveu
sair: viu então o chefe dos Baquires a rir-se como um doido, de mãos
na barriga; Pahóm aproximou-se e perguntou: «De que se está
a rir?» Mas viu que já não era o chefe: era o negociante
que tinha ido a sua casa e lhe falara da terra. Ia Pahóm a perguntar-lhe:
«Está aqui há muito?» quando viu que já não
era o negociante: era o camponês que regressava do Volga; nem era o
camponês, era o próprio Diabo, com cascos e cornos, sentado,
a cacarejar: diante dele estava um homem descalço, deitado no chão,
só com umas calças e uma camisa; e Pahóm sonhou que olhava
mais atentamente, para ver que homem era aquele ali deitado e via que estava
morto e que era ele próprio; acordou cheio de horror. «Que coisas
a gente vai sonhar» – pensou ele.

Olhou em volta e viu, pela abertura da tenda, que a manhã rompia.
«É tempo de os ir acordar; já devíamos estar de
abalada». Levantou-se, acordou o criado, que estava a dormir no carro,
e mandou-o aparelhar; depois foi chamar os Baquires: – Vamos para a estepe
medir a terra.

Os Baquires levantaram-se, juntaram-se e o chefe apareceu também;
depois, beberam kumiss e ofereceram chá a Pahóm, mas ele não
quis esperar mais: – Se querem ir, vamos; já é tempo.

VIII

Os Baquires aprontaram-se e partiram; uns iam a cavalo, outros de carro;
Pahóm ia no seu carrinho, com o criado e uma pá; quando chegaram
à estepe, já se via no céu o rosado da aurora; subiram
a um cabeço, a que os Baquires chamavam shikhan, e, apeando-se dos
carros e dos cavalos, juntaram-se num sítio. O chefe veio ter com Pahóm
e, estendendo o braço para a planície:

– Olha para isto – disse ele -, tudo o que vês é nosso; poderás
ficar com o que quiseres.

Os olhos de Pahóm rebrilharam: era tudo terra virgem, plana como
a palma da mão, negra como semente de papoila; e as diferentes espécies
de erva cresciam à altura do peito.

O chefe tirou o barrete de pele de raposa, colocou-o no chão e disse:
– O sinal é este; partes daqui e voltas aqui; é tua toda a terra
a que deres volta.

Pahóm puxou do dinheiro e pô-lo no barrete; depois tirou o
casaco e ficou em colete; desapertou o cinto e ajustou-o logo por baixo do
estômago, pôs um saquinho de pão ao peito, atou um cantil
de água ao cinto, puxou os canos das botas, pediu a pá ao criado
e ficou pronto a largar; considerou por alguns A TERRA DE QUE PRECISA UM HOMEM
– LEO TOLSTOI momentos sobre o caminho que havia de tomar, mas era uma tentação
por toda a parte.

– Não faz mal – concluiu -; vou para o nascente.

Voltou-se para leste, espreguiçou-se e esperou que o Sol aparecesse
acima do horizonte.

– Não há tempo a perder – disse ele – e é melhor ir
já pela fresquinha.

Mal apareceu o primeiro raio de sol, desceu Pahóm a colina, de pá
ao ombro; nem ia devagar, nem depressa; ao fim de um quilómetro, parou,
fez um buraco e pôs os torrões uns sobre os outros; depois continuou
e, como ia aquecendo, apressou o passo; ao fim de um certo tempo, fez outra
cova. Pahóm olhou para trás: a colina estava distintamente iluminada
pelo Sol e viam-se os Baquires e os aros cintilantes das rodas; Pahóm
calculou que teria andado uma légua; como o calor apertava, tirou o
colete, pô-lo ao ombro e continuou a caminhar; estava quente a valer:
olhou para o Sol e viu que eram horas de pensar no almoço.

– A primeira tirada está feita; mas posso ainda fazer mais três,
porque é cedo para voltar; o que tenho é de tirar as botas.

Sentou-se, descalçou as botas, pendurou-as ao cinto e continuou;
agora, andava à vontade. «Mais uma leguazita – pensou ele -;
depois volto para a esquerda; este bocado é tão bom que era
uma pena perdê-lo; quanto mais se anda, melhor a terra parece.»
Avançou a direito durante algum tempo e, quando olhou à volta,
viu que a colina mal se enxergava e que os Baquires pareciam formiguinhas;
e havia qualquer coisa que brilhava.

– Já andei bastante para este lado – pensou Pahóm -, é
tempo de voltar; e já estou a suar e com sede.

Parou, cavou um grande buraco e amontoou os torrões; depois, desatou
o cantil, sorveu um gole e voltou à esquerda; foi andando, andando
sempre; a erva era alta, o sol quentíssimo. Começou a sentir-se
cansado: olhou para o Sol e viu que era meio-dia.

– Bem, vou descansar um bocado.

Sentou-se, comeu um naco de pão, bebeu uma pinga de água;
mas não se deitou, com medo de adormecer; depois de estar sentado uns
momentos, levantou-se e continuou. A princípio, andava bem: a comida
tinha-lhe dado forças; mas o calor aumentava, sentia sono; apesar de
tudo, continuava, e repetia consigo: – Um dia de dor, uma vida de amor.

Andou muito tempo na mesma direcção e estava para rodar à
esquerda, quando viu um sítio húmido: «Era uma pena deixar
isto; o linho deve dar-se bem aqui.» Deu uma volta, cavou um buraco
e olhou para a colina; com o calor, o ar tremia e a colina tremia também,
mal se vendo os Baquires.

«Os outros lados ficaram muito grandes; tenho que fazer este mais
curto.» E pôs-se a andar mais depressa. Olhou para o Sol: estava
quase a meio caminho do horizonte e não tinha ainda andado três
quilómetros do lado novo; e ainda lhe faltavam três léguas
para a colina.

– «Bem – pensou ele – não me fica a terra quadrada, mas agora
tenho que ir a direito; podia ir longe de mais e assim já tenho terra
bastante.» Abriu um buraco a toda a pressa e partiu em direcção
à colina.

IX

Ia sempre a direito, mas caminhava com dificuldade. Estava tonto de calor,
tinha os pés cortados e moídos e as pernas a fraquejarem; estava
ansioso por descansar, mas era impossível fazê-lo se queria

chegar antes do sol-posto; o Sol não espera por ninguém e cada
vez ia mais baixo.

– Justos céus! Oxalá não tenha querido de mais! E se
chego tarde? Olhou para a colina e para o Sol; Pahóm estava ainda longe
do seu objectivo e o Sol perto do horizonte.

Continuou a andar; era custoso a valer, mas cada vez andava mais depressa;
estugou o passo, mas estava longe ainda; começou a correr, atirou fora
o casaco, as botas, o cantil e o barrete e ficou só com a pá,
a que se apoiava, de quando em quando.

– Santo Deus! Abarquei de mais e perdi tudo; já não chego
antes de o Sol se pôr.

O medo cortava-lhe a respiração; Pahóm continuava a
correr, mas a transpiração colava-lhe ao corpo as calças
e a camisa; tinha a boca seca e o peito arquejava como um fole de ferreiro;
o coração batia que nem um martelo e as pernas quase nem pareciam
dele; Pahóm sentia-se aterrorizado à ideia de morrer de fadiga.
Apesar do medo da morte, não podia parar. «Se depois de ter corrido
tudo isto, parasse agora, chamavam-me doido». E corria mais e mais e
já estava mais próximo e já ouvia os Baquires a gritar;
os gritos mais lhe faziam pulsar o coração; reuniu as últimas
forças e deu mais uma carreira. O Sol estava já perto do horizonte
e, envolvido na névoa, parecia enorme e vermelho como sangue. Ia-se
a pôr, o Sol! Estava já muito baixo, mas ele também estava
perto da meta; podia ver os Baquires na colina, a agitarem os braços,
para que se apressasse; podia ver o barrete no chão com o dinheiro
em cima e o chefe, sentado, e de mãos nas ilhargas. Pahóm lembrou-se
do sonho.

– Tenho terra bastante, mas permitirá Deus que eu viva nela? Perdi
a vida, perdi a vida! Já não chego àquele lugar.

Pahóm olhou para o Sol que já tinha atingido o horizonte:
um lado já tinha desaparecido; com a força que lhe restava atirou-se
para a frente, com o corpo tão inclinado que as pernas mal podiam conservar
o equilíbrio; ao chegar à colina, tudo escureceu: o Sol pusera-se;
deu um grito: «Tudo em vão!» e ia parar, quando ouviu os
brados dos Baquires e se lembrou de que eles ainda viam o Sol, lá de
cima do outeiro; tomou um hausto de ar e trepou pela colina; ainda havia luz:
no cimo lá estava o barrete e o chefe a rir-se, de mãos na barriga;
outra vez Pahóm lembrou o sonho; soltou um grito, as pernas falharam-lhe
e foi com as mãos que agarrou o barrete.

– Grande homem, grande homem! – gritou o chefe. – A terra que ele ganhou!
O criado de Pahóm veio a correr e tentou levantá-lo, mas viu
que o sangue lhe corria da boca. Pahóm morrera! Os Baquires davam estalos
com a língua, para mostrar a pena que sentiam. O criado pegou na pá,
fez uma cova em que coubesse Pahóm e meteu-o dentro; sete palmos de
terra: não precisava de mais.

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