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João do Rio
Capítulo I: Recepção íntima
— Mais um bolo?
— Obrigada. Ouvimos o Chagas. Está famoso.
— Oh! Dando apenas as últimas alcunhas do Lírico…
— Aposto que não sabe…
— A do presidente ou a do cardeal?
A Sr.ª de Melo e Sousa parou, olhando a sala. Seria inconveniente perguntar
a alcunha de alguma pessoa presente. A Sra. de Melo e Sousa era muito bem-educada
desde criança.
— Por exemplo, a do Florimundo – atalhou a menina Laura Gomes, que
não era bem-educada.
— Ah! essa é o puzzle – fez o Chagas olhando o sujeito ao fundo.
— Por quê?
— Ora! Porque esgota a paciência dos credores e é mudo
como um peixe.
As senhoras fingiram rir. As primeiras alcunhas tinham sido mais felizes.
Era, naquele inverno, a recepção inicial da Sra. Gomes Pedreira.
Mme. Gomes Pedreira, Malvina para os íntimos, com os seus cinqüenta
anos discretos posto que adiposos, afadigava-se em recepções.
Com dois filhos apenas, Jacques, cujo curso de Direito se completara dias
antes, e Gastão, ainda num equiparado de padres, distante, era ela
quem dirigia o serviço, preparava os bolos nas pratarias, revolucionava
a pouca vontade evidente dos criados. Podia ter uma governante. Era, porém,
uma questão de hábito. A força do hábito obrigava-a.
Todos os anos invariavelmente em Petrópolis, decidia não abrir
mais a sua sala do Rio em dias certos. Em seguida, continuava a fazer o que
fizera no ano anterior. Continuar é ainda uma das ações
mais fáceis deste mundo, que a calúnia chama hostil. Assim,
Malvina descia de Petrópolis sempre numa linda manhã de abril,
acompanhada por muitas malas e por duas criadas. A sua primeira frase era
invariavelmente a mesma:
— Meu Deus! que calor faz cá!
Em seguida tomava um carro. Ao chegar a sua residência de Botafogo,
vasto casarão apalacetado, presente de noivado que o marido já
hipotecara, repetia também invariavelmente:
— Santo Deus! Em que estado puseram a minha casa!
E encetava uma arrumação geral. Aborreciam-se todos os criados,
os patrões, ela principalmente, e, acabada a arrumação,
a casa era cada vez mais a mesma coisa. Ao cabo de um mês, não
tendo outro meio para se enfezar e enfezar os serviçais, marcava o
dia da abertura semanal dos seus salões. Temperamento.
Naquele ano fora tal qual. A Sra. Gomes Pedreira passara quatro meses desesperados
na cidade de verão. Como seu marido, o célebre advogado Gomes
Pedreira, consultor de várias companhias inglesas, era um fino homem,
muito relacionado, a esposa vivia numa roda-viva, sempre a aceitar e oferecer
(oferecer mais, sempre), almoços, jantares, festas a ilustres conhecidos,
quase desconhecidos e mesmo por conhecer. Gente bem cotada, eles! Isso irritava-a.
Seria decerto pior entretanto se não tivesse tantas relações.
Ao demais, os rapazes inquietavam-na. Gastão, em férias, alugara
um cavalo e um automóvel (ambas as conduções ao mesmo
tempo), e fizera por questões de recibos escândalo num certo
campo de lawn tennis da melhor roda, em que os freqüentadores se dividiam
em dois grupos: o das trouxas e o das assanhadas. Enquanto o último
rebento agitava, de tal sorte o Piabanha, Jacques teimava em ficar no Rio,
no calor do Rio! com o plano vulgar de cair na pândega. E fora ao exagero,
levara ao próprio lar um bando de estróinas e de mulheres alegres,
a que oferecera uma ceia naturalmente alegre. Nunca na sua vida a pobre senhora
tivera emoção tão violenta como quando soube da cena…
— É um escândalo!
— Sabes lá se eram alegres? – dizia o esposo conciliante. –
Depois, simples boatos!
— Não, desta vez parto.
Desceu quatro dias antes do que era costume, modificou a sua frase inicial
da Prainha, porque ao chegar logo exclamou:
— Nunca senti tanto calor na minha vida.
E foi tudo. Em casa, como nada havia de anormal, não teve coragem
para falar a Jacques, receosa de perder uma hipotética força
moral, assim como não se resolvera a cortar em Petrópolis o
cavalo, o automóvel (ambas as conduções ao mesmo tempo)
e as insolências sociais do jovem Gastão. No fundo, muito boa
senhora. Um mês depois, abria os salões. Era aborrecidíssimo,
mas sentir-se-ia diminuída se o não fizesse. Que diria o mundo?
As recepções de Mme. Gomes Pedreira representavam de fato várias
coisas solenes. Em primeiro lugar a tradição. Há dez
anos, Malvina, em pleno outono sem fatuidade, tinha o seu dia, era das raras
antes da Avenida. Além do mais a sua casa fazia-se uma espécie
de campo de honra neutro-conservador. Lá se encontravam todos os capazes
de ter vencido ou de vencer, e os capazes se davam o ar do melhor tom. O palacete,
todo num pavimento assobradado, em meio do jardim parecia bem. Nesses dias
de importância abriam ã sociedade que os visitava, o grande salão
da frente, com janelas para a rua e muito pouco mobilado, como à espera
sempre de um baile imprevisto, o pequeno salão com um piano de cauda
e algumas tapeçarias autenticamente falsas e a casa de jantar, em estilo
manuelino sobre embuia, presente de uma associação portuguesa
ao advogado. Não era bem um five-o’clock. Nem uma sauterie. Nem uma
recepção. Tinha dos três – era o dia de Mme. Pedreira.
Não raro as senhorinhas e os rapazes faziam, isto é, acabavam
por fazer umas valsas no grande, nu e encerado salão. Os sandwiches,
os doces, os bolos, os licores e os vinhos da mesa da casa de jantar desapareciam
infalivelmente. Mas na pequena sala aconchegada, servia-se o chá com
um ar distinto. Nesse dia, Malvina estava intimamente satisfeita. Os doces
estavam a ser muito gabados, o criado, um italiano novo, servia bem e havia
na peça intermediária entre a dança e a comedoria a nata
das suas relações. Era como se estivesse no Lírico, numa
noite em que não se canta nenhum drama de Wagner.
Entre as senhoras de raça – é tão difícil fazer
questão de raça! – havia a Viscondessa de Muripinim, encardida
relíquia da monarquia, chegada de Cannes, onde acabava de assistir
ao batizado do príncipe herdeiro, o primeiro rebento de D. Luis, que
ela conhecera menino; a Sra. de Melo e Sousa, de uma estirpe de diplomatas,
a mais inteligente dama da sociedade. E ao lado dessas senhoras, as três
Praxedes, esposa e filhas do negociante Praxedes, a encantadora Eleonora Parckett
e a baronesa sua mãe, a Viuvinha Ada Pereira, Graça Feijó,
a mais parisiense das cariocas, mulher de um banqueiro e filha de um milionário,
o casal Gomensoro, ele secretário de Legação, ela Etelvina,
com o ar de Mme. Benhe Bady, nas peças de Bataille, cantando deliciosamente
e tendo o cuidado de elevar o seu refinamento a ser falada nos jornais como
Etelvina Gomensoro, née d’Ataide; a condessa do Papa Rosalina Gomes,
perfeita de ingenuidade, uma verdadeira criança; a sempre modesta esposa
do jornalista proprietário Altamiro, com um vestido que devia ter custado
no Paquin muitos bilhetes azuis e; a fascinante Luísa Frias, um tânagra
vivo, coberta de pérolas (dizem que muitas falsas), porque é
moda em Paris a pérola, assim como Gina Malperle, a filha do eterno
cônsul do Cobrado, com corais rosas e brilhantes para conservar o ar
da 5.ª Avenida, o tom fufly, o aspecto americano; a bela Mme. Andrade
(bela há vinte anos irrevogavelmente!), a bela Mme. Gouveia (bela há
dez anos fixamente!), a bela Mme. Zurich (bela há cinco anos só
felizmente), três irmãs irreconciliáveis no predomínio
da beleza. Quanta gente! Mme. Pedreira consegue mesmo mostrar na sua sociedade
a jovem esposa milionária do Deputado Arcanjo dos Santos, rio-grandense,
filha de um estancieiro poderoso. Como tem um vestido acintosamente caro e
os seus lindos olhos mostram uma gula desdenhosa pelo meio, Alice dos Santos
só encontra cordialidade natural na Sr.ª de Melo e Sousa.
— Sou muito medrosa. Só estive em Buenos Aires.
— E em Paris?
— Vou agora, V. Exa. não imagina a vontade…
A Sra. de Melo sorri boamente.
— Não me dê excelência, por favor.
— A culpa é de meu marido, que é deputado. Em casa tudo
é excelência.
— E que tal a recepção?
— Olhe, faz-me o efeito de um teatro.
— As recepções são sempre um primeiro ato de peças
que principiam ou já acabaram quando elas começam…
Alice olha. Realmente. No salão de jantar, devorando sandwiches as
Praxedes, a mãe e as duas filhas fazem o seu flirt com o impecável
Bruno Sá e o lindo Dr. Suzel, lindo como um pajem de gravura dos contos
de Boccaccio. A Condessa Rosalina come há vinte minutos a terça
parte de um bolo, conversando com o ex-dom-juan Anselmo de Araújo,
sempre petulante e juvenil. No salão, várias meninas e vários
rapazes, to dos muito bem vestidos, com um ar de superioridade, desconfiado
de que essa superioridade venha a desaparecer de um momento para outro, valsam.
É uma valsa francesa, feita para os casinos de Nice e da Riviera, –
valsa escrita decerto por maestros divorciados. Às janelas há
nomes ilustres, e neste mesmo salão, onde Graça Feijó,
Etelvina Gomensoro, née d’Ataíde e o distinto Gomensoro fazem
a um canto uma partida de bridge, para não perderem a linha parisiense,
ela vê, rindo com Gina Malperle, um homem magro, bem vestido, e um velho
alto de monóculo.
— Quem são?
— Não conhece? Godofredo de Alencar, homem de letras que se
dá com políticos de importância. O outro é o Barão
Belfort, tipo muito curioso, que posa para alarmar toda essa gente.
— Ricos?
— O primeiro de esperanças. O segundo solidamente, o que é
raro por cá.
A valsa cessara. Quem tocara, tendo ao lado o Chagas a fingir que virava
as páginas, fora a jovem Laura da Gama.
— Também quero eu um pouco!
— Estava tão bom.
— Tão bom o quê?
— A valsa.
— Olhe, venha cá, ainda não lhe disseram o seu apelido?
— Já.
— Aposto que não.
— Mas não admito que diga, porque digo o seu.
— Ora!
— Qual é? – interrogou Alice.
— Não indague, porque diz o seu. É um traidor!
Carlos Chagas, Charlot para todos, de idade e de profissão indefinidas,
era um elemento mundano de primeira ordem. Como estava em moda darem-se uns
aos outros alcunhas, deram-lhe o apelido de "Ganhou o macaco". Esse
apelido tinha o dom de irritá-lo. Era também a única
coisa que o irritava. Diante do olhar de Alice em que se anunciavam todas
as possibilidades e todas as vontades, ao mesmo tempo que considerava a estancieira
parlamentar pelo lado prazer, estava com o apetite de dizer ali a insolente
alcunha de cada uma das três senhoras. Calou-se porém. O buffet
renovara de apreciadores. O Dr. Justino Pedreira aparecia a conversar com
dois cavalheiros que pareciam ricos e influentes. Charlot tinha um grande
respeito por quem parecesse rico ou influente. E de um deles lera nos jornais
da oposição que ficara com trezentos contos de uma tremenda
roubalheira aos cofres do Estado. Era um homem digno de atenções.
Não só dele. De toda gente. E de outro lado, enfim fatigada
de fazer o bridge, Etelvina Gomensoro, née d’Ataíde, surgia
pelo braço de seu marido, rindo como se estivessem em casa ou fossem
os dois os subprefeitos da "Sociedade onde a gente se aborrece".
— Estão alegres?…
— Não, imaginem vocês o Comendador Praxedes…
— O escafandro? – indagou logo Charlot.
— Ah! sim, o escafandro, que quer por força aprender o bridge
com a Graça.
— Nunca aprenderá.
— Um jogo chic.
— Pois claro.
— E se nos desse o prazer de ouvi-la um pouco?
— A sua recepção está tão alegre.
— É preciso elevá-la. Nestes dias da Malvina tenho o
receio de convidar muitos artistas para que as recepções não
tenham urna importância que não devem ter e não passem
o limite da intimidade. Mas quando no nosso meio há uma grande artista!…
— É o céu que a envia.
Etelvina Gomensoro, née d’Ataíde, bebia a ambrosia do elogio
como uma verdadeira artista e o jovem Gomensoro, escanhoado, com o aspecto
simpático de um espanhol educado em Londres, irradiava esse mesmo prazer.
Em torno, o Feijó e a linda esposa, Mme Gomes Pedreira com a sua pesada
autoridade de dona de casa, a fascinante Luísa Frias pediam um trecho
de música. Mesmo Mme. Rosalina, Condessa Gomes, dizia com a sua irredutível
ingenuidade:
— Eu gosto tanto de música; é tão romântico!
E o Barão Belfort, o homem mais viajado do Brasil; e Alencar, Godofredo
de Alencar, que escrevia crônicas mundanas de um sabor tão estrangeiro,
pediam discretamente. Charlor bateu palmas.
Então, Etelvina, foi até o piano. Houve um silêncio.
Ela ia cantar numa toada de sonho, os versos de Sully. E a sua frase surgiu
como um bordado de ouro na renda da música:
Quand on est sous l’enchantement
D’une faveur d’amour nouvelle
On s’en défendrait vainement
Tout le révèle.
Neste momento, com um passo macio e seguro, a fronte lisa de moço,
os cabelos negros tão passados de escova e concreto que pareciam de
ônix, o frack de uma linha impecável, a gravata branca com uma
pérola escura, surgiu à porta da sala de jantar um jovem. Mme
de Melo e Sousa acenou-lhe com o leque. Ele adiantou-se devagar até
o canapé em que a ilustre dama conversava com a admirada Alice dos
Santos. As suas mãos largas e bem tratadas estenderam-se para ambas
num gesto natural de força íntima. Depois sentou-se entre as
duas.
— Já se conheciam? – indagou Mm’ de Melo e Sousa.
— Desde anteontem.
— Foi no Lírico.
— Psiu, falem baixo…
A voz de Etelvina enchia a sala d’amor:
Comme fuit l’or entre les doigts
Le trop plem du bonheur qu’on sème
Par le regard, le pas, la voix
Crie: Elle m’aime.
A Melo e Sousa sussurrou:
— E eu que antegozava o prazer de apresentá-lo! Eis Jacques
Pedreira, um menino de maus costumes!
Alice dos Santos sorria. A ave do paraíso que pousava nos seus cabelos,
graças a uma modista inimiga dos horizontes, arfava. E Jacques sentado
entre o outono e o verão, cumprimentava, com um alegre riso os seus
amigos; o Barão Belfort, Alencar, que dera uma tão linda nota
do curso que ele não fizera e a bela Mme. Gouveia, e a belíssima
Mme. Andrade, e Graça, como que abstrata…
Nas recepções de Mme Pedreira, a senhora artista era um dos
números certos. Todos os números eram mais ou menos certos.
Havia a chegada, as conversas gerais de uma desoladora e importante insignificância,
as conversas nos pequenos grupos em que seriamente as damas conversavam ou
com os próprios flirts ou dos flirts alheios, algumas valsas, passeios
aos bolos, um número de música e um número de literatura,
em geral versos. O número de música dava ensejo a conversarem
baixo d’outra cousa, negócios, mal do próximo. O literário
era um sinal de partida. Etelvina Gomensoro, née d’Ataide, era deliciosa,
porém.
La vie est bonne, on la bénit
On rend justice à la nature!
Uma prolongada salva de palmas. A cantora fez um cumprimento quase plongeon,
como se estivesse em Rambouillet, diante do Imperador. Era admirável.
Um movimento geral estabeleceu-se que parecia de partida em parte. Malvina
Pedreira deu com seu filho.
— Até que enfim! onde esteve até agora?
— Dormindo, mamã.
— Vejam vocês. Um homem de dezoito anos dormindo até às
cinco da tarde!
— Perdão, mamã, até às duas.
— É que entra pela manhã em casa. Um bacharel!
— Desde anteontem.
— Verdade é que o barão diz que não tens culpa
alguma… Ah! minha querida, veja se me dá juízo ao Jacques…
E partiu solene. Alice dos Santos estava de pé. A ilustre Melo e Sousa
sorriu.
— Esta Malvina acaba nomeando-me governante moral da casa… Jacques
estava sério, com as mãos nos bolsos, sério e confidencial.
— A mãe, não tem nada. O velho é que é.
Imaginem! Quer que eu vá trabalhar para o consultório! Eu! Já
tem lá uma escrivaninha.
— Mas então, advogado…
— Não tenho culpa nenhuma… Então, D. Alice, como vai
de cidade?
— Se nos levasse a beber um cálice do Porto?
— Enquanto é tempo.
Alice precipitou-se. Mme. de Melo e Sousa acompanhou-os a querer desvendar
a significação da frase, porque ela tinha de fato, ou podia
ter três significações. Enquanto é tempo porque
a recepção ia acabar. Enquanto é tempo porque talvez
não houvesse mais nem migalha. Enquanto é tempo de escapar aos
versos do Dr. Inocêncio Guedes, rico político de Goiás,
que ia decerto recitar o seu fatal Smart-Ball.
Smart-Ball, epíteto galante de uma sociedade…
Na sala de jantar parecia, de resto, ter passado a possibilidade de um batalhão
argentino. Jacques que se olhara num dos espelhos, à exclamação
pesarosa de Alice, não teve a menor contrariedade. Enfiou as mãos
nos bolsos da calça e disse:
— Não tem nada, acompanhem-me; deve haver na outra sala.
Entraram na sala de jantar de todos os dias, modestíssima, dando para
a copa e para um terraço, de onde se debruçavam também
as cozinhas. Mme. de Melo e Sousa gozava aquele aplomb do seu querido Jacques.
Alice parecia acanhada. E o querido Jacques bateu palmas, mandou vir o vinho,
marmelada.
— Se tomassem um caldo? Só aturar uma recepção
inteira da mamã! O Barão Belfort diz que o prepara para não
sair do purgatório nunca mais. – Depois pegando a mão de Alice:
– Bonitos esses brilhantes. São de cá?
— São.
— Jóias compram-se em Paris. Tomam o caldo?
Nenhuma quis o caldo. A milionária estancieira aproximou-se do terraço.
— Está a tarde bonita.
— Está – fez Jacques, que aborrecia a poesia.
— Que é aquilo?
— É um telheiro, que serve de garage. O Jesuíno…
— Que Jesuíno?
— O velho. Tem só um automóvel, aliás sempre em
conserto. Mas é bonito. Quer vê-lo?
Era extravagante acabar aquela recepção no quintal. Mme. de
Melo e Sousa estava seduzida. As duas damas desceram, erguendo muito os vestidos.
Jacques, absolutamente sério, mostrou o telheiro e o automóvel,
como um jovem lord inglês mostraria os seus domínios, parques
e castelos. Em seguida continuou:
— A senhora é do Rio Grande. Não há árvores
grandes por lá, pois não?
— Quem lhe disse?
— Mas não há uma jaqueira, uma grande mangueira…
— A jaqueira vejo eu – interrompeu a notável Melo e Sousa.
— É porque a mangueira fica ao fundo. Tem até um balouço.
— Para você?
— Não. Eu faço barra fixa, paralelas.
Realmente, ao fundo, havia uma vasta mangueira, com um balouço. Os
três olharam para a árvore com poderosa admiração.
Parecia que nenhum enfrentara assim de perto com uma espécie botânica
tão grande. Depois, Alice soltou uma gargalhada.
— De que ri?
— Rio, porque gostaria de baloiçar-me. É uma idéia
louca.
— Pois trepe.
— Perdoe V. Exa. como diz meu marido, mas já, seria inconveniente.
— Ora menina, por quê? É só imaginar que a recepção
da Malvina é uma garden party.
— D. Argemira é capaz de imaginar o dia de mamã até
um baile de máscaras.
— Jacques, por quem é, sou a melhor amiga de sua mãe.
— Por isso mesmo…
Com autoridade sentou Alice no baloiço, arrumou-lhe os vestidos, aliás
inconvenientes para semelhante exercício e impulsionou o balanço.
A rio-grandense ardente dava gritinhos, não de medo – uma rio-grandense
nunca tem medo – mas de prazer. Argemira de Melo e Sousa colocara o seu face-à~main
para admirar melhor os vôos do lindo pássaro. Jacques não
parecia ter feito outra cousa na sua vida senão empurrar baloiços.
Era magistral. E, de repente, diante deles, precedidos de um criado em mangas
de camisa, cujo sorriso parecia o de um agente secreto, surgiram, Arcanjo,
marido e deputado, e Mme. Pedreira, mãe e anfitriã.
D. Malvina tinha já o sorriso verde da máxima contrariedade:
— Com que então aqui?
— Os três!
— E nós a procurá-los. O Dr. Arcanjo estava assustadíssimo.
Eu e seu pai também.
— Oh! – conciliou Mme. de Melo e Sousa – nem pensávamos que
davam pela nossa falta. O Inocêncio ia recitar…
— Recitou, recitou todo o Smart-Ball.
— É a sexta vez que ouço aquele trabalho – atalhou Arcanjo.
– Muito mimoso.
— Imensamente. E estamos a procurar D. Alice os dois, porque não
há mais ninguém.
— Que me dizes! Acabado o dia? Então viva o dia!
— Valha-me Deus! Uma criança este meu filho. Que diz, doutor,
não é da minha opinião?
Arcanjo, habituado ao Congresso, sem saber a opinião da venerável
senhora, curvou-se:
— Sou da opinião de V. Exa..
Fazia como na Câmara. Argemira riu. O frio desapareceu.
— Mas não fiquemos aqui. Levemos D. Alice até à
porta…
Jacques deu o braço a Alice. Viu que devia dar o outro a Argemira.
Seguiu com as duas damas, pensando que seu pai o esperava para uma hora de
ordens e conselhos. Até perdia o prazer de ser amável!… E
enquanto pela aléia do jardim assim conduzia duas damas, sua mãe,
atrás, falava seriamente com o Deputado Arcanjo.
— Cinco horas, doutor. Quase noite. Como fatigam as recepções!
Ah! se pudesse ver-me livre desse trabalho!
— V. Exa. tem razão, realmente o convívio social instrui,
mas estafa…
Capítulo II :Um jovem contemporâneo
Jacques entrou nos aposentos do seu pai, um pouco aborrecido. O importante
consultor de várias companhias estrangeiras, pelas contingências
de uma vida de advocacia forçadamente administrativa, acostumara-se
a dobrar o temperamento, a fingir, a representar. A vida é um palco,
onde cada um representa o seu papel, disse Shakspeare. Depois do transformismo,
moda passada em ciência e moda em voga em cena: a vida é um palco,
onde cada um representa seus papéis. Justino representava alguns –
nem sempre gloriosos, é de convir, mas com tal elegância, um
brilho tão particular, que só merecia aplausos. Chamavam-no
o "camaleão dos ministérios"; ninguém poderia
afirmar numa questão de que lado estaria sempre advogado assim admirável.
Mas, Justino fazia para ser de qualquer jeito de uma das partes e era de um
cepticismo fatalista, absolutamente oriental, nas decisões graves da
vida. O hábito de mascarar o temperamento, de mudar de cara várias
vezes ao dia, apagara-lhe a energia de retomar o seu "eu" – que
era no fundo bom, inteligente e conservador. O secreto e acovardado Justino
íntimo tornara-se apenas o espectador de vários Justinos mundanos,
e só raramente intervinha no drama, como os freqüentadores de
circo para os palhaços em situações difíceis.
— Vamos a ver como te sais deste negócio!
— Queres apostar?
— Tens muita sorte.
Esses curtos diálogos entre o seu verdadeiro "eu" e os outros
Justinos para uso externo, deixavam-no esperançado e arrasado nos graves
momentos de protestos de letras e de agonienta falta de dinheiro. Enquanto
não lhe faltasse a estima daquele espectador, seria amável e
vencedor. E sorria. Quantos, como ele, por este mundo? Sorria e continuava
a representar, mesmo em casa, para a família, mesmo só. Apenas,
como tivera sempre a preocupação dos papéis simpáticos,
e como não havia nem tempo para perder, nem muita confiança
em inspirar terror, organizara um pai misto de peça romântica
e de comédia moderna. Os seus aposentos eram de uma simplicidade monacal,
o leito de ferro, onde repousava das vigílias estudiosas, mais desolador
que um catre d’hospital; e nas paredes nuas só se via a litografia
de Nossa Senhora da Conceição, em caminho do céu, atestando
uma crença, tanto maior quanto não a possuía, senão
para um efeito social, mundano e prático.
Quando Jacques entrou, o seu ilustre progenitor estava ainda com a sobrecasaca
da recepção, sentado, a escrever. Nesse dia, por felicidade,
fazia-se completamente pai comédia moderna.
— Boa tarde, caro colega e filho!
— O pai quer falar-me?
— Em teu interesse.
— E o escritório?
— O escritório e tudo mais. Senta-te. Fumas um cigarro?
Abriu a cigarreira, serviu-se, guardou a cigarreira, estirou-se na poltrona.
— Meu caro Jacques, vejo que estás aborrecido. Eu também.
Nada mais fatigante do que estas cenas de conselhos entre pai e filho. Teu
avô passava-me um carão, de oito em oito dias e nunca me falou
senão zangado. Para consentir que eu fizesse a barba – o que para ele
parecia um insulto aos seus direitos paternos, foi necessária uma verdadeira
campanha diplomática. Mas isso era no tempo antigo. Hoje, os pais não
precisam dar consentimento para fazer a barba, porque nunca vêem barba
nos filhos.
— É um uso americano…
— Que acho, aliás, muito asseado. Entretanto, como ainda resta,
por um velho preconceito, aos pais, a boa vontade de guiar os filhos, não
pude deixar de escolher esta tarde para conversarmos um pouco.
Houve um silêncio. Justino, acariciando a barba grisalha, olhava o
seu pequeno, com um secreto prazer de tê-lo feito tão bonito
e talvez uma certa inveja daquela mocidade despreocupada ainda das necessidades
da vida. Jacques continuava sério, em pé, brincando com a espátula
de cortar papel.
— És uma criança, meu filho. Não podes ter queixa
de mim. Não sei se estás educado, mas fiz o possível
para te fazer bacharel, como toda gente. Absoluta liberdade, contas pagas,
empenhos, professores em aulas particulares. Enfim, tudo. Mas nesta facilidade
de vida, talvez nunca te afigurasse a triste verdade de que é preciso
ganhá-la. Aqui estou eu, com cinqüenta anos, a esclerose fatal,
obrigado a viver com desperdício, exatamente porque desse desperdício
vem a possibilidade de negócios grandes. E sem vintém. Sim,
meu caro Jacques, sem vintém. É preciso que te habitues a triste
idéia de que, morrendo eu amanhã, estás com tua mãe
e teu irmão, absolutamente sem recursos.
— O pai a fazer testamento!
— Não senhor, estou apenas a falar sério. De resto, a
maioria dos teus companheiros está nas mesmas condições,
em que estás. São raras as nossas grandes fortunas. São
raras, até, as pequenas sólidas. Atravessamos um grande momento
curioso, e vocês não imaginam como custa ser o maquinista, um
dos maquinistas da mágica. É preciso trabalhar. Mesmo milionário,
dar-te-ia este conselho. Não o sendo, acrescento que é imprescindível,
desde já, para te habituares, antes de uma perda grave. Um homem não
é homem, enquanto não ganha.
— Ganhar como? – fez Jacques sucumbido.
— De qualquer forma. A questão é ganhar. As sociedades
fazem cada vez menos caso dos meios. Metade dos cavalheiros que estiveram
cá, hoje, é dessa opinião… De resto, não seria
mesmo bonito para um homem, ser sustentado por seu pai, toda vida.
— Ah! isso não.
— Já vês…
— Mas como, papá?
— Oh! ganha-se dinheiro, mesmo não fazendo cousa alguma. Tudo
é dinheiro. A questão é preparar o espírito, é
encaminhá-lo para o ponto prático, e o ponto prático
para um rapaz de boa sociedade é pensar sempre que precisa conservar
uma série de confortos, de aparência insignificantes quando os
temos, mas enormes, quando lhes sentimos a falta. Vamos a saber: não
queres advogar?
Jacques sorriu:
— O pai sabe bem que não sei. Foi você mesmo quem disse
que eu de Direito sei menos que o Gastão.
— Sabe-se sempre o que nos vai ser útil.
— Depois, o escritório, a escrivaninha, o foro, com aquela poeira…
De novo a frieza inicial voltou. Justino tornou, um pouco seca a voz:
— Creio que te formaste para fazer alguma cousa.
— Não pai, não se zangue. Tenho, quer que lhe confesse?
medo de começar.
— Pois esse medo passará. Guiar-te-ei. As pequenas causas –
terei pequenas causas? – serão tuas. Depois a escrivaninha não
é escrivaninha, E um lindo bureau-ministre.
— Então, pai, vou amanhã…
Justino ergueu-se, mostrando uma satisfação que talvez não
tivesse.
— Nota que não te quero forçar a ser advogado. Com uma
carta de bacharel, por enquanto, ainda é possível ser várias
cousas neste país. Tens diante de ti, o mundo dos negócios,
o funcionarismo, a jurisprudência, a política. O meu desejo é
lançar-te na vida, não como o pequeno do Pedreira, mas como
o filho formado do seu pai, agindo por conta própria e ainda com uma
defesa não só de pai como de amigo prático. E preciso
ser homem. Foste menino até hoje. Vamos a ver o que fazes, d’agora
em diante. Até amanhã.
— Até amanhã.
— A uma da tarde, no escritório. Tu hoje acordaste mais tarde…
– Depois, sorrindo, como Jacques já estivesse à porta: – olha,
aqui tens vários convites com o teu nome, da recepção
do Chili, do baile do presidente da República e do decantado baile
que o Itamarati oferece aos oficiais portugueses. Tens mais um cartão
permanente para o recinto da Câmara, dois cartões de cinematógrafos.
Estas lembranças pessoais, deu-mas o Godofredo de Alencar, que é
muito amigo dos governos. Sê também amigo dos governos.
Jacques recebeu os convites com uma certa emoção. Afinal, a
conversa não fora tão aborrecida. Ele sentia-se bem um personagem,
alguém… O pai tornou:
— Com estes trunfos que tens em mão, um homem esperto talvez
não se decidisse por nenhuma profissão, mas decerto teria meios
de arranjar uma fortuna. E basta de conversa. Caro colega e filho, até
ao escritório.
Jacques saiu. Era só atravessar a sala de jantar e estava no seu quarto.
Consultou o relógio e viu que eram seis e meia. Os criados punham a
mesa modesta do jantar. Um sentimento complexo agitava-o, sentimento que era
de alegria e era de um terrível e assustado desalento. Tinha vontade
de chorar, como uma criança. Chegar tão cedo ao marco em que
já se não é bem da família! Amanhã seria
um homem, uma individualidade à parte, agindo por conta própria,
com a gravíssima responsabilidade das suas ações a recair
no dia seguinte. Estava farto de saber a situação financeira
do seu pai. Era a de três quartas partes da sua sociedade, um triste
bluff que se tornara norma angustiosa. E entretanto, vinha-lhe um medo louco
de encarar a necessidade no dia seguinte.
Se Justino morresse? Sim, se morresse… Em que estado ficariam, em que estado
ficaria ele? Era preciso atirar-se, trabalhar, ter uma profissão, que
lhe desse a troco de um certo esforço quotidiano o pão do mês.
Oh! era miserável, era humilhante. E era fatal! Tinha que fazer como
toda gente. E vinham-lhe à memória vivas impressões de
vários infelizes. O Dória, o rico Dória engenheiro, que,
morrendo o pai, fora especulador da praça, zangão, dono de hotel
quebrado e sempre a querer aproximar-se do meio, que, impiedoso, o afastara,
era intendente de um milionário, ganhando comissões das cocottes
e dos vendedores – só com a preguiça de seguir a sua profissão;
o Aragão, que montara um club de jogo, com egoísmo e roubara
no baccara,, o Adalberto… De um momento para outro podia ficar assim, e
ele que se sentia tão fraco d’alma, tão incapaz de reagir!
Fechou-se por dentro, no quarto, acendeu a luz, olhou-se ao espelho. A tristeza
tornava-lhe ainda mais bonito o lábio sensual, a boca de uma frescura
úmida, a pele lisa e morena. Diante de um físico tão
agradável, aproximou mais o rosto, a ver um sinal ao pescoço.
E lembrou-se dos olhos de Alice dos Santos, dos lábios de Alice dos
Santos, da proteção que Argemira parecia querer dar aos avanços
da Alice dos Santos. Ainda não tivera uma amante senhora casada. Quanta
coisa ainda não fizera na vida! Mas havia de fazer, tinha o desejo
de fazer, desde que elas fossem agradáveis e pouco trabalhosas. Sorriu
para o espelho um sorriso tentador. Afinal tinha sorte, sempre tivera sorte
e havia de ter sorte. O Dória não fora feliz porque não
tinha de ser. Também há mendigos que pegam caiporismo. No primeiro
ano visitara com os colegas uma quiromante que lhe prognosticara muitos amores
e muitas viagens. Como ter amores e fazer viagens sem dinheiro?
Começou a despir-se vagarosamente. Amores! A Alice talvez. Como? A
Alice e outras muitas, a Malperle por exemplo, de quem se falava tanto, ou
a mãe da Eleonora que fingia um desmaio sempre que se achava a sós
com um rapaz? O apetite da vida voltava-lhe diante da própria imagem
a mover-se no espelho. Sempre obtivera tudo sem esforço e a sorrir.
Havia de continuar. Acendeu um cigarro, soprou o fumo, assobiou um pouco
uma copia de café-cantante. Deitou-se a fio comprido na cama. Ah! se
soubesse o futuro! E para quê, de resto? Saber é uma necessidade
muito relativa. É possível passar perfeitamente sem saber uma
porção de coisas. Saber teatro, por exemplo. Para quê?
De teatro, Jacques tinha a noção de que as companhias de línguas
estrangeiras eram de primeira ordem e as mulheres das boas ou não.
As peças de cujos autores ignorava os nomes, caceteavam-no assaz. Entretinha-se,
durante o espetáculo, a comparar a elegância das atrizes com
as das suas conhecidas e a verificar o mau alfaiate dos atores. M. Le Bargy
foi-lhe uma dolorosa desilusão. E literatura? Jacques nunca na sua
vida lera uma novela, um romance. Nem Paulo de Kock, nem o Conde de Monte-Cristo.
Uma indiferença integral afastava-o dos jornais. Mesmo os versos imorais,
as leituras ardentes que os meninos fazem sempre com o prazer de atiçar
um incêndio em plena violência, não o tentaram. Ao demais,
os profissionais do talento não lhe agradavam. Só admitiu desde
criança inteligência nos que a sua roda permitia e decretava
fossem inteligentes.
Este feitio não o obstou de ser precoce em tudo, por tudo lhe ter
sido fácil. Aos oito anos, como nesse tempo sua mãe ainda tinha
ilusões de reagir contra a gordura, foi para um colégio de padres.
Aos dez, nas férias do Carnaval perdeu-se com o criado num baile de
Carnaval da mais baixa classe. E como D. Malvina o recebesse em pranto disse:
— Não te assustes. Dancei com umas mulheres pintadas. Elas gostaram.
Até pagaram cerveja para mim, que não era tolo para gastar o
meu dinheiro.
No ano seguinte, os padres bem pagos e difíceis de expulsar os alunos,
queixaram-se do seu mau comportamento. Fumava, arremedava os frades professores,
não estudava. Jacques não voltou aos padres e fez um curso de
preparatórios em externato, conseguindo o assombro, aliás comum,
de ser aprovado numa série de matérias que ignorava.
Seu pai não tinha tempo de fiscalizar a educação, mas
pagava sem hesitar os melhores professores e arranjava a valer cartas de empenho
no fim do ano. Era mesmo a época do ano, em que senhor de posição
tão importante dava para reconhecer velhos amigos de rapaziada, que
a sorte fixara em simples examinadores. Jacques, com conta aberta no alfaiate,
no camiseiro, no sapateiro, julgava os professores também fornecedores
de atestados, mas não era sem um certo sangue-frio superior que colava
provas escritas e dizia inconseqüências nas provas orais. Ficou
célebre o seu exame de química em que não sabendo quem
era Lavoisiert e ignorando a composição da água passou
com simplesmente. Ninguém falou também do seu exame de francês.
Aliás, Jacques sabia falar francês. Foi o único exame
em que foi reprovado. Mas aproveitou a segunda época, e nunca disse
obrigado aos examinadores como não dizia ao sapateiro. Quando passou
para a escola de Direito a fazer o primeiro ano, uma carta que escrevesse
devia ter alguns erros, mesmo na língua comum geralmente falada entre
nós e que, por excesso de reconhecimento histórico, ainda denominamos
português…
Os preparatórios deixaram-lhe uma sensação de igualdade
inexplicável e que no fundo sempre lhe pareceu desagradável
rebaixamento. Havia uma porção de rapazes de má roupa,
sem vergonha pobres, e que se permitiam, entretanto, fazer versos, usar pince-nez
e não lhe ligar a menor importância. Quando os professores falavam
– (de modo geral sempre) – da desmoralização do ensino, da inferioridade
da geração, esses rapazes tinham a impertinência de olhá-lo
e ele não podia deixar de ficar contrariado, porque esses sujeitinhos
é que lhe pareciam inferiores. Os últimos tempos passara-os
mesmo a jogar football, jogo em moda que as senhorinhas aclamavam aos domingos
em Paissandu. Foi sob essa brilhante vocação esportiva, que
se matriculou para fazer o primeiro ano. O primeiro ano constava de duas matérias:
Filosofia de Direito e Direito Romano. Oito dias antes dos exames, começou
de ler umas apostilhas da segunda matéria, veneráveis apostilhas
que representavam o saber desse monumento social em dez gerações
de bacharéis. Em Filosofia copiou a prova escrita e na oral, diante
de um lente grosso e sábio, assegurou:
— A Filosofia, esse verdadeiro pão do espírito…
O professor abriu numa gargalhada homérica. E ainda sacolejado de
riso:
— Continue, muito bem… continue, menino…
Não continuou por ser susceptível ao ridículo. Mas fez
o curso inteiro com a mesma profundez, cada vez menos culpado de ser bacharel.
Não que não tivesse inteligência para aprender o que tanta
gente sabe nem sempre para bom uso: mas porque era desnecessário. Para
que cansar se o resultado seria o mesmo? Instintivamente economizava-se.
O seu tempo de acadêmico passara-o pois assim. Acordava, ia para o
football ou fazia ginástica sueca no quarto. Em seguida iniciava a
sua toilette com cuidado. A escolha do fato, da camisa e da gravata correspondente,
punha-o muita vez perplexo. Estas coisas absorviam a sua atenção.
Conhecia gravatas ao longe.
— Esta gravata não é daqui?
— Não.
— É do Doucet. Estavam em moda o ano passado.
Em fornecedores o seu conhecimento era doutoral. A menor alteração
no corte dos fracks uma insignificante mudança d’aba nos chapéus
de Londres ou da Itália tinham nele um fiel. As cores das roupas de
baixo também. E a maneira de estar conforme manda a educação
dos salões – educação e maneiras que variam todos os
anos. Ultimamente usava camisetas irisadas de morticores imprevistas, abandonando
nas gravatas os tons monocromos, e nunca sentara para jantar sem estar de
smoking e ou de casaca. Um homem quando tem apetite, pode jantar até
tendo apenas por fato a aliança do casamento. Ele, porém, achava
aquilo necessidade imprescindível, e mesmo em Teresópolis, num
matagal horrendo de cura, aparecia sempre, com espanto do hotel, de smoking
e sapatos de verniz.
Apó5 a toilette, ia almoçar e saía. Às vezes
passava pela escola. Raramente. Empregava o tempo em namoros e ftirts. Nunca
desejara. Era desejado. Aos quatorze anos uma criada portuguesa virgem agarra-o
com uma violência de Tântalo se encontrasse um jarro d’água
fresca à mão. Depois era sempre solicitado e achava isso meio
aborrecido. Saía à hora em que as ruas de Botafogo, principalmente
as transversais deixam ver tanta coisa. Aos dezesseis anos, indo visitar o
Barão Belfort, que por sinal viajava Pela Rússia, encetou através
do muro um escandaloso namoro com a Ada Pais, a ponto de fazê-la pular
a separação de pedra e vir ler romances na biblioteca do barão.
Essa ligação semivirgem dera-lhe de resto a consideração
de Belfort e do literato Godofredo de Alencar. O barão era um perverso,
cuja amizade não deixava de ser corrosiva. Godofredo muito hábil
sob aqueles ares fatigados, trabalhava no desejo de ser de uma roda, a que
aspirava por uma multiforme e vaga ambição. Troçava de
todos, elogiava a todos e principalmente o fraco de cada um. Para Jacques,
como para outros rapazes tinha sempre dessas frases que ficam:
— Estavas ontem com uma linda bengala.
Aos demais dizia-se amigo dos políticos, o que aguçava sobremaneira
o interesse dos homens de negócios, a maior ou talvez a única
aristocracia do momento.
Jacques tinha pelo barão e pelo homem de letras prático uma
sincera admiração. E no chá, um chá elegante,
onde parava desde as quatro da tarde a ouvir o Dr. Suzel, o Belmiro Leão
a cumprimentar as senhoras e a fazer sinais às cocottes não
perdia ocasião de citá-los. As seis voltava a casa. Smoking,
jantar. A noite, o music hall, em que aparecem como numa exposição
as melhores mulheres de várias casas especialistas. A sua memória,
mais virgem que a criada portuguesa e Ada Pais, gravou com facilidade as cançonetas
e a algaravia desse pessoal pintado e abrilhantado. Passava, como a maior
parte dos seus amigos por trás dos camarotes, onde as damas se pavoneavam.
Nos intervalos tomava umas bebidas, convidado pelos endinheirados da semana.
Porque, cada semana, havia nessa sociedade assaz misturada de mulheres, michés,
jogadores, gigolos, um sujeito que aparecia com muito dinheiro. Godofredo
e o barão apresentaram-lhe uma vez aí o jovem construtor Jorge
de Araújo. A época era de resto do aparecimento de jovens construtores,
jovens motoristas e velhas manicuras. Jorge de Araújo ficara rico num
mundo de casas mandadas fazer pelo governo e tinha a dupla mania dos automóveis
e das mulheres. Belfort fizera colocar num dos automóveis do construtor
esta divisa heróica:
— Esmago todo mundo e ninguém me vê.
Jorge via tanto no barão como em Godofredo duas utilidades para a
continuação dos seus negócios. Viu decerto em Jacques
uma outra, posto que obscura. E Jacques, com a gula da mocidade pelo prazer,
viu nele um meio de divertir-se sem pagar. Em pouco tempo era amigo inseparável,
aproveitando os automóveis e a intimidade das mulheres. Datou daí,
na função de menino bonito, a sua ligação com
a Lina d’Ambre, italiana de cabelo oxigenado, terrivelmente ciumenta. Para
ver se podia acompanhá-la a casa, Jacques ia a um dos mil e um clubs
do jogo onde o baccara infernal sustenta um batalhão de patifes amáveis.
Para passar o tempo e ver se ganhava, jogou. A mesada era escassa. O pai
dava-lhe roupas, mas não dinheiro. Para arranjar dinheiro, pediu aos
fornecedores que forjassem fornecimentos falsos. Depois pediu a Jorge, ao
barão. Godofredo, por precaução pedira-lhe antes do ataque
uma pequena quantia. Enfim, uma noite a Lina d’Ambre, votada ao sacrifício
romântico, exigiu que lhe fosse empenhar um dos anéis e ficasse
com o dinheiro. Jacques hesitou, com frieza, e foi.
Dias depois, na mesa redonda da pension d’artistes, a Lina, num calão
indizível, atirou-lhe o epíteto de explorador feminino. Como
estavam na sopa, Jacques atirou-lhe com um prato, que felizmente só
atingiu a cabeleira de um loiro não veneziano, mas inverossímil.
A mulher teve um ataque, depois de retribuir a violência com idêntica
remessa de sopa. Furioso, Jacques saiu com o smoking sujo, para nunca mais
voltar. Lina mandou-lhe cartas perdidas de amor. A sopa reacendera-lhe a chama.
E, como tal chama leva a excessos, Lina, depois de dizer a toda gente que
fora explorada, apresentou-se no escritório de Justino a mostrar a
cautela e pedir providências. O Dr. Justino, naquela conjuntura, foi
de grande gentileza e calma. Pagou, deu à mulher uma gratificação
generosa e teve com o filho esse primeiro e lamentável encontro em
que entre pai e filho aparece a miséria sexual, o escândalo mulher,
aliás tão apreciado por filhos, pais e mesmo avôs.
— O senhor envergonhou-me. Um homem na sua idade não paga o
amor. Perfeitamente. Na sua idade nunca paguei. Reservei-me para depois. Há
sempre tempo. Mas receber!
— Está enganado, pai. Pergunte a Jorge, pergunte ao barão.
Vou quebrar a cara àquela tipa!
— O senhor não vai quebrar a cara a ninguém. O senhor
vai é não fazer mais isso, porque está arriscado a perder
o meu auxílio. E a propósito: descontarei na sua mesada a importância
da cautela. Quem tem vícios não se fia nos outros.
Desde então, Jacques, a quem a inexorável D. Malvina fazia
um sermão de moral semanalmente, para lhe dar dinheiro, foi acentuando
esse afastamento progressivo da família em favor da rua, a que o eufemismo
social denomina fazer-se homem. Jacques fazia-se homem a todo pano, vertiginosamente.
Passava dias sem ver o pai. Chegava pela manhã. Não foi a Petrópolis,
durante o verão e, segundo informações da vizinhança,
dera uma ceia a damas alegres na própria residência da família.
Mas, ainda assim, agindo com inteira liberdade, não se sentia senhor
das próprias ações, era feliz e descontente exatamente
por isso. Ao recordar a breve vida, estirado na cama, sentia que as palavras
cordiais de seu pai tinham cortado as últimas amarras. Ia ensaiar a
vida só, apenas comboiado durante algum tempo. No dia seguinte, à
uma da tarde, estaria num escritório a ver autos, a folhear o código…
A idéia pareceu-lhe tão intolerável, que se ergueu de
um pulo, olhou-se de novo ao espelho a ver se não teria mudado. E achou-se
perfeitamente agradável.
Então, meticulosamente, vestiu-se. Uma semana com tanta coisa a tratar!
O circuito de automóveis, um piquenique noturno na Gruta de Paulo e
Virgínia com a esposa do ministro de Honduras, e três ou quatro
senhoras com os respectivos responsáveis, a festa dos animais oferecida
pelo barão! Trabalhar quando a vida é tão bonita! E ia
jantar em casa, ia talvez ao teatro com a família, voltaria cedo, para
no dia seguinte, à uma hora…
O criado veio chamá-lo. Era o jantar. Saiu. O pai de casaca e de pé
lia um jornal. Já passava das oito…
— Então, pensaste?
— Não, vesti-me.
— A ocasião do presidente, do baile presidencial é excelente.
— Ora o baile do presidente? – fez Jacques, que sempre ouvira seu pai
ridicularizar todas as autoridades constituídas deste país.
— Farás o que entenderes.
Nesse momento, com um vestido de rendas creme sobre fundo de liberty preto,
decotada e irritada, Mme. Malvina entrou. Sempre que ia ao teatro – e era
dia de assinatura do Lírico – retardava o jantar para preparar-se antes.
Seria impossível depois com a sua crescente gordura. Mas assim o que
se tornava superior às suas forças era jantar, apesar de um
razoável apetite. Então, D. Malvina fazia ato de presença,
de rosto fechado.
— Por que jantamos cada vez mais tarde?
— Porque é impossível jantarmos mais cedo.
— É o Lohengrine hoje?
— É.
— Com aquele dueto que não acaba mais. Você vai?
Jacques não teve tempo de responder. A campainha retinira. O criado
chegara.
— O Dr. Jorge, de automóvel, que pergunta se o senhor esqueceu.
— Ah! é verdade. E eu que prometera jantar com o Jorge!
— Onde?
— No Leme. Está aí?
— Está à espera no automóvel…
— O papá dá licença?
D. Malvina carregou o sobrecenho. As roscas do seu pescoço tornaram-se
vermelhas. Mas Justino sorria complacente. Era um pai comédia moderna,
como a maioria dos pais modernos. Aquele filho formado e formoso, que parecia
Perseu, agradava-lhe. Depois em Jorge o velho advogado farejava graves coisas
futuras a defender.
Jacques precipitou-se para a varanda, correu no jardim. Nem já lembrava
o dia seguinte. Jorge guiava. Ao lado, Godofredo estava de veston azul, e
dentro do automóvel fechado havia quatro mulheres.
— Então isto faz-se?
— Estava tratando da vida.
— Tu?
Um estrepitoso riso rompeu. Jacques meteu-se entre as damas. O automóvel
deslizou, fugiu pela Avenida, que era um esplendor de luzes.
E enquanto o filho seguia para o prazer, e a esposa arfava irritada por ter
de ir ao Lírico, o Dr. Justino Pedreira, lendo o jornal e pensando
noutra cousa, fez um gesto ao criado para que lhe desse de jantar.
Capítulo III: Exercício preliminar
Precisamente, Jacques não foi muito pontual. A pontualidade é
talvez um erro para quem almeja valorizar-se. É crime quando a obrigação
não nos parece agradável. Os jovens que se revelam lúcidos
ganhadores, chegam sempre antes da hora, no dia marcado. Prova de sofreguidão
pueril. Às vezes nada se adianta com a pressa. Jacques apareceu no
escritório, quatro ou cinco dias depois, – às três e meia
de uma linda tarde. Como o escritório ficava na Rua do Rosário,
nenhum dos seus transeuntes desconfiaria da beleza do céu. A estreita
rua, atravancada com carroções, o calçamento desigual
e engordurado, uma multidão de cocheiros seminus, de caixeiros, em
mangas de camisa, e cidadãos apressados, a contar dinheiro, a discutir
papéis estampilhados ou de pasta debaixo do braço – não
dava tempo para pensar na beleza, mesmo na beleza de uma tarde linda. Era
a rua dos armazéns de comestíveis por atacado e dos consultórios
de advocacia. Jacques só aparecia lá para pedir dinheiro ao
pai, que dava o nome ao consultório e trabalhava com outros colegas.
O pai, nada agradado com tais visitas, aconselhara o continuo, um velho macróbio,
cor de castanha, chamado André, a dizer a Jacques que não estava.
O filho chegava e de cá de baixo:
— O pai?
André esticava o braço magro e fazia um gesto inexorável
de negativa:
— Não, senhor; saiu.
— Há muito?
— Ainda há pouco.
Por último, com o hábito, ao ver assomar Jacques, fazia maquinalmente
o gesto, quase com raiva, e gritava com a sua voz septuagenária:
— Não! não! já saiu.
Como em geral os cérberos de casas de negócio, embirrava com
os que vinham pedir, mesmo sendo parentes. Uma das suas volúpias –
uma das derradeiras, coitada! – era dizer não, era negar a quem lhe
parecia precisar. Assim, quando viu Jacques a subir, o velho cor de castanha
ergueu-se furioso, agitando o braço:
— Não está; não está!
Jacques parou, quase resolvido a voltar, mas para confundir o pobre homem,
subiu. No consultório havia cinco advogados, contando com seu pai,
que se reservava a sala da frente. Gente subia e descia as escadas. Cavalheiros
conversavam junto das secretárias. Havia poucos livros na atmosfera
sempre suja. O Dr. Justino, que conversava com dous clientes ao mesmo tempo,
um provinciano interessado contra a oligarquia do seu Estado e um empresário
teatral disposto a intentar ação contra a Prefeitura, apertou-lhe
a mão, deu-lhe a face a beijar e apresentou-o logo aos dous clientes.
— Meu filho, formado há dias.
Jacques reparou na sua secretária, com um nobre feitio antigo, de
carvalho. Sentou-se, abriu a pasta virgem e ficou ouvindo o inimigo da oligarquia,
que de vez em quando voltava o busto e por deferência dizia:
— Não acha, doutor?
Depois foi ver os outros advogados, que estavam a tratar de negócios,
nada interessantes. Que supremo aborrecimento! Nunca mais poria os pés
naquele horror!
Mas, voltou. Voltou até todos os dias. É que a sua fraca vontade
irritada contra um trabalho comum, descobrira que esse trabalho, mesmo comum,
seria um titulo de elegância no meio por onde andava, um titulo superior.
Chamarem-no de doutor, convencidamente, julgarem-no capaz de uma opinião
decisiva, era para envaidecê-lo. Mas ter a certeza de que as senhoras
e os seus amigos, e os simples conhecidos acreditavam em outro Jacques, era
um prazer indizível. Estava duas mil léguas longe da vida prática.
Entretanto, contentava-se. A entrada no escritório, deu-lhe uma individualidade
definida. Pediu aos amigos que o fossem ver. Deu a mesma direção,
com o número do telefone, na pensão da Lola Safo, na pensão
da Isabela Corini, no seu alfaiate. Saia invariavelmente depois do almoço,
só, com uma pasta cor de granada com fecho d’ouro, saltava do tramway
apressado como um businessman, atravessava a Avenida a passo inglês.
Ao chegar, indagava:
— Não veio ninguém procurar-me?
Invariavelmente, André cor de castanha respondia:
— Não, senhor.
Esperava um tempo e saía de novo com a pasta, ordenando:
— Se vier alguém, que espere.
Dava uma volta, reaparecia, no íntimo louco para que soassem quatro
horas. Era a liberdade até o dia seguinte, em que de novo subia as
escadas empoeiradas, contrariado e com a esperança de ter sido procurado.
Uns quinze dias depois, quem lhe apareceu foi Jorge de Araújo, baixinho,
magro, elegantíssimo.
— O Dr. Jacques? – perguntou a André.
— Não conheço.
Jacques, que ia sair, precipitou-se:
— Grande idiota, então não me conheces? Desculpa. É
casmurro. Entra. Estou aí com uns negócios.
— Já? Parabéns. E ainda bem. Preciso muito dos teus serviços.
Não se trata de advocacia. Tenho advogado.
— Então?
— Preciso de uma carta amiga para o ministro da Fazenda. Obras, reformas.
O engenheiro abriu concorrência. Uma carta amiga era decisiva para o
ministro. Se for aceita a minha, tens vinte contos.
— Vinte contos? Mas como arranjar a carta?
— Tens relações. Teu pai, por exemplo. Teu pai arranja.
— Vamos a ver.
— Espero até amanhã. Lembrei-me de ti. Fala ao Dr. Justino.
Até logo.
— Só isso?
— Achas pouco? A minha hora de diversão ainda não chegou.
Hoje, onde?
— Onde quiseres.
— Damos a volta da Tijuca.
E desapareceu. Jacques ficou num indizível estado de nervos. Compreendera
logo que a proposta de Jorge fora uma distinção especial de
amigo. Provas de tanta consideração só a pessoas de idade
e de respeito. Arranjar um negócio, ganhar na primeira cartada vinte
contos! Como? A quem pedir? A seu pai? Mas seu pai talvez recusasse, talvez
não tivesse intimidade com o ministro. E Godofredo? Godofredo exigiria
metade. Metade ou mais. Depois o favor de Jorge era a ele, a ele pessoalmente,
Jacques… Ficou a passear na sala, febril, à espera do pai. Quando
o Dr. Justino chegou, não teve coragem, procurou circunlóquios,
arriscou uma opinião sobre a marinha americana, folheando revistas.
Por fim, foi até dizer:
— Conheces o ministro da Fazenda?
— Muito. É um bicho de concha. Por quê?
Por quê? Com a pergunta compreendeu o seu estado d’alma. Faltava-lhe
a coragem, não de falar francamente, mas de repartir. O seu divino
egoísmo tinha a intuição cega do perigo. Antes de responder,
sentiu que se falasse, o pai pediria para ver Jorge… Seria melhor conversar
com a mãe, fazer intervir a influência da esposa.
— Por nada… – murmurou, afetando indiferença.
E saiu logo, deixou de ir ao chá das quatro horas, onde havia de encontrar
Alice dos Santos e Mme. de Melo e Sousa, já inseparáveis. Foi
diretamente para casa, com um cartucho de bonbons, o primeiro que comprava
na vida para oferecer à mãe. D. Malvina não estava. Ficou
na varanda, chegou a abrir um jornal, a ler uma notícia de pavoroso
incêndio num gabinete da pensão de Lola Safo. Um toque de campainha
fazia-o ter sobressaltos. Nunca na sua vida tivera um tão forte desejo
de ver D. Malvina. E D. Malvina demorava, não vinha mais. Antes da
esposa chegou o Dr. Justino no automóvel do Deputado Santos, que o
seu continuava quebrado. Só, ás sete, apareceu a formidável
dama. Vinha exausta. Fora ao Dispensário da Irmã Adelaide, assistir
como dama de caridade ao aniversário da fundação. Estivera
depois em casa da Baronesa de Muripinim, a encardida relíquia da monarquia,
muito mal com um acesso de fígado. Lá soubera do divórcio
iminente de Mme. Zurich. Era a quinta vez que anunciavam o escândalo,
sempre, naturalmente, por causa do marido. E aquelas emoções
violentas: a religião, a moléstia, a vida alheia – tinham arrasado
a pobre senhora. Jacques foi buscá-la ao jardim, com carinho. Ao ver-se
assim tratada, Mme. Pedreira exagerou. Era um hábito antigo.
— Mamã, preciso falar-lhe.
— Agora não, estou que não posso.
— Mas mamã, é a minha vida.
— Tens alguma ousa?
— Não, não é conta.
Na casa de jantar, ofereceu-lhe os bonbons. D. Malvina, apesar de gulosa,
deixou-os sobre a mesa. Mas o filho teimava. Foi com ela até o toucador.
E lá abriu-se. Precisava arranjar a carta. Um comendador que oferecia
cinco contos. A carta devia ser apresentando Jorge de Araújo. A digna
senhora não compreendia nada das infantilidades de Jacques. Apenas
uma secreta admiração brilhava no seu olhar. O filho fazendo
negócios, agindo, trabalhando, falando em ganhar…
— Não sei se teu pai…
— Pede-lhe, pede-lhe com calor.
— Vou ver. Amanhã dou-te a resposta.
— E pede também a Nossa Senhora, mamãe, para que o ministro
da Fazenda atenda…
D. Malvina abriu mais os olhos. Jacques, o endemoninhado, voltava às
tradições de família, e era católico como o seu
ilustre pai e era crente como sua mãe!
— Peço sim, meu filho. Ainda hoje a Irmã Adelaide perguntou
por ti, com muito interesse…
Jacques deixou o lar, logo após o jantar, em que foi de uma extraordinária
gentileza para com o pai. Descobrira de chofre os efeitos da lisonja. Servindo
aos progenitores com um interesse mesquinho, em que ainda por cima pretendia
enganá-los, uma série de atenções desusadas, admirava
secretamente o seu tato. Também ele sabia mentir com mestria. Era da
família. Como no temperamento mais nascido para as transações
hábeis há sempre uma grande dose de ingenuidade, se lhe viessem
dizer que mostrava inteligência de advogado, acreditaria. Passava a
um papel ativo na vida, com desenvoltura e esperteza. No dia seguinte entregaria
a carta, e Jorge teria as obras, dando os vinte contos. O mundo era seu.
— Pai, o negócio do empresário?
— Queres aquilo? Ainda lembras? É um aborrecimento. Estamos
há quatro meses.
— E quanto ganhas?
— A metade do dinheiro que obrigarei a Prefeitura a dar-nos. Uns dez
contos.
Dez contos. O pai levava quatro meses para um negócio de dez contos!
Ele, de um dia para outro, obtinha o dobro. Na rua, a vários conhecidos
que cumprimentou, sorriu com o ar triunfante e superior. Era definitivo. No
dia seguinte teria aquela soma, que aliás de pronto não sabia
como utilizar. Depois outros negócios se sucederiam. De que gênero?
Talvez de cartas de recomendação, de influências íntimas.
Oh! ele agora compreendia aquela febre estranha que agitava a maioria dos
seus contemporâneos: as faces machucadas, as neurastenias, a pressa,
o ar de corrida por um tremedal em que quase toda a sua sociedade e ele também,
pela força das circunstâncias, viviam. Agora já poderia
dar uma explicação aos gastos de muitos conhecidos, a flexões
de espinha inexplicáveis até o momento. Era o negócio,
o jogo das influências, um tremendo jogo certo de consciências,
que o vencedor devia ser o maior ganhador. No fundo devia ser muito aborrecido
fazer como o Jorge, de assaltante diário, ou como Godofredo, e seu
pai, de intermediários entre o assaltado que deixa assaltar, mediante
condições e o assaltante que reparte. Ele faria com rapidez,
uns duzentos contos…
Passava um tramway, tomou-o. Ao pôr o pé no estribo, tinha mentalmente
duzentos contos, e foi como milionário que saudou o jovem Gomensoro
e a linda Etelvina, sua esposa, née d’Ataíde. Os dous continuavam
o flirt marital, divertindo-se, ou fingindo rir com a trepidação
cinematográfica da sociedade. Etelvina fora educada em Paris, educação
americana na filigrana parisiense. Fazia de grande dama e tinha o curso completo
dos cabarets de Montmartre, que visitara, a princípio com sua mãe,
ambas incógnitas, e depois com o próprio marido, sem incógnito.
Montmartre desenvolvera-lhe a ironia. Nas salas, aquele ar de Mme. Bady,
os plongeons à Segundo Império, ocultavam uma observação
mordaz e uma garotice de assobio. O marido acompanhava-a na troça e
ambos pareciam perfeitos. Jacques admirou-se de vê-los.
— Oh! que prazer! Então, nenhuma festa?
— Relâche, hoje, meu caro. Desde que cheguei, não posso
mais. Canto todas as noites e todos os dias. As nossas damas de caridade verdadeiramente
abusam. E as elegantes também.
— É a grande atração dos salões.
— Mas esgoto o repertório. Que culpa tenho eu de saber cantar?
— E há cousas – interrompeu o Gomensoro. – Ontem, depois da
matinée em favor do Orfanato das Irmãs do Monte Branco, em que
Etelvina cantou cinco números, tínhamos a recepção
do presidente da República. O secretário da presidência
foi em carro de palácio lá ao hotel pedir, pelo menos, um número.
— E V. Exa. compareceu?
— Fui. Oh! oh! que cousa! Nem os bailes do Eliseu em que o Félix
Faure aparecia de sapatos brancos. A coleção de casacas para
uma crônica hilariante! A série de damas gordas, mal nuns vestidos
crispantes! E havia programa. Cantava uma das damas gordas, cantava uma das
casacas. Os amadores da administração pública! Os amadores
governamentais!… Quase não canto.
— Mas havia o corpo diplomático estrangeiro, gente muito fina,
e alguns colegas meus. Sabe que na minha posição, Etelvina prejudicar-me-ia
se não cantasse. Depois o ministro da Fazenda…
— O ministro da Fazenda? – interrompeu Jacques.
— Conhece? Muito amigo de mamãe.
— O ministro da Fazenda pediu. É um desses republicanos históricos
a que nada se pode negar. Pertencia ao partido conservador da monarquia.
— E cantei, meu caro, mais três vezes. Também afirmo que
acabo morrendo de cantar.
Esperou uma frase amável, que o Jacques não tinha, passou a
língua no lábio, concluiu na íntima necessidade de um
louvor.
— Como os rouxinóis…
Jacques, entretanto, pensava. Talvez fosse possível pedir à
mãe da Etelvina a carta. Ou outra carta. Cartas nunca são demais
no caso de empenho. Mas seria tempo ainda?
— E hoje, que fazem?
— Passeamos de bond, costume nacional, vendo o mau gosto desta arquitetura.
Foi o secretário de França que comparou a Avenida a um bazar
de fenômenos arquitetônicos.
No Passeio, Jacques saltou para assistir a um ato de opereta italiana. Como
os artistas eram detestáveis e as coristas bem redondas e bem dispostas
a saírem acompanhadas, a companhia tinha sempre enchentes, mais de
homens, representativos de várias classes sociais, principalmente a
política. A primeira pessoa conhecida que avistou foi o Deputado Arcanjo.
Estava numa frisa com a esposa e a ilustre Sra. de Melo e Sousa. Viesse vê-las.
Que prazer! Jacques foi. Alice estava com um escandaloso vestido cor de vinho
ardente. Mme. de Melo e Sousa sorria cheia de malícia. Evidentemente
a ilustre dama sentia um certo prazer em aproximar corações.
— Não há mais ninguém que o veja.
— Que exagero!
— A Alice já perguntou duas vezes pela sua pessoa.
— Palavra?
— A primeira à sua mãe no Dispensário da Irmã
Adelaide.
— Também é de lá?
— Grande protetora. Deu muitos contos.
— Oh! D. Argemira.
— Que tem, minha filha? A Irmã Adelaide vai até inaugurar-lhe
o retrato no salão de honra.
— Não quero.
— Será, então, o de seu marido. A Irmã Adelaide
é firme de convicções.
E com a autoridade do seu grande nome, ergueu-se:
— Só nestes maus lugares é que se encontra o Jacques,
não acha Dr. Arcanjo?
Levado pela ilustre dama num fio de conversa, o Dr. Arcanjo, que aliás
não era formado, acompanhou-a até à galeria dos camarotes.
E Jacques percebeu que, pela terceira ou quarta vez, D. Argemira dava ocasião.
Seria desejo de D. Alice? Estava num estado d’alma pouco disposto ao amor.
Mas ao mesmo tempo com a convicção de que nada lhe seria difícil.
— Então, por que não aparece?
— Para não enlouquecer.
— Enlouquecer, o Jacques?
— A senhora bem sabe.
— Eu?
Voltou-se completamente. Olhou-o com os seus dous grandes olhos ardentes.
— Sabe que fui à Cavé hoje? Amanhã lá estou
à mesma hora.
— Seu marido vai buscá-la?
— Vai, como sempre. Mas eu vou antes à casa da Argemira.
— Eu também. Preciso ir.
— Ah! bem. Tem gostado da opereta?
— Muito. Às duas horas.
E voltando-se para D. Argemira, que se encostara ao balaústre, disse
alto:
— Bastou ver-me chegar para sair! É a guerra?
— Sabe bem que não.
A generosa senhora e o generoso marido aproximaram-se. Ia de resto começar
o ato. Jacques assistiu no camarote de Arcanjo. No seu cérebro com
a impressão nova da Alice, o negócio de vinte contos passava
a uma questão liquidada. Já ganhara os vinte contos. Agora eram
as mulheres, as mulheres casadas. Um homem só é realmente chic
quando tem uma amante casada. Cresce na consideração alheia,
apesar de ser cada vez mais comum uma amante casada. E ele que nunca se atrevera
por preguiça, julgando ser preciso ou muito dinheiro ou muita sorte,
via que era fácil, tão fácil como convidar uma cocotte
para cear. Seria o primeiro de Alice? Observou-a como se observa uma cousa
mais ou menos sua. Era bem interessante. Ao demais fazia por que o notassem.
Durante o ato inteiro levou a encarar cavalheiros na platéia e a pôr
o binóculo para certas damas das frisas, trocando impressões
com D. Argemira, que parecia apreciá-la imenso. Jacques pensou que
ela estivesse afetando indiferença por sua causa, para fazer de senhora
fina, dessas capazes de enfrentar um batalhão de amantes passados sem
dar a perceber que lhes deu a mínima confiança. Quando baixou
o pano, porém, os seus olhos fixados na boca de Jacques diziam tão
claramente o desejo que ele se prometeu um dia seguinte, melhor do que qualquer
outro, da sua leve existência. Ao sair, encontrou Godofredo de Alencar,
o aplaudido cronista. Godofredo estava doente. Ficava sempre doente para a
noite. Vinha, entretanto, de jantar com o senador relator do orçamento
da Fazenda.
— Da Fazenda?
— Sim, homem, que tem isso?
— Conheces o ministro?
— Faz-me o favor de ser meu amigo.
— Que tal?
— Que tal, como?…
— Ora…
— É um costume este esquisito que todos vocês têm
de insinuar dúvidas sobre a honestidade dos homens colocados. Não
sei, não, caro. Para mim todos os ministros são angustiosamente
honestos enquanto são ministros. Olha, a questão é de
habilidade.
— Vamos cear?
— Mas a que horas queres que eu escreva, se durante o dia tenho negócios?
— Então, não dormes?
— Sim, às vezes, para não perder o hábito.
— Vais escrever agora? E custa muito?
— Escrever custa. Agora, vende-se muito em conta. E, meu caro, um gênero
na baixa.
— Acompanho-te.
— Com prazer.
Jacques seguiu-o porque não tinha o que fazer e estava muitíssimo
nervoso para dormir. Godofredo aceitou a companhia sem vontade e começou
a dar voltas vagarosas pelas avenidas que partem do Largo da Lapa. Nem Jacques
tinha a coragem de contar o seu negócio, nem Godofredo desejava comunicar
aquele filho de boa sociedade que morava numa pequena sala de uma ruela escura.
Tudo é vaidade. Vaidade das vaidades, já dizia o Eclesiastes.
Exatamente por isso, Jacques falou de Alice.
— A pequena atira-se – fez o escritor cínico.
— Não?
— Queres dizer que não só a ti como a toda gente. É
uma febre caro Jacques, uma verdadeira febre. Estou que é caso de moléstia.
E a nossa encantadora D. Argemira…
— Sim, mas discretamente.
— A levá-la a toda parte, a passeá-la. Sabes o valor
social de D. Argemira. Pois nunca me convidou para a sua casa. O dinheiro,
meu amigo, o dinheiro é a grande arma. Nem talento, nem sangue nesta
califórnia. Dinheiro!
— A quem o dizes – fez Jacques como se fosse um ganhador exausto de
operações dinheirosas. – E por falar em dinheiro, o Jorge…
— Oh! mil contos, mil contos só em imóveis.
— Imóveis?
— Sim, terrenos e casas, caro advogado. E honesto, generoso, mais generoso,
essencialmente moderno, último aeroplano. Adeus, estou perto de casa.
Não precisas vir.
— Moras por aqui?
— Ali embaixo – fez vagamente o escritor deambulando.
Jacques foi deitar-se. Foi de tílburi, apesar do tramway ser mais
econômico, mais higiênico, mais cômodo e mais rápido.
Ao deitar-se, tinha a certeza de que não poderia conciliar o sono.
Era bonito passar a noite a passear de um lado para outro, pensando no marido
da amante e na certa para o ministro. Entretanto, dormiu quase imediatamente
e só acordou às onze da manhã. O sol ia alto. O copeiro
que lhe trouxe o café,
Deu-lhe uma notícia desagradável:
— Madame foi à missa.
Atirou-se para o banheiro desesperado, obteve do copeiro que lhe desse uma
fricção geral d’água-da-colônia, vestiu-se zangado.
Ia perder o negócio, ia perder a Alice, ia perder tudo, por inépcia
e indiferença dos seus parentes. Vá a gente fiar-se nos pais!
Com a fisionomia de vítima resignada, ia sair, quando sua mãe
apareceu da missa. Chamou-o logo ao pequeno salão.
— Então? – fez ele sôfrego. – Até pensei que tivesses
esquecido.
— Falei com teu pai.
— Ah!
— Ele riu muito.
— Riu?
— Riu e disse que lhe estavas saindo de truz.
— E a carta?
— Não ma deu.
— Mas, mamãe, e só agora é que a senhora me diz
isso!
— É que não há mais remédio. Justino tinha
dado uma carta antes para outro construtor e esteve ontem com o Godofredo
na casa do relator do orçamento para fazê-lo interceder. Chegaste
tarde.
— Oh! mamãe, vinte contos!
— Tu disseste cinco.
— Cinco, sim, cinco. Mas ainda não está tudo perdido.
Os parentes! Os parentes!
Saiu sem almoçar. Uma idéia atravessara-lhe a mente: ir falar
com a mãe de Etelvina, com a Sra. d’Ataíde, que morava nas Laranjeiras.
Era uma vergonha, logo no seu primeiro negócio, ser tratado assim.
Que diria Jorge de Araújo? Riria da sua importância, mesmo junto
ao pai. Era enorme aquela! No palacete de Mme. Ataíde, o criado disse
que a senhora não estava. Lembrou-se que a mãe de Etelvina só
estava, quando o sol descambava e podia mostrar, sem muito escândalo,
a face de velha amorosa suficientemente esmaltada. Ninguém mais conhecia
que conhecesse intimamente o ministro da Fazenda! Ministro pouco conhecido.
Nem ele mesmo. Entretanto, já podia ter-lhe falado, graças aos
convites dados pelo Godofredo, de que não se utilizara, senão
para ir ao cinematógrafo. Qual! nunca teria jeito para os negócios,
para ganhar dinheiro!
Consultou o relógio. Eram duas horas. Devia tantas gentilezas a Jorge,
que era impossível deixar de dar-lhe uma satisfação.
Precisava, além do mais, fingir, para não perder a importância.
E tinha a entrevista de Alice em casa de Argemira, àquela hora. Heroicamente
tomou o tramway e veio para o escritório.
— Ninguém perguntou por mim?
— Ninguém – respondeu o velho cor de castanha.
Acendeu um cigarro, acendeu-o à moda, não com fósforo,
mas com um isqueiro. Para se saber a que sociedade pertence um homem, basta
vê-lo fumar. Jacques, fumando era de primeira classe, com o cigarro
grosso no meio do lábio carnudo, tragando vagarosamente, nunca, jamais
quebrando a cinza com o dedo mínimo. Para as três horas, o telefone
vibrou. André arrastou-se até ao aparelho.
— Hein? Jacques? Não conheço. Ah! o filho do Dr. Justino.
Donde é que fala? Da casa da Sra. Melo? Bem.
Jacques fez-lhe sinal que não, furioso, o velho cor de castanha irradiou.
Ia dizer não. E pegando outra vez no fone:
— Alô! É a senhora? Diz que não está!
Neste momento, radioso como nunca, apareceu Jorge de Araújo.
— Negócios muitos? Bons?
— Maus.
— Ah!
— Chegaste tarde, meu caro. Falei com o pai, falei com d’Ataíde,
que se dá com o ministro, desde o tempo em que ele era do partido conservador.
Não foi possível. Até o relator do orçamento deu
cartas para o teu rival. Foi assinado hoje.
— Foi.
— Sabias?
— Pois claro. Lancei aquela proposta com outro nome, o de meu cunhado.
Como houve outra mais em conta, tive que, à última hora, colocar
uma em meu nome, mais reduzida. Se perdesse a grande não perdia tudo.
— Era tua, então?
— Era. Eram ambas.
E para Jacques, perfeitamente apatetado:
— Nada mais simples: negócios!… É preciso preparar
as cousas. Deixa, porém, dar-te os parabéns. Fizeste muito num
exercício preliminar. Não me esquecerei
Capítulo IV: Primeiro, o amor…
"Conhece-te a ti mesmo", disse o sábio. Era um sábio
antigo. O verdadeiro saber está em cada um ignorar-se a si mesmo. Que
seria da vida, se todos, ou a maioria, ou mesmo uma pequena parte tivesse
idéia justa do seu valor? Há calamidades em que se não
pensa, nem mesmo quando se é sábio e antigo.
Jacques percebia nitidamente que outro momento não havia surgido igual
para uma vida aventureira de negociatas. Mas uma indolência, por demais
moral e por demais física parecia afastá-lo desse ambiente de
ativa persistência. Dois dias acompanhou Jorge de Araújo a ver
as obras. Jorge, porém, tratava-o como uma visita e ele não
podia perder a mania de que era muito superior ao amigo rico.
— Meu caro, dentro de dous anos, realizo a independência – dizia-lhe
Jorge.
— Como?
— Negócios…
Negócios! Palavra mágica, palavra que, cada vez mais vaga,
toma no Brasil proporções enormes e ao mesmo tempo, sutis –
negócios!
Sabedores de que Jorge, com capital, repartia, vários numerosos cavalheiros
passavam o dia a correr ao seu escritório, oferecendo contratos, concessões.,
negócios. Jacques, com o seu hereditário cinismo ingênuo,
estava espantado. Nunca, na sua vida, imaginara que se fizesse dinheiro sobre
o dinheiro, tão rápida e tão fantasticamente.
Pelo escritório de Jorge viu passar o Carlos Chagas, viu passar o
Dória e viu também passar outros construtores, o Eleutério
Souto, o maior bluff à espera de casamento rico, tendo um escritório
com arquitetos franceses, o belo Passos Vieira, sem o mínimo talento,
mas quase milionário, outros. Quem tivesse uma amizade imediatamente
tratava de empenhá-la, de pô-la no prego. Mas Jorge dizia:
— São intermediários demais. Já agora não
precisamos.
— Como não?
— Vamos de cara. Os próprios detentores dos negócios
dão à gente…
— Com condições?
— Com boa vontade – fazia o industrial, subitamente discreto. – Mas
os intermediários! Imagina que há um mês para certas obras
orçadas em dois mil contos, recebo propostas trazidas por diversos
rapazes. Algumas tinham a letra do próprio diretor da repartição,
que prometia abrir concorrência. Mas eu conheci o diretor sem níquel,
num club de prontos.
— Quando?
— Quando eu também era "pronto". E vi bem que ele
embrulhava os rapazes, estando feito com uma casa amiga de que é sócio
secreto.
— Mas é um imoral.
— Qual de nós é moral, Jacques?
Para aquele meio tudo era dinheiro. Jorge trabalhava das seis da manhã
às seis da tarde. Depois lavava-se, perfumava-se, vestia-se e aparecia
para o vermouth, numa confeitaria da moda, no seu lindo automóvel de
sessenta cavalos. Aí era o mundano. Fazia-se uma roda em que aparecia
Godofredo, sempre doente e sempre inquieto, Otaviano Soares, um jovem ambíguo,
vários industriais de diversas nacionalidades, inclusive um irlandês
e um turco. De raro em raro, o Barão Belfort, esse curioso das emoções
alheias, parava um pouco, ao vir do club, que ficava na Avenida, a dous passos.
Jacques sofria sem saber que sofria, com a promiscuidade daquele pessoal.
Gostava muito mais da outra roda, da roda da Cavé, às quatro.
ti estava no seu elemento, com gente conhecida, que já tinha chegado.
E ficava calado, porque só sabia falar ingenuamente mal da honra dos
seus conhecidos. Oh! A existência não era afinal apenas o seu
reduzido grupo, as suas reduzidas pândegas e reduzidíssimas idéias.
Bem sabia. Teimava desembaraçar-se de uma série de preconceitos,
que o prendiam a uma casta sem dinheiro. E não podia, quando era preciso…
Certo, o jovem encantador não refletia, com tanta clareza. Mas sentia.
E sentir é tudo.
Os outros também sentiam que Jacques era melhor para divertir-se.
conservava-o. Por simpatia? Por uma série de vagos interesses. Jacques
era sempre decorativo. Quando pensava explorar o ousado Jorge, era de fato
este que o aproveitava. Quanto a Godofredo, a verdade é que o a tratava,
como uma criação mundana. Uma vez foi buscá-lo às
seis horas, com o Jorge, à redação. Jorge falara por
telefone. O telefone não se entendia. Deram então uns passos
até lá. Jorge foi de mesa em mesa, a distribuir cumprimentos.
A imprensa é uma grande força e o menor dos reporters podia
prejudicá-lo, dando notícias dos desastres cometidos pelos seus
automóveis, como podia fazer-lhe bem, levando qualquer negócio.
Depois, conferenciou com Godofredo. Jacques não conhecia esses jornalistas,
e, como todos da sua roda, não os tinha em grande conta – principalmente
porque não tinham nem dinheiro nem nome. Só conhecia os donos
dos jornais e três ou quatro cronistas, que como o Godofredo eram complexos:
imprensa, aristocracia, política e chelpa. Quando terminou a conferência,
Godofredo levou a conversa para um terreno mundano. Assim espantava os companheiros
(as suas relações!), fazia espantar a Jorge e reduzia o pobre
Jacques.
— Então é definitivo o divórcio da Zurich?
— Não sei, não; mamãe contou-me.
— Quem pede é ela.
— Como devem estar desgostosos os amigos do marido!
— Também o marido, recebida a herança da tia, batia-lhe.
— E não se pode dizer que não tenha bom coração.
— Apenas, agora é um coração que bate demais.
E falaram de Laura, que andava só com o Chagas, pela rua, à
americana; e falaram de Mme. Gouveia, cuja paixão pelo hipismo levara-a
a se fazer acompanhar por um jockey, o Gonzalez, argentino. Dilaceraram com
dente afiado a honra de todo bando. Jacques tinha uma repulsão invencível
por gente malvestida. De modo que, insensivelmente, o seu comentário
agressivo ficava na roupa:
— O Gonzalez, com aqueles casaquinhos curtos e sujos.
— Um homem que foi lad da coudelaria do Espínola roleteiro.
Quando saíram, Jacques viu que se excedera servindo de trípode
para o elegante cronista. Jorge tinha um riso amarelo, e ele ouviu, ainda
a descer, o secretário indagar de Godofredo:
— Quem é esse idiotinha?
Para qualquer cousa na vida, é preciso antes de tudo persistência.
Persistência e o esquecimento de sua classe. Jacques sentia que lhe
faltava persistência e ou que espantava ou faziam por não lhe
ligar importância, quando deixava os seus amigos. Aos poucos, foi deixando
de ir ao escritório de Jorge, mas sendo cada vez mais o seu companheiro
da noite. A vida é um prazer. Devemos gozá-la enquanto é
tempo. O barão, que uma vez passava do club, tomou-o no seu carro.
— Levo-te até casa.
Jacques aceitou com vontade de pedir uns conselhos ao velho dandy. E o barão
foi-lhe ao encontro.
— Então, como vai a linda criança na advocacia?
— Qual, barão, não tenho jeito.
— Não tem mesmo. Meu caro Jacques, o Rio de Janeiro é
outro depois da Avenida Central. A mocidade de antes da Avenida era composta
na sua maioria de estudantes alegres e despreocupados. Formado o estudante,
ia tratar da vida, segundo as suas posses, depois de guardar os versos maus
do tempo de menino, a recordação dos amores e a recordação
das pândegas. Em regra geral, não havia senão ambições
relativas. Com a abertura das avenidas, os apetites, as ambições,
os vícios jorraram. Já não há mais rapazes. Há
homens que querem furiosamente enriquecer e esses homens são ao mesmo
tempo pais e filhos. Faz-se uma sociedade e constituem-se capitais com violência.
E uma mistura convulsionada, em que uns vindo do nada trabalham, exploram,
roubam para conquistar com o dinheiro o primeiro lugar ou para pelas posições
conquistar o dinheiro…
— E os outros? – fez Jacques, que não se interessava demasiadamente
pela tirada de psicologia social do barão.
— Os outros? Os outros são constituídos de pedaços
heterogêneos da passada sociedade. Não se defendem. Têm
família, os preconceitos da família no fundo, mas adaptam-se
para ficar. E fazem a alta roda ao lado dos dinheirosos do momento, e tomam
os seus processos, explorando de vários modos a sociedade. Tu…
— Eu?
— Tu nasceste para viver à custa da sociedade sem te incomodares.
— Isto é o que o senhor diz.
— É a melhor maneira. Não te canses. É impossível
bateres a vida, como teu pai, como alguns dos meus companheiros de club, como
Jorge ou Godofredo. A ti será preciso que venha o prato feito. E vem.
Vem, porque seria uma pena se não viesse. Olha, diverte-te, ama. Estás
na idade de amar. Não sei quem disse que primeiro o amor, depois a
ambição…
Como são agradáveis os conselhos quando vêm ao encontro
da nossa própria opinião! Jacques seguiu-os imediatamente. O
consultório do pai foi apenas um ponto, onde passava alguns minutos,
entre as três e as quatro, quando lá aparecia. O resto era a
vida de prazer. Começava no chá da Cavé, às quatro
horas, e lá ficava até às seis. O seu grupo era o Dr.
Suzel, Bruno Sá e Belmiro Leão. O Dr. Suzel, inteligente e fino,
fazia por esquecer o que sabia numa preocupação lambareira do
mulherio de sociedade. Conhecia uma porção de anedotas, contava
as ligações de cada uma, e estava permanentemente apaixonado
por várias damas.
Bruno Sá, de dinheiro escasso, mas hábil, conseguia ser o homem
mais amável do mundo. Era impossível haver outro mais gentil
e mais sorridente. Ao aproximar-se de alguém, dizia logo:
— Sim, senhor!
Para mostrar que concordava. As vezes acabara, na mais estrita intimidade,
de demolir o indivíduo. Mas as senhoras gostavam dele. Era uma figura
obrigada de todos os bailes e de todos os salões. Belmiro Leão
herdara do pai. Vestia bem, dizia mal dos outros e conquistava também,
além de senhoras honestas, algumas cocottes. Era o passadiço,
devido a esta qualidade extra, por onde Jacques passava para a roda de Jorge
de Araújo, roda de confeitaria, de casinos, de clubs de roleta. e de
pensões de raparigas loucas. Belmiro Leão, ao demais, usava
um monóculo sempre entalado no olho direito.
Os quatro, com um chá modesto, tomavam conta do estabelecimento, sabiam
o nome dos caixeiros e falavam com a caissière em francês. O
Rio elegante passava diante deles. Suzel e Bruno cumprimentavam todas as senhoras
do tom, e marcavam mesmo algumas entrevistas para o mesmo sitio, mais cedo,
antes da afluência. Belmiro e Jacques também saudavam as cocottes,
as melhores, afinal um pouco da família geral (o mundo é uma
família) porque tinham sido, eram, ou tinham de ser amantes dos maridos
das senhoras do tom, conhecendo-as muito bem, às vezes pelo apelido
de casa, e sendo conhecidas também não pelo nome de casa que
as próprias cocottes acabam por esquecer, mas pelo nome de guerra do
momento.
Impreterivelmente, entre as cinco e as seis, aparecia Alice dos Santos. Quase
sempre em companhia da ilustre Argemira de Melo e Sousa. O flirt, interrompido
pela insolência da falta à entrevista, eternizava-se. Jacques
nunca seria capaz de conquistar. Com as mulheres era sempre hipócrita.
Queria, mas ficava quieto, sabendo que, quando são elas a desejarem,
tudo fica mais agradável. A conquista de Alice satisfazia no momento
as suas ambições adulterinas. Mas não dava um passo,
não mostrava a menor animação, sempre na defensiva, excitando
Alice com a frescura da sua mocidade ardente.
De resto, tinha de ser.
Alice dos Santos era um caso de frivolismo mundano e sensual comum. Passara
até os vinte e três anos na província, com a atenção
voltada para a vida elegante da capital. Fizera assim uma idéia exagerada
de tudo: da moda, dos divertimentos, dos homens, da liberdade, dos costumes,
acreditando em quanta fantasia lia nos jornais e em quanta invenção
narram os provincianos de volta, para se darem ares. Os seus modos causavam
impressão. Ela os tinha, entretanto, porque os considerava extremamente
cariocas. Ao casar com Arcanjo, muito mais velho e pobre, posto que com posição
política, casara com a mira de vir instalar-se no Rio, desejo a que
se recusara sempre o velho estancieiro, seu pai; e não só para
gozar os refinamentos da cidade como para dominar e ser a primeira entre as
senhoras faladas pela beleza, pela fortuna e pela posição. O
cuidado com que se comparava à fotografia das grandes damas nos jornais
ilustrados para se achar melhor sempre! A pertinácia com que estudava
nos magazines mundanos a tecnologia, a língua confusa da alta roda,
aliás tão limitada! Quando chegou, não quis usar nenhum
dos antigos vestidos, nenhum dos antigos chapéus, que, entretanto,
já eram grandes. Esteve incógnita oito ou dez dias, à
espera de toilettes estupendas.
O marido era uma figura doente e simpática, que lhe fazia sempre as
vontades com uma resignação de intendente. Realmente Arcanjo
era doente como Rockefeller, dadas as devidas proporções de
riqueza. Incapaz de falar na Câmara, porque dele se apoderava um tremor,
que Godofredo dizia ser o prévio remorso da asneira – além da
mulher, só duas coisas o preocupavam: o esperanto e o vegetarismo.
Ambas tinham com a língua, que não utilizava nos debates parlamentares.
Vegetariano era-o por completo. Dedicara-se até a estudos especiais
e nesses estudos vieram a causar-lhe inquietação as conclusões
de um célebre médico num congresso de patologia geral sobre
a influência dos legumes no caráter. Arcanjo sabia na ponta da
língua que o espinafre desenvolve a ambição, a constância
e a energia; a azedinha leva à melancolia; a cenoura é recomendada
aos biliosos e aos maridos infelizes; a vagem incita à arte; o feijão
branco convém aos intelectuais; o petit-pois é frívolo;
a couve-flor agrada aos egoístas e a batata provoca o equilíbrio
mental.
Para sentir-se possuidor de um caráter de primeira ordem, fora aos
poucos misturando, tanto que acabou por almoçar e jantar panachée
de legumes. Indicava aliás essa alimentação aos artríticos,
concluindo sempre:
— É tão boa que o Dr. Zamenhoff continua vegetariano.
— Que Zamenhoff, Arcanjo?
— O pai do esperanto, a língua universal, a língua em
que daqui a tempos poderei falar em qualquer país do mundo, quando
esses países souberem o esperanto.
Era afinal um bom sujeito. Não há ninguém que não
seja um pouco bom. A teoria do absoluto é impossível aplicada
às qualidades.
Alice aceitava-o sem repugnância, pensando, aliás, noutra coisa.
Esta outra coisa era a fixação na sociedade, "como devia
ser". Era preciso montar casa, imediatamente. Arranjada a casa na Avenida
do Entroncamento, uma nuvem de fornecedores caiu sobre eles, explorando-lhes
a vaidade provinciana. Em toda parte é mais ou menos assim. Mas Arcanjo
tinha a lutar com os empenhos dos políticos e as opiniões de
algumas relações mundanas que valorizavam os fornecedores. Os
colegas de política escreviam a pedido empenhando-se pelo fornecedor
de tapetes ou pelo fornecedor de louça. Arcanjo recebeu até
por intermédio de um agente de mobílias uma carta do seu Grande
Chefe, dizendo textualmente: "precisamos ajudar os nossos amigos".
— Amigos dele! Nem o conheço! Com certeza reforma algum compartimento
do seu paço!
Mas atendeu também a um mercador de tapetes orientais recomendado
pela bancada do Pará, acabou com vontade de montar outra casa, para
satisfazer a todas as bancadas.
— Como se metem na nossa vida!
— Oh! filho, são os próprios fornecedores que vão
pedir. Não viste com os automóveis?
Com os automóveis, uma das casas trouxera até uma recomendação
do cardeal. Com um pouco mais trá-la-ia do Papa em pessoa. Era uma
casa que fornecera automóveis por preços altíssimos para
todos os serviços prováveis do governo, e distribuíra
alguns grátis. Arcanjo e Alice, porém, impressionaram-se com
a opinião dos seus conhecimentos da alta sociedade. Eram os primeiros,
alguns rapazes, das melhores famílias, mas desses que preferem a transação
ao trabalho. Também são esses que constituem sempre o piquete
de reconhecimento da sociedade que se preza, passando uma vidinha de perpétuo
regalo e explorando os pretendentes ao escol com um cinismo acima da expectativa.
O primeiro a aparecer fora Carlos Chagas. Era correto, delicado, tinha esplêndidas
relações, e como não se empregava em nada de confessável,
resolvera ter gosto. Ter gosto pode ser uma profissão, dada a raridade
do gosto. Era de resto sempre uma apresentação.
— Ah! "seu" Arcanjo – dizia atirando piparotes no ventre
doentio do deputado vegetarista – gosto tenho eu. Aqui neste pais não
se tem a noção do chic. Ninguém como eu sabe pôr
uma mesa, arranjar um menu, decorar uma sala. Gosto tenho eu. Falta o dinheiro.
Também quem já pôs fora três fortunas…
Sempre que se referia à moeda, precedia-a daquele determinativo que
a realçava. Nunca dizia: dinheiro. Dizia sempre: o dinheiro. E com
tal autoridade que era da gente pedir-lhe desculpa por vê-lo sem o dinheiro.
Em duas palhetadas dominou o casal com decretos de elegância.
— Vi hoje uma jóia chic, cousa boa, que lhe vai a calhar. É
para uma pessoa distinta.
Os esposos terminaram as dificuldades das escolhas, fazendo-o árbitro.
— Como achas?
— Não, como gosto distinto fica melhor assim.
Tinha gosto até a escolher o trem de cozinha. Os fornecedores, vendo
a sua decisiva importância, procuraram ter gosto também. Ficaram
os que tinham mais. Arcanjo devia ter pago preços de fábula
pelo mobiliário, pela galeria de quadros, pela prataria. A casa já
estava pronta quando Chagas, o Dória (que se dizia descendente dos
Dória de Itália), o Raul Pereira, filho dos Marqueses de Pereira
e outros rapazes da mais fina roda sem vintém lhe descobriram, um faqueiro
histórico, faqueiro de setecentas peças de prata lavrada, oferta
de um amigo em delírio ao Generalíssimo Deodoro. A esposa do
Generalíssimo desfizera-se aos poucos do faqueiro colossal. Um colecionador
reunira, porém, todas as facas, em que o proclamador da República
– (os vendedores diziam-se no fundo, por chic, monarquistas) – nunca pegara.
O faqueiro vinha à mão de Arcanjo por nove contos fortes, porque
o colecionador tinha residência em Lisboa.
A casa ficou vistosa. Parecia um cenário de Antoine, quando se propõe
reproduzir, na montagem das peças salões de luxo. Havia tapetes,
bronzes, quadros, escadarias forradas de veludo cor de vinho e cor de granada,
palmeiras em vasos de variados feitios, um coupé, um automóvel.
Alice, inteligente, consultava os costureiros, as modistas, os joalheiros,
e aparecia cada vez mais desejosa de vencer. Mas sentia nitidamente a hostilidade
dos leaders, das leaders mundanas.
A mãe de Eleonora Parckett dissera:
— Não posso freqüentar essa rapariga, que não é
da nossa sociedade.
A mãe de Eleonora, ao que diziam, começara dançarina.
Mas era falso. Luísa Frias denominara-a de "ave exótica".
Havia outras ironias agudas. Alice percebeu que, se os homens em tal meio
vencem com o dinheiro e braço, as mulheres podem vencer aliciando para
o seu partido os homens. Apenas exagerou. Quando num baile, numa festa, na
rua, no chá das quatro, nos dias de Mme. Pedreira, às quintas
de Argemira, percebia ter agradado mais a um cavalheiro, sentia como a ebriedade
da vitória e ultrapassava o flirt para irritar as proprietárias
legítimas ou ilegítimas desse cavalheiro. O resultado era inteiramente
desastroso. Os homens contavam uns aos outros, com perfeita discrição,
os avanços da bela Alice, e o grupo de admiradores aumentava à
proporção que a tolerância familiar esfriava. Venceria?
Era ainda a mais honesta, era apenas uma vítima do esnobismo dos equilibristas
da alta vida. E no fundo, nos seus nervos, só sentia um certo interesse
por Jacques: Jacques com as suas largas mãos, a sua tez cor de pêssego,
aquela boca tão carnuda e rubra, os dois olhos molhados, o cabelo negro,
repartido ao meio. Jacques era o que lhe mostrava maior indiferença…
Outra qualquer desanimaria, Alice, porém, tinha a Sra. de Melo e Sousa
a seu favor.
A Sra. de Melo e Sousa passava por ser das mais ilustres damas da sociedade,
fidalga de verdade, nobre de fato, inteligente, culta, requintada. A sua ascendência
era conhecida de quatro séculos, sendo no Brasil anterior à
vinda de D. João VI. As pequenas crônicas privadas davam-lhe
na linha direta três monjas, quarenta adúlteras, cinqüenta
generais, cinco artistas, dez juristas, vários diplomatas. Argemira
mostrava-se culta com simplicidade. No seu tempo de moça amara muito,
independente do marido, a quem aliás sempre respeitara, nas constantes
viagens pelo estrangeiro. Agora, não velha, que senhora tão
cuidada e de tão formoso espírito não envelhecia, mas
apenas "datava" como se fosse do XVIII século, assistia a
sorrir à eclosão da nova sociedade, amando a mocidade e amando
o amor. Por isso, talvez protegesse os jovens, e, como sabia a crônica
geral, perdia-os com anedotas autênticas da vida real de cada um, francamente
corrosivas. Além do mais, Argemira queria ver caminhar o seu caro Jacques.
Foi ela quem os aproximou de novo, sem a menor alusão à falta
do lindo mancebo, fazendo-se encontrada como por acaso…
— A Alice recebe agora os seus amigos.
— Ah! meus cumprimentos.
— Arcanjo ainda não o preveniu?
— Ainda não.
E a linda Alice:
— Pois temos muito gosto.
Depois, era o chá a três, com conversinhas mais ou menos picantes,
em que Alice flambava como um ponche, eram perguntas, indiscrições.
A jovem tinha a idéia de que Jacques devia ser disputado por todas
as mulheres. As mulheres pensam sempre assim, quando desejam, para sustentar
e manter o desejo. E perguntava nomes de cocottes no Lírico e na Cavé,
sorria maliciosamente, sempre que Jacques cumprimentava alguma dama. D. Argemira
sabia conservar a atmosfera, divertida com o flirt. Jacques parecia tão
agradecido… Um mês depois, Belmiro Leão apareceu indignado
no chá das quatro.
— Olha – disse a Jacques – estive ontem na festa de caridade da Irmã
Adelaide com a Alice e D. Argemira. É de força a Alice…
— É, ela contou-me que lhe disseste inconveniências e
passaste uma cartinha embrulhando uma flor. Lemos a carta.
Belmiro Leão ficou rubro e indignado. Aquele processo da Alice parecia-lhe
de uma depravação inqualificável. Não a cumprimentaria
mais! Há coisas que não se contam. Nunca fizera papel de tolo.
Ah! ia perder aquela impertinente no conceito público…
Jacques ficou glacial e ergueu-se logo.
— Mas olha, não tenho nada contigo; é com ela. Tens sorte,
és o amante.
— Quem te disse que eu era o amante?
— Ah! bom, não sabia que era paixão. Cavalheiro…
Jacques saiu contrariadíssimo e encontrou na Carioca, ao subir para
o coupé-automóvel, Alice e Mme. de Melo e Sousa. Há acasos
fatais. A vida é um grande acaso.
Argemira pasmou:
— Por aqui a esta hora? Aposto que adivinhou a nossa presença?
— Não. Vou para casa.
— Está aborrecido? – indagou Alice.
— Não; estive com o Belmiro Leão e ele está furioso
com a senhora.
— Comigo?
— Porque contou-me a cena de ontem.
— A quem poderia contar então? – fez Alice.
— Ora deve ser divertido o Belmiro. Venha você narrar-nos a cena
por miúdo.
— Onde?
— No auto, conosco – disse logo Argemira. – Alice ia levar-me a casa.
Levam-me os dous.
— Mas não chego.
— Vais no meio, um pouco apertado.
Alice um tanto trêmula, lembrou-se entretanto que era uma elegância
espantosa essa de irem num carro apertadas várias pessoas. Jacques
também estava trêmulo. Mas concordaram. Subiu primeiro Alice,
depois ele. Por fim Mme. de Melo e Sousa. Jacques ficou na ponta do assento,
entre o vestido roxo da ilustre dama e o vestido de veludo castanho de Alice,
um vestido em que o seu corpo cheiroso parecia num estojo…
— Laranjeiras! – disse Argemira. – Para minha casa. – E depois: – Conte
l&aacutaacute;, menino terrível.
— Ora…
Jacques contava. Contava e sentia que insensivelmente o seu corpo ia tomando
mais assento e que de Alice vinha um perfume doce, agradável, macio.
Ela ficara silenciosa, olhando-o.
— Que me olha tanto? – indagou Jacques.
— Admiro a pérola de sua gravata.
— Bonita? Foi a mamã que ma deu.
— Gosto muito de pérolas.
— Quando não são as da Luísa Frias – interrompeu
Argemita – falsas como a onda…
— Esta é verdadeira.
— Quem duvida? Você tem cada idéia…
— Não, que a senhora é muito perversa.
— Eu?
— Mostra-me a pérola? – pediu Alice.
Jacques tirou o alfinete da gravata. O automóvel dava solavancos.
Passou-o à Alice, apertando-lhe os dedos.
— Tenha modos. Deixe de brincadeiras.
— Está enganada.
Mas viu que Alice se recostava e, pegando o alfinete pela ponta, roçava
a pérola na face, nos lábios, no pescoço, pelas pálpebras,
vagarosamente, como afastada do mundo, as narinas palpitando. Passou a mão
na almofada e encontrou uma outra mão gelada, que tremia. O silêncio
caíra de chofre. D. Argemira sentia, sem ver. Alice ofertava-se à
pérola, que é a pedra de Vênus. Ele estava numa impetuosa
onda de sangue e de desejo. Era o momento. O automóvel parou, sem que
dessem por isso. Argemira saltou.
— Não os convido para entrar. É tarde. Merci pelo obséquio.
Até logo à noite, não?
Nenhum dos dous respondeu. Eram incapazes de dizer uma palavra com senso.
Em roda, como dizem os romancistas, o mundo se alheara, vago e indeciso. Ela
só queria ele, ele. A sua carne vibrava um suspiro de apelo. Qualquer
palavra seria inútil. Jacques puxou num rápido gesto os stores,
soprou, no tubo acústico: devagar! enlaçou-a na violência
da sua adolescência vitoriosa. Ela ainda meneou a cabeça, fugindo
ao beijo almejado. Mas ele prendeu-lhe a face com as duas mãos e sorveu
na sua boca vermelha a boca saudável de Alice.
— Mau! – fez ela. – Como demoraste! – E, numa ânsia tropical,
o seu lábio procurou o dele, sorveu-o também, enquanto os dous
corpos se enlaçavam na harmonia indizível do desejo.
E o automóvel, devagar, buzinava pelas ruas, ameaçando os transeuntes.
Eram seis e meia da tarde.
Capítulo V: O incidente fatal
O amor é uma felicidade transitória, mas irradiante. Só
quem nunca amou pode imaginar o amor eterno. Só quem ignora as delícias
dos primeiros tempos de uma paixão na agradável posição
de amado, pode acreditar possível o segredo no amor. Não é
preciso ser indiscreto, não é preciso dizer palavra. Cada gesto,
cada olhar, cada inflexão do homem amado revela o deus que comeu ambrosia.
Os outros homens ficam, sem saber por que, irritados, e mesmo muito amigos,
procuram falar mal do feliz. As mulheres, todas as outras mulheres sentem
de súbito uma incompreensível simpatia. E uma corrente misteriosa
que põe o mundo exterior no segredo. De um lado aumenta a atração,
de outro os homens se tornam ainda mais pólo negativo. A sabedoria
do profissional é mudar imediatamente de amante para conservar a atmosfera.
Jacques não era um profissional. Mas logo percebeu que entrava mais
no mundo, muito mais do que quando se formara ou começara a vida prática.
Certo não era nenhum ingênuo, nem caíra nos braços
de Alice para aprender essa coisa difícil que no século XVII
chamavam arte de amar e no século XX chamam sport do engano. O fato,
porém, é que nem a criada iniciadora, nem as sestas passadas
com a quase virgem Ada na casa do barão, nem a italiana oxigenada do
desagradável incidente da sopa e da cautela, nem as pequenas de várias
nacionalidades encontradas nos clubs e nos music hall, lhe tinham dado a satisfação
pessoal, a plenitude, a segurança da sua vitória como o apetite,
a violência amorosa de Alice. Nas ações menos importantes,
Jacques sentia-se excepcional. Ao chamar o criado para a fricção
de água-de-colônia, ao levar o garfo à boca, ao tomar
um aperitivo, mesmo só, a caminhar no seu quarto, era como se conduzisse
um objeto raro, alvo das atenções alheias. Está claro
que não correspondia a tanto amor. Um rapaz de linha não se
compromete assim. Gozava, entretanto, muitíssimo, assistia com aplausos
ao ato de Alice, tanto mais quanto de um momento para outro aquelas senhoras
que o tomavam por um menino de maus costumes, revelavam uma complacência
curiosa. Curiosa e prometedora. As senhorinhas, como Laura Gomes, faziam alusões
veladas.
— Já ninguém o vê, Jacques, a não ser com
a política…
A Viuvinha Ada Pereira retivera-o numa das recepções de sua
mãe a tarde inteira a conversar. Jacques não tinha uma palestra
muito variada.
A viuvinha, ao contrário, gostava de conversar. Mas dava-lhe a deixa,
trazia a baila assuntos possíveis. Não se conteve:
— Conte-me alguma coisa de novo.
— Não há nada, nada.
— Ora, conte-me a sua vida.
— E logo esse corte num ponto tão interessante do folhetim!
Gina Malperle, cada vez mais íntima amiga de Mme. Andrade, uma das
três irmãs, que no momento disputavam o bastão da beleza,
levou certa vez dois minutos com a sua mão presa, enquanto a admirável
Andrade descia do seu papel de deusa e parecia requerer o voto daquele Páris
último aeronave. Era a roda toda, indireta, mas visivelmente. E não
só a roda. As mulheres livres olhavam-no de outro modo, tratavam-no
de outra maneira.
— Tiens! voilà ]acques…
Era uma festa, nos salões de ceia dos clubs. Talvez Jacques exagerasse.
Mas até nas ruas, nos tramways, rapariguitas pobres, senhoras desconhecidas,
fixavam-no com a volúpia feminina que é a volúpia da
serpente, a virtude de olhar e esperar. Com a sua educação,
Jacques não cairia na vulgaridade de se julgar irresistível,
como qualquer caçador de rua. Mas os fatos provavam, e ele, por um
fenômeno reflexo, estava mais cheio, mais bonito, mais radiante.
— Este menino sua amor! – exclama a venerável Sra. Ataíde.
Todos os meninos suam amor, antes dos vinte anos, quando têm a amá-los
uma criatura bela e ardente…
Alice dos Santos também não fazia por ocultar em público
a sua conquista. As pessoas que a recebiam e a cumprimentavam ficaram hesitantes.
Algumas damas invejaram-na. Outras encheram-se de ternura. A relíquia
da monarquia, Sra. de Muripinim, deu para tratá-la de "minha filha",
contando-lhe velhas histórias da Quinta, em carros do paço,
os bailes dos mordomos, os flirts dos príncipes, a mania que o imperador
tinha de trair a imperatriz só com atrizes.
— Era um sábio, minha filha, gostava muito de teatro.
A venerável mãe de Eleonora dissera:
— Se essa menina engana o marido, o caso é com o marido.
E D. Malvina teve um fraco de agradecimento maternal, satisfeita com a paixão
inspirada pelo filho. Deu uma porção de conselhos graves e impertinentes
a Alice, que aliás não os poderia seguir. No estado de espírito
em que se encontrava a esposa do deputado vegetarista, só podia considerar
o casamento a província do amor. Jacques era a capital, a capital mundana.
Ela começava a realizar nele o que desejava realizar com a cidade.
Tê-la sua, dominada, inteiramente sua. Depois da cena do automóvel
surgiram as necessidades crescentes e a urgência dos primeiros encontros.
Era impossível ser sempre no automóvel. Impossível e
perigoso. Não pareciam convenientes os alvitres lembrados por Jacques,
assaz sem dinheiro: um ou dois hotéis na Tijuca, em Santa Teresa.
— Não convém.
— Que há?
— E toda essa gente que te há de ver? Não, não.
Uma casa comum, casa do oficio, seria muito reles. Alice não iria,
nem ele lembrou. No terceiro dia, porém, Jacques foi visitá-la
a casa, às duas horas. Ela recebeu-o como uma criança. Assim
que o criado voltou as costas, caiu-o de beijos, e ele já julgava o
salão agradável, quando vieram anunciar as Soares, relações
políticas do marido, gente das Alagoas, de passagem para a Europa.
Não se podia estar naquela casa tranqüilo! Jacques então
lembrou-se de Godofredo, do quarto de Godofredo. Era a solução.
Godofredo seria discreto. Ao demais, nem precisava saber de que se tratava.
Correu a procurar o cronista. Godofredo estava num dos dias de mau humor.
Não se podia dizer que estivesse pálido. Era verde demasiado,
eram grandes olheiras. De instante a instante torcia os dedos. Os negócios
não lhe corriam bem decerto, as relações políticas
divertiam-se contra o seu valor.
— Que tens?
— Nada, complicações morais.
— Os negócios?
— Ah! os negócios. Já vens tu com a seca dos outros também.
Negócios! Que negócios! Não faço nenhum. Antes
fizesse. Não é culpa minha. Mas ainda dou o tiro definitivo.
Invariavelmente, como sempre, nesse grave assunto, contradizia-se. Jacques
aproveitou.
— Tens duas chaves de trinco?
— Eu?
— Sim, do teu quarto.
— Não tenho quarto.
— Como?
— Tenho a frente de uma casa.
— Vais emprestar-ma durante o dia.
— Emprestar, para quê?
— Segredo…
— Ah! bravo.
Mas explicou como era impossível: uma rua cheia de vizinhança
sempre à janela; a casa com uma dúzia de crianças, que
vinham para a porta, por não ter as janelas, e o seu quarto cheio de
livros, papéis, uma trapalhada, uma barafunda! Jacques não se
sentiria bem e a pessoa, que devia ser de sociedade, também não.
— Tenho uma grande biblioteca. Não imaginas. Na mesa, papéis,
escovas, velas, frascos de essência (porque só escrevo cheirando
heliotrópo e violeta), um inferno!
Havia, entretanto, a solução. O Barão Belfort era um
dos quatro ou cinco homens da cidade possuidores de garçonnieres dignas
de receber pessoas decentes. Ocupara-a, havia dois meses, com uma anedota
sentimental de somenos importância. Podia cedê-la. Iria ele, pessoalmente,
se Jacques achasse imprudente aparecer.
— Fico-te muito agradecido.
— Com que então já conquistador?
— Oh! Godofredo.
— Fazes muito bem. Conquistas de primeira plana colocam sempre bem.
— E vais hoje?
— Hoje, não posso. – E irritado: – Não posso, é
impossível. Estou com azar. Tudo falha. O barão seria capaz
de negar.
Jacques submeteu-se ao fetichismo do homem superior, e no outro dia, o criado
de Belfort, um criado francês, foi pessoalmente entregar-lhe uma chave
de prata, com esta palavra a lápis, em papel timbrado do barão:
Excelsior!
A garçonniere era de um gosto apurado e fino. Ficava numa das ruas
que desembocam no Flamengo. A casa era própria. Constava de cinco peças.
No salão pequeno havia por mobília um caro tapete, um baú
medievo, um contador espanhol, algumas telas de Corot, de Turner, uma vitrine
com esmaltes e medalhas antigas, cortinas pesadas de seda. Logo depois, uma
sala maior, à XVIII século, laca e tapeçaria gobelino
moderno. As paredes eram forradas de seda rosa. As cortinas eram de seda quase
branca. Em medalhões, Lancret, Watteau, Boucher, três telas em
que o amor se repetia galante. O lustre, em bronze verde fantasiava a escalada
dos amores. Havia uma bergere, um divan, um leito, e o ambiente estava impregnado
de essência de rosas. A seguir, a sala de banho, feita de mármore
colorido, alabastro verde, e cristais de tonalidades mortas. O conforto e
a higiene tinham organizado aquela peça. Havia o leito de mármore
forrado por um tapete persa para as massagens, havia a máquina elétrica
do leito condensador, tabuleiro de cristal com frascos de todos os tamanhos,
em que se encontravam desde as essências perfumadas até a terebentina.
E a piscina de alabastro verde, enchia pelo fundo de água morna, água
a ferver ou água gelada. Logo depois vinha a sala de jantar, mobiliada
ao gosto inglês, aconchegada e agradável. Por fim a cozinha,
com um fornecimento em latas e garrafas de tudo o que faz mal e sabe bem;
vinhos da Hungria e da Borgonha, champagne, foie-gras, trufas…
— Homem esplêndido! – fez Jacques.
Era esplêndido, principalmente porque, à sua primeira necessidade
frívola, presenteara-o com aquele luxo, com o uso daquele luxo. Jacques
decerto não pensava em possuir o luxo. Bastava usá-lo. Sempre
fora assim, e assim sempre seria. O efeito foi aliás fulminante na
cabecita de Alice. O luxo, a elegância davam-lhe ao amor um supremo
requinte. Ela sentia-se bem, sentia-se apreciada. Quando as mulheres amam,
sentem coisas de que o bom-senso desconfiaria mesmo em estado de cometer imprudências.
E foi no primeiro mês o grande duo fundamental nos dramas musicais de
Wagner e em quase todas as existências. Ao acordar, Jacques tinha uma
cartinha de Alice exigindo alguma futilidade ou a sua presença em qualquer
lugar. Alice escrevia bem, abusava um pouco. Logo depois do almoço,
o filho do Dr. Justino não se possuía. estava com Alice nas
exposições, nos carros, nas conferências, nos teatros,
em casa dos conhecidos. Até mais de meia-noite, às vezes nos
bailes até pela madrugada, era do casal, conversando com o marido,
valsando com a esposa, amado por ambos. Sim, porque Arcanjo amava-o com enternecimento,
estava desvanecido com a companhia mundana de Jacques. À garçonnière
nunca chegavam juntos. Ou vinha ela primeiro ou vinha ele. Quando ela chegava
de automóvel ele chegava de carro, quando ele aparecia em auto, era
ela que se fazia conduzir de trem. Alice transportara para o ninho um completo
sortimento de dessous admiráveis, kimonos de levantar de seda leve,
irlandas bordadas. Jacques nada levara.
— Meu amor! – dizia ela ao entrar, logo dependurando-se dos seus lábios.
— Linette! – dizia ele, deixando-se beijar.
Alice, se tinha uns caídos muito brasileiros, isto e, muito torráozinh0
de açúcar a derreter e as palavrinhas ternas, melosas, em que
a brasileira vence o record mundial, distanciando mesmo a chinesa, Alice era
inteligente. A inteligência dera-lhe uma ousadia ainda acrescida pelo
desejo mundano de parecer bem, de parecer como nos romances. Depois era empolgante
e enebriante. Não se poderia dizer que um ensinava ao outro. Ambos
aprendiam com a ingenuidade cínica que o amor incute, o amor ou o desejo,
e ambos queriam trazer novidades. Quando ambos estão nestas disposições,
as coisas vão sempre longe. Não haveria o Kama-Sutra, o "El-Ktab"
e outros volumes do ritual amoroso, prolixos em novidades, se os casais perfeitamente
convencidos não se entregassem à aposta de trazer impressões
novas. O desenvolvimento das ciências é devido ao estímulo
da primazia na descoberta, dizia um venerando homem. Depois, Alice tinha um
espírito satírico que agradava nos intervalos. Fazia troça
feroz das senhoras conhecidas, arremedando-lhes os gestos, caluniando-as.
Vingava-se assim. Jacques, a fumar um turco ponta de ouro, ria francamente,
e contava coisas…
— Elas também gostam de ti.
— Quem te disse?
— Adivinhei.
— Falso. Não gostam…
Alice estava convencida de que arrebatara o jovem a um batalhão de
amorosas. Jacques era bem homem para não desiludi-la. Sempre convém
mentir.
— Jura que eu sou a primeira?
— Juro – fazia ele rindo de tal maneira, que se comprometia ainda mais.
Depois dava-lhe conselhos que Alice recebia com docilidade, incutia-lhe gostos
delicados para as toilettes, as jóias e dava informações
muito apreciadas sobre a maioria dos seus amigos: o Bruno Sá, o Dr.
Suzel, o Belmiro Leão, que deixara abertamente de cumprimentar Mme.
Arcanjo dos Santos.
— Ainda zangadinho?
— Não imaginas, filha…
Um mês depois, a chama, como dizem os poetas românticos, começou
de diminuir. Conservavam-se uma preferência carnal, o desejo de não
acabar, mas acrescido pelo vago instinto da curiosidade que, como se sabe,
limitou o mundo e o ensinou a ler em caracteres cuneiformes, sem mestre. Nenhum
dos dois deu, porém, claramente, pelo caso. Estavam em plena season
e chegara para o hotel em que moravam Bruno Sá e Suzel uma grande atriz.
Era o hotel das notabilidades de todo gênero: diplomatas, artistas,
argentários, industriais, políticos, grandes artistas, "grandes
cavadores", como não deixava de resumir Godofredo. A atriz parisiense
trazia outras encantadoras atrizes. Jacques ia jantar sempre lá, em
companhia de Bruno. Godofredo, cronista, que fazia crítica dramática
e visitava com freqüência o jovem ministro, lustro e fulgor, reclamo
luminoso do hotel, apresentou-os. Apresentou com satisfação,
porque esses parisienses teriam uma idéia limpa e francesa da nossa
sociedade.
Imediatamente, a grande atriz foi de uma simpatia desvanecedora. E à
hora de jantar, como em geral ela não aparecia, comendo nos seus aposentos,
tal qual Mme. Sarah Bernhardt e Mme. Réjane, divertiam-se com as outras.
De resto, a ilustre artista já lhes oferecera um jantar de que fazia
parte um grande psicólogo, pago pelos governos sul-americanos para
fazer conferências sobre a alma feminina em Buenos Aires, Montevidéu,
Rio e Rosário.
Além desse acontecimento mundano importante – Jacques não tivera
nunca a intimidade dos renomes universais – um outro preocupava a atenção,
não só dele, como de Alice, como de toda sociedade: a grande
festa de caridade em favor do Dispensário da Irmã Adelaide.
Mme. de Melo e Sousa e a Baronesa Parckett, mãe de Eleonora, dirigiam
o acontecimento. A princípio pensaram no Casino. O Casino era pequeno.
Depois estabeleceram definitivamente tomar conta de um jardim público.
Era preciso arranjar grátis o jardim, as obras necessárias
para as transformações, uma tômbola formidável
e um programa espantoso. O comércio, a indústria, a administração
estendiam as mãos à alta sociedade para proteger os pobres.
Estendiam e davam. A sua ação a isso se limitaria, como a ação
do jornalismo seria a de fazer um reclamo permanente até o dia do espetáculo.
A organização das comissões seria mundana. Os rapazes
de gosto ociosos apareceram. Chagas fez uma planta do jardim com os lugares
das barracas marcadas a bandeirinhas vermelhas. A importância das barracas
variava, segundo o tamanho da bandeira. Dória, já expulso do
seu meio, veio à cena como utilidade. O filho dos Viscondes de Pereira
encarregou-se do capítulo sport, marcando regatas, corridas a pé,
tobogã, gincana e algumas cousas irrealizáveis que lhe davam
o pretexto para dizer:
— Qual! nesta terra tudo é impossível! Qual! estamos
num país selvagem.
Godofredo ficava com a parte de teatros, muito contrariado aliás.
A parte de teatro constava de uma comédia, naturalmente em francês,
por amadores da nossa melhor sociedade, um intermédio em que figuravam
por especial distinção o grande tenor Zenaro da companhia lírica,
a notável atriz francesa e uma atriz portuguesa, que nenhuma das damas
conhecia, por não freqüentar teatros, principalmente em português
e finalmente, à noite, uma série de quadros vivos, com projeções
elétricas, assunto religioso: "A Caridade". "A Samaritana".
"Cristo e a Adúltera".
À escolha das diretorias das barracas, posto de sacrifício,
presidia uma grande diplomacia. Só Mme. de Melo e Sousa poderia sair-se
bem, pondo em relevo as personalidades dignas disso.
A primeira reunião do comíté organizador foi agitada.
Faltaram várias pessoas, censuradas aliás, e as comissões
só foram nomeadas às onze da noite; comissão de angariar
donativos, comissão de direção dos trabalhos, a de teatros,
a de política, a das barracas.
— Falta alguma cousa – dizia Luísa Frias.
— Que falta?
— Não sei, mas falta.
— A parte infantil – rouquejou a Sra. Muripinim.
— É isso! é isso mesmo! – exclamavam de todos os lados.
— Quem se encarrega da parte infantil?
Ninguém queria. Era preciso pensar. Faltavam de resto mais cousas,
para corser le programme.
— Tenho uma idéia – ganiu o Dória, que dava tudo para
se conservar.
— Qual?
— Uma cartomante, que lerá a huena-dicha ao público.
— Estás louco? Todos quererão dar a mão.
— Descansem, é pago.
— Ainda assim.
— Lembro uma orquestra de fados portugueses.
— Mas isso, Dória, é impossível. Quem vai cantar
fados?
— Esperem, explico-me, deixem-me explicar. Imagino uma orquestra de
moças, tocando só bandolim.
— Ah! bem…
— Haverá uma jovem no Rio que não toque bandolim? Bem
sei, Godofredo, que é desagradável. Mas tem um meio: não
te aproximes, o jardim é grande. Escolhemos os últimos fados,
os literários.
— Realmente – fez Etelvina Gomensoro, née d’Ataíde –
conheço alguns; são lindíssimos…
— E depois muito distinto – decretou a ilustre Argemira.
— Mme. Gomensoro cantará os fados.
— Como quiserem.
Imediatamente a reunião inteira resolveu adotar o fado. Eram loucos
pelos fados. Depois debateram a questão financeira.
— Deixem comigo o caso – liquidou Chagas, por alcunha "Ganhou
o macaco". – Fiquem descansados…
Mas ao contrário do que imaginava, o oferecimento causou um discreto
alarma. Chagas era um rapaz encantador, de muito bom gosto, que talvez por
isso tinha a leviandade de não saber resistir nem às cocottes,
nem ao baccara. O dispensário mudaria de nome.
— Não, não – disse a Sr.ª Pedreira – precisamos
de nomes para impor aos negociantes, senhoras de posição.
Alice irradiava. Era da comissão que iria convidar o presidente da
República, era chefe de uma barraca de flores, entrava nos quadros
vivos, e como Belmiro Leão, por indicação de Argemira,
fazia parte da comissão, teve o prazer de vê-lo vencido vir cumprimentá-la.
— Somos companheiros?
— Da santa cruzada do bem. Os pobres antes de tudo.
— Há várias espécies de pobres.
— Eu só não tolero os pobres de espírito.
— Pois admira. Os pobres de espírito são a melhor gente
deste mundo.
Em compensação, Jacques sentado entre Luísa Frias e
Laura Gomes, num flirt perfeitamente agradável, sentiu-se de repente
nomeado para a comissão da política. As suas relações
obrigavam-no a pertencer a essa comissão com Arcanjo dos Santos e a
Viuvinha Amélia. Era aquele pretexto que o punha em contato com os
detentores dos dinheiros públicos. Quem diria? A vida é uma
surpresa.
No dia seguinte, a garçonnière ficou deserta. Alice dos Santos
ia com o comite diretor ao jardim público, tomar disposições
sur place, porque a planta do Chagas fora declarada inútil. Iam as
Sr.as de Melo e Sousa, a Baronesa Parckett, a encantadora Gina Malperle, Mme.
Gouveia, e como homens, só Bruno Sá, Suzel e Belmiro Leão.
Era como eles gostavam os três – de andar, só os três,
benditos entre as mulheres. Suzel tinha um apetite pueril pela Baronesa Parckett,
Bruno dizia cousas sérias à Malpene, Leão, naturalmente,
caminhava com Argemira e Alice. E como chovera na véspera e o dia estava
sombrio, pelas aléias desertas errava uma vaga e úmida melancolia.
— Gosto tanto dos jardins. Um jardim assim faz pensar no amor.
— Se o amor foi revelado num jardim!
— Mas eu penso no amor de outrora e não no de agora. O amor
num jardim.
As senhoras levantavam um pouco os vestidos escuros para dar volta nos lugares
em que a água empoçara. Havia sorrisos que diziam mais do que
as palavras, por serem imensamente vagos e tênues. Luísa estava
com frio. E da festa foi impossível fixar qualquer cousa além
da hora.
— Aqui ficava bem uma barraca…
— E aqui…
— Também…
— Onde ficará a vendedora de cartões postais?
Frases cansadas, sem ânimo, como se fosse uma fadiga superior às
forças gerais, animar o velho parque melancólico com uma festa
mundana. E cansados todos, estavam, entretanto, gostando. Deram uma longa
volta, para fazer apetite para o almoço. Alice voltou só, no
coupé-automóvel, abstrata.
Nessa ocasião, Jacques preparava-se para ir à Câmara,
encontrar Arcanjo. Vestiu-se com um apuro inglês. Fincou na gravata
escura a pérola com a qual Alice revelara desejá-lo logo. E
foi, pausado. A festa de caridade ia introduzi-lo no meio que almejava entrar,
mas de modo elegante, sem rebaixar-se. Munido do cartão dado por Godofredo
(era o segundo de que se utilizara, porque até então só
usara o do cinematógrafo) – entrou pelos corredores que ladeiam o recinto.
Estavam num grande dia na Câmara. Os corredores tinham cento e vinte
pulsações por segundo. Jacques passou a custo para uma cancela
do deplorável recinto a descobrir Arcanjo. Afinal deu com ele, sentado,
pálido. Arcanjo viu-o também, mas não se moveu. Nem o
saudou. Jacques esperou meia hora, prestando atenção ao discurso.
O discurso era inverossímil de idiotice. Fazia-o um dos mais aplaudidos
parlamentares. Jacques não gostava de discursos. Tinha razão
de resto. Estava com a opinião de um estadista eminente, James Balfour,
que já disse: "As criaturas que fazem ou ouvem discursos em vez
de jogar o golf são incapazes de apreciar as possibilidades da existência".
Jacques apreciava as possibilidades da existência. E, depois, naquele
movimento febril de homens a suar, a falar uma língua incompreensível,
entre reporters, taquígrafos, redatores de debates, contínuos,
parasitas, agentes de negócios, pedintes com ar triste e mesmo deputados,
só deputados eleitos pelos presidentes dos Estados respectivos, não
podia deixar de sentir-se superior. Superior, por quê?
Não o sabia, nem o era. Mas assim o fizera a educação
e também a herança, desenvolvendo-se num meio propício.
Os verdadeiros amigos de Jacques podiam jurar-lhe que qualquer daqueles contínuos
era mais útil e mais inteligente. Não o acreditaria. Ele era
importante, mais importante, apesar de não ter qualidade alguma superior
para compensar as más disposições iguais às de
todos os homens, mais ás dos da sua condição. E o seu
meio, composto afinal de elementos desencontrados da sociedade, desde o jogador
titular ao explorador sem escrúpulos, meio de que conhecia as histórias
desagradáveis, era o único tolerável e o único
possível. O resto não passava de poeira.
Não daria importância ao maior gênio, sem que a sua roda,
em grande parte letrada, como ele, não dissesse que esse gênio
era mesmo gênio. A roda nunca dizia, mas crismava alguns mortais felizes,
o que era uma compensação. Assim, como em nenhum salão,
em nenhuma "pensão de artistas", em nenhum dos clubs em que
seu pai jogava, não ouvira falar do gênio de nenhum deputado,
além do Arcanjo e do Inocêncio Guedes, o inexorável recitador
do Smart-Ball, considerava aquele pessoal inferior. Ele, Jacques Pedreira,
condescendia em ir vê-los.
Mas ninguém lhe ligava importância e o discurso era enorme,
Jacques resolveu pedir a um continuo que lhe levasse o cartão a Arcanjo.
— Não está.
— Está! Está ali.
— É verdade, não tinha reparado. Mas não posso.
— Por quê?
— A. Ex.ª está tomando parte no debate.
— Por quem é, leva-me este cartão. O Dr. Arcanjo espera-me.
O contínuo tomou o cartão e deu uma porção de
voltas pelo recinto, antes. Afinal decidiu-se, e Jacques viu que Arcanjo fazia
um gesto de contrariedade, erguia-se. Quando Arcanjo se aproximou, notou que
estava palidíssimo.
— Bom dia, há meia hora que o espero.
— Ah! Queres falar comigo?
— Venho para o negócio do Dispensário.
— Que Dispensário?
— Oh! Pareces que estás a brincar. O Dispensário da Irmã
Adelaide.
— Desculpa. Temos uma sessão muito importante – fez o outro,
dominando a alteração da voz. – Mas hoje é inteiramente
impossível. Não temos tempo.
— Ah! bem – disse Jacques, seco.
— É uma pena aborrecer-te, mas tem paciência. Queres que
te mande abrir uma das tribunas?
— Não, muito obrigado. Ouvir discursos…
— Às vezes são coisas sérias. Até logo.
E afastou-se. Jacques ficou rubro de cólera. Idiota! Tratara-o evidentemente
mal. Por que estava na Câmara? Dava-se então à importância
o Arcanjo! Com ele, porém, fiava mais fino. Não poria mais os
pés naquele lugar. Contaria a Alice o procedimento do marido. Era inacreditável!
Tão incomodado ficou que voltou imediatamente a casa, imaginando várias
vinganças. Entrou direito para os seus aposentos. Atirou o chapéu
alto para cima da mesa. E arrancava o frack, quando o copeiro entrou com uma
carta.
— Trouxeram minutos depois do senhor sair.
Vinha de Alice. Também essa senhora não passava um dia sem
escrever. Abriu-a com raiva. E leu:
"Ele desconfia. Recebeu uma carta anônima, que conta tudo. Salva
a situação no momento e deixa, por minha conta o resto. Até
à morte…"
— Bolas! – fez Jacques, sentando-se na cama. – Que complicação!
Era como se tivesse recebido uma pranchada no alto da cabeça.
Capítulo VI: O mais feliz dos três…
Arcanjo dos Santos não contara com a hipótese de ser enganado
quando casara. É uma hipótese que raramente azeda o gesto heróico
dos que se decidem a manter as bases da sociedade. Ele trabalhara, esforçara-se,
obtivera como prêmio duma vida brilhantemente nula uma linda e rica
esposa. Para o seu espírito era a derradeira etapa, a da apoteose da
mágica. De então para diante poderia viver bem, apenas com a
preocupação do esperanto, do vegetarismo e de não desagradar
ao Grande Chefe, que o fizera deputado. Nada mais simples. Com o esperanto
era sócio propagandista, com o vegetarismo fartava-se de macédoines
de legumes. Com o Grande Chefe mandava-lhe um presente semanal e votava à
sua vontade. Era feliz, integralmente feliz. Mas a felicidade não dura.
A carta anônima insultara-o, chamando-lhe de nomes feios, considerando-o
um desbriado. Não há homem que se não exacerbe, quando
o chamam de desbriado, mesmo tendo a certeza de que o é. Arcanjo não
tinha essa certeza. Ficou agitadíssimo. Ia sair. Voltou, foi ao gabinete
de trabalho, virgem de trabalho, deixou-se cair numa cadeira, tentou pensar,
coordenar idéias sem resultado, ergueu-se, passeou agitado, quis escrever
uma carta, apesar de no gabinete não poder deixar de ver quem entrava,
chamou o criado algumas vezes.
— A senhora, já veio?
— Ainda não, excelência.
Pediu os jornais, onde encontrou (em todos) o nome da esposa e o nome dele,
do outro na primeira página, amarrotou as gazetas, tornou a passear,
mandou vir a criada de quarto.
— A senhora disse que voltava para almoçar?
— Sim, excelência. Ela foi ao jardim ver o local para a festa.
Fez um gesto de despedida, lembrou-se de que nunca tinha comprado um revólver.
Passou assim duas longas horas. A espera exasperava-o. A carta tomara proporções
enormes. Seria de fato? Ela de quem gostava tanto, ela, tão bonita!
E tendo tudo, nada lhe faltando! No fundo a revelação irritava-o.
Iria brigar, sair dos seus hábitos, arrostar com um enorme ridículo,
perder a sua mulherzinha. Como? Tragédia? Sangue? Divórcio o
divórcio num casal sem filhos, sendo ela rica?
Era preciso que Alice chegasse imediatamente para a explicação.
A explicação! Que horror…
Alice chegou. Vinha abstrata no seu automóvel. Viu-a sentar, por trás
da vidraça. Preparou-se como para uma cena tremenda, mas digna. Ao
ouvir-lhe os passos na sala próxima, o coração batia-lhe.
— Estás à minha espera? – fez Alice entrando.
— Há duas horas.
— Por quê?
Aquela pergunta natural, feita naturalmente, desconcertou-o. Respondeu esquivo:
— Ora, por quê? Por nada…
— É curioso. Mas não falas a verdade.
— Julgas?
— Juro.
— Então queres saber?
— Pois claro, meu querido.
— Teu querido. Faze favor, deixa de ironias.
— Ironias?…
— Há frases que ofendem, quando não são verdadeiras.
Alice ficou pasma. Não ser verdadeira ela, uma criatura nature por
excelência. Caminhou para o marido, ofendida sinceramente.
— Dizes que eu minto?
— Pois eu sou lá o teu querido?
— Que bicho te mordeu?
— Que bicho, hem? Um bicho que esmagarei, podes ficar certa.
— Mas falas por enigmas, homem de Deus, dize logo o que tens a dizer.
— Digo que vamos partir, que seja como for, ouviste? nunca me prestarei
a um papel ridículo…
— Ridículo?
— Sim, ridículo. E não negues, não negues. Tenho
a prova.
Os criminosos e as senhoras inteligentes têm um poderoso self control.
Aquelas palavras noutro ambiente fariam a perturbação. Alice
compreendeu, entretanto, que o perigo estava longe e afastá-lo de todo,
imediatamente seria preciso.
— Queres ver que tens ciúme de mim? Provas, provas! Mas perdes.
te a cabeça. Onde a prova? Prova de quê? Exijo a prova. É
a primeira cena que temos. Será a última. Ah! Este Rio! Bem
não queria vir. Mas ou me dás a prova ou não fico mais
nem um minuto aqui.
Ela gritava. Arcanjo teve que dizer, indo fechar a porta:
— Fala baixo, olha que escutam.
— Que importa? Hei de falar como quiser! A prova! vamos ver a prova
de um crime, que ainda não sei qual seja!
Ele tirou a carta do bolso, estendeu-lha, com uma penosa sensação
de ridículo, a sensação de que tinha feito uma enorme
tolice. Alice pegou-a febril, leu-a de um jato. Era numa meia dúzia
de insultos com péssima ortografia, o seu caso, o nome de Jacques,
o escândalo. Ficou um instante, olhando o papel imundo a ver o que devia
fazer. Soltar uma gargalhada seria teatral. Achou melhor atirá-la com
um gesto de nojo.
— Isto? Mas é vergonhoso o que acabas de fazer, vergonhoso!…
Uma carta anônima! Todas as senhoras da sociedade, todos os homens de
posição recebem cartas anônimas. Nós estamos na
terra da carta anônima. Sabes o que é isto? Inveja. Inveja de
ti, da tua felicidade. E deste importância a essa cousa asquerosa! Nem
vale a pena defender-me. É idiota. Jacques então, o filho de
D. Malvina, uma criança. Que diabo! Tu não és um imbecil.
Jacques é tão teu amigo, está sempre conosco. Quando?
Onde? Havias de descobrir um gesto ao menos que denotasse mais do que amizade…
Pela mesma razão serei amanhã amante do Chagas, do Dória,
do marido da Frias. Francamente, sempre fiz outro juízo de ti.
Falava alto, agitada.
— Mas, Alice…
— Cale-se, cale-se ao menos. O senhor dá-me inteira liberdade,
sabe que eu gosto de ser admirada. O Jacques é, entretanto, como de
casa. Nunca pensei, meu Deus, nunca! Pobre rapaz! De resto, o senhor naturalmente
seguiu-me…
Ela disse a frase que desde o começo lhe apertava o coração
com um esforço enorme. O marido ergueu-se.
— Oh! Alice, isso nunca!
— Tinha a carta no bolso, podia acompanhar-me.
— Recebi-a ao sair há pouco. Sou incapaz.
— Oh! oh! conheço-o bem. Guardou a infâmia, acompanhou-me
dias e dias e não achando o que dizer, veio lançar-me uma injúria
sem fundamentos.
— Mas não, Alice, não digas tolices…
— É triste, é muito triste, depois de tão pouco
tempo de casada… Se papai soubesse!
Caiu numa poltrona. Arrancou o chapéu num gesto de desespero. O marido,
lamentável, procurava palavras.
— Não, tudo, menos pensares que te segui.
— Mas se acreditaste nesta infâmia!
— Quem te disse que acreditei?
— Acreditou, acreditou…
E de repente prorrompeu em soluços. Os seus olhos vermelhos choravam.
Era uma verdadeira artista. As mulheres são assim: nascem feitas. As
que têm o temperamento de honestas, nunca aprendem a mentir. As que,
embora boas, são mais lealmente filhas d’Eva, não precisam de
curso, de aulas, de experiência. Revelam-se no campo de batalha de chofre,
generalíssimas. Alice era encantadora, boa, gostava mesmo de Arcanjo,
como em geral gostava dos homens, sentia que o pobre marido sofresse, talvez
o enganasse mais pela cabeça do que pelo coração, mas
mentia, mentia sempre e naquele momento gozava em se ver acreditada, queria
vê-lo submetido. Arcanjo, nervosíssimo com as lágrimas,
aproximou-se, afagou-lhe os cabelos.
— Não chores, não chores… que é isso?
Os soluços redobraram. Então curvou-se, falando baixo, comovido,
com as palavras que se têm para as crianças, com o gesto que
para com elas temos, quando as consolamos de males imaginários, beijando-a,
animando-a.
— Meu bem… então, então… seu maridinho… não
foi por mal. Enfim, compreendes, eu também fiquei fora de mim… Bom,
acabou-se, acabou-se, dê um beijo no seu marido.
— Não… não, nunca mais!
— Louquinha, vamos, um beijo…
A vida na sua essência é feita de palavras que se não
dizem. Nas cenas mais sérias de uma existência, há uma
série de cousas que se sentem, outras que se esboçam, outras,
cujas palavras erram nos lábios sem serem pronunciadas. O resto é
o que se fala. Quase sempre o inútil. Há homens que morrem ignorantes
do seu próprio eu, porque nunca tiveram a coragem de dizer alto o que
talvez pudessem ter pensado. Arcanjo pensava muita cousa de modo vago. Era
raiva, medo de escândalo, credulidade, desejo, exasperação,
luxúria, pena, amor, vontade física de se afirmar. Viu-se de
joelhos a acariciar a esposa, que soluçava baixinho; beijou-lhe as
mãos, beijou-a no colo por cima do vestido, beijou-a na testa, beijou-a
na boca, afogando-lhe o não de recusa. E aquele beijo, num caos de
dúvida vaga, foi decerto o melhor beijo da sua vida de casado.
Ela talvez o tivesse sentido um pouco – que o amor é superior sempre.
Depois ergueu-se como uma convalescente, macerada, pisada, triste. A cena
de minutos antes passava a velha recordação de um pesadelo,
tão afastada estava.
— Almoças?
— Não sei.
— Deixa arranjar-me. Estou sem apetite.
— Eu também.
— Vais à Câmara?
— Tenho de ir.
— Até já.
— Adeus, meu amor.
Como Alice estava macia e boa! Foi vagarosamente, com um gesto de saudade
desolada até o seu toucador. E aí, ainda vestida, sentou-se,
escreveu três ou quatro linhas a Jacques, mandou-as pela criada de quarto,
vestiu-se só, pensando em Jacques, na boca de Jacques, no moreno rosa
da sua face glabra, mais sua do que antes. A entrava da carta excitava-a.
O amor é um sport.
Arcanjo foi à Câmara. Era preciso votar uma ordem do dia cheia
de concessões e de pensões. As concessões passariam todas
com pedidos de grandes influências políticas, que de algumas
seriam mesmo futuros diretores. As pensões, só passariam duas
para senhoras bem de fortuna mas também com esplêndidas relações
entre os situacionistas. As outras, as das viúvas pobres e sem conhecimentos
seriam cortadas. O país precisava fazer economias. Ele coitado, ia
acabrunhado. Parecia-lhe, vagamente, que toda gente era autora da carta e
por conseqüência, que toda gente sabia, desconfiava, caluniava-o,
insultava-o. A frase mais vazia parecia-lhe uma alusão clara, definitiva.
Meteu-se no recinto, evitando conversas, a fingir que ouvia o discurso de
um célebre orador empolado e soporífico. Quando Jacques apareceu,
viu-o logo. Mas fingiu não o ver. Um estado esquisito, como se lhe
estivessem apertando o epigastro e torcendo a nuca, dava-lhe uma raiva surda
contra o rapaz. Achou-o tolo com a sua elegância; achou-o idiota, fingindo-se
importante no seu anonimato; analisou-lhe a insignificância de jovem
pavão, com desprezo, com mordacidade, com ódio. E sabendo-se
esperado, vingava-se, vingava-se, não sabia bem de quê, mas deliciosa,
lenta, enebriantemente. Ao ouvir o contínuo, estava resolvido a não
falar. O homem de sociedade, porém, dominou. Veio. Veio e foi pela
primeira vez com aquele adolescente, o superior, o maior, o mais velho, o
homem. Estava aliviado. Terminadas as votações, voltou a casa,
reintegrado. Se alguém lhe dissesse alguma frase dúbia, reagiria
a bofetada. Ninguém lha disse. Alice recebeu-o ainda mais convalescente.
Passara a tarde inquieta e ao mesmo tempo desejosa de saber quem teria tido
a lembrança infame da carta. Jacques não lhe mandara dizer nada
e pela primeira vez, vendo o marido entrar da rua, sem uma comissão
sua, indagou:
— Então?
Ele esquivou-se:
— Votações, um aborrecimento…
— E eu que nunca fui à Câmara!
— Fazes o que alguns colegas conseguem.
— Deve ser divertido.
— E cacete. Saíste?
— Oh! não. Fiquei para ai, lendo um romance. O dia está
tão úmido! Mas vamos, à noite, à casa do Pedreira.
— Para quê? – fez ele brusco.
— Oh! filho, a festa de caridade! Já nem te lembras que sou
de várias comissões. E tu também. Temos reunião
do comitê hoje.
Ele não disse nada. Estavam sós, era um tête-a~tête.
Pela primeira vez, depois de chegar ao Rio, tinham um tête-a~tête,
sem nada para dizer, com Alice tão submissa.
— Por que não vais ao chá do Gouveia?
— Vai tu. Eu, não.
— Prefiro ficar.
— Ficaremos os dois. Um five-o’clock a sós. Queres?
Ele sorriu, vendo-a retornar à menina. Há quanto tempo não
tomavam chá os dous sós! Desde o Rio Grande, chá com
torradas à noite, enquanto o sogro estancieiro bebia erva… Ficou.
Leram os jornais da tarde juntos. Um deles esquecera o nome de Alice na notícia
da grande festa de caridade. Era oposicionista. Jantaram sós, como
quem come depois de uma viagem. Não tinham comido o dia inteiro. Alice
já estava vestida para ir aos Pedreira. À sobremesa pediu para
dar antes um passeio pela praia, no automóvel.
— Faz uma noite tão úmida.
— Que tem? É fechado.
Foram. Eram oito horas da noite e a Beira-Mar estava deserta, angustiosamente
deserta no banho de luz dos combustores e das lâmpadas elétricas.
De quando em quando passava um automóvel rápido ou uma vagarosa
tipóia com gente suspeita arrulhando no silêncio o amor que por
ser a hora não deixa – nem mesmo esse! – de ser doloroso. Todo aquele
deserto parecia crescer sob a chuva deslumbrante das luzes. Era como se do
céu um turbilhão de estrelas se despegasse e levemente viesse
pousar por aqueles postes, fazendo uma colossal apoteose de luz. A distância
as luzes eram brancas, eram verdes, eram azuis, eram de um verde pálido,
de um jalde apagado, e reunidos aos grupos de cinco e três, recamavam
as largas avenidas de um dossel de pedrarias irradiantes, de um estranho desenho
feito de raios de astros. Casas graves e fechadas, palácios que pareciam
villas de Florença estragadas pelo arranjo de arquitetos bisonhos,
aumentavam a tristeza fúnebre. Em algum banco esquecido, um labrego,
um par, o vazio.
— É tão bonita a luz.
— Lindo.
Ela reclinara-se. Ele, naturalmente, pegara-lhe na mão quente. Era
a primeira vez que naquele automóvel o marido tomara uma deliberação
tão pouco na moda para os maridos. Na casa do Dr. Justino Pedreira,
quando chegaram, já a sessão começara. Estavam todos,
inclusive Godofredo de Alencar, que precisamente gabava um grill-room montado
com estrondo na Avenida, por uma dama das melhores relações
do meio – como proprietária de uma pensão em Petrópolis,
onde se aboletavam diplomatas.
— Esplêndido. Parece o Ritz, o Rumpelmeyer – dizia o literato,
que nunca estivera nem no Ritz, nem no Rumpel, repetindo frases da crônica
do dia seguinte.
— E resistirá, meu caro?
— É verdade, neste país de selvagens…
— Somos nós, apenas.
— E nós não vamos todos os dias…
— Ah! Eu que estava com o Dr. Inocêncio Guedes, logo disse: não
dura um mês!
O inexorável e incontinente recitador do Smart-Ball sorriu satisfeito.
— Com efeito. Eu também disse. Outro meio, a Argentina, Montevidéu…
— É, é uma vergonha.
Alice procurava descobrir Jacques. Jacques estava a uma das janelas, conversando
alegremente com a Viuvinha Pereira e Belmiro Leão. O jovem conquistador
avançou. Ele também, naturalmente. Se o casal viera, as suspeitas
tinham declinado. Estava soberbo de indiferença. Ao receber o golpe
da carta de Alice, ficara meio aturdido. Mas o adultério era das muitas
coisas que julgava sem conseqüências. Apanhado em flagrante, fugiria.
Interrogado, mentiria por mais provas que houvesse. Não escrevera,
porque custava escrever e seria pouco prudente mesmo. Esperou. Sangue, tiros,
palavrões, só na gente baixa. Não havia receio. Gente
do seu meio vingava-se de outra maneira. Se Arcanjo tivesse acalmado, teria
por ele um pouco mais de consideração e continuaria com a Alice,
segundo as disposições do marido. Estava acostumado com o caso
por vê-lo praticar; estudara-o como alguns estudam o inglês sem
mestre. E o adultério sempre foi mais fácil do que o inglês.
Só haveria uma dificuldade: largar Alice. Na sua roda ouvira muita
vez a frase de Bruno Sá:
Quando tenho uma amante de cá, antes de começar já estou
a ver como hei de acabar.
De resto, Arcanjo tinha responsabilidades e Alice era um pouco adida ao núcleo.
Estendeu a mão e foi logo a dizer:
— Ainda há instante falávamos mal de vocês.
— De nós?
— Sim, mamãe indagava o que se tinha feito pela política.
— E então?
— Pergunte a seu marido. Arcanjo estava tão preocupado que quase
me recebe mal.
— Não é possível.
— Ora! Queria até que eu assistisse a sessão!
As damas e os cavalheiros sorriam. Arcanjo estava meio acanhado. Seria verdade?
Seria mentira? Mas não perdeu o seu ar de superior a Jacques.
— Estes meninos pensam que a vida é só brincar…
Dous dias antes não teria tido tanta coragem, Jacques nunca fora tratado
assim, senão por seu pai. Mas tinha culpa e achava-se na obrigação
de ser gentil, meio vencido. Com o seu temperamento, tratá-lo d’alto
era exasperá-lo, mas dominá-lo. Às duas horas da tarde
achava aquele sujeito um imbecil que precisava taponas. As quatro estava sem
opinião. As nove já não fazia um mau juízo de
Arcanjo. No dia seguinte entregar-se-ia sem sentir, como se entregara a Jorge
de Araújo, a Godofredo, ao Barão Belfort. O pobre Arcanjo estava
nas mesmas condições de fraqueza de vontade, como de resto a
maioria dos presentes, mais ou menos os doentes de impotência psíquica
generalizada. Apenas o decorrer dos fatos dera-lhe a superioridade. Foi levado
a ela num tremor de desastre. O outro aceitou-o. Ficariam sempre assim; ele,
a mulher e Jacques.
Quem ganhara de resto com o decorrer dos fatos fora ele. O marido, em noventa
e nove vezes sobre cem, é o mais feliz dos três. A mulher, por
mais indiferente, trata-o bem porque o marido é uma tabuleta. O amante
ainda melhor, porque teme o futuro onde se anunciam em escala desagradável
desde a violência, até a responsabilidade. Respeitado, descansado,
o marido é a autoridade e o primeiro, e em lugar de ser um pobre escravo
a satisfazer a sua dona, é o cavalheiro desveladamente conservado e
prestigiado pela esposa e pelo seu maior amigo.
— Brincar? – fez Jacques. – Você faz muito pouco na minha capacidade.
Verá quando começarmos. Esvazio a carteira dos seus companheiros.
Fê-lo sentar, ficou um instante ainda prestando atenção
à discussão. Tratava-se de arranjar bandas de música
e de forçar Godofredo a fazer uma conferência10 sobre a caridade.
Era uma reunião animada. Estavam todos dispostos como Jacques a assaltar
a bolsa alheia em proveito dos pobres. Até mesmo a gentil Viuvinha
Pereira, sempre tão generosa para os ricos, até mesmo Mme. Zurich,
Mme. Gouveia, as irmãs inimigas, ambas a disputar o bastão da
beleza.
Godofredo ia sair. Aproveitou para partir também. Alice, em palestra
com Belmiro Leão, deu-lhe menos importância do que de costume.
O marido prometeu que no dia seguinte apresentaria os deputados para a colheita.
D. Argemira marcou a hora.
— Não, o Dr. Arcanjo está na Câmara, às
duas.
— Às ordens, minha senhora.
— E você, Jacques, passa lá por casa antes, para as últimas
instruções.
A ilustre dama queria apenas saber do que ocorrera. Jacques despediu-se,
saiu. Ainda no portão Godofredo rebentou.
— Querem teatro, conferência, tudo grátis.
— É uma festa de caridade.
— Caridade! Eu já assisti a dez festas de caridade para a construção
do altar-mor de Nossa Senhora da Conceição. Mas essas senhoras
não repararão que é demais?
Depois no tramway:
— Estive hoje no escritório do velho.
— Está danado. Não me fala há uma semana.
— Também não vais mais lá.
— Para fazer o quê?
— Oh! filho, para aprender, para exercitar, por sport, como ias ao
football, como vais aos Estrangeiros. Depois não é possível
perderes o tempo de enriquecer.
— Enriquecer! Enriquecer! Oh! Godofredo, não fales nisso. Sempre
que tratavam de persistir num ato sério, Jacques ficava nervoso. Porque
de fato tinha uma grande vontade de fazer um bonito, ganhar dinheiro, ter
nome, e só não se atirava, porque levava tempo. Então
ficava querendo ouvir os conselhos e querendo ao mesmo tempo que não
lhe falassem nisso.
— Queres então ser pobre?
— Qual. Há de se ver, depois.
— Mas se tens tudo para entrar desde já?
— Advocacia não. Abomino autos.
— Outras advocacias.
— Custa tanto.
— Ora, ainda agora…
— Há alguma coisa? – perguntou ansioso.
— Precisamente não há, isto é, depende. Coisa
para ganhar uns contos.
— Como?
— Da melhor maneira. Sabes que… não, não sabes, mas
é o mesmo… Cartas na mesa. Há uma concessão que deve
passar quinta-feira na Câmara.
— Bem.
— Mas não passa porque o Grande Chefe não quer.
— Então?
— É preciso demovê-lo. Só um deputado está
nas condições de o fazer, se pedir com insistência.
— Quem?
— O Arcanjo. É uma das maiores influências da Câmara:
não faz discursos.
— Mas eu não posso pedir nada a Arcanjo.
— Como? Sempre pensei…
— Agora, mais do que nunca.
— Houve alguma desinteligência?
Jacques calou-se. O cronista sorriu:
— Diabo. Olha que não se deve perder a amizade de Arcanjo. Dentro
em pouco será uma das mais prezadas figuras do nosso grande mundo.
Perdeu anteontem dez contos no CIub da Avenida, de que já é
sócio. É comensal do Grande Chefe, tem uma linda e distinta
esposa.
— Ora…
— Não sei…
— Pede sempre.
— Não tenho a certeza.
— Mas repara, Jacques, que fui eu quem te arranjou a chave da casa
do barão.
— Por isso mesmo. Está tudo acabado. Ele sabe tudo.
— Quando soube?
— Não imaginas como estou incomodado.
— Está-se vendo. Mas quando soube?
— Hoje.
— Oh! então é um homem superior, um homem que a todos
nós dará lições. Nunca pensei! Que sangue-frio
dá a alimentação vegetariana! Olha. Pedes amanhã,
impõe-te a Alice. Para ser amado é preciso dominar. Impõe,
ouviste? Ou ele é um tipo – o que não acredito – ou fará
tudo para mostrar à mulher a sua influência neste momento. Aceitas?
— Tens umas idéias…
— Esplêndidas. Amanhã venho buscar-te, trazendo tudo escrito.
Com certeza estás amanhã com ela? Bem. Amanhã. Mas que
acontecimento! Vem a calhar. Está notável o nosso Arcanjo. Não
sei se conheces um ditado que diz: o mais feliz dos três é o
marido.
— Homem, parece-me…
— É, não há dúvida, quase sempre. No momento
é ele. Mas todos nós podemos ser. Os pequenos acontecimentos
são a causa de grandes coisas. O dia de hoje podia ter sido aziago.
É um começo de vida. Ah! meu caro, estás te fazendo homem.
Teu pai ainda não te compreendeu.
— Estou me fazendo, não; vocês é que estão
fazendo.
— Uma obra admirável. Até logo. Salto aqui.
Jacques seguiu. Tinha a sensação física de quem se entrega
sem vontade. Era como se fosse desaparecendo num lameiro e transformando em
carne a melhor parte do limo. Reproduzia socialmente a criação
do homem feita por Deus, omnisciente e potente. Aquelas infâmias rodas
eram a vida. Saltou no Casino e foi ver o espetáculo, certo de que
Alice obteria tudo de Arcanjo e que na quinta-feira próxima não
estaria, de smoking e peitilho, apenas com alguns níqueis no bolso
bem cortado do colete irrepreensível.
— Não achas? Uma linda esposa que é um instrumento político
de primeira ordem. Deves acabar com as infantilidades. Depois não é
preciso falar a Arcanjo. Basta pedir a Alice.
Capítulo VII: Diversões úteis
A festa de caridade estava marcada para dali a quinze dias, e chovia torrencialmente
aos domingos. As comissões trabalhavam com entusiasmo, principalmente
a de tômbola. O presidente da República e os ministros prometiam
comparecer. Todas as bandas militares existentes na capital tocariam no jardim.
Era a ameaça de uma memorável festa. Jacques foi no dia seguinte
à casa de Arcanjo e não encontrou Alice. Então partiu
para a Câmara e encontrou o marido de uma complacência mais que
simpática. A noite e a esposa tinham conseguido apagar as suspeitas.
A noite é uma grande esponja. Arcanjo apresentou-o como o seu menino
bonito a vários colegas – só os colegas que não posavam
muito de republicanos positivistas ou de chefes de partido da roça.
Jacques pedia com uma segurança absoluta. Um baiano milionário
prometeu várias cousas.
— E agora?
— Agora, nada.
Em compensação alguns deputados de S. Paulo assinaram cheques
com um ar americano-parisiense do melhor gosto, gabando o Dispensário,
as obras de caridade.
— Excelente obra. Em S. Paulo…
Jacques fez imediatamente uma opinião superior de S. Paulo e dos paulistas
tanto mais quanto algumas bancadas queixavam-se e nada davam. Um representante
do Pará atacou mesmo a caridade mundana. Para o fim da sessão,
encontraram o jovial Pimenta e o triste Olegário, os dous deputados.
Vinham ambos de Paris, para onde voltariam dentro de três meses. O Brasil
agoniava-os. Pimenta, o jovial, era um coureur de femmes, andava pelos clubs,
pelas pensions d’artistes. Bradou:
— Olhem só o jeitão dele. Pois então não
o conheço do Casino?
— Não ouças o Pimenta. É um perdid6.
— Qual! aqui? Não há mulheres. É uma miséria.
— Mulheres só em Paris – sentenciou o lúgubre Olegário.
— Mas, gasta-se muito…
— É um engano. Eu vivia lá com três mil francos.
– Depois, refletindo: – Mesmo com dous mil e quinhentos… – E num suspiro:
– Até com menos, sim, até com menos…
Ambos os representantes da pátria estavam bem vestidos. Jacques notou.
O mesmo já tinham feito eles a Jacques. E coincidência da moda:
os três tinham frack debruado, camisa de risca transversal, usavam isqueiro,
fumavam tabaco turco e na gravata mostravam pérolas em forma de pêra.
Para os três não era preciso mais para demonstrar que se podiam
dar com intimidade. O Pimenta, em pouco propunha que se jantasse numa casa
de damas italianas, no Flamengo.
— Mas eu? – fez Arcanjo.
— Tu vais.
— Queres ver que receias trair a esposa?
Jacques, que preferia o jantar à caridade, ajudou também a
perder Arcanjo, que se debatia:
— Mas eu nunca fui a uma dessas casas!
— Tanto melhor, é uma impressão nova.
Era uma impressão nova, sim. Apenas, oito dias antes, Arcanjo não
teria ousado experimentá-la. Mesmo na Câmara, entretanto, expediu
um telegrama à esposa comunicando que à última hora fora
chamado pelo Grande Chefe para um secreto-jantar político da coligação
das bancadas. Ao mesmo tempo, Pimenta e Jacques corriam ao telefone a prevenir
Zina Fanga, dona da pensão. O contínuo do salão presidencial
estava junto ao aparelho. Jacques indagou receoso se não ficava mal
falar assim do Parlamento para uma casa de geishas cosmopolitas.
— Qual! É o meu bicheiro… Toda a confiança! – fez Pimenta
a rir.
E foi ele próprio quem pediu o número que a telefonista deu
logo, aliás sem surpresa. Jacques começava a gostar da política.
Na confeitaria, onde depois se abancaram a tomar um aperitivo, encontraram
Godofredo de Alencar, como sempre impecável. Podia ser também
da roda. De resto, Godofredo fazia-se dela, dando apertos de mão íntimos
e pedindo logo a última mistura aperitiva da casa – mistura com a virtude
imediata de fazer perder o apetite ao mais esfomeado. Ao saber do plano, Godofredo
aprovou. E como chegava Jorge de Araújo, ocasionalmente sem o seu grupo,
quis prestar um serviço geral apresentando os amigos. Jorge gabou a
idéia e ofereceu o seu automóvel. Era insinuante e vestia muito
bem. A repetir os aperitivos esses cavalheiros falaram de mulheres. Godofredo
sempre mal, Jorge com a gula de quem ainda não está farto das
boas, os deputados e Jacques, fingindo um ceticismo cínico, à
francesa. Arcanjo perguntava. Os nomes das grandes cocottes surgiam com detalhes
desagradáveis, principalmente para os amantes. Arcanjo soube que nem
todos os seus pares desprezavam a casa de Zina Fanga e outras muitas congêneres.
As sete da noite tomaram o automóvel que Jorge de Araújo guiava.
Estava a noite de inverno deliciosa, dessas noites em que a brisa é
como a carícia velutínea de céu numa estranha palpitação
de estrelas. Zina Fanga instalara no Flamengo a sua pensão, entre árvores,
com vista para o mar. Ao saltar, Godofredo indagou:
— Falaste?
— Não encontrei.
— Fala-lhe. Meus parabéns.
— De quê?
— Debochas o marido. É excelente a ocasião para pedir
diretamente. Vais muito bem.
E subiram rindo ambos. Jacques sem saber muito bem por quê.
A casa de Zina Fanga era das melhores. Havia um salão para as visitas
de cerimônia e uma agradável sala de jantar. Zina fora cantora
de café-concerto. Quando veio ao Rio já não cantava.
A rouquidão fê-la não ser ouvida nem mesmo como diseuse.
Não se perdeu muito. Era uma diseuse atroz. Mas a galanteria passara
por ela sem estragar muito uma carne de leite, aguçando febrilmente
o apetite extravagante e a ânsia do lucro. Não lhe bastavam amantes.
Queria explorar um pouco os das outras, montar uma grande casa de banco –
non è vero, caro? Diziam dela cousas inverossímeis, que tinha
agentes especiais com vinte por cento para levar a casa homens da província,
ricos; que orçava as jóias em trezentos contos; que obrigava
os freqüentadores a tê-la também. Calúnias. A sua
pequena amiga, Josette d’Amboise, desmentia tão bons corações.
— C ‘es’ un ange, monsieur!
No inverno, a casa de Fanga redobrava de concorrência, porque além
das cocottes cantoras de music hall, havia as atrizes das companhias de opereta
italiana, zarzuela, opereta alemã e algumas damas de troupes exóticas:
a domadora de leões, as três patinadoras do Niágara, a
Orquestra Zambelli. Algumas vezes tinham tido pensionistas homens – em geral
tenores. Mas por engano ou camaradagem. Nunca esses tenores pagavam as contas.
No momento em que Arcanjo entrou no salão de jantar com os homens
divertidos, o jantar começava. Jacques estava no seu meio. Jorge e
Pimenta também. Olegário e Godofredo fingiam estar e pelo menos
já lá tinham ido. A confusão era tal que não deram
por eles no primeiro momento. Um sujeito gordo, da melhor sociedade, pegara
brutalmente pela cintura uma crioula da Argélia, sentara-a ao piano.
A crioula, com gritinhos de gata assustada, caíra com as patinhas no
instrumento batucando uns compassos malucos. E damas e cavalheiros, batendo
com os talheres nos pratos, cantavam desabridamente:
O e o a
Do Quixadá
O e o u
De Caxambu
Boum!
Era uma cançoneta-método de português, inventada por
um dos freqüentadores para ensinar às cocottes a língua
de Camões. E irresistível. Todos riam. Uma alegria desvairada
sacudia os assistentes, alguns com cara de sono. Quando deram por Arcanjo,
que aliás já tinham visto alguns conhecidos, houve um súbito
silêncio. Godofredo falava com a Fanga, autoritária e de apetite
como uma camponesa da campanha romana. Esta voltou-se:
— Onorevole, grazie…
As mulheres na mesa olhavam. Apenas as que estavam sem companheiro. Porque
as acompanhadas de uns rapazinhos pretensiosos, na maioria de profissão
flutuante, ou de uns senhores de respeitável e desrespeitada idade,
fingiam não se interessar. O brasileiro é ciumento. O resto
do bando que estava alegre continuou. No piano, a crioula fora substituída
pelo Chagas, o Chagas "Ganhou o macaco", que lá estava em
companhia do Conselheiro Filgueiras, jantando por conta desse homem de gosto
capaz de lhe pagar jantares entre mulheres. E o sujeito gordo, o Lalá,
tomara da crioula e dançava com ela uma valsa turbilhonesca em que
a pobre pretinha parecia desfazer-se.
Zina Fanga dava jantares a preços fixos e muito em conta. Apenas reservava-se
para os vinhos. As pensionistas pediam vinhos bons e a tarifa do champagne
seria inverossímil em qualquer ponto do universo – mesmo porque além
de tudo era champagne marca sem cotação. Com cuidado dispôs
no resto da mesa os lugares dos novos convivas. Jacques, que se sentia agradado
de uma pequena corista italiana, deixou-a ficar entre ele e Arcanjo. Godofredo
interessou-se vivamente por um tenor, que comia como um alarve. Godofredo
odiava os tenores. O Pimenta e o triste Olegário ficaram com a Lianne
d’Ortal, chanteuse gommeuse neurastênica, que os abandonava de quarto
em quarto de hora para ver se ainda dormia o seu querido, doente de uma bebedeira
colossal na noite anterior. Jorge de Araújo era o festejado de todos
– porque entre as suas habilidades havia a de aparentar que gastava. Antes
parecer do que ser. Tinham-no por um perdulário. Sabia dar o estritamente
necessário. Mas no bom momento. É tudo. A roda dele e do italiano
Buonavita, banqueiro atual e ex-engraxate, como os grandes milionários
da América, as mulheres, os gigolos, os parasitas e mesmo alguns michés
intimidados faziam o alarido da apoteose. Ele ria. Buonavita arreganhava os
beiços mostrando uma dentuça de pantera. A gritaria continuava
desordenada. De vez em quando as mulheres zangavam-se por ciúmes. Zangas
rápidas, em que os palavrões estalavam o esmalte da educação
muito mais rapidamente que o esmalte das respectivas faces. Só as mulheres,
apesar disso, guardavam a agudez dos sentidos. Os homens estavam meio apalermados,
mesmo os que pretendiam ser espirituosos, mesmo os grosseiros. Eles olhavam-se
sem surpresa. Arcanjo ficou desconcertado por nem o Chagas nem o Filgueiras
nem outros conhecidos mostrarem a menor admiração vendo-o entrar
lá pela primeira vez.
Mas no fundo esses homens não eram só indiferentes, tinham
uma certa raiva, embora tênue, uns dos outros, porque o egoísmo
masculino idiota sempre, apesar da civilização, não fica
esquecido quando um homem encontra com outros homens várias mulheres.
Todo cavalheiro, por pretensão quase sempre, é, neste caso,
irmão do galo. E o curioso é que nenhum havia a desconfiar que
se não divertia…
Com desejo de dizer alguma cousa, Arcanjo voltou-se para a pequena italiana
que conversava com Jacques:
— Que toma?
— Du champagne, monsieur.
— E tu?
— À americana. Desde o começo, champagne…
Do outro lado, uma espanhola, Concha Arantes, ganiu:
— Ché! Champagne, yo lo creo…
Arcanjo abominou a Concha e voltou-se para a italiana:
— Como se chama?
— Liana.
— Bonito nome.
Era idiota. Para se dar ares de habituado àquela espécie de
vida, serviu o champagne, escorregou o braço, pegou-lhe na mão
– que era muito bem tratada.
— Está aqui há muito tempo?
— Um mês.
— Sabe que é bela?
— Oh! monsieur, vous rigolez.
Ela era realmente tentadora, com o olhar das italianas, um olhar raro que
se entrega como um lago ardente, e tinha vinte e cinco anos e amava a beleza
e amava o interesse. Logo percebera a inexperiência de Arcanjo e a possibilidade
de fazê-lo pagar. Mas, ao mesmo tempo sentia um calor, uma curiosa vontade
de amar a Jacques. Resolvia, por conseqüência, ao responder a Arcanjo,
o problema de se satisfazer. E resolveu. Ligou o seu pé ao do mancebo
por baixo da mesa numa pressão apaixonada e apertou a mão de
Arcanjo de modo visível, a rir. Jacques compreendeu, viu. Viu e teve
uma esquisita sensação de orgulho e de humilhação.
A verdade venceu e para pôr as cousas no seu lugar, debruçou-se
sobre a mesa:
— Então, Arcanjo, já com uma conquista?
— Tu vois… – fez a pequena.
E o seu pé deixava-se esmagar ternamente pelos sapatos do adolescente.
Era uma fatalidade. Que se havia de fazer? Jacques tinha de ser a sota amorosa
do amigo Arcanjo. Naquele ponto, como em nenhum outro, ficava mal. Num certo
momento, afastou-se com ar discreto a ver um grupo que dançava o miudinho
para as cocottes verem. Liana e Arcanjo tinham desaparecido sem dar por ele
– o que acontecia a Arcanjo, do meio do jantar em diante, jantar que não
comia aliás por ser vegetarista. Quando saíram da pensão
da Fanga para o Club Incroyable a jogar, era uma hora da manhã. Liana
ia vestida como se fosse para um grande baile, de luvas altas e decote, dissera
a Jacques:
— Vieni domani…
Arcanjo fez parar o automóvel no meio do caminho, para voltar a casa.
Iam numa alegria um pouco. ruidosa seis pessoas em quatro lugares. Jacques
saltou também a um olhar imperioso e significativo de Godofredo. E
os dous amigos caminharam a pé, pela Avenida deserta. Arcanjo ia fumando
um havano.
— Felizardo!
— Eu?
— Com uma sorte destas.
Insensivelmente fez o elogio de Liana, que o outro pagaria e ele iria gozar.
Era encantadora.
— Ora, já não estou no momento. Tu sim, menino…
— Eu? Sem dinheiro, preso por papai…
— Então a advocacia?
— Ora!
— Vens muito à casa da Zina?
— Algumas vezes. Olhe, você, Arcanjo, é que podia ajudar-me.
— Não fica mal aparecer por aqui algumas vezes?
— Creio que não. Era questão de você querer…
— Tinha um pedido a fazer-te.
— Qual? Também tenho o meu…
— Estás amanhã disponível?
— Pois claro.
Arcanjo hesitou um momento. Depois:
— Voltamos cá amanhã?
— Ah! seu maganão, gostou, hem? Pois sim, voltamos.
— E nada da Alice saber…
— Por quem me tomas tu?
Jacques estava digno. O marido aliviado indagou:
— E tu que queres?
— Imagina. Nem sei como diga. Recebi um pedido. Vocês votam sábado
algumas pensões e algumas concessões. Há um projeto com
prêmios para a exploração de fibras. Não me lembro
bem.
— Sei. É um projeto feito de propósito para ser dado.
Tem subvenção. É para desenvolver a indústria
das fibras…
— O Grande Chefe é contra.
— Não sei, não. Eu voto com a bancada.
— Ora, se você quisesse, podia pedir para que a votação
fosse favorável. Bastava ir ao Grande Chefe, que não negaria
este obséquio de nada.
Arcanjo parou.
— Foi teu pai que te pediu isso?
— Não.
— Quem foi?
— Ninguém. Estávamos outro dia a conversar no chá.
O Buonavita contou o caso, com outros. Lembrei-me de ti.
— E disseste o meu nome?
— Não. Por quem me tomas tu? Lembrei-me apenas. Creio que és
meu amigo.
— Mas nisso ganha-se dinheiro.
Jacques ficou perturbado. Tirou a cigarreira, bateu o grosso cigarro sobre
a cigarreira. A sua vontade era não ir adiante, não falar mais
naquilo que o humilhava. Os dous homens continuaram calados algum tempo. Arcanjo
sorria às recordações.
— Que espécie de gente, aqueles homens.
— É a vida de prazer – respondeu o rapaz bem-educado. E no seu
elemento, podendo dar informações desagradáveis: – Não
sei como eles podem viver gastando tanto! A vida custa cada vez mais cara!
Também todos eles têm negócios, têm amigos. O Jorge
está milionário. Não se sabe como, mas está…
— E a Fanga?…
— Hás de conhecê-la.
— Oh! não.
— Ora é da praxe e foi tu n’as pas froid aux yeux…
Arcanjo ficou satisfeito. À porta da casa, apertaram-se as mãos,
fraternalmente.
— Então, que dizes ao meu pedido?
— Vamos a ver – fez o deputado esquivando-se, com a frase habitual
de todos os políticos que se não querem comprometer.
Uma nova vida, entretanto, começava para ambos. Os homens mais sérios
têm temporadas de vício. Arcanjo apanhara a sua febre. Era a
primeira, a mais forte. Pela força das circunstâncias agarrou-se
a Jacques. O lindo jovem foi o seu guia nesse inferno. Ambos assim enganavam
Alice e Jacques ainda por cima fazia parte das partidas sem despender um real.
Na quarta-feira, depois de se assegurar que Arcanjo estava no après-midi
com a Liana foi a garçonnière do barão, mostrando-se
preocupado. E contou a Alice os seus cuidados. Só Alice poderia vencer
o marido, pedir mesmo ao Grande Chefe. Chegou a mentir, disse que D. Malvina
estava interessada, era a principal interessada. Alice, que o beijava, prometeu.
E nos dous dias que se seguiram, ele e Godofredo não largaram Arcanjo.
O cronista não informara que, em seguida à assinatura presidencial,
receberiam. Era pouco, porque havia espalhado muito dinheiro. Sempre servia,
porém. No sábado fatal, não houve sessão, porque
um deputado lembrou-se de morrer. A festa de caridade aproximava-se. E para
Arcanjo a vida de prazer era estranha. Em vez de ir à Câmara,
ia para a pensão de Fanga, onde almoçava com as cocottes e alguns
íntimos. As cocottes desde o almoço bebiam, e já apareciam,
posto que algumas em trajes leves, corretamente pintadas. No domingo, iniciaram
as etapas clássicas da diversão: foram em dous automóveis
cear à Mesa do Imperador, na Tijuca. Iam o Pimenta, Olegário,
Jorge, o tenor, a Liana, a espanhola Concha e Marthe la Turque, dançarina
da dança do ventre. Essas mulheres mais o tenor, logo depois da Muda,
começaram a gritar, a fazer um barulho dos diabos. A ceia era oferecida
por Jorge, que tinha gosto, hábito e mandara dous criados lá
para cima, com um sortimento de frios, guloseimas, champagne e velas.
— Olá! olé! ché! – gania a Concha…
— É uma ceia neroniana – exclamava eruditamente Pimenta.
No deserto daquelas selvas embalsamadas, o luar estendia diluências
argênteas. O contraste entre a paisagem e a exasperante corrida de homens
de casaca e damas em grande toilette, incitava a cousas inéditas –
dessas cousas inéditas que se praticam todos os dias. O homem de aço,
que era Jorge de Araújo, comandava o pelotão. Arcanjo talvez
não tivesse nenhum sentimento por Liana. A pequena, porém, tiranizava-o,
aproveitando ocasiões para se deixar beijar e beijar Jacques. A ceia
terminou às três da manhã na Gruta de Paulo e Virgínia,
quando o tenor propôs que virassem todos faunos e ninfas.
No dia seguinte, Jacques, que não dormira, foi ao meio-dia buscar
Arcanjo a casa. Arcanjo não estava. Nem Alice, que fora a uma reunião
urgente das damas de caridade, ameaçadas de ficar sem o jardim, graças
a uma reconsideração intempestiva do prefeito. E era o dia das
votações, era o dia fatal…
— Talvez esteja na casa da Fanga…
Foi a pé, menos resolvido. Afinal, se tivesse que ser seu, era mesmo.
Depois não adiantava nada correr. Para que correr? O que tem de ser,
tem muita cousa. Na casa da Fanga, Arcanjo não estava. Com certeza,
tinha ido votar. Ficou entretanto. Liana acabava de acordar e nos seus aposentos
comprava objetos a uma velha francesa. Entrou, sentou-se numa vasta poltrona,
deu conselhos, interessado com a velha, Mme. Monpalon.
— Uma senhora muito séria – disse a Liana, sentando-se na cama.
Mme. Monpalon tinha setenta anos. Fora das primeiras no Rio e gastara loucamente,
sem saber em quê. Uma noite, a eterizar-se, queimara-se com um fogareiro
de espírito de vinho. Ficara, com o colo perdido, obrigada a não
mostrá-lo. Viera a miséria e Mme. Monpalon foi dama de companhia
de Huguette Lemaire, outra grande mulher. Huguette não amara nunca
e sentia um prazer macabro em arruinar os contemporâneos. Mme. Monpalon,
experiente, ia pondo de lado, na Caixa, pequenas quantias surripiadas ao estrago
desenfreado. A Huguette nem olhava as outras mulheres. Desprezava-as. As outras
vingavam-se com pragas.
Um belo dia, o mal terrível rebentou, deformando-a. Huguette estava
imprestável e sem vintém. Então, Mme. Monpalon instalou
a companheira num porão e foram gastando os dinheiros da Caixa, no
porão. Os dinheiros acabaram. Ela fizera-se costureira nas pensions
d’artistes, comerciando também em roupas, toilettes das mais de sorte
às menos favorecidas, para sustentar-se a si e a Huguetre. Era uma
doce velhinha. Vendia também remédios para conservar a cintura
fina, a tez fresca e pomadas maravilhosas.
— A vida é dura, é muito dura…
Liana não comprou afinal nada. Ficou apenas com uma pomada que não
pagou.
A velha fez a trouxa e retirou-se docemente. Vinha um cheiro de defumador
horrível, do corredor. Era a Fanga que o defumava. Talvez por isso,
do quarto pegado, uma tosse tremenda fez-se ouvir. Parecia que a criatura
escarrava os pulmões. Liana ouviu a tosse com um vinco na testa.
— Quem é?
— É a Concha. Está a acordar mon p’tit. Sempre que se
levanta tosse assim. Ninguém diz hem? Parece vender saúde. Pois
usa flanelas e já aplicou óleo de cróton. Mas há
quem goste. Um joalheiro milionário dá-lhe tudo o que ela pede
A Concha acabara de tossir. Ouvia-se distintamente que fazia a sua entrada
Mme. Monpalon.
— Ché, vieja, espera un ratito.
Liana sorriu. Tinha esquecido a má impressão. Então
saltou da cama, caiu nos braços de Jacques.
— Caro, carino.
— Espera, são três horas…
— Arcanjo viene alle quattro.
Jacques morria de sono. Ergueu-se a custo. Como fizera mal em não
ter dormido! Depois uma cousa combinada… Estirou-se a fio comprido na cama,
pensando nos acontecimentos. A rapariga olhava-o embevecida. E ele tinha os
olhos cerrados.
— Sabes que te amo? – fez sacudindo-o.
— Sim, sim, como todas…
Na idade de Jacques os homens gostam das mulheres e não de uma mulher.
Por isso, é o único momento em que os homens causam paixões.
A pequena Liana estava junto dele, fremente. Não era desejo. Era um
pouco de adoração pela graça estuante do efebo. Não
lhe via nada de mal, nada de feio; via-lhe apenas a beleza, essa quente beleza,
em que a fronte era lisa, sem preocupação e o sorriso garoto.
Teria ele amado outra? Amaria naquele momento? Ela julgava ter lhe dado tudo
quanto era possível – que era enganar outro homem seu amigo com ele,
mas via bem que tal cometimento era aceito com indiferença.
A noite descabelada, o acordar mau, as histórias de Mme. Monpalon,
a tosse de Concha, o defumador de Zina, reavivavam-lhe a própria e
curta história da sua vida, em que estava sempre só no meio
de uma porção de gente sem simpatia e de quem também
não gostava. Tivera amantes sim, amara sim, e quantas vezes já,
sempre contra a vontade! Mas no fundo do coração não
guardava uma só recordação de ternura feliz, nem da mãe,
nem do primeiro, nem dos outros. Com a maioria dos homens, sentia raiva, raiva
que era um apetite de destruição, principalmente quando eles
se mostravam seriamente apaixonados. Com Jacques, que nem lhe prestava atenção,
media o horror do seu abismo.
— Querido!
Curvou-se, Jacques dormia vestido. Alisou-lhe a mão, grande e for-te,
macia. Cheirou-a. Beijou-a. Alisou-lhe depois os cabelos. Beijou-o. O seu
hálito! Parecia rosa, parecia o perfume de um ramo de rosas. Ela não
o possuía aos vinte e cinco anos, senão depois de vários
dentifrícios, de mastigar pastilhas, ela tão jovem e já
dispéptica. E ninguém o tinha como Jacques… Tão lindo!
Tão lindo… Aspirou longamente o seu hálito, insaciavelmente.
Depois, ficou a olhá-lo. Dos negros cílios pendiam-lhe grossas
lágrimas. Uma forte vontade de chorar sacudia-a. Nunca possuiria inteiramente
seu, aquele ser delicioso. Nem outro de quem gostasse…
Mas, batiam à porta. Era de novo Mme. Monpalon.
— Minha filha, está lá embaixo l’onorevole…
— Já?
— Não acha conveniente?…
— Sim, sim, manda subir.
— Et monsieur? Mme. Concha poderia…
Liana acordou Jacques assoando-se. O jovem levantou-se de um pulo.
— Já. Ainda bem. Passo para onde? – fez habituado.
— Para o quarto da Concha. Ela é amiga.
Jacques desapareceu. Já Arcanjo dos Santos subia a escada. A curiosidade
foi mais forte que a prudência. Jacques abriu a porta do quarto de Concha
que fechara um instante antes, e bradou:
— Incorrigível!
— Tu aqui?
— Vim procurar-te.
— É boa.
— Palavra.
— Venho da Câmara.
— Votaram?
— Votamos – fez o outro rindo. E depois, batendo-lhe no ombro:
— Sempre conseguiu!
— Passou?
— Passou, passou. Agora é com o Senado. Também por que
não me dizer logo que a mamã se interessava?
— Ah! soube? – indagou Jacques corando.
— Pois se ela falou, pessoalmente à Alice… Minha mulher já
lhe foi dar a boa notícia. O Grande Chefe, de resto, não fazia
questão. E agora nós – concluiu festeiro: – A Alice janta na
tua casa e eu aproveito o pretexto da coligação para jantarmos
no Leme. Serve?
— Apoiado.
— Então, até já…
Jacques fechou a porta, agarrou Concha, fê-la andar à roda,
num contentamento louco.
— Bravo! Bravo! Bravo!
— Que tens tu?
— Consegui uma grande cousa.
— Aposto que foi o Arcanjo a arranjar – disse a espanhola filosófica.
— Foi, sim. Mas por que o dizes?
— Ché! Se tu o enganas pelos dous carrinhos!… É da
vida.
E parou súbito, pondo uma toalha à boca. Vinha-lhe outra crise
de tosse, e já não era hora de ter tosse
Capítulo VIII: Uma grande festa
Era num jardim público, reservado a nobre exploração
da caridade pública, em indeciso dia do mês de julho. Afinal,
após quatro domingos de chuvas intempestivas, que tinham o mau gosto
de começar sábado, a noite, para terminar ao anoitecer dos ditos
domingos, realizava-se a grande festa em favor do Dispensário da Irmã
Adelaide. O céu estava nublado. Um vento úmido soprava pelas
árvores. Mas o longo reclamo dos jornais, a longa expectativa tinham
de tal forma enervado a curiosidade, que um temporal desfeito não impediria
uma grande venda de bilhetes sem resultado.
Pela manhã os portões do jardim não se abriram. Desde
cedo começaram a estacionar em frente carroções trazendo
o fornecimento para os botequins e os restaurants. Logo depois do portão
havia uma armação de cetim vermelho, que dividia a entrada em
dois, tapando a vista dos que passavam na rua. Ociosos, e gente do povo, os
passageiros dos tramways paravam ou voltavam-se curiosamente. De cada lado
do portão, por trás das grades, havia cubículos, onde
eram vendidas entradas. Pregado a um venerável tamarinheiro irradiava
um cartaz de três metros do mais brilhante caricaturista contemporâneo
representando uma senhora elegante espalhando carinhos a pequenos famintos
de pés grandes. E o cartaz, o tapume, os carroções, os
carregadores que entravam, tudo indicava o inicio de um dia caritativamente
mundano.
Mas que trabalho!
Os rapazes mais elegantes e mais dedicados tinham passado a noite no jardim,
dirigindo os trabalhadores e numerando os presentes da grande tômbola,
em número superior a dois mil. O Chagas com o seu bom gosto, o Dória
e cinco ou seis do mesmo quilate encarregavam-se desse trabalho exaustivo.
Havia no meio de tanta inutilidade dádivas de valor, até mesmo
jóias. A ilustre Sra. Argemira de Melo e Sousa deixara o local às
duas da madrugada. D. Malvina Pedreira tivera um começo de nevralgia,
graças a um impertinente golpe de ar. As damas do comité, incansáveis,
tinham saído pouco antes da Sr.ª Argemira. E para o fim da madrugada
o programa fora definitivamente traçado; todas as bandas militares
cedidas pelos comandantes dos corpos, barracas de doces, de buffet, de cartões
postais, de flores, de chá, tenda de pitonisa croata, números
infantis compostos de corridas a pé, corridas do copo d’água,
corridas do ovo com prêmios, concurso de batéis enfeitados sobre
os lagos, tômbola às cinco horas, baile ao ar livre no magnífico
terraço, e a grande resistência: o teatro. O teatro era dividido
em duas partes. Na primeira uma comédia de salão, escrita em
francês pelo amador literário Gomensoro, e representada por três
das mais distintas senhorinhas e o Belmiro Leão, cuja dicção
parisiense era estupenda. A comédia intitulava-se discretamente Ohé!
les petites! Depois: Etelvina Gomensoro, née d’Ataíde, em romances
franceses; dois atores portugueses, comendadores de S. Tiago, que sabiam vestir
casaca; versos de Musset, pela grande atriz francesa; a ária da Boêmia,
pelo notável tenor Zenaro; as canções da Judic, pela
atriz portuguesa. A noite, os fados portugueses, pela excepcional Etelvina
Gomensoro e uma orquestra de bandolins de cem meninas (eram de fato oitenta
e três), vestidas de branco, com uma fita azul a tiracolo. E, como fecho
de ouro, os quadros vivos com projeções elétricas, em
que figuravam Cristo e a Adúltera, A Samaritana e outros motivos santamente
bíblicos.
Essa importante parte da festa era por inteiro obra de Godofredo de Alencar.
Mas dera-lhe decerto menos trabalho diplomático que o arranjo das comissões
das barracas à Sr.ª de Melo e Sousa. Nomeadas as chefes, com o
desejo de não suscetibilizar ninguém quanto ao local, outra
dificuldade surgiu, quanto às caixeiras, às vendedoras. Era
preciso saber as relações das meninas, as zangas, as amizades.
Uma das famílias – precisamente a família do médico milionário,
que dera uma forte soma ao Dispensário – tinha tão má
vontade das outras, que foi preciso juntá-la num lote a vender cartões
postais autografados. Depois, se umas queriam vender doces e vinhos, outras
achavam deprimente um tal mister, mesmo por brincadeira.
— São as que têm merceeiros na ascendência! – sentenciava
a Muripinim, velha relíquia da monarquia, à velha Ataíde,
esmaltada progenitora de Etelvina.
Uma palavra, de resto, bastava para desconcertar uma barraca, e muitas desistiram
à última hora, retiradas pelos pais extremosos e pouco civilizados.
Quando a Argemira viu a sua lista concluída ainda pensava que era mentira.
As barracas estavam, aliás, muito bem dispostas nas aléias,
de emboscada as de flores e cartões; bem à vista as de doces
e bebidas. Os números de teatro realizavam-se no próprio tablado
junto ao botequim, cujo proprietário prometera, nos últimos
momentos, fazer também funcionar o biógrafo nos intervalos da
noite, – grátis. Aquelas damas arranjavam tudo grátis. Até
o biógrafo.
D. Malvina apareceu no jardim, ás onze horas, julgando ser a primeira.
Acompanhavam-na cinco criados. À porta já havia um esquadrão
de polícia e uma turma de guardas-civis. No jardim, só uma barraca
estava ocupada, a da esposa do médico com as suas respectivas filhas,
moçoilas de uma fealdade esplêndida. D. Malvina concorrera com
doces feitos em casa. Era a última abencerragem da nossa remota civilização
patriarcal. Os grandes cestos que os criados traziam eram de bolos, balas
e outras guloseimas familiares. Quando chegou ao buffet não havia nada
arranjado. Apenas o Chagas e o filho dos Viscondes de Pereira tomavam vermouth,
uma das garrafas oferecidas por conhecida casa comercial, que só oferecera
por ser conhecida e solicitada e ter reclamos nos jornais – o que redundava
em lucro para o seu negócio. Os dois mancebos estavam em mangas de
camisa e desculparam-se vexados.
— Trabalhamos toda a noite!
— Estou que não posso! Mas venha ver, a senhora que tem gosto!
D. Malvina acompanhou-os ao lugar onde teria lugar a tômbola. Era uma
azáfama. Meia dúzia de jovens trabalhava a gritar e havia brinquedos
e coisinhas dependuradas em toda a volta.
— Vai ser um sucesso, D. Malvina.
— Se Deus quiser. Estou com medo da chuva. O povo tem medo. E até
agora nem sombra de sol.
— Não chove, aposto – gritou o Dória. – Já intimei
o sol a aparecer. A pouco e pouco, entretanto, iam chegando as senhoras encarregadas
das barracas, fazendo os preparativos, "tomando conta", como aconselhava,
D. Malvina. Ao meio-dia, já três bandas de música tinham
aparecido, três só. Os rapazes que faziam parte da roda e tinham
as famílias nas barracas, entravam naturalmente. Uma alegria ainda
débil desabrochava com timidez nas aléias úmidas de chuva.
As meninas riam na intimidade dos flirts, preparando-se. Era em tudo como
nas caixas de teatro, antes do sinal de prevenção para o primeiro
ato. A uma menos um quarto saltou de um coupé Godofredo de Alencar,
acompanhando o tenor Zenaro. Fora o maior sacrifício da sua vida aproximar-se
do tenor, conseguir a sua presença, ele, que odiava os tenores. Zenaro,
quarentão com atitudes de efebo, as sobrancelhas avivadas a khol, hesitara,
mostrara o seu enorme sacrifício, consentira na publicação
do seu célebre nome nos programas, mas, como bom tenor, esperava a
promessa de um cachet. Na véspera, desejara experimentar a voz no local,
pedindo ao egrégio crítico a gentileza de acompanhá-lo.
Godofredo fora buscá-lo. Zenaro queixara-se da umidade. Aceitou o coupé,
depois de almoçar, e saltava com um ar de soberano de corte decadente.
— Não está ninguém.
— Estou eu…
— Digo que nenhuma das senhoras veio receber-me.
— Ainda é cedo.
Com a face fechada, o célebre tenor foi até ao botequim, fixou
o tablado e exclamou:
— Mas é ali que eu vou cantar?
— Meu caro, você vai fazer uma obra de caridade. Ao seu lado
comparecerão grandes artistas.
— Eles virão mesmo?
— Creio que vêm, mesmo porque está toda a sociedade metida
na festa.
— Ah! Acho muito desabrigado. A voz perde-se.
— Qual! Experimente.
No momento em que Zenaro se dignava soltar uma nota de sua garganta-tesouro,
um tramway passava na rua a toda a velocidade, guinchando as rodas na curva
dos trilhos. Zenaro estacou.
— E os tramways param?
— Param – mentiu Godofredo.
— Bem. Então, se o tempo não me fizer mal, virei. Mandam-me
buscar?
— Claro.
— É possível, é muito possível que venha.
A questão é do tempo. E da minha saúde.
Depois pigarreou, olhou hostilmente aquele lamentável meio de café-cantante
com cadeiras de folha e bandeirolas, estendeu a mão:
— A rivederci…
— Até logo.
Godofredo acompanhou-o até a porta, convencido de que o efebo quarentão
não voltaria. Acompanhou com uma secreta vontade de sová-lo.
A quantas humilhações descia inutilmente! Mas vingar-se-ia,
anotaria pelos jornais a decadência daquele tenor de que com tempo perdido,
se apaixonavam as mulheres.
Entretanto, na bilheteira o aplaudido cronista recebeu um embrulho e uma
carta.
O embrulho eram os petits souvenirs para os artistas, carteirinhas vazias
de cinco mil-réis. A carta era da grande atriz francesa, que se desculpava
com uma terrível dor de cabeça, por não poder comparecer.
A sua raiva secreta, aumentou. Que papel iria fazer? Talvez não viesse
ninguém. Estavam os seus créditos de crítico a periclitar,
a sua influência na perspectiva de se mostrar nula nos bastidores. Também
com aquelas senhoras, que davam carteiras de tal ordem, e não vinham
receber um tenor de fama mundial!
Era, porém, uma hora. Ouviu-se uma sineta que soava ao longe. Os portões
abriram-se. Um magote de gente precipitou-se. No magote Argemira e Alice,
apressadas, com o aspecto de quem falha a cena. Alice contrariada por não
poder mostrar um estupendo vestido de rendas brancas, em virtude do tempo.
— Bom dia, diretor dos teatros.
— Então, choverá?
— Que chova a potes. Agora…
— Olha, noutra não me pegam.
Godofredo quis acompanhá-las. Mas o receio de fazer um fiasco, de
outros artistas mandarem desculpas, fê-lo parar. Não teria uma
festa, teria um dia de aborrecimento e preocupações. A banda
de música rebentara a tocar. Ao magote curioso sucedera, entretanto,
plena calmaria. Gente passava fora, olhando com desconfiança. Outros
chegavam aos guichets da bilheteria e recuavam diante do preço. Os
mais ousados, um, dois, de vez em quando, entravam meio acanhados. Eram na
maioria gente domingueira, atraída pelos reclamos, mas prevenidos.
Imediatamente partiam da feia barraca do médico cinco vendedoras de
cartões postais, e da barraca de flores duas meninas armadas de cestinhas,
com agonizantes espécies florais. Como não eram gente conhecida,
essas meninas muito bem-educadas (quase todas em Sion, quando os pais tinham
o alto posto, há tempo) tomavam uma atitude impertinentíssima,
e ofereciam as flores ou os cartões, numa frieza de cartel de duelo.
Os que entravam, ou esquivavam-se a balbuciar, ou aceitavam de vergonha. As
meninas não davam troco e não diziam obrigado, amarrando a cara
como se acabassem de receber uma ofensa. Uma delas correu a um sujeito gordo,
cheio de brilhantes e malvestido.
— Qual, minha menina, não vou nisso – regougou ele. – Já
comprei à porta…
A pequena ficou vermelha. A mãe chamou-a severa.
Godofredo mordia o castão da bengala, assistindo àquela lamentável
cena de um bando de esnobinetas tolinhas. Contudo, acercou-se, concordou com
elas, ouviu-as. Em ambas as barracas esperavam as boas relações,
os conhecidos. As meninas tinham apostado a ver quem havia de fazer maior
quantia e contavam com a generosidade dos amigos da família. Apenas.
Podiam contar com os flirts. Os flirts, porém, eram grátis,
e haviam de ter quantas flores desejassem sem despender vintém.
O dia continuava escuro. Mas, de repente, sem que ninguém esperasse,
um raio de sol filtrou-se por entre as nuvens de chuva. Esse imprevisto fez
as meninas das barracas soltarem exclamações de alegria, e a
todos pareceu que era a vida vindo em auxílio da festa.
De novo recomeçou a entrada em massa. No elemento anônimo havia
já personalidades conhecidas: três ou quatro deputados, dois
membros do Supremo Tribunal, um grande construtor. Reporters novatos, armados
de tiras e lápis, surgiam e iam perguntar a lista das diretoras das
barracas. As senhoras gostavam muito de nome no jornal, mas não podiam
dar a confiança de uma resposta amável. Eram muito delicadas
para tal. Na barraca das feias, as meninas não responderam. Foi a mamã,
seca de voz e gorda de corpo.
— Ponha: primeira barraca de cartões postais. Mme. Silva e suas
filhas.
— Mesdemoiselles? – indagou o menino informador, esforçando-se
por parecer elegante.
— Basta o que lhe disse – regougou Mme. Silva, como se falasse ao seu
copeiro, ela que se dava com o dono do jornal de que o petiz era noticiarista.
— E tem vendido muito?
— O senhor não vê que começo agora?
— Desculpe V. Exa..
A feia dama dera delicadamente as costas ao pobre rapaz. Era imprensa! E
que metediços! Ainda se fossem os donos do jornal…
Na outra barraca, na das flores, a mesma senhorinha a quem o homem abrilhantado
respondera com grosseria, tomou um ar altivo e olhou a promessa jornalística
como assombrada que um pequeno gazeteiro tivesse o topete de falar a pessoa
da sua importância tão sem respeito. Foi preciso Godofredo prestar
as informações. Um dos meninos dos jornais estava furioso.
— Que insolentes.
— É de família, filho.
— Como se chama aquela?
— Zuleika.
— Troco-lhe o nome.
— Fazes bem, porque ela adora o nome nas seções mundanas.
É o único meio de seres cumprimentado amavelmente, e se o teu
patrão não te puser no andar da rua a pedido do pai. Erra-lhe
o nome sempre e passa por ela sem a saudar, encarando-a.
Mas nesse momento entrava Arcanjo dos Santos. As pequenas caíram-lhe
em cima. Os reporters foram-se. O pelotão de Mme. Silva avançava.
O deputado disse baixo apertando a mão de Godofredo, para as meninas:
— Depois. Não dou agora para não dar também ás
feias. – E agarrou do pálido homem de letras.
— Estou receoso. Imagina que venho da casa da Fanga.
— Bem, e então?
— E então é que quase todas as cocottes estão
com vontade de vir.
— Que tem isso? Acontece o mesmo em todas as festas de caridade. As
cocottes fazem sempre melhor figura. Depois a caridade e as cocottes… Olha
a divisa é a mesma: recebe sempre e não olhes de quem…
— Sempre paradoxal! Mas não deixo de estar assustado.
Em razão desse estado, viu o Chagas e repetiu o acontecimento; viu
o Pimenta e fez o alegre representante da alegre pátria passar adiante,
achando o caso imensamente parisiense. Em dez minutos na roda, os casados
com aquelas damas ou pais daquelas meninas ou amantes de fato e de esperança,
mas todos freqüentadores da Fanga, souberam que a linda italiana apareceria
com os exemplares mais belos do seu colégio. Era uma chegada tão
sensacional como a do presidente da República ou a do cardeal. Quando
Jacques entrou com Belmiro Leão e Bruno Sá, foi a primeira coisa
que lhe disseram.
— Sim senhor! – fez Bruno Sá, sem dizer se achava bom ou mau.
— Estamos no nosso elemento.
— Homem sem princípios!
— Quem almeja os fins não olha a princípios. Ainda assim
estamos com a filosofia do meio.
E cada um foi tratar da sua vida. Haviam chegado mais duas bandas de música.
A concorrência era agora franca e larga. O portão sorvia ás
centenas as diversas classes de que se compõe uma sociedade que se
preza. Na aléia preparada para o programa infantil, começava
o primeiro páreo de crianças a pé, menores de oito anos,
e ganhara longe a filha de Mme. Gouveia, inscrita como prestes a entrar na
casa dos oito, mas infelizmente para as concorrentes, maior de dez anos havia
seis meses. Nesse trecho do jardim era um brouhaha de pequenos e pequenas,
com a viva alegria que os jardins infiltram nas crianças. E já
os petizes bem vestidos, mostravam uma educação prometedora,
as meninas com pretensões, os rapazes mais insolentes, desses que fingem
de filhos de rei e só cedem à ameaça de um puxão
de orelhas.
O Dória, que, à última hora, dirigia a criançada,
sentia bem o juízo que dele faziam os maiores pelo tonzinho com que
a ele se dirigiam. Pobre Dória! Alguns pais e algumas amas mesmo dirigiam-se
à sua ex-elegante pessoa como a um bedel carinhoso.
— Ó Dória, cuidado com o Juca…
E os meninos, à primeira necessidade, vinham a ele, imperiosos. Na
corrida do copo d’água a filha de Mme. Zurich ainda não divorciada,
correu, mas entornou o copo inteiro na sua linda roupa, e chorou furiosa.
O Dória teve que acalentá-la, prometendo-lhe uma boneca na tômbola
– o Dória que não se dava com o marido da mãe, desde
um incidente, ao jogo.
Pelo jardim, porém, nem todos tinham os encargos do arruinado ex-engenheiro.
O movimento pelas aléias era difícil e lento. Em cada barraca,
organizara-se um ranchinho, o rancho das vendedoras e dos seus respectivos
flirts, desde os flirts de que elas gostavam mais até os flirts serventuários,
meninos que se encarregavam de pequenos serviços. A excitação
do jardim e da turba foi como que propagada por esses focos de elegância.
As maneiras um pouco faubourg do princípio, iam num crescendo de feição
americana. Havia risos, gargalhadas de troça, segredinhos, passeios
de algumas senhorinhas a outros pontos pilotadas pelos rapazes. Quando chegava
algum conhecido era o ataque.
— Conselheiro Filgueiras, esta flor!
— Dous tostões.
— Oh! conselheiro.
— Então marque o preço.
— Cem mil-réis.
— Só a flor?
— Exija, tirano do dinheiro.
Uma dúzia de homens ricos e viajados trouxera mesmo maços de
notas novas, para dar sem exigir troco. O autor de Smart-Ball, com colete
à fantasia do pior gosto, já ficara reduzido à expressão
mais simples. No grande buffet, onde estavam as maiorais do comité,
os preços chegavam a excessos. E aí, ao lado de Argemira e de
D. Malvina e de Luísa Frias, segura a Bruno Sá, Alice dos Santos,
lançada sem freio, estava como enebriada do seu triunfo. Um industrial
dera-lhe um bilhete de quinhentos por um cálix de porto; um senador,
que viera servir-se de uma sandwich, atacado por ela, dissera:
— V. Ex.ª de mim tem o que deseja.
— Em troco de quê?
— Do que desejar.
— Então deixe ver duzentos.
— Tê-los-ei ainda!
— Dê-mos que não se arrepende.
O homem consultou a algibeira, retirou quatro notas de cinqüenta, as
últimas com que pretendia comer mais quatro sandwiches e talvez beber
um cálix de vinho. Entregou-as. E Alice estendeu-lhe a face.
— Beije!
O senador ficou perplexo. Em torno todos voltavam-se divertidos. Alice ria.
Era assim que ela lera num romance. Reproduzia fielmente a cena e obscurecia
por completo o provincianismo não dela, mas das outras. O senador,
tonto, pousou-lhe os lábios na testa.
— Arcanjo e Deus perdoar-me-ão em nome dos pobres.
Belmiro Leão na algazarra que sucedeu ao beijo, decidiu-se.
— D. Argemira, não acha que os pobres devem ter também?
— Sei lá…
Alice sorria. Ele apertou-lhe os braços. Ela excitadíssima
olhou-o com uma chama nos olhos belos.
Mas, caminhando para o terraço a segurar o braço da Malperle
viu de repente Jacques. Então quis ousar mais, chamou-o alto, com um
ciúme raivoso da linda Malperle de branco-cinza com os seus corais
de girl new-yorkense. Jacques ia subir ao terraço, Alice gritou. O
lindo rapaz apressou o passo, fingindo não ouvir, desapareceu. Ela
ficou com o coração a bater. Belmiro Leão aproximou-se.
Era uma confusão tão grande que além dos criados, as
próprias senhoras serviam.
No terraço, porém, a cena tornara-se de uma empolgante beleza.
Aquele movimento de turba numa confusão de cores surdas, sob o cinza
do céu que se ligava na linha do horizonte ao verde-negro do oceano,
empolgava. Uma banda militar tocava valsas. A maioria do povo chamada ali
para concorrer, apenas com o seu dinheiro, assistia ao valsar de alguns pares
elegantes, e era uma delícia ver o Gouveia com um enorme chapéu
florido rodopiar pelo braço, leve de um tenente da Marinha, Mme. Zurich
deixar-se levar como uma sílfide pelo filho do antigo merceeiro Teotônio,
e Gaby Nolasco e Germana Guerra e a Viuvinha Pereira cada uma com seu par
distinto na ebriedade do ar livre e da valsa langorosa. Jacques não
perguntou a Gina Malperle se dançava. Enlaçou-a, rodopiou. Era
uma das suas muitas qualidades: valsava deliciosamente, com autoridade sobre
o par. As damas passavam a pequenas coisas animadas por ele. Gina sentia-se
possuída, e a valsa era como um rosário de suspiros de gozo.
Entretanto, enquanto na tômbola, o homem de gosto, Chagas, preparava
um sorteio genial, Godofredo de Alencar penava com a sua parte teatral, correndo
entre a porta e o botequim. As quatro horas a rotunda que forma o bar estava
repleta. Os impacientes batiam com as bengalas, as pessoas amigas vinham tomar
informações.
— Então, quando se começa?
— Já, vamos começar.
Era que nenhum dos artistas chegara ainda. Godofredo tremia de cólera.
O público estava ainda mais impaciente. Então o marido de Etelvina
teve a idéia de começar logo a comédia: Ohé! les
petites.
— Pelo menos começamos. O público está impaciente.
— Depois é mesmo do programa…
— Boa idéia.
Um quinteto de cordas tocou a ouverture. Godofredo correu à porta.
A comédia (ninguém sabia de quem a tomara o Gomensoro) era a
história de três meninas, que querem casar com o mesmo rapaz
tímido. O rapaz propõe casar com as três. Mas recebe uma
carta da prima, mais velha dez anos e prefere-a – porque o seguro morreu de
velho… A maioria do público, ignorando o francês, não
compreendeu a graça esfuziante dessa obra-prima. Os mundanos bateram
palmas. Quase junto ao tablado o Barão Belfort cumprimentava Gomensoro
chamando-o à cena. Gomensoro não veio. Era inteiramente do tom.
Mas apareceu Godofredo enfim, com os três artistas portugueses. Estava
salva, mais ou menos salva a primeira parte. O literato parecia lívido
de cólera. Ninguém recebera as artistas, e os amadores de salão,
sabendo que eles vinham graciosamente tomavam ares superiores e frios…
— Por aqui, por aqui – fazia ele.
— Ai filho, que complicação!
E as amadoras mundanas olhavam d’alto, sem ao menos agradecer o obséquio
da gente da rampa lisboeta. Idiotamente insolentes, pensava o cronista. Mas
um dos artistas, deslocado, para se afirmar um pouco, falou alto:
— Ó Godofredo dá-me esta música ao maestro. Faze-me
esse favorinho, sim?
E Godofredo enraiveceu mais porque os artistas tratavam-no por tu, à
vista da alta sociedade. Assim a sua entrada foi atroz. Quem liqüefez
o gelo entre artistas de sociedade e artistas de palco foi Angelina Mora.
A estrela portuguesa trazia um vestido estupendamente rico e punha o face-à-main
para olhar as petites do Ohé de Gomensoro com um ar de amadora numa
exposição de quadros. Era célebre. Célebre e meia
doida como todas as mulheres célebres. Estava convencida de que ia
triunfar.
De fato.
Etelvina Gomensoro, née d’Ataíde, cantara apenas versos de
Verlaine, música de Debussy, e Angelina Mora, com um talento muito
maleável, impunha-se. O público fez-lhe uma ovação.
Godofredo, entusiasmado foi beijá-la.
— Tenho uma prenda para oferecer-te.
— É jóia, filho?
— Não, é uma carteira vazia…
— Estas tuas damas de caridade são sempre muito cascas. Apresenta-mas
ao menos.
Godofredo tinha receio, mas enganava-se. Desde que Angelina triunfara e a
roda de cavalheiros a saudava, o high- life admitia-a logo. Etelvina, para
mostrar que não se esquecera dos centros artísticos de Paris,
foi encantadora; Gomensoro, a que a prudência diplomática fizera
reservado, veio beijar-lhe a mão. E as meninas aproximaram-se sorrindo.
Angelina apertou-lhes a mão com intimidade e para uma:
— Sabe que é bonita?
— Bondade sua.
— Linda, mesmo. De estalo! Deixe dar-lhe um beijo! – E precipitou-se,
ardente.
A noite descia já sobre as árvores. Uma das lâmpadas
elétricas sacudiu-se e a luz branca explodiu, fixou-se. Imediatamente
outras lâmpadas abriram. O jardim de súbito se encantara de luzes.
Ao mesmo tempo uma fanfarra tocou, e as bandas começaram o hino nacional.
— O presidente! – gritou Godofredo.
— O presidente!
Várias vozes repetiram a palavra mágica. A multidão
precipitou-se. Era realmente S. Exa. que chegava para dar maior brilho à
festa. O comité, Arcanjo, Jacques, Malperle, estava à porta
para recebê-lo. Os grandes nomes da política, da indústria
e da finança, dependentes de gestos seus, mostravam um sorriso amável.
E a multidão seguia-o como na rua se acompanha um andor.
Godofredo só pôde apanhar a comitiva perto do lago onde, sem
concorrência, uma pequena barraca vendia sorvetes e balas. O senhor
presidente resolvera visitar todas as barracas tendo para cada uma vendedora
a frase de gentileza justa. Era aristocraticamente democrata. Intimidadas,
as vendedoras nada lhe ofereciam. S. Exa. sorria e pedia:
— Uma flor…
Todos queriam ter o prazer de oferecer uma flor, ou mesmo um ramo de flores,
ao detentor das concessões e dos dinheiros públicos, ao senhor
do progresso do país. Ele, porém, discretamente, deixava nos
açafates uma nota nova e agradecia ainda por cima. Chagas reparou que
eram bilhetes da Caixa de Conversão de cem mil-réis e foi somando,
ao lado. No buffet, um momento pararam. S. Exa. com um flute de champagne
na mão, disse algumas frases sobre a caridade, cumprimentou Mme. de
Melo e Sousa, cuja família era uma das nobres tradições
do país, saudou com respeito íntimo, Alice dos Santos. Estava,
precisamente, ao lado do grande chefe político, que se curvava para
Luísa Frias. Jacques, bem perto, teve uma inspiração:
— Apresenta-me ao presidente – disse a Arcanjo, tão alto, que
S. Exa. ouviu, voltou-se sorrindo.
O deputado também sorriu. D. Malvina ria.
— V. Exa. a permite? o Dr. Jacques Pedreira, filho do ilustre Dr. Justino
Pedreira.
— Já formado? Tão moço! Meus parabéns.
Sou muito amigo do seu pai.
— Foi a admiração por V. Exa. que me fez desejoso de
apresentar a V. Exa. os meus cumprimentos.
— Ah! muito obrigado – disse o estadista presidente, olhando-o com
simpatia.
E a visita continuou. Mas Arcanjo, com receio, notou que não tinha
apresentado Jacques ao Grande Chefe, e o Grande Chefe vira. Era mau para ele
Arcanjo, era mau para Jacques. Uma desconsideração talvez…
Então, apanhou Jacques pela aba do frack. E para o homem importante,
de que dependiam a sua reeleição e o seu reconhecimento, assim
como a reeleição, e o reconhecimento de todos os seus colegas,
chamou:
— General, aqui tem um seu admirador.
O general voltou o olho apenas, sorriu superior.
— Conheço já o menino. É filho do Justino? Um
dos nossos amigos.
Jacques sentiu-se à vontade e sorrindo:
— Papai fala tanto do senhor e o Arcanjo conversa tanto a seu respeito,
que eu já de muito lhe quero bem.
Aquilo saíra-lhe naturalmente, sem esforço. Ele próprio
admirou-se, vendo o olhar grato do Arcanjo. O hábito da sociedade e
o contato com a política já o faziam mentir com uma segurança
deliciosa. O Grande Chefe é que não respondeu, acostumado à
ambrosia da lisonja.
O presidente dirigia-se para o teatrinho. Havia um lugar reservado, com tapete
sobre a areia, para S. Exa. e os ministros. Só três ministros
haviam comparecido. Mas os lugares foram todos ocupados. Imediatamente, fez-se
ouvir o hino, e em seguida o pano subiu, deixando ver trinta e cinco meninas
(afinal tinham comparecido só trinta e cinco das cem) vestidas de branco
e azul e armadas de terríveis bandolins. Iam tocar fados, essa emocionante
cantilena, essencialmente nacional no pais irmão. E com os plongeons
do Rambouillet e todo o chiqué das grandes artistas, Etelvina Gomensoro,
née d’Ataíde, surgia para cantá-los.
Jacques ficara entre Gina Malperle e uma pequena morena, com um olhar de
maravilha, que tremia, olhando-o. Era a filha da Viúva Monteiro, Lina
Monteiro, inteligente, bastante morena, sem dinheiro, sem proteção,
que se agarrava à sociedade considerada por uns semivirgem, considerada
por outros uma infeliz. Jacques que já beijara a Malperle na nuca e
juntava a sua perna à dela, foi se deixando pender para Lina Monteiro.
A jovem, cujos olhos ainda pareciam maiores, tremia e deixava aproximar-se
o mancebo. Naquele momento, era provável que muitos fizessem o mesmo.
Jacques fixou-lhe a medalha modesta que ela trazia à guisa de pendentif.
— Que olha? – fez ela tímida.
— A sua medalha.
— É feia, não?
— Estou-lhe com inveja.
— Ah!
— Queria ser medalha, essa medalha.
— Ah!
— Sim, para estar onde ela está.
Mas os fados bisados tinham acabado e iam ter lugar os quadros vivos, a nota
sensacional. Apagaram-se repentinamente as luzes. Era como no cinematógrafo.
Jacques agarrou sem hesitar a mao de Lina Monteiro, que parecia querer ser
pegada e deixou que a Malperle lhe caísse no braço, curvando-se,
excitando-o com o seu cheiro capitoso. Outros, talvez, estivessem fazendo
o mesmo. Houve um tremolo no quinteto e apareceu o primeiro quadro: a "Caridade",
um anjo estendendo a mão a uma criancinha, que devia ter fome e estava
quase nua. Era a filha de Mme. Gouveia, a que continuava a não ter
oito anos, já tendo passado dos dez. O presidente bateu palmas. Todas
as autoridades civis e militares também. Os projetores elétricos
apagaram-se e a orquestra tocou. Em seguida foi a "Samaritana",
segundo o Veroneso, assegurava o Chagas. A "Samaritana" de azul,
com o costume oriental dava, de beber por uma bilha ao Cristo, que era o Dória,
o Dória, em pessoa, mostrando os seus belos músculos. A Samaritana
era Alice, extasiada. Esse quadro causou sensação. O último,
porém, eletrizou. Era mais ou menos, segundo o mármore de Bernardelli,
"Cristo e a Adúltera". Alice estava apenas um pouco mais
vestida, mas mostrava uma admirável composição de medo,
agachada aos pés do Deus Homem, e o Deus Homem estendia a destra num
gesto definitivo. O Dória parecia mais do que Deus.
Entretanto, nesse momento, para os lados da tômbola em que se procedia
ao sorteio, entre o formigamento das crianças, Fanga, Liana, Concha,
a d’Amboise e outras cocottes surgiam para tomar champagne em companhia de
Jorge de Araújo que as trouxera num dos seus automóveis. O filho
dos Viscondes de Pereira logo que as viu precipitou-se.
— Viva a gente de gosto!
— Com que então você na tômbola? – indagou Jorge.
– A apostar que fazes tratantada.
— Deixa de brincadeira.
— Ora! Então os melhores objetos não ficam para a comissão?
— Talvez, por sorte – sorriu o outro cínico.
— Arranja ao menos um leque para a d’Amboise.
— Espera. Tomo o champagne, e é já. Que número
é o seu?
Mas nesse momento Bruno Sá passou apressado. Jorge chamou-o. O elegante
cavalheiro não atendeu. Logo depois assomaram na escada do terraço
o marido de Mme. Zurich, e Belmiro Leão que o acompanhava gesticulando.
— Ainda um escândalo – fez o Pereira. – A Zurich estava dançando
escandalosamente.
— Dizem que tem muito mau comportamento – fez a Fanga.
E o grupo emborcou os copos de champagne.
Só, por entre os grupos, simples espectador, o Barão Beffort
passeava. Gostava mais de ver só, o Barão. E a festa linda,
como o céu se alimpara e havia um esplêndido luar, tomava um
aspecto inédito.
Era no conjunto, um misto de encanto de feira, de impalpável luxúria,
de contrariedades enervadas, de promiscuidades confusas. No alto do céu
lavado, a lua derramava um luar de oiro calmo e sereno. Embaixo, a poeira
levantada pelo movimento intenso, fazia como a atmosfera do jardim, onde as
árvores pareciam saudosas do quieto silêncio. Nos tabuleiros
de relva, a luz do astro punha reflexos e infiltrações de opala.
Em alguns, repuxos coloridos de verde, vermelho, roxo, atiravam ao ar a fantasia
cambiante de plumas d’água irisadas. Nos lagos de um sujo esverdinhado,
os batéis enfiorados de copinhos multicores pousavam com um ar de mágica
e de legenda. Pelas aléias, pespontadas pela luz das lanternas de cor,
acesas na palpitação das grandes lâmpadas elétricas,
a turba movia-se policroma e agitada: chapéus, gazes, cabeças
nuas, paletot, capas, uma confusão de corpos a passar devagar ou a
correr, enquanto um rumor feito de mil rumores, de sons metálicos das
bandas, de gritos, risos, frases perdidas, conversas multiplicadas, subia
ao ar aberto em clamor. Nas grandes festas, em que há multidão,
sempre em dado momento, estala um surdo incêndio de apetites, de animalidade
que a civilização retém a custo. É o momento turbilhão
das pequenas licenças, dos olhos acesos, dos apertos febris, dos desejos
imediatos, que nem sempre se realizam. Então, por um fenômeno
de projeções odicas, como que o ambiente, as cousas imóveis,
o inanimado, as luzes, as árvores, o ar se embebem de sentimento geral,
e há como um frenesi de posse final, mesmo nos menos aptos e nos mais
fracos. É o fim dos bailes, é o fim das kermesses. Era o fim
também para aquela festa de caridade e de mundanice.
Realmente, depois dos quadros vivos, o presidente da República, acompanhado
da sua casa civil e militar, retirava-se. Com ele saíram os políticos
de monta. Depois dele sairiam os grandes mundanos. O comité, Godofredo,
Arcanjo, vinha trazer sua excelência até o portão. O primeiro
magistrado da Nação dizia gravemente palavras de cumprimento
estudadas pela manhã. Estava encantado. Quando passou o portão,
em frente ao parque estendia-se no percurso da tua inteira a força
de linha, de calças vermelhas, tendo por trás a turba curiosa.
Um toque de clarim varou o ar. Cem caixas rufaram a um tempo. Na semitreva
um pavilhão nacional adejou. Uma fila de automóveis, com os
refletores possantes projetados em triângulo de sangue estacou mesmo
em frente ao portão. S. Exa. mandou arriar a capota do seu. Os trintanários
empertigados faziam a continência. Depois, com um gesto airoso subiu,
sentou-se. O general que o acompanhava entrou também para o veículo,
que logo rodou macio e lento. Ao mesmo tempo rompeu o hino nacional, que se
propagou, cresceu, acompanhou o automóvel, explodiu na rua inteira
o seu clangor triunfal.
— Viva o presidente! – berrou um sujeito.
— Viva! – responderam algumas vozes.
O comité, intimamente orgulhoso mas achando ridículo o patriotismo,
tinha um sorriso de satisfação irônica. Para aquelas damas
e aqueles cavalheiros, os homens de Estado só eram compreendidos com
a significação de lhes dar lucro ou o brilho oficial. No torvelinho
da saída o barão deu com o Chagas e Arcanjo.
— Magnífico, hem? – exclamou o deputado vegetarista. – O presidente
esteve chic. Deu para mais de três contos em notas novas.
— Não aumentes. Acompanhei-o e somei. Foram só dous contos
e quatrocentos – clamou o Chagas.
— E achas pouco?
— Também pelo que lhe custa…
O barão apenas sorriu. Godofredo tomava-lhe o braço.
— Partamos. Estou esgotado! Um dia inteiro a suportar esta gente.
— Com efeito, estiveram todos…
— Todas as senhoras, que fingem de caridade à custa dos outros.
— Sim, todas… Mas falta uma, meu caro, a única de verdade,
que lhes serviu de pretexto.
— Qual? – fez o literato.
— A Irmã Adelaide.
— Homem com efeito, foi a que não veio. É que não
era este o seu lugar.
E os dous homens caminharam, enquanto a turba golfava do portão, no
alarido dos cocheiros dos automóveis, das buzinas, dos retintins elétricos,
dos tramways, das corridas desencontradas, dos gritos, das exclamações…
Capítulo IX: Episódio teatral
Dois dias depois da grande festa, Jacques Pedreira encontrou, alegres e d’automóvel,
Jorge de Araújo e Godofredo de Alencar. O interessante jovem passara
agradavelmente. Ao sair de casa, fora ver a simples e ingênua Lina Monteiro.
Em seguida tivera uma terrível cena de ciúmes e reconciliação
com Alice dos Santos. Depois fizera uma alta na casa da Fanga, a ser olhado
pela Liana, e acabara no chá a trabalhar o seu flirt com Gina Malperle,
a filha do eterno cônsul do Cobrado. Trabalhar era o termo justo que
Jacques ouvira dar ás conquistas amorosas, e esse trabalho, o único
que o seduzia, dava-lhe até cansaço.
— Belo dia? – indagou o literato.
— Razoável… – sorriu Jacques com ares fatigados.
— Negócios?
— … De mulheres.
Godofredo ergueu as mãos num protesto: Jorge riu francamente. Jacques
sentia-se feliz. Certo, tão lindo jovem não tinha tenção
de ficar com qualquer das damas que o distinguiam: duas já conhecidas
e duas virgens. Apenas no momento conservava-as, balançando a vontade
entre a paixão das mulheres e o flirt das meninas – posto que talvez
fosse exagero chamar a Malperle de menina.
E assim, satisfeito, quantas mulheres viessem, quantas poderiam amá-lo
que a todas procuraria ser gentil. Ele sabia trabalhar…
— As mulheres, Jacques, são apenas um veículo… – começava
Godofredo.
— Deixa-o falar – interrompeu Jorge. – Nós vamos a elas. Queres
vir?
— Onde?
Jorge e o cronista iam assistir da caixa ao espetáculo de uma companhia
portuguesa. Como acontece todos os anos durante o inverno, tinham aparecido
a substituir o teatro nacional várias companhias lusitanas de todos
os gêneros.
A que fazia mais dinheiro era a de opereta, devido talvez às coristas
e às atrizes, quase todas novas e complacentes. A timidez do brasileiro
no capítulo mulher é avaliada pela procura e o interesse mantidos
pelas companhias de opereta portuguesa. Estão mais à vontade?
Será só por isso? Tudo é mistério, e neste caso
um feliz mistério para ambas as partes.
Seria um crime entretanto dizer a companhia freqüentada apenas por tais
atrações carnais.
A companhia tinha um velho repertório de velhas operetas francesas,
inacabáveis operetas lisboetas e antiguíssimas revistas de uma
estupidez verdadeiramente incomparável. E tinha também a estrela
masculina, o grande ator cômico Salústio Pedro que, nessa noite
representava uma das suas coroas de glória: os Sinos de Corneville.
Era na estação o seu segundo beneficio, porque Salústio
Pedro, além de sócio do empresário nos lucros, além
de um ordenado mensal de tenor do Metropolitan, recebia ainda a importância
integral de duas récitas, uma oferecida pela empresa em homenagem ao
seu talento, outra arranjada pelos amigos em honra ao seu gênio dramático.
Essas visitas ao Brasil, além de concertarem assaz as finanças
de Salústio, davam-lhe uma dupla autoridade reflexa. Assim, em Portugal,
Salústio exclamava:
— O Brasil, fez-me uma apoteose!
E no Brasil:
— Portugal encheu-me de louros!
Daí as amiudadas visitas e as aclamações e os aplausos
mesmo… Podia não ser uma estrela. Mas era bem um cometa familiar
e prático.
O teatro estava aliás repleto. Uma banda militar tocava no jardim,
que de jardim, sendo um modesto pátio sem árvores, só
tinha o nome. Alguns admiradores haviam ornamentado a platéia de galhardetes
e festões. Nos fins dos atos soltavam da galeria pombos brancos. Quando
Jacques entrou com os seus amigos, terminava o primeiro ato. A multidão
suarenta trocava opiniões críticas sobre o magnífico
ator tantas vezes aclamado. E Jacques sentia-se como na Câmara inteiramente
ignorado e desconhecido, porque esse público era de todo diverso do
público que freqüentava os teatros onde ia. Na bilheteria e no
escritório da empresa, Godofredo e Jorge tinham sido festejados. Ele,
ninguém via.
— Que gente! Ainda não encontrei uma pessoa conhecida.
— É outro meio – explicou Jorge.
— Pois claro – concluiu Godofredo. – Onde viu você uma família
elegante freqüentar um teatro onde se fala português? Quando vem
é com vergonha, como se estivesse a praticar uma ação
feia.
— Pelo menos desagradável.
— Desagradável por que, se ainda não viste nada? – inquiriu
azedo o cronista, que tinha uma predileção inexplicável
pelos portugueses. – Vamos à caixa. Anda daí, deixa a elegância
no jardim.
Foi assim levando o jovem. Saberia para onde o levava? Decerto, não.
Levemente cometemos ações que são gravíssimas.
E muito ser-nos-á perdoado de levar os outros sem saber onde, quando
ignoramos mesmo onde nos levam, as mais das vezes, os próprios passos.
Jacques nunca tinha entrado numa caixa de teatro, a não ser no Lírico,
em dia de festa de celebridade estrangeira. Mas portou-se bem. O movimento
era por exceção enorme. Entravam centenas de admiradores de
Salústio Pedro, gente do comércio, homens com brilhantes nos
dedos e nas gravatas, caixeirinhos trêfegos, comendadores respeitáveis.
Os carpinteiros passavam com os cenários, gritando. Da bambolina desciam
panos velhos, e já, sobre um chapéu alto caíra por acaso
um maço de cordas. Os habitantes de Comeville, representados por uma
dúzia de homens feios, de calção, e por umas quinze raparigas
de saiote curto, misturavam-se nos corredores estreitos à massa suarenta
dos admiradores. Godofredo e Jorge abriam passagem para o camarim de Salústio,
atopetado de idólatras. O camarim estava também ornamentado
e cheio de presentes, de dádivas, de recordações: cartões
postais com fotografias e assinaturas de colegas, menos brilhantes com certeza;
aparelhos para diversas necessidades humanas em prata, em tartaruga, em marfim,
caixas de charutos, bengalas, gravatas, anéis, piteiras, uma caixa
de vinho, dois presuntos de Lamego, um prato de bacalhau frito.
Date liliam… Salústio, comprido e magro, estava radiante. Já
começava a abraçar sem saber o nome das pessoas que dele recebiam
tal prova de intimidade. Foi quando Godoftedo bradou:
— Há lugar para mais alguns abraços?
A essa voz Salústio, para mostrar aos demais a sua familiaridade com
o grande cronista e o jovem milionário fez logo um claro na onda admirativa.
— Vocês? Entrem! Entrem!
— Quero apresentar-te também um admirador: o meu amigo Jacques
Pedreira.
— Oh! senhor doutor!… – exclamou trêmulo de gozo a glória
cênica, posto que Jacques não lhe tivesse dito uma palavra.
E obrigou os três a sentar. Fazia no pequeno quarto um calor de fornalha.
Todos suavam. Salústio tomava para aqueles amigos o seu grande ar de
Mounet, do trololó, inteiramente enfarado das admirações
públicas.
— Que querem vocês? Fatigo-me! Realmente! Afinal, boa gente no
fundo… – E voltando-se para Jacques, que sem dar por ele olhava o próprio
perfil no espelho ao fundo: – Não o temos visto por cá, senhor
doutor…
— Com efeito… – murmurou Jacques louco por se ver fora dali. E voltou-se
porque sentia que, à porta, alguém o olhava. O camarim de Salústio
era dividido ao meio. Na primeira metade Salústio recebia. Na outra
vestia-se. Acabava ele de desaparecer na outra, quando Jacques deu pelo olhar.
E de fato, olhavam-no. Era uma pequena gordinha, com dois grandes olhos negros,
uma boca polpuda posto que um tanto cínica. Nada tinha de excepcional,
e agradava. Jorge chamou-a.
— Não posso entrar no camarim – fez ela.
— Deixe ver a mão, então…
— Tome lá…
E, rindo muito, com uma curiosidade meio envergonhada:
— Quem é este senhor que cá nunca veio?
— Este é um príncipe.
— Então cá a República também tem príncipes?
Era de uma pequena estupidez deliciosa. A estupidez das mulheres é
sempre deliciosa, tanto mais quanto essa falta de percepção
não lhes prejudica em nada a ciência do amor que é sempre
de revelações. Tinha dezoito anos; talvez seis de carreira no
que vulgarmente chamam a perdição. Era meia louca, uma impulsiva,
com súbitas paixões. E ria. Os homens também riam. Com
as mulheres quase sempre os homens riem sem motivo. Jacques meio corado, respondeu:
— Eles brincam. Não sou príncipe.
— Pois é que o comia por tal.
— Hein?
— Os príncipes devem ser assim bem postos e bonitos.
Desapareceu rindo. Godofredo pôs-se a rir. Jacques julgou aquela sociedade
lamentavelmente reles. Reles e curiosa. Um tanto agradavelmente curiosa. Mas
aparecia o contra-regra a chamar o gênio teatral, e os três cavalheiros
tiveram que deixar o camarim.
Na caixa pesava um silêncio de catedral. Andavam todos em bicos de
pé; vagos seios preventivos como amarravam os menores gestos no temor
de romper a peso geral. Os coristas sentados no chão, por trás
do pano do fundo, conversavam quase ao ouvido um do outro. Os carpinteiros
tinham desaparecido. Tudo parecia em êxtase; e ouvia-se distintamente
a voz de Salústio dominando a platéia com a sua tremenda tragédia
do segundo ato da opereta. O costureiro do notável cômico e mais
o contra-regra traziam para o bastidor, um lençol e um manto negro.
Para que isso? – indagou Jacques.
— Ora! – respondeu Godofredo. – Isso é para levantar o Salústio
quando ele cair esgotado no fim do ato. Não te rias. O segundo ato
dos Sinos é a obra-prima desse gênio. Se não fingir que
não pode dar um passo, Salústio julga não ter representado
bem. Um chiqué como qualquer outro. Todas as noites é assim.
Vais ver a entrada dele amparado pelos coristas. É melhor do que todo
o ato visto de fora.
Mas Jorge metera-se no camarim da atriz que fazia Rosalinda, e Godofredo
desapareceu também. Nas caixas esses movimentos de dispersão
não deixam de ser comuns.
Jacques por exemplo, ia acompanhar Godofredo, quando viu inteiramente deitada
no poeirento tapete da antecâmara de Corneville, a rapariga que o achara
bonito. Aí, ficou perplexo. Que fazer? Falar-lhe, dizer duas frases
vagas e superiores ou passar fingindo não ver? Ele nunca tinha má
vontade para com as mulheres. Essa porém não lhe agradava. Não!
Não! Nada de coristas portuguesas… Que diriam os seus amigos! E as
senhoras então! Deu a volta em torno da cena também em bico
de pé para não perturbar o velho Tio Gaspar, que escondia o
seu oiro. A cena era fechada. Não podia assim ver o velho tio, mas
ouvia-o. Salústio rouquejava; devia estar terrível. Que aborrecimento!
E homens como Godofredo e Jorge iam a tais lugares e divertiam-se!
Resolveu sair assim, na ponta dos pés, quando esbarrou com a pequena
que ria.
— O meu príncipe não se escamou?
— Eu – disse ele meio sério – por quê?
Ao mesmo tempo habituado ao salão da casa da Fanga pensava enojado
na desbocada linguagem da portuguesa. E, certo por isso e porque não
sabia o que fazer, estendeu-lhe a mão. Ela aceitou-a com sofreguidão.
Jacques tinha as mãos grandes, macias e velutíneas e largas
e bem tratadas. As dela eram pequenas, sem perfeição e sem excesso
de limpeza. O contraste agradou. Ficou com a mão do mancebo entre as
suas. E alisava-a.
— Gosto muito de mãos grandes e finas. Não é do
comércio, pois não?
— Não – fez com um sorriso ironicamente superior o jovem indolente.
— Logo se vê…
Ergueu aquela mão, passou-a pelo pescoço. Jacques estava atônito.
Aos vinte anos, com o seu temperamento, seria difícil dizer que não
desejaria continuar. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se ridículo. Um carpinteiro
de resto passara só com o desejo de interromper a cena, e as coristas
olhavam.
— Como te chamas? – perguntou ela. E sem esperar a resposta: – Sabes
que me agradas. Agradas-me muito, muito. Eu é que não, hem?
Também com esta cara, gajas não te hão de faltar e até
do fado liró…
Ele conservava-se com um sorriso vago. Então ela puxou-o com fúria
e sugou-lhe no pescoço, de surpresa, um grande beijo de carne. Jacques
agarrou-a pelas axilas, para se desvencilhar, e os seus dedos tocaram os seios
que a pequena tinha excitantes.
— Tenha modos, rapariga.
— Tenho vontade de ti, meu bom.
— Eu é que não posso; não vim cá para isso…
Ela mirou-o subitamente digna:
— Se pensas que é comédia, estás a ler. Isto é
cá do peito e não interesse. Tu mesmo não tens cara de
dar senão pancadas. És dos meus. – E rindo: – O velho não
vem hoje; se quiseres espera-me à saída.
Mas nesse momento ouviu-se na cena um estrondo, que ecoava em gargalhadas
na platéia.
A pequena correu. Toda gente corria de resto alucinada e as perguntas e as
respostas cruzavam-se entre exclamações, sem que ninguém
conseguisse se fazer compreender.
Um vento de pavor enchia o ambiente. A catástrofe em cena, como nas
tragédias gregas, prenunciava o fim da noite inteiramente catastrofal.
Era apenas isto: a falta de cuidado de um contra-regra estragara a grande
cena de Salústio!
Como ninguém ignora, há nos Sinos de Corneville um pedaço
em que o Tio Gaspar rola para as janelas as velhas armaduras sem desconfiar
que elas estão recheadas de vivos. No meio dessa cena a que Salústio
emprestava um sopro shakspeareano, quando o grande ator cômico fazia
a platéia tremer de pavor arrastando uma das armaduras, quebrou-se
o eixo, e a armadura desabou no soalho vomitando o personagem escondido.
Um grande riso rompeu, Salústio perdera todos os seus efeitos! Ninguém
mais se entendeu. Quando foi a entrada do coro, entraram apenas três
homens e três damas cornevilleanas. O costureiro e o contra-regra disputavam-se,
com palavrões, alto. Mulheres corriam, os homens tinham perdido a cabeça:
pedidos de silêncio partiam de todos os lados aumentando o ruído.
De repente, porém, a platéia rompe em aplausos frenéticos.
— Desçam o pano! Desçam o pano! – gritavam.
O pano desceu afinal. O costureiro e o contra-regra, mais morto que vivo
correram com o lençol e o manto para apanhar Salústio, exausto
no soalho, como era costume. As palmas continuavam febris na platéia,
e da cena vinham sujeitos em todas as direções. O personagem
medroso que tão inopinadamente deixara a armadura, apareceu com o braço
luxado e a perna em sangue, sem que ninguém dele se apercebesse. Rosalina
entrou sem atenções. O senhor de Corneville passou indignado.
O barulho era pandemônico. Só de repente parou, quando apareceu,
terrível e desmaiado, o corpo de Salústio Pedro. O grande artista
vinha assim mostrando como o possuía a arte. Quando, porém,
sentiu estar fora do palco, deu um pulo de acrobata, pôs a mão
na aura magra, ganiu furioso:
— Cambada de cães! Quem foi que preparou a armadura? Cambada!
Cães! Cães! Esmurro todos! Estragar a minha cena, na noite do
meu beneficio!
Estava em pleno delírio. Passou por Jacques, sem o ver, vociferando.
Ia pela caixa, de novo invadida pelos admiradores, um temporal de impropérios.
Jacques viu Godofredo que saía.
— Mas o que houve, homem?
— O que houve? Houve que o grande Salústio perdeu a sua cena!
E desceu às gargalhadas – gargalhadas que no pátio de entrada,
porteiros, bombeiros e músicos da orquestra já tinham.
Jacques porém no jardim, sentia-se hesitante. Partiria ou esperaria?
Afinal era um rapaz, aquele beijo não lhe parecera desagradável
e não havia nada de mal em ir passar uma hora, com uma criatura inferior.
Mas ao mesmo tempo lembrava-se dos seus amigos.
E aquilo parecia-lhe quase vergonhoso. Indagou entretanto de Godofredo.
— Aquela corista?…
— A Maria?
— Essa…
— Dizem que é um temperamento. Tem um velho.
— Cara, então?
— Para o velho, decerto. De resto não conheces tu outra pessoa.
E o Florimundo, o Florimundo do Carlos Chagas…
Quando se deseja satisfazer uma secreta vontade, todas as coisas podem acabar
por ser argumentos favoráveis à satisfação…
Para Jacques, a pequena portuguesa, desde que era mantida por um velho que
assentava à mesa da Fanga e ia ás recepções de
sua mãe, já não lhe parecia tão ordinária.
Godofredo continuava.
— Contam que já esfaqueou um homem.
— Então, assim ardente?
— Ai! filho, como as portuguesas! – suspirou o original cronista.
— Se fôssemos cear com ela?
— Deus me livre. É absolutamente estúpida. Mas para que
ceia? Queres também essa?
— Eu não…
— Elas é que querem? Ai! felizardo!… Mas, por isso mesmo,
a ceia é inútil. A ceia foi feita para os que vão se
possuir sem se amar. É uma espécie de retardamento. Depois é
impossível ceares. O Jorge leva a primeira atriz, e uma primeira atriz
jamais se sentará à mesa com uma corista.
— De fato…
— Só o lembrar que há oito anos passados também
era corista dá-lhe verdadeiras nevralgias de estômago. Mas o
Salústio… Olha que foi boa, hem?
E partiu a conversar no escritório. Jacques ficou vendo o movimento,
afinal meio divertido. Que mundo aquele tão diferente! Decididamente
havia muita coisa sobre a terra de que não cuidava na sua vã
filosofia. Quando alguém tem uma preocupação, esse alguém
é fatalmente hamlético. Jacques, por mais que reagisse, estava
também hamlético. Quando o espetáculo acabou, ia saindo
com a turba, quando viu Jorge nervoso.
— Vens conosco? Eu espero a Ada. O diabo é que ela demora muito
a vestir-se mal. Estas portuguesas! Vestem mal, não se limpam, não
se perfumam, não têm chic! oh! que mulheres horríveis!
Jacques teve vontade de perguntar por que, julgando-as tão más,
Jorge vinha procurá-las. Mas como tinha a mesma opinião e estava
na iminência da mesma culpa, sorriu com ar superior. Jorge, porém,
continuava:
— E as partes, os chiqués que elas fazem! Qual, Jacques… Tirem-me
das francesas e das italianas e eu sou um homem sem ação.
— Estás contrariado?
— Eu não. E o Godofredo?
— Foi-se.
— É isso. Arranja-me destas coisas e depois raspa-se… Tu,
decerto, também não vens?
Há perguntas que indicam a resposta, que a impõem. Jacques,
por pouco inteligente, compreendeu e disse:
— Não, vou ao club.
E pensava que filtro teriam aquelas mulheres de teatro, aquelas portuguesas
sem perfume, para que Jorge, rico e cheio de mulheres caras, viesse, a contragosto
do seu esnobismo, esperar uma delas à entrada da caixa… De resto,
aquela espera era lúgubre. Passavam os carpinteiros, os alfaiates,
as costureiras, os coristas com uns ares ainda mais lamentáveis cá
fora, as coristas que tinham homens à espera, as atrizes envoltas em
mantos, retardatários e teimosos admiradores, os atores meio sujos
na sombra… Que gente! De repente, Jorge deu um pulo, do banco. Era a atriz
que chegava, pequena mulher de voz garota.
— Então, esperou muito?
— Quase nada.
— Estou que não posso. Venha dar-me um caldo.
Jorge fez as apresentações; foram andando os três, saíram.
O automóvel esperava.
A atriz subiu; Jorge também e de dentro:
— Não vens?
— Não, até amanhã.
— Bem, não te quero forçar…
Jacques sorriu, cumprimentou. O automóvel rodou. Pela primeira vez
vira Jorge, que o levava sempre para as ceias alegres, desejar estar só,
cear só com uma mulher.
Era um poder misterioso dessas portuguesas nos brasileiros? E eram brasileiros
como Godofredo e Jorge! Sentiu que teria uma infinita vontade de troçá-los,
mas infelizmente eram dois homens a quem não poderia fazer pilhérias
com impunidade e sem imediato prejuízo. Sorriu, acendeu um cigarro,
vendo o movimento dos botequins, pensou gravemente que nunca na sua vida se
achara só, à noite, saindo de um teatro de língua portuguesa,
na Rua do Senado. E desceu a rua, decidido a ir dormir, quando um passo apressado
fê-lo voltar-se. Era ela, a pequena, com um chapelinho sem gosto, uma
pelerine, e, para aumentar o horror, com os dedos cheios de anéis de
chuveiro, com várias pedras… Misericórdia! Ele, Jacques Pedreira,
seria capaz de fazer dois passos com aquela mulher em plena rua? Ela, porém,
sorria satisfeita, e a sua boca e os seus olhos eram gulosos.
— Bem se vê que entendes do riscado.
Jacques estacou seco:
— Como?
— Já não é a primeira vez que tens amantes no
teatro.
— Quem to disse?
— Vê-se logo… Esperando cá fora, ninguém desconfia
e não vão contar ao traste do meu velho.
— Mas estás enganada… – interrompeu Jacques vagamente revoltado
com tantas qualidades.
— Ora… Chama a tipóia, anda, chama que estão a olhar
para nós. Chama depressa. Tenho sede de ti, meu cravo.
A rapariga devia ser ordinaríssima. O acerto parecia querer ser-lhe
desagradável. Jacques estava meio assustado e sem vontade. Como escapar?
O carro era a salvação.
Era a única salvação momentânea. Atravessou a
rua, meteu-a numa berlinda fechada.
— Para onde?
— Para onde quiseres, menos para a pensão que contam ao velho…
— Diabo.
— Manda bater para a Beira-Mar. Depois vê-se…
Jacques obedeceu, consultando as algibeiras tão bem-feitas e tão
escassas. Que criatura!
Ia deixá-la na primeira esquina. Mas quando o carro rodou, Maria já
arrancara o chapéu e a pelerine. Estava com uma simples blusa de nanzuque.
Atirou-se aos seus lábios, sedenta, murmurando:
— Aperta-me o pescoço, com as tuas mãos… com força
meu bom.
Felizmente ainda não houve quem dissesse que todas as mulheres se
parecem. Desde Eva, com efeito, ainda não houve duas iguais. Por isso
é explicável o amor da poligamia. Desde que os homens são
sempre iguais e as mulheres sempre diversas é justiceiro que a curiosidade
do homem não se contente só com uma. Ao demais mesmo as mulheres
comuns reservam a sua surpresa de modo que de todos os símbolos dos
humanos um apenas ignorará a saciedade: Dom João. O sport do
amor é o único que não aborrece. Jacques tinha, na sua
curta vida, conhecido várias espécies de amor. Aquele caía
de chofre e causava-lhe uma impressão inédita. Seria por ser
uma mulher de teatro, que apesar de português não deixava de
ser teatro? O fato é que ele não tinha ainda tido aquilo. Ela
no carro, em simples esboços de posse, entregava-se e tomava, possuía
e passava a ser uma coisa dele; uma coisa que aliás seria mentir se
não a denominássemos de bem boa. Jacques, nascido para as mulheres
e que, ó louco, pretendia conhecê-las já com os seus poucos
anos, via-se na obrigação de confessar que as novidades são
imprevistas. A mulher ainda é de todos os animais da criação
o mais interessante, e se o filósofo disse que a mulher é um
meeting de linhas curvas, não há como essas linhas para chegarmos
ao ápice das sensações agradáveis. A pequena portuguesa
era nature, era comum. Mas ele não sentira nunca assim uma tal sinceridade.
Quando o carro chegava à Beira-Mar, Jacques sentiu que não
podia tanger aquele instrumento numa incômoda berlinda de praça,
e metendo a mão no bolso das chaves, sentiu que pegava na chave da
garçonnière do barão. Como os deuses queriam aquilo!
Que providência andava em tudo! Tirou-se então dela e disse-lhe:
— Queres vir comigo?
— Onde?
— A minha casa.
Ele empregava o possessivo para que depois ela tivesse um espanto e o admirasse
mais. Ela respondeu:
— Até ás quatro da manhã. Depois tenho de retomar
a pensão, saltando pela janela…
E dizia a verdade sem tenção de o espantar. Os homens quase
sempre mentem mais que as mulheres. Jacques ria entretanto. Nunca tivera uma
mulher que saltasse janelas e o confessasse tão simplesmente.
— Mas por quê?
— Porque se entro tarde, a dona da pensão conta ao velho…
E Jacques sentia que aquela mulher dava-se e tomava mesmo falando. O carro
parou quando de novo Maria saltava-lhe aos beijos sobre os olhos. Jacques
desceu, abriu a porta. Ela de um pulo estava do trem dentro da casa. Ao fechar
a porta Jacques teve a sensação de que cometia um ato de conseqüências
desagradáveis. Maria encostou-se um pouco:
— Ai que dor no coração!
Foi a única manifestação do sentimento de previsão
que aqueles organismos tiveram.
Ele por espalhafato ligou a eletricidade, fez luz, enquanto fora o cocheiro
praguejava por ter recebido pouco. Ela abriu uma gargalhada.
— Ai! que o petiz arma em faéton! Querem ver que é mesmo
príncipe?
E subiu, entrou no salão ressabiada, entrou no quarto de cama, quarto
cheio de amores, passou para o quarto de banho com um vinco na testa, perguntou
para que serviam vários objetos, esteve na casa de jantar, foi até
a cozinha. Jacques olhou-a aí e sentia-a no justo meio quando a pequena
fez alto a seguinte reflexão:
— Tu és muito gajo.
— É boa. Por quê?
— Por quê? Queres saber? Porque nada disso é teu.
— Hein? – fez Jacques que decididamente não conhecia a percepção,
a intuição divinatória do sexo feminino. – Mas por quê?
— És muito dos meus para teres estas coisas. Isso deve ser de
algum teu amigo a que exploras. E com milho. Ah! meu cravo, que finório
saíste! És bem dos nonos…
— É a terceira vez que dizes que eu sou dos teus! – constatou
Jacques com uma ponta de zanga. – Não repita.
Estava vexado que a mulher o tratasse como um igual. Ela porém ria.
— Olha o tolo! Se tivesses coisas destas não gostaria de ti.
És do fado liró mas sem cheta. Adivinhei ou não?
Como ele sentisse um palavrão na boca – ele que justiça seja
feita, não tinha esses hábitos – ela puxou-o com fúria,
sorveu-lhe a boca, rolou com ele por cima da mesa no tapete da casa de jantar,
que a eletricidade iluminava intensamente. E o interessante jovem sentia que
era outra coisa, que era mais alguma coisa, que eram várias coisas
mais…
Capítulo X: Sports
Se não estivéssemos numa época de exageros poder-se-ia
qualificar de vertiginosa a vida de Jacques Pedreira após a memorável
festa dada em beneficio do Dispensário da Irma Adelaide e que tão
grande prejuízo começava a causar à digna diretora. Porque
de fato era uma vida vertiginosa. Não que o interessante jovem assim
a desejasse, mas porque assim o resolvera o acaso. Havia o negócio
das fibras. O projeto continuava no Senado sem entrar na ordem do dia. Godofredo
de Alencar culpava o Grande Chefe.
— Precisas fazer com que Arcanjo peça ao general.
— Não será muito.
— Olha que temos trinta contos.
— Bom, bom – fazia Jacques nervoso à idéia daquele dinheiro
e com sérias dúvidas, dúvidas que se acentuavam sem base
sobre a maneira de repartir do Godofredo.
De resto, o negócio em elaboração não poderia
ser senão um pequeno exercício sem método na sua vida
a toda brida. A fatalidade naquele momento sobrecarregava-o de dois sports:
o automóvel e a mulher. Tudo na vida é sport. O maior sportsman
de todos os tempos foi positivamente Deus, Nosso Senhor. Esse cavalheiro,
predestinado de fato, venceu todas as performances e todos os handicaps e,
segundo observações inteligentes foi o inventor do puzzle na
organização do caos. Não é de admirar que a humanidade,
à proporção que mais intimamente conhece Deus, mais esportiva
se revele. A corrente contemporânea é particularmente esportiva.
Os jornais falam de matches de velocidades. Os termos ingleses surgem a cada
corrida ou a cada pontapé; as pessoas andam na rua como quem vem ou
quem vai para um desafio ou pelo menos para uma aposta. Jacques, além
da corrente pertencia a um grupo que tinha por chefe Jorge de Araújo.
Comprou um reloginho para prender ao pulso e foi das velocidades.
Jorge, de resto, protegido das boas fadas, tendo feito uma fortuna enorme
em pouco tempo, fino, esperto, com tudo quanto desejava, percorria o período
fatal da exacerbação. Tornara-se incontentável, de uma
neurastenia a frio. Godofredo assegurava que os automóveis haviam transmitido
a sua inquieta alma ao proprietário. O Barão Belfort sorria.
O fato é que Jorge sentia a fortuna pequena para os desmandos da existência
inteira, e querendo aumentá-la ainda mais rapidamente do que a ganhara,
forcejava por tornar atordoadoras as horas de repouso.
Assim aumentava a coleção de automóveis de corrida.
Tinha seis. Emprestava aos amigos até. Por essa ocasião o filho
do antigo merceeiro Teotônio, o jovem milionário Teotônio
Filho, em companhia do pobre Dória, que afinal conseguia ser agente
de uma fábrica de França, surgia guiando um automóvel.
E no meio, enquanto se acentuava a rivalidade esportiva entre o Jorge e o
Teotônio Filho, diariamente, dizendo-se agentes de fábricas automobílicas,
aparecia ou um jovem francês perigoso, ou um italiano assustador ou
um português palrador.
É incontestável que o automóvel dá muito dinheiro
a ganhar. Principalmente a quem neles trabalha pouco, ou não trabalha
mesmo nada. O automóvel faz ganhar em maior parte aos intermediários
das vendas. Esses jovens vinham para as encomendas do governo, repartiam largamente
as comissões e a atmosfera foi em certo momento tal que todos acordaram
ser uma vergonha não haver ainda um automóvel-club. Se todos
auto-mobilizavam, se todos eram loucos pelo sport, por que não haver
um club? E de um momento para outro, o club surgiu mesmo na praia, em frente
à Beira-Mar, ocupando um velho prédio familiar. Jacques freqüentava-o,
sem aliás lhe encontrar encantos. O club, montado à pressa,
tinha como mobiliário mesas repletas de revistas esportivas que ninguém
lia, pelas paredes algumas caricaturas inglesas e francesas tratando de cavalos,
de pólo, d’automóveis, de cricket e de lawn tennis e umas vagas
poltronas, de um modernismo que nem ao Mapple pedia auxílio. À
porta era toda noite um carbuncular de faróis de autos e a algazarra
da penúltima profissão inventada pela civilização:
os chauffeurs que os sportsmen tratavam como antes dos chauffeurs só
era possível tratar o seu cavalo ou a sua cocotte. A diretoria, enquanto
não se dissolvia o club, falava seriamente nas possibilidades de um
circuito.
— Mas por quê?
— Porque é chic.
— E por onde, se não temos estradas?
— É verdade, menino, nem estradas temos…
— A febre tudo transformará! – exclamava Godofredo com ares
proféticos, depois de ter apresentado alguns agentes nas secretarias
de Estado.
— O que dá forte acaba logo. Antes do circuito o club fecha,
e então só resta apelar para a navegação aérea.
Só há um sport que ainda não nos cansou: o falar mal
da vida alheia…
Entretanto Jacques tomava muito a sério o automobilismo, conhecendo
os termos técnicos, exercitando-se a guiar como motorista de Jorge,
aquele motorista que ria muito, era boêmio, raptava meninas e nunca
chegava à hora. Foi a época das loucuras. Acordava tarde, vestia-se
com cuidado, ia um pouco a Lina Monteiro, apreciava a hora de Alice dos Santos,
enredava um flirt no chá e entrava a noite de automóvel, com
o seu bando, a quem respeitava e a quem nunca dava opinião.
— Vamos jantar no Leme?
— Dando a volta pela Tijuca?
Iam. Quando o barão era do grupo tomava-se champagne desde o começo,
um brut Imperiale famoso.
E após o jantar, como era enervante aparecerem no teatro sempre, como
as mulheres davam gritos nos carros, divertiam-se sós a dar corridas
loucas pela Beira-Mar quase deserta. E era um riso perdido, na ebriedade da
rapidez. Os inspetores de veículos pulavam aterrorizados como gafanhotos
na nuvem de poeira, raros transeuntes olhavam as máquinas com a cara
de quem não compreende. Por fim, o 720-A-E foi assinalado à
Inspetoria. Todo dia chegava a intimação para a carteira do
motorista. E do grupo era Godofredo com a sua literatura, o encarregado de
falar com o senhor inspetor, incapaz de lhe negar qualquer coisa, por causa
dessa maldita imprensa que baba pela lei e salta por cima dela sempre. Por
esse tempo surgiu enviado de uma fábrica italiana il re dei chauffeurs,
o cavalheiro Stanisláo Sfrapini, que conduzia de modo sensacional.
A primeira vez que Sfrapini Stanisláo, magro, com a barba em ponta,
conduziu o automóvel de corrida com a carrosserie de ville como eles
diziam no mais puro português, foi positivamente um assombro. O homem
parava quando queria, raspava carruagem propositalmente e por fim, às
três da madrugada, sem gasolina fez um percurso de três quilômetros
em consecutivos estouros que pareciam uns bombardeios. Godofredo, nessa madrugada
quis ser aquele cantor que na Grécia cantava os vencedores das corridas
de carro, desde que o progresso não sabe coroar o assombro com a flor
da poesia. E Jacques, que pouco se importava com o poeta grego, deu um grande
abraço no homem incomparável. Durante uma semana só falou
em Sfrapini.
Mas esse entusiasmo automobílico em nada diminuía o fervor
pelo amor. O curioso é que o amor, o apetite da pequena portuguesa
exerciam nesse lindo rapaz uma influência prodigiosa. Ele fora conduzir
a Maria à pensão que ficava numa esquina da Rua dos Inválidos.
Vira-a saltar a janela e rir-lhe já de dentro.
Aquela mulher era tão imprevista que Jacques pensava estar a enganar
o Florimundo e não a podia largar. Certo, não a procurava. Nem
duas vezes foi à caixa. Mas a Maria ensinava-lhe tais coisas ordinárias
e enchia-lhe as sextas-feiras com tais sortidas boêmias, que não
faltava nunca. Recebeu-a mesmo, além dessa noite semanal em que o Florimundo
descansava, uma vez de dia na garçonnière. E foi o dia precisamente
em que ela lhe levou de presente uma gravata de seda cor-de-rosa; e foi o
dia precisamente, em que tendo ele rido e aos insultos da ofendida Maria por
aquele riso Jacques lhe atirou uma tremenda bofetada; e foi o dia precisamente,
em que quase estrangulada, rojando no tapete e beijando-lhe os pés,
Maria soluçou com a própria alma.
— Meu homem, meu homem…
Era brutal, indispensável e esplêndido. Essa paixão ou
que melhor nome tenha não se fazia para Jacques absorvente. Jovens
da sua natureza são apenas mais realçados pelas paixões.
A Maria dera-lhe como a revelação de ser ele o bruto, o macho.
Isso nunca é inconveniente, numa carreira brilhante como a de Jacques.
Assim o jovem continuava sempre novo para todas porque aplicava em Alice o
que aprendera em Maria, o que lhe tinha mostrado gostar Alice ou o que lhe
revelara Liana, para que a portuguesa o chamasse meia louca de porcalhão.
E, agindo assim, oferecia um verdadeiro curso às meninas, que não
haviam passado do flirt.
Os homens simples ficam admirados e cheios de inveja diante do ser de exceção
denominado conquistador. Na maioria das vezes é ele o conquistado,
porque a sua arma é dispor de todos os meios, é conversar, é
ouvir bem as mulheres e contar-lhes em seguida o que fez com as outras. Quando
se conversa ao nível de uma mulher, seja ela honestíssima, tudo
é possível e esperar é lucrar. De resto, até com
os homens o fato repete-se. Apenas com os homens de que se precisa é
muito mais difícil porque eles são infinitamente mais idiotas.
Jacques multiplicava o prazer que a sua beleza exercia. A Gina Malperle, filha
do cônsul do Cobrado, com o seu ar de girl new-yorkense, declarara um
sentimento profundo.
Gina, ninguém se lembrava de perguntar se era de fato casada, solteira,
ou viúva. De tanto a verem e de tanto a ouvirem sempre inteligente
e moderna os piores maldicentes esqueciam positivamente o seu estado civil.
Era de resto o único caso da história de tão fina sociedade,
de modo que, sem pensar, acompanhando o tratamento que lhe davam as sessões
mundanas dos jornais e o seu respeitável progenitor, todos a chamaram
Mlle. Gina. Quereria ela casar? Já teria passado a idade do casamento?
O fato é que flertava com alguns rapazes e aborrecera quase todos,
considerando-os fúteis.
— Vocês esquecem que eu tenho uma educação americana
e que os rapazes da nossa roda lembram muito mais os de Paris! – dizia a rir.
Mas Jacques dominara-a pela segurança, pela tranqüila e fácil
certeza com que tomava conta das mulheres, sem lhes ter o menor respeito.
No mesmo dia em que a segurara e com ela dançara empolgando-a, enebriando-a,
Gina vira o que ele fizera com a pobre Lina Monteiro, e sabia os direitos
de Alice dos Santos sobre o maravilhoso adolescente.
A psicologia do homem que às mulheres agrada ficará sempre
por fazer. Eles próprios ignoram a causa da preferência. Mas
o coração das mulheres, apesar do excesso de observações
e dos romances, ainda é maior enigma. Por mais que Gina refletisse
e julgasse Jacques um caso de que devia afastar-se, não lhe era possível
ao cabo de prolongadas reflexões, senão desejá-lo mais.
Amor? Não.
Um fim oculto? Também não. Jacques, para aquela rapariga prática
não podia ser um bom partido. Desejo de entregar-se? Gina Malperle,
graças a sua educação americana, não pensava em
fazer semelhante tolice. Em todo o seu organismo havia apenas a vontade de
ter um pouco do belo adolescente, de subtraí-lo às outras, de
fazê-lo sentir a sua influência. Dois dias depois da grande festa,
encontraram-se num teatro. Ele vinha de conversar com a Viuvinha Pereira,
fazendo-a rir muito, e estivera no camarote da Condessa Rosalina Gomes, que
mordia um chocolate como quem morde um lábio. A peça era essencialmente
contemporânea: falava-se de coisas afrodisíacas do começo
ao fim. No camarote em frente havia Mice dos Santos com a ilustre Sr.ª
de Melo e Sousa. A conversação tomou aquele ar de intimidade
um pouco maternal que as mulheres não podiam deixar de ter com o lindo
mancebo. E o lindo mancebo tinha o costume de contar as suas boas fortunas
com um tom ingênuo de criança que narra os seus brincos. Era
naturalmente excitante.
— Então, em trabalho? – fez Gina.
— Que trabalho? Não me fale de trabalho porque é cousa
aborrecida.
— Mas não é trabalho esse exercício em torno das
damas? Ainda há pouco a Pereira ria.
— É porque eu lhe contava como tinha brigado com aquela italiana
que ali está na frisa.
— Aquela de cabelo loiro?
— São pintados. Foi há tempos a briga. Atirei-lhe com
um prato de sopa.
Gina ria achando aquela confissão de um mau gosto enorme, mas por
isso mesmo presa. E como devia ser americana, e como queria reter aquela flor
de mocidade, excitava-o.
— Entretanto, há outros camarotes…
— Ah! isso – fez o pequeno – esses camarotes são para o meu
flat.
— Seriously? Have you a flat?
— Yes.
Ele chamava de flat, à inglesa, a garconnière do barão.
Ela não acreditava. Ele descreveu-a, mais ou menos, olhando a sala.
No dia seguinte encontrou-a no baile de Mme. Gouveia, que iluminara os jardins
com balões venezianos. Dançaram juntos. Desceram ao jardim,
e ele num recanto de árvores, tomou-lhe na boca de súbito um
beijo grosso carnudo, tão bom e cheiroso que Gina Malperle não
pôde zangar e despegou-se como um pássaro tonto, como se tivesse
caído de um paraíso, ainda mastigando o sabor perfumado.
Ao mesmo tempo, como Lina Monteiro morava numa pequena rua próxima
da praia, Jacques, ao partir para a cidade, não deixava de dar uma
vista d’olhos por lá. E o que o interessava em Una, a menina pobre
e desclassificada é que ela era pura, ingênua e imaginava amar
para casar. Não era a primeira vez que era enganada, mas também
nunca amara assina. Quando via Jacques ela tremia como uma flor ao vento e
tudo quanto ele pedisse, ela daria. Não se pode dizer que um homem
mente quando ele não calcula e não goza o prazer de mentir.
Jacques não mentia a Lina, mas prometia-lhe casamento, convencido de
que não casaria depois. Era sempre sincero porque não tinha
inteligência para mais.
— O diabo é que agora não posso.
— Peço todo dia a Nossa Senhora por ti. Eu esperaria até
o fim da vida! – exclamava essa pobre menina ingênua.
E Jacques ia dali, sinceramente, a casa da Fanga ver a Liana, que cada vez
tinha mais influência sobre Arcanjo, ou encontrava um pouco Alice dos
Santos. Essas duas criaturas tão diferentes uma da outra, não
lhe causavam grandes desejos. Mas Liana era humilde como um cão, chorando
sempre e dela muita vez emprestava dinheiro, o que significava que recebia
de Arcanjo. E Alice era a boa, a sã, a sempre espontânea Alice,
que o queria mesmo, e agora mais, sabendo-o desejado por todas. No quarto
de Liana o interessante jovem as mais das vezes dormia, lendo um jornal. Na
garconnière do barão, em geral esboçava cenas com Alice
que terminavam com tremendas luxúrias, porque ele fazia-a conhecedora
do repertório de Maria. Alice tinha surpresas contínuas. Uma
vez, em que Jacques lhe apertava o pescoço com vontade de estrangulá-la,
ela cerrara os olhos com um tal gozo que ele estacara. E ela murmurou:
— Mais, mais, é bom…
Com grande espanto seu, ele viu que esse seu gesto o excitara também
de súbito, e como duas crianças que se descobrem prazeres proibidos
passaram uma semana, nesse exercício delicioso. Maria acabou assim
sempre presente ás luxúrias do interessante jovem. Era o seu
anjo-da-guarda…
Quando acordava, Jacques não deixava de ficar inquieto tanto tinha
o que fazer – mesmo porque esses trabalhos tendiam a aumentar. As damas, outras
damas, apertavam-lhe a mão com uma significação que só
as mulheres, seres por excelência receptivos, sabem dar aos apertos
de mão. E havia corridas, havia vários rendez-vous automobílicos
depois de ter escorraçado os pretendentes.
Entretanto Jacques imaginava uma solução para essa crise e
D. Malvina, recolhida ao quarto, temendo pelo filho a vida de automóveis
e mulheres, imaginava conversar seriamente com Argemira. E foi, precisamente
essa cena, o prenúncio de vários desastres. Tudo na vida é
sport. Na vertigem da corrida nem sempre servem as performances…
Capítulo XI: Desastres
Mas, afinal, o caso das fibras ia resolver-se. Evidentemente, Jacques tivera
uma decisiva influência na sua realização e notava que
Godofredo, só o fazia de agente, apenas de agente. Ao concorrente o
cronista aparecia como o autor de todo movimento. Jacques acicatado pelo ar
de zanga do poé e com uma talvez vaga desconfiança no homem
de letras, quis entrar diretamente em relações com as partes.
Godofredo era fraco. A demora irritava sobremaneira o representante do sindicato,
um velho e sórdido português judeu João Gomide, que emprestava
os dinheiros para essa tentativa aos cofres públicos. Assim, quando
se viu sem solução entre Jacques e o Sr. Gomide, o cronista
para acalmar as dúvidas de ambos apresentou-os.
O Sr. Gomide, com um sorrisinho voraz e pacifico estabeleceu um papel no
negócio: era apenas um agente que tinha de dar contas das despesas
a maiores. Das fibras levava apenas uma comissão. Era preciso que o
negócio desfibrasse assaz o Tesouro, para que assim Gomide desse comissões.
O agente, de resto, tinha um escritório ambíguo, em que se emprestava
a juro alto, e era homem de papéis, de recibos, de pequenas assinaturas.
"Tudo em ordem" diria procurando explicar. O fato é que entrava
em tudo preso a esses salva-vidas e que mesmo se a onda fosse forte pelo menos
os salva-vidas iriam com ele.
Na operação de Godofredo as coisas tinham ficado combinadas.
Os dois cavalheiros receberiam na aprovação do Congresso a metade
da comissão. A outra seria entregue, após a assinatura do presidente.
Jacques com a simpatia que os rapazes de sua situação não
deixam de ter pelos prestamistas, fingiu para o velho Gomide várias
gentilezas. Ao deixar o pequeno escritório equívoco da Rua dos
Barbonos, estava certo que desta vez veria dinheiro, não pela sua influência
mas pela sorte de Gomide, metido no negócio. E desde esse momento –
coisa curiosa! – Godofredo começou a aparecer no seu cérebro
numa posição secundária. Dentro em pouco estava no último
plano. Dois dias depois na cabeça de Jacques, Godofredo apenas abria
a porta da casa do Gomide; e, apesar da importância que a gratidão
manda dar aos cavalheiros que nos abrem as portas, nem por isso os cavalheiros
deixam de continuar, com prazer nosso talvez, lá, à porta, distantes…
Entretanto a nervosidade de Godofredo aumentava. Era dizer que o caso estava
por dias. E estava. Uma segunda-feira o projeto entrava na ordem do dia. Não
houve número. Nem na terça. Nem na quarta. Era felizmente a
terceira discussão sem que os senadores o tivessem visto. Godofredo
teve um trabalhão para obrigar Jacques dividido entre os automóveis
e as saias, a ir ter com Alice:
— A Alice fazendo o Senado trabalhar! Não exageres!
— Eu é que nada posso fazer. Uma nota jornalística perderia
tudo. O número depende da vontade do Grande Chefe.
Jacques conversou com Alice, contou-lhe a cena do Senado, assegurando que
olhando para os senadores só achava alguém capaz de os mover.
Ela riu, vaidosa. Na quinta, os senadores estavam todos na sala do café
conversando, quando o presidente verificou que infelizmente ainda não
havia número. Sábado a concorrência ao recinto foi grande,
mas para ouvir uma arenga, explicação pessoal do famoso chefe,
que além de dizer tolices, silabava de modo a fazer rir mesmo os contínuos.
O jovem encantador, teimando no flirt de Lina Monteiro, e relações
cortadas com o pai, via-se apenas com os recursos da sua mãe e com
a humilhação de falar a Liana do dinheiro. Por isso estava absolutamente
no ponto para compreender o valor de dinheiro, e bater-se pelo dinheiro.
Graças aos deuses, segunda-feira, quando ninguém contava, o
grande político reapareceu no recinto do Senado, logo acompanhado pelos
senadores que o obedeciam por gestos. O projeto das fibras passou despercebido.
Na mesma tarde, Jacques viu Godofredo, que o agarrou.
— Ça y est!
— Passou?
— Enfim!
— Agora é você tratar da sua parte.
— Ah! Jacques, custa muito ganhar dinheiro.
— A quem o dizes…
Jacques não tinha a menor surpresa. Desde o encontro com o Gomide,
julgava aquele dinheiro seu. Godofredo porém enchia-o de pasmo.
— O Gomide falou-me num recibo a fazer. É preciso um recibo.
Coisa sem importância, espécie de garantia dele junto ao sindicato…
De resto documento absolutamente privado… Passas amanhã por lá,
só dás recibo pelo dinheiro, e depois repartimos…
— Sim, está bem.
— Não durmas.
O jornalista, muito prudente para se comprometer com documentos, só
achara aquele meio para retirar das garras de Gomide a metade da comissão.
Aquela confiança, porém, ou era uma prova de que os seus negócios
iam muito bem ou era a grande demonstração de simpatia por Jacques.
O jovem imaginava entretanto o cronista cheio de dinheiro. No dia seguinte,
pois, acordou como sempre, almoçou depois da hora para não se
encontrar com o pai, e veio para a cidade, com a pasta de marroquim vermelho
debaixo do braço. Saltou na Rua Evaristo da Veiga; bateu no escritório
de Gomide. O velho estava, mas custou a abrir, recebendo-o com frieza.
— Então, caro Gomide, que lhe dizia eu? Afinal vencemos!
— Ainda não de todo, senhor doutor.
— A minha parte pelo menos, creio… Uf! custou!
— Tudo custa, senhor doutor!
— Não há dúvida, Gomide.
Houve um silêncio. Já havia antes deles falarem, durante o pequeno
diálogo talvez. Por isso quando cessou de ouvir o barulho da própria
voz, Jacques sentiu esse silêncio maior, imenso, cheio de várias
coisas desagradáveis que nunca são ditas. Ele sentia que tinha
de arrancar do velho o que era seu, e estava subitamente resolvido a tudo.
— Godofredo já esteve ca?
— Ontem, logo depois da votação…
— Ah!
Olhou Gomide. O velho não se mexia. Jacques, um pouco nervoso, teve
de explicar o que Gomide estava farto de saber.
— Godofredo falou-me que viesse cá receber a primeira quota.
O velho abriu a boca, fechou-a, tossiu, assoou-se.
— O doutor não acharia melhor tudo no fim?
Jacques teve um momento de cólera, logo abafado.
— Creio que não, Gomide. O Godofredo anda embaraçado…
— Palavrinha?
— Palavra. Por mim, não. Isso para mim seria indiferente. Mas
Godofredo ficaria contrariadíssimo. Eu sei.
O velho continuava calado. Jacques então com galhardia e um ar despreocupado,
que lhe ficava bem, teve uma exclamação triste. Diabo! Se o
Godofredo não recebesse aquele dinheiro a sua influência era
tão grande que decerto fazia o presidente votar a autorização.
E lá se perderiam dinheiros de adiantamentos, trabalhos. Enfim…
— É certo o voto. E o negócio…
— Oh! senhor doutor, é sério…
— Para vocês! Ande, Gomide, deixe cá ver a soma. Não
saio daqui, sem a sua última palavra.
O Sr. Gomide tomou um ar pensativo. Depois sentou-se à secretária
e escreveu algum tempo. Quando acabou, a sua fisionomia retomara o aspecto
comum. Acabara de escrever um documento macabro. Se falhasse a conversão,
aquele dinheiro pelo menos voltaria, ou muita gente estaria a aparecer num
panamá assustador e reles. Jacques passava o recibo de quinze contos
por ele e por Godofredo, comprometendo-se a pagar, a restituí-los com
a aprovação do projeto pelo Executivo.
Então qualquer não assinaria. Assim fizera Godofredo, Jacques
assinou sem hesitar – porque tinha de tirar dinheiro do velho Gomide. O prestamista
chegou a sorrir. Aquela folha de papel valeria dinheiro em qualquer tempo!
Quando o rapaz assinou, foi quase humilde, que abriu a burra e contou três
maços de dez notas de quinhentos cada um. Jacques recebeu com calma.
Como era pouco! Como o dinheiro é poeira! Como quinze contos visíveis,
mesmo antes de gastos mostravam-se tristes da sua insignificância! O
adolescente meteu-os na bolsa de marroquim vermelho, cumprimentou o velho
usurário e saiu. Sentia-se apenas mais ligeiro. E com o desejo de conservação
própria que não se conhecia. Querendo atravessar a tua, esperou
tempo a deixar passar um automóvel, que vinha longe. Depois verificava
o erro de andar com tanto dinheiro. Foi até o escritório. André,
de cima, logo que o avistou, começou de fazer gritos de negação.
— Não! Não! – soluçava o contínuo cor de
castanha.
— Que há André?
— Não vale a pena subir. O senhor seu pai está em conferência.
Noutra ocasião subiria. Naquele momento satisfez a má vontade
de André, mesmo porque não sabia por que lá tinha ido.
Foi aliás aí que lembrou ter de dar a Godofredo sete contos
e quinhentos. Era desagradabilíssimo. Que ato de generosidade quase
criminosa para o seu egoísmo, ainda acrescido por um mês de falta
de dinheiro! Mas o diabo é que havia ainda outra metade. De fato, Godofredo
arranjara o negócio. Aquela parte do trabalho era sua. A outra seria
do literato. E Godofredo devia nadar em oiro, devia ganhar muito. Sim! Evidentemente.
Depois não deixava de ser grato ao Alencar, mas aquilo fora só
boa vontade d’Alencar para pô-lo dans le train. Havia de conversar com
ele. E agradecer-lhe muito. Os romancistas de vez em quando põem os
seus personagens a dizer várias coisas e mesmo a pensar. Em seguida
chamam a isso psicologia. Um romancista não deixaria de colocar o jovem
Jacques, depois de receber os dinheiros do Gomide apenas com a observação
do Godofredo. Entrego ou não entrego? A célebre dúvida
hamlética? E entretanto Jacques tivera três meses antes talvez
dúvida, quando hesitava com a Maria. Mas naquele caso era um absoluto
desprendimento. O interessante adolescente pensava aos pedacinhos no caso
Godofredo, um caso que lhe parecia passado. Quando resolveu agradecer ao homem
de letras, estava na Rua Primeiro de Março diante de um banco. Lembrou-se
que lá fora uma vez com Jorge d’Araújo depositar dinheiro. Quem
diria que ele também depositaria somas? Entrou pensando apenas na fisionomia
dos empregados. Os empregados não o reconheceram nem se admiraram da
sua soma – evidentemente ridícula. Jacques depositou quatorze contos
e guardou um conto que era bem seu. Oh! Era impossível andar com tanto
dinheiro pelas ruas. Diria ao Godofredo quando o encontrasse. Desceu então
a Rua do Ouvidor. Na Avenida Teotônio Filho convidou-o para uma corrida
à Tijuca num automóvel novo de marca nova. Foi. Jantaram lá
no White com a espanhola Concha, a frágil Liana e Arcanjo dos Santos
encontrados por acaso. A noite era da portuguesa Maria. Não faltou,
tanto mais quanto era uma noite excepcional. No dia seguinte foi vez de Lina
Monteiro. Depois do almoço convidou Lina e a Sr.ª Monteiro para
um pequeno jantar no Leuse. A velha achava pouco próprio, mas tanta
era a sua vontade de ver casada a filha que consentiu.
Jacques veio à cidade, telefonou ao restaurant, estava no chá.
Desejava encontrar Godofredo, e ao mesmo tempo não desejava. Isto é:
cada vez desejava mais a menos. A tarde tomou um automóvel e foi buscar
a pobre menina que o acreditava desde a festa de caridade. O idílio
seguia. A Sra. Monteiro estava crente na seriedade do caso. Lina estava certíssima.
E ele também estava certo de que tinha uma forte gratidão pela
menina. Se lhe dissessem que enganava alguém, logo após a sopa,
Jacques ficaria contrariado. O jantar foi pois delicioso. Até a Sra.
Monteiro parecia alegre.
Apenas para o fim, entraram o banqueiro Buonavita e Godofredo de Alencar.
O literato, que tinha ido cumprimentar as senhoras exclamou:
— Há dois dias que te procuro.
— Oh! Tu… Estive com o homem.
Ia dizer inteiramente a verdade. O seu olhar era leal e puro. A sua fronte
lisa. Mas Godofredo fez um gesto e esse gesto quebrou a lealdade de tal forma,
que com o mesmo olhar sereno e a mesma fronte – tão idênticas
que o cronista psicólogo não teve sombra de suspeita! – Jacques
continuou:
— Mas não imaginas o que tem custado. Quer tudo no fim. Já
lhe fiz três recibos, que não serviram. É um caso. Enfim
prometeu para segunda sem falta. Vamos lá juntos.
— Não, vai lá. Olha que é sério.
— Seríssimo.
E continuou a jantar com a apetecível Lina. Ora o Godofredo! A insistir
em qualquer coisa que não era seu! Ele que não fizera nada!
Enquanto conversava, olhava o Godofredo e via que o cronista prestava demasiada
atenção a sua mesa. Desconfiaria? Deu-lhe uma grande vontade
de oferecer-lhe champagne e charutos caros. Apenas Godofredo começara
a jantar.. Então ergueu-se e foi pagar a conta à copa, para
que não lhe vissem bilhete grande, e levou a família Monteiro
ao teatro português – por exotismo. Domingo esteve no prado do Jockey
Club com Jorge. Segunda veio cedo para a cidade, desejoso de fazer umas encomendas,
quando em plena Avenida se sentiu preso pela mão do cronista.
— Vens de lá! – fazia Godofredo mais pálido.
— Hem! – fez Jacques apanhado de surpresa. – Ah! sim…
Era a cena que no fundo, bem no fundo do seu ser, esperava e temia e desejava
ao mesmo tempo desde que vira o Gomide no escritório e o Godofredo
cada vez mais secundário. Ficou pálido e frio com medo ao escândalo,
ao nome nos jornais, ao ridículo do motivo. Era um esforço para
não mostrar que tremia. Aquele medo não podia ser só
seu: era uma espécie de medo hereditário; e com ele tremiam
o pai, o avô, outros Pedreiras talvez. Mas a cena foi rápida
e crispante porque Godofredo estava também, pálido, frio, e
tremia.
— Não mintas, menino. Já recebeste.
— Quem to disse?
— O Gomide em pessoa.
— Pois sim, recebi.
— Então, venha a minha parte.
— Ah, sim…
— Gastaste, hein?
— Sim, isto é… aquilo era um pouco meu. Eu precisava muito;
estava cheio de contas. Se precisas porém de algum – porque ainda não
recebemos a outra parte…
— Preciso sim. Quanto tens?
— Espera, não te exasperes… talvez um conto…
O cronista tinha um esgar de fúria querendo sorrir com calma. Dinheiro
é sangue. E batendo com a bengala no asfalto.
— Olha que enganar-me é meio difícil. Só com muito
topete, ou sendo um inconsciente como tu. Sabes talvez que nome tem o que
acabas de fazer? Há uma palavra exata, uma palavra bonita…
— Godofredo…
— Você fez apenas uma ladroeira, ouviu? uma ladroeira! Está
aqui como podia estar na cadeia. Mas não está tudo perdido.
Vou trabalhar. E cuidado porque nem sempre os prejudicados são amigos
como eu!
E seguiu. Por que Jacques não esbordoou Godorredo? Porque cheio de
culpa temia o escândalo. E por que Godofredo não se atirou ao
gasganete de Jacques? Porque temia prejudicar o edifício da sua vida
com um escândalo. Enganado, ludibriado pelo pequeno que desejara explorar,
ao menor grito seria um homem por terra. A civilização e o interesse
obrigava-os a recalcar o ódio. Godofredo seguiu quase fora de si. Jacques
ficou furioso com um certo gozo no íntimo e continuou a andar. Só
havia a ferir-lhe a mente a possibilidade de que toda gente podia saber da
sua liberdade para com o Godofredo. Que fazer? Jacques não sabia mais
o que fazer. Era sempre assim. Felizmente ergueu os olhos e viu Mmes. Alice
dos Santos e Argemira de Melo e Sousa que de dentro de uma vitória
com interesse o chamavam.
As corridas de automóveis em que Jacques andava metido, tinham impressionado
aquelas damas. Alice e Mme. de Melo e Sousa desejavam uma noite sentir também
a sensação de rapidez numa das grandes máquinas de Jorge
d’ Araújo. Jacques sorria. Argemira explicava.
— Sua mãe levou a semana inteira a falar mal de você.
E tanto se referiu aos automóveis, que antes dos conselhos quero fazer
a experiência. Mas todas as meninas estão loucas. Alice, vou
ver, e se decidirmos é certo que levaremos Ada Pereira…
Jacques sorriu. Os acontecimentos de minutos antes desapareceram de súbito
da sua pouco carregada memória. Satisfeito e alegre, não duvidava
que seria chegada a vez à viuvinha. E, sem hesitar prometeu para o
dia seguinte.
— Nós vamos ao Lírico.
— Dito. Com o Arcanjo?
— Não. Sós.
— Então amanhã.
— Não falte.
— Oh! Por quem me toma, D. Argemira?
Assim, no dia seguinte, lépido e gentil, logo pela manhã telefonou
a Jorge de Araújo ameaçando-o com uma noite divina. A comunicação
interrompeu antes de terminar. Foi a outro telefone que não ligou.
Enervado, tomou um tílburi cuja lentidão quase o faz matar o
cocheiro. Naquele cérebro feliz o incidente Godofredo desaparecera,
deixando apenas, o interesse pelas corridas com senhoras. Que noite! Acabou
por deixar o tílburi, tomando um tramway que o levou até ao
escritório do jovem industrial. Não o encontrou. Deixou-lhe
um bilhete delirante com três erros de ortografia. E durante o dia telefonou
várias vezes, até que à tarde, Jorge apareceu com o seu
nervosismo e a sua complacência.
— Sabes que é um aborrecimento enfiar a casaca para ouvir mais
uma vez a Aída.
— Chegamos no terceiro ato para não chamar a atenção.
— E não há receios?
— Nenhum!
O milionário concordou. Jantaram em casa de Jorge que parecia preocupado,
mordendo o bigodinho à americana, os olhos sem dizer nada, um ar de
quem aspira o imprevisto. Depois, como nada tinham a se dizer, avançaram
a hora da entrada e chegaram no fim do segundo ato. Era o momento dos cumprimentos.
A mesma gente, inexoravelmente aquele todo Rio que já tinham visto
tanta vez, lá estava. Nem um desconhecido. A história de cada
um podia ser contada pelos outros, e esse cada um podia fazer um volume de
histórias. Jorge, enervado com o mal do automóvel confessou-se
incapaz de ficar até ao fim. Ia espairecer e depois voltaria. Mas antes
era preciso fazer a comédia do convite às grandes damas. Subiram
à frisa. Em torno de Mme. de Melo e Sousa a corte juvenil olhando Alice
e Ada desdobrava-se. Argemira acolheu-os encantadora.
— Estamos sós, sabem? O nosso deputado doente.
— Grave?
— Oh! uma magraine…
— Quero sair antes do fim – fez Alice dos Santos.
— Ah! minha querida, com esta complicação dos carros.
Sabe que viemos de carro hoje?
— Mas é simples – fez Jorge. – Dá-se ao guarda o cartão
para mandar o carro embora quando ele chegar, e eu tenho a honra de levá-las
em cinco minutos no nosso automóvel, se me permitem…
A encartada ficou sem resposta. Eles também ficaram. E logo que se
ergueu o pano Mme. de Melo e Sousa ergueu-se; a senhora do deputado e Ada
Pereira também, e saíram com solenidade os cinco.
Estava a noite deliciosa, dessas noites de inverno, sem lua, em que o veludo
do céu tem um esplendor imprevisto e a brisa é leve e sensual.
O automóvel esperava-as do outro lado da rua. Jacques sentou-se com
as três senhoras. Jorge ficou ao lado do motorista, o mesmo de sempre,
aquele rapagão lusitano que ria com tanto gosto. As senhoras tinham
o ar de que iam pregar uma partida, e logo que o automóvel se moveu
começaram a rir. Que pensavam elas do automobilismo de Jorge? O automóvel
porém. o famoso 720-A-E já tomara a sua velocidade urbanamente
inconcebível. Jorge queria mostrar e o pequeno motorista desejava também
pôr em evidência a sua perícia. Na Beira-Mar, onde chegaram
um minuto depois talvez, o carro voava numa nuvem de poeira. Era impossível
trocar uma palavra. O ar deslocado pela máquina cortava. As mulheres
riam excitadas. Jacques dava a Ada Pereira um joelho protetor, sem que Ada
pedisse, e para disfarçar resolveu soltar uns gritos, pouco familiares.
O chauffeur português voltava-se contentíssimo. Jorge sorria.
Mme. de Melo e Sousa achava a sensação inteiramente inédita.
Não era uma corrida. Era uma vertigem. Naquele estendal de luz o animal
de ferro voava numa densa nuvem de poeira.
Davam assim a segunda volta à praia, quando por eles passou outro
grande e poderoso maquinismo. Era Teotônio Filho com o cavalheiro Sfrapini,
il re dei chauffeurs.
— O Teotônio! -. gritou Jacques.
— É sim, mas não nos ganha! – berrou o Jorge para trás.
Tornava-se uma questão de honra não ser vencido pelo Teotônio,
à vista de senhoras. O automóvel acelerou ainda a marcha e assim
correram uns três minutos. As damas despenteadas e com um apetitoso
medo, já davam gritinhos. E todo o 720-A-E ficou de repente pasmo vendo
que o automóvel de Teotônio parava de repente. Alguma trapalhada.
Panne? Antônio diminuiu a marcha. Jorge parou mesmo de todo. E estavam
assim, os homens de pé numa posição interrogativa, quando
a máquina de Teotônio recomeçou a andar com Sfrapini no
guidão.
— Buona sera!
— Que brincadeira é essa?
— Oh! Pensávamos que vocês estivessem sós… –
explicou o Teotônio, que só fizera a corrida porque vira mulheres
no carro do amigo. E ergueu-se, saltou, veio sondar as distintas damas.
— Demônio! – exclamava Jorge. – Estamos sim, estamos com senhoras.
Foi no Lírico. Como não encontravam o carro…
— Oferecemos-lhe o automóvel – interrompeu Jacques – e como
elas ouviam falar mal de nós viemos mostrar.
— Que tudo não passa de mentira, pois não é? –
fez Teotônio a beijar a mão de Mme. de Melo e Sousa.
Jorge porém não largava o assunto.
— Sim, sim, és de força. Mas olha que não é
sério correres com o partido do peso.
Imediatamente, em frente das damas que se interessavam, discutiram tecnicamente
peso, carrosserie, carburador, cilindros, raios de rodas, motores, marcas.
Apesar da calma aparente, Jorge estava exasperado, e o seu motorista ainda
o excitava mais.
— Com este carro, desafio o seu, senhor Teotônio! exclamava o
rapaz.
— Deixa-te de prosa, rapaz.
— È un po’difficile… – sorria Sfrapini.
— Era o que se podia ver já! – disse de repente Jorge.
— Com as senhoras aqui?
Jacques porém não tinha muita dificuldade em convencer as senhoras
que deviam descer e ficar a ver a aposta alguns minutos. Alice dos Santos,
excitadíssima já saltara.
— Eu que não contava com um circuito!
— Vocês são loucos! – fez Mme. de Melo e Sousa, descendo
também.
Ada Pereira, muito nervosa, amparou-se a Jacques. A discussão ia acalorada
entre os sportsmen. Antônio, o chauffeur de Jorge assegurava que, se
o patrão quisesse, mesmo com aquela carrosserie conduziria a máquina,
dando distância ao adversário.
— Aposto um conto contra quinhentos mil-réis!
— Seja! – fez branco de cera o Jorge. – Mas sou eu quem dá um
conto por duzentos mil-réis.
Era a cena habitual. As senhoras que nunca as tinham visto, estavam cheias
de curiosidade. Ada Pereira, Alice e D. Argemira fixaram um momento o jovem
motorista de Jorge, que era de fato bonito. A corrida era em cinco voltas
e já ele colocara o 720-A-E em linha, airoso e a sorrir. Estavam a
dois passos de Pavilhão Mourisco e todos esquecidos dos seus deveres,
só tinham nervos para a aposta, porque salvo Teotônio, todos
jogavam no automóvel de Jorge e no chauffeur tão confiante e
tão forte.
Quando viu os carros prontos, Jorge, com a voz mudada, deu o sinal. As máquinas
partiram num súbito arranco. Aquelas seis pessoas em traje de baile
perdidas no deserto iluminado da Beira-Mar acompanhavam com o coração
aos trancos, febris, nervosos, os rasgões veloces dos automóveis.
O mundo não existia bem para eles. Na primeira passagem, o carro de
Teotônio vinha à frente. Dois minutos depois, de novo passaram
os dois carros, como raios. O de Jorge ia à frente.
— Ganhamos!
— Ganho! É certo.
— É agora!
— É agora!
Ficaram assim trepidando segundos que pareciam séculos. A poeira era
como uma enorme nuvem que se tornava brilhante tal a iluminação
da Avenida, onde ardiam num brilho de sol todos os candelabros elétricos.
— É agora! – repetiu num grito Alice.
Tinha ao longe a última volta. Era a reta final. Era o desespero.
Era só quando os automóveis podiam dar toda força. Num
ímpeto colossal esses elegantes viram as duas máquinas a toda.
Ao mesmo tempo, partindo do Mourisco, em sentido contrário às
duas máquinas, passou um automóvel. Os corações
apertaram-se. Antes que qualquer dos presentes pudesse dar uma palavra, ouviu-se
um tremendo fragor, todas as lâmpadas elétricas apagaram de súbito,
enquanto na semi-sombra passava como uma tromba uma só máquina.
As mulheres gritaram loucas; os homens precipitaram-se. Era a quinhentos
metros a máquina de Jorge estraçalhada. Para evitar o encontro
com o outro automóvel dera de encontro a um dos candelabros, derrubando-o
e quebrando-se. E sob a ruína, os ferros torcidos, as madeiras estaladas,
as folhas recurvas, gemendo, com as pernas esmigalhadas e o rosto em sangue,
Antônio, o jovem motorista, parecia morto.
Capítulo XII: O epílogo dos desastres
Desastre chama desastre, diz a sabedoria popular; como todas as outras coisas
populares, foi a sua origem um austero filósofo, uma individualidade
superior. Quando pela primeira vez essa individualidade emitiu a frase lapidar,
os que o cercavam deviam ter ficado pasmos com a revelação.
Depois repetiram, e repetiram tanto através das épocas que verdade
tão poderosa chega a parecer mentira, e que a própria natureza
faz o possível para contradizê-la. Assim no tempo da tragédia
grega os desastres sucediam-se aos desastres. Era preciso que as famílias
fossem até muito infelizes para dar tantos desastres aos poetas. Já
no tempo do romantismo, o desastre é o desastre sem conseqüências,
e finalmente o desastre, nos últimos tempos literários acabou
tendo um epilogo, tendo a obrigação quase de um epílogo
alegre. É que não há mais como no passado, grandes desgraçados.
Ninguém mais acredita senão na felicidade e a felicidade é
pelo menos um pouco de quem nela acredita.
Jacques era fatalista. Toda gente é fatalista à falta de ser
outra coisa. O desastre do automóvel pareceu-lhe uma continuação
do desastre moral com Godofredo, e uma espécie de aviso da Providência.
— Pára! Vê por onde vais! A morte espera-te de emboscada
no prazer desenfreado! – dizia com fatos a Providência traduzindo a
linguagem simples de D. Malvina Pedreira, digna progenitora de Jacques.
E o jovem acordara cedo, depois de ter dormido poucas horas, num estado de
excessiva excitação nervosa. Quantas sensações
e quantos horrores na noite anterior! O corpo de Antônio, o sangue,
o trabalho para evitar que a policia tomasse o nome das senhoras, o ataque
de nervos de Ada Pereira, a recondução das senhoras de carro,
porque não queriam mais automóveis – tudo era como o pesadelo
hórrido a lhe dizer: previne-te! Como alguns meses antes, deitado naquela
mesma cama, após uma recepção de D. Malvina, Jacques
sentia o caminho andado. Caminhara, alheara-se de todo da família,
largara as amarras, e por pouco que pensasse, via quanto ocultamente, como
a maioria dos mortais, apenas para os seus botões, se enxovalhara.
Que diriam os jornais? Pela primeira vez. sentiu a necessidade de opinião
da imprensa. Pediu ao criado os jornais. A opinião era péssima.
Os reporters, os jornalistas, os trabalhadores anônimos daquelas folhas,
obrigados indiretamente a servir a casta, a que ele pertencia e que os desprezava,
vingavam-se quando havia ocasião, sempre. Jacques engoliu notícias
melodramáticas cheias de perversidades, de ódios, de insinuações,
de insolências. Eles eram os "indolentes", "aqueles que
acreditam a vida dos outros nada", uns pândegos sem alma",
"refinados ignorantes do grand-ton", "criminosos vulgares que
graças a uma situação ocasional abusavam". Todos
os diários começavam por um verdadeiro artigo sobre a continuidade
dos desastres e era nesse assunto geral, um apelo à policia, que se
incrustavam tão agradáveis epítetos. A narrativa do desastre
cada gazeta contava-a de modo inteiramente diverso, mas em todos era de fazer
chorar, porque os jornais vinham transbordantes de uma piedade imensa pelo
motorista, o humilde, o do povo, sacrificado. Jacques leu que Antônio
seguira em estado desesperador para a Santa Casa, e que lá, ao recobrar
os sentidos segundos antes de morrer, só tivera para Jorge de Araújo
que o acompanhava esta frase extraordinária:
— Perdão, patrão…
O próprio Jacques ficou comovido. E ficaria mais se não constatasse
que todos os diários davam os nomes dele e dos seus amigos por extenso,
só errando decerto propositalmente, no de Sfrapini que passava a Stradini.
Mas, se eles apareciam, as senhoras salvavam-se. E os jornais asseguravam-nas
três cocottes das mais estadas nesse mundo de vício e perdição…
— Safa! – exclamou o jovem pondo-se de pé.
Deixou os jornais, foi tomar um banho frio, voltou ao quarto resolvido a
sair sem ver os progenitores. Se ficasse era fatal uma grande cena, e depois
da cena as visitas que viriam ver os efeitos dos jornais. Vestia-se nervoso
quando o criado lhe trouxe duas cartas: uma do deputado vegetarista felicitando-o
por ter escapado, outra de Alice. Esta era louca. A encantadora senhora culpava-se
de ser a causa de tudo, tinha expressões tais de dor que um momento
Jacques teve a ilusão de que também estava ferido, e terminava
exigindo que ele fosse vê-la só, só, pelo menos um instante,
no ninho na casa do barão. Estaria às duas horas. Queria vê-lo.
Fizesse a vontade.
Jacques precisava desabafar e não queria ouvir o pai ou a mãe
ao almoço. Acabou de vestir-se com o mesmo cuidado de sempre e saiu
pela porta dos fundos, diante dos criados que sabedores do desastre, sorriam
com simpatia e cumplicidade. Já não era cedo. Passava muito
de uma hora. Perdera tempo com os gazeteiros. À porta teve tempo de
receber da Malperle um cartão: "Que horror e que prazer sabê-lo
salvo!". Então despachou o chacareiro com um agradecimento e outro
bilhete para Lina Monteiro e seguiu.
Entretanto Maria, a pequena corista portuguesa, que entrava para o ensaio
no seu teatro ouviu o comentário feito ao desastre. Os jornais tinham-lhe
dado tais proporções que até no teatro o caso se lera.
Entre algumas prendas de que não fazia uso Maria colocava a leitura.
Como ouvisse o nome de Jacques ficou perturbada.
— Jacques? Estava no desastre?
— Sim! É o amigo do Sr. Jorge.
— Ferido?
— Não se sabe!
Ela perdeu inteiramente a cabeça. Era preciso saber. Correu ao ensaiador,
pediu que lhe desse uma licença e sem esperar resposta, saiu, meteu-se
num trem de praça, mandou tocar para casa de Jacques. Não sabia
o que havia de fazer. Apenas sentia uma grande aflição, um grande
desejo de ver são, sem ferimentos, o seu homenzinho. E se estivesse
ferido iria ao quarto, seria enfermeira, a mãe de Jacques perdoaria…
Depois de tamanho desastre só em casa é que poderia estar o
rapaz… E no carro, ao trote dos magros cavalos, Maria chorava. Quando o
cocheiro parou, não se moveu. Chegando à porta, vinha-lhe o
medo de bater na casa honrada, de pôr o seu desejo ao lado do amor de
mãe.
— Como deve estar aflita a senhora mãe dele…
E ficou dentro da carruagem ansiada, à espreita, de ver sair alguém,
para pedir informações. Que fazer, Senhor dos Passos? Viu que
chegavam de instante a instante criados, que chegavam mesmo senhoras e cavalheiros.
A sua aflição aumentou. Afinal descobriu o jardineiro, que também
entrava.
— O homem, é daí?
— Sim, menina.
— Como está o Sr. Jacques?
— Ele vai bem; saiu há de haver quase uma hora.
— Saiu?
— Palavrinha. Por esta luz…
Maria ficou meio aliviada. Onde estaria o rapaz no dia seguinte a um desastre?
Fez o carro voltar. E não tinha nada! Ah! Pequeno de sorte! Como antes
chorara, ela agora ria só dentro do carro, e o carro descia a Beira-Mar
precisamente no ponto em que outrora chamavam o Flamengo. Maria viu a garçonnière.
E de repente veio-lhe um desejo. Quem sabe? Fez parar o cocheiro, saltou,
bateu. A princípio devagar. Depois com força. A vizinhança,
que tinha em péssima conta o prédio, começou a aparecer
vagamente, por trás das janelas, aqui e ali. Um rapaz no segundo andar
de certo prédio que parecia destinado a jovens estudantes, sorria,
com o pijama por cima da pele. Maria, a pobre mulherzinha, achou que devia
continuar a bater. Noutra ocasião ela bateria o dia inteiro em vão.
Naquela, porém, infelizmente, as duas almas que lá estavam,
estavam muito sobressaltadas para não responder. Jacques não
podia ver de cima, estando as janelas hermeticamente fechadas. Desceu à
porta, receando qualquer coisa de horrível. Já não tinha
segurança, e contava com tudo como se assistisse a seu drama de Shakespeare.
Ia espiar pela fresta, enquanto Alice no alto da escada já imagina
Arcanjo, a polícia, o fim; quando Maria, agindo apenas para se dar
ares, sem certeza alguma, disse de fora:
— Abre, sou eu!
E só quando falou-se é que distintamente ouviu haver alguém
por trás da porta. Disse então mais alto:
— Abre!
Jacques temia o escândalo. Voltou ao alto da escada, branco, a ver
se encontrava um meio de salvação. Alice, à voz da mulher,
compreendera tudo. Veio-lhe, com a certeza, de que não era Arcanjo,
uma grande calma. E ao mesmo tempo um desprezo subitâneo por Jacques.
— Até aqui! Não respeitaste nem este lugar!
Jacques estava irritadíssimo – principalmente porque vindo-lhe a extensão
da responsabilidade não sabia como resolver os casos melindrosos. Assim,
rouquejou:
— Alice, deixa-te de cenas! É uma criatura que me persegue.
Há muito tempo.
— E sabe a nossa casa!
— Depois conto, depois explico. Por enquanto, é preciso escapar.
— Não lhe abras a porta, então.
— Ela grita; é ordinária.
— Oh! Jacques. Jacques! Tu…
Olharam-se, ambos sentindo-se culpados, arrependendo-se de várias
e muitas coisas que não deviam ter feito, com que já agora era
impossível modificar. A voz de Alice tinha uma tal dose de horror que
no seu estado de superexcitação, ele, pela primeira vez julgou
que devia defender alguém. E com exagero. Seria como se fosse ele próprio.
— Não, Alice. Não há perigo. Estou com o azar
mas por mim não sofres nada… Esconde-te. É preciso. Esconde-te.
Quando ela subir, sais…
— Que vergonha!
— Ninguém sabe…
— E a vizinhança?
— Não! Não…
À porta, Maria começava a bater freneticamente. Jacques fez
um gesto decidido a tomar uma desforra, desceu, descerrou a porta. Maria,
que esquecera completamente a causa primeira da sua intempestiva visita, entrou
pela abertura exígua como um foguete de bomba.
— Tens cá uma mulher, cão!
Não teve tempo de continuar. Ele lançava-lhe um murro aos queixos.
Era para lhe cortar a palavra e para irritá-la. Trepou pois os degraus
berrando:
— Covarde! Rufião! Tens sim! Essa desavergonhada vai ver o que
é bom.
Jacques, louco de raiva, seguiu-a agarrando-lhe as saias, largando estas
para procurar-lhe os pulsos. Ambos subiam aos trancos, erguendo-se, escorregando,
loucos de raiva. Como uma ventania, vieram ao salão.
— Quem te autorizou a vir aqui, animal?
— Fomente-se! Vim porque quis. Onde está a perdida?…
— Mulher, não há ninguém! Não me desesperes…
— Veremos.
Ela debatia-se, ele não a podia conter. Continuavam aos safanões,
de roldão, ela à frente, ele no seu rastro. No quarto de dormir,
onde o barão fizera uma orgia de bons amores cépticos, quase
rolaram. Ele puxava-a. Ela desvencilhava-se. Foram de tal forma até
ao quarto de banho. Então Jacques que julgava Alice aí escondida
e presa do imenso receio de uma catástrofe, agarrou-a pelo braço.
Ela ferrou-lhe uma enorme dentada na mão. Deu-lhe com o braço
livre. Ela tombou.
— Parto-lhe a cara à fúfia! – berrou.
E como movida por uma mola pôs-se de pé. Então ele atirou-se,
e enquanto a mantinha apertando-lhe o pescoço, com a outra mão
livre começou a esmurrá-la. Era uma fúria de extraconsciência.
Esmurrava escolhendo os lugares onde não se vissem sinais, esmurrava
a cabeça e esmurrando a pequena amorosa que soltava uns surdos gritos
estrangulados esmurrava Godofredo e os seus insultos, esmurrava a má
vontade do pai, esmurrava os deuses culpados do desastre do automóvel,
esmurrava a fatalidade menos boa. Via roxo, via tudo lívido, e dava,
e continuava a bater a pobre mulherzinha amorosa, como um desafogo.
Mas de repente parou, distendeu os dedos, e o corpo de Maria caiu no soalho,
onde as cadeiras haviam rolado. Diante dele, Alice dos Santos, lívida,
com um olhar de pavor sem limite, assistia a cena que jamais poderia imaginar,
assistia como uma lição. Quando viu o corpo da pobre rapariga
por terra, pendeu para ela com infinita piedade.
— Quase a matas! Pobre! É preciso chamar o médico. Que
vergonha, Jacques! Bater uma mulher…
— Foi por tua causa…
— Toma o vidro de sais. Dá-lhe a cheirar. Oh! Jacques! Jacques!
Nunca pensei…
Depois envolveu-se no espesso véu e desceu. Estava séria. Tremia.
Esquecera despedir-se do jovem amante. Os seus dois grandes olhos pareciam
ansiosos por ver para além do quadro horrível. Entreabriu a
porta. Estava lá à espera o carro de Maria. Meteu-se nele rápida,
e antes de chegar a casa, tão perto, pagou ao cocheiro todas as horas
em que a outra lá estivera sofrendo por Jacques. Um pouco revoltada
contra o destino, a linda Alice via um reverso da vida inteiramente desagradável,
e sentia, o mal de ter ido ao lugar d’amor com tal ânsia que recebeu
o bom marido com um abraço e chorando…
Jacques, entretanto, mais apalermado, ficara a fazer cheirar o vidro de sais
a pequena corista. Ao cabo de certo tempo viu que era preciso alargar os vestidos
da pobre rapariga. Então levou-a para a cama, desapertou-lhe a saia,
o corpete, soprou-lhe um bochecho d’água no rosto. Depois, como visse,
que ela respirava, ajoelhou-se à borda da cama, animou-a. Ela abria
os olhos.
— Desculpa, foi sem querer… Estou meio louco. Desde ontem! Muito
assustado, muito… Deu-me uma raiva de repente… Não havia ninguém…
Hoje, nem vi a mamã… Foi de nervos que aqui entrei…
A rapariga soluçava baixo ao som da voz querida. Jacques tinha uma
larga voz de barítono um pouco velada, e que lhe dava qualquer coisa
acariciador.
— Que dores na cabeça meu filho! que dores… Olha que foi só
por ti, só para te ver que vim… Meu Senhor dos Passos como vai ser
agora!
E a custo, malaxada, contundida, mas desgraçadamente feliz, Maria
segurava aquela larga mão que a batera e beijava-a devagar, chorando.
Jacques para desculpar-se, beijou-a na boca, e como das outras vezes, mais
que nas outras vezes, como nunca, eles caíram em pleno gozo, gozando
profundamente…
A Jacques, porém, aquela conclusão das pancadas – tal era o
estado seu de nervos – não conseguiu acalmar. Ficou tendido como um
arco, e largando a pequena mulher falou-lhe com intimidade, pedindo conselho:
— Que achas, Maria? Devo continuar? Devo voltar a casa? Tu sabes toda
minha vida. Acabaste sabendo…
Ela era bem portuguesa. Respeitava os pais. Tinha o sagrado respeito da família.
Disse que era muito feio não ouvir os pais. E que ele deveria ir logo
beijar a mão à mãe, por ter escapado do desastre. Fosse
logo. Ela ficaria ainda um pouco deitada. E quando fosse noite, iria só,
batendo a porta… Dizia essas coisas rindo tão docemente que no riso
se via a lágrima. Era como um fim, uma despedida. Eles sentiam que
estava acabado, e ela ia satisfeita, tendo levado a parte do sacrifício,
mulher, mulher como Jacques não tivera outra.
O mancebo concertou o desalinho. Estava ainda mais triste. A excitação
de dois dias afrouxava num imenso e vago pavor de tudo, da vida, da alegria,
do amor. Disse-lhe beijando-a:
— Até logo.
Ela olhou-o longamente.
— Adeus.
E ficou só, chorando. Ele saiu devagar, tomou uma das ruas transversais
que vão dar ao Largo do Machado. A tarde morria meio escura. Quando
chegou à esquina, viu que o trânsito era interrompido por um
grande enterro. Já ia um pouco longe o coche carregado de grinaldas
e mais três carros cheios de flores. Mas o acompanhamento era enorme
– um acompanhamento interminável, de automóveis com as capotas
arriadas, as lanternas acesas e os motoristas de cabeça descoberta.
Poucos automóveis deviam ter ficado na praça. Era – Jacques
não teve um instante de dúvida – o enterro do Antônio.
O rapaz era querido, os jornais haviam exagerado de tal modo o lado sentimental
que aquela sociedade fazia a sua apoteose na apoteose do morto humilde. Jacques
nervosíssimo parecia ver o motorista com os seus vinte anos, o seu
riso, o corpo forte na farda cor de lontra. Ficou à espera que o cortejo
passasse. Quase no fim viu num carro, vestido de preto Jorge de Araújo,
e a seu lado, também de preto o grande cronista Godofredo de Alencar.
Como o carro parasse um instante, Jacques foi até lá, irresistivelmente.
— O pobre Antônio! Que desgraça!
— É – fez Jorge. – Morreu duas horas depois. O Godofredo arranjou
para que se não fizesse a autópsia. Era melhor acabar logo.
Depois para que deformar mais o pobre rapaz?
E de repente, esse homem frio, esse homem de aço, enquanto Godofredo
olhava para outro lado fingindo não ver Jacques, esse homem acostou-se
soluçando.
O carro pusera-se em marcha. O mancebo, humilhado e crispado de desagrados
ficou até o fim. Aquilo era tão solene que parecia culpá-lo
Sentia sobre si uma imensa e vaga culpa, a que sentem quantos não expiam
pequenas faltas talvez. Quando não havia mais um só carro e
os tramways retomavam o trânsito meteu-se num, recolheu a casa, e como,
ao entrar na casa de jantar, na semi-escuridão da tarde a morrer, visse
D. Malvina só, teve um arranco. Caiu-lhe nos braços, sujo de
uma porção de misérias, soluçando.
— Mamã! Mamã!
A anafada senhora esperara-o o dia inteiro para dizer ao menino coisas tremendas.
Mas ao seu soluçante, abraço logo começou de chorar procurando
beijá-lo como se ele fosse um petiz. Porque dá-se o caso que
as mulheres também são mães.
Capítulo XIII: Após tremenda tempestade…
— Não! Já disse. Não saio! Não estou em
casa!
O desastre do automóvel com a repercussão que no primeiro momento
lhe haviam dado os jornais, fizera a partida quase imediata de Jorge de Araújo
e de Teotônio Filho para a Europa. Jacques, que ficara em casa como
um convalescente recebera de Jorge um curto bilhete de despedida e nem fora
ao embarque. Soube que no mesmo vapor seguia a Liana, a quem Arcanjo presenteara
como um deputado vegetariano e rico pode presentear quando está farto
de uma dama. Não respondeu a um só bilhete de Liana. Passava
os dias a dormir, aborrecido, com medo de sair e chegara ao extremo de conversar
longamente com D. Argemira.
Aquele desagradável acidente chocara-o muito. Para temperamentos como
o seu, fetiches, de uma incultura completa e universal, o desastre primeiro
de catástrofes é que assombra. Todo homem amado pelas mulheres
tem um pouco de mulher na alma. Jacques sofrera mais com aquela desorganização
da sua vida do que sofreria talvez com a morte de uma pessoa da família.
É que de fato ela saltara a grande vala, no sport, no negócio,
no amor. Recomeçar a mesma existência seria perigosíssimo
e para tal faltava-lhe a coragem. Enquanto as coisas corriam bem era capaz
de todas as audácias e conseqüentemente de todas as inconveniências.
Desde que os horizontes se fechavam, voltava a criança, precisava de
proteção, tinha um medo vago.
Precisamente dez dias depois da catástrofe é que no seu quarto,
de pijama, Jacques dava aquela resposta ao criado que trouxera um bilhete
de Lina Monteiro. Oh! Era preciso acabar todas as antigas. Essa rapariga era
mesmo a caipora. Depois de a ela mostrar afeto é que seu pai brigara,
que fizera aquilo com o dinheiro, que tivera o desastre… No fundo via que
só reaveria a boa vontade do Gomes Pedreira se largasse de todo Lina.
E começava por julgá-la o azar. De resto não mantinha
com as outras senão a mesma recusa insolente. Deixava de responder.
Talvez porque não se sentisse bem com a pena na mão. Mas as
outras criaturas que lhe tinham prestado atenção vinham a sua
casa; e só Lina não vinha…
Quinze dias depois dos acontecimentos, saiu à noite. Vira nos jornais
que a companhia portuguesa despedia-se. Maria deixara a garçonnière
em ordem e nunca mais dera sinal de vida. Foi por isso vê-la, foi mesmo
à caixa. Era um espetáculo entre palmas. Ninguém o conhecia.
Como a peça era revista, as coristas mudavam a cada passo de fato.
Entretanto a Maria logo que o avistou veio a ele, puxou-o, deu-lhe um longo
beijo.
— Foi por mim que vieste?
— Foi.
— Meu bom… Partimos amanhã cedo. Hoje dorme na pensão
o velho. Sabes que ainda me dói a cabeça. Mau…
— Então… – fez ele humilhado porque nunca pedira.
— Chegaste tarde. Quando voltar…
Tristemente Jacques voltou a casa. No dia seguinte não saiu. Como
não tinha o que fazer pegou num volume de literatura que rolava na
copa. Era a história das aventuras de um polícia chamado Nick
Carter. O estilo e a imaginação do autor encantaram o cérebro
difícil do jovem elegante. Conseguiu com o copeiro os outros inumeráveis
volumes. E então regalou-se. Como contasse a Arcanjo amigo da casa
as suas impressões, Arcanjo prometeu-lhe outros agentes e ladrões
célebres cujas falcatruas também a ele divertiam. Trouxe. D.
Malvina estava assombrada. Via seu filho ler e disso "deu parte a Justino,
esposo e pai".
De resto, ao passo que com a leitura policial Jacques começava a ficar
inquieto com as prováveis conseqüências do seu recibo ao
Gomide, era evidente que D. Malvina recorrera a Mme. de Melo e Sousa e a Alice
e que as três, mãe, amiga e já não amante conspiravam
a seu favor.
Como? Que arranjariam essas três senhoras? Nunca o papel com o qual
o Gomide podia na melhor ocasião desfazer todas as suas esperanças.
Desde que cometera uma incorreção temia e respeitava a opinião
pública. Assim, uma noite na sua casa, chamou Arcanjo.
— Então, depois de Liana, nenhuma outra? – indagou baixo do
parlamentar.
— Não. Nem sei como foi aquilo. Ela não era tão
boa.
— Oh! Arcanjo.
— Também não quero dizer que me arrependa. Afinal sempre
tive um lucro.
— Qual?
— Verificar que a carne e o champagne não me fazem mal. De resto
o Godofredo diz que tive outro: saber que o esperanto já era falado
na casa de Fanga.
E ria. Jacques não se conteve.
— E o Godofredo, como vai?
— Parece que maravilhosamente. O ministro da Agricultura presenteou-o
com uma pérola rosa que pertenceu ao Grão-Duque Miguel, no dia
do seu aniversário. E comprou uma casa, ao que consta, nas Laranjeiras.
Você também não sai? Que história é essa?
Creio que não vai passar a vida inteira em casa.
— Não. Espero as fibras…
— Que fibras? Ah! sim… Ainda não resolveste isso? Sempre me
parecia.
— É com o presidente agora…
— Então tens que esperar…
Ele ficou frio. O presidente frio não assinaria. E o recibo do Gomide?
Na mesma noite, D. Malvina disse-lhe:
— Sabes que esteve cá a Argemira? Falamos de ti. Precisas ir
amanhã almoçar com ela.
Jacques sorriu e foi dormir. Estava mais gordo. Dormia muito.
Com efeito Jacques ao acordar recebeu de Argemira um daqueles irresistíveis
bilhetes, que para esse adolescente guloso da vida e de fraco refletir produziam
sempre efeito decisivo. Jacques que acabava da ducha e de se fazer friccionar
pelo copeiro, para fazer a reação da noite espessa, sentiu-se
logo desejado ao receber o bilhete, em papel malva, caracteres finos e sutis.
Decerto, a sua Egéria, a sua querida Egéria ia aconselhar-lhe
um novo bem. Vestiu-se com apuro. Perfumou-se. Um instante hesitou: devia
levar a gravata da cor da camisa ou em destaque como alguns dandies? Essas
preocupações assaltavam-lhe a mente, sempre que ia ver a deliciosa
Argemira, curiosa como, segundo o barão, uma pequena marquesa do século
XVIII. Atribuiu o caso apenas à possibilidade de lá encontrar
corações apaixonados. Mas, com o tempo via que aquela senhora,
mãe de um rapaz mais velho do que ele, positivamente não lhe
desagradava. Era como uma tapeçaria antiga que atrai. Era como não
podia dizer- qualquer coisa de instintivo, que a travessura da sua luxúria
criança desejava experimentar, sem conseqüências. Por que
não? Jacques contava com a visita, imaginando a surpresa. Partiu sem
um fim seguro. Partia sempre assim. A premeditação nunca seria
uma causa a mais para a condenação dos seus crimes. Mas verificou
que conservava aquela boca de morango úmido no lábio glabro,
o peito forte, o cabelo repartido em risca, um perfume de água-da-colônia
e de sabonete d’alface, à inglesa.
Mme. de Melo e Sousa estava no seu pequeno salão de atmosfera leitosa,
vestida de branco, ensaiando a meia voz uma romanza inglesa, gosto que trouxera
de Londres – versos ocos e música de Tosti.
— Oh! o desaparecido!
Estendeu-lhe as duas mãos com as suas duas pérolas uma cor
de oiro, outra cor-de-rosa, e ficou assim, um tempo sentada, tendo-o de pé.
— Então agora é preciso um bilhete? Não há
meio de o ver. Sabe que recebi carta de Gladys. Manda-lhe da Suíça
uma edelweiss.
Jacques teve vontade de perguntar o que vinha a ser uma edelweiss, mas conteve
a pergunta noutra pergunta:
— E a senhora?
— Eu, meu filho, por aqui…
As mãos despegaram-se, ficaram a olhar-se. Nos olhos de Argemira havia
aquele favilar d’oiro dos momentos em que a sua malícia surgia.
— Que belo rapaz, hem? Forte, belo! E sedutor.
— Por quem é, minha conselheira…
— Não diga isso alto. Não diga nada alto.
— Por quê?
— Porque só as mentiras se dizem alto.
E imediatamente começou a falar alto do automobilismo de Jorge que
acabara mal, do Arcanjo, que já não era vegetarista – por quê?
– dos rapazes da roda que enveredavam no sport.
— O Suzel tem uma amante bonita.
— E insuportável. Está apaixonada por ele.
— E Bruno Sá?
— Outra também insuportável pelo mesmo motivo.
— É então do exercício? Só você…
— Eu agora ninguém…
— Sério?
— Sem a senhora não me atiro a essas coisas.
Evidentemente era um bom rapaz. Com os seus cinqüenta anos em flor,
conservados em perfumes, aquela mulher de espírito, sentia uma complacência
agradável em estar ali com ele, em satisfazê-lo, bem desejo vago
de dar-lhe biscoutos e dar-lhe com beijo a deixar-se beijar e ralhar depois.
Que garoto e que querubim!
— Criança!
— A senhora nem sabe como manda em mim. É mais forte do que
eu.
— E se eu pedisse que você subisse para Petrópolis?
— Já?
— Parto amanhã. Tenho uma coisa muito agradável.
— Quem é?
— Não digo senão lá.
— É a… Ada Pereira.
— Ora a Ada.
— Diga quem é.
— O menino sabe que tem vinte e três anos, que precisa ser homem,
perder essas curiosidades malsãs.
— É discurso?
Ela riu.
— Vai?
— Pois vou. Há muito tempo que não me aborreço.
— Obrigada…
— Não, não é pela senhora, a senhora, D. Argemira,
tão boa, tão agradável…
Tomou-lhe a mão, beijou-lhe a pele fina. A mão conservou-se
no seu lábio quase apagado a roçar, o que o fez molhar os lábios,
ao apertá-los naquele beijo sentiu, sem querer aspirar o perfume, estender
o braço, envolver uma cintura. Mas, a ilustre dama que um momento,
pendera, recusou, sempre a sorrir, sem demonstrar perceber até onde
tinham ido as cousas. Só o seu semblante resplandecia como se tivesse
cheirado uma essência de vida. Jacques pôs-se de pé.
— Então o que é?
— É a sua carreira.
— A minha?…
— Sim, meu querido. Arranjamos as coisas. A Alice trabalhou muito junto
ao general, o presidente prometeu a seu pai, e fez o possível junto
do meu velho amigo o chanceler.
— Então é?
— A diplomacia – fez a ilustre dama erguendo-se. – Preciso ir ver a
minha casa lá de cima. Estarei pois em Petrópolis. Tudo depende
de tino, da maneira por que te hás de apresentar ao grande ministro.
Ele é muito pela mocidade – hélas! – no que eu acho que faz
bem. Mas é também muito das primeiras impressões. Tens
uma bela figura e sabes ser amável.
— Oh! D. Argemira.
— Com oito dias de trabalho estás nomeado.
Depois, séria:
— Precisas sair daqui, por várias razões e principalmente
porque a boa educação não se pode completar num meio
tão estreito. Depois que profissão melhor para um rapaz fino,
não achas?
— Nunca pensara.
— O que quero, é que venhas a dar um grande diplomata.
Almoçaram finamente, como só na casa de D. Argemira era possível
almoçar. Jacques beijou-lhe a mão agradecidíssimo, e
de lá saiu depois das duas horas.
Ainda na dúvida, porém, viu que precisava consultar alguém,
além das mulheres. Godofredo era um inimigo ainda. Jorge estava fora.
Só o barão, aquele curioso tipo que assistia a vida e que decerto
devia ter sofrido muito para estar assim sempre só. Jacques consultou
o relógio e tomou um automóvel. O barão devia estar na
sua partida no CIub da Avenida. Foi lá buscá-lo. E, o encontrou
à porta na ocasião em que entrava. O barão teve uma larga
exclamação e fê-lo subir.
— Então, que há?
— Venho pedir-lhe um conselho.
— Coisa terrível. Os conselhos servem apenas para não
serem seguidos.
— Trata-se da minha carreira.
O barão deixou a sala de jogo e levou-o para uma outra sala escura
em que ao fundo se via um bilhar deserto. Era nesse apropriadíssimo
local que o club fazia as suas anuais exposições, de pintura.
Os raros visitantes que se atrevessem poderiam levar uma opinião preconcebida.
Era possível ver o bilhar e talvez algumas poltronas. Quadros é
que não. Precisamente havia uma exposição. Os dois homens
em atmosfera tão superior, não se aperceberam disso. O barão
sentou-se.
— Então? Reaparece…
— Ao contrário.
— É paixão então.
— É enfado, barão, estou farto de mulheres…
O barão estirou as pernas, sorriu com melancolia.
— Não digas mais tais coisas, meu pequeno Jacques. As mulheres
são ainda o que conservamos de melhor. Já viste alguém
que não fosse feito por uma mulher? Já não digo fisicamente.
Falo da formação moral, social. Já viste um homem que
não devesse o que é a uma ou a várias mulheres?… Ingênua
criança! Mas também todos esses enfados vão-te bem. És
belo e és jovem. As que primeiro te perderão serão as
próprias mulheres. E assim tal qual és, feito para o amor das
mulheres, quando tiveres a minha idade e estas barbas brancas, serás
tão feito de amor das mulheres, de tantas lágrimas, de tantos
desgostos, de tantos enganos que serás um aborto de felicidade.
— Mas barão…
— Exagero? É para que não tenhas dúvidas.
— E eu tenho, barão. A mãe e D. Argemira parece que me
fazem diplomata.
— Só?
— Como só?
— É que podiam fazer-te logo embaixador.
— Então devo aceitar?
— Mas claro. A apostar que não são apenas as duas a interessarem-se?
Parte quanto antes. É uma profissão, é a única
profissão que te serve. Teu pai começava a estar seriamente
incomodado. Depois um homem não é homem senão depois
de conhecer a civilização.
Jacques ficou contentíssimo quando via um empenho unânime pela
sua felicidade. Deixou o caro barão só à tarde, e ao
chegar a casa comunicou a D. Malvina, com alvoroço.
— Sigo para Petrópolis, amanhã, de manhã.
— Então aceitas?
— Era o que eu queria, mãezinha.
Como a partida era no dia seguinte pela manhã, D. Malvina deixou de
ir à recepção da Muripinim, encardida relíquia
da monarquia, para presidir a arrumação das malas. No outro
dia cedo levou-o até a Estação da Gamboa. Jacques subia
para Petrópolis como se nunca lá tivesse estado. D. Malvina
abraçou-o.
— Pedi por ti, a Nossa Senhora.
E agitou o lenço quando o comboio partiu. Jacques estava comovido.
No wagon, apenas ia o viajado marido de Luísa Frias, que tinha casa
no alto da Serra. O homem cumprimentara Mme. Gomes Pedreira com respeito.
Teve a delicadeza de não perguntar por que Jacques subia ainda no inverno.
Era uma conversa fascinadora. Palrava de viagem, de sport, contava anedotas.
Quantas vezes tinha estado em Paris? Viajara toda a Europa, estivera em Carlsbad
com Eduardo VII, viajara com algumas senhoras do tom, falara com a Princesa
Clementina da Bélgica, conhecia os vícios das duquesas, fora
a uma reunião literária da Princesa de Rohan, apertara a mão
de Orville Wright, freqüentara o appartment de Santos Dumont, esbanjara
dinheiro nas estações da Riviera onde, as paisagens são
quase tão bonitas como os cromos que as reproduzem; Lord Asquith interrogara-o
em pessoa sobre o país do café, e a Cleo de Merode conversara
com ele sobre as pérolas da falecida Wanda de Boneza. Era um homem
internacional.
— Linda paisagem!
— A Suíça, já viajou à Suíça?
— Não.
— E nunca atravessou os países balcânicos?
— Francamente…
— Pois tem perdido.
Apesar dessa superioridade de viajante, a sua conversa encantava. Oh! as
anedotas sobre a Réjane, o Anatole e de Max, os vícios do de
Max.
— Cousas! Cousas civilizadas!…
— E quando volta?
— Pois não sabe? Tenho uma comissão, devo ir, estou até
de passagem comprada.
— E por que não parte?
— Ora por quê! A senhora minha mãe que adoeceu gravemente.
— Ah! sim… meus sentimentos.
— Está desenganada.
— Oh!
— Não há mesmo esperança alguma, de salvá-la.
Na derradeira conferência, tive que à última hora pedir
à companhia o favor de me adiar a passagem. Eu ia no Araguaia…
Deu um profundo suspiro entre raivoso e triste. Depois, desabafando:
— Está para morrer. Morre mesmo. Mas a agonia não acaba,
e eu afinal perco, não acha? Porque é impossível embarcar
com uma pessoa da família assim. Que diria a boca do mundo?
Jacques sorria admirado desse homem. E saltou em Petrópolis com uma
infinita vontade de partir, de também seguir para a Europa.
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