Luxo e Vaidade

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ATO I

Sala, ornada com esmero e luxo; portas, ao fundo e aos lados, dando comunicação
para o exterior e para o interior da casa.

CENA I

Fanny, que entra pelo lado direito; Petit, que ao mesmo tempo aparece à
porta do fundo.

Petit (Suspirando) – Miss Fanny!

Fanny (Estremecendo) – Ah!…monsieur Petit! Ficar muite sustade…este
non se use n’Ingliterre.

Petit – Oh! non tem que assusta; eu venha aproveitar momento deliciose de
conversa sozinha com miss Fanny em uma tête-à-tête impreciável.

Fanny – Mim ficar muite envorganhade com este conversacion.

Petit – Oh! miss Fanny, non tem vergonha!vergonha non presta por nada: gente
que tem vergonha, non sabe arranja sua vida. (Olhando para dentro) Onde está
as senhoras?

Fanny – Poder estar segura: madame fique sentada de fronte de toucador, e
pinta suas cabelinhas brancas; e mademoiselle estar no janela de sala grande
olhando repagão barbude do sobrado de esquina.

Petit – E senhor Maurício estar em sue gabinete lendo contas de despesa
e roendo as unhas: então nosso tête-à tête se prolongue
dues hores; porque madame tem muito que pinta, mademoiselle muito que olhe,
e senhor Maurício muito que róe.

Fanny – Oh! mas este non se use n’Ingliterre; done deste case ganhe cinco
e gaste cincoenta; este família ser gente de imposture: contracta mim
para ensina inglês mademoiselle, e non paga minhas ordenados cinco meses!
Mim há de faz queixa a ministro inglês.

Petit – Esta gente non ande direita. Senhor Maurício tem bola virada,
e madame non tem bola para virar; non pode gastar e faz ostentação,
e tem em casa professora de inglês para mademoiselle, e criado francês
para servir na sala; mas também quatro meses que eu non recebe meus
salários, e se miss Fanny non mora nesta casa, eu bota logo pés
na rua.

Fanny – De mèsme sorte mim non poder ficar separade de monsieur Petit.

Petit – Oh! este confissão me torne verdadeiramente um grande Petit!
Miss Fanny, vamos deixar esta casa, vem dar coroa de felicidade ao meu amor.

Fanny – Oh! Este non se use n’Ingliterre; mim non poder dar corôa de
felicidade, sem ver padre católica bota mão de Petit em cima
de mão de Fanny.

Petit – Eu non ponha dúvida em fazer aliança anglo-francesa
com miss Fanny…é maior ventura que suspira!

Fanny – Então, mim dar corôa de felicidade: confessa que estar
muito desejose…

Petit (De joelhos e beijando-lhe as mãos) – Miss Fanny! Oh! quel bonheur!

CENA II

Petit de joelhos, Fanny e Anastácio, que aparece à porta do
fundo; vem trajando à viajante e traz botas grandes e esporas.

Anastácio – Oh lá…que par de galhetas! Parece uma coruja
que ouve em confissão a um macaco d’Angola!…

Fanny – Ah! Ficar muite vergonhade!…este non se use n’Ingliterre.

Petit (Levantando-se) – Que diabo de mineiro! (Indo à porta) Non entra
na sala com esses botas que traz lama!…

Anastácio – Não entra na sala!

Petit (Firme, diante de Anastácio) – On ne passe pás!

Anastácio (Ameaçando-o) – Arreda-te, malandro! Quando não…

Petit (Firme) – La garde meurt, elle ne se rend pás!

Anastácio (Dando-lhe um murro) – Insolente!…(Entra)

Petit (Caindo) – Au secours!…au secours!…

Fanny – Mim vai grita quem de rei, e chama dona de casa! Este non se use
n’Ingliterre.

CENA III

Petit, Anastácio, e logo Leonina.

Anastácio – Entrei como Palafox em Saragoça!

Leonina – Que é isto?…Que aconteceu?

Anastácio (Á parte) – Que mocetona! É a tal cabecinha
de vento, sem dúvida.

Petit – É este mineiro que arruma soco inglês, e entra à
força na sala com esses botas que traz lama.

Leonina – E por que não havia de entrar, uma vez que vem procurar
a meu pai ou a minha mãe? (Com austeridade.) Retira-te.

Petit (À parte) – Ah! Sapristi!…(Vai-se)

Leonina – O senhor quer ter a bondade de sentar-se?

Anastácio (Sentando-se) – Sou capaz de apostar que a menina não
adivinha quem eu sou.

Leonina (À parte) – A menina!…já se vê que este homem
é grosseiro. (A Anastácio) Certamente, que não tenho
a fortuna de o conhecer.

Anastácio – Ora aí está, como são as coisas!
Eu conheço a menina como as palmas das minhas mãos.

Leonina (Á parte) É um velho doido! (A Anastácio) –
Não admira, porque eu sou bastante conhecida, pelo menos na alta sociedade
do Rio de Janeiro.

Anastácio – Pois não deve ufanar-se disso. O que mais convém
a uma senhora honesta é que não se fale muito em seu nome, nem
em bem e ainda menos em mal; e a uma menina solteira o que melhor assenta
é, recolhida no seio da modéstia, fazer-se notar pela virtude
que não se ostenta, e que, no entanto, excita a admiração,
por isso mesmo que não procura louvores.

Leonina – Meu senhor, eu prefiro que em lugar de dar-me conselhos, que não
pedi, diga-me o que pretende e se deseja falar a meu pai.

Anastácio – Já agora conversaremos um pouco; hei de provar
que a conheço bem: sou um velho feiticeiro que adivinha a vida, os
pensamentos e até os segredos do coração das moças!
Olha para mim sorrindo-se?…pois escute: a menina chama Leonina, e bem que
assevere a todas as suas camaradas que conta somente dezessete anos de idade,
vai completar os seus vinte dois justinhos daqui a cinco dias.

Leonina – Senhor!

Anastácio – A menina toca alguma coisa o seu piano; canta um pouco
mal a sua ária italiana; tem de cor algumas frases do francês;
desenha um nariz que parece uma orelha; dança e valsa noites inteiras
nos bailes; passeio e conversa sem vexame com os rapazes, e presume por isso
que tem uma educação completa. Engano, menina! A Verdadeira
educação de uma moça é aquela que, antes de tudo,
deve torná-la uma boa mãe de família; a outra, a educação
fictícia, aquela que recebeu, e que muitas recebem, pode dar em último
resultado excelentes e divertidas namoradas, porém esposas extremosas
e mães dignas deste nome sagrado, palavra de honra que não,
minha senhora!

Leonina – O senhor tem a idéia de ofender-me?

Anastácio – A sua história é em tudo semelhante à
de muitas outras. Cedo, bem cedo foi a menina arrastada para o turbilhão
das festas ardentes, onde o delírio segue de perto a alegria, a sensibilidade
se embota, e o fingimento usurpa o lugar da inocência; e a menina, na
idade em que devia ainda brincar com bonecas, sonhou com amores e conquistas,
amou ou supôs amar ao próximo antes de amar a Deus, e só
se lembrou da igreja lembrando-se do casamento.

Leonina – Assim mesmo para um roceiro, o senhor fala corretamente! É
provável que seja eleitor e juiz de paz na sua terra.

Anastácio – Dentro em pouco a vaidade encheu de teias de aranhas essa
cabecinha de criança. A menina realmente não é feia,
julga-se, porém, a primeira formosura das cinco partes do mundo: critica
e murmura desapiedadamente até das suas próprias amigas, e supõe-se
por isso muito espirituosa; é filha de pais muito honrados, mas tão
plebeus como este seu criado, e presume-se fidalga de sangue azul e torce
o biquinho a todo aquele que na tem excelência de jure, e quinze avós
ainda mesmo arranjados de encomenda entre os descendentes dos doze pares de
França.

Leonina – Isso é demais! (Levanta-se) Eu vou chamar meu pai, que o
fará sair imediatamente desta casa!

Anastácio – Escute ao menos um segredo do seu coração…

Leonina – Um segredo! (Com orgulho.) Que pode o senhor saber de mim?…

Anastácio – Foi, há dois meses; a menina encontrou no Clube
Fluminense um elegante mancebo que lhe fez a corte, e, ou porque realmente
gostasse do seu novo apaixonado, ou porque não achasse inconveniente
em acrescentar mais um nome à lista dos seus namorados, mostrou corresponder
ao amor desse jovem; os encontros repetiram-se nos bailes; das conversinhas
misteriosas já se tinha chegado aos apertos de mão, e à
troca de flores, e é escusado dizer que o papai e a mamãe não
viam absolutamente nada; mas em certa noite, ainda no Clube Fluminense, alguém
murmurou aos ouvidos da menina as seguintes palavras: – "Aquele moço
que a requesta é um pintor e filho de um marceneiro"; – a terrível
notícia acendeu os brios da fidalga, e o namorado plebeu foi condenado
ao desprezo. Diga, menina, não é verdade?

Leonina – Não o nego; mas porventura deveria eu continuar a aviltar-me?…

Anastácio – Oh! não, não, de modo nenhum; há
porém no fim dessa história, uma tristíssima e fatal
realidade!

Leonina – E qual é? Já agora dê o seu recado até
o fim.

Anastácio – É que o miserável pintor, filho do miserabilíssimo
mestre marceneiro, é…é…tenho vergonha de acabar a frase.

Leonina – Nada de reticências; eu quero que diga tudo.

Anastácio – Pois então lá vai, minha fidalga: é
que o miserável pintor, filho do miserabilíssimo mestre marceneiro,
é…tenha paciência, é, sem mais nem menos, primo-irmão
de Vossa Excelência.

Leonina – Oh! eu não posso suportar essa ironia insultuosa! (Chamando)
Meu pai!…meu pai!… minha mãe!…

Anastácio – Manchei-lhe o sangue azul com as tintas do meu pintor!…
E como ficou irritada!… Menina, façamos as pazes! (Procurando-a)
Venha um abraço em sinal de reconciliação!…

Leonina (Fugindo) – Meu pai!…minha mãe!…

Anastácio (Seguindo-a) – Há de dar-me um abraço, quer
queira, quer não.

Leonina (Fugindo) – Meu pai! Acuda-me!…

Anastácio (Seguindo-a) – Pois agora há de ser um abraço
e um beijo…

CENA IV

Anastácio, Leonina, Maurício e Hortênsia.

Maurício – Leonina… (Vendo Anastácio) Oh!…mano Anastácio!…(Abraça-o)

Hortênsia – Meu mano! (Abraça-o por sua vez)

Anastácio – Sim! Ele mesmo!…depois de dezoito anos de ausência!…ele
mesmo!

Maurício – Que prazer! Que felicidade!…

Leonina – Pois é meu tio?…é o meu padrinho?…

Hortênsia – Sim, minha filha, é o teu padrinho.

Anastácio (Chorando) – Conheceram-me logo…amam-me ainda…não
se esqueceram do velho rabugento…mas…parece-me que estou chorando…isto
é uma vergonha na minha idade… Maurício, mano, outro abraço
para esconder estas duas goteiras de casa velha!…(Abraçam-se)

Leonina – E eu então, meu padrinho?…

Anastácio – Ah! Já, minha cabecinha de vento?…não
te disse que havias de dar-me um abraço e um beijo? (Abraça-a
e beija-a na fronte) Pois toma dois e três de cada espécie, e
estes podes receber e pagar com juros sem dar satisfação à
língua do mundo.

Maurício – Quando chegaste, Anastácio?

Anastácio – Agora mesmo; apeei-me à porta de tua casa.

Hortênsia – Mas por que gritavas com tanto desespero, Leonina?

Leonina – Ora…eu não conhecia meu padrinho, vendo-o correr atrás
de mim para me abraçar…(Sentam-se)

Anastácio – Não foi isso, mentirosa! Deves dizer sempre toda
a verdade a teus pais: mana, fui eu que, conforme o meu costume, ralhei como
um frade velho. Leonina, tenho mais vinte anos do que teu pai, e portanto
acho-me com direito de avô. Meus pais desejaram que eu fosse padre,
e deram-me uma educação severa e estudos variados e sérios;
circunstâncias que agora não vêm ao caso, afastaram-me
das ordens sacras; fiquei, porém, com as menores, e , sem ser padre
gosto de pregar os meus sermões; dispõe-te pois a aturar-me,
que tens muito que ouvir e eu muito que ralhar.

Leonina (À parte) – Pior está essa! Mas o meu recurso é
simples: para um velho que ralha, uma moça que ri.

Maurício – Sim, ralhe muito com ela e para isso não nos deixe
mais nunca.

Anastácio – Mais nunca?…Havia de ser bonito! E quem me tomaria conta
das fazendas em Minas?…cheguei há pouco e sinto que já estou
pelos cabelos: a vida da cidade é só para gente vadia.

Hortênsia – Um homem solteiro, quando chega à sua idade e é
bastante rico, tem o direito de descansar e gozar.

Anastácio – Não; o homem ocioso é sempre um peso para
a sociedade. O trabalho é uma lei de Deus que se deve cumprir até
a morte; sou rico, nunca porém serei vadio, nem perdulário.(Olhando).
Mas pelo que vejo, tu andas pelas grimpas, Maurício? Aposto que tens
os teus vinte contos de renda anual?.. não…ah! já sei, tens
tirado a sorte grande cinco ou seis vezes.

Leonina – Qual! todos os bilhetes, que papai compra, saem brancos.

Anastácio – Então, acumulas alguns sete empregos para receber
os vencimentos de todos eles, sem cumprir as obrigações de nenhum:
acertei! A nação é quem paga o pato, e, coitadinha! Não
se queixa, porque já está acostumada. A quanto chegam os teus
ordenados?

Maurício – Tenho só um, Anastácio, e esse e mais achegos
dão-me por ano cerca de cinco contos de réis.

Anastácio – Ao menos esta casa é propriedade tua…

Maurício – Infelizmente não; e as casas estão por um
preço fabuloso: pago de aluguel por esta dois contos de réis.

Anastácio – E com os três contos que restam dos cinco que ganhas,
e vestes com o luxo que vejo a tua família, pagas criados franceses
que olham com desprezo para quem traz botas à mineira, e tens salas
como esta, mármores, ricas mobílias, e esta grandeza toda?…Maurício!…

Hortênsia – Que quer dizer, meu mano?

Anastácio – Eu não quero dizer nada: o adágio antigo
é que diz uma coisa muito feia, porém muito verdadeira.

Leonina – Ora, pois meu padrinho há pouco ralhava comigo, e agora
já está ralhando com meu pai. (Levanta-se e senta ao pé
do padrinho).

Anastácio – E que tem você que ver com isto?…destas despesas
loucas e superiores aos recursos de quem as faz, transpira uma prova de demência
ou de imoralidade. Quem despende mais do que ganha, ou cai na miséria
ou no crime…quem…tá…tá…tá…que tenho eu de meter-me
com a vida alheia?…Maurício, como está Felisberto?…

Maurício (Confuso) – Felisberto…

Hortênsia (Confusa) – Felisberto…

Anastácio – Sim…Felisberto, vocês hesitam? Acaso terá
morrido?

Leonina – Minha mãe, quem é esse Felisberto?…

Anastácio – Quem é esse?… é teu tio, o irmão
de teu pai, o cunhado de tua mãe, é meu irmão; um homem
honrado e laborioso, e um mestre marceneiro da primeira ordem.

Leonina – Marceneiro!…pois isto é verdade, minha mãe? (Vai
sentar-se ao fundo muito triste).

Hortênsia (À parte) – Antes nunca tivesse voltado à corte
este velho doido.

Maurício (Levanta-se) – Meu mano…a alta sociedade que freqüentamos…as
nobres relações que temos…certo pundonor…os prejuízos
talvez….Têm feito com que…a pesar nosso…

Anastácio – Tu gaguejas?…estás engasgado com alguma indignidade?

Maurício – Não…nós estimamos sempre muito a Felisberto;
mas um simples marceneiro…podia ser encontrado aqui por fidalgos, titulares,
grandes personagens enfim, que nos honram com a sua amizade; e por isso…e
por um vexame muito natural…

Anastácio – Fechaste a porta a nosso irmão?…Que miséria!…como
deve estar corrompida esta sociedade em que há quem se lembre de quebrar
os sagrados laços do sangue e de voltar o rosto a um irmão,
só porque ele é um simples artífice! Que sociedade é
esta tão estúpida, que não sabe repelir de seu seio esses
Cains da vaidade, como Deus repeliu o Caim da inveja!…(A Maurício
e batendo com o pé no chão) Caim!…Caim!…

Maurício – Anastácio!…

Anastácio – Fidalgo improvisado! O teu castigo é a voz da verdade
que soa em tua consciência; e onde quer que vás, onde quer que
estejas, eu, eu, que não renego nem o meu passado, nem os meus parentes;
eu, enquanto vivo for, bradarei aos teus ouvidos: lembra-te, meu fidalgo,
que nosso pai foi um nobre ferreiro, que durante sessenta anos se chamuscou
na forja e bateu na bigorna! Teve por título de nobreza a sua imaculada
probidade, e por glória o seu trabalho e a educação da
virtude que soube dar a seus filhos; foi deveras um nobre ferreiro, e é
pena somente que deixasse um filho doido!

Maurício – Oh! é muito!

Hortênsia – Meu mano, as coisas aqui na corte não se passam
como lá na roça; aqui há certas prevenções…certas
considerações…

Anastácio – Engana-se, minha senhora: lá na roça, como
aqui na corte, os tolos de ambos os sexos abundam do mesmo modo.

Hortênsia – Senhor…é quase um insulto!

Anastácio – Tire-lhe o quase e seja um insulto completo; desagrado-lhes,
não é assim?…pois fiquem-se com a sua fidalguia que eu vou
direto para casa do marceneiro.(Indo-se)

Hortênsia – Não…não…é impossível que
briguemos: não há de deixar-nos assim.

Anastácio – Nesse caso terão de ouvir-me, e aturar-me.

Hortênsia – Diga o que quiser, já lhe conhecêssemos o
gênio; mas não faça injustiças: temos uma filha
que desejamos casar bem; e é provável que se viesse a saber
que é sobrinha de um marceneiro, não pudéssemos arranjar-lhe
um noivo de família nobre.

Anastácio – É a honra que enobrece o homem; e eu juro que não
há homem mais honrado do que meu irmão marceneiro: pode bem
sentar-se a par do melhor dos seus barões.

Hortênsia – E se o barão fugisse do seu lado?

Anastácio – Provavelmente o faria envergonhado, por dever-lhe ainda
a mobília da sala.

Maurício (À parte) – E ele tem razão…eu sou um miserável!

Leonina (À parte) – Marceneiro!…estou definitivamente desacreditada!…

Hortênsia – Deixe estar, mano, que havemos de fazê-lo chegar
à razão. No dia dos anos de Leonina vamos dar um baile, e por
sinal que será de máscaras, para aproveitarmos a coincidência
da segunda-feira do Carnaval; hoje mesmo receberemos visitas, e o mano há
de ufanar-se de ver a brilhante sociedade com que nos achamos relacionados.

Anastácio – Sim, hei de pôr-me nas pontinhas: jurarei que sou
bisneto do imperador da China, e que portanto somos parentes do sol e da lua;
creio que vocês por ora se contentam com estas alturas. Ah Gil Brás
de Santilhana!…mas…que idéia!…não a devo perder…meus
fidalgos, até logo! Vou ver o nosso…o meu irmão marceneiro;
contem porém comigo, que ainda hoje hei de fazer brilhaturas!…(Vai-se).

Maurício (Seguindo-o até a porta) – Anastácio!…

Leonina (À parte) – Marceneiro!…

CENA V

Leonina, sentada a um lado; Maurício e Hortênsia; Petit entra,
acende velas e retira-se.

Maurício – E lá se foi correndo!

Hortênsia – Antes nunca tivesse chegado; veio só para envergonhar-nos.
Este fatal segredo, que com tanto cuidado ocultávamos de nossa própria
filha, ele o revelou, enchendo de amargura aquele coração inocente
e o nosso nome e os nossos projetos…

Maurício – Hortênsia, ninguém pode ignorar que Felisberto
é meu irmão…Não é acreditável que não
saiba isso, e nós já fazemos demais não o recebendo em
nossa casa há dez anos.

Leonina (Á parte) – Marceneiro!…

Hortênsia – Mas por que ferir-nos em ponto tão delicado! Olha,
se Anastácio não fosse padrinho de Leonina, e não esperássemos
que ele venha a instituí-la sua herdeira, por certo que n&atildatilde;o
me sujeitaria às suas brutalidades.

Maurício – E no entanto é sempre a verdade o que ele diz! Ainda
há pouco anunciou-nos a miséria, e tu sabes, Hortênsia,
que a miséria nos está estendendo as garras!

Hortênsia – A que vêm essas tristes idéias?…dentro em
breve ajustaremos o casamento de Leonina com o comendador Pereira: a riqueza
do genro esconderá a pobreza do sogro; confia em mim.

Leonina (À parte) – Marceneiro!…

Maurício – Sim…abracemos a mais leve esperança…esqueçamos
o mal que nos ameaça: creio que pouco tardarão as nossas visitas,
convém que nos mostremos alegres.

Hortênsia – E que nos retiremos da sala, pode ser que o comendador
chegue primeiro do que Dona Fabiana…

Maurício – Duvido: Dona Fabiana chega sempre cedo demais onde não
se precisa da sua pessoa. Eu aposto que ela chega primeiro. (Vão-se)

CENA VI

Leonina (Sentada e muito triste).

Marceneiro! Marceneiro! Como vão zombar de mim aquelas que não
valem tanto como eu! Hão de fazer-me em cem pedaços com o serrote
de meu tio marceneiro! Dona Luizinha, que tem olhos cor de vinagre, vingar-se-á
de meus belos olhos pretos, repetindo: – marceneiro! – Dona Jesuína,
que tem mãos de calafate; Dona Sofia, que tem dentes de tubarão;
Dona Leocádia, que tem cintura de abade velho, vingar-se-ão
de minhas mãos de princesa, de meus dentes de pérolas, de minha
cintura de fada, contando a todos que sou sobrinha de um marceneiro!Oh! é
horrível! Quando eu supunha que mais cedo ou mais tarde viria a ser
condessa ou pelo menos baronesa…é abominável! (Silêncio)
marceneiro!…(Chora) marceneiro!…(Desesperada) marceneiro!…(Ouve-se o
rodar de uma carruagem). Oh! um carro que pára! Se forem senhoras,
não devem suspeitar que eu padeço; (Enxuga os olhos e arranja
os cabelos) folgariam com isso…Oh! Coração, esconde as tuas
mágoas! Olhos, brilhai! Boca, sorri! Rosto, expande-te! E agora podem
chegar, venham todas, porque eu tenho consciência de que sou formosa.

CENA VII

Leonina, Hortênsia, Maurício, e logo depois Fabiana, Filipa
e Frederico.

Maurício – Então, que te dizia eu?…aí está
a Dona Fabiana rompendo a marcha.

Hortênsia – Leonina, Dona Fabiana e sua filha vêm subindo a escada.

Leonina – Que horrível massada!…(Indo à porta) Chegue Dona
Fabiana; chegue Dona Filipa; conheci-as logo pelas pisadas.

Frederico (Dentro) – De ora avante usarei de sapatinhos de cetim para ver
se um dia mereço igual felicidade.

Leonina – Não faça tal: Vossa Senhoria mesmo sem sapatos de
cetim já se confunde bastante com as senhoras. (Entram os três,
cumprimentos, etc).

Frederico (À parte) – Decididamente recebi um cumprimento de mau gosto,
ou então um epigrama ferino.

Hortênsia – Como passou de ontem, Dona Fabiana?

Fabiana – Sofri um pouco dos nervos: mas nem por isso quis faltar à
minha palavra.

Maurício – É uma fineza de mais que temos de agradecer a Vossa
Excelência, mas…creio que sobem às escadas.

Frederico – Quem será?…(A Leonina) – Vossa Excelência não
adivinha pelas pisadas?

Leonina – Nem sempre: Dona Fabiana, Dona Filipa, e Vossa Senhoria já
aqui se acham.

Frederico – Hei de fazer certa experiência, vindo aqui uma noite sozinho.

Leonina – Dar-nos-á ainda assim muito prazer; mas olhe que se expõe
a ser confundido.

Frederico (À parte) – Foi epigrama; reconheço-o pela segunda
edição.

CENA VIII

Os precedentes, Reinaldo e Lúcia, cumprimentos, etc.

Leonina e Hortênsia – Oh! Dona Lúcia! Senhor Coronel!

Maurício – Como vamos, meu caro senhor coronel?…não há
que perguntar, sempre remoçando…

Reinaldo (Olhando para Leonina) – Passei o resto da noite cheio de saudades
e um dia inteiro anelante de esperanças…

Leonina (Á parte) – Aquilo é comigo. (A Reinaldo). Não
precisa dizer mais: o teatro italiano faz-lhe saudades no fim das óperas,
e acende-lhe esperanças com os cartazes. Vossa Excelência, creio
eu, traz sempre um cartaz no coração!

Reinaldo – Minha senhora, dou-lhe minha palavra de honra que não sei
o que se cantou ontem no teatro italiano.

Lúcia – Dona Leonina, meu paizinho levou hoje o dia inteiro a falar
no seu fichu à Marie-Antoinette.

Reinaldo – E o seu balão, Excelentíssima! O seu balão
é capaz de levar a gente às nuvens!

Leonina (A Filipa) – Você já viu homem mais tolo?…

Filipa (A Leonina) – Homem não, porém mulher, já vi.

Leonina (A Filipa) – Quem é?

Filipa (A Leonina) – A filha, que tem tanto de feia como de desfrutável.
( A Lúcia) Dona Lúcia, você é adorável!

Lúcia – Por que diz isso?…

Frederico – Perdão; mas é a nós os homens que pertence
dizer esse porquê, visto que somos nós os que o sentimos melhor
e mais profundamente.

Reinaldo (Que conversava com Maurício) – É possível!…o
meu amigo Anastácio? O bom velho que me dava confeitos, quando eu era
cadete?

Hortênsia – É verdade, depois de dezoito anos de ausência,
chegou-nos hoje de Minas o padrinho de Leonina, o meu cunhado Anastácio.
(Cumprimentos).

Reinaldo – Ditoso padrinho de tão formosa afilhada! O meu velho amigo!…Minha
senhora, amanhã virei pedir-lhe de jantar …quero jantar com o meu
amigo Anastácio.

Hortênsia – Mas Vossa Excelência esquece que o comendador Pereira
convidou-nos para passar o dia de amanhã no Jardim Botânico;
convenha pois em que todos, que nos achamos presentes, jantemos juntos depois
de amanhã para fazer uma saúde ao meu excelente cunhado.

Pereira (Dentro) – Com a devida vênia!…

Maurício (Indo recebê-lo) – Oh! senhor comendador!

CENA IX

Os precedentes e o Comendador Pereira.

Hortênsia – Senhor comendador, Vossa Excelência gosta demasiadamente
de se fazer desejar!

Pereira – Não é isso, minha senhora, não é isso;
é que eu venho desesperado…furioso…

Maurício – Então que há?

Pereira – Um atentado que revolta as leis da natureza! (Levantam-se todos).

Reinaldo – Diga depressa, senhor comendador: Vossa Excelência está
expondo as senhoras aos ataques nervosos.

Pereira – O mundo está perdido!…

Lúcia – É algum novo cometa, senhor comendador?

Frederico – Qual, minha senhora, os cometas abundam tanto, que já
não assustam a pessoa alguma.

Pereira – É coisa muito pior do que dez cometas juntos: é o
esquecimento dos deveres mais sagrados, e da honra das famílias.

Hortênsia – Isso então é muito sério; diga o que
foi…

Pereira – Mais um passo dado para o descrédito da aristocracia…

Reinaldo – Quem vem lá?…Passe de largo!

Pereira – Lembram-se de Dona Inocência, a filha de um barão,
e descendente de uma nobre casa de Portugal?…

Fabiana – Sim…sim…a baronesinha, como todos a chamam…

Pereira – Sangue puro de fidalga! Sangue puro como o de um cavalo árabe!…

Filipa (A Leonina) – A comparação parece de boleeiro.

Pereira – Pois bem…saibam todos: casou-se hoje.

Reinaldo (À parte) – Ai! Tenho uma namorada de menos.

Vozes – Casou-se?…mas com quem?…

Pereira – Com um negociante de retalhos!!!

Hortênsia – De retalhos?!…coitadinha!

Fabiana – Passou de filha de barão a noiva de retalhos! pobrezinha!…

Reinaldo – Mas o pai…matou-se…não é assim?

Pereira – Vergonha das vergonhas! Abraçou o genro.

Reinaldo – É o progresso!…são as luzes do século!…

Hortênsia (Com fogo) – Não pode haver nobreza, onde os nobres
se aviltam misturando-se com a canalha!…

Pereira – É inaudito!

Maurício – Paciência; mas esqueçamos aqueles que se esquecem
de si mesmos.

Pereira – Nós, porém, lembremo-nos sempre do que somos!…

Hortênsia – Sim! Nós seremos sempre dignos do nome que temos,
do sangue que gira em nossas veias, e da nobreza de nossas famílias.

CENA X

Os precedentes, Anastácio, Felisberto, Henrique, e a seu tempo, Fanny
e logo Petit.

Anastácio – Maurício! Mana Hortênsia! (Voltam-se todos).
Aqui vos trago comigo o nosso irmão, o mestre marceneiro Felisberto,
e o nosso sobrinho Henrique, pintor. (Surpresa geral).

Hortênsia (Desmaiando) – Ah!…

Leonina (Correndo a Hortênsia) – Minha mãe!

Maurício – Hortênsia!…desmaiada! meu Deus! Um médico!
Petit, um médico!…(Movimento geral: Felisberto e Henrique ao fundo:
no meio da confusão Anastácio tira do bolso uma carta, desdobra-a
e prepara uma torcida de papel).

Fanny – Um médica! Monsieur Petit, um médica! Oh! este non
se úse n’Ingliterre!

Petit – Le docteur! Le docteur! (Vai-se correndo).

Maurício – Hortênsia!

Leonina – Minha mãe!…

Pereira – Senhor Maurício, deite-lhe água fria na cabeça!

Reinaldo – Isto não é nada; deixem-me aplicar-lhe um globulozinho
de beladona.(Tira do bolso uma caixa homeopática).

Anastácio (Avançando com a torcida de papel) – Afastem-se!
eu curo em um instante minha cunhada. (Introduz a torcida no nariz de Hortênsia,
e esta espirra). Espirrou!…está salva.

Hortênsia (Tornando a si) – Ah!…(Á parte) Malvado!…

Todos – Minha senhora!

Anastácio (Erguendo a torcida) – Viva a torcida!…a torcida é
um específico infalível para o mal dos faniquitos!…

Leonina (À parte) – Marceneiro!…

FIM DO PRIMEIRO ATO

ATO II

O teatro representa um ponto do Jardim Botânico; ao fundo vê-se
o lago e a pequena ilha; à esquerda grupos de bambus, à direita
aparece sobre o seu outeiro um lado da casa de cedro; árvores e arbustos
convenientemente dispostos.

CENA I

Maurício, Hortênsia, Leonina, Fabiana, Filipa, Frederico, Reinaldo,
Lúcia e Pereira; uns contemplam o lago, descem outros da casa de cedro,
etc: Anastácio, meio deitado na encosta do outeiro.

Hortênsia – Deveras que nunca vi rosa mais bela, nem mais perfeita.

Fabiana – Mas de quem seria a mão cruel que se atreveu a roubar aquela
princesa do jardim? Vimos a rosa apenas alguns momentos, e quando voltamos
a contemplá-la, tinha já desaparecido!

Reinaldo – A tal rosa tem dado que pensar às senhoras! oh! quem pudera
transformar-me em um pé de roseira!

Hortênsia – É o mistério de uma flor, um começo
de romance que enche de poesia o agradável passeio que nos proporcionou
o comendador.

Pereira (Á parte) – Conheço agora que sou um homem muito espirituoso!

Lúcia – E não há quem rompa esse mistério?…

Filipa – Que mistério! Não há coisa mais simples: quem
roubou a rosa foi o senhor Anastácio.

Pereira – Não, não; sou capaz de apostar que a rosa se oculta
junto de algum coração apaixonado, e está reservada para
ser a palma da beleza.

Frederico – E que pensa Vossa Excelência?…(A Leonina) Nem mesmo o
destino misterioso dessa rosa pode arrancá-la às tristes meditações,
de que hoje se mostra apoderada?

Filipa – E quem tem culpa disso é ainda o senhor Anastácio.
(Rindo-se)

Hortênsia – E desta vez adivinhou, Dona Filipa: o mano levou a conversar
toda a noite com Leonina, e, certamente, lhe pregou tal sermão, que
ainda hoje a faz estar pensativa e triste.

Maurício – Pois vençamos a sua melancolia obrigando-a a passear;
creio que as senhoras já descansaram.

Frederico – Sim, e as flores esperam as borboletas.

Fabiana – Vamos, e eu quero ser o cavalheiro de Dona Leonina: hei de conseguir
torná -la prazenteira e alegre. (Dá o braço a Leonina).

Pereira (Dando o braço a Hortênsia ) – Minha senhora! (Vão
saindo Fabiana com Leonina pela esquerda e Frederico com Lúcia, Pereira
com Hortênsia, e Reinaldo com Filipa pela direita).

CENA II

Maurício, que vai sair, e Anastácio, que o suspende.

Anastácio – Abre os olhos, Maurício, e atenta bem: não
achas que aquela mulher, levando tua filha pelo braço, se assemelha
muito a um algoz que arrasta consigo a sua vítima?…

Maurício – Mas, em tal caso, que papel entendes que eu represento?

Anastácio – Pior do que um pai tolo: o papel de um pai que desconhece
os seus mais santos deveres.

Maurício – Sempre impertinente, Anastácio!

Anastácio – Escuta: há vinte cinco anos aquela mulher supunha-se
amada por ti, e viu em Hortênsia uma rival preferida, quando com esta
te ligaste em casamento. O desprezo de um homem abre no seio da mulher uma
ferida envenenada que nunca cicatriza. A ofensa, foste tu que a fizeste, mas
a mulher desprezada detesta ainda mais que ao ofensor a rival que triunfou.
Assim, pois, diz a lógica, que Fabiana aborrece profundamente a tua
esposa.

Maurício – Viste ainda há pouco como ela beijou-a com ardor?

Anastácio – Judas também beijou a Cristo poucas horas antes
de vendê-lo. Tua mulher escapou outrora à vingança de
Fabiana, porque esta, casando com um oficial do nosso exército, teve
de acompanhá-lo para o Rio Grande do Sul donde só voltou há
dois anos, depois de viúva.

Maurício – Estás perfeitamente informado da sua história.

Anastácio – Estabelecendo a sua residência nesta capital, Dona
Fabiana dissipa loucamente a medíocre fortuna que lhe deixou seu marido,
e mancha-lhe o nome honrado, conquistando uma reputação tristemente
famosa. É uma libertina, para quem são apenas vãos prejuízos
alguns dos preceitos que constituem a moral das famílias: sua casa
é o ponto de reunião de um círculo licencioso; sua conversação
espalha princípios desmoralizadores, e o se exemplo é uma lição
corruptora.

Maurício – És severo demais, e por isso, sem o pensar, te fazes
o eco de indignas calúnias.

Anastácio – Cometeste o erro de abrir s portas de tua casa à
natural inimiga de tua mulher. Tu…que se importa ela contigo?…uma mulher
nunca fere um homem, quando tem uma mulher para ferir; minha cunhada está
defendida por um passado que a abona, e pela idade precisa para escapar às
ciladas de algum galanteio que a leve á desonra; mas leonina, moça
e bela, aí está, e Dona Fabiana, envenenando a vida inteira
de Leonina, de um só golpe fará a tua desgraça e a da
sua antiga rival. Maurício! Abre os olhos! Por aquela rua foi um algoz
arrastando consigo a sua vítima.

Maurício – Faz-me tremer, Anastácio!

Anastácio – E, supondo extinto o ódio de Dona Fabiana, não
bastam os seus princípios demasiadamente livres e sua reputação
dilacerada pelo público, para que o dever te mande afastar Leonina
de sua companhia? Um pai que expõe sua filha às conseqüências
das relações perigosas, não é um pai, é
um louco, para não ser um monstro. Oh! quando uma pobre moça,
uma filha pervertida pela más companhias se deixa corromper, e se avilta,
o mundo antes de castigá-la com o seu desprezo, devia primeiro cuspir
na face do pai desnaturado que a levou pelo caminho do vício. Era isto,
que eu precisava dizer-te: agora podes ir fazer os teus cumprimentos a Dona
Fabiana.

Maurício – Dezoito anos de ausência da corte puderam tornar-te
hoje, e apesar da tua instrução, como um estrangeiro no meio
dela; desconheces os costumes e os usos da alta sociedade, e confundes a civilização
com a licença.

Anastácio – No Rio de Janeiro, como em todas as capitais do mundo,
a alta sociedade conta duas classes de freqüentadores que a deslustram:
uma, é dos imorais e libertinos, que dela devia ser expelidos como
indignos; a outra, é a dos elegantes caricatos, ridículos macaqueadores
dos grandes; pobres tolos que são castigados em sua própria
vaidade: a gente que te cerca, meu irmão, pertence a essas duas classes,
e tu fazes parte da última.

Maurício – Anastácio, é demais!

Anastácio – Qual demais! Eu tenho ainda que dizer-te um milhão
de verdades amargas…

Maurício – Pois eu não as ouvirei, agora ao menos; e fica certo
de que nem sempre são os mais avisados aqueles que presumem ter mais
juízo que os outros. (Vai-se)

Anastácio – Vai, abre porém os olhos, Maurício! (Seguindo-o)
Porque por aquela rua foi um algoz arrastando a sua vítima!

CENA III

Anastácio, e logo Henrique.

Anastácio – Eis aí um homem que tem uma cabeça de ferro;
mas tão oca como um cabaço sem miolo!

Henrique – Meu tio, o que vossa mercê praticou hoje comigo chama-se
uma traição: foi provocar-me a um passeio no Jardim Botânico,
sabendo que vinham aqui passar o dia pessoas que me olham com o mais insultuoso
desprezo, e obriga-me, para não encontrá-las, a correr a medo
para as alamedas mais solitárias e afastadas, como se eu fora um miserável
criminoso.

Anastácio – E vossa mercê, chegou há quatro meses da
Europa com fumaças de artista de gênio; foi ao baile, apaixonou-se
por sua prima que o não conhecia, e que voltou-lhes as costas, mal
soube que o seu namorado era um pintor; então, lembrou-se vossa mercê
do seu tio da roça; correu a Minas, confessou-me o seu amor, pôs-me
ao fato da vida que levam seus tios da cidade, e arrancou-me da fazenda, sob
o pretexto de que só eu podia salvá-los.

Henrique – E ainda bem que veio…

Anastácio – Ainda mal, porque estou desconfiando que cheguei tarde.
Maurício disparou em tal carreira pela aristocracia adentro que é
bem de crer que não pare senão à porta do palácio
da Praia Vermelha. No entanto, eis-me arvorado em médico de loucos,
e o senhor, que me impôs este mister, vem agora dizer-me que lhe estou
armando traições!…Começo a acreditar que tenho na minha
família mais doidos do que pensava…

Henrique – E considera-me talvez no número desses…

Anastácio – A falar a verdade, ainda não te suponho doido;
mas, orgulhoso, olha que és muito, Henrique.

Henrique – É a vossa mercê que devo este meu orgulho: desde
os primeiros anos senti arder em minh’alma o amor da arte; e foi meu tio que
com a sua riqueza facilitou-me os meios para ir estudar na Europa. Ali, no
foco da civilização, e no meio dos grandes mestres, a cada passo
que avançava na conquista dos segredos da arte, reconhecia que me ia
enobrecendo por ela; e quando depois de doze anos de um estudo incessante,
ao apresentar um quadro que me fora inspirado pelas saudades da pátria,
meu mestre correu a abraçar-me, chorando, e pintores célebres
que têm um nome no mundo, me aplaudiram e me chamaram irmão,
tive consciência de que valia alguma coisa; amei a minha palheta como
um rei a sua coroa, e apreciei devidamente o meu nome de artista para não
curvar a cabeça diante de papelões dourados. Eis aí o
meu orgulho: é vossa mercê que o devo.

Anastácio – Segue-se daí que te mandei estudar para te fazer
pintor, e que tu não me borraste a pintura; sê portanto orgulhoso
com esses que em sua soberba desprezam o artista que vale mil vezes mais do
que eles; quando porém se tratar de tua prima, perdoa-lhe as fraquezas,
e humaniza-te com ela, mesmo porque a rapariga é bela como as virgens
do teu Perugino.

Henrique – Quer então, meu tio, que eu me sujeite aos desdéns
e aos insultos de parentes que se envergonham de mim?…Deseja, por exemplo,
que Leonina suponha que eu vim hoje aqui de propósito para admirá-la…para
beijar os vestígios de suas pisadas…para…Oh! não, meu tio.

Anastácio – Amas ou não amas tua prima?…Sim, ou não?…

Henrique – Ameia-a.

Anastácio – Falo-te no presente, e respondes-me no pretérito?…Tu
não sabes gramática.

Henrique – Como quer que lhe responda?…

Anastácio – Sim, ou não?…amas, ou não amas?…

Henrique – Não devia amá-la.

Anastácio – Pior: tu não nasceste para pintor; nasceste para
advogado e havias de ser grande na chicana.

Henrique – Não devia amá-la porque o seu coração
é uma urna impura que guarda os restos de cem amores fingidos; não
devia amá-la porque a sua vaidade amesquinha e desbota os seus encantos;
não devia amá-la porque…

Anastácio – Mas, a pesar teu, morres de amores pela rapariga!…

Henrique – Ao menos saberei fugir dela.

Anastácio – Sim?…pois olha para aquela rua; de quem será
aquele balão pavoroso, que não sei como entrou pelo portão
do Jardim?…

Henrique – Oh!…é ela…eu fujo…adeus, meu tio…

Anastácio – Foge, corre depressa; mas eu no teu lugar deixava-me ficar,
ocultando-me atrás destes bambus.

Henrique – Tem razão: vê-la-ei sem ser visto; mas não
me atraiçoe.(Oculta-se)

Anastácio – Que ele não fugia, sabia eu muito bem! Os namorados
parecem-se todos uns com os outros, com a mão direita com a mão
esquerda.

CENA IV

Anastácio, Leonina e Henrique, que se conserva oculto.

Leonina – Então, meu padrinho, sempre se resolveu a vir jantar conosco!…

Anastácio – Não, senhora; não sou mulher nem político
para andar mudando de opinião da noite para o dia.

Leonina – Entretanto, nós o viemos encontrar aqui.

Anastácio – É verdade, mas preferi à companhia dos seus
fidalgos a de uma pessoa a quem tributo verdadeira estima.

Leonina – Sim, creio mesmo que me pareceu ter visto dois vultos, quando agora
vinha chegando.

Anastácio – E encontrou só um, porque espantou o outro com
a sua presença.

Leonina – Palavra de moça, que é a primeira vez em minha vida
que assim espanto um homem! Quem é esse senhor espantadiço!…

Anastácio – É seu primo-irmão. (Silêncio). Sabe
quem é seu primo-irmão?…

Leonina – Demais o sei e todos o sabem; ontem à noite vossa mercê
descarregou um golpe terrível na minha vaidade; e embora aqueles, que
nos cercavam, nos dissessem depois que raras são as famílias
que não tem de envergonhar-se de algum parente menos digno, não
pude mais esquecer que um irmão de meu pai é mestre marceneiro,
e meu primo-irmão um pintor!

Anastácio – E perdeu por isso uma noite de sono…coitadinha!

Leonina – Perdi, sim, meu padrinho, porque a lição que vossa
mercê nos deu, e depois a longa conversação que comigo
teve, me convenceram de que uma fraqueza de meus pais me fez representar até
hoje na sociedade um papel ridículo; porque eu ostentei um orgulho
que não me assentava; pois agora eu vejo bem que não sou fidalga.

Anastácio – Ah! O juízo vai entrando nessa cabecinha de vento?…Mas
por que andas hoje tão melancólica?…pensas que perdeste muito
com a baixa da fidalguia?…

Leonina – Oh! meu tio, vossa mercê nunca leu no coração
de uma moça. Escute: eu sei que muitas vezes o pergaminho de um nobre
não pode disfarçar a torpeza de suas ações; sei
que outras tantas, o cofre de um milionário é um abismo cheio
de lágrimas derramadas por infelizes, mas a mulher deixa-se sempre
deslumbra por esse ouropel das grandezas e ambiciona o cofre de ouro; porque,
com o prestígio da nobreza suplantará as outras mulheres, e
com a riqueza terá brilhantes, sedas, palácios, ostentação
e luxo!…oh! nós outras somos as escravas da vaidade, e como todas
eu desejava ser bem rica e bem nobre, para humilhar as minas rivais!

Anastácio – Muito bem, Leonina, essa confissão franca e sincera
te absolve; ao menos não és hipócrita; continua, que
estás falando perfeitamente.

Leonina – Quem mais posso dizer-lhe?…esses sonhos ambiciosos acabaram para
mim, e de ora avante cumpre que eu abaixe a cabeça diante das outras
senhoras, porque nas sociedades que freqüento, a menos nobre sou de certo
eu.

Anastácio – Pois levanta a cabeça, menina! Porque tu és
honesta e pura, e só as senhoras honestas é que são as
mais nobres.

Leonina – Oh! meu padrinho! O que vossa mercê acaba de dizer é
grande e generoso; infelizmente, porém, não são todos
que pensam assim.

Anastácio – Aqueles que negam a primazia à virtude, são
uns miseráveis. Já se foi o tempo em que um sandeu valia mais
do que um sábio; um depravado mais do que o homem honesto, quando o
homem sábio ou honesto era filho de um sapateiro, e o acaso dera ao
depravado ou ao sandeu meia dúzia de avós, falsa ou realmente
ilustres. Não temos senão uma nobreza, a nobreza da constituição,
que é a do merecimento e das virtudes. Já não se reconhece
privilégios, graças a Deus, e as portas das grandezas sociais
estão abertas a todos os que sabem merecê-las: nobre é
o estadista que se consagra ao serviço da pátria; nobre é
o estadista que se consagra ao serviço da pátria; nobre é
o diplomata que sustenta no gabinete a causa do país; nobre é
o soldado que a defende no campo de batalha; nobre é o sábio,
nobres são todos aqueles que ilustram e honram a nação,
e nobre é, principalmente, a virtude que é a sublime benemérita
aos olhos do Senhor!…

Leonina – Oh! e como há então pessoas que olham com desprezo
para um artista?(Com viveza). O artista não pode também chegar
a ser nobre, meu padrinho?…

Anastácio (Á parte) – Como ela vai escorregando para o pintor…(A
Leonina) O verdadeiro artista já é nobre de si mesmo, Leonina;
e a sua nobreza lhe vem de Deus, que acendeu em seu espírito a flama
do gênio.

Leonina – Oh! meu padrinho? Por que não veio a mais tempo de Minas?…

Anastácio – Sim?…estás me fazendo supor que já te
apaixonou por algum artista…

Leonina – Eu?…eu nunca me apaixonei por homem algum. (Rumor) Que é
isso?…parece-me que senti o ruído que faz alguém, que se aproxima…

Anastácio (Indo aos bambus) – Qual! Havia de ser o vento. (A Henrique)
Fica quieto, pintor desastrado!…(Volta) Continuemos: deixa-te de fingimentos
comigo: tu não amas a teu primo, Leonina?…

Leonina – Por que não tratamos de outro assunto, meu padrinho?…

Anastácio – Porque é exatamente deste que eu quero tratar:
dize, tu amas a Henrique?…

Leonina (Hesitando) – Não, senhor, não.

Anastácio – Mentirosa! E aquele namoro do Clube Fluminense?…

Leonina – Foi…foi um namoro, meu padrinho.

Anastácio – Namoro sem amor? Não compreendo.

Leonina – Ora! Todos o compreendem perfeitamente.

Anastácio – Menos minha sobrinha…creio eu.

Leonina – Mas por quê?…diga

Anastácio – Porque é principalmente a pureza do coração
que torna a donzela quase um anjo na terra.

Leonina – Tem razão; pois bem…eu lhe digo tudo: eu amei…talvez
ame ainda Henrique…(Rumor) Que maldito vento!…(Anastácio vai ao
fundo).

Anastácio (A Henrique) – Não ficarás quieto, plebeu
de uma figa!…(A Leonina) Deixa o vento e vamos ao caso: então, amas
Henrique…

Leonina – Sim, foi o primeiro homem a quem amei, será o último
a quem ame; amei-o, e quantas o viram invejaram-me o seu amor; mas desde que
soube no Clube que ele era pintor e filho de um marceneiro, todas as senhoras
riram-se de mim, ou mostraram-se compadecidas do meu erro…a vaidade falou…e
a vaidade fez-me esquecer o amor.

Anastácio – Continua; desta vez o vento não soprou.

Leonina – Agora, tudo está acabado; e esse amor não passa de
um sonho belo…suavíssimo…e ainda assim…bem triste!

Anastácio – Mas se teu primo ainda te amasse como dantes?…

Leonina – Embora, a vergonha que me acanha e o ressentimento que ele deve
guardar, levantaram entre nós uma barreira insuperável.

Anastácio – Bravo, Leonina!…

Leonina – Que estou eu a dizer? Oh! meu padrinho, jure-me que não
dirá a meu primo uma só das palavras que me ouviu.

Anastácio – Juro-te um milhão de vezes; mas desconfio muito
que ele já saiba de tudo…

Leonina – Como?…

Anastácio – O vento, Leonina, o vento!…

Leonina – Meu Deus!…

Henrique (Aparecendo) – Adoro-te, Leonina! Adoro-te, como no primeiro dia
do nosso amor!…

Leonina – Ah! Meu padrinho atraiçoou-me.

Anastácio – É a segunda vez que hoje me acusam de traidor…mas…aí
temos conosco a velha Fabiana com o ilustre comendador.

Leonina – Oh! que não me encontrem aqui…

Henrique – Não tenha receio; eu me retiro por este lado…não…lá
vejo o coronel Reinaldo…seguirei esta rua…é impossível…iria
encontrar-me com seus pais, minha senhora…

Anastácio – Em tal caso recolhe-te aos bambus; é o recurso
que te resta; e adeus, que me resolvi a jantar com Leonina. (Henrique oculta-se)
Vem, menina, fujamos…aquela mulher é a peste (Vão-se).

CENA V

Fabiana, e o Comendador Pereira.

Pereira – Não é tanto assim, minha senhora; convenho em que
um homem na minha posição, um milionário, comendador
e em vésperas talvez de ser barão, deva despertar as simpatias
das senhoras; mas ás vezes elas têm idéias tão
extravagantes, que podem chegar até a desprezar uma personagem da minha
ordem, por algum doutorzinho, ou mesmo por uma qualquer coisa assim a modo
de artista…

Fabiana – Mas, Dona Leonina tem bastante juízo para não cair
em tal; fale-lhe em casamento e verá; eu sou muito amiga de Dona Hortênsia
e sei em que princípios educou a filha; Dona Leonina é um anjo
de virtudes, e o seu único defeito, que proveio da educação
que recebeu, é ainda uma garantia para o amor de Vossa Excelência.

Pereira – E qual é esse defeito?…

Fabiana – Preferir a tudo a riqueza; se Vossa Excelência fosse pobre,
apesar de todo o seu merecimento, duvido que conseguisse ser amado; rico porém
como é, pode contar com o amor de Dona Leonina.

Pereira – Sim…até certo ponto ela tem razão; porque enfim,
o dinheiro é uma grande coisa; mas…por outro lado…isso não
me parece muito lisonjeiro…

Fabiana – Pelo contrário…Olhe, quero contar-lhe em segredo: Dona
Leonina amava não sei por que ao coronel Reinaldo; o galanteio entre
ambos tinha ido além de certos limites; desde porém que Vossa
Excelência se apresentou como pretendente, o coronel, embora tenha ainda
licença para amar, perdeu já a esperança do casamento.

Pereira – Era de prever: desde que se mostrava um homem rico, um comendador,
talvez em vésperas de ser barão…mas, pelo que vejo, conta-se
comigo…

Fabiana – Se se conta! Dona Leonina não cabe em si de contente: e
os pais então! Esses estão entusiasmados: excelente família!
É o céu que lhe depara este casamento. Senhor comendador, Vossa
Excelência está destinado a ser o salvador desta honrada gente,
porque o senhor Maurício, segundo dizem, deve tanto…tanto…que terá
de sofrer alguma horrível desgraça, se lhe não valer
um genro dedicado e generoso.

Pereira – Mas eu penso que um genro não tem obrigação
de pagar as dívidas do sogro…

Fabiana – E que há de fazer Vossa Excelência, quando sua esposa,
banhada em pranto, lhe pedir que salve a se pai?…que diferença farão
em sua fortuna, quarenta ou cinqüenta contos de menos?…Deixemos porém
isso, arrependo-me até de ter falado em tal; o que lhe importa saber
é que Dona Leonina o ama apaixonadamente.

Pereira – Vossa Excelência o assegura com toda a certeza?

Fabiana – Pois se eu já lhe disse que a garantia do seu amor está
na sua riqueza, e nas conveniências da família! Dona Leonina
é uma menina virtuosa, mas bastante interesseira; deseja ser muito
rica para gastar, brilhar, e ter sempre a seus pés um a roda de adoradores.
É o que eu chamo ter juízo, sinto bem que minha filha não
seja assim! Filipa é uma doidinha que se deixa levar somente pelo merecimento
pessoal. Eu sei que ela ama um homem muito rico, mas a pobre tola abafa a
sua paixão com receio de que a suponham ambiciosa.

Pereira – Sim…até certo ponto Vossa Excelência tem razão;
porque o dinheiro é uma grande coisa; mas também sua filha parece
ter bom coração.

Fabiana – Qual! Juízo o de Dona Leonina, que até se entusiasma
ouvindo falar em dinheiros, mas…que impertinência! Estou roubando
momentos preciosos que pertencem à sua amada; vá, senhor comendador…vá
ter com Dona Leonina.

Pereira – A companhia de Vossa Excelência nunca pode ser impertinente.

Fabiana – Basta de sacrifícios…(Empurrando-o docemente) Vá…ande…

Pereira – Irei…irei…obedecer também é servir. (Vai-se)

Fabiana – A paixão cega este homem; mas ainda assim se ele tivesse
o que no mundo se chama honra e dignidade, por certo que teria sentido os
efeitos do veneno que lhe lancei no coração.

CENA VI

Fabiana, Frederico e Filipa.

Frederico – Acabamos de encontrar Dona Leonina com o original do tio de Minas.

Fabiana – Não fale assim de seu tio, senhor Frederico!

Filipa – Como minha mãe conta com o jogo!

Fabiana – É porque se trata de uma partida segura.

Filipa – E se aparecer alguém que baralhe as cartas?…

Fabiana – Ninguém pode baralhá-las. Maurício está
a ponto de ficar de todo perdido. Sei que em breves dias os seus numerosos
credores aparecerão decididos a fulminá-lo.

Filipa – Por que então não esperamos pelo resultado desse golpe?

Fabiana – Porque era possível que o irmão se lembrasse de pagar-lhe
as dívidas.

Frederico – Como Vossa Excelência calcula e planeja bem!…

Fabiana – É um cálculo que dura há vinte e cinco anos!
É uma dívida que tenho de remir e de pagar com usura; não
me peça explicações que não as darei; aborreço
Maurício e sua mulher e vingo-me em sua filha: se lhe vai aproveitar
o meu ódio, tanto melhor.

Frederico – Mas o comendador Pereira…

Fabiana – Ontem em casa de Maurício, e aqui mesmo ainda há
pouco, disse-lhe tudo quanto convinha dizer-lhe: mas o comendador é
um estúpido e não me compreendeu; ou está pronto a sacrificar
até mesmo alguns contos de réis por amor de Leonina. Embora!
O nosso plano é infalível! Aproveitando a confusão do
baile de máscaras, na chácara de Maurício, às
duas horas depois da meia-noite levarei Dona Leonina para o caramanchão
que fica junto da rua; o senhor aparecerá então; dou-lhe minha
palavra de honra que a vítima do rapto não poderá soltar
um grito, e a carruagem que deve estar perto o levará com ela para
onde lhe parecer.

Filipa – E depois, minha mãe?

Fabiana – Até aí a desonra, e logo depois em seguida virá
a miséria. É a vingança; é a parte que me toca.
Depois um casamento inevitável dará ao senhor Frederico direitos
à herança do tio e padrinho da noiva; e tu, Filipa, com uma
rival de menos, contarás uma probabilidade de mais para conquistar
o comendador.

Frederico – Tudo bem calculado, quem ganha mais no negócio, sou eu;
uma bela moça…uma grande herança em perspectiva…(A Fabiana)
Minha senhora, Vossa Excelência é um anjo!

Fabiana – Anjo ou demônio, pouco importa, contanto que eu consiga o
meu fim. Dê-me o seu braço senhor Frederico; tu, Filipa, insinua-te
no espírito do comendador, e trata de fazer acreditar que o coronel
Reinaldo ama com ardor a Dona Leonina: precisamos de um homem, sobre quem
recaiam as primeiras suspeitas imediatamente depois do desaparecimento de
Leonina. Até logo. (Vão-se)

CENA VII

Filipa e logo Henrique, que tem estado oculto.

Filipa – Pois as cartas deste jogo serão por mim baralhadas. Ver Leonina
mulher de Frederico que é moço, elegante e belo!… oh! não,
não! Muitas e até eu ainda mesmo casada com o comendador lhe
invejaríamos a sorte: esse casamento o salvá-la-ia da desonra;
perca-se, portanto, ou pelo menos veja manchada a sua reputação,
e fique solteira. Um rapto que se malogra no momento de executar-se, é
de sobra para desacreditar a mulher que se encontra nos braços do raptor…Sim…é
isso que deve acontecer; e para que aconteça só me falta um
homem…um homem dedicado que eu hei de achar…um homem…que a minha boa
fortuna há de mostrar-me…

Henrique – Ei-lo aqui, senhora!

Filipa – Oh!…o senhor Henrique!

Henrique – Não percamos tempo nem palavras. Ouvi tudo…eu estava
ali…ouvi tudo. Estou no domínio do segredo de sua mãe e do
seu; poderia destruir os seus projetos; quero porém ser cúmplice
neles: sabe que tenho sido profundamente ofendido e que devo estar sequioso
de vingança. Eu sou o homem de que precisa. Aceita-me?…

Filipa – Farei chegar às suas mãos um convite para o baile
de máscaras do senhor Maurício. O senhor procederá de
modo que não comprometa minha mãe, e ao arrancar leonina dos
braços do seu raptor, provocará com seus gritos o concurso de
testemunhas.

Henrique – Fá-lo-ei melhor do que calcula, minha senhora!

Filipa – A vingança aproximou-nos: unir-nos-á a cumplicidade.
Adeus, senhor, até a noite do baile!…

Henrique – Até a noite do baile!…

Filipa (Indo-se) – Oh!…agora estou segura. (Vai-se)

Henrique – Baralhaste demais as cartas do vosso jogo, minha senhora! A partida
não será vossa, e menos de vossa mãe: a partida será
minha! (Vai-se)

CENA VIII

O Comendador Pereira.

Pereira – O senhor Maurício anda mal de fortuna; isso é tão
positivo que ainda há quatro dias descontei com dez por cento esta
letra de três contos réis, assinada por ele; não é
boa firma, não; mas tem uma filha que vale cem contos com os olhos
fechados. Nada tenho com as dívidas do pai; o que eu quero é
a filha, e há de ser minha. Segundo ouvi há pouco, ela vem esperar
aqui Dona Hortênsia, e eu não hei de perder este ensejo. Vou
oferecer-lhe a decantada rosa (Tira-a do seio); mas há de ser uma fineza
toda especial. Dona Fabiana assegura que a menina é muito interesseira;
pois então, apresentar-lhe-ei a rosa em um cartuchinho feito com a
letra de três contos de réis.(Prepara o cartucho). Aposto que
o cartucho produzirá mais efeito do que a rosa? Dona Leonina não
terá de envergonhar-se, porque o presente será recebido em particular,
e, além disso, não posso admitir que o dinheiro envergonhe a
pessoa alguma. Ei-la aí.

CENA IX

O Comendador Pereira e Leonina.

Leonina – Esperava encontrar aqui minha mãe.

Pereira – E eu dou-me os parabéns por não ter ainda chegado
a senhora Dona Hortênsia; desejava achar-me a sós com Vossa Excelência
para testemunhar-lhe o meu profundo afeto, oferecendo-lhe a palma da beleza.
(Apresenta a rosa no cartucho).

Leonina (Recebendo) – Oh! a rosa!… (Deita fora o cartucho).

Pereira – Não deite fora o cartucho!…não deite fora o cartucho!…

Leonina – Mas que tem de singular este cartucho?…

Pereira (Apanhando-o e oferecendo-o de novo) – Minha senhora, é que
há cartucho e cartucho!…

Leonina (Recebendo e à parte) – Querem ver que é um bilhetinho
amoroso?… (Abre) Oh!!!

Pereira – Perdoe-me Vossa Excelência… é um simples sinal…

Leonina – Senhor! Há dois insultos neste indigno papel! Há
dois insultos, porque o senhor fez-me corar por meu pai, e porque ousou fazer-me
um presente de dinheiro! Há dois insultos…ou não há
insulto algum, porque Vossa Senhoria, senhor comendador, não compreende
quanto respeito se deve a uma senhora. Eis aí o seu papel!…Ei-lo…vê
bem que o não posso rasgar; é uma dívida de meu pai.

Pereira – Minha senhora…por quem é…

Leonina – Eis aí a sua letra! Está me queimando os dedos: ei-la
aí! E pois que não a vem receber, apanhe-a no chão. (Atira
a letra ao chão e volta as costas).

Pereira – Perdão, minha senhora, eu sou um bruto. (Apanha a letra).

CENA X

Pereira, Leonina e Hortênsia.

Hortênsia – Oh! a rosa!…a palma da beleza na mão de Leonina!…

Leonina – A rosa?… é verdade…nem dela me lembrava!…(Desfolha
a rosa).

Hortênsia – Que fazes, minha filha?

Leonina – Oh! minha mãe! Esta rosa tinha espinhos: feriu-me!

FIM DO SEGUNDO ATO

ATO III

Sala interior em casa de Maurício; sempre o mesmo luxo e elegância;
mesa pequena, mas de rico trabalho, à direita e um pouco ao fundo.
Portas laterais e ao fundo.

CENA I

Hortênsia e Maurício, tendo na mão um livro que logo
depois vai colocar sobre a mesa.

Maurício – Não, Hortênsia, as ilusões desapareceram;
a hora da desgraça vai soar para nós; já dissipamos toda
a nossa fortuna, e legaremos a Leonina a mais horrível miséria.

Hortênsia – Ora, que andas sempre a sonhar futuros pavorosos!

Maurício – Não, este livro não mente; ele me assinala
a ruína e a vergonha, porque me traz à memória dívidas
que não posso pagar; ele me lança em rosto um crime, porque
em um momento de desvario ousei vender escravos que tinha hipotecado. Estão
aqui vestidos de seda que apareceram em uma só noite; brilhantes e
enfeites, que importam em contos de réis. Devo às lojas de modas,
devo aos joalheiros, devo aos tapeceiros, devo as mobílias e o aluguel
das nossas casas; devo tudo e a todos! E o que é mais! Essa hipoteca,
que não soube respeitar, me denuncia um crime de estelionato, e não
há meio de escapar às suas conseqüências.

Hortênsia – E choras o que gastaste comigo e com tua filha?

Maurício – Não; mas quando penso que me arruinei para engolfar-me
em prazeres que duraram instantes; quando penso que sacrifiquei o futuro de
nossa filha a vãs pretensões que só a vaidade inspirava,
maldigo mil vezes a loucura que me arrastou à perdição.

Hortênsia – E pretendes lançar-me em rosto essas despesas que
somente agora lastimas?…querias que eu fosse a bailes e teatros e neles
me apresentasse vestida pobre e miseravelmente, para ficar exposta ao escárnio
das senhoras e ao desprezo dos homens?…

Maurício – Eu não me queixo de ti, Hortênsia; choro apenas
a nossa desgraça e maldigo a minha imprudência.

Hortênsia – Fora talvez melhor que tivéssemos vivido ignorados;
que uma vez por outra nos reuníssemos com uma ou duas famílias
de classe baixa, e que enquanto jogasses a bisca com os maridos, eu conversasse
sobre receitas de doces com as mulheres?… Não faríamos dívidas
e teríamos a glória de casar Leonina com algum empregado de
pouco mais ou menos, se escapássemos de casá-la com o filho
de algum marceneiro.

Maurício – Hortênsia! Não assenta bem tanta soberba em
quem está batendo às portas da miséria.

Hortênsia – Ora! O que nós estamos é chegando ao dia
do triunfo. O comendador se mostra loucamente apaixonado por Leonina…

Maurício – Mas o infame procedimento que teve ontem…

Hortênsia – Não pensou no que fez e deu-me a satisfação
mais completa. Leonina há de tornar-se às boas com ele e eu
te asseguro que o comendador nos pedirá nossa filha em casamento no
dia dos anos desta.

Maurício – Oh! se isso não fosse uma nova ilusão!

Hortênsia – Não o duvides. O próprio comendador mo deu
a entender; o que, portanto, nos cumpre é disfarçar a crise
que nos ameaça e salvar as aparências por alguns dias.

Maurício – Entendo; devemos representar o último ato da comédia
da impostura.

CENA II

Maurício, Hortênsia e Anastácio, que fica junto à
mesa.

Anastácio – Juntinhos a conversar! Os meus dois fidalgos estão
de certo desenrolando a sua genealogia: quero apreciá-los de parte.
(Vê o livro e abre-o) Oh! o livro de receita e de despesa! Isto é
uma obra rara e proibida na casa do desmazelo e da dissipação.
(Examina).

Hortênsia – Tratemos da nossa festa: convêm que seja de estrondo,
e que se fale durante um mês inteiro do baile de máscaras dado
em honra dos anos de Leonina.

Maurício – E se esse casamento não se concluir, onde iremos
parar, Hortênsia?…

Anastácio (Batendo com o livro sobre a mesa) – Miserável!…

Hortênsia (Voltando-se) – Meu mano!…

Maurício (Correndo para o livro) – Oh! leu…sabe tudo!…(Pena no
livro).

Anastácio (À parte) – Desgraçado!…desgraçado!…(Outro
tom e à parte) Mas antes assim, meu Deus; eu temia que ele fosse já
um infame, e apenas tem sido um louco; antes assim!

Hortênsia – Que tem, meu mano?…

Maurício – Anastácio, eu compreendo o teu desespero; foi este
livro…

Anastácio – E que tenho eu com esse livro?…pela encadernação
parece-me obra moderna, e eu só acredito nos autores do século
passado.

Maurício (Á parte) – Não leu, ainda bem! (Vai guardar
o livro num gabinete e volta logo).

Anastácio (À parte) – Coisa singular!…quer me parecer que
este meu irmão ainda tem vergonha!

Hortênsia – Mas por que motivo entrou tão irritado?…

Anastácio – Porque…porque…ah! querem saber por quê?…pois
eu lhe conto. Fui visitar uma família de minha íntima amizade,
e a quem como a vocês, não via há dezoito anos, e quando
esperava encontrar a prosperidade, encontrei somente a desgraça e a
miséria.

Hortênsia – Infelizes!…

Anastácio – Infelizes, não; infeliz é o lavrador que
trabalha meses inteiros e vê num dia o vento impetuoso ou a enchente
assoladora destruir-lhe as plantações; infeliz é o negociante
a quem a tempestade roubou a riqueza, fazendo soçobrar seus navios;
infeliz é o proprietário a quem o incêndio devorou as
casas e a fortuna; mas o perdulário, e o dissipador, vítimas
somente do luxo e da vaidade, não têm direito à compaixão
dos homens; são entes imorais, que pervertem a sociedade com o seu
mau exemplo, e que merecem o castigo da desgraça.

Maurício – Anastácio…levas a austeridade até o excesso…

Anastácio – Não, eu sou apenas justo: escutem; o meu antigo
amigo era empregado público, tal e qual como és, Maurício;
casara-se com uma senhora que tendo todas as virtudes, tinha também
e, infelizmente, o defeito da vaidade e do amor da ostentação…nesse
ponto não sei se ele se parece contigo; mas como a ti, Maurício,
também sua esposa lhe trouxera em dote uma fortuna modesta; o homem
da mediocridade, impelido por sua mulher e por seu próprio gosto, esqueceu
a sua esfera, quis ombrear com os grandes, fruir os prazeres, e ostentar o
tratamento dos milionários, e nem os cuidados do futuro de uma filha
que o céu concedera a esse casal desvairado, puderam arredá-lo
do caminho da perdição. Os anos foram correndo nas asas das
festas…a fortuna própria foi dissipada…vieram depois as dívidas,
e finalmente chegou o dia da ruína e do opróbrio. Que dizem
vocês a isto?…

Hortênsia – É um quadro muito comum hoje em dia.

Anastácio – Quando eu ainda há pouco chegava à casa
dessa triste família, os credores saíam dela levando os trastes
penhorados. Vi soldados à porta, entrei; corri aos meus velhos amigos,
oh que destino o seu! O marido ia ser levado para a prisão como estelionatário;
a mulher para o hospital, porque havia endoidecido; e a filha…a filha tinha
diante de si o desamparo, e perto do desamparo a desonra e a prostituição!…

Maurício – Meu Deus!

Anastácio – Oh castigo do céu! Castigo de Deus!…eram meus
amigos; mas foi muito bem merecido!…

Hortênsia – Meu mano , eu o estou desconhecendo!

Anastácio – A razão fala pela minha boca: um empregado público
que não é rico, que ganha pouco, e vive no seio da opulência
e do fausto, ou rouba ao Estado ou aos particulares; porque ou é malversador,
ou contrai dívidas que sabe que não poderá pagar. É
verdade ou não, Maurício?…

Maurício – É verdade!

Anastácio – A mulher casada que impele seu marido a fazer despesas
loucas e superiores aos seus recursos; que para trajar brilhantes vestidos
e adornar-se com jóias custosas, o expõe ao opróbrio,
ao infortúnio, à infâmia, não ama a seu marido,
desconhece os seus deveres de esposa, não é somente louca, é
ainda altamente criminosa. É verdade ou não, senhora?…

Hortênsia – É verdade.

Anastácio – E se esse homem e essa mulher têm uma filha, e dão-lhe
a educação perniciosa do luxo e da vaidade; se lhes matam a
inocência e a abandonam a mil perigos, atirando-a imprudentemente nas
garras de sociedades sem escolha; se esse homem e essa mulher ajudam por tal
modo a corromper o anjo que o céu lhes concedera; esse homem é
um pai desnaturado, essa mulher é mãe depravadora. Pai e mãe,
que me ouvis, não é verdade?…

Maurício – Oh!…

Hortênsia – Meu mano!…

Anastácio – E os resultados desses erros, que são verdadeiros
crimes, ei-los aí no quadro que apresentou a mísera família.
Chega um dia em que os credores e a justiça entram na casa da dissipação;
os credores apoderam-se dos restos de uma fortuna esbanjada; a justiça
arrasta para uma cadeia o homem que perpetrara um delito infamante; a mulher
vendo-se sem pão, sem riqueza, sem fasto, cai fulminada pelo raio da
vaidade e enlouquece; e a filha, a única vítima inocente, acha-se
no mundo só, em abandono, ardendo em desejo de brilhar como dantes,
invejando as jóias, os vestidos, e esplendor das outras mulheres, e
aí vem um pérfido sedutor, que lhe oferece bailes, teatros,
sedas e carruagens, e em troco lhe pede a honra!…oh!…a filha do luxo e
da vaidade acaba por abrir os braços! A serpente da libertinagem morde-lhe
o seio…o anjo da pureza a desampara, e a desgraçada escreve o seu
nome na lista das mulheres perdidas. Pai, que me escutas comovido; mãe,
que me olhas espantada, respondei: quem precipitou essa infeliz na vergonha
da corrupção?…Dizei!…

Hortênsia – Ah!!! senhor…

Maurício – Meu irmão…basta!…

Anastácio – Não, ouvi-me até o fim; ninguém deplora
essa família; ninguém dela tem piedade. O Estado diz ao empregado
público: "Empregado malversador! Mereceste a punição
do teu crime" Os credores bradam-lhe ressentidos: "Miserável,
tu nos arrancaste o nosso dinheiro!". A pátria volta-se contra
a mulher e clama: "Insensata! Em tua filha tu me roubaste uma mãe
de família!". E a sociedade repele a moça infamada, a essa
triste filha, a quem não ensinaram a trabalhar, e que preferiu a desonra
com o fausto, à honestidade com o trabalho: e a bela corrompida envelhece;
seus encantos murcharam depressa nas orgias da devassidão, e um dia,
anos depois, o pai sai da prisão, a mãe sai do hospital, e encontram
na rua uma mendiga esfarrapada, com o letreiro da prostituição
escrito na face, e que lhes estende a mão, pedindo esmola…oh! não
volteis o rosto, pai e mãe dissipadores! Pai e mãe escravos
do luxo e da vaidade! Socorrei a mendiga! Socorrei-a, porque é vossa
filha!…

Maurício – Basta!…basta!…

Hortênsia – É horrível!…

Anastácio (Outro tom) – E que têm vocês com isto?…estarão
porventura no mesmo caso?…

Hortênsia – Oh!!! não…não…mas temos uma filha, e
o quadro foi medonho.

Anastácio – Pois corrijam-se dos seus erros, se ainda é tempo.
Maurício, a ostentação e o luxo com que tua família
se apresenta, desabonam o teu crédito; toda essa gente que freqüenta
hoje a tua casa; todos esses figurões que te festejam, hão de
desaparecer e abandonar-te na hora da adversidade. Mana Hortênsia, é
simples o segredo da felicidade: quando por acaso nos sentirmos entristecer
por não poder gozar os prazeres que gozam os que são mais ricos
do que nós, basta que olhando para baixo, contemplemos aqueles que
ainda podem menos do que nós.

Maurício – Tem razão…nós nos corrigiremos…

Hortênsia – O mano deu-nos uma lição proveitosa; falou-nos
com o coração e há de ver o seu triunfo.

Anastácio – Ainda bem; e principiem a ter juízo desde hoje…

Maurício – Sim…nada mais de ridículas pretensões…

Hortênsia – Nada mais de falsas amizades; nada mais de vaidades…

CENA III

Maurício, Hortênsia, Anastácio e Petit.

Petit – Excelentíssimas baron e baronesa do Rio Mirim!

Hortênsia – A baronesa!…ah! eu vou imediatamente… (Vai-se)

Anastácio – Maldita baronesa! Oh! mana…ouça primeiro…

Maurício – O senhor barão! Depressa a receber Sua Excelência.
(Vai-se)

CENA IV

Anastácio e Petit, ao fundo.

Anastácio – Maurício! Qual! Deixaram-me por amor dos barões
Mirins! Perdi a minha retórica, e está decidido que meu irmão
precisa receber uma lição amarga e rude. Desgraçados!
Debatendo-se já no fundo do abismo, e tão cegos e tão
vaidosos ainda! Oh! é esta sociedade envenenada e corrupta que estraga
todos os corações! É esta sociedade que deixando-se escravizar
pela paixão do luxo, sacrifica todos os sentimentos e todas as considerações
ao ouro; devorada por esta paixão funesta, prefere o ouro à
sabedoria, o ouro à honra, o ouro à virtude! É ela que
despreza o vestidinho branco da senhora pobre, mas honesta, pelas sedas e
pelos veludos das grandes libertinas! É ela que ensina a abafar o pudor,
e a menosprezar a própria reputaç&atilatilde;o para satisfazer a
paixão do luxo…sim! é uma sociedade depravada, que zomba e
ri da consciência, da lealdade, da justiça, da pátria,
de Deus, e que violenta se arroja pela estrada da desmoralização,
tendo na mente uma única idéia – ouro! ouro! ouro! – (Vendo
Petit) Que fazes tu aqui?…estavas ouvindo o que eu dizia, não?…

Petit – Oh! non pode ser; eu non entende português.

Anastácio – Que temos então?…

Petit – Um cavaleire comme il faut quer fala com monsieur Anastace palavra
particular.

Anastácio – Conduze-o para esta sala. (Vai-se Petit) Quem será?…uma
palavra particular?…não tenho negócios na corte, e mesmo já
perdi as minhas antigas relações. Sou inimigo de segredos e
de mistérios; gosto da franqueza, que é a arma do justo, e me
acho de muito mau humor para sofrer segredinhos de homem. Diabo!…deixem
o cochichar para as senhoras que gostam de falar com a boca fechada.

CENA V

Anastácio e Henrique.

Anastácio – Henrique!…tu aqui?…

Henrique – É verdade, mas meu tio; desde ontem que vossa mercê
não aparece, e eu precisava absolutamente falar-lhe. Foi necessário
que se desse uma circunstância bem grave para que eu ousasse entrar
nesta casa.

Anastácio – Pois então senta-te. (Senta-se)

Henrique – Não, meu tio; falarei de pé e depressa, porque devo
retirar-me antes que me encontrem aqui, e que me lancem para fora.

Anastácio – Lançarem-te para fora?! E não vês
que sairiam dois ao mesmo tempo?…

Henrique – Embora, ou ainda por essa razão.

Anastácio – Nesse caso fala de pé; mas eu fico sentado.

Henrique – Meu tio, desde ontem que se prepara uma trama infernal contra
minha infeliz prima…

Anastácio – Eu logo adivinhei que tua prima entrava na história.

Henrique – Trata-se nada menos que de perpetrar um rapto…

Anastácio (De pé) – E a vítima?…quem é?…

Henrique – Minha prima.

Anastácio – Leonina?…será possível!…(Outro tom e
sentando-se) Vamos adiante; continua.

Henrique – A vítima deve, pois, ser minha prima…Ouviu, meu tio?
Leonina…minha prima…

Anastácio – Sim, tua prima; ouvi perfeitamente.

Henrique – E pode estar ouvindo com essa frieza?…

Anastácio – Henrique, em regra geral nunca se furta uma moça
senão quando ela se deixa furtar.

Henrique – E então…

Anastácio – E então, quem não é seu pai, nem
sua mãe, e apenas seu namorado, deixa-a ir com o raptor, que por fim
de contas é o mais enganado, porque julgando levar consigo um tesouro
precioso, apenas carrega às costas um saco de moeda falsa.

Henrique – Mas é que meu tio ignora as circunstâncias…

Anastácio – Pois vamos a elas.

Henrique – No baile de máscaras, que vai dar-se na chácara
de meus tios, às duas horas da noite, Leonina será atraída
para um caramanchão, que fica junto de uma rua deserta; aí dois
máscaras atirar-se-ão sobre a infeliz, abafarão seus
gritos e arrastando-a para uma carruagem, que está perto, um dos máscaras
desaparecerá com ela.

Anastácio – E esses máscaras serão uma mulher perversa
e um homem libertino: Fabiana e Frederico, não é assim?…

Henrique – Exatamente: mas quem lho disse?

Anastácio – Eu o tinha previsto…Miserável!…Como descobriste
este segredo?…

Henrique – Surpreendi-o, quando me deixou oculto atrás dos bambus,
no Jardim Botânico; surpreendi-o, e oportunamente me ofereci à
filha de Dona Fabiana, que pedia à sua boa fortuna um cúmplice,
que impedisse a realização do rapto ao tempo em que o escândalo
fosse já bastante para manchar o crédito de Leonina.

Anastácio – Tens em tuas mãos os fios dessa trama criminosa:
qual é o teu propósito?…

Henrique – Vim consultá-lo sobre isso. No meu pensamento brilhou a
idéia de uma nobre vingança; lembrou-me que podia abater a soberba
de meus tios, forçando-os a reconhecer-se devedores da salvação
de sua filha a aquele que tão indignamente desprezaram…

Anastácio – Pobre plebeu! Haviam de dizer-te que às vezes também
um náufrago pode ficar devendo a vida a um cão da Terra Nova.

Henrique – Ainda não acabei. Lembrou-me depois, que eu deveria apresentar-me
hoje aqui, e patenteando o crime projetado, e nomeando os criminosos, dizer
a meus tios: "Eis aí as brilhantes relações de que
vos ufanais! Eis a vossa sociedade que arremeda o que não é!
Eis aí os vossos falsos nobres, ridículas caricaturas daqueles,
com quem procuram confundir-se; ei-los! São infames réus da
polícia, são…"

Anastácio – Tempo perdido! Os três figurões chamar-te-iam
caluniador e Maurício correria a dar um abraço a Frederico;
Hortênsia a trocar um beijo com Dona Fabiana, e um criado viria mostrar-te
a porta da rua.

Henrique – Mas também nenhum desses pensamentos foi aceito pelo meu
coração: em qualquer deles transpirava um desejo de vingança,
generosa embora, e a vingança, oh!…não cabe em um coração
que está cheio de amor! Meu tio, eu quero salvar Leonina, mas quero
salvá-la sem que uma suspeita, uma simples dúvida possa deixar
a mais leve nuvem no límpido céu da sua vida…quero salvá-la
ficando para todos imaculada a sua pureza; quero salvá-la sem que ela
o perceba, sem que se fale no seu nome, sem que ela tenha de corar ante a
idéia do atentado, de que ia ser vítima; quero salvá-la,
como um pai salvaria sua filha!…não quero nem o abatimento da soberba,
nem a confusão do crime, nem a vingança, nem a gratidão;
quero a reputação de Leonina intacta, e o seu nome saindo de
todos os lábios que o pronunciaram, suave como uma harmonia de Haydn,
puro e celeste como a oração de um anjo.

Anastácio – Excelente; mas havemos de levar ao fim a obra modificando
um pouco as tuas idéias poéticas. Já fui delegado de
polícia em Minas, e quando me denunciavam que s e pretendia cometer
algum roubo, a minha regra era apanhar os ladrões com a mão
na ratoeira.

Henrique – Mas se um descuido qualquer…

Anastácio – Já cumpriste o teu dever; o cumprimento do meu
começa agora. Hás de dar-me amanhã algumas lições
de baile mascarado. Uma dificuldade única me embaraça…Com
hei de eu tolerar a presença desses tratantes, que vêm hoje aqui
jantar?…Já, porém, que é preciso fingir, já
que no meio desta gente sem fé, os próprios homens honestos
devem às vezes trazer uma boa máscara no rosto, verão
para quanto presta este velho roceiro!

CENA VI

Anastácio, Henrique e Leonina.

Leonina – Meu padrinho…meu padrinho…(Vendo Henrique) Ah!…

Anastácio – Assustou-se?…pois o rapaz não é feio.

Henrique – Minha senhora…

Leonina – Perdão, eu pensava que meu padrinho estava só.

Anastácio – Mas achaste-me bem acompanhado, o que é ainda melhor.
Que é isto?…parece que choraste, Leonina?…

Leonina – Não…não chorei…

Henrique – Eu me retiro… (Anastácio o suspende, segurando-lhe na
mão).

Anastácio – Vieste para confiar-me um segredo, podes falar; em vez
de um, tens a teu lado dois amigos.

Leonina – Meu padrinho…

Henrique – Eu a deixo em liberdade, minha senhora; sei bem que não
tenho direito algum à sua confiança…(Indo-se).

Anastácio – Tu o deixas ir, Leonina?…

Leonina – Senhor…meu primo, fique.

Anastácio (À parte) – Com tenho domesticado este bichinho!…(A
Leonina) Fala…

Leonina – Ah! Meu padrinho…tenta-se contra a minha felicidade, contra o
futuro da minha vida…

Anastácio – Como?…

Leonina – Querem casar-me com um homem grosseiro e mau, cuja única
recomendação é a riqueza…

Henrique (À parte) – Meu Deus!

Anastácio – O comendador Pereira…

Leonina – Ele mesmo!

Anastácio – Que dizes tu a isto, Henrique?…

Henrique – Meu tio!

Leonina – Meu padrinho!

Anastácio – Creio que ninguém se lembrará de casar-te
contra a tua vontade, e menos de te impor à força um marido…

Leonina – Oh! mas meu pai pede, minha mãe chora, e um pai que pede,
obriga: uma mãe que chora, impõe!…

Anastácio – E além disso trata-se de um fidalgo da gema; e
um fidalgo, ainda que seja estúpido, grosseiro, e ainda mesmo tratante,
é sempre um fidalgo, minha afilhada!

Henrique – Senhor…meu tio…atenda que ela chora!…

Leonina – Veja, meu primo, ele zomba de mim, quando as lágrimas correm
de meus olhos!

Anastácio – Tens razão! Fui mau: oh! mas nunca hei de consentir
que te façam desgraçada! Leonina, enxuga esse pranto…não
quero que chores! Os teus olhos não devem chorar; olha-me, olha-me
bem? Sabes?…o teu rosto tem um encanto indizível para mim. Tu tens
o rosto de minha mãe, Leonina! Velho, ainda me lembro daquele anjo
de amor e de virtudes…oh!…e lembra-me também meu pai, que morrendo
nos meus braços, me recomendou Maurício, meu irmão mais
moço, e me pediu que por minha vez fosse para ele um pai!…(Comovido)
Oh! bom e honrado homem, que hoje gozas a bem-aventurança do céu!
Oh meu pai!… eu cumprirei à risca a tua última e santa vontade!
Leonina é a filha de teu filho!…é o retrato de minha mãe…não
há de ser, não quero que seja desgraçada!…(Com ternura)
Leonina! És também minha filha!…e para fazer-te feliz, eu
tenho um tesouro de amor neste seio, que se abre para receber-te…vem! Leonina!
Minha afilhada! Minha filha!…
(Aperta Leonina nos braços).

Leonina – Oh!…meu padrinho!…

Henrique – Que coração o deste homem, meu Deus!

Anastácio (Soluçando) – Eis aí! Creio que estou chorando!…
mas como é doce o abraçar-te, Leonina! Não achas que
deve ser muito agradável Henrique?…e querem fazer-te desgraçada,
bela menina?…pela alma de meu pai, juro que não!

Leonina – Ouço vozes…(Observa) Ah! Meu padrinho, contenha-se; aí
vêm todos os nossos amigos para o jantar.

Henrique – E vão encontrar-me aqui…é um verdadeiro vexame
para mim!

Anastácio – Entra para o meu quarto e espera. (Leva até a porta
do quarto a Henrique que entra) Ora vejam com quem queriam casar minha afilhada!…(Observando).

CENA VII

Anastácio, Leonina, Maurício, Hortênsia, Fabiana, Filipa,
Frederico, Pereira, Reinaldo e Lúcia.

Vozes – Senhor Anastácio!…(Cumprimentam-no)

Anastácio – Minhas senhoras…meus senhores… (À parte) Devo
estar com uma cara de enforcado: a presença desta gente irrita-me.

Hortênsia – Meu mano, os nossos amigos vêm dar-nos o prazer de
jantar conosco para obsequiá-lo…

Fabiana – A nossa maior ambição é a conquista da sua
amizade.

Anastácio – A minha amizade, Excelentíssima…(À parte)
Eu não ofereço a minha amizade a esta fúria, nem que
me serrem!

Filipa – A sua amizade é um tesouro que todos desejamos possuir.

Frederico – E eu muito particularmente.

Anastácio – Por quem são…os senhores confundem-me…(À
parte) Está visto…eu não posso fingir…

Reinaldo – Eu cá sou amigo velho. (Dá a mão a Anastácio,
que deixa apertar a sua friamente).

Pereira – E eu desejo merecer um título igual. (Á parte) Este
homem não tem espírito.

Anastácio (À parte) – Reconheço-me incapaz de dizer
duas palavras; mas enfim, é indispensável rebentar com alguma
coisa. (A todos) Eu…eu sou um agreste roceiro que não presta para
nada…(À parte). Até aqui vou bem. (A todos) Porém…ainda
assim…protesto e juro a Vossas Excelências e Senhorias… (A Leonina)
É assim que se diz, Leonina?…(A todos) Sim…que fui, sou, e serei
sempre um bom amigo, bem entendido, de quem merecer a minha amizade.

Frederico – E nós faremos tudo por tornar-nos dignos dela.

Maurício – Desde muito que o são: eu respondo pelo reconhecimento
de Anastácio.

Anastácio – Menos essa! Ninguém responde por mim…quero dizer…que…meu
irmão fala muito bem a linguagem cá da cidade, e eu…roceiro,
velho e rude…tenho um modo de falar que não agrada a todos…mas
tal como sou, aprecio devidamente…(Á parte) Eles hão de pensar
que eu sou um estúpido…pois que pensem! (A todos) E os senhores podem
ficar certos de que…eu já os conheço tanto…que declaro…sim
declaro…(À parte) Ora viva! Eu vou declarar o diabo! (A todos) Declaro…

CENA VIII

Os precedentes, e Petit, da porta do fundo.

Petit – Madame est servie. (Vai-se)

Anastácio (Indo a Petit) – Abençoado sejas tu, Petit de uma
figa.

Hortênsia – Vamos jantar; senhor coronel, o seu braço. (Toma-lhe
o braço) Leonina, pede o braço ao senhor comendador…

Anastácio – Não é possível; Leonina já
está engajada comigo. (A Leonina) É engajada que se diz, não
é, Leonina?…

Hortênsia (A Reinaldo) – Meu cunhado é um homem muito vexado.
(Vão saindo)

Reinaldo (A Hortênsia) – Pois olhe, não era assim no outro tempo.
(Saem)

Fabiana (Tomando o braço de Pereira) – É um original!

Pereira (A Fabiana) – Não tem espírito…parece-me até
idiota. (Saem)

Maurício (Dando o braço a Filipa) – Venha meu irmão.
(Saem e Frederico com Lúcia)

Anastácio – Eu já os sigo; quero dizer primeiro uma palavra
a Leonina. (À parte) Este jantar de hoje não me passa da garganta.

CENA IX

Anastácio, Leonina, e logo Henrique.

Leonina – Que me quer dizer, meu padrinho?…

Anastácio – Eu, nada. Quero despedir-me de Henrique.(Vai à
porta do quarto) Agora podes sair; e até logo.

Henrique – Adeus, meu tio; minha…prima… (Cumprimenta-a)

Anastácio – Então como é isso?…não lhe dás
a mão, Leonina?…(Leonina dá a mão, e Henrique a beija
com ardor). Bravo! Agora sim; jantarei como um frade, e vou até fazer
uma saúde ao comendador Pereira. (Vão-se)

FIM DO TERCEIRO ATO

ATO IV

Jardim espaçoso e todo iluminado; ao fundo uma casa de campo de bela
aparência, assobradada e com escadaria na frente: pelas janelas abertas
vê-se brilhar as luzes; bancos de relva no jardim: à esquerda
um caramanchão coberto de jasmins; perto dele um portão de grades
de ferro.

CENA I

Há um baile de máscaras; música, e ruído de
festa; os máscaras sobem e descem pela escadaria, e aparecem às
janelas; dirigem-se uns aos outros. Dois Máscaras: o primeiro sentado
em um banco, o segundo chega e pousa-lhe a mão no ombro.

Segundo Máscara – Belo máscara, porque deixaste o baile?…esperas
ou descansas?…

Primeiro Máscara – A esperança é falaz como a mulher,
e o descanso é o marido fidelíssimo da preguiça; aborreço-os
a ambos: não espero, nem descanso.

Segundo Máscara – Dá-me então o segredo de tua vida…

Primeiro Máscara – Medito sempre e ainda mesmo quando trago uma máscara
no rosto. Agora estava pensando na grande loucura de um baile de máscaras,
e procurava determinar com certeza quem é a pessoa que o baile em que
estamos, assinala, como tendo menos juízo.

Segundo Máscara – Isso não tem que ver, é o dono da
casa.

Primeiro Máscara – Pois enganas-te: é o credor ou são
os credores do festeiro, que provavelmente nunca mais tornarão a ver
o cunho do dinheiro que emprestaram para as despesas da festa.

Segundo Máscara – És má língua, e te levantas
contra o santo, e contra a esmola.

Primeiro Máscara – Esquecia-me dizer-te, que há meia hora perdi
um conto de réis ao lansquenete! Parei na dama de copas, que dez vezes
consecutivas deixou-se cair no lado direito!…oh!…dama constante assim,
é a primeira vez que encontro!

Segundo Máscara – E achas que deves desforrar-te do dono da casa?…

Primeiro Máscara – Desforrar-me?! Pronunciaste uma palavra de bom
agouro: voltemos ao baile, e na sala do jogo paremos de parceria na primeira
carta…

Segundo Máscara – Menos se a carta for alguma dama, porque as damas…

CENA II

Os dois Máscaras, que logo se retiram: Fabiana, Filipa, Frederico
e todos os mascarados.

Filipa – Fazem o martírio dos tolos; não é assim, belo
máscara?…

Segundo Máscara – Ei-las comigo: imagens mundanas, fugité!…(Vai-se)

Primeiro Máscara – Três! Má conta: um sonha; dois suspiram;
três conspiram! (Vai-se)

Fabiana – Que horrível calor faz lá dentro! (Tiram as máscaras)
Conversemos ao menos alguns instantes aqui no jardim.

Frederico – Parece-me ter achado Vossa Excelência um pouco pensativa?…sobreviria
algum contratempo?…

Fabiana – Não; tudo vai bem. Um pouco antes das duas horas da noite,
Dona Leonina sentirá a cabeça pesada e um sono irresistível,
e acompanhar-me-á ao jardim para adormecer logo depois naquele caramanchão.

Filipa – Mas a explicação desse sono?

Fabiana – Está encerrada nesta caixinha de pastilhas. (Mostra-a)

Filipa – Oh! minha mãe…

Fabiana – O fim justifica os meios: além disso há de ser um
sono de uma ou duas horas e nada mais.

Frederico – E dormirá reclinada sobre o meu seio…

Fabiana – E despertará com o movimento da carruagem. (À Filipa)
Mas pela tua parte, que tens feito insigne medrosa?…

Filipa – Nada; o comendador acha-se possuído da mais acerba melancolia,
e lança olhares fulminadores sobre o coronel Reinaldo, a quem supõe
um rival preferido…

Fabiana – Melhor; tornar-se-á, portanto, mais verossímil uma
fuga do que um rapto; e o coronel Reinaldo receberá daqui a pouco uma
carta que o fará deixar o baile inesperadamente, dando-me ocasião
de fazer sobre ele recair as primeiras suspeitas do atentado, enquanto o senhor
Frederico se põe a salvo. (A Frederico) E a carruagem?…

Frederico – Já está no lugar determinado.

Fabiana – O cocheiro?…

Frederico – Respondo por ele.

Fabiana – Tudo corre à medida dos nossos desejos: até o velho
roceiro teimou em não ficar para o baile.

Frederico – Coitado! Apenas acabou de jantar, deitou a correr para a cidade
antes que aparecesse algum máscara: é um montanhês lá
de Minas, que ainda tem medo de máscaras!

Filipa – Foi uma pena que não ficasse, tomá-lo-ia à
minha conta a noite toda.

Fabiana – E eu digo que foi muito melhor que se tivesse ido embora. Senhor
Frederico, que horas são?…

CENA III

Fabiana, Filipa, Frederico e Anastácio, vestido de dominó
preto: os três põem as máscaras.

Anastácio – É meia-noite.

Filipa – Que voz! Pareceu-me ouvir o sino grande de S. Francisco de Paula
dando horas.

Frederico – Belo máscara, quem és tu?…

Fabiana – Qual belo! Quem és tu, feio máscara!

Anastácio – Todos podem dizer o que foram; poucos o que são;
nenhum o que há de vir a ser. O que fui, não vos importa; o
que eu sou agora, acabastes de testemunhar; sou o cronômetro vivo que
vos anuncia a hora que desejais saber; o que hei de ser ainda hoje…vê-lo-eis.

Frederico – Bravo! É um dominó que toca o sublime.

Fabiana – Mas estás me fazendo raiva; porque sou obrigada a reconhecer
que és o primeiro máscara do baile.

Anastácio – Não te desconsoles; tu és a primeira máscara
do mundo.

Fabiana – Senhor!…

Frederico (Dando um passo) – Dominó, confundes o espírito com
o insulto!…

Anastácio – Às vezes, quando a verdade pode ser um insulto…

Fabiana (A Frederico) – Voltemos à sala…este homem assusta-me…

Filipa (Tomando o braço de Frederico) – Venha, senhor Frederico, venha…

Frederico (Voltando a cabeça para trás) – Encontrar-nos-emos
de novo, não?…(Vão-se)

Anastácio (Seguindo-o) – Malgrado vosso, palavra de honra que sim!…

CENA IV

Maurício e Hortênsia. (A música toca uma valsa brilhante;
movimento de máscaras. Anastácio, que tem ido até a escadaria,
pára, vendo Maurício e Hortênsia; volta, observa-os um
momento à distância e retira-se para um dos lados até
encobrir-se).

Hortênsia – Maurício…meu amigo…

Maurício – Deixa-me fugir dessa multidão que me exaspera; eu
tenho a morte no coração, Hortênsia.

Hortênsia – Silêncio…cuidado…(Olhando) Talvez nos escutem,
Maurício.

Maurício (Olhando) – Não…estamos sós…livres de todos…menos
da desgraça; sabes que recebi hoje uma carta em que o meu principal
credor me previne de que amanhã ao meio-dia em ponto se apresentará
apara receber quinze contos de réis ou para entregar-me à justiça,
como um vil estelionatário?…pois bem: ainda há pouco no meio
da confusão e do tumulto, uma voz soou a meus ouvidos, e disse-me:
"Amanhã ao meio-dia, Maurício!…"

Hortênsia – E essa voz…

Maurício – Não sei de quem foi: olhei e vi-me rodeado de máscaras:
ouvi zombarias e gargalhadas: zombariam de mim?…Rir-se-iam de mim, Hortênsia?..oh,
isto é horrível!…Estas músicas soam a meus ouvidos
como um canto infernal; este ruído me ensurdece…eu enlouqueço!…Hortênsia!…Hortênsia!…dize-me
uma palavra de esperança…uma palavra que me faça esquecer
essa ameaça sinistra: Amanhã ao meio-dia, Maurício!…"

Hortênsia – A nossa situação tornou-se realmente grave:
Leonina tem desde ontem tratado com azedume e até com desprezo ao comendador…

Maurício – Meu Deus! E que recurso então nos resta?…

Hortênsia – Lancei mão do último. Acabo de expor à
nossa filha as circunstâncias desesperadas em que nos achamos; apelei
para a sua generosidade, e conto vencer a sua repugnância: pediu-me
dez minutos para refletir, e eu corro, porque é tempo de receber a
sua resposta a fim de comunicá-la já ao comendador.

Maurício – O sacrifício da vida inteira e da felicidade de
Leonina?…oh!…o luxo! A vaidade! Eis aí as suas conseqüências!…

Hortênsia – Nossa filha há de ser feliz, eu te afianço…

Maurício – Não pareces mãe, Hortênsia!…

Hortênsia – Maurício, é a primeira vez que me maltratas.

Maurício – Oh! perdoa-me! Eu não sei o que digo…minha cabeça
desgoverna…salva-me, Hortênsia…

Hortênsia – Sossega e confia em mim; mas onde encontrarei agora Leonina?…

CENA V

Maurício, Hortênsia e Anastácio, sempre de dominó.

Anastácio – Meditando e a chorar junto à última janela
da galeria. (Vai-se)

Maurício – Esta voz!…quem é este máscara?…

Hortênsia – Sabê-lo-emos depois; agora cumpre salvar-nos. (Vai-se)

CENA VI

Maurício, só – Continua a música alegre.

A música soa festiva e alegre! As luzes brilham! Admira-se em toda
parte o luxo, a riqueza, o fausto e a magnificência do baile…tudo
isto partiu de mim, e eu sou mais pobre do que o último mendigo!…hoje
a festa…e amanhã ao meio-dia a miséria e o opróbrio!…oh!
e medroso do infortúnio que eu preparei por minhas mãos; aterrado
pela idéia do mais justo castigo; eu, no meio das músicas estridentes,
do ruído da alegria, do movimento jubiloso de todos, eu, pai desnaturado
e mau, consinto que vão arrojar minha filha no abismo que cavei debaixo
de meus pés!…minha filha!…Leonina!…misericórdia, meu Deus!
Sou vil, sou infame, reneguei, desprezei meus parentes…reneguei a honra
e a virtude, e ainda vou renegar minha filha!…sinto as ânsias do seu
coração, vejo as lágrimas dos seus olhos, e ainda assim
com as minhas mãos arrasto-a para o altar do sacrifício…oh!
não!…não! este crime, esta abominação, este
sacrilégio não há de realizar…não quero…não!
não! (Partindo).

CENA VII

Maurício, que logo se retira, e Anastácio.

Anastácio – É tarde: Leonina deixou-se vencer por sua mãe.

Maurício – Não! Não…não é tarde nunca
para correr um pai e salvar sua filha!…(Vai-se).

Anastácio – Vai, desgraçado, vai: a obra é tua, não
tens portanto que maldizê-la: vai! Enxuga e esconde as tuas lágrimas,
esmaga o teu coração e ri, e ri mil vezes aos olhos dessa sociedade
mentirosa, em que quase todos são vítimas, e quase todos querem
parecer triunfadores!…Oh! que sociedade! Ali dentro daquelas salas há
homens que soltam gargalhadas e que têm no seio o fogo do inferno; há
mulheres que se festejam e desejariam poder dilacerar-se; há moças
que se estão beijando e que têm vontade de morder-se; ali dentro
a inveja derrama veneno, a traição forja ciladas, a calúnia
despedaça reputações, a corrupção se propaga,
a hipocrisia triunfa, e melhor, e mais sublime que tudo isso, a miséria
contradança e o calotismo dança a polca! Oh que mundo do diabo!
(Sente passos) Quem vem lá?…é ela. (Vai-se)

CENA VIII

Leonina (Só)

Está lavrada a minha sentença…meu Deus! Não há
mais riso para meus lábios, nem felicidade para o meu coração.
Máscara! Máscara! Não me deixes mais: agora tu és
o meu único recurso. A desgraça feriu meus pais, um crime vergonhoso
está a ponto de desonrá-los…oh!…não há que
hesitar..é preciso que eu me sacrifique para salvá-los. Coragem!
Há por aí tantas como eu vou ser…ânimo! mas, meu Deus,
é muito!…uma vida inteira é muito!…Oh! meu Deus, manda-me
um anjo que me salve!

CENA IX

Leonina e Henrique – Ambos têm as máscaras nas mãos.

Henrique – Leonina!

Leonina – Eu te pedia um anjo, meu Deus!…

Henrique – Oh! o amor às vezes é quase um anjo, porque o amor
puro e santo é todo cheio de influxo divino!…Leonina, eu amo!

Leonina – Não mo diga, não…agora é muito tarde, para
quem a tempo não quis ouvi-lo! Não é um anjo, não,
meu primo! Para mim o senhor é um remorso! Ah! Eu estou no caso dos
moribundos, que uma hora antes de expirar pedem perdão àqueles
a quem ofenderam; perdão, Henrique!…

Henrique – Leonina, coragem!…nós seremos ainda felizes…

Leonina – Impossível!…

Henrique – A idéia do impossível é quase um sacrilégio:
a esperança somente apaga na alma do ateu.

Leonina – Mas quando o próprio dever e o mesmo Deus ordenam o sacrifício
de uma vida inteira…quando para salvar seus pais o único recurso
que tem uma pobre filha é aceitar a mão de um homem que detesta…quando…

Henrique – Não diga mais…eu sei…eu adivinho tudo…o rubor de
suas faces revela o que lhe parece um segredo, e o que ninguém ignora…Leonina…vão
condená-la a uma desventura eterna…e eu lhe oferecia no meu coração
um altar de amor…Leonina!…

Leonina – E para sentar-me nesse altar, Henrique, já que o sabe, lembre
que eu precisaria fazer um degrau da honra de meus pais!…um homem se apresenta
para salvá-los…atiro-me nos seus braços…não! não!
Eu abraço-me somente com a salvação de meus pais!…

Henrique – Tem razão, é assim mesmo. O santo amor de filha
que lhe aconselha tanta abnegação, a engrandece ainda a meus
olhos. Tem razão; procede, como deve. Oh! vã filosofia que zombas
do poder do ouro! reconhece um tal poder e curva-te diante dele!…ei-lo!…aqui
está o ouro comprando uma mulher, e uma mulher vendendo-se nobremente
ao ouro por amor da virtude!

Leonina – Meu primo!…

Henrique – Miserável orgulho de artista!…artista!…de que te vale
essa palheta, que amas com um cetro, essa glória, com que sonhas incessantemente?
De que te vale o gênio, artista?…Oh!…quem me dá um cofre
de ouro por essa palheta, que me custou tantos anos de fadiga? Quem me dás
um cofre de ouro pela glória de meus sonhos, pelo talento que me inflama?…Oh!
vãs quimeras!…a glória é uma ilusão! O talento
é nada! O gênio é a túnica de Nesso, o merecimento,
a probidade, a sabedoria são mentiras: há só uma grande
verdade, é o ouro!

CENA X

Leonina, Henrique e Anastácio.

Anastácio – Blasfêmias!… há só uma grande verdade,
é Deus; e por Deus são verdades o gênio, o merecimento,
a probidade e a sabedoria.

Leonina – Meu tio!

Henrique – Salve-nos, meu tio! Quem nos reconciliou, quem nos animou com
suaves esperanças, deve salvar-nos.

Anastácio – E hei de salvá-los. Não saí de Minas
para assistir ao casamento de minha sobrinha com o comendador Pereira.

Leonina – Que hei de fazer…ensine-me?…

Anastácio – Resiste.

Leonina – Mas eu já dei o meu consentimento à minha mãe…

Anastácio – Resiste.

Henrique – Ainda é tempo, vá retirar a sua palavra.

Leonina – É tarde!…ei-los aí…(Anastácio e Henrique
põem as máscaras).

Henrique – Lembre-se do nosso amor, minha prima.

Leonina – Oh! e meu pai?…e meu pai?

Anastácio – Resiste. (Vão-se Anastácio e Henrique)

CENA XI

Leonina, Maurício, Hortênsia, Pereira, Fabiana, Frederico,
Filipa, Reinaldo e Lúcia.

Reinaldo – Festa sublime e inimitável! Mas foi o diabo; apesar do
meu disfarce conheceram-me logo pelo arreganho militar.

Pereira (À parte) – Se eu fosse ministro da guerra havia de reformar
este coronel em cabo de esquadra; tenho-lhe um ódio!

Lúcia – Só o senhor Maurício e a Dona Hortênsia
sabem dar bailes com tanta riqueza e tão apurado gosto.

Leonina (À parte) – Como meu pai está sofrendo!…o meu pobre
pai!…

Hortênsia – O esplendor da nossa festa é todo devido ao brilhante
concurso que nos veio honrar…

Pereira – E eu sou o mais ditoso entre todos os que vieram a ela.

Fabiana – Bem o merece, se o é; porém Dona Hortênsia
chamou-nos ao jardim com um ar de mistério que me vai dando que pensar.

Hortênsia – Escolhi os nossos mais diletos amigos, para que fossem
eles os primeiros a quem eu tivesse o prazer de participar que o senhor comendador
Pereira fez-nos a honra de pedir Leonina em casamento, e que esta correspondeu
como devia a tão notável distinção, aceitando
ufanosa a felicidade que o céu lhe destinou.

Vozes – Parabéns! Parabéns!

Pereira – Falta-me só receber a confirmação da minha
dita da própria boca da formosa noiva…

Maurício – Um momento…devo dizer ainda uma palavra a Leonina; perdão…é
o último conselho de um pai. (Leva Leonina para um lado; Hortênsia
toma o outro lado da filha, ficando um pouco para trás). Minha filha,
eu corri há pouco para impedir uma promessa fatal, e cheguei tarde;
agora, porém, o momento é supremo; o teu sacrifício não
impediria o meu infortúnio…

Hortênsia (À Leonina) – O comendador jurou-me que salvaria teu
pai, Leonina!

Maurício (À Leonina) – No meio das maiores desgraças,
a tua felicidade seria para mim a única e a mais doce consolação…

Hortênsia (À Leonina) – E amanhã a vergonha e a desonra…

Maurício (À Leonina) – Consentir neste sacrifício fora
um verdadeiro crime; minha filha…não ousas falar…falo eu…

Hortênsia (Suspendendo Maurício) – E o estelionato, Maurício!…Salva
teu pai, Leonina!

Leonina (À parte) – Oh!oh!…é muito! Eu não posso mais;
meu Deus! Eu cumprirei o meu dever. (A Pereira) Senhor…comendador…serei…sua…ah!
(Desmaia).

Maurício – Minha filha!

Hortênsia – Leonina…Ela torna a si…foi a emoção…o
excesso de prazer…

Reinaldo (À parte) – Aquela conversa e este desmaio não podem
ser de bom agouro para o noivo.

Pereira – Minha senhora, eu vou dever-lhe a felicidade da minha vida…

Leonina – Senhor…

Maurício (À parte) – Sou eu que sacrifico a pobre vítima!

Fabiana – Poupemos o pudor da noiva; é uma impiedade martirizá-la
assim. (A Frederico) Vai tudo às mil maravilhas para nós.

Frederico (À Fabiana) – Só um estúpido como o comendador
deixaria de compreender o que se está passando.

Filipa – Não esqueçamos o baile: senhor comendador, Dona Leonina
ainda não é sua; pertence-nos durante esta noite; voltemos ao
baile; eu estou louca por encontrar de novo o dominó preto; já
viram o famoso dominó preto?…

Pereira – Dizem-me que tem intrigado a todos; mas eu ainda não o vi,
nem ouvi.

Lúcia – Nem eu, e ardo em desejos…

CENA XII

Os precedentes e Anastácio.

Anastácio – Pois ei-lo aqui, senhores!

Vozes – Oh! ainda bem! Ainda bem!…

Frederico – Todos estamos sem máscara; tira também a tua.

Anastácio – Ainda me assiste o direito de conservá-la no rosto.

Hortênsia – Sem dúvida,e pelo menos até a hora da ceia.

Frederico – Desse modo é fácil exercer uma certa superioridade;
porque conheces a nós todos, e ninguém ainda pôde descobrir
quem sejas.

Anastácio – Tanto melhor para mim; mas quem vos disse que vos achais
sem máscaras?…engano, senhores, todos estais mascarados!…

Reinaldo – Excelente! Excelente!

Pereira – Pois tira-nos as máscaras, dominó pretensioso.

Anastácio – Vós o quereis?…

Vozes – Sim! Sim!…

Filipa – É um máscara singular! Quando todos falam em falsete,
ele conversa em baixo profundo!

Anastácio – Então aí vai: Maurício, a placidez
do teu rosto é uma máscara; tu tens na alma o desespero. Também
não te devias chamar Maurício, porque o nome que te cabe é
a – Fraqueza.

Maurício – Oh!…

Vozes – Impagável! Impagável!

Anastácio – Hortênsia, a felicidade que ostentas é a
tua máscara; porque o medo te oprime, e o remorso te despedaça
o coração. Também não te devias chamar Hortênsia,
o nome que te assenta, é a – Vaidade!

Maurício – Senhor!…

Anastácio – Leonina, és a única que não trazes
máscara; porque o teu pranto e a tua aflição estão
a todos dizendo que és uma vítima.

Pereira – Que pretendes significar com isso, senhor dominó?…

Anastácio – Comendador Pereira, a tua nobreza é uma máscara;
porque tens tu mesmo consciência da tua nulidade. Também não
te devias chamar Pereira, o nome que mereces é a – Fatuidade.

Pereira – É…é uma insolência!…

Frederico – Qual! É sublime!

Anastácio – Coronel Reinaldo…

Reinaldo – Dispenso…dispenso, absolutamente; eu e minha filha queremos
guardar o incógnito…Anda, Lúcia…este dominó traz
o diabo no corpo. (Vai-se com Lúcia).

Filipa – Pois eu não o dispenso.

Anastácio – Pobre moça! Também a tua leviandade é
uma máscara; porque sofres tormentos incessantes; não te devias
chamar Filipa, o nome que te compete; é a -Inveja.

Fabiana – É demais!…

Anastácio – Frederico, esse alegre estouvamento que ostentas é
uma máscara; porque a tua alma está enregelada pelo egoísmo,
e o teu coração ressecado pela prática dos vícios.
Não te devias chamar Frederico, o nome que te assenta é a –
Libertinagem!

Frederico – Ah! Ah! Ah ! é incomparável, palavra de honra!…

Anastácio – E o teu agrado, a tua afabilidade, a tua lhaneza são
uma tríplice máscara, Fabiana! Porque no teu espírito
refervem negras idéias; não devias chamar Fabiana; o nome, que
te define, é a – Traição!

Fabiana – Miserável!

Pereira – E deixaremos assim impunes tantos insultos…

Maurício (Avançando um passo) – Protegido pela máscara
e pelo indulto da hospitalidade, acabasse de injuriar a todos nós;
perdeste portanto os teus direitos, e me impuseste o dever de arrancar-te
essa máscara, e de mostrar o teu rosto aos olhos…(Quer arrancar-lhe
a máscara e Anastácio suspende-lhe o braço).

Anastácio (A Maurício) – Amanhã, ao meio-dia, Maurício!…

Maurício – Oh!…(Deixa cair o braço)

Hortênsia – Este homem é um atrevido, e como tal deve ser expulso
da nossa casa…(Anastácio leva Maurício para um lado).

Anastácio (A Maurício ) – Nós vamos entrar de novo na
sala do baile, e tua mulher aceitará sem dúvida o meu braço…

Maurício (Aterrado) – Senhores…é um amigo…zombou de todos
nós…mas não houve ofensa…é um amigo…tornemos ao
baile…

Fabiana – Como?…depois dos insultos que nos dirigiu…

Maurício – É um amigo…já disse…respondo por ele…e
a prova é, que Hortênsia vai tomar-lhe o braço…

Hortênsia – Eu?…nunca!…

Maurício (À Hortênsia tremendo) – Toma-lhe o braço,
Hortênsia!…

Hortênsia (Tomando o braço de Anastácio) – Meu Deus!…
(Vão-se retirando).

Frederico (Dando o braço a Fabiana) – Hora e meia!…

Fabiana – Vamos. (Vão-se)

CENA XIII

Filipa e logo Henrique.

Filipa (Olhando em torno) – Hora e meia!…e alguém me falta…

Henrique (Aparecendo) – Hora e meia!…Estou pronto.

Filipa – O momento terrível se aproxima, um leve descuido poderia
ser-nos fatal; cuidado!

Henrique – Eu velo.

Filipa (À parte, apertando-lhe a mão) – E eu triunfo! (Vão-se)

CENA XIV

Reinaldo e Lúcia.

Lúcia – Mas, meu paizinho, isto é intolerável! É
revoltante!…

Reinaldo – Que queres, minha filha?…o primeiro dever do soldado é
a obediência, e principalmente agora que, segundo corre, estamos em
vésperas de promoção. O negócio é necessariamente
muito grave; a carta é do oficial de gabinete do ministro, e tão
atrapalhado escreveu que quase lhe desconheci a letra…

Lúcia – Ah, meu paizinho, tomara eu que caia este ministério.

Reinaldo – Olha, ele está por teias de aranhas…e ao primeiro vento,
vai-se como um passarinho; mas enquanto se demora no poleiro, é preciso
não faltar-lhe com as continências devidas. Às duas horas
devo estar em casa do ministro…tenho apenas tempo de deixar-te em casa e
de ir apresentar-me à Sua Excelência…Há negócio
grave…há negócios grave…anda…vamos…

Lúcia – Ai! Cá para mim não há ministro que valha
um baile.

Reinaldo (Saindo com a filha) – Não digo o contrário…porém
que remédio! Vamos…e…adeus, minhas contradanças!…

Lúcia – Adeus, minhas boas valsas!…(Vão-se)

CENA XV

Frederico, só – De máscara e com uma capa no braço.

Lá se foi o coronel, e ao menos durante o resto da noite carregará
com a responsabilidade do rapto de Leonina. É chegada a hora; cumpre
abrir o portão para facilitar a retirada. (Faz o que diz) Oh, que doce
peso vou carregar sobre os meus ombros! Que moça encantadora,q eu noite
de embriaguez e que bela herança a esperar! Se Dona Fabiana se lembrasse
de dar a comer uma boa dose de pastilhas ao tio e padrinho da minha noiva!…Mas…
é tempo de esconder-me…É célebre! Parece-me que a despeito
de todo este meu entusiasmo, estou começando a recear as conseqüências
deste passo…que puerilidade…avante!…vou ocultar-me entre jasmins para
roubar uma rosa. (Oculta-se por trás do caramanchão)

CENA XVI

Frederico, oculto; Fabiana e Leonina.

Fabiana – Venha…o ar da noite e o aroma das flores hão de fazer-lhe
bem.

Leonina – A cabeça pesa-me horrivelmente…como que os olhos se vão
fechando…

Fabiana – É um incômodo passageiro; havia de ser a emoção
que lhe causou o pedido do casamento…

Leonina – Não…não…mas é impossível resistir
ao sono que sinto; eu vou retirar-me para o meu quarto..

Fabiana – Não faça tal, o calor aumentaria este pequeno incômodo.
Olhe, descanse antes ao pé de mim, no banco do caramanchão.

Leonina – É melhor que eu me vá deitar…não posso…quero
dormir.

Fabiana (Puxando-a) – Venha…eu me sentarei a seu lado.

Leonina (Cedendo) – Oh! é muito! É demais!…

Fabiana – Venha!…(Leva-a para o banco do caramanchão; Leonina reclina-se
sobre Fabiana)

Leonina – Pesam-me os olhos…ah…se eu dormir…acorde-me…

Fabiana – Sim…descanse; esta aragem suave que sopra lhe fará bem,
durma bem, durma…no meio das flores…como um anjo…como…e dormiu! Dona
Leonina! Minha boa amiga! Dona Leonina! Qual! Dorme profundamente. Bem! A
hora da ceia deixa o jardim em solidão; eu tinha calculado com isso;
mas é preciso não perder um instante. Psiu! Psiu! É tempo.

Frederico (Aparecendo) – Pronto; dê-me esse precioso tesouro!

Fabiana – Espere, atemos-lhe primeiro este lenço na boca; podia por
acaso despertar, e, se gritasse, ficaríamos perdidos. (Atam o lenço)

Frederico – Sim…mas não magoemos estes lábios de rosa…

Fabiana – Como já está zeloso da sua noiva! Ei-lo atado de
leve; mas ao primeiro movimento aperte com força o nó.

Frederico – Hei de, durante quinze dias, ser o mais apaixonado e constante
dos maridos. (Tomando com cuidado Leonina nos braços)

Fabiana – Enfim…ei-la aí.

Frederico – Leonina! És minha!

CENA XVII

Fabiana, Leonina, Frederico, Anastácio e Henrique.

Anastácio – Ainda não.

Fabiana – Oh!…

Frederico (Descansando Leonina no banco e avançando com um punhal)
– Sempre ele! Miserável, morre!…(Ferindo)

Henrique (Suspendendo o golpe) – Assassino! Somos dois!…(Subjuga Frederico)

Anastácio (Arrancando a máscara de Fabiana) – Ei-la, a traição!…(O
mesmo a Frederico) Ei-lo, a libertinagem!… Infames, fugi!…(Vão-se
Fabiana e Frederico. Anastácio e Henrique correm a Leonina) Oh!…este
sono é sinistro…

Henrique – Leonina!…meu Deus!…permiti que nós a salvemos.

FIM DO QUARTO ATO

ATO V

Sala em casa de Maurício; ainda riqueza e luxo; agora porém
sinais de alguma desordem; sobre uma mesa vê-se uma pêndula de
primoroso gosto.

CENA I

Hortênsia, e logo depois Maurício.

Hortênsia – Só! Abandonada! Debatendo-me se esperança
nas garras da miséria e da vergonha! Oh! é horrível!
E minha filha…a minha Leonina…meu Deus! Se ao menos me restasse minha
filha!…(Silêncio) Todos os meus cálculos destruídos
como nuvens desfeitas pelo vento! Misericórdia, meu Deus!…(Vendo
entrar Maurício) E Leonina?…e nossa filha?…

Maurício – Perdi os meus passos, e as minhas lágrimas; ninguém
sabe de Leonina.

Hortênsia – O nome do infame raptor ao menos…

Maurício – Hortênsia, não houve rapto, houve fuga. Qual
é a mulher que se deixa roubar sem que solte um grito ou brade por
socorro?…Não houve rapto; Leonina fugiu-nos e fez bem; queríamos
sacrificá-la e ela salvou-se; fez bem.

Hortênsia – Mas desonrou-se…e desonrou-nos…

Maurício – Desonrados estamos nós desde o dia em que sem medir
os nossos recursos nos atiramos no golfão do luxo e da vaidade, e nos
carregamos de dívidas, que não podíamos remir. Hortênsia!
Olha aquela pêndula, ela marca onze horas; ao meio-dia, em ponto, virão
pedir-me o pagamento de uma dívida sagrada, e os meus credores terão
o direito de chamar-me ladrão; porque eu vendi escravos que tinha hipotecado,e
me utilizei do seu dinheiro, enganando-os com essa fraude vergonhosa.

Hortênsia – Oh, Maurício! E não temos esperança,
não temos recurso algum?…as minhas jóias?…

Maurício – As tuas jóias! Eis aí o seu produto; importaram
em mais de doze contos de réis, e deram-me por elas menos de cinco!Aqui
estão; uma gota d’água no oceano!

Hortênsia – Se te dessem algum tempo de espera, Maurício…

Maurício – E com que fim o pediria eu?…daqui a um ano estarei em
melhores circunstâncias do que hoje?… Não, Hortênsia,
basta de enganar; em minha própria consciência fui até
agora apenas um louco, e de agora em diante seria um velhaco.

Hortênsia – E te u irmão tão rico! Por que não
te abres com o mano Anastácio?…no fundo do coração
ele é bom.

Maurício – Meu irmão não pode ignorar em que situação
nos achamos, e se quisesse socorrer-nos, não precisava que eu lho pedisse.

Hortênsia – Falaste a algum dos nossos amigos?…

Maurício – Os nossos amigos! A minha desgraça já é
conhecida: bati em dez portas e achei-as todas fechadas, ou glacial frieza
naqueles que ainda me quiseram receber. Entendi que não me devia expor
a outras desilusões.

Hortênsia – Oh! o mano Anastácio tinha razão.

CENA II

Maurício, Hortênsia e Petit.

Petit – Senhor barão do rio Mirim não recebe ninguém
hoje.

Hortênsia – Também ele!…

Petit – Senhor conselheire vai sair fora de cidade quinze dias, madame não
faz nem recebe visitas.

Maurício – Como os outros!

Hortênsia – Abandonada de todos…

Petit – Oh! non, tem muito gente na escade.

Hortênsia (Com viveza) – Quem são?…

Petit – Mais de vinte caixeiros que traz contas, e faz bulha de mil diables,
dizendo que quer dinheiro por força.

Maurício – Irei falar-lhes imediatamente.

Petit – E da minha parte, eu também faz cumprimento a monsieur e a
madame, e pede três meses de salário que não recebeu,
e agora mesmo vai embora.

Hortênsia – Tal e qual como Fanny ainda há pouco!…até
eles nos abandonam!…

Maurício (Tira a carteira e dá dinheiro) – Toma; vai-te: pelo
menos não se dirá que caloteamos até os nossos criados.

Petit – Eu faz cumprimento e deseja muitas felicidades…

Maurício – Deixa-nos (Vai-se Petit). Estás vendo a triste posição
a que temos descido?…

Hortênsia – E Leonina?…e Leonina?…

Maurício – Quase que estimo que ela não tenha sido testemunha
de tão vergonhosas cenas.

Hortênsia – Até o mano Anastácio nos desampara!…

Maurício – Paciência. Espera-me, Hortênsia; vou falar
aos caixeiros e aos cobradores que me enchem a escada: vou corar diante deles,
e entregar-lhes todo o dinheiro, que me renderam as tuas jóias. (Vai-se).

CENA III

Hortênsia e logo Anastácio.

Hortênsia – Oh! meu Deus, quem dissera que eu me veria em tão
lamentável situação?!

Anastácio – Eu lho predisse, minha cunhada.

Hortênsia – Meu mano! Meu mano!…

Anastácio – Onde está a multidão de amigos que dia e
noite enchia as salas desta casa?…de que lhe serviram esses bailes, esses
banquetes, essa vida de ostentação, com que enganava o mundo?…
que é feito do seu orgulho de nobreza?…oh! as músicas dos
saraus e o ruído das festas trocaram-se pela gritaria que levantam
ali na escada os caixeiros insolentes; e aos aplausos dos parasitas sucederam
as maldições dos credores enganados.

Hortênsia – Meu mano, não redobre os nossos sofrimentos; as
desgraça que caiu sobre nós é horrível!

Anastácio – Essa desgraça é justo castigo da Providência.
Consulte a sua consciência, que é a voz de Deus que lhe fala
n’alma, e reconhecerá que ela lhe está dizendo: "Mulher,
tu és um exemplo doloroso que deve ensinar às esposas e às
mães a seguir o caminho da virtude. Mulher, tu foste a causa do infortúnio
de teu marido, porque o arrojaste no abismo da dissipação; tu
empurraste tua filha para a sua perda, porque lhe deste uma educação
perniciosa e fatal. Mulher, tu foste má esposa; mulher, tu foste mãe
desamorosa; tu foste parenta ruim: recebe portanto o merecido castigo. O teu
vício foi o luxo; fica pois miserável: a tua paixão foi
a vaidade; fidalga improvisada! Fica abaixo da plebe!…

Hortênsia – Oh! piedade! Compaixão!…

Anastácio – Olhe que não sou eu quem lho digo; é a sua
consciência que, sem dúvida, lho está dizendo.

Hortênsia – Tem razão, pragueje contra mim; mas nem por isso
desconheça que a nossa infelicidade é cruel e atroz.

Anastácio – Pelo contrário, eu a considero muito proveitosa,
e útil.

Hortênsia – O senhor zomba dos seus parentes no infortúnio:
é um homem sem generosidade, um homem mau!

Anastácio – Acima dos meus parentes está a nação
que pode colher benéficos resultados da lição que oferece
a sua desgraça. A sociedade acha-se corrompida pelo luxo e pela vaidade,
e um quadro vivo das conseqüências desastrosas dessas duas paixões
talvez lhe seja de prudente aviso. Em Maurício verá o homem
de medíocre fortuna e especialmente o empregado público, que
a ostentação e o fausto de alguns anos determinam a miséria
de todo o resto da vida; nas suas lágrimas de esposa e de mãe,
as mães e as esposas verão os horrores a que as pode levar o
abuso do amor de um marido extremoso e cego e a falsa educação
dada às filhas. A sua triste pobreza proclama a necessidade da economia.
A própria desonra de meu irmão ensina que desvairado pela paixão
do luxo, um homem honesto é capaz de arrojar-se até o crime.
As suas pretensões de nobreza, enfim, dizem ao mundo que o ouropel
não é ouro, que a máscara não é o rosto,
e que nobre, verdadeiramente nobre é só o que é virtuoso
e probo, o que é grande e generoso, o que é digno de Deus e
da pátria. Sofra pois, sofra! E de joelhos agradeça a Deus a
punição que recebe.

Hortênsia – E minha filha…a minha Leonina…

Anastácio – Sua filha é uma órfã, porque nunca
teve pais que a guiassem pelo bom caminho. Ela é órfã
e Deus é o pai dos órfãos.

Hortênsia – Oh! que homem este! Ao ver os nossos martírios somente
acha para dizer-nos palavras de amargor e quase de insulto!

Anastácio – Sou rude, senhora; mas a minha boca não sabe dizer
senão a verdade.

Hortênsia – Nem se lembra de que está humilhando e desprezando
os seus parentes!

Anastácio – Orgulhosa fidalga de ontem! Como trataste os parentes
de teu marido, durante dezoito anos de vaidade e de presunção?…que
fizeste há cinco dias, quando se apresentaram em tua casa teu cunhado,
o marceneiro, e teu sobrinho, o pintor?…prova, mulher, prova hoje por tua
vez o cálice da humilhação e do desprezo!

Hortênsia (Curvando-se) – Perdão.

Anastácio – É o castigo de Deus!

Hortênsia (De joelhos e com veemência) – Perdão!…perdão!…

Anastácio (Sentindo-se comovido) – Levante-se minha irmã; tarde
chega às vezes o arrependimento para os homens; mas nunca ele vem tarde
para Deus. Que tem feito desde que lhe roubaram sua filha?…

Hortênsia – Chorar.

Anastácio – As lágrimas são estéreis, senhora;
nas maiores aflições o recurso é o Onipotente. Reze.

Hortênsia – Sim…sim…tem razão.

Anastácio – Não derrame lágrimas sobre a terra; levante
os olhos para o céu e espere. Vá orar. Deus é grande.

Hortênsia – Eu vou; é dele somente que agora espero tudo. (Vai-se)

CENA IV

Anastácio (Só)

Pobre senhora! Fui talvez austero demais: a vaidade germina espontaneamente
no coração da mulher; mas é o homem que cultiva e dá
vigor a essa planta venenosa. O mais culpado é meu irmão,q eu
deveria ser o protetor e o guia de sua esposa; que devera ser forte e prudente,
que por sua fraqueza levou sua família a uma ruína completa.
Que será feito desse infeliz? Creio que ouço suas pisadas: observá-lo-ei
de perto. (Vai-se)

CENA V

Maurício ( Só – depois de alguns instantes de silêncio,
observa a pêndula).

A hora se adianta, pouco falta: ao meio-dia o meu opróbrio estará
consumado. Hão de vir enxotar-me desta casa, e à porta da rua
eu encontraria talvez soldados,q eu me levassem à prisão. Coberto
de dívidas, desonrado por um crime vergonhoso, desonrado pela desonra
de minha filha, lancei uma nódoa indelével no nome de meu pai
e na tenho esperança, senão na morte. Não hão
de arrastar-me a um cárcere; não curvarei a cabeça ao
peso de injúrias e de maldições; não!…porque
em lugar de um homem, só acharão um cadáver. Acabemos
com isto. (Vai buscar uma garrafa d’água e um copo, e deita naquela
o veneno que traz em um vidro). Era exatamente pelo suicídio que devia
terminar uma vida desgraçada e louca. Perdão, meu Deus! Minha
filha, perdão! Ora pois…bebamos a morte. (Pega na garrafa e deita
água no copo).

CENA VI

Maurício e Anastácio

Anastácio – Maurício!

Maurício (Estremecendo) – Quem é…Anastácio…(Larga
a garrafa e o copo)

Anastácio – Não ouviste um grito de tua mulher?…

Maurício – De Hortênsia…

Anastácio – Lembra-te ao menos dela, acode-a depressa.

Maurício – Hortênsia! Que mais devo sofre, meu Deus!

CENA VII

Anastácio (Só)

Um suicídio! Mas de que me admiro? Maurício não é
homem fraco? Na hora da adversidade a fraqueza mata-se para poupar-se ao incômodo
de lutar. Sublime recurso! Um extravagante enche-se de dívidas, e no
dia do vencimento das letras, suicida-se, pregando assim um calote a Deus,
além dos que pregou aos credores. Nos cálculos dos dissipadores
o único que ganha é o Diabo. Um suicídio! Que bela idéia!
O homem despoja-se da vida a pretexto que a honra a isso o briga. Mentira!
A honra é o cumprimento do dever. Mas o extravagante abre com o punhal
ou com o veneno o caminho do inferno, e no dia seguinte os jornais referem
a história da loucura e do crime tão romanescamente, que fazem
a outros loucos vontade de imitar aquela ação heróica!…(Deita
fora a água da garrafa e enche esta de outra água). Muito bem:
vou apreciar os efeitos da água da Carioca.

CENA VIII

Anastácio, ao fundo. O comendador Pereira.

Pereira – Chego deitando a alma pela boca…não importa; bato,ninguém
aparece; grito, ninguém me responde: eis o que importa muito. Então
certos são touros! É uma indignidade e uma infâmia! O
homem está perdido, deve os cabelos da cabeça, não tem
onde caia morto, e os meus três contos de réis foram devorados!
Deixaram-me sem mulher e sem dinheiro! Ainda se eu me casasse com a moça,
sofreria com paciência o prejuízo; mas enquanto o pai rebentava
financeiramente, a filha batia as asas amorosas, e ambos me pregavam dois
calotes desastrados; nada, ao menos quero os meus três contos de réis…isto
é uma patifaria, este homem é um…

Anastácio – Acabe!

Pereira – É um…sim…um…um infeliz!

Anastácio – E o senhor que é?

Pereira – Eu?…eu…sou um comendador…

Anastácio – Não! É somente um miserável!

Pereira – Senhor Anastácio…Anastácio…Anastácio não
sei de quê…

Anastácio – Aquele que durante anos foi recebido no seio de uma família
honesta, e por ela tratado como um amigo; que jantou cem vezes à sua
mesa, que foi objeto de atenções e cuidados penhoradores; que
gozou de sua confiança inteira; que mereceu, enfim, ser considerado
digno de receber em casamento uma jovem cheia de encantos e virtudes, o anjo
querido de seus pais,e que no momento em que essa família cai em desgraça,
vem insulta-la, lançar-lhe em rosto a sua miséria, pelo receio
vil e mesquinho de perder três contos de réis, é…oh!
não é um malvado, não; não é um tigre;
é menos do que isso, é um homem vil e abjeto!…é um
réptil asqueroso, em que nem mesmo se pisa sem repugnância: não
tem coração, não tem alma, não tem… não
tem ao menos dignidade fingida para revoltar-se, quando ouve as injúrias
que lhe estou atirando ao rosto!

Pereira – Tudo isso é bom de se dizer; mas três contos de réis
é dinheiro! E se ao menos…

Anastácio – A sua letra!

Pereira – Ei-la aqui; mas que pretende fazer?…

Anastácio (Tira a carteira e dá dinheiro) – Rasgue-a! que não
toque nas minhas mãos um papel que passou pelas suas. (Pereira rasga
a letra). Dou-lhe minha palavra de honra, que a sua alma vale este trapo que
piso com os meus pés!

Pereira – Sim…porém a emoção…a fadiga…o calor…com
licença, um copo d’água…(Bebe) Ah! Sinto-me um pouco melhor.

CENA IX

Anastácio, Pereira, Maurício e Hortênsia.

Hortênsia – Meu mano, Maurício imitou-me; rezou também.

Maurício – Senhor Comendador…

Pereira – Meu caro amigo…minha senhora…

Hortênsia – Ainda bem, senhor comendador, que Vossa Excelência
não pertence ao número daqueles que esquecem os amigos na adversidade.

Pereira – Oh! essa é boa! Isso não está no meu caráter.

Anastácio – Mas sempre é bom que saibam o motivo que trouxe
aqui o senhor comendador.

Pereira – Não é preciso. (A Anastácio) Por quem é…poupe-me…

Anastácio – Senhor comendador, o baile de máscaras foi ontem.

Pereira – Sinto-me de novo incomodado…que tonteiras diabólicas…mais
um copo de água…(deita água no copo).

Maurício – Não beba! Não beba!…

Pereira – Então por quê?…

Maurício – Essa água…

Pereira – Acabe…esta água…que tem esta água?

Maurício – Oh! eu tive a idéia infernal de suicidar-me!

Hortênsia – Maurício!

Maurício – Essa água está envenenada!…

Pereira (Deixando cair o copo) – Misericórdia! Eu já bebi!

Hortênsia – Senhor comendador…

Pereira – Minha senhora, seu marido suicidou-me!

Maurício – Isto é horrível!

Pereira – Horribilíssimo! Já sinto dores pela barriga…Oh!
um médico! Chamem um médico! Eu quero um contra-veneno. Diga-me
depressa: qual foi a substância assassina?

Maurício – Arsênico…

Pereira – Arsênico! Estou morto: pois se eu já estou reconhecendo
todos os sintomas do arsênico! Um médico! E ninguém me
acode! Vou eu mesmo…um médico! Um médico! (Vai-se)

CENA X

Anastácio, Maurício e Hortênsia.

Maurício – Que fatalidade!

Anastácio – Não se assustem, a água que ele bebeu é
inocente; eu destruí os preparativos para o último ato de loucura
de meu irmão.

Maurício – Ainda bem!

Anastácio – E não te envergonhas, Maurício, do atentado
que ias cometer contra Deus e a sociedade? Nem te lembrou a esposa?

Hortênsia – Ingrato!

Anastácio – Nem a filha…

Maurício – Minha pobre Leonina! Se eu a tivesse junto de mim resistiria
com mais coragem ao golpe tremendo da fortuna.

Anastácio – E nada sabes ainda a respeito de Leonina?

Maurício – Ignoro o principal. Sei que essa indigna Dona Fabiana e
Frederico, seu infame cúmplice, estavam a ponto de realizar um plano
de antemão forjado, raptando minha filha, quando apareceram dois máscaras
que arrancaram a vítima de suas garras; mas depois eles por sua vez
me roubaram Leonina. Eis tudo quanto pude descobrir; e além disto,
nada…nada mais!

Anastácio – Maurício, tu desprezaste pelos falsos os teus verdadeiros
amigos, e eles se vingaram de ti, salvando tua filha.

Hortênsia – Onde está minha filha?

Maurício – Anastácio! Minha filha…onde está minha
filha…

Anastácio – Junto de sua tia…da mulher de Felisberto…

Maurício – Ah! Que felicidade tão grande! E quem a salvou?…

Anastácio – Olha!…

CENA XI

Os precedentes, Leonina e Henrique.

Leonina (Correndo a abraçá-los) – Meu pai!…mãe!…

Hortênsia – Minha filha!

Maurício – Leonina!…

Anastácio (À parte) – Pior está essa…penso que já
vou ficando com os olhos molhados…pois se eu sou um chorão!…

Maurício – E o teu salvador…onde está ele?… (Vendo-o) Henrique!

Hortênsia – Meu sobrinho…nos meus braços. (Abraça-o)

Anastácio – Sem a menos dúvida, a desgraça dá
juízo aos parvos…

Leonina – Minha mãe, meu primo é o mais nobre e honrado dos
cavalheiros…

Anastácio – Saiu ao pai que é tal e qual, apesar de ser mestre
marceneiro.

Henrique – Cumpri em tudo o meu dever de parente e de homem de bem.

Maurício – Henrique, desprezei-te, quando me iludia ostentando grandezas
fictícias, e hoje na mais cruel adversidade, hoje na miséria,
e quase perdido pela desonra, eu te peço que sejas o esposo e o protetor
de minha filha!

Hortênsia – Chama-me tua mãe, Henrique!

Henrique – Juro que farei a felicidade de Leonina! E de joelhos eu vos agradeço
a esposa que me dais, e que vai transformar a minha vida, em um paraíso!

Maurício – Meu filho!

Henrique – Oh! meu pai! Minha mãe!…(Abraçam-se).

Leonina – Meu padrinho, como somos ditosos!…

Maurício – Ditosos!…(Dá meio-dia – Aterrado) Meio-dia!…

Hortênsia – Meio-dia…é a hora terrível…

Maurício – Justo céu! Sobem a escada…

Anastácio – Pois que subam! Agora podem subir…

Hortênsia – Meu mano…

Anastácio – Pois que subam…repito!

Leonina – Que é isto?…

CENA XII

Os precedentes e Felisberto.

Maurício – Felisberto!

Anastácio – Felisberto!

Leonina – Meu tio!

Henrique – Meu pai!

Hortênsia (À parte) – Eu tremo de confusão…

Felisberto – Bom dia, Maurício; Deus a guarde, minha senhora.

Anastácio – Com que cara vens tu, Felisberto?

Felisberto – Venho dizer-te, Anastácio, que tu és um homem
mau.

Anastácio – Heim?…como é lá isso?…

Felisberto – Homem mau, sustento ainda. Tu és rico, mesmo até
muito rico; não és casado, nem tens filhos, sobram-te pois os
recursos; nosso irmão te recebia em casa, e és o padrinho de
sua filha; no entanto esquecido de nossos pais, do nosso sangue, do nosso
amor de crianças, e do mais santo dever, tu consentias que nosso irmão
passasse pelo maior vexame do mundo! És um homem mau, um avarento,
um parente ruim. (A Maurício) Maurício, foi somente há
uma hora que eu soube de tua desgraça; eu sou um pobre marceneiro,
e trinta e cinco anos de economias deixaram-me apenas ajuntar estas oitos
apólices de conto de réis. (Apresenta-as) Eu as reservava para
meu filho…mas vejo que precisas muito…oito contos de réis talvez
não cheguem…diabo! não tenho mais vintém; arranja-te,
porém, conto com isto, enquanto eu trato de vender a minha casinhola,
que nos dará ainda uns cinco ou seis contos. Nada de cerimônias…por
fim de contas tu és meu irmão…anda…toma…aceita, Maurício;
aceita…e meu filho que trabalhe…

Maurício (Chorando) – Felisberto!…

Leonina (Abraçando Felisberto) – Meu querido pai!…

Henrique (Abraçando-o) – Abençoado sejas, meu pai!…

Felisberto (Confuso) – Que algazarra por uma coisa tão natural!

Hortênsia (Curvando-se) – Meu irmão, perdoe-me o mal que lhe
tenho feito!

Felisberto – Minha senhora…então que é isto?…o passado,
passado; viva Deus! A mulher de meu irmão é minha irmã…Abro-lhe
este peito… é rude, é grosseiro, mas venha…pode vir que
é um peito de madeira de lei! (Abraça Hortênsia)

Anastácio – E eu então, Felisberto?

Felisberto – Toma lá (Indo a ele) Mas tu és um homem mau.

Anastácio – Alto, senhor mestre marceneiro! Dobre a língua,
guarde a suas apólices; o que veio fazer, já está feito.

Leonina – Meu padrinho…

Anastácio (Dando papéis a Leonina) – Toma esta escritura de
hipoteca, e estas letras, Leonina, entrega-as a teu pai, e dize-lhe que para
o futuro tenha mais juízo.

Hortênsia – Maurício! De joelhos aos pés destes dois
anjos! (Vão ajoelhar-se aos pés de Anastácio e de Felisberto,
e eles os suspendem)

Anastácio – De joelhos, a Deus, meus irmãos! De joelhos a Deus
e agradecei-lhe a lição que recebestes, e a felicidade de vossa
filha!

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