Vidas Secas

Graciliano Ramos

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NA PLANICIE avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem tres leguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, atraves dos galhos pelados da catinga rala.

Arrastaram-se para la, devagar, Sinha Vitoria com o filho mais novo escanchado no quarto e o bau de folha na cabeca, Fabiano sombrio, cambaio, o aio a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturao, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atras.

Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pos-se a chorar, sentou-se no chao.

– Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.

Nao obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto nao acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.

A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas.

O voo negro dos urubus fazia circulos altos em redor de bichos moribundos.

– Anda, excomungado.

O pirralho nao se mexeu, e Fabiano desejou mata-lo. Tinha o coracao grosso, queria responsabilizar alguem pela sua desgraca. A seca aparecia-lhe como um fato necessario – e a obstinacao da crianca irritava-o. Certamente esse obstaculo miudo nao era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, nao sabia onde.

Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pes.

Pelo espirito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, cocou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitoria estirou o beico indicando vagamente uma direcao e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturao, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estomago, frio como um defunto. Ai a colera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossivel abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinha Vitoria, pos o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caiam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitoria aprovou esse arranjo, lancou de novo a interjeicao gutural, designou os juazeiros invisiveis.

E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silencio grande.

Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas a mostra, corria ofegando, a lingua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam.

Ainda na vespera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, a beira de uma poca: a fome apertara demais os retirantes e por ali nao existia sinal de comida. Baleia jantara os pes, a cabeca, os ossos do amigo, e nao guardava lembranca disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava nao ver sobre o bau de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal.

Fabiano tambem as vezes sentia falta dela, mas logo a recordacao chegava. Tinha andado a procurar raizes, a toa: o resto da farinha acabara, nao se ouvia um berro de res perdida na catinga. Sinha Vitoria, queimando o assento no chao, as maos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que nao se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusao.

Despertara-a um grito aspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pes apalhetados, numa atitude ridicula. Resolvera de supetao aproveita-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inutil. Nao podia deixar de ser mudo.. Ordinariamente a familia falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.

As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam.

Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperanca de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para nao estragar forca.

Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo que nao viam sombra. Sinha Vitoria acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a cabeca encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte proximo, algumas pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele.

Estavam no patio de uma fazenda sem vida O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e tambem deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido.

Fabiano procurou em vao perceber um toque de chocalho.

Avizinhou-se da casa, bateu, tentou forcar a porta.

Encontrando resistencia, penetrou num cercadinho cheio de plantas mortas, rodeou a tapera, alcancou o terreiro do fundo, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras murchas, um pe de turco e o prolongamento da cerca do curral.

Trepou-se no mourao do canto, examinou a catinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou a porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instante no copiar, fazendo tencao de hospedar ali a familia. Mas chegando aos juazeiros, encontrou os meninos adormecidos e nao quis acorda-los. Foi apanhar gravetos, trouxe do chiqueiro das cabras uma bracada de madeira meio roida pelo cupim, arrancou touceiras de macambira, arrumou tudo para a fogueira.

Nesse ponto Baleia arrebitou as orelhas, arregacou as ventas, sentiu cheiro de preas, farejou um minuto, localizouos no morro proximo e saiu correndo.

Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se uma sombra passava por cima do monte. Tocou o braco da mulher, apontou o ceu, ficaram os dois algum tempo aguentando a claridade do sol. Enxugaram as lagrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrivel, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente.

Entrava dia e saia dia. As noites cobriam a terra de chofre.

A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidoes do poente.

Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgracas e os seus pavores. O coracao de Fabiano bateu junto do coracao de Sinha Vitoria, um abraco cansado aproximou os farrapos que os cobriam.

Resistiram a fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem animo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperanca que os alentava.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um prea. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as palpebras, afastando pedacos de sonho. Sinha Vitoria beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.

Aquilo era caca bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo.

E Fabiano queria viver. Olhou o ceu com resolucao. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com seguranca, esquecendo as rachaduras’ que lhe estragavam os dedos e os calcanhares.

Sinha Vitoria remexeu no bau, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um espeto. Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro.

Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama.

Cavou a areia com as unhas, esperou que a agua marejasse e, debrucando-se no chao, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. Uma, duas, tres, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no ceu. O poente cobria-se de cirros – e uma alegria doida enchia o coracao de Fabiano.

Pensou na familia, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer nao se diferencava muito da bolandeira de seu Tomas. Agora, deitado, apertava a barriga e batia os dentes. Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomas? Olhou o ceu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua surgiu, grande e branca. Certamente ia chover.

Seu Tomas fugira tambem, com a seca, a bolandeira estava parada. E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Nao sabia porque, mas era. Uma, duas, tres, havia mais de cinco estrelas no ceu. A lua estava cercada de um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a . solidao. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, Sinha Vitoria vestiria saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde.

Lembrou-se dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam la em cima, debaixo de um juazeiro, com sede. Lembrou-se do prea morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para nao derramar a agua salobra. Subiu a ladeira. A aragem morna acudia os xiquexiques e os mandacarus. Uma palpitacao nova.

Sentiu um arrepio na catinga, uma ressurreicao de garranchos e folhas secas.

Chegou. Pos a cuia no chao, escorou-a com pedras, matou a sede da familia. Em seguida acocorou-se, remexeu o aio, tirou o fuzil, acendeu as raizes de macambira, soprou-as, inchando as bochechas cavadas. Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiulhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos depois o prea torcia-se e chiava no espeto de alecrim.

Eram todos felizes. Sinha Vitoria vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinha Vitoria remocaria, as nadegas bambas de Sinha Vitoria engrossariam, a roupa encarnada de Sinha Vitoria provocaria a inveja das outras caboclas.

A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmorecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas, tres, agora havia poucas estrelas no ceu. Ali perto a nuvem escurecia o morro.

A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo.

Os trocos minguados ajuntavam-se no chao: a espingarda de pederneira, o aio, a cuia de agua o bau de folha pintada. A fogueira estalava. O prea chiava em cima das brasas.

Uma ressurreicao. As cores da saude voltariam a cara triste de Sinha Vitoria. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores.

A catinga ficaria verde.

Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como nao podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciencia a hora de mastigar os ossos.

Depois iria dormir.

Capitulo II – Fabiano FABIANO curou no rasto a bicheira da novilha raposa. Levava no aio um frasco de creolina, e se houvesse achado o animal, teria feito o curativo ordinario. Nao o encontrou, mas supos distinguir as pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou dois gravetos no chao e rezou. Se o bicho nao estivesse morto, voltaria para o curral, que a oracao era forte.

Cumprida a obrigacao, Fabiano levantou-se com a consciencia tranquila e marchou para casa. Chegou-se a beira do rio. A areia fofa cansava-o, mas ali, na lama seca, as alpercatas dele faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos que lhe pesavam no ombro, pendurados em correias, batiam surdos. A cabeca inclinada, o espinhaco curvo, agitava os bracos para a direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inuteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avo e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as maos. E os filhos ja comecavam a reproduzir o gesto hereditario.

Chape-chape. Os tres pares de alpercatas batiam na lama rachada, seca e branca por cima, preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas, balancava.

A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregacado, procurando na catinga a novilha raposa.

Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a familia morrendo de fome, comendo raizes. Caira no fim do patio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado a camarinha escura, pareciam ratos – e a lembranca dos sofrimentos passados esmorecera.

Pisou com firmeza no chao gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aio um pedaco de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pos-se a fumar regalado.

– Fabiano, voce e um homem, exclamou em voz alta.

Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar so. E, pensando bem, ele nao era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presenca dos brancos e julgava-se cabra.

Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguem tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: – Voce e um bicho, Fabiano.

Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.

Chegara naquela situacao medonha – e ali estava, forte, ate gordo, fumando o seu cigarro de palha.

– Um bicho, Fabiano.

Era. Apossara-se da casa porque nao tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucuna. Viera a trovoada.

E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus prestimos, resmungando, cocando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrao aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.

Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguem o tiraria dali.

Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raizes, estava plantado. Olhou as quipas, os mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraunas. Ele, Sinha Vitoria, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados a terra.

Chape-chape. As alpercatas batiam no chao rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os bracos moviam-se desengoncados. Parecia um macaco.

Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, a toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hospede. Sim senhor, hospede que demorava demais, tomava amizade a casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.

Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as maos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a caricia, enterneceu-se – Voce e um bicho, Baleia.

Vivia longe dos homens, so se dava bem com animais. Os seus pes duros quebravam espinhos e nao sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele.

E falava uma linguagem cantada, monossilabica e gutural, que o companheiro entendia. A pe, nao se aguentava bem.

Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. As vezes utilizava nas relacoes com as pessoas a mesma lingua com que se dirigia aos brutos – exclamacoes, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e dificeis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vao, mas sabia que elas eram inuteis e talvez perigosas.

Uma das criancas aproximou-se, perguntou-lhe qualquer coisa. Fabiano parou, franziu a testa, esperou de boca aberta a repeticao da pergunta. Nao percebendo o que o filho desejava, repreendeu-o. O menino estava ficando muito curioso, muito enxerido. Se continuasse assim, metido com o que nao era da conta dele, como iria acabar? Repeliu-o, vexado: – Esses capetas tem ideias …

Nao completou o pensamento, mas achou que aquilo estava errado. Tentou recordar o seu tempo de infancia, viu-se miudo, enfezado, a camiSinha encardida e rota acompanhando o pai no servico do campo, interrogando-o debalde. Chamou os filhos, falou de coisas imediatas, procurou interessa-los.

Bateu palmas – Eco! eco! A cachorra Baleia saiu correndo entre os alastrados e quipas, farejando a novilha raposa. Depois de alguns minutos voltou desanimada, triste, o rabo murcho. Fabiano consolou-a, afagou-a. Queria apenas dar um ensinamento aos meninos. Era bom eles saberem que deviam proceder assim.

Alargou o passo, deixou a lama seca da beira do rio, chegou a ladeira que levava ao patio. Ia inquieto, uma sombra no olho azulado. Era como se na sua vida houvesse aparecido um buraco. Necessitava falar com a mulher, afastar aquela perturbacao, encher os cestos, dar pedacos de mandacaru ao gado. Felizmente a novilha estava curada com reza. Se morresse, nao seria por culpa dele.

– Eco! eco! Baleia voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As criancas divertiram-se, animaram-se, e o espirito de Fabiano se destoldou. Aquilo e que estava certo. Baleia nao podia achar a novilha num banco de macambira, mas era conveniente que os meninos se acostumassem ao exercicio facil – bater palmas, expandir-se em gritaria, seguindo os movimentos do animal. A cachorra tornou a voltar, a lingua pendurada, arquejando. Fabiano tomou a frente do grupo, satisfeito com a licao, pensando na egua que ia montar, uma egua que nao fora ferrada nem levara sela. Haveria na catinga um barulho medonho.

Agora queria entender-se com Sinha Vitoria a respeito da educacao dos pequenos. Certamente ela nao era culpada.

Entregue aos arranjos da casa, regando os craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no barreiro, enlameados como porcos. E eles estavam perguntadores, insuportaveis. Fabiano dava-se bem com a ignorancia. Tinha o direito de saber? Tinha? Nao tinha.

– Esta ai.

Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.

Lembrou-se de seu Tomas da bolandeira. Dos homens do sertao o mais arrasado era seu Tomas da bolandeira. Porque? So se era porque lia demais.

Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: – “seu Tomas, vossemece nao regula. Para que tanto papel? Quando a desgraca chegar, seu Tomas se estrepa, igualzinho aos outros.” Pois viera a seca, o pobre do velho, tao bom e tao lido, perdera tudo, andava por ai, mole. Talvez ja tivesse dado o couro as varas, que pessoa como ele nao podia aguentar verao puxado.

Certamente aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu Tomas da bolandeira passava, amarelo, sisudo, corcunda, montado num cavalo cego, pe aqui, pe acola, Fabiano e outros semelhantes descobriam-se. E seu Tomas respondia tocando na beira do chapeu de palha, virava-se para um lado e para outro, abrindo muito as pernas calcadas em botas pretas com remendos vermelhos.

Em horas de maluqueira Fabiano desejava imita-lo: dizia palavras dificeis, truncando tudo, o convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele nao tinha nascido para falar certo.

Seu Tomas da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas nao sabia mandar: pedia.

Esquisitice um homem remediado ser cortes. Ate o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele.

Ah! Quem disse que nao obedeciam? Os outros brancos eram diferentes. O patrao atual, por exemplo, berrava sem precisao. Quase nunca vinha a fazenda, so botava os pes nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o servico ia bem, mas o proprietario descompunha o vaqueiro.

Natural. Descompunha porque podia descompor, o Fabiano ouvia as descomposturas com o chapeu de couro debaixo do braco, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava nao emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo so queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha duvida? Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos esperasse. Ao ser contratado, recebera o cavalo de fabrica, perneiras, gibao, guarda-peito e sapatoes de couro cru, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o substituisse.

Sinha Vitoria desejava possuir uma cama igual a de seu Tomas da bolandeira. Doidice. Nao dizia nada para nao contraria-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrao os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau.

Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, nao ficaria planta verde. Arrepiou-se.

Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo – anos bons misturados com anos ruins. A desgraca estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar.

Ele marchando para casa, trepando a ladeira, espalhando seixos com as alpercatas – ela se avizinhando a galope, com vontade de mata-lo.

Virou o rosto para fugir a curiosidade dos filhos, benzeuse.

Nao queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante como seu Tomas da bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ela, sentir-se com forca para brigar com ela e vence-la.

Nao queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeca levantada, seria homem.

– Um homem, Fabiano.

Cocou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Nao, provavelmente nao seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma res na fazenda alheia.

Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que nao se acabaria tao cedo. Passara dias sem comer, apertando o cinturao, encolhendo o estomago. Viveria muitos anos, viveria um seculo,. Mas se morresse de fome ou nas pontas de um touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos.

Tudo seco em redor. E o patrao era seco tambem, arreliado, exigente e ladrao, espinhoso como um pe de mandacaru.

Indispensavel os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se nao calejassem, teriam o fim de seu Tomas da bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto,livro, tanto jornal? Morrera por causa do, estomago doente e das pernas fracas.

Um dia… Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito. .. Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Nao sabia. Seu Tomas da bolandeira e que devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos.

Agora tinham obrigacao de comportar-se como gente da laia deles.

Alcancou o patio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas pretas, deixou atras os juazeiros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o carro de bois. As alpercatas dos pequenos batiam no chao branco e liso. A cachorra Baleia trotava arquejando, a boca aberta.

Aquela hora Sinha Vitoria devia estar na cozinha, acocorada junto a trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, preparando a janta. Fabiano sentiu vontade de comer. Depois da comida, falaria com Sinha Vitoria a respeito da educacao dos meninos.

Capitulo III – Cadeia FABIANO tinha ido a feira da cidade comprar mantimentos.

Precisava sal, farinha, feijao e rapaduras. Sinha Vitoria pedira alem disso uma garrafa de querosene e um corte de chita vermelha. Mas o querosene de seu Inacio estava misturado com agua, e a chita da amostra era cara demais.

Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano regateando um tostao em covado, receoso de ser enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfianca dava-lhe gestos obliquos. A tarde puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo de que todos os caixeiros furtavam no preco e na medida: amarrou as notas na ponta do lenco, meteu-as na algibeira, dirigiu-se a bodega de seu Inacio, onde guardara os picuas.

Ai certificou-se novamente de que o querosene estava batizado e decidiu beber uma pinga, pois sentia calor. Seu Inacio trouxe a garrafa de aguardente. Fabiano virou o copo de um trago, cuspiu, limpou os beicos a manga, contraiu o rosto. Ia jurar que a cachaca tinha agua. Por que seria que seu Inacio botava agua em tudo? perguntou mentalmente.

Animou-se e interrogou o bodegueiro: – Por que e que vossemece bota agua em tudo? Seu Inacio fingiu nao ouvir. E Fabiano foi sentar-se na calcada, resolvido a conversar. O vocabulario dele era pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressoes de seu Tomas da bolandeira. Pobre de seu Tomas. Um homem tao direito sumir-se como cambembe, andar por este mundo de trouxa nas costas. Seu Tomas era pessoa de consideracao e votava. Quem diria? Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano: – Como e, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um la dentro? Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomas da bolandeira: – Isto e. Vamos e nao vamos. Quer dizer Enfim, contanto, etc. E conforme.

Levantou-se e caminhou atras do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substancia, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia.

Atravessaram a bodega, a corredor, desembocaram numa sala onde varios tipos jogavam cartas em cima de uma esteira.

– Desafasta, ordenou o policia. Aqui tem gente.

Os jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se enrascou. Fabiano encalacrou-se tambem.

Sinha Vitoria ia danar-se, e com razao.

– Bem feito.

Ergueu-se furioso, saiu da sala, trombudo. – Espera ai, paisano, gritou o amarelo.

Fabiano, as orelhas ardendo, nao se virou. Foi pedir a seu Inacio os trocos que ele havia guardado, vestiu o gibao, passou as correias dos alforjes no ombro, ganhou a rua.

Debaixo do jatoba do quadro taramelou com Sinha Rita louceira, sem se atrever a voltar para casa. Que desculpa iria apresentar a Sinha Vitoria? Forjava uma explicacao dificil. Perdera o embrulho da fazenda, pagara na botica uma garrafada para Sinha Rita louceira. Atrapalhava-se tinha imaginacao fraca e nao sabia mentir. Nas invencoes com que pretendia justificar-se a figura de Sinha Rita aparecia sempre, e isto o desgostava. Arruinaria uma historia sem ela, diria que haviam furtado o cobre da chita. Pois nao era? Os parceiros o tinham pelado no trinta-e-um. Mas nao devia mencionar o jogo. Contaria simplesmente que o lenco das notas ficara no bolso do gibao e levara sumico. Falaria assim: – “Comprei os mantimentos. Botei o gibao e os alforjes na bodega de seu Inacio. Encontrei um soldado amarelo” Nao, nao encontrara ninguem. Atrapalhava-se de novo. Sentia desejo de referir-se ao soldado, um conhecido velho, amigo de infancia.

A mulher se incharia com a noticia. Talvez nao se inchasse.

Era atilada, notaria a pabulagem. Pois estava acabado. O dinheiro fugira do bolso do gibao, na venda de seu Inacio.

Natural.

Repetia que era natural quando alguem lhe deu um empurrao, atirou-o contra o jatoba. A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminacao, trepando numa escada, acendia os lampioes. A estrela papa-ceia branqueou por cima da torre da igreja; o doutor juiz de direito foi brilhar na porta da farmacia; o cobrador da prefeitura passou coxeando, com taloes de recibos debaixo do braco; a carroca de lixo rolou na praca recolhendo cascas de frutas; seu vigario saiu de casa e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; Sinha Rita louceira retirou-se.

Fabiano estremeceu. Chegaria a fazenda noite fechada.

Entretido com o diabo do jogo, tonto de aguardente, deixara o tempo correr. E nao levava o querosene, ia-se alumiar durante a semana com pedacos de facheiro. Aprumou-se, disposto a viajar. Outro empurrao desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. Mexeu-se para sacudir o chapeu de couro nas ventas do agressor. Com uma pancada certa do chapeu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e as pessoas em roda e moderou a indignacao. Na catinga ele as vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se.

– Vossemece nao tem direito de provocar os que estao quietos.

– Desafasta, bradou o policia.

E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.

– Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemece esbagacar os seus possuidos no jogo? Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questao. Nao achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiuna em cima da alpercata do vaqueiro.

– Isso nao se faz, moco, protestou Fabiano. Estou quieto.

Veja que mole e quente e pe de gente.

O outro continuou a pisar com forca. Fabiano impacientou-se e xingou a mae dele. Ai o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatoba.

– Toca pra frente, berrou o cabo.

Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusacao medonha e nao se defendeu.

– Esta certo, disse o cabo. Faca lombo, paisano.

Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lamina de facao bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanao que o arremessou para as trevas do carcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueuse atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando – Hum! hum! Porque tinham feito aquilo? Era o que nao podia saber.

Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzue sem motivo. Achava-se tao perturbado que nem acreditava naquela desgraca. Tinham-lhe caido todos em cima, de supetao, como uns condenados. Assim um homem nao podia resistir.

– Bem, bem.

Passou as maos nas costas e no peito, sentiu-se moido, os olhos azulados brilharam como olhos de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido. Mas era um caso tao esquisito que instantes depois balancava a cabeca, duvidando, apesar das machucaduras.

Ora, o soldado amarelo … Sim, havia um amarelo, criatura desgracada que ele, Fabiano, desmancharia com um tabefe. Nao tinha desmanchado por causa dos homens que mandavam. Cuspiu, com desprezo: – Safado, mofino, escarro de gente. Por mor de uma peste daquela, maltratava-se um pai de familia. Pensou na mulher, nos filhos e e figura.

na cachorrinha. Engatinhando, procurou os alforjes, que haviam caido no chao, certificou-se de que os objetos comprados na feira estavam todos ali. Podia ter-se perdido alguma coisa na confusao. Lembrou-se de uma fazenda vista na ultima das lojas que visitara. Bonita, encorpada, larga, vermelha e com ramagens, exatamente o que Sinha Vitoria desejava. Encolhendo um tostao em covado, por sovinice, acabava o dia daquele jeito. Tornou a mexer nos alforjes.

Sinha Vitoria devia estar desassossegada com a demora dele. A casa no escuro, os meninos em redor do fogo, a cachorra Baleia vigiando. Com certeza haviam fechado a porta da frente.

Estirou as pernas, encostou as carnes doidas ao muro. Se lhe tivessem dado tempo, ele teria explicado tudo direitinho.

Mas pegado de surpresa, embatucara. Quem nao ficaria azuretado com semelhante desproposito? Nao queria capacitarse de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Nao era senao isso.

Entao porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, da-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violencias, a todas.

as injusticas. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipo de boi oferecia consolacoes: — “Tenha paciencia. Apanhar do governo nao e desfeita.&8221; Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo? – An! E, por mais que forcejasse, nao se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, nao podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, alem da grade,. era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo nao devia consentir tao grande safadeza.

Afinal para que serviam os soldados amarelos? Deu um pontape na parede, gritou enfurecido. Para que serviam os soldados amarelos? Os outros presos remexeram-se, o carcereiro chegou a grade, e Fabiano acalmou-se: – Bem, bem. Nao ha nada nao.

Havia muitas coisas. Ele nao podia explica-las, mas havia.

Fossem perguntar a seu Tomas da bolandeira, que lia livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomas da bolandeira contaria aquela historia. Ele, Fabiano, um bruto, nao contava nada. So queria voltar para junto de Sinha Vitoria, deitar-se na cama de varas. Porque vinham bulir com um homem que so queria descansar? Deviam bulir com outros.

– An! Estava tudo errado.

– An! Tinham la coragem? Imaginou o soldado amarelo atirando-se a um cangaceiro na catinga. Tinha graca. Nao dava um caldo.

Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de pedras. Sinha Vitoria punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal nao se tinha perdido. Bem. Sinha Vitoria provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da familia, sabida como gente. Naquela viagem arrastada, em tempo de seca braba, quando estavam todos morrendo de fome, a cadelinha tinha trazido para eles um prea. Ia envelhecendo, coitada.

Sinha Vitoria, inquieta, com certeza fora muitas vezes escutar na porta da frente. O galo batia as asas, os bichos bodejavam no chiqueiro, os chocalhos das vacas tiniam.

Se nao fosse isso … An! Em que estava pensando? Meteu os olhos pela grade da rua. Chi! que pretume! O lampiao da esquina se apagara, provavelmente o homem da escada so botara nele meio quarteirao de querosene. Pobre de Sinha Vitoria, cheia de cuidados, na escuridao. Os meninos sentados perto do lume, a panela chiando na trempe de pedras, Baleia atenta, o candeeiro de folha pendurado na ponta de uma vara que saia da parede.

Estava tao cansado, tao machucado, que ia quase adormecendo no meio daquela desgraca. Havia ali um bebedo tresvariando em voz alta e alguns homens agachados em redor de um fogo que enchia o carcere de fumaca. Discutiam e queixavam-se da lenha molhada.

Fabiano cochilava, a cabeca pesada inclinava-se para o peito e levantava-se. Devia ter comprado o querosene de seu Inacio. A mulher e os meninos aguentando fumaca nos olhos.

Acordou sobressaltado. Pois nao estava misturando as pessoas, desatinando? Talvez fosse efeito da cachaca. Nao era: tinha bebido um copo, tanto assim, quatro dedos. Se lhe dessem tempo, contaria o que se passara.

Ouviu o falatorio desconexo do bebedo, caiu numa indecisao dolorosa. Ele tambem dizia palavras sem sentido, conversava a toa. Mas irou-se com a comparacao, deu marradas na parede.

Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, nao sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Entao mete-se um homem na cadeia porque ele nao sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais – aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa? Se nao fosse aquilo … Nem sabia. O fio da ideia cresceu, engrossou – e partiu-se. Dificil pensar. Vivia tao agarrado aos bichos. .. Nunca vira uma escola. Por isso nao conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demonio daquela historia entrava-lhe na cabeca e saia. Era para um cristao endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entende-la. Impossivel, so sabia lidar com bichos.

Enfim, contanto … Seu Tomas daria informacoes. Fossem perguntar a ele. Homem bom, seu Tomas da bolandeira, homem aprendido. Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto.

O que desejava … An! Esquecia-se. Agora se recordava da viagem que tinha feito pelo sertao a cair de fome. As pernas dos meninos eram finas como bilros, Sinha Vitoria tropicava debaixo do bau de trens. Na beira do rio haviam comido o papagaio, que nao sabia falar. Necessidade.

Fabiano tambem nao sabia falar. As vezes largava nomes arrevesados, por embromacao. Via perfeitamente que tudo era besteira. Nao podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse … Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas.

Bateu na cabeca, apertou-a. Que faziam aqueles sujeitos acocorados em torno do fogo? Que dizia aquele bebedo que se esgoelava como um doido, gastando folego a toa? Sentiu vontade de gritar, de anunciar muito alto que eles nao prestavam para nada. Ouviu uma voz fina. Alguem no xadrez das mulheres chorava e arrenegava as pulgas. Rapariga da vida, certamente de porta aberta. Essa tambem nao prestava para nada. Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao doutor juiz de direito, ao delegado, a seu vigario e aos cobradores da prefeitura que ali dentro ninguem prestava para nada. Ele, os homens acocorados, o bebedo, a mulher das pulgas, tudo era uma lastima, so servia para aguentar facao.

Era o que ele queria dizer.

E havia tambem aquele fogo-corredor que ia e vinha no espirito dele. Sim, havia aquilo. Como era? Precisava descansar. Estava com a testa doendo, provavelmente em consequencia de uma pancada de cabo de facao. E doia-lhe. a cabeca toda, parecia-lhe que tinha fogo por dentro, parecialhe que tinha nos miolos uma panela fervendo.

Pobre de Sinha Vitoria, inquieta e sossegando os meninos.

Baleia vigiando, perto da trempe. Se nao fossem eles …

Agora Fabiano conseguia arranjar as ideias. O que o segurava era a familia. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourao, suportando ferro quente. Se nao fosse isso, um soldado amarelo nao lhe pisava o pe nao. O que lhe amolecia o corpo era a lembranca da mulher e dos filhos. Sem aqueles camboes pesados, nao envergaria o espinhaco nao, sairia dali como onca e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pe de pau no soldado amarelo. Nao. O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mao. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo. Nao ficaria um para semente. Era a ideia que lhe fervia na cabeca. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.

Fabiano gritou, assustando o bebedo, os tipos que abanavam o fogo, o carcereiro e a mulher que se queixava das pulgas.

Tinha aqueles camboes pendurados ao pescoco. Deveria continuar a arrasta-los? Sinha Vitoria dormia mal na cama de varas. Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrao invisivel, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo.

Capitulo IV – Sinha Vitoria ACOCORADA junto as pedras que serviam de trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, Sinha Vitoria soprava o fogo. Uma nuvem de cinza voou dos ticoes e cobriu-lhe a cara, a fumaca inundou-lhe os olhos, o rosario de contas brancas e azuis desprendeu-se do cabecao e bateu na panela. Sinha Vitoria limpou as lagrimas com as costas das maos, encarquilhou as palpebras, meteu o rosario no seio e continuou a soprar com vontade, enchendo muito as bochechas.

Labaredas lamberam as achas de angico, esmoreceram, tornaram a levantar-se e espalharam-se entre as pedras. Sinha Vitoria aprumou o espinhaco e agitou o abano. Uma chuva de faiscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanacoes da comida.

Sentindo a deslocacao do ar e a crepitacao dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pelo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chao. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenomeno e desejou expressar a sua admiracao a dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas Sinha Vitoria nao queria saber de elogios.

– Arreda! Deu um pontape na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionarios.

Sinha Vitoria tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de proposito, dissera ao marido umas inconveniencias a respeito da cama de varas. Fabiano, que nao esperava semelhante desatino, apenas grunhira: – “Hum! hum!” E amunhecara, porque realmente mulher e bicho dificil de entender, deitara-se na rede e pegara no sono. Sinha Vitoria andara para cima e para baixo, procurando em que desabafar. Como achasse tudo em ordem, queixara-se da vida. E agora vingava-se em Baleia, dando-lhe um pontape.

Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu os meninos, entretidos no barreiro, sujos de lama, fabricando bois de barro, que secavam ao sol, sob o pe de turco, e nao encontrou motivo para repreende-los. Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais agradavel dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas.

Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a principio concordara com ela, mastigara calculos, tudo errado. Tanto para o couro, tanto para a armacao. Bem.

Poderiam adquirir o movel necessario economizando na roupa e no querosene. Sinha Vitoria respondera que isso era impossivel, porque eles vestiam mal, as criancas andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, nao se acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando cortar outras despesas. Como nao se entendessem, Sinha Vitoria aludira, bastante azeda, ao dinheiro gasto pelo marido na feira, com jogo e cachaca. Ressentido, Fabiano condenara os sapatos de verniz que ela usava nas festas, caros e inuteis. Calcada naquilo, tropega, mexia-se como um papagaio, era ridicula. Sinha Vitoria ofendera-se gravemente com a comparacao, e se nao fosse o respeito que Fabiano lhe inspirava, teria despropositado. Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal, tropecava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo.

Devia ser ridicula, mas a opiniao de Fabiano entristecera-a muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores, a cama de novo lhe aparecera no horizonte acanhado.

Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingivel e misturava-a as obrigacoes da casa. Foi a sala, passou por baixo do punho da rede onde Fabiano roncava, tirou do carito o cachimbo e uma pele de fumo, saiu para o copiar. O chocalho da vaca laranja tilintou para os lados do rio. Fabiano era capaz de se ter esquecido de curar a vaca laranja.

acorda-lo e perguntar, mas distraiu-se olhando os xiquexiques e os mandacarus que avultavam na campina.

Um mormaco levantava-se da terra queimada. Estremeceu lembrando-se da seca, o rosto moreno desbotou, os olhos pretos arregalaram-se. Diligenciou afastar a recordacao, temendo que ela virasse realidade. Rezou baixinho uma avemaria, ja tranquila, a atencao desviada para um buraco que havia na cerca do chiqueiro das cabras. Esfarelou a pele de fumo entre as palmas das maos grossas, encheu o cachimbo de barro, foi consertar a cerca. Voltou, circulou a casa atravessando o cercadinho do oitao, entrou na cozinha.

– E capaz de Fabiano ter-se esquecido da vaca laranja.

Agachou-se, aticou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pos-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associacao, relacionou esse ato com a lembranca da cama. Se o cuspo alcancasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se – e nao conseguiu o que esperava.

Fez varias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo nao valia.

Aproximou-se do canto onde o pote se erguia numa forquilha de tres pontas, bebeu um caneco de agua. Agua salobra.

– Iche! Isto lhe sugeriu duas imagens quase simultaneas, que se confundiram e neutralizaram: panelas e bebedouros. Encostou o fura-bolos a testa, indecisa. Em que estava pensando? Olhou o chao, concentrada, procurando recordar-se, viu os pes chatos, largos, os dedos separados. De repente as duas ideias voltaram: o bebedouro secava, a panela nao tinha sido temperada.

Foi levantar o testo, recebeu na cara vermelha uma baforada de vapor. Nao e que ia deixando a comida esturrar? Pos agua nela e remexeu-a com a quenga preta de coco. Em seguida provou o caldo. Insosso, nem parecia boia de cristao. Chegouse ao jirau onde se guardavam cumbucos e mantas de carne, abriu a mochila de sal, tirou um punhado, jogou-o na panela.

Agora pensava no bebedouro, onde havia um liquido escuro que bicho enjeitava. So tinha medo da seca.

Olhou de novo os pes espalmados. Efetivamente nao se acostumava a calcar sapatos, mas o remoque de Fabiano molestara-a. Pes de papagaio. Isso mesmo, sem duvida, matuto anda assim. Para que fazer vergonha a gente? Arreliava-se com a comparacao.

Pobre do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balancava em cima do bau de folha. Gaguejava: – “Meu louro.” Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como Baleia. Coitado. Sinha Vitoria nem queria lembrar-se daquilo. Esquecera a vida antiga, era como se tivesse nascido depois que chegara a fazenda. A referencia aos sapatos abrira-lhe uma ferida – e a viagem reaparecera. As alpercatas dela tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de fome, carregava o filho mais novo, o bau e a gaiola do papagaio. Fabiano era ruim.

– Mal-agradecido.

Olhou os pes novamente. Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade, para sustento da familia. Naquele momento ele estava zangado, fitava na cachorrinha as pupilas serias e caminhava aos tombos, como os matutos em dias de festa. Para que Fabiano fora despertar-lhe aquela recordacao? Chegou a porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras.

Suspirou. Deus nao havia de permitir outra desgraca. Agitou a cabeca e procurou ocupacoes para entreter-se. Tomou a cuia grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu de agua o caco das galinhas, endireitou o poleiro. Em seguida foi ao quintalzinho regar os craveiros e as panelas de losna. E botou os filhos para dentro de casa, que tinham barro ate nas meninas dos olhos. Repreendeu-os: – Safadinhos! porcos! sujos como… Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios.

Os pequenos fugiram, foram enrolar-se na esteira da sala, por baixo do carito, e Sinha Vitoria voltou para junto da trempe, reacendeu o cachimbo. A panela chiava; um vento morno e empoeirado sacudia as teias de aranha e as cortinas de pucuma do teto; Baleia, sob o jirau, cocava-se com os dentes e pegava moscas. Ouviam-se distintamente os roncos de Fabiano, compassados, e o ritmo deles influiu nas ideias de Sinha Vitoria. Fabiano roncava com seguranca. Provavelmente nao havia perigo, a seca devia estar longe.

Outra vez Sinha Vitoria pos-se a sonhar com a cama de lastro de couro. Mas o sonho se ligava a recordacao do papagaio, e foi-lhe preciso um grande esforco para isolar o objeto de seu desejo.

Tudo ali era estavel, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que estalava, o toque dos chocalhos, ate o zumbido das moscas davam-lhe sensacao de firmeza e repouso. Tinha de passar a vida inteira dormindo em varas? Bem no meio do catre havia um no, um calombo grosso na madeira. E ela se encolhia num canto, o marido no outro, nao podiam estirar-se no centro. A principio nao se incomodara. Bamba, moida de trabalhos, deitar-se-ia em pregos. Viera, porem, um comeco de prosperidade. Corriam, engordavam. Nao possuiam nada: se retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o bau de folha e trocas miudos. Mas iam vivendo, na graca de Deus, o patrao confiava neles – e eram quase felizes. So faltava uma cama.

Era o que aperreava Sinha Vitoria. Como ja nao se estazava em servicos pesados, gastava um pedaco da noite parafusando. E o costume de encafuar-se ao escurecer nao estava certo, que ninguem e galinha.

Nesse ponto as ideias de Sinha Vitoria seguiram outro caminho, que pouco depois foi desembocar no primeiro. Nao era que a raposa tinha passado no rabo a galinha pedres? Logo a pedres, a mais gorda. Decidiu armar um mundeu perto do poleiro. Encolerizou-se. A raposa pagaria a galinha pedres.

– Ladrona.

Pouco a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano eram insuportaveis. Nao havia homem que roncasse tanto. Era bom levantar-se e procurar uma vara para substituir aquele pau amaldicoado que nao deixava uma pessoa virar-se. Porque nao tinham removido aquela vara incomoda? Suspirou. Nao conseguiam tomar resolucao. Paciencia. Era melhor esquecer o no e pensar numa cama igual a de seu Tomas da bolandeira. Seu Tomas tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enxo, com as juntas abertas a formao, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem esticado e bem pregado. Ali podia um cristao estirar os ossos.

Se vendesse as galinhas e a marra? Infelizmente a excomungada raposa tinha comido a pedres, a mais gorda.

Precisava dar uma licao a raposa. Ia armar o mundeu junto do poleiro e quebrar o espinhaco daquela sem-vergonha.

Ergueu-se, foi a camarinha procurar qualquer coisa, voltou desanimada e esquecida. Onde tinha a cabeca? Sentou-se na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia as galinhas e a marra, deixaria de comprar querosene. Inutil consultar Fabiano, que sempre se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava logo – e ela franzia a testa, espantada; certa de que o marido se satisfazia com a ideia de possuir uma cama. Sinha Vitoria desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual a de seu Tomas da bolandeira.

Capitulo V – O Menino Mais Novo A IDEIA surgiu-lhe na tarde em que Fabiano botou os arreios na egua alaza e entrou a amansa-la. Nao era propriamente ideia: era o desejo vago de realizar qualquer acao notavel que espantasse o irmao e a cachorra Baleia.

Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiracao.

Metido nos couros, de perneiras, gibao e guarda-peito, era a criatura mais importante do mundo. As rosetas das esporas dele tilintavam no patio; as abas do chapeu, jogado para tras, preso debaixo do queixo pela correia, aumentavam-lhe o rosto queimado, faziam-lhe um circulo enorme em torno da cabeca.

O animal estava selado, os estribos amarrados na garupa, e Sinha Vitoria subjugava-o agarrando-lhe os beicos. O vaqueiro apertou a cilha e posse a andar em redor, fiscalizando os arranjos, lento. Sem se apressar, livrou-se de um coice : virou o corpo, os cascos da egua passaram-lhe rente ao peito, raspando o gibao. Em seguida Fabiano subiu ao copiar, saltou na sela, a mulher * recuou – e foi um redemoinho na catinga.

Trepado na porteira do curral, o menino mais novo torcia as maos suadas, estirava-se para ver a nuvem de poeira que toldava as imburanas. Ficou assim uma eternidade, cheio de alegria e medo, ate que a egua voltou e comecou a pular furiosamente no patio, como se tivesse o diabo no corpo. De repente a cilha rebentou e houve um desmoronamento. O pequeno deu um grito, ia tombar da porteira. Mas sossegou logo.

Fabiano tinha caido em pe e recolhia-se banzeiro e cambaio, os arreios no braco. Os estribos, soltos na carreira desesperada, batiam um no outro, as rosetas das esporas tiniam.

Sinha Vitoria cachimbava tranquila no banco do copiar, catando lendeas no filho mais velho. Nao se conformando com semelhante indiferenca depois da facanha do pai, o menino foi acordar Baleia, que preguicava, a barriguinha vermelha descoberta, sem-vergonha. A cachorra abriu um olho, encostou a cabeca a pedra de amolar, bocejou e pegou no sono de novo.

Julgou-a estupida e egoista, deixou-a, indignado, foi puxar a manga do vestido da mae, desejando comunicar-se com ela.

Sinha Vitoria soltou uma exclamacao de aborrecimento, e, como o pirralho insistisse, deu-lhe um cascudo.

Retirou-se zangado, encostou-se num esteio do alpendre, achando o mundo todo ruim e insensato. Dirigiu-se ao chiqueiro, onde os bichos bodejavam, fungando, erguendo os focinhos franzidos. Aquilo era tao engracado que o egoismo de Baleia e o mau humor de Sinha Vitoria desapareceram. A admiracao a Fabiano e que ia ficando maior.

Esqueceu desentendimentos e grosserias, um entusiasmo verdadeiro encheu-lhe a alma pequenina. Apesar de ter medo do pai, chegou-se a ele devagar, esfregou-se nas perneiras, tocou as abas do gibao. As perneiras, o gibao, o guardapeito, as esporas e o barbicacho do chapeu maravilhavam-no.

Fabiano desviou-o desatento, entrou na sala e foi despojarse daquela grandeza.

O menino deitou-se na esteira, enrolou-se e fechou os olhos. Fabiano era terrivel. No chao, despidos os couros, reduzia-se bastante, mas no lombo da egua alaza era terrivel.

Dormiu e sonhou. Um pe-de-vento cobria de poeira a folhagem das imburanas, Sinha Vitoria catava piolhos no filho mais velho. Baleia descansava a cabeca na pedra de amolar.

No dia seguinte essas imagens se varreram completamente. Os juazeiros do fim do patio estavam escuros, destoavam das outras arvores. Porque seria? Aproximou-se do chiqueiro das cabras, viu o bode velho fazendo um barulho feio com as ventas arregacadas, lembrou-se do acontecimento da vespera. Encaminhou-se aos juazeiros, curvado, espiando os rastos da egua alaza.

A hora do almoco Sinha Vitoria repreendeu-o: – Este capeta anda leso.

Ergueu-se, deixou_ a cozinha, foi contemplar as perneiras, o guarda-peito e o gibao pendurados num torno da sala. Dai marchou para o chiqueiro – e o projeto nasceu.

Arredou-se, fez tencao de entender-se com alguem, mas ignorava o que pretendia dizer. A egua alaza e o bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se tambem.

Rodeou o chiqueiro, mexendo-se como um urubu, arremedando Fabiano.

A necessidade de consultar o irmao apareceu e desapareceu.

O outro iria rir-se, mangar dele, avisar Sinha Vitoria. Teve medo do riso e da mangacao. Se falasse naquilo, Sinha Vitoria lhe puxaria as orelhas.

Evidentemente ele nao era Fabiano. Mas se fosse? Precisava mostrar que podia ser Fabiano. Conversando, talvez conseguisse explicar-se.

Pos-se a caminhar, banzeiro, ate que o irmao e Baleia levaram as cabras ao bebedouro. A porteira abriu-se, um fartum espalhou-se pelos arredores, os chocalhos soaram, a camiSinha de algodao atravessou o patio, contornou as pedras onde se atiravam cobras mortas, passou os juazeiros, desceu a ladeira, alcancou a margem do rio.

Agora as cabras se empurravam metendo os focinhos na agua, os cornos entrechocavam-se. Baleia, atarefada, latia correndo.

Trepado na ribanceira, o coracao aos baques, o menino mais novo esperava que o bode chegasse ao bebedouro. Certamente aquilo era arriscado, mas parecia-lhe que ali em cima tinha crescido e podia virar Fabiano.

Sentou-se indeciso. O bode ia saltar e derruba-lo.

Ergueu-se, afastou-se, quase livre da tentacao, viu um bando de periquitos que voava sobre as catingueiras. Desejou possuir um deles, amarra-lo com uma embira, dar-lhe comida.

Sumiram-se todos chiando, e o pequeno ficou triste, espiando o ceu cheio de nuvens brancas. Algumas eram carneirinhos, mas desmanchavam-se e tornavam-se bichos diferentes. Duas grandes se juntaram – e uma tinha a figura da egua alaza, a outra representava Fabiano.

Baixou os olhos encandeados, esfregou-os, aproximou-se novamente da ribanceira, distinguiu a massa confusa do rebanho, ouviu as pancadas dos chifres. Se o bode ja tivesse bebido, ele experimentaria decepcao. Examinou as pernas finas, a camiSinha encardida e rasgada. Enxergara viventes no ceu, considerava-se protegido, convencia-se de que forcas misteriosas iam ampara-lo. Boiaria no ar, como um periquito.

Pos-se a berrar, imitando as cabras, chamando o irmao e a cachorra. Nao obtendo resultado, indignou-se. Ia mostrar aos dois uma proeza, voltariam para casa espantados.

Ai o bode se avizinhou e meteu o focinho na agua. O menino despenhou-se da ribanceira, escanchou-se no espinhaco dele.

Mergulhou no pelame fofo, escorregou, tentou em vao segurar-se com os calcanhares, foi atirado para a frente, voltou, achou-se montado na garupa do animal, que saltava demais e provavelmente se distanciava do bebedouro. Inclinouse para um lado, mas fortemente sacudido, retomou a posicao vertical, entrou a dancar desengoncado, as pernas abertas, os bracos inuteis. Outra vez impelido para a frente, deu um salto mortal, passou por cima da cabeca do bode, aumentou o rasgao da camisa numa das pontas e estirou-se na areia. Ficou ali estatelado, quietinho, um zunzum nos ouvidos, percebendo vagamente que escapara sem honra da aventura.

Viu as nuvens que se desmanchavam no ceu azul, embirrou com elas. Interessou-se pelo voo dos urubus. Debaixo dos couros, Fabiano andava banzeiro, pesado, direitinho um urubu.

Sentou-se, apalpou as juntas doidas. Fora sacolejado violentamente, parecia-lhe que os ossos estavam deslocados.

Olhou com raiva o irmao e a cachorra. Deviam te-lo prevenido. Nao descobriu neles nenhum sinal de solidariedade : o irmao ria como um doido, Baleia, seria, desaprovava tudo aquilo. Achou-se abandonado e mesquinho, exposto a quedas, coices e marradas.

Ergueu-se, arrastou-se com desanimo ate a cerca do bebedouro, encostou-se a ela, o rosto virado para a agua barrenta, o coracao esmorecido. Meteu os dedos finos pelo rasgao, cocou o peito magro. O tropel das cabras perdeu-se na ladeira, a cachorrinha ladrou longe. Como estariam as nuvens? Provavelmente algumas se transformavam em carneirinhos, outras eram como bichos desconhecidos.

Lembrou-se de Fabiano e procurou esquece-lo. Com certeza Fabiano e Sinha Vitoria iam castiga-lo por causa do acidente.

Levantou os olhos timidos. A lua tinha aparecido, engrossava, acompanhada por uma estrelinha quase invisivel. Aquela hora os Periquitos descansavam na vazante, nas touceiras secas de milho. Se possuisse um daqueles periquitos, seria feliz.

Baixou a cabeca, tornou a olhar a poca escura que o gado esvaziara. Uns riachos miudos marejavam na areia como arterias abertas de animais. Recordou-se das cabras abatidas a mao de pilao, penduradas de cabeca para baixo num caibro do copiar, sangrando.

Retirou-se. A humilhacao atenuou-se pouco a pouco e morreu.

Precisava entrar em casa, jantar, dormir. E precisava crescer, ficar tao grande como Fabiano, matar cabras a mao de pilao, trazer uma faca de ponta a cintura. Ia crescer, espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calcar sapatos de couro cru.

Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas, banzeiro. Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pe-de-vento, levantando poeira. Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no patio assim torto, de perneiras, gibao, guarda-peito e chapeu de couro com barbicacho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados.

Capitulo VI – O Menino Mais Velho DEU-SE aquilo porque Sinha Vitoria nao conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando “a linguagem de Sinha Terta, pediu informacoes. Sinha Vitoria, distraida, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descricao, encolheu os ombros.

O menino foi a sala interrogar o pai, encontrou-o sentado no chao, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.

– Bota o pe aqui.

A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata : deu um traco com a ponta da faca atras do calcanhar, outro adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calcado e bateu palmas – Arreda.

O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente arriscou a pergunta. Nao obteve resposta, voltou a cozinha, foi pendurar-se a saia da mae: – Como e? Sinha Vitoria falou em espetos quentes e fogueiras.

– A senhora viu? Ai Sinha Vitoria se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.

O menino saiu indignado com a injustica, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, a beira da lagoa vazia.

A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora dificil.

Repousava junto a trempe, cochilando no calor, a espera de um osso. Provavelmente nao o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupilas negras onde a confianca brilhava. Admitia a existencia de um osso graudo na panela, e ninguem lhe tirava esta certeza, nenhuma inquietacao lhe perturbava os desejos moderados. As vezes recebia pontapes sem motivo. Os pontapes estavam previstos e nao dissipavam a imagem do osso.

Naquele dia a voz estridente de Sinha Vitoria e o cascudo no menino mais velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as coisas nao iam bem. Foi esconder-se num canto, por detras do pilao, fazendo-se miuda entre cumbucos e cestos. Um minuto depois levantou o focinho e procurou orientar-se. O vento morno que soprava da lagoa fixou-lhe a resolucao: esgueirou-se ao longo da parede, transpos a janela baixa da cozinha, atravessou o terreiro, passou pelo pe de turco, topou a camarada, chorando, muito infeliz, a sombra das catingueiras. Tentou minorar-lhe o padecimento saltando em roda e balancando a cauda. Nao podia sentir dor excessiva.

E como nunca se impacientava, continuou a pular, ofegante, chamando a atencao do amigo. Afinal convenceu-o de que o procedimento dele era inutil.

O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeca da cachorra, pos-se a contar-lhe baixinho uma historia. Tinha um vocabulario quase tao minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamacoes e de gestos, Baleia respondia com o rabo, com a lingua, com movimentos faceis de entender.

Todos o abandonavam, a cadelinha era o unico vivente que lhe mostrava simpatia. Afagou-a com os dedos magros e sujos, e o animal encolheu-se para sentir bem o contato agradavel, experimentou uma sensacao como a que lhe dava a cinza do borralho.

Continuou a acaricia-la, aproximou do focinho dela a cara enlameada, olhou bem no fundo os olhos tranquilos.

Estivera metido no barreiro com o irmao, fazendo bichos de barro, lambuzando-se. Deixara o brinquedo e fora interrogar Sinha Vitoria. Um desastre. A culpada era Sinha Terta, que na vespera, depois de curar com reza a espinhela de Fabiano, soltara uma palavra esquisita, chiando, o canudo do cachimbo preso nas gengivas banguelas. Ele tinha querido que a palavra virasse coisa o ficara desapontado quando a mae se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por isso rezingara, esperando que ela fizesse o inferno transformar-se.

Todos os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das cabras, o curral, o barreiro, o patio, o bebedouro – mundo onde existiam seres reais, a familia do vaqueiro e os bichos da fazenda. Alem havia uma serra distante e azulada, um monte que a cachorra visitava, cacando preas, veredas quase imperceptiveis na catinga, moitas o capoes de mato, impenetraveis bancos de macambira – e ai fervilhava uma populacao de pedras vivas e plantas que procediam como gente.

Esses mundos viviam em paz, as vezes desapareciam as fronteiras, habitantes dos dois lados &8211; figura.

entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem duvida em toda a parte forcas maleficas, mas essas forcas eram sempre vencidas. E quando Fabiano amansava brabo, evidentemente uma entidade protetora segurava-o na sela, indicava-lhe os caminhos menos perigosos, livrava-o dos espinhos e dos galhos.

Nem sempre as relacoes entre as criaturas haviam sido amaveis. Antigamente os homens tinham fugido a toa, cansados e famintos. Sinha Vitoria, com o filho mais novo escanchado no quarto, equilibrava o bau de folha na cabeca; Fabiano levava no ombro a espingarda de pederneira; Baleia mostrava as costelas atraves do pelo escasso. Ele, o menino mais velho, caira no chao que lhe torrava os pes. Escurecera de repente, os xiquexiques e os mandacarus haviam desaparecido.

Mal sentia as pancadas que Fabiano lhe dava com a bainha da faca de ponta.

Naquele tempo o mundo era ruim. Mas depois se consertara, para bem dizer as coisas ruins nao tinham existido. No jirau da cozinha arrumavam-se mantas de carne seca e pedacos de toicinho. A sede nao atormentava as pessoas, e a tarde; aberta a porteira, o gado miudo corria para o bebedouro.

Ossos e seixos transformavam-se as vezes nos entes que povoavam as moitas, o morro, a serra distante e os bancos de macambira.

Como nao sabia falar direito, o menino balbuciava expressoes complicadas, repetia as silabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vente, o som dos galhos que rangiam na catinga, rocando-se. Agora tinha tido a ideia de aprender uma palavra, com certeza importante porque figurava na conversa de Sinha Terta. Ia decora-la e transmiti-la ao irmao e a cachorra. Baleia permaneceria indiferente, mas o irmao se admiraria, invejoso.

– Inferno, inferno.

Nao acreditava que um nome tao bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com Sinha Vitoria.

Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinha Vitoria impunha-se, autoridade visivel e poderosa. Se houvesse feito mencao de qualquer autoridade invisivel e mais poderosa, muito bem. Mas tentara convence-la dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo. Achava as pancadas naturais quando as pessoas grandes se zangavam, pensava ate que a zanga delas era a causa unica dos cascudos e puxavantes de orelhas. Esta conviccao tornava-o desconfiado, fazia-o observar os pais antes de se dirigir a eles. Animara-se a interrogar Sinha Vitoria porque ela estava bem-disposta.

Explicou isto a cachorrinha com abundancia de gritos e gestos.

Baleia detestava expansoes violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e bocejou. Para ela os pontapes eram fatos desagradaveis e necessarios So tinha um meio de evita-los, a fuga. Mas as vezes apanhavam-na de surpresa, uma extremidade de alpercata batia-lhe no traseiro – saia latindo, ia esconder-se no mato, com desejo de morder canelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se. Efetivamente a exaltacao do amigo era desarrazoada. Tornou a estirar as pernas e bocejou de novo. Seria bom dormir.

O menino beijou-lhe o focinho umido, embalou-a. A alma dele pos-se a fazer voltas em redor da serra azulada e dos bancos de macambira. Fabiano dizia que na serra havia tocas de sucuaranas. E nos bancos de macambira, rendilhados de espinhos, surgiam cabecas chatas de jararacas.

Esfregou as maos finas, esgaravatou as unhas sujas. Pensou nas figurinhas abandonadas junto ao barreiro, mas isto lhe trouxe a recordacao da palavra infeliz. Diligenciou afastar do espirito aquela curiosidade funesta, imaginou que nao fizera a pergunta, nao recebera portanto o cascudo.

Levantou-se. Via a janela da cozinha, o coco de Sinha Vitoria, e isto lhe dava pensamentos maus. Foi sentar-se debaixo de outra arvore, avistou a serra coberta de nuvens.

Ao escurecer a serra misturava-se com o ceu e as estrelas andavam em cima dela. Como era possivel haver estrelas na terra? A cadelinha chegou-se aos pulos, cheirou-o, lambeu-lhe as maos e acomodou-se.

Como era possivel haver estrelas na terra? Entristeceu. Talvez Sinha Vitoria dissesse a verdade. O inferno devia estar cheio de jararacas e sucuaranas, e as pessoas que moravam la recebiam cocorotes, puxoes de orelhas e pancadas com bainha de faca.

Apesar de ter mudado de lugar, nao podia livrar-se da presenca de Sinha Vitoria. Repetiu que nao havia acontecido nada e tentou pensar nas estrelas que se acendiam na serra.

Inutilmente. Aquela hora as estrelas estavam apagadas.

Sentiu-se fraco e desamparado, olhou os bracos magros, os dedos finos, pos-se a fazer no chao desenhos misteriosos.

Para que Sinha Vitoria tinha dito aquilo? Abracou a cachorrinha com uma violencia que a descontentou.

Nao gostava de ser apertada, preferia saltar e espojar-se.

Farejando a panela, franzia as ventas e reprovava os modos estranhos do amigo. Um osso grande subia e descia no caldo.

Esta imagem consoladora nao a deixava.

O menino continuava a abraca-la. E Baleia encolhia-se para nao magoa-lo, sofria a caricia excessiva. O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanacoes que vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graudo, cheio de tutano e com alguma carne.

Capitulo VII &8211; Inverno A FAMILIA estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilao caido, Sinha Vitoria de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros aos filhos. A cachorra Baleia, com o traseiro no chao e o resto do corpo levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinza.

Estava um frio medonho, as goteiras pingavam la fora, o vento sacudia os ramos das catingueiras, e o barulho do rio era como um trovao distante.

Fabiano esfregou as maos satisfeito e empurrou os ticoes com a ponta da alpercata. As brasas estalaram, a cinza caiu, um circulo de luz espalhou-se em redor da trempe de pedras, clareando vagamente os pes do vaqueiro, os joelhos da mulher e os meninos deitados. – De quando em quando estes se mexiam, porque o lume era fraco e apenas aquecia pedacos deles.

Outros pedacos esfriavam recebendo o ar que entrava pelas rachaduras das paredes e pelas gretas da janela. Por isso nao podiam dormir. Quando iam pegando no sono, arrepiavam-se, tinham precisao de virar-se, chegavam-se a trempe e ouviam a conversa dos pais. Nao era propriamente conversa, eram frases soltas, espacadas, com repeticoes e incongruencias. As vezes uma interjeicao gutural dava energia ao discurso ambiguo. Na verdade nenhum deles prestava atencao as palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espirito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, nao havia meio de domina-las. Como os recursos de expressao eram minguados, tentavam remediar a deficiencia falando alto.

Fabiano tornou a esfregar as maos e iniciou uma historia bastante confusa, mas como so estavam iluminadas as alpercatas dele, o gesto passou despercebido. O menino mais velho abriu os ouvidos, atento. Se pudesse ver o rosto do pai, compreenderia talvez uma parte da narracao, mas assim no escuro a dificuldade era grande. Levantou-se, foi a um canto da cozinha, trouxe de la uma bracada de lenha. Sinha Vitoria aprovou este ato com um rugido, mas Fabiano condenou a interrupcao, achou que o procedimento do filho revelava falta de respeito e estirou o braco para castiga-lo. O pequeno escapuliu-se, foi enrolar-se na saia da mae, que se pos francamente do lado dele.

– Hum! hum! Que brabeza! Aquele homem era assim mesmo, tinha o coracao perto da goela.

– Estourado.

Remexeu as brasas com o cabo da quenga de coco, arrumou entre as pedras achas de angico molhado, procurou acende-las.

Fabiano ajudou-a: suspendeu a tagarelice, pos-se de quatro pes e soprou os carvoes, enchendo muito as bochechas. Uma fumarada invadiu a cozinha, as pessoas tossiram, enxugaram os olhos. Sinha Vitoria manejou o abano, e passado um minuto as labaredas espirraram entre as pedras.

O circulo de luz aumentou, agora as figuras surgiam na sombra, vermelhas. Fabiano, visivel da barriga para baixo, ia-se tornando indistinto dai para cima, era um negrume que vagos claroes cortavam. Desse negrume saiu novamente a parolagem mastigada.

Fabiano estava de bom humor. Dias antes a enchente havia coberto as marcas postas no fim da terra de aluviao, alcancava as catingueiras, que deviam estar submersas.

Certamente so apareciam as folhas, a espuma subia, lambendo ribanceiras que se desmoronavam.

Dentro em pouco o despotismo de agua ia acabar, mas Fabiano nao pensava no futuro. Por enquanto a inundacao crescia, matava bichos, ocupava grotas e varzeas. Tudo muito bem. E Fabiano esfregava as maos. Nao havia o perigo da seca imediata, que aterrorizara a familia durante meses. A catinga amarelecera, avermelhara-se, o gado principiara a emagrecer e horriveis visoes de pesadelo tinham agitado o sono das pessoas. De repente um traco ligeiro rasgara o ceu para os lados da cabeceira do rio, outros surgiram mais claros, o trovao roncara perto, na escuridao da meia-noite rolaram nuvens cor de sangue. A ventania arrancara sucupiras e imburanas, houvera relampagos em demasia – e Sinha Vitoria se escondera na camarinha com os filhos, tapando as orelhas, enrolando-se nas cobertas. Mas aquela brutalidade findara de chofre, a chuva caira, a cabeca da cheia aparecera arrastando troncos e animais mortos. A agua tinha subido, alcancado a ladeira, estava com vontade de chegar aos juazeiros do fim do patio. Sinha Vitoria andava amedrontada. Seria possivel que a agua topasse os juazeiros? Se isto acontecesse, a casa seria invadida, os moradores teriam de subir o morro, viver uns dias no morro, como preas.

Suspirava aticando o fogo com o cabo da quenga de coco.

Deus nao permitiria que sucedesse tal desgraca.

– An! A casa era forte.

– An! Os esteios de aroeira estavam bem fincados no chao duro. Se o rio chegasse ali, derrubaria apenas os torroes que formavam o enchimento das paredes de taipa. Deus protegeria a familia.

– An! As varas estavam bem amarradas com cipos nos esteios de aroeira. O arcabouco da casa resistiria a furia das aguas. E quando elas baixassem, a familia regressaria. Sim, viveriam todos no mato, como preas. Mas voltariam quando as aguas baixassem, tirariam do barreiro terra para vestir o esqueleto da casa.

– An! Sinha Vitoria moveu o abano com forca para nao ouvir a barulho do rio, que se aproximava. Seria que ele estava com intencao de progredir? O abano zumbia, e o rumor da enchente era um sopro, um sopro que esmorecia para la dos juazeiros.

Fabiano contava facanhas. Comecara moderadamente, mas excitara-se pouco a pouco e agora via os acontecimentos com exagero e otimismo, estava convencido de que praticara feitos notaveis. Necessitava esta conviccao. Algum tempo antes acontecera aquela desgraca: o soldado amarelo provocara-o na feira, dera-lhe uma surra de facao e metera-o na cadeia.

Fabiano passara semanas capiongo, fantasiando vingancas, vendo a criacao definhar na catinga torrada. Se a seca chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o promotor e o delegado. Estivera uns dias assim murcho, pensando na seca e roendo a humilhacao. Mas a trovoada roncara, viera a cheia, e agora as goteiras pingavam, o vento entrava pelos buracos das paredes.

Fabiano estava contente e esfregava as maos. Como o frio era grande, aproximou-as das labaredas. Relatava um fuzue terrivel, esquecia as pancadas e a prisao, sentia-se capaz de atos importantes.

O rio subia a ladeira, estava perto dos juazeiros. Nao havia noticia de que os houvesse atingido – e Fabiano, seguro, baseado nas informacoes dos mais velhos, narrava uma briga de que saira vencedor. A briga era sonho, mas Fabiano acreditava nela.

As vacas vinham abrigar-se junto a parede da casa, pegada ao curral, a chuva fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam engordar com o pasto novo, dar crias. O pasto cresceria no campo, as arvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria.

Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia. Talvez Sinha Vitoria adquirisse uma cama de lastro de couro. Realmente o jirau de varas onde se espichavam era incomodo.

Fabiano gesticulava. Sinha Vitoria agitava o abano para sustentar as labaredas no angico molhado. Os meninos, sentindo frio numa banda e calor na outra, nao podiam dormir e escutavam as lorotas do pai. Comecaram a discutir em voz baixa uma passagem obscura da narrativa. Nao conseguiram entender-se, arengaram azedos, iam se atracando. Fabiano zangou-se com a impertinencia deles e quis puni-los. Depois moderou-se, repisou o trecho incompreensivel utilizando palavras diferentes.

O menino mais novo bateu palmas, olhou as maos de Fabiano, que se agitavam por cima das labaredas, escuras e vermelhas.

As costas ficavam na sombra, mas as palmas estavam iluminadas e cor de sangue. Era como se Fabiano tivesse esfolado um animal. A barba ruiva e emaranhada estava invisivel, os olhos azulados e imoveis fixavam-se nos ticoes, a fala dura e rouca entrecortava-se de silencios. Sentado no pilao, Fabiano derreava-se, feio e bruto, com aquele jeito de bicho lerdo que nao se aguenta em dois pes.

O menino mais velho estava descontente. Nao podendo perceber as feicoes do pai, cerrava os olhos para entende-lo bem. Mas surgira uma duvida. Fabiano modificara a historia – e isto reduzia-lhe a verossimilhanca. Um desencanto. Estirouse e bocejou. Teria sido melhor a repeticao das palavras.

Altercaria com o irmao procurando interpreta-las. Brigaria por causa das palavras – e a sua conviccao encorparia.

Fabiano devia te-las repetido. Nao. Aparecera uma variante, o heroi tinha-se tornado humano e contraditorio. O menino mais velho recordou-se de um brinquedo antigo, presente de seu Tomas da bolandeira. Fechou os olhos, reabriu-os, sonolento.

O ar que entrava pelas rachas das paredes esfriava-lhe uma perna, um braco, todo o lado direito. Virou-se, os pedacos de Fabiano sumiram-se. O brinquedo se quebrara, o pequeno entristecera vendo as pecas inuteis. Lembrou-se dos currais feitos de seixos miudos, sob as catingueiras.

Agora a lagoa estava cheia, tinha coberto os currais que ele construira. O barreiro tambem se enchera, atingia a parede da cozinha, as aguas dele juntavam-se as da lagoa.

Para ir ao quintal onde havia craveiros e panelas de losna, Sinha Vitoria saia pela porta da frente, descia o copiar e atravessava a porteira de barauna. Atras da casa, as cercas, o pe de turco e as catingueiras estavam dentro da agua. As goteiras pingavam, os chocalhos das vacas tiniam, os sapos cantavam. O som dos chocalhos era familiar, mas a cantiga dos sapos e o rumor das goteiras causavam estranheza. Tudo estava mudado. Chovia o dia inteiro, a noite inteira. As moitas e capoes de mato onde viviam seres misteriosos tinham sido violados. Havia la sapos. E a cantiga deles subia e descia, uma toada lamentosa enchia os arredores. Tentou contar as vozes, atrapalhou-se. Eram muitas, com certeza havia uma infinidade de sapos nas moitas e nos capoes. Que estariam fazendo? Por que gritavam a cantoria gorgolejada e triste? Nunca vira um deles, confundia-os com os habitantes invisiveis da terra e dos bancos de macambira. Enrolou-se, acomodou-se, adormeceu, uma banda aquecida pelo fogo, a outra banda protegida pelas nadegas de Sinha Vitoria.

O abano agitava-se, a madeira umida chiava, o vulto de Fabiano iluminava-se e escurecia.

Baleia, imovel, paciente, olhava os carvoes e esperava que a familia se recolhesse. Enfastiava-a o barulho que Fabiano fazia. No campo, seguindo uma res, se esgoelava demais.

Natural. Mas ali, a beira do fogo, para ‘que tanto grito? Fabiano estava-se cansando a toa. Baleia se enjoava, cochilava e nao podia dormir. Sinha Vitoria devia retirar os carvoes e a cinza, varrer o chao, deitarse na cama de varas com Fabiano. Os meninos se arrumariam na esteira, por baixo do carito, na sala. Era bom que a deixassem em paz. O dia todo espiava os movimentos das pessoas, tentando adivinhar coisas incompreensiveis. Agora precisava dormir, livrar-se das pulgas e daquela vigilancia a que a tinham habituado.

Varrido o chao com vassourinha, escorregaria entre as pedras, enroscar-se-ia, adormeceria no calor, sentindo o cheiro das cabras molhadas e ouvindo rumores desconhecidos, o tiquetaque das pingueiras, a cantiga dos sapos, o sopro do rio cheio. Bichos miudos e sem dono iriam visita-la.

Capitulo VIII &8211; Festa FABIANO, Sinha Vitoria e os meninos iam a festa de Natal na cidade. Eram tres horas, fazia grande calor, redemoinhos espalhavam por cima das arvores amarelas nuvens de poeira e folhas secas.

Tinham fechado a casa, atravessado o patio, descido a ladeira, e pezunhavam nos seixos como bois doentes dos cascos. Fabiano, apertado na roupa de brim branco feita por Sinha Terta, com chapeu de beata, colarinho, gravata, botinas de vaqueta e elastico, procurava erguer o espinhaco, o que ordinariamente nao fazia. Sinha Vitoria, enfronhada no vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se mal nos sapatos de salto enorme. Teimava em calcar-se como as mocas da rua – e dava topadas no caminho. Os meninos estreavam calca e paleto. Em casa sempre usavam camiSinhas de riscado ou andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de pano branco na loja e incumbira Sinha Terta de arranjar farpelas para ele e para os filhos. Sinha Terta achara pouca a fazenda, e Fabiano se mostrara desentendido, certo de que a velha pretendia furtar-lhe os retalhos. Em consequencia as roupas tinham saido curtas, estreitas e cheias de emendas.

Fabiano tentava nao perceber essas desvantagens. Marchava direito, a barriga para fora, as costas aprumadas, olhando a serra distante. De ordinario olhava o chao, evitando as pedras, os tocos, os buracos e as cobras. A posicao forcada cansou-o. E ao pisar a areia do rio, notou que assim nao poderia vencer as tres leguas que o separavam da cidade.

Descalcou-se, meteu as meias no bolso, tirou o paleto, a gravata e o colarinho, roncou aliviado. Sinha Vitoria decidiu imita-lo: arrancou os sapatos e as meias, que amarrou no lenco. Os meninos puseram as chinelinhas debaixo do braco e sentiram-se a vontade.

A cachorra Baleia, que vinha atras, incorporou-se ao grupo.

Se ela tivesse chegado antes provavelmente Fabiano a teria enxotado. E Baleia passaria a festa junto as cabras que sujavam o copiar. Mas com a gravata e o colarinho machucados no bolso, o paleto no ombro e as botinas enfiadas num pau, o vaqueiro achou-se perto dela e acolheu-a.

Retomou a posicao natural: andou cambaio, a cabeca inclinada. Sinha Vitoria, os dois meninos e Baleia acompanharam-no. A tarde foi comida facilmente e ao cair da noite estavam na beira do riacho, a entrada da rua.

Ai Fabiano parou, sentou-se, lavou os pes duros, procurando retirar das gretas fundas o barro que la havia. Sem se enxugar, tentou calcar-se – e foi uma dificuldade: os calcanhares das meias de algodao formaram bolos nos peitos dos pes e as botinas de vaqueta resistiram como virgens.

Sinha Vitoria levantou a saia, sentou-se no chao e limpou-se tambem. Os dois meninos entraram no riacho, esfregaram os pes, sairam, calcaram as chinelinhas e ficaram espiando os movimentos dos pais. Sinha Vitoria aprontava-se e erguia-se, mas Fabiano soprava arreliado. Tinha vencido a obstinacao de uma daquelas amaldicoadas botinas; a outra emperrava, e ele, com os dedos nas alcas, fazia esforcos inuteis.

Sinha Vitoria dava palpites que irritavam o marido. Nao havia meio de introduzir o diabo do calcanhar no tacao. A um arranco mais forte, a alca de tras rebentou-se, e o vaqueiro meteu as maos pela borracha, energicamente. Nada conseguindo, levantou-se resolvido a entrar na rua assim mesmo, coxeando, uma perna mais comprida que a outra. Com raiva excessiva, a que se misturava alguma esperanca, deu uma patada violenta no chao. A carne comprimiu-se, os ossos estalaram, a meia molhada rasgou-se e o pe amarrotado se encaixou entre as paredes de vaqueta. Fabiano soltou um suspiro largo de satisfacao e dor. Em seguida tentou prender o colarinho duro ao pescoco, mas os dedos tremulos nao realizaram a tarefa.

Sinha Vitoria auxiliou-o: o botao entrou na casa estreita e a gravata amarrou-se. As maos sujas, suadas, deixaram no colarinho manchas escuras.

– Esta certo, grunhiu Fabiano.

Atravessaram a ‘pinguela e alcancaram a rila. Sinha Vitoria caminhava aos tombos, por causa dos saltos dos sapatos, e conservava o guarda-chuva suspenso, com o castao para baixo e a biqueira para cima, enrolada no lenco. Impossivel dizer porque Sinha Vitoria levava o guarda-chuva com biqueira para cima e o castao para baixo. Ela propria nao saberia explicarse, mas sempre vira as outras matutas procederem assim e adotava o costume.

Fabiano marchava teso.

Os dois meninos espiavam os lampioes e adivinhavam casos extraordinarios. Nao sentiam curiosidade, sentiam medo, e por isso pisavam devagar, receando chamar a atencao das pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porem, era esquisito. Como podia haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os, homens iriam brigar. Seria que o povo ali era brabo e nao consentia que eles andassem entre as barracas? Estavam acostumados a aguentar cascudos e puxoes de orelhas. Talvez as criaturas desconhecidas nao se comportassem como Sinha Vitoria, mas os pequenos retraiam-se, encostavam-se as paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios de rumores estranhos.

Chegaram a igreja, entraram. Baleia ficou passeando na calcada, olhando a rua, inquieta. Na opiniao dela, tudo devia estar no escuro, porque era noite, e a gente que andava no quadro precisava deitar-se. Levantou o focinho, sentiu um cheiro que lhe deu vontade de tossir. Gritavam demais ali perto e havia luzes em abundancia, mas o que a incomodava era aquele cheiro de fumaca.

Os meninos tambem se espantavam. No mundo, subitamente alargado, viam Fabiano e Sinha Vitoria muito reduzidos, menores que as figuras dos altares. Nao conheciam altares, mas presumiam que aqueles objetos deviam ser preciosos. As luzes e os cantos extasiavam-nos. De luz havia, na fazenda, o fogo entre as pedras da cozinha e o candeeiro de querosene pendurado pela asa numa vara que saia da taipa; de canto, o bemdito de Sinha Vitoria e o aboio de Fabiano. O aboio era triste, uma cantiga monotona e sem palavras que entorpecia o gado.

Fabiano estava silencioso, olhando as imagens e as velas acesas, constrangido na roupa nova, o pescoco esticado, pisando, em brasas. A multidao apertava-o mais que a roupa, embaracava-o. De perneiras, gibao- e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas saltava no lombo de um bicho e voava na catinga. Agora nao podia virar-se: maos e bracos rocavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. A sensacao que experimentava nao diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as maos e os bracos da multidao fossem agarralo, subjuga-lo, espreme-lo num canto de parede. Olhou as caras em redor.

Evidentemente as criaturas que se juntavam ali nao o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questoes e acabar mal a noite. Soprava e esforcava-se inutilmente por abanar-se com o chapeu. Dificil mover-se, estava amarrado. Lentamente conseguiu abrir caminho no povareu, esgueirou-se ate junto da pia de agua benta, onde se deteve, receoso de perder de vista a mulher e os filhos.

Ergueu-se nas pontas dos pes, mas isto lhe arrancou um grunhido: os calcanhares esfolados comecavam a afligi-lo.

Distinguiu o coco de Sinha Vitoria, que se escondia atras de uma coluna. Provavelmente os meninos estavam com ela. A igreja cada vez mais se enchia. Para avistar a cabeca da mulher, Fabiano precisava estirar-se, voltar o rosto. E o colarinho furava-lhe o pescoco. As botinas e o colarinho eram indispensaveis. Nao poderia assistir a novena calcado em alpercatas, a camisa de algodao aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. Como tinha religiao, entrava na igreja uma vez por ano.

E sempre vira, desde que se entendera, roupas de festa assim: calca e paleto engomados, batinas de elastico, chapeu de baeta, colarinho e gravata. Nao se arriscaria a prejudicar a tradicao, embora sofresse com ela. Supunha cumprir um dever, tentava aprumar-se. Mas a disposicao esmorecia: o espinhaco vergava, naturalmente, os bracos mexiam-se desengoncados.

Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele.

Fazia-se carrancudo e evitava conversas. So lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preco e na conta. O patrao realizava com pena e tinta calculos incompreensiveis. Da ultima vez que se tinham encontrado houvera uma confusao de numeros, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritorio do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuizo. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietario tiravam-lhe o couro, e os que nao tinham negocio com ele riam vendo-o passar nas ruas, tropecando. Por isso Fabiano se desviava daqueles viventes. Sabia que a roupa nova cortada e cosida por Sinha Terta, o colarinho, a gravata, as botinas e o chapeu de baeta o tornavam ridiculo, mas nao queria pensar nisto.

– Preguicosos, ladroes, faladores, mofinos.

Estava convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins. Mordeu os beicos. Nao poderia dizer semelhante coisa.

Por falta menor aguentara facao e dormira na cadeia. Ora, o soldado amarelo. .. Sacudiu a cabeca, livrou-se da recordacao desagradavel e procurou uma cara amiga na multidao. Se encontrasse um conhecido, iria chama-lo para a calcada, abraca-lo, sorrir, bater palmas. Depois falaria sobre gado.

Estremeceu, tentou ver o coco de Sinha Vitoria. Precisava ter cuidado para nao se distanciar da mulher e dos filhos.

Aproximou-se deles, alcancou-os no momento em que a igreja comecava a esvaziar-se.

Sairam aos encontroes, desceram os degraus. Empurrado, machucado, Fabiano tornou a pensar no soldado amarelo. No quadro, ao passar pelo jatoba, – virou o rosto. Sem motivo nenhum, o desgracado tinha ido provoca-lo, pisar-lhe o pe.

Ele se desviara, com bons modos. Como o outro insistisse, perdera a paciencia, tivera um rompante. Consequencia: facao no lombo e uma noite de cadeia.

Convidou a mulher e os filhos para os cavalinhos, arrumouos, distraiu-se um pouco vendo-os rodar. Em seguida encaminhou-os as barracas de jogo. Cocou-se, puxou o lenco, desatou-o, contou o dinheiro, com a tentacao de arrisca-lo no bozo. Se fosse feliz, poderia comprar a cama de couro cru, a sonho de Sinha Vitoria. Foi beber cachaca numa tolda, voltou, pos-se a rondar indeciso, pedindo com os olhos a opiniao da mulher. Sinha Vitoria fez um gesto de reprovacao, e Fabiano retirou-se, lembrando-se do jogo que tivera em casa de seu Inacio, com o soldado amarelo. Fora roubado, com certeza fora roubado. Avizinhou-se da tolda e bebeu mais cachaca. Pouca a pouco ficou sem-vergonha.

– Festa e festa.

Bebeu ainda uma vez e empertigou-se, olhou as pessoas desafiando-as. Estava resolvido a fazer uma asneira. Se topasse o soldado amarelo, esbodegava-se com ele. Andou entre as barracas, emproado, atirando coices no chao, insensivel as esfoladuras dos pes. Queria era desgracar-se, dar um pano de amostra aquele safado. Nao ligava importancia a mulher e aos filhos, que o seguiam.

– Apareca um homem! berrou.

No barulho que enchia a praca ninguem notou a provocacao. E Fabiano foi esconder-se por detras das barracas, para la dos tabuleiros de doces. Estava disposto a esbagacar-se, mas havia nele um resto de prudencia. Ali podia irritarse, dirigir ameacas e desaforos a inimigos invisiveis. Impelido por forcas opostas, expunha-se e acautelava-se. Sabia que aquela explosao era perigosa, temia que o soldado amarelo surgisse de repente, viesse plantar-lhe no pe a reiuna. O soldado amarelo, falto de substancia, ganhava fumaca na companhia dos parceiros. Era bom evita-lo.

Mas a lembranca dele tornava-se as vezes horrivel. E Fabiano estava tirando uma desforra. Estimulado pela cachaca, fortalecia-se: – Cade o valente? Quem e que tem coragem de dizer que eu sou feio? Apareca um homem.

Lancava o desafio numa fala atrapalhada, com o vago receio de ser ouvido. Ninguem apareceu. E Fabiano roncou alto, gritou que eram todos uns frouxos, uns capados, sim senhor.

Depois de muitos berros, supos que havia ali perto homens escondidos, com medo dele. Insultou-os: – Cambada de …

Parou agoniado, suando frio, a boca cheia de agua, sem atinar com a palavra. Cambada de que? Tinha o nome debaixo da lingua., E a lingua engrossava, perra, Fabiano cuspia, fixava na mulher e nos filhos uns olhos vidrados. Recuou alguns passos, entrou a engulhar. Em seguida aproximou-se &8211; figura novamente das luzes, capengando, foi sentar-se na calcada de uma loja. Betava desanimado, bambo; o entusiasmo arrefecera.

Cambada de que? Repetia a pergunta sem saber o que procurava.

Olhou de perto a cara da mulher, nao conseguiu distinguir-lhe os tracos. Sinha Vitoria perceberia a atrapalhacao dele? Havia ali outros matutos conversando, e Fabiano enjoou-os. Se nao estivesse tao ansiado, arrotando, suando, brigaria com eles. A interrogacao que lhe aperreava o espirito confuso juntou-se a ideia de que aquelas pessoas nao tinham o direito de sentar-se na calcada. Queria que. o deixassem com a mulher, os filhos e a cachorrinha. Cambada de que? Soltou um grito aspero, bateu palmas: – Cambada de cachorros.

Descoberta a expressao teimosa, alegrou-se. Cambada de cachorros. Evidentemente os matutos como ele nao passavam de cachorros. Procurou com as maos a mulher e os filhos, certificou-se de que eles estavam acomodados. Uma contracao violenta no pescoco entortou-lhe o rosto, a boca encheu-se novamente de saliva. Pos-se a cuspir. Serenou, respirou com forca, passou os dedos por um fio de baba que lhe pendia de beico. Estava era tonto, com uma zoada infeliz nos ouvidos.

Ia jurar que mostrara valentia e correra perigo. Achava ao mesmo tempo que havia cometido uma falta. Agora estava pesado e com sono. Enquanto andara fazendo espalhafato, a cabeca cheia de aguardente, desprezara as esfoladuras dos pes. Mas esfriava, e as botinas de vaqueta magoavam-nos em demasia.

Arrancou-as, tirou as meias, libertou-se do colarinho, da gravata e do paleto, enrolou tudo, fez um travesseiro, estirou-se no cimento, puxou para os olhos o chapeu de baeta. E adormeceu, com o estomago embrulhado.

Sinha Vitoria achava-se em dificuldade: torcia-se para satisfazer uma precisao e nao sabia como se desembaracar.

Podia esconder-se no fundo do quadro, por detras das barracas, para la dos tamboretes das doceiras. Ergueu-se meio decidida, tornou a acocorar-se. Abandonar os meninos, o marido naquele estado? Apertou-se e observou os quatro cantos com desespero, que a precisao era grande. Escapuliu-se disfarcadamente, chegou a esquina da loja, onde havia um magote de mulheres agachadas. E, olhando as frontarias das casas e as lanternas de papel, molhou o chao e os pes das outras matutas. Arrastou-se para junto da familia, tirou do bolso o cachimbo de barro, atochou-o, acendeu-o, largou algumas baforadas longas de satisfacao. Livre da necessidade, viu com interesse o formigueiro que circulava na praca, a mesa do leilao, as listas luminosas dos foguetes. Realmente a vida nao era ma. Pensou com um arrepio na seca, na viagem medonha que fizera em caminhos abrasados, vendo ossos e garranchos. Afastou a lembranca ruim, atentou naquelas belezas. O burburinho da multidao era doce, o realejo fanhoso dos cavalinhos nao descansava.

Para a vida ser boa, so faltava a Sinha Vitoria uma cama igual a de seu Tomas da bolandeira. Suspirou, pensando na cama de varas em que dormia. Ficou ali de cocoras, cachimbando, os olhos e os ouvidos muito abertos para nao perder a festa.

Os meninos trocavam impressoes cochichando, aflitos com o desaparecimento da cachorra. Puxaram a manga da mae. Que fim teria levado Baleia? Sinha Vitoria levantou o braco num gesto mole e indicou vagamente dois pontos cardeais com o canudo .do cachimbo. Os pequenos insistiram. Onde estaria a cachorrinha? Indiferentes a igreja, as lanternas de papel, aos bazares, as mesas de jogo e aos foguetes, so se importavam com as pernas dos transeuntes. Coitadinha, andava por ai perdida aguentando pontapes.

De repente Baleia apareceu. Trepou-se na calcada, mergulhou entre as saias das mulheres, passou por cima de Fabiano e chegou-se aos amigos, manifestando com a lingua e com o rabo um vivo contentamento. O menino mais velho agarrou-a. Estava segura. Tentaram explicar-lhe que tinham tido susto enorme por causa dela, mas Baleia nao ligou importancia a explicacao. Achava e que perdiam tempo num lugar esquisito, cheio de odores desconhecidos. Quis latir, expressar oposicao a tudo aquilo, mas percebeu que nao convenceria ninguem e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos seus donos.

A opiniao dos meninos assemelhava-se a dela. Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilao. E conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo.

Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos.

Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam.

Impossivel imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma duvida e apresentou-a timidamente ao irmao.

Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as mocas bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espirito soprou-a no ouvido do irmao. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questao intrincada.

Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossivel, ninguem conservaria tao grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Nao tinham sido feitas por gente. E os individuos que mexiam nelas cometiam imprudencia. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para nao desencadear as forcas estranhas que elas porventura encerrassem.

Baleia cochilava, de quando em quando balancava a cabeca e franzia o focinho. A cidade se enchera de suores que a desconcertavam.

Sinha Vitoria enxergava, atraves das barracas, a cama de seu Tomas da bolandeira, uma cama de verdade.

Fabiano roncava de papo para cima, as abas do chapeu cobrindo-lhe os olhos, o quengo sobre as botinas de vaqueta.

Sonhava, agoniado, e Baleia percebia nele um cheiro que o tornava irreconhecivel. Fabiano se agitava, soprando. M Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavam-lhe os pes com enormes reiunas e ameacavam-no com facoes terriveis.

Capitulo IX &8211; Baleia A CACHORRA Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caira-lhe em varios pontos, as costelas avultavam num fundo roseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchacao dos beicos dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um principio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoco um rosario de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, rocava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Entao Fabiano resolveu mata-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tencao de carrega-la bem para a cachorra nao sofrer muito.

Sinha Vitoria fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraca e nao se cansavam de repetir a mesma pergunta: – Vao bulir com a Baleia? Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.

Ela era como uma pessoa da familia: brincavam juntos os tres, para bem dizer nao se diferencavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameacava cobrir o chiqueiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinha Vitoria levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforcouse por tapar-lhes os ouvidos prendeu a cabeca do mais velho entre as coxas e espalmou as maos nas orelhas do segundo.

Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjuga-los, resmungando com energia.

Ela tambem tinha o coracao pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisao de Fabiano era necessaria e justa.

Pobre da Baleia.

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou.

Coitadinha da Baleia.

Os meninos comecaram a gritar e a espernear. E como Sinha Vitoria tinha relaxado os musculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga: – Capeta excomungado.

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao cranio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.

Pouco a pouco a colera diminuiu, e Sinha Vitoria, embalando as criancas, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babao. Inconveniencia deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava dificil Baleia endoidecer e lamentava que o marido nao houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execucao era indispensavel.

Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinha Vitoria encolheu o pescoco e tentou encostar os ombros as orelhas. Como isto era impossivel, levantou os, bracos e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um pedaco da cabeca.

Fabiano percorreu o alpendre, olhando a barauna e as porteiras, aculando um cao invisivel contra animais invisiveis: – Eco! eco! Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou a janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia cocando-se a esfregar as peladuras no pe de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, ate ficar no outro lado da arvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourao do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e nao apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar as catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcancou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pos a latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, Sinha Vitoria pegou-se a Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto.

Fabiano recolheu-se.

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e as panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o patio, correndo em tres pes. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.

Demorou-se ai um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pes, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobriase de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados as feridas, era um bicho diferente dos outros.

Caiu antes de alcancar essa cova arredada. Tentou erguerse, endireitou a cabeca e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posicao torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chao, agarrando-se nos seixos miudos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto as pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.

Uma sede horrivel queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e nao as distinguiu : um nevoeiro impedia-lhe a visao.

Pos-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente nao latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptiveis.

Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.

Sentiu o cheiro bom dos preas que desciam do morro, mas o cheiro vinha, fraco e havia nele particulas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito.

Arregacou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preas, que pulavam e corriam em liberdade. Comecou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a lingua pelos beicos torrados e nao experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preas tinham fugido.

Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mao. Nao conhecia o objeto, mas pos-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradaveis. Fez um esforco para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as palpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Nao poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existencia em submissao, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

O objeto desconhecido continuava a ameaca-la. Conteve a respiracao, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caidas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou.

Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.

Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridao, com certeza o sol desaparecera.

Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhanca.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigacao dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausencia deles.

Nao se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia nao atribuia a esse desastre a impotencia em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.

Uma angustia apertou-lhe o pequeno coracao. Precisava vigiar as cabras: aquela hora cheiros de sucuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar. as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do carito onde Sinha Vitoria guardava o cachimbo.

Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silencio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho nao cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons nao interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanacoes familiares revelavam-lhe a presenca deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.

Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a lingua pendente e insensivel. Nao sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem dificil do barreiro ao fim do patio desvaneciam-se no seu espirito.

Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, Sinha Vitoria retirava dali os carvoes e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chao queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava.

E, findos os cochilos, numerosos preas corriam e saltavam, um formigueiro de preas invadia a cozinha.

A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para tras era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doenca.

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinha Vitoria tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preas. E lamberia as maos de Fabiano, um Fabiano enorme. As criancas se espojariam com ela, rolariam com ela num patio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preas, gordos, enormes.

Capitulo X &8211; Contas FABIANO recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terca dos cabritos. Mas como nao tinha roca e apenas se limitava a semear na vazante uns punhados de feijao e milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, nao chegava a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.

Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeca. Forjara planos. Tolice, quem e do chao nao se trepa.

Consumidos os. legumes, roidas as espigas de milho, recorria a gaveta do amo, cedia por preco baixo o produto das sortes, Resmungava, rezingava, numa aflicao, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco. Transigindo com outro, nao seria roubado tao descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E rendiase: Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no futuro, criar juizo. Ficava de boca aberta, vermelho, o pescoco inchando. De repente estourava – Conversa. Dinheiro anda num cavalo e ninguem pode viver sem comer. Quem e do chao nao se trepa.

Pouco a pouco o ferro do proprietario queimava os bichos de Fabiano. E quando nao tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.

Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transacao meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinha Vitoria mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no chao sementes de varias especies, realizou somas e diminuicoes. No dia seguinte Fabiano voltou a cidade, mas ao fechar o negocio notou que as operacoes de Sinha Vitoria, como de costume, diferiam das do patrao. Reclamou e obteve a explicacao habitual: a diferenca era proveniente de juros.

Nao se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco.

Nao se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mao beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria! O patrao zangou-se, repeliu a insolencia, achou bom que o vaqueiro fosse procurar servico noutra fazenda.

Ai Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Nao era preciso barulho nao. Se havia dito palavra a-toa, pedia desculpa. Era bruto, nao fora ensinado. Atrevimento nao tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia la puxar questao com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens. Devia ser ignorancia da mulher, provavelmente devia ser ignorancia da mulher. Ate estranhara as contas dela.

Enfim, como nao sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava nao cair noutra.

O amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o chapeu varrendo o tijolo. Na porta, virando-se, enganchou as rosetas das esporas, afastou-se tropecando, os sapatoes de couro cru batendo no chao como cascos.

Foi ate a esquina, parou, tomou folego. Nao deviam trata-lo assim. Dirigiu-se ao quadro lentamente. Diante da bodega de seu Inacio virou o rosto e fez uma curva larga. Depois que acontecera aquela miseria, temia passar ali. Sentou-se numa calcada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado. Nao podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graca e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia era safadeza.

– Ladroeira.

Nem lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa uma exorbitancia, o branco se levantara furioso, com quatro pedras na mao. Para que tanto espalhafato? – Hum! hum! Recordou-se do que lhe sucedera anos atras, antes da seca, longe. Num dia de apuro recorrera ao porco magro que nao queria engordar no chiqueiro e estava reservado as despesas do Natal: matara-o antes de tempo e fora vende-lo na cidade.

Mas o cobrador da prefeitura chegara com o recibo e atrapalhara-o. Fabiano fingira-se desentendido : nao compreendia nada, era bruto. Como o outro lhe explicasse que, para vender o porco, devia pagar imposto, tentara convence-lo de que ali nao havia porco, havia quartos de porco, pedacos de carne. O agente se aborrecera, insultara-o, e Fabiano se encolhera. Bem, bem. Deus o livrasse de historia com o governo. Julgava que podia dispor dos seus trocos. Nao entendia de imposto.

– Um bruto, esta percebendo? Supunha que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha uma parte, estava acabado. Pois ia voltar para casa e comer a carne. Podia comer a carne? Podia ou nao podia? O funcionario batera o pe agastado e Fabiano se desculpara, o chapeu de couro na mao, o espinhaco curvo: – Quem foi que disse que eu queria brigar? O melhor e a gente acabar com isso.

Despedira-se, metera a carne no saco e fora vende-la noutra rua, escondido. Mas, atracado pelo cobrador, gemera no imposto e na multa. Daquele dia em diante nao criara mais porcos. Era perigoso cria-los.

Olhou as cedulas arrumadas na palma, os niqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beicos. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista. Se nao baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada! Espalhou a vista pelos quatro cantos. Alem dos telhados, que lhe reduziam o horizonte, a campina se estendia, seca e dura. Lembrou-se da marcha penosa que fizera atraves dela, com a familia, todos esmolambados e famintos.

Haviam escapado, e isto lhe parecia um milagre. Nem sabia como tinham escapado.

Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam.

Aparentemente resignado, sentia um odio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrao, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas as vezes se arreliava. Nao havia paciencia que suportasse tanta coisa.

– Um dia um homem faz besteira e se desgraca.

Pois nao estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha obrigacao de trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem. Nascera com esse destino, ninguem tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possivel melhorar de situacao, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas de inverno a verao. Era sina. O pai vivera assim, o avo tambem. E para tras nao existia familia. Cortar mandacaru, ensebar lategos – aquilo estava no sangue. Conformava-se, nao pretendia mais nada Se lhe dessem o que era dele, estava certo. Nao davam. Era um desgracado, era como um cachorro,.so recebia ossos. Por que seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia ate nojo pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias.

Na palma da mao as notas estavam umidas de suor. Desejava saber o tamanho da extorsao. Da ultima vez que fizera contas com o amo o prejuizo parecia menor. Alarmou-se. Ouvira falar em juros e em prazos. Isto lhe dera uma impressao bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras dificeis, ele saia logrado. Sobressaltava-se escutando-as. Evidentemente so serviam para encobrir ladroeiras. Mas eram bonitas. As vezes decorava algumas e empregava-as fora do proposito. Depois esquecia-as. Para que um pobre da laia dele usar conversa de gente rica? Sinha Terta e que tinha uma ponta de lingua terrivel. Era: falava quase tao bem como as pessoas da cidade. Se ele soubesse falar como Sinha Terta, procuraria servico noutra fazenda, haveria de arranjar-se. Nao sabia. Nas horas de aperto dava para gaguejar, embaracava-se como um menino, cocava os cotovelos, aperreado. Por isso esfolavam-no. Safados. Tomar as coisas de um infeliz que nao tinha onde cair morto! Nao viam que isso nao estava certo? Que iam ganhar com semelhante procedimento? Hem? Que iam ganhar? – An! Agora nao criava porco e queria ver o tipo da prefeitura cobrar dele imposto e multa. Arrancavam-lhe a camisa do corpo e ainda por cima davam-lhe facao e cadeia. Pois nao trabalharia mais, ia descansar.

Talvez nao fosse. Interrompeu o monologo, levou uma eternidade contando e recontando mentalmente o dinheiro.

Amarrotou-o com forca, empurrou-o no bolso raso da calca, meteu na casa estreita o botao de osso. Porcaria.

Levantou-se, foi ate a porta de uma bodega, com vontade de beber cachaca. Como havia muitas pessoas encostadas ao balcao, recuou. Nao gostava de se ver no meio do povo. Falta de costume. As vezes dizia uma coisa sem intencao de ofender, entendiam outra, e la vinham questoes. Perigoso entrar na bodega. O unico vivente que o compreendia era a mulher. Nem precisava falar : bastavam os gestos. Sinha Terta e que se explicava como gente da rua. Muito bom uma criatura ser assim, ter recurso para se defender. Ele nao tinha. Se tivesse, nao viveria naquele estado.

Um perigo entrar na bodega. Estava com desejo de beber um quarteirao de cachaca, mas lembrava-se da ultima visita feita a venda de seu Inacio. Se nao tivesse tido a ideia de beber, nao lhe haveria sucedido aquele desastre. Nem podia tomar uma pinga descansado. Bem. Ia voltar para casa e dormir.

Saiu lento, pesado, capiongo, as rosetas das esporas silenciosas. Nao conseguiria dormir. Na cama de varas havia um pau com um no, bem no meio. So muito cansaco fazia um cristao acomodar-se em semelhante dureza. Precisava fatigarse no lombo de um cavalo ou passar o dia consertando cercas.

Derreado, bambo,, espichava-se e roncava como um porco. Agora nao lhe seria possivel fechar os olhos. Rolaria a noite inteira sobre as varas, matutando naquela perseguicao.

Desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Nao ia fazer nada. Matar-se-ia no servico e moraria numa casa alheia, enquanto o deixassem ficar. Depois sairia pelo mundo, iria morrer de fome na catinga seca.

Tirou do bolso o rolo de fumo, preparou um cigarro com a faca de ponta. Se ao menos pudesse recordar-se de fatos agradaveis, a vida nao seria inteiramente ma.

Deixara a rua. Levantou a cabeca, viu uma estrela, depois muitas estrelas. As figuras dos inimigos esmoreceram. Pensou na mulher, nos filhos e na cachorra morta. Pobre de Baleia.

Era como se ele tivesse matado uma pessoa da familia.

Capitulo XI – O Soldado Amarelo FABIANO meteu-se na vereda que ia desembocar na lagoa seca, torrada, coberta de catingueiras e capoes de mato. Ia pesado, o alo cheio a tiracolo, muitos lategos e chocalhos pendurados num braco. O facao batia nos tocos. Espiava o chao como de costume, decifrando rastos. Conheceu os da egua ruca e da cria, marcas de cascos grandes e pequenos. A egua ruca, com certeza. Deixara pelos brancos num tronco de angico.

Urinara na areia e o mijo desmanchara as pegadas, o que nao aconteceria se se tratasse de um cavalo.

Fabiano ia desprecatado, observando esses sinais e outros que se cruzavam, de viventes menores. Corcunda, parecia farejar o solo – e a catinga deserta animava-se, os bichos que ali tinham passado voltavam, apareciam-lhe diante dos olhos miudos.

Seguiu a direcao que ~a egua havia tomado. Andara cerca de cem bracas quando o cabresto de cabelo que trazia no ombro se enganchou num pe de quipa. Desembaracou o cabresto, puxou o facao, pos-se a cortar as quipas e as palmatorias que interrompiam a passagem.

Tinha feito um estrago feio, a terra se cobria de palmas espinhosas. Deteve-se percebendo rumor de garranchos, voltouse e deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o levara a cadeia, onde ele aguentara uma surra e passara a noite. Baixou a arma. Aquilo durou um segundo.

Menos: durou uma fracao de segundo. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caido esperneando na poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braco de Fabiano foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para um homicidio se outro impulso nao lhe dirigisse o braco em sentido contrario. A lamina parou de chofre, junto a cabeca do intruso, bem em cima do bone vermelho. A principio o vaqueiro nao compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Sentiu um choque violento, deteve-se, o braco ficou irresoluto, bambo, inclinando-se para um lado e para outro.

O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facao de novo. Tinha vontade, mas os musculos afrouxavam. Realmente nao quisera matar um cristao: procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e espinhos. Ignorava os movimentos que fazia na sela. Alguma coisa o empurrava para a direita ou para a esquerda. Era essa coisa que ia partindo a cabeca do amarelo. Se ela tivesse demorado um minuto, Fabiano seria um cabra valente. Nao demorara. A certeza do perigo surgira – e ele estava indeciso, de olho arregalado, respirando com dificuldade, um espanto verdadeiro no rosto barbudo coberto de suor, o cabo do facao mal seguro entre os dois dedos umidos.

Tinha medo e repetia que estava em perigo, mas isto lhe pareceu tao absurdo que se pos a rir. Medo daquilo? Nunca vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele nao era dunga na cidade? Nao pisava os pes dos matutos, na feira? Nao botava gente na cadeia? Sem-vergonha, mofino.

Irritou-se. Porque seria que aquele safado batia os dentes como um caititu? Nao via que ele era incapaz de vingar-se? Nao via? Fechou a cara. A ideia do perigo ia-se sumindo. Que perigo? Contra aquilo nem precisava facao, bastavam as unhas.

Agitando os chocalhos e os lategos, chegou a mao esquerda, grossa e cabeluda, a cara do policia, que recuou e se encostou a uma catingueira. Se nao fosse a catingueira, o infeliz teria caido.

Fabiano pregou nele os olhos ensanguentados, meteu o facao na bainha. Podia mata-lo com as unhas. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas.

Estava certo? O rosto de Fabiano contraia-se, medonho, mais feio que um focinho. Hem? Estava certo? Bulir com as pessoas que nao fazem mal a ninguem. Porque? Sufocava-se, as rugas da testa aprofundavam-se, os pequenos olhos azuis abriam-se demais, numa interrogacao dolorosa.

O soldado encolhia-se, escondia-se por detras da arvore. E Fabiano cravava as unhas nas palmas calosas. Desejava ficar cego outra vez. Impossivel readquirir aquele instante de inconsciencia. Repetia que a arma era desnecessaria, mas tinha a certeza de que nao conseguiria utiliza-la – e apenas queria enganar-se. Durante um minuto a colera que sentia por se considerar impotente foi tao grande que recuperou a forca e avancou para o inimigo.

A raiva cessou, os dedos que feriam a palma descerraram-se – e Fabiano estacou desajeitado, como um pato, o corpo amolecido.

Grudando-se a catingueira, o soldado apresentava apenas um braco, uma perna e um pedaco da cara, mas esta banda de homem comecava a crescer aos olhos do vaqueiro. E a outra parte, a que estava escondida, devia ser maior. Fabiano tentou afastar a ideia absurda: – Como a gente pensa coisas bestas! Alguns minutos antes nao pensava em nada, mas agora suava frio e tinha lembrancas insuportaveis. Era um sujeito violento, de coracao perto da goela. Nao, era um cabra que se arreliava algumas vezes – e quando isto acontecia, sempre se dava mal. Naquela tarde, por exemplo, se nao tivesse perdido a paciencia e xingado a mae da autoridade, nao teria dormido na cadeia depois de aguentar zinco no lombo. Dois excomungados tinham-lhe caido em cima, um ferro batera-lhe no peito, outro nas costas, ele se arrastara tiritando como um frango molhado. Tudo porque se esquentara e dissera uma palavra inconsideradamente. Falta de criacao. Tinha la culpa? O sarapatel se formara, o cabo abrira caminho entre os feirantes que se apertavam em redor: – “Toca pra frente”.

Depois surra e cadeia, por causa de uma tolice. Ele, Fabiano, tinha sido provocado. Tinha ou nao tinha? Salto de reiuna em cima da alpercata. Impacientara-se e largara o palavrao.

Natural, xingar a mae de uma pessoa nao vale nada, porque todo o mundo ve logo que a gente nao tem a intencao de maltratar ninguem. Um diterio sem importancia. O amarelo devia saber isso. Nao sabia. Saira-se com quatro pedras &8211; figura.

na mao, apitara. E Fabiano comera da banda podre. – “Desafasta”.

Deu um passo para a catingueira. Se ele gritasse agora “desafasta”, que faria o policia? Nao se afastaria, ficaria colado ao pe de pau. Uma lazeira, a gente podia xingar a mae dele. Mas entao … Fabiano estirava o beico e rosnava. Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na cadeia, dava-lhes surra. Nao entendia. Se fosse uma criatura de saude e muque, estava certo. Enfim apanhar do governo nao e desfeita, e Fabiano ate sentiria orgulho ao recordar-se da aventura. Mas aquilo… Soltou uns grunhidos. Porque motivo o governo aproveitava gente assim? So se ele tinha receio de empregar tipos direitos. Aquela cambada so servia para morder as pessoas inofensivas. Ele, Fabiano, seria tao ruim se andasse fardado? Iria pisar os pes dos trabalhadores e dar pancada neles? Nao iria.

Aproximou-se lento, fez uma volta, achou-se em frente do policia, que embasbacou, apoiado ao tronco, a pistola e o punhal inuteis. Esperou que ele se mexesse. Era uma lazeira, certamente, mas vestia farda e nao ia ficar assim, os olhos arregalados, os beicos brancos, os dentes chocalhando como bilros. Ia bater o pe, gritar, levantar a espinha, plantarlhe o salto da reiuna em cima da alpercata. Desejava que ele fizesse isso. A ideia de ter sido insultado, preso, moido por uma criatura mofina era insuportavel. Mirava-se naquela covardia, via-se mais lastimoso e miseravel que o outro.

Baixou a cabeca, cocou os pelos ruivos do queixo. Se o soldado nao puxasse o facao, nao gritasse, ele, Fabiano, seria um vivente muito desgracado.

Devia sujeitar-se aquela tremura, aquela amarelidao? Era um bicho resistente, calejado. Tinha nervo, queria brigar, metera-se em espalhafatos e saira de crista levantada.

Recordou-se de lutas antigas, em dancas com femea e cachaca.

Uma vez, de lambedeira em punho, espalhara a negrada. Ai Sinha Vitoria comecara a gostar dele. Sempre fora reimoso.

Iria esfriando com a idade? Quantos anos teria? Ignorava, mas certamente envelhecia e fraquejava. Se possuisse espelhos, veria rugas e cabelos brancos. Arruinado, um caco. Nao sentira a transformacao, mas estava-se acabando.

O suor umedeceu-lhe as maos duras. Entao? Suando com medo de uma peste que se escondia tremendo? Nao era uma infelicidade grande, a maior das infelicidades? Provavelmente nao se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim mole e ronceiro. Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro individuo, muito diferente do Fabiano que levantava poeira nas salas de danca. Um Fabiano bom para aguentar facao no lombo e dormir na cadeira.

Virou a cara, enxergou o facao de rasto. Aquilo nem era facao, nao servia para nada. Ora nao servia! – Quem disse que nao servia? Era um facao verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio cortando palmas de quipa. E estivera a pique de rachar o quengo de um sem-vergonha. Agora dormia na bainha rota, era um troco inutil, mas tinha sido uma arma. Se aquela coisa tivesse durado mais um segundo, o policia estaria morto.

Imaginou-o assim, caido, as pernas abertas, os bugalhos apavorados, um fio de sangue empastando-lhe os cabelos, formando um riacho entre os seixos da vereda. Muito bem! Ia arrasta-lo para dentro da catinga, entrega-lo aos urubus.

E nao sentiria remorso. Dormiria com a mulher, sossegado, na cama de varas. Depois gritaria aos meninos, que precisavam criacao. Era um homem, evidentemente.

Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do policia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Nao estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e so queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Nao se inutilizava, nao valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua forca.

Vacilou e cocou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.

Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avancou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapeu de couro.

– Governo e governo.

Tirou o chapeu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.

Capitulo XII – O Mundo Coberto de Penas O MULUNGU do bebedouro cobria-se de arribacoes. Mau sinal, provavelmente o sertao ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas arvores da beira do rio, descansavam, bebiam e, como em redor nao havia comida, seguiam viagem para o sul. O casal agoniado sonhava desgracas. O sol chupava os pocos, e aquelas excomungadas levavam o resto da agua, queriam matar o gado.

Sinha Vitoria falou assim, mas Fabiano resmungou, franziu a testa, achando a frase extravagante. Aves matarem bois e cabras, que lembranca! Olhou a mulher, desconfiado, julgou que ela estivesse tresvariando. Foi sentar-se no banco do copiar, examinou o ceu limpo, cheio de claridades de mau agouro, que a sombra das arribacoes cortava. Um bicho de penas matar o gado! Provavelmente Sinha Vitoria nao estava regulando.

Fabiano estirou o beico e enrugou mais a testa suada: impossivel compreender a intencao da mulher. Nao atinava. Um bicho tao pequeno! Achou a coisa obscura e desistiu de aprofunda-la. Entrou em casa, trouxe o aio, preparou um cigarro, bateu com o fuzil na pedra, chupou uma tragada longa. Espiou os quatro cantos, ficou alguns minutos voltado para o norte, cocando o queixo.

– Chi! Que fim de mundo! Nao permaneceria ali muito tempo. No silencio comprido so se ouvia um rumor de asas.

Como era que Sinha Vitoria tinha dito? A frase dela tornou ao espirito de Fabiano e logo a significacao apareceu. As arribacoes bebiam a agua. Bem. O gado curtia sede e morria.

Muito bem. As arribacoes matavam o gado. Estava certo.

Matutando, a gente via que era assim, mas Sinha Vitoria largava tiradas embaracosas. Agora Fabiano percebia o que ela queria dizer. Esqueceu a infelicidade proxima, riu-se encantado com a esperteza de Sinha Vitoria. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha ideias, sim senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas situacoes dificeis encontrava saida.

Entao! Descobrir que as arribacoes matavam o gado! E matavam.

Aquela hora o mulungu do bebedouro, sem folhas e sem flores, uma barrancharia pelada, enfeitava-se de penas.

Desejou ver aquilo de perto, levantou-se, botou o aio a tiracolo, foi buscar o chapeu de couro e a espingarda de pederneira. Desceu o copiar, atravessou o patio, avizinhou-se da ladeira pensando na cachorra Baleia. Coitadinha. Tinhamlhe aparecido aquelas coisas horriveis na boca, o pelo caira, e ele precisara mata-la. Teria procedido bem? Nunca havia refletido nisso. A cachorra estava doente. Podia consentir que ela mordesse os meninos? Podia consentir? Loucura expor as criancas a hidrofobia. Pobre da Baleia. Sacudiu a cabeca para afasta-la do espirito. Era o diabo daquela espingarda que lhe trazia a imagem da cadelinha. A espingarda, sem duvida. Virou o rosto defronte das pedras do fim do patio, onde Baleia aparecera fria, inteiricada, com os olhos comidos pelos urubus.

Alargou o passo, desceu a ladeira, pisou a terra de aluviao, aproximou-se do bebedouro. Havia um bater doido de asas por cima da poca de agua preta, a garrancheira do mulungu estava completamente invisivel. Pestes. Quando elas desciam do sertao, acabava-se tudo. O gado ia finar-se, ate os espinhos secariam.

Suspirou. Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomecar a vida. Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem ponta,=~,ria. Cinco ou seis aves cairam no chao, o resto se espantou, os galhos queimados surgiram nus. Mas pouco a pouco se foram cobrindo, aquilo nao tinha fim.

Fabiano sentou-se desanimado na ribanceira do bebedouro, carregou lentamente a espingarda com chumbo miudo e nao socou a bucha, para a carga espalhar-se e alcancar muitos inimigos. Novo tiro, novas quedas, mas isto nao deu nenhum prazer a Fabiano. Tinha ali comida para dois ou tres dias; se possuisse municao, teria comida para semanas e mes.

Examinou o polvarinho e o chumbeira, pensou na viagem, estremeceu. Tentou iludir-se, imaginou que ela nao se realizaria se ele nao a provocasse com ideias ruins.

Reacendeu o cigarro, procurou distrair-se falando baixo.

Sinha Terta era pessoa de muito saber naquelas beiradas. Como andariam as contas com o patrao? Estava ali o que ele nao conseguiria nunca decifrar. Aquele negocio de juros engolia tudo, e afinal o branco ainda achava que fazia favor. O soldado amarelo…

Fabiano, encaiporado, fechou as maos e deu murros na coxa.

Diabo. Esforcava-se por esquecer uma infelicidade, e vinham outras infelicidades. Nao queria lembrar-se do patrao nem do soldado amarelo. Mas lembrava-se, com desespero, enroscandose como uma cascavel assanhada. Era um infeliz, era a criatura mais infeliz do mundo. Devia ter ferido naquela tarde o soldado amarelo, devia te-lo cortado a facao. Cabra ordinario, mofino, encolhera-se e ensinara o caminho.

Esfregou a testa suada e enrugada. Para que recordar vergonha? Pobre dele. Estava entao decidido que viveria sempre assim? Cabra safado, mole. Se nao fosse tao fraco, teria entrado no cangaco e feito miserias. Depois levaria um tiro de emboscada ou envelheceria na cadeia, cumprindo sentenca, mas isto nao era melhor que acabar-se numa beira de caminho, assando no calor, a mulher e os filhos acabando-se tambem. Devia ter furado o pescoco do amarelo com faca de ponta, devagar. Talvez estivesse preso e respeitado, um homem respeitado, um homem. Assim como estava, ninguem podia respeita-lo. Nao era homem, nao era nada. Aguentava zinco no lombo e nao se vingava.

– Fabiano, meu filho, tem coragem. Tem vergonha, Fabiano.

Mata o soldado amarelo. Os soldados amarelos sao uns desgracados que precisam morrer. Mata o soldado amarelo e os que mandam nele.

Como gesticulava com furor, gastando muita energia, pos-se a resfolegar e sentiu sede. Pela cara vermelha e queimada o suor corria, tornava mais escura a barba ruiva. Desceu da ribanceira, agachou-se a beira da agua salobra, pos-se a beber ruidosamente nas palmas das maos. Uma nuvem de arribacoes voou assustada. Fabiano levantou-se, um brilho de indignacao nos olhos. – Miseraveis.

A colera dele se voltava de novo contra as aves. Tornou a sentar-se na ribanceira, atirou muitas vezes nos ramos do mulungu, o chao ficou todo coberto de cadaveres. Iam ser salgados, estendidos em cordas. Tencionou aproveita-los como alimento na viagem proxima. Devia gastar o resto do dinheiro em chumbo e polvora, passar um dia no bebedouro, depois largar-se pelo mundo. Seria necessario mudar-se? Apesar de saber perfeitamente que era necessario, agarrou-se a esperancas frageis. Talvez a seca nao viesse, talvez chovesse. Aqueles malditos bichos e que lhe faziam medo. Procurou esquece-los. Mas como poderia esquece-los se estavam ali, voando-lhe em torno da cabeca, agitando-se na lama, empoleirados nos galhos, espalhados no chao, mortos? Se nao fossem eles, a seca nao existiria. Pelo menos nao existiria naquele momento: viria depois, seria mais curta.

Assim, comecava logo – e Fabiano sentia-a de longe. Sentia-a como se ela ja tivesse chegado, experimentava adiantadamente a fome, a sede, as fadigas imensas das retiradas. Alguns dias antes estava sossegado, preparando lategos, consertando cercas. De repente, um risco no ceu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar destruicao. Ele ja andava meio desconfiado vendo as fontes minguarem. E olhava com desgosto a brancura das manhas longas e a vermelhidao sinistra das tardes. Agora confirmavam-se as suspeitas.

– Miseraveis.

As bichas excomungadas eram a causa da seca. Se pudesse mata-las, a seca se extinguiria. Mexeu-se com violencia, carregou a espingarda furiosamente. A mao grossa, cabeluda, cheia de manchas e descascada, tremia sacudindo a vareta, – Pestes.

Impossivel dar cabo daquela praga. Estirou os olhos pela campina, achou-se isolado. Sozinho num mundo coberto de penas, de aves que iam come-lo. Pensou na mulher e suspirou.

Coitada de Sinha Vitoria, novamente nos descampados, transportando o bau de folha. Uma pessoa de tanto juizo marchar na terra queimada, esfolar os pes nos seixos, era duro. As arribacoes matavam o gado. Como tinha Sinha Vitoria descoberto aquilo. Dificil. Ele, Fabiano, espremendo os miolos. Nao diria semelhante frase. Sinha Vitoria fazia contas direito : sentava-se na cozinha, consultava montes de sementes de varias especies, correspondentes a milreis, tostoes e vintens. E acertava. As contas do patrao eram diferentes, arranjadas a tinta e contra o vaqueiro, mas Fabiano sabia que elas estavam erradas e o patrao queria engana-lo. Enganava. Que remedio? Fabiano, um desgracado, um cabra, dormia na cadeia e aguentava zinco no lombo. Podia reagir? Nao podia. Um cabra. Mas as contas de Sinha Vitoria deviam ser exatas. Pobre de Sinha Vitoria. Nao conseguiria nunca estender os ossos numa cama, o unico desejo que tinha. Os outros nao se deitavam em camas? Receando magoa-la, Fabiano concordava com ela, embora aquilo fosse um sonho. Nao poderiam dormir como gente. E agora iam ser comidos pelas arribacoes.

Desceu da ribanceira, apanhou lentamente os cadaveres, meteu-os no aio, que ficou cheio, empanzinado. Retirou-se devagar. Ele, Sinha Vitoria e os dois meninos comeriam as arribacoes.

Se a cachorra Baleia estivesse viva, iria regalar-se.

Porque seria que o coracao dele se apertava? Coitadinha da cadela. Matara-a forcado, por causa da molestia. Depois voltara aos lategos, as cercas, as contas embaracadas do patrao. Subiu a ladeira, avizinhou-se dos juazeiros. Junto a raiz de um deles a pobrezinha gostava de espojar-se, cobrirse de garranchos e folhas secas. Fabiano suspirou, sentiu um peso enorme por dentro. Se tivesse cometido um erro? Olhou a planicie torrada, o morro onde os preas saltavam, confessou as catingueiras e aos alastrados que o animal tivera hidrofobia, ameacara as criancas. Matara-o por isso.

Aqui as ideias de Fabiano atrapalharam-se: a cachorra misturou-se com as arribacoes, que nao se distinguiam da seca. Ele, a mulher e os dois meninos seriam comidos. Sinha Vitoria tinha razao : era atilada e percebia as coisas de longe. Fabiano arregalava os olhos e desejava continuar a admira-la. Mas o coracao grosso, como um cururu, enchia-se com a lembranca da cadela. Coitadinha, magra, dura, inteiricada, os olhos arrancados pelos urubus.

Diante dos juazeiros, Fabiano apressou-se, Sabia la se a alma de Baleia andava por ali, fazendo visagem? Chegou-se a casa, com medo. Ia escurecendo, e aquela hora ele sentia sempre uns vagos terrores. Ultimamente vivia esmorecido, mofino, porque as desgracas eram muitas.

Precisava consultar Sinha Vitoria, combinar a viagem, livrar-se das arribacoes, explicar-se, convencer-se de que nao praticara injustica matando a cachorra. Necessario abandonar aqueles lugares amaldicoados. Sinha Vitoria pensaria como ele.

Capitulo XIII &8211; Fuga A VIDA na fazenda se tornara dificil. Sinha Vitoria benziase tremendo, manejava o rosario, mexia os beicos rezando rezas desesperadas. Encolhido no banco do copiar, Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No ceu azul as ultimas arribacoes tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.

Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que possuiam, salgou a carne, largou-se com a familia, sem se despedir do amo. Nao poderia nunca liquidar aquela divida exagerada. So lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.

Sairam de madrugada. Sinha Vitoria meteu o braco pelo buraco da parede e fechou a porta da frente com a taramela.

Atravessaram o patio, deixaram na escuridao o chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que apodrecia, os juazeiros. Ao passar junto as pedras onde os meninos atiravam cobras mortas, Sinha Vitoria lembrou-se da cachorra Baleia, chorou, mas estava invisivel e ninguem percebeu o choro.

Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo para o sul. Com a fresca da madrugada, andaram bastante, em silencio, quatro sombras no caminho estreito coberto de seixos miudos – os meninos a frente, conduzindo trouxas de roupa, Sinha Vitoria sob o bau de folha pintada e a cabaca de agua, Fabiano atras, de facao de rasto e faca de ponta, a cuia pendurada por uma correia amarrada ao cinturao, o aio a tiracolo, a espingarda de pederneira num ombro, o saco da matalotagem no outro. Caminharam bem tres leguas antes que a barra do nascente aparecesse Fizeram alto. E Fabiano depos no chao parte da carga, olhou o ceu, as maos em pala na testa. Arrastara-se ate ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudanca. Retardara-se e repreendera os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os -a poupar forcas. A verdade e que nao queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a lentamente, adiara-a, tornara a prepara-la, e so se resolvera a partir quando estava definitivamente perdido. Podia continuar a viver num cemiterio? Nada o prendia aquela terra dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se. Era o que Fabiano dizia, pensando em coisas alheias:” o chiqueiro e o curral, que precisavam conserto, o cavalo de fabrica, bom companheiro, a egua alaza, as catingueiras, as panelas de losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os pes dele esmoreciam, as alpercatas calavam-se na escuridao. Seria necessario largar tudo? As alpercatas chiavam de novo no caminho coberto de seixos.

Agora Fabiano examinava o ceu, a barra que tingia o nascente, e nao queria convencer-se da realidade. Procurou distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidao que todos os dias espiava, com o coracao aos baques. As maos grossas, por baixo da aba curva do chapeu, protegiam-lhe os olhos contra a claridade e tremiam.

Os bracos penderam, desanimados.

– Acabou-se.

Antes de olhar o ceu, ja sabia que ele estava negro num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul. Estremeceu como se descobrisse uma coisa muito ruim.

Desde o aparecimento das arribacoes vivia desassossegado.

Trabalhava demais para nao perder o sono. Mas no meio do servico um arrepio corria-lhe no espinhaco, a noite acordava agoniado e encolhia-se num canto da cama de varas, mordido pelas pulgas, conjecturando miserias.

A luz aumentou e espalhou-se na campina. So ai principiou a viagem. Fabiano atentou na mulher e nos filhos,- apanhou a espingarda e o saco dos mantimentos, ordenou a marcha com uma interjeicao aspera.

Afastaram-se rapidos; como se alguem os tangesse, e as alpercatas de Fabiano iam quase tocando os calcanhares dos meninos. A lembranca da cachorra Baleia picava-o, intoleravel. Nao podia livrar-se dela. Os mandacarus e os alastrados vestiam a campina,, espinho, so espinho. E Baleia aperreava-o. Precisava fugir daquela vegetacao inimiga.

Os meninos corriam. Sinha Vitoria procurou com a vista o rosario de contas brancas e azuis arrumado entre os peitos, mas, com o movimento que fez, o bau de folha pintada ia caindo. Aprumou-se e endireitou o bau, remexeu os beicos numa oracao. Deus Nosso Senhor protegeria os inocentes. Sinha Vitoria fraquejou, uma ternura imensa encheu-lhe o coracao.

Reanimou-se, tentou libertar-se dos pensamentos tristes e conversar com o marido por monossilabos. Apesar de ter boa ponta de lingua, sentia um aperto na garganta e nao poderia explicar-se. Mas achava-se desamparada e miuda na solidao, necessitava um apoio, alguem que lhe desse coragem.

Indispensavel ouvir qualquer som. A manha, sem passaros, sem folhas e sem vento, progredia num silencio de morte. A faixa vermelha desaparecera, diluira-se no azul que enchia o ceu.

Sinha Vitoria precisava falar. Se ficasse calada, seria como um pe de mandacaru, secando, morrendo. Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha, as arvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silencio nao valiam nada. Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se, esqueceu os objetos proximos, os espinhos, as arribacoes, os urubus que farejavam carnica. Falou no passado, confundiu-o com o futuro. Nao poderia voltar a ser o que ja tinham sido? Fabiano hesitou, resmungou, como fazia sempre que lhe dirigiam palavras incompreensiveis. Mas achou bom que Sinha Vitoria tivesse puxado conversa. Ia num desespero, o saco da comida e o aio comecavam a pesar excessivamente.

Sinha Vitoria fez a pergunta, Fabiano matutou e andou bem meia legua sem sentir. A principio quis responder que evidentemente eles eram o que tinham sido; depois achou que estavam mudados, mais velhos e mais fracos. Eram outros, para bem dizer. Sinha Vitoria insistiu. Nao seria bom tornarem a viver como tinham vivido, muito longe? Fabiano agitava a cabeca, vacilando. Talvez fosse, talvez nao fosse.

Cochicharam uma conversa longa e entrecortada, cheia de malentendidos e repeticoes. Viver como tinham vivido, numa caSinha protegida pela bolandeira de seu Tomas. Discutiram e acabaram reconhecendo que aquilo nao valeria a pena, porque estariam sempre assustados, pensando na seca. Aproximavam-se agora dos lugares habitados, haveriam de achar morada. Nao andariam sempre a toa, como ciganos. O vaqueiro ensombrava-se com a ideia de que se dirigia a terras onde talvez nao houvesse gado para tratar. Sinha Vitoria tentou sossega-lo dizendo que ele poderia entregar-se a outras ocupacoes, e Fabiano estremeceu, voltou-se, estirou os olhas em direcao a fazenda abandonada. Recordou-se dos animais feridos e logo afastou a lembranca. Que fazia ali virado para tras? Os animais estavam mortos. Encarquilhou as palpebras contendo as lagrimas, uma grande saudade espremeu-lhe o coracao, mas um instante depois vieram-lhe ao espirito figuras insuportaveis: o patrao, o soldado amarelo, a cachorra Baleia inteiricada junto as pedras do fim do patio.

Os meninos sumiam-se numa curva do caminho.- Fabiano adiantou-se para alcanca-los. Era preciso aproveitar a disposicao deles, deixar que andassem a vontade. Sinha Vitoria acompanhou o marido, chegou-se aos filhos. Dobrando o cotovelo da estrada, Fabiano sentia distanciar-se um pouco dos lugares onde tinha vivido alguns anos; o patrao, o soldado amarelo e a cachorra Baleia esmoreceram no seu espirito.

E a conversa recomecou. Agora Fabiano estava meio otimista.

Endireitou o saco da comida, examinou o rosto carnudo e as pernas grossas da mulher. Bem. Desejou fumar. Como segurava a boca do saco e a coronha da espingarda, nao pode realizar o desejo. Temeu arriar, nao prosseguir na caminhada.

Continuou a tagarelar, agitando a cabeca para afugentar uma nuvem que, vista de perto, escondia” o patrao, o soldado amarelo e a cachorra Baleia. Os pes calosos, duros como cascos, metidos em alpercatas novas, caminhariam meses. Ou nao caminhariam? Sinha Vitoria achou que sim. Fabiano agradeceu a opiniao dela e gabou-lhe as pernas grossas, as nadegas volumosas, os peitos cheios. As bochechas de Sinha Vitoria avermelharam-se e Fabiano repetiu com entusiasmo o elogio. Era. Estava boa, estava taluda, poderia andar muito.

Sinha Vitoria riu e baixou os olhos. Nao era tanto como ele dizia nao. Dentro de pouco tempo estaria magra, de seios bambos. Mas recuperaria carnes. E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado.

Fabiano estirou o beico, duvidando. Sinha Vitoria combateu a duvida. Porque nao haveriam de ser gente, possuir uma cama igual a de seu Tomas da bolandeira? Fabiano franziu a testa: la vinham os despropositos. Sinha Vitoria insistiu e dominouo.

Porque haveriam de ser sempre desgracados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinarias. Podiam viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que nao podiam.

– O mundo e grande.

Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande – e marchavam, meio confiados, meio inquietos. Olharam os meninos, que olhavam os montes distantes, onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? zumbiu Sinha Vitoria.

Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objecao. Menino e bicho miudo, nao pensa. Mas Sinha Vitoria renovou a pergunta – e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razao. Tinha sempre razao. Agora desejava saber que iriam fazer os filhos quando crescessem.

– Vaquejar, opinou Fabiano.

Sinha Vitoria, com uma careta enjoada, balancou a cabeca negativamente, arriscando-se a derrubar o bau de folha. Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraca. Vaquejar, que ideia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia montes baixos, cascalhos, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Nao voltariam nunca mais, resistiriam a saudade que ataca os sertanejos na mata.

Entao eles eram bois para morrer tristes por falta de espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes.

Fabiano ouviu os sonhos da mulher, deslumbrado, relaxou os musculos, e o saco da comida escorregou-lhe no ombro.

Aprumou-se, deu um puxao a carga. A conversa de Sinha Vitoria servira muito: haviam caminhado leguas quase sem sentir. De repente veio a fraqueza. Devia ser fome. Fabiano ergueu a cabeca, piscou os olhos por baixo da aba negra e queimada do chapeu de couro.

Meio-dia, pouco mais ou menos. Baixou os olhos encandeados, procurou descobrir na planicie. uma sombra ou sinal de agua.

Estava realmente com um buraco no estomago. Endireitou o saco de novo e, para conserva-lo em equilibrio, andou pendido, um ombro alto, outro baixo. O otimismo de Sinha Vitoria ja nao lhe fazia mossa. Ela ainda se agarrava a fantasias. Coitada.

Armar semelhantes planos, assim bamba, o peso do bau e da cabaca enterrando-lhe o pescoco no corpo.

Foram descansar sob os garranchos de uma quixabeira, mastigaram punhados de farinha e pedacos de carne, beberam na cuia uns goles de agua. Na testa de Fabiano o suor secava, misturando-se a poeira que enchia as rugas fundas, embebendose na correia do chapeu. A tontura desaparecera, o estomago sossegara. Quando partissem, a cabaca nao envergaria o espinhaco de Sinha Vitoria. Instintivamente procurou no descampado indicio de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o.

Mostrou os dentes sujos num riso infantil. Como podia ter frio com semelhante calor? Ficou um instante assim besta, olhando os filhos, a mulher e a bagagem pesada. O menino mais velho esbrugava um osso com apetite. Fabiano lembrou-se da cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha, o riso besta esmoreceu.

Se achassem agua ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pes. Fabiano comunicou isto a Sinha Vitoria e indicou uma depressao do terreno. Era um bebedouro, nao era? Sinha Vitoria estirou o beico, indecisa, e Fabiano afirmou o que havia perguntado. Entao ele nao conhecia aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher tivesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois lhe faltava conviccao; como Sinha Vitoria tinha duvidas, Fabiano exaltava-se, procurava incutir-lhe coragem. Inventava o bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentindo.

E Sinha Vitoria excitava-se, transmitia-lhe esperancas.

Andavam por lugares conhecidos. Qual era o emprego de Fabiano? Tratar de bichos, explorar os arredores, no lombo de um cavalo. E ele explorava tudo. Para la dos montes afastados havia outro mundo, um mundo temeroso; mas para ca, na planicie, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras.

Os meninos deitaram-se e pegaram no sono. Sinha Vitoria pediu o binga ao companheiro e acendeu o cachimbo. Fabiano preparou um cigarro. Por enquanto estavam sossegados. O bebedouro indeciso tornara-se realidade. Voltaram a cochichar projetos, as fumacas do cigarro e do cachimbo misturaram-se.

Fabiano insistiu nos seus conhecimentos topograficos, falou no cavalo de fabrica. Ia morrer na certa, um animal tao bom.

Se tivesse vindo com eles, transportaria a bagagem. Algum tempo comeria folhas secas, mas alem dos montes encontraria alimento verde. Infelizmente pertencia ao fazendeiro – e definhava, sem ter quem lhe desse a racao. Ia morrer o amigo, lazarento e com esparavoes, num canto de cerca, vendo os urubus chegarem banzeiros, saltando, os bicos ameacando-lhe os olhos. A lembranca das aves medonhas, que ameacavam com os bicos pontudos os olhos de criaturas vivas, horrorizou Fabiano. Se elas tivessem paciencia, comeriam tranquilamente a carnica. Nao tinham paciencia aquelas pestes vorazes que voavam la em cima, fazendo curvas.

– Pestes.

Voavam sempre, nao se podia saber donde vinha tanto urubu.

– Pestes.

Olhou as sombras movedicas que enchiam a campina. Talvez estivessem fazendo circulos em redor do pobre cavalo esmorecido num canto de cerca. Os olhos de Fabiano se umedeceram. Coitado do cavalo. Estava magro, pelado, faminto. e arredondava uns olhos que pareciam de gente – Pestes.

O que indignava Fabiano era o costume que os miseraveis tinham de atirar bicadas aos olhos de criaturas que ja nao se podiam defender. Ergueu-se, assustado, como se os bichos tivessem descido do ceu azul e andassem ali perto, num voo baixo, fazendo curvas cada vez menores em torno do seu corpo, de Sinha Vitoria e dos meninos.

Sinha Vitoria percebeu-lhe a inquietacao na cara torturada e levantou-se tambem, acordou os. filhos, arrumou os picuas.

Fabiano retomou o carrego. Sinha Vitoria desatou-lhe a correia presa ao cinturao, tirou a cuia e emborcou-a na cabeca do menino mais velho, sobre uma rodilha de molambos.

Em cima pos uma trouxa. Fabiano aprovou o arranjo, sorriu, esqueceu os urubus e o cavalo. Sim senhor. Que mulher! Assim ele ficaria com a carga aliviada e o pequeno teria um guarda-sol. O peso da cuia era uma insignificancia, mas Fabiano achou-se leve, pisou rijo e encaminhou-se ao bebedouro. Chegariam la antes da noite, beberiam, descansariam, continuariam a viagem com o luar. Tudo isso era duvidoso, mas adquiria consistencia. E a conversa recomecou, enquanto o sol descambava.

– Tenho comido toicinho com mais cabelo, declarou Fabiano desafiando o ceu, os espinhos e os urubus.

– Nao e? murmurou Sinha Vitoria sem perguntar, apenas confirmando o que ele dizia.

Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esbocando.

Acomodar-se-iam num sitio pequeno, o que parecia dificil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaco de terra. Mudarse-iam depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas, seriam diferentes deles. Sinha Vitoria esquentava-se. Fabiano ria, tinha desejo de esfregar as maos agarradas a boca do saco e a coronha da espingarda de pederneira.

Nao sentia a espingarda, o saco, as pedras miudas que lhe entravam nas alpercatas, o cheiro de carnicas que empestavam o caminho. As palavras de Sinha Vitoria encantavam-no. Iriam para diante, alcancariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque nao sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de Sinha Vitoria, as palavras que Sinha Vitoria murmurava porque tinha confianca nele. E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas dificeis e necessarias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inuteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertao continuaria a mandar gente para la. O sertao mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitoria e os dois meninos.

VALORES E MISERIAS DAS VIDAS SECAS ALVARO LINS Valores e Miserias das Vidas Secas I – Graciliano Ramos em termos de construcao do romance e arte do estilo O SR. GRACILIANO RAMOS, autor de quatro romances muito discutidos, um dos quais o principal, este, ao que penso, vindo logo apos S. Bernardo – aparece agora, em segunda edicao, representa um caso de estudo critico muito dificil para os seus contemporaneos . Logo os seus romances nos tentam a confundir, em analises convergentes, a sua figura de escritor e a sua figura de homem. Existem homens que explicam as suas obras, como ha obras que explicam os seus autores. No caso do Sr. Graciliano Ramos, e a obra que explica o homem. Quero dizer: o homem interior, o homem psicologico. Estamos diante de um caso semelhante ao de Machado de Assis, no passado; igual ao do Sr. Otavio de Faria, no presente. A maneira de Machado de Assis, o Sr.

Graciliano Ramos, nas aparencias, nas exterioridades, nada revela que o possa distinguir ( GRACILIANO RAMOS – Angustia, .’ edicao. Rio de Janeiro, .

A respeito deste ensaio sobre Graciliano Ramos, encontrase na Pequena Bibliografia Critica da Literatura Brasileira, editada pelo Ministerio da Educacao e Cultura, a seguinte nota: “Alvaro Lins: Jornal de Critica – Segunda Serie. Rio de Janeiro, . (Vidas Secas, pags. – .) (Excelente estudo.)&8221; E, do mesmo comentador, esta observacao no seu livro Origens e Fins: “Alvaro Lins, no melhor artigo que se escreveu sobre Graciliano Ramos, observou agudamente a abstracao do tempo – mas no tempo nao havia horas, assinala o critico – e acrescenta: Os outros personagens sao projecao do personagem; Juliao Tavares e Marina so existem para que Luis da Silva se atormente e cometa o seu crime. Tudo vem ao encontro do personagem principal – inclusive o instrumento do crime. Estas palavras do critico constituem a chave da obra do romancista: descrevem perfeitamente a nossa situacao no sonho, em que tudo e criacao do nosso proprio espirito.” (V.

Otto Maria Carpeaux – “Visao de Graciliano Ramos”,* in Origens e Fins. Rio de Janeiro, .) Nota da Editora – Este estudo sobre Graciliano Ramos encontra-se na integra em Angustia).

de um homem comum. Tudo o que ele tem de especial, de anormal, de misterioso, fica reservado para a sua literatura e nao para a sua vida. A obra de Machado de Assis esclareceu o “misterio” Machado de Assis. Os romances do Sr. Graciliano Ramos esclarecerao mais tarde o “misterio” Graciliano Ramos.

Onde se encontra, pois, a dificuldade para essa analise esclarecedora? Encontra-se na circunstancia de ser o Sr.

Graciliano Ramos um autor contemporaneo, uma figura que encontramos nas ruas todos os dias. Essa proximidade determina a existencia de obstaculos invenciveis. Outros obstaculos decorrem do respeito com que o critico esta sempre obrigado a tratar a figura pessoal de um autor vivo, pois somente a morte confere o direito de um julgamento definitivo, de uma interpretacao minuciosa e profunda. Acho que seria uma violencia projetar sobre um autor ainda vivo todos os elementos de analise que a sua obra oferece.

Nao tanto pelo autor em si mesmo, com uma consciencia literaria capaz de aceitar todos os exercicios da critica, como pelos rigores da vida ordinaria. Imagine-se um ministro da Viacao que suspeitasse da psicologia de Machado de Assis todo o conhecimento que a sua obra hoje revela com uma categoria de certeza…

Deixemos pois, para os dias de amanha, o que pode emergir de mais sugestivo num estudo critico sobre o Sr. Graciliano Ramos: a interpretacao da sua figura psicologica atraves dos seus romances: O que nos fica permitido hoje, neste sentido, e uma analise limitada. Um estudo que se detem mais sobre o romance do que sobre o romancista.

A respeito do Sr. Graciliano, ‘Ramos ainda nao me foi dado ler outra pagina mais explicativa do que o capitulo que lhe dedicou o Sr. Osorio Borba, em A Comedia Literaria . Tratase de um golpe de vista muito agudo que se desdobra em diversos aspectos, todos consideraveis. Nessa pagina encontro sugeridas as duas linhas convergentes da personalidade do Sr.

Graciliano Ramos: um homem do seu meio fisico e social, ao mesmo tempo que um romancista voltado para a introspeccao, a analise, os motivos psicologicos.

( OSORIO BORBA – A Comedia Literaria. Rio de Janeiro, . Desta obra fez a Editora Civilizacao Brasileira S. A., em data recente, uma nova edicao melhor cuidada).

Meio fisico – o que seria, no romance, a paisagem exterior – nao aparece muito objetivamente no romance do Sr.

Graciliano Ramos. Ele exprime o ambiente com fidelidade, mas somente em funcao de seus personagens. A ambiencia e um acidente; o personagem e que e a vida romanesca. A paisagem exterior* torna-se uma projecao do homem. O romance S.

Bernardo desenvolve-se todo dentro de uma fazenda; Paulo Honorio coloca a sua ambicao no dominio da terra. Contudo, a fazenda e a terra nao sao as realidades fundamentais de S.

Bernardo. A realidade fundamental do romance e a figura de Paulo Honorio com o seu egoismo, com a sua maldade, com o seu ciume, com a sua desumanidade.

Em Angustia, a abstracao sera mais completa. Encontramos certas visoes do Rio, de Maceio, de cidades do interior.

Todas elas, porem, constituem menos uma literatura paisagistica do que a localizacao explicativa do personagem Luis da Silva.

E dai a superposicao de planos na obra do Sr. Graciliano Ramos; o plano regional que se revela nos seus personagens marcados pelo meio fisico e social, na forma dos dialogos, todos muito fieis a lingua falada, nos ambientes onde se desenvolvem as figuras e os enredos dos seus livros; o plano universal que se alarga nos dramas dos seus romances, nos sentimentos complexos dos seus personagens, na linguagem muito rigorosa e pura – pode-se dizer: classica – do romancista.

Dois planos, portanto, que chegam a espantar o leitor: o prosaismo – mais ainda: uma especie de vulgaridade – da vida ordinaria dos personagens e a alucinacao da sua vida psicologica; a linguagem trivial dos dialogos e a linguagem literaria do autor propriamente: figuras de aparencia simples e rustica – o caso de Paulo Honorio, por exemplo – agitadas por sentimentos complexos e sensacoes fora do comum.

Em qualquer desses aspectos permanece uma preocupacao dominante: a de revelar o carater humano. Nao so o romancista esta dominado por esse desejo de conhecer os seus semelhantes, mas esta aspiracao e tambem dos seus personagens. Vivem todos voltados para dentro, com olhos que se inutilizaram quase para os quadros exteriores da vida.

Faz uma confissao neste sentido o personagem principal de Angustia: Nunca presto atencao as coisas, nao sei para que diabo quero olhos, Trancado num quarto, sapecando as pestanas em cima de um livro, como sou vaidoso, como sou besta! Caminhei tanto e o que fiz foi mastigar papel impresso.

Idiota. Podia estar ali a distrair-me com a fita. Depois, finda a projecao, instruir-me vendo as caras. Sou uma besta.

Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba.

Esta preocupacao de fixar e exibir o carater humano poderia significar que o Sr. Graciliano Ramos estima os seus semelhantes e esta interessado pela sua sorte. Mas, nao.

Verifica-se o contrario; o seu julgamento dos homens e o mais pessimista e frio que se possa imaginar; o seu sentimento em face deles e de odio ou desprezo. Numa certa ocasiao, o personagem de Angustia diz que tem pena de Marina, que tem pena de D. Adelia, que merecem compaixao todas as criaturas que sao instrumentos. Contudo, embora todas as criaturas sejam instrumentos de destino ou dos seus instintos, nos romances do Sr. Graciliano Ramos, nao encontramos em parte nenhuma aquele sentimento de piedade que Luis da Silva sugere. Com uma fria impassibilidade, o romancista contempla a miseria humana de seus personagens. Nao lhes concede a minima piedade. Ao contrario: o romancista chega a estar animado de um certo prazer nessa contemplacao da miseria humana. Podemos falar, sem exagero, de uma crueldade do criador diante da sua criacao.

Trata-se de um caso semelhante ao de Machado de Assis, com muitas linhas de aproximacao a estabelecer entre os dois. Ja houve mesmo quem falasse de influencia; e o Sr. Graciliano Ramos se defendeu com um argumento fulminante: que nunca havia lido antes Machado de Assis… O problema dessa influencia sera mais tarde esclarecido pela historia literaria; o que interessa agora e um problema de aproximacao e semelhanca, que nao nasce so da influencia direta de um autor sobre outro, mas de uma certa identidade de sentimentos em face da vida e da literatura. O que aproxima o Sr.

Graciliano Ramos de Machado de Assis e a mesma concepcao da vida, o mesmo julgamento dos homens, ao lado de uma semelhante estrutura temperamental.

Todavia, o Sr. Graciliano Ramos parece-me mais feroz e cruel na sua criacao romanesca. O sentimento de Machado de Assis: indiferenca e ceticismo; o seu humour era destruidor, mas sereno. O do Sr. Graciliano Ramos: odio ou desprezo, sendo o seu humour – muito raro, alias – de um carater sombrio e aspero. Em conjunto, a sua obra constitui uma satira violenta e um panfleto furioso contra a humanidade. O que a torna, nesse sentido, menos ostensiva e mais arejada, e a circunstancia de ser o Sr. Graciliano Ramos um verdadeiro artista, um escritor da mais alta categoria.

Dos seus romances, acho S. Bernardo o que mais explica a ideia que o Sr. Graciliano Ramos sustenta a respeito dos homens. Sera impossivel nao estender um pouco ao romancista esta conclusao de Paulo Honorio: Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos, Havia bichos domesticos, como Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o servico do campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns nos outros, la embaixo, tinham lampadas eletricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus.

E nao e que Paulo Honorio esteja muito acima dos outros seres que julga tao friamente. A principio, uma desmedida ambicao deu-lhe essa miragem de superioridade. Depois, a sua impressao desaba no momento mesmo em que alcanca os seus fins. Desaba sob o peso do egoismo e do ciume que devoram Paulo Honorio. Julga-se, ele proprio, entao, nestas palavras: O que estou e velho. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros.

Em Angustia, Luis da Silva representa uma figura de fracassado; nao existe uma ambicao frenetica para determinalo, como a de Paulo Honorio. O seu egoismo nao e o do conquistador, mas o do vencido. Num certo sentido, representa o outro lado de Paulo Honorio. Luis da Silva nao tem a ambicao, nao tem a vontade, nao tem nenhum sentimento forte.

Paulo Honorio e a vida instintiva que se afirma; Luis da Silva, a vida instintiva que se dissolve. Conquanto opostos, eles se encontram na sequencia final dessas vidas instintivas e materialistas; encontram-se na conclusao de que a vida nao tem sentido nem finalidade.

Estamos ante a filosofia do nada – a da absoluta negacao e destruicao – que o Sr. Graciliano Ramos cultiva para os seus personagens. A ascensao de Paulo Honorio ou a decadencia de Luis da Silva representam caminhos diferentes para o mesmo niilismo. Os demais personagens nao se afastam desse fim melancolico. Todos se acham dentro da vida, como que perdidos e abandonados, sem nada saber da sua origem nem do seu destino. Os seus atos se originam e se justificam, por si mesmos, fora de qualquer preocupacao moral e transcendente.

Um mundo romanesco, o do Sr. Graciliano Ramos, que nunca se afasta da dimensao naturalistica. Representa, ele, o estranho fenomeno de um romancista introspectivo, interiorista, analitico, sem que leve em conta no homem outra condicao que nao seja a materialistica. Um romancista da alma humana, tendo uma concepcao materialista dos homens e da vida. E o materialismo dos personagens e que os leva logicamente ao rclativismo moral. Nem praticam a bondade, nem acreditam sequer na existencia dela. Por detras de todos os gestos surge o interesse egoista, uma segunda e secreta intencao. Em Angustia, conta Luis da Silva a proposito da morte do avo: Iam levando o cadaver de Camilo Pereira da Silva. Corri para a sala, chorando. Na verdade, chorava por causa da xicara de cafe de Rosenda, mas consegui enganar-me e evitei remorsos.

E mais adiante o seu relativismo moral chega a um momento supremo nesta reflexao: Um crime, uma acao boa da tudo no mesmo. Afinal ja nem sabemos o que e bom e o que e ruim, tao embotados vivemos.

Tambem Paulo Honorio, em S. Bernardo, conclui sem qualquer hesitacao: A verdade e que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuizo; fiz coisas ruins que me deram lucro.

Esse relativismo moral implica outro relativismo de ordem generica que se constitui uma especie de ambiencia para o Sr.

Graciliano Ramos, como romancista. Toda a sua obra guarda um certo carater de vertigem, de oscilacao, de ambivalencia. E o relativismo do tempo, o qual, como se sabe, representa uma contingencia muito importante no desenvolvimento romanesco.

Tendo uma concepcao materialista da vida, o Sr. Graciliano Ramos nao poderia utilizar-se do recurso do tempo metafisico.

Por outro lado, para um romancista psicologico, o tempo convencional e naturalista seria um obstaculo. O Sr.

Graciliano Ramos deliberou, entao, valer-se de um recurso intermediario: a abstracao do tempo. Em Angustia encontramos esta observacao reveladora: Mas no tempo nao havia horas.

Em S. Bernardo aparece um relogio, mas que “tinha parado”.

O tempo torna-se assim um elemento indeterminado e arbitrario. Nunca se sabe exatamente quando a narrativa corresponde, em tempo e acao, aos fatos e atos que a produzem. Bem: a historia de Luis da Silva pode estar contida em dez meses ou em dez anos, indiferentemente. Sim: “no tempo nao havia horas.” E a ausencia do tempo vai determinar a ausencia de “acao” direta no romance. A acao de Angustia e uma acao reflexiva: Angustia e uma “historia”, uma narracao do passado, uma vida da memoria. De certo modo, isto mesmo acontece com todos os romances; todos os romances sao episodios ja passados e por isso e que podem ser contados; mas o romancista lhes da uma ilusao de vida presente, atraves de um jogo malabaristico com o tempo. O Sr.

Graciliano Ramos desdenha esta ilusao. Angustia e certamente um romance, porem, em termos formais, dir-se-ia um livro de memorias, um diario, um inventario, um testamento. O mesmo que sucede com S. Bernardo, em que Paulo Honorio confessa que nada mais pretende do que fixar a experiencia da sua vida.

Contudo, S. Bernardo ainda contem uma ordem narrativa, uma regular disposicao romanesca, enquanto Angustia se realiza sob o signo da mais oscilante desordem.

Confesso que essa desordem me agrada porque tem correspondencia no espirito mesmo do romance. O espirito do romance e a sua forma se ajustam harmonicamente na desordem. Desordem, que vem de Luis da Silva, a determinar Angustia, como Paulo Honorio determina S. Bernardo. Os outros personagens sao projecoes do personagem principal.

Juliao Tavares o Marina so existem para que Luis da Silva se atormente e cometa o seu crime. Tudo vem ao encontro do personagem principal – inclusive o instrumento do crime – para que ele realize o seu destino. Representa esta circunstancia uma outra forma de egoismo, desde que o egoismo e o sentimento dominante nos personagens mais caracteristicos do Sr. Graciliano Ramos.

Na forma de Angustia, o egoismo do personagem principal se afirma pela concentracao do romance em sua propria pessoa.

Luis da Silva e todo o romance Angustia. Contando a sua historia, Luis da Silva absorve-a em si mesmo. O romance toma, por isso, a forma e as dimensoes do seu espirito. Tomase um diario que o personagem escreve posteriormente. A sua memoria se desdobra em ziguezague e a narracao romanesca acompanha fielmente esse ziguezague da memoria de Luis da Silva. O seu metodo e o da confissao psicanalitica: uma palavra que explica outra, um pensamento que esclarece outro.

E tambem o da associacao das ideias: uma ideia que atrai outra ideia, uma lembranca que sugere outra lembranca. Luis da Silva nao vive senao da sua memoria e da sua imaginacao.

Mas a sua propria imaginacao, no romance, constitui um resultado da memoria, Luis da Silva conta o que imaginou anteriormente, a sua imaginacao ja se tornou um fato do passado, um patrimonio da memoria.

Observa-se, por isso, que a veridicidade do romance do Sr.

Graciliano Ramos e uma realidade estatica, nao dinamica.

Dinamica, por exemplo,, e a realidade romanesca de Dostoievski. A do Sr. Graciliano Ramos, porem, nunca sera desta categoria, porque ele e um racionalista, um analista, um frio experimentador. A sua raca e a de Stendhal, nunca a de um Dostoievski. Por isso e que do seu romance se depreende mais a “historia” de uma angustia do que a “angustia” em si mesma. Uma angustia racionalizada e historica, nao uma angustia natural e presente. O estado de delirio, de exaltacao, de demonismo, o estado dionisiaco capaz de exprimir a angustia – este nao sera nunca o do Sr. Graciliano Ramos. O seu estado pode-se definir como o do historiador da angustia.

Um estado de razao, de lucidez, de sobriedade. O criterio que preside a sua obra e um criterio de inteligencia; a sua potencia e cerebral e abstrata. Nao sei, por isso, que misteriosa intuicao para se definir levou o Sr. Graciliano Ramos a escolher o titulo Vidas Secas para um de seus romances. Sem duvida, todos os seus personagens sao de fato “vidas secas”. Os seus personagens e este estilo em que se exprime o romancista.

Admiravel estilo de concisao, unidade entre as palavras e os seus sentidos, rigido ascetismo tanto na narracao como nos dialogos, rapidos, exatos, precisos. Dialogos e narracao que fazem do Sr. Graciliano Ramos um mestre do seu oficio de romancista. Um mestre da arte de escrever, acrescento, sem nenhum medo de estar errando.

E essa categoria, ele a conquistou com as “vidas secas” que povoam o seu mundo romanesco. Este mundo romanesco e um mundo sem amor. A sua concepcao da vida esta toda limitada, de um lado pelos instintos humanos, do outro por um destino cego e fatalista. Mas nao esqueco o que essa visao do mundo significa de sofrimento e de tormentos intimos na figura do seu criador. Por isso a circunstancia de aceitar-se ou nao toda a concepcao da vida, que ressalta dos romances do Sr.

Graciliano Ramos, nao deve impedir ninguem de admirar o artista que a sustenta; o artista que transforma este mundo arido e sombrio numa verdadeira categoria de arte. Alem disso, quem sabe, estes romances podem constituir mais do que uma obra de arte, isto e: a libertacao de um homem que se evade de um mundo que detesta, embora carregando o destino de somente criar mundos semelhantes. E aqui esta uma licao: a de que nem sempre a imaginacao dispoe de recursos para dominar a vida real .

Outubro de .

( Com as suas ideias e a sua experiencia de hoje, este Autor nao mais ai escreveria “nem sempre”. Escreveria “nunca”).

– As “memorias” do romancista explicam a natureza e a especie dos seus romances Sim, um mundo sem amor e sem alegria, o da ficcao do SF. Graciliano Ramos. Aparece nos seus romances toda uma galeria de personagens egoistas, crueis, insensiveis. Paulo Honorio, em S. Bernardo, erguese como um simbolo, marcado pelo ciume, pela maldade, pelo egoismo, pelo temperamento aspero e solitario. Os seres deste mundo de ficcao em quatro romances – um dos mais impressionantes, sobretudo pela construcao literaria e pelo senso artistico, em toda a literatura brasileira – sao em geral desgracados, criaturas em desencontro com o destino, humilhadas e destrocadas. Nao encontram sentido para a vida, nao se associam nem se solidarizam em movimentos de ascensao; carregam, com a ausencia de fe, um tamanho poder de negacao que so encontra correspondencia numa especie de niilismo moral, num desejo secreto de aniquilamento e destruicao. O ambiente que os envolve tem qualquer coisa de, deserto ou de casa fechada e fria. Nenhuma salvacao, nenhum socorro vira do exterior. Os personagens estao entregues aos seus proprios destinos. E nao contam sequer com a piedade do romancista. O Sr. Graciliano Ramos movimenta as suas figuras humanas com uma tamanha impassibilidade que logo indica o desencanto e a indiferenca com que olha para a humanidade.

Que me lembre, so a um dos seus personagens ele trata com verdadeira simpatia, e este nao e gente, mas um cachorro, em Vidas Secas. Contudo, a piedade que nao lhes concede diretamente, o Sr. Graciliano Ramos provoca dos leitores para os seus personagens. E isto so acontece quando nas raizes da vida do romancista tambem se encontram os mesmos tracos de infelicidade, tristeza e solidao, os vestigios ou as sombras dos sonhos sufocados e estrangulados. O autor nao pode entao exprimir piedade, porque o pudor e a dignidade artistica o impedem de ter piedade de si mesmo. Ele nao tem pena dos seus personagens, porque esta projetado neles, e dispoe de forcas suficientes para de si mesmo nao ter pena nenhuma. Este fenomeno de criacao literaria, nos romances do Sr. Graciliano Ramos, aparece agora devidamente esclarecido na revolucao da sua infancia por intermedio de um livro de memorias .

( GRACILIANO RAMOS – Infancia. Rio de Janeiro, ).

Sim: e em Infancia que poderemos encontrar a significacao de S. Bernardo e Angustia. As memorias da vida real explicam o mundo de ficcao do romancista. Nul ne peut ecrire la vie d’un homme qui lui meme – dissera JeanJacques Rousseau para justificar as suas Confessions. Ele envolvera, no entanto, as miserias a confessar numa forma de poesia, porque a sua sinceridade era a do sonhador. O Sr. Graciliano Ramos e um anti-sonhador por excelencia; e deu a expressao das suas lembrancas um carater de intransigente realismo. Ele nao nos revela sequer os seus sonhos de menino, os sonhos que ocupam a maior parte do universo das criancas, e que vao sendo depois esquecidos ou destruidos pela realidade, no contato com os adultos. O que vemos aqui ja e essa propria realidade em toda a sua dureza e crueldade. Nenhuma poesia, nenhum sonho, nenhuma fantasia na infancia triste e solitaria do romancista.

Pergunta-se: o que e rigorosamente real e o que e imaginado neste livro de memorias? A resposta nao tera importancia para o conhecimento psicologico do autor. A sinceridade do artista nao e um problema que se resolva nos mesmos termos da sinceridade nas relacoes sociais entre os homens. Um artista, ao deformar a vida, nao mistifica a ninguem, apenas a si mesmo. Quando um artista traca de si proprio uma imagem – ela tem sempre autenticidade, se nao a dos fatos, a da vida interior, que e a principal no caso. Ele e realmente o que imagina ter sido.

Ora, as memorias do Sr. Graciliano Ramos constituem a expressao realista das suas lembrancas; e sao ainda mais autenticas ou reveladoras nos detalhes que ele, porventura, lhes tenha acrescentado pela imaginacao. Para se definir e revelar ha ainda que levar em conta o processo, o espirito de escolha do memorialista. Nao lhe e possivel narrar tudo o que aconteceu durante a infancia, nem exprimir todas as impressoes e sensacoes de menino. Muitos episodios estao mortos pelo esquecimento, a muitas lembrancas sera dificil ressuscitar porque se tornam confusas e indecifraveis. As recordacoes da infancia em qualquer pessoa representam materia – no sentido da filosofia estetica de Benedetto Croce: “a emocionalidade ainda nao elaborada esteticamente” s – e so adquirem existencia pela forma mediante a ( BENEDETPO CROCE – Nuovi saggi di estetica.

Laterzia. Bari, ).

intuicao, que vem a ser a mesma coisa que a expressao artistica. Digamos entao, com mais seguranca, que nesse fenomeno de captar o passado, e dar-lhe forma pela intuicao, nao ha lugar propriamente para o ato de escolha. Ao abandonar certos aspectos da infancia, ao fixar-se em outros, o artista nao o faz arbitrariamente, mas determinado pelas impressoes que se prolongaram nele, que o influenciaram, que marcaram depois os seus sentimentos, ideias e visoes de adulto.

Nao sera significativo que em Infancia nao aparecam os instantes agradaveis, felizes, ilusoes e sonhos do menino Graciliano Ramos? Que tenham sido conservados pela memoria, de preferencia, os momentos de infelicidade, tristeza o solidao, as humilhacoes e decepcoes da infancia? E que os primeiros foram superficiais e efemeros, talvez porque menos frequentes, logo esmagados pelos segundos, mais constantes; o foram estes que permaneceram, que lhe marcaram a natureza humana. Quando se decidiu a escrever um livro de memorias, a sensibilidade reagiu em toda a sua exacerbacao; o exprimiu-se pela exteriorizacao daquilo que nela se gravara mais profundamente.

No mundo infantil do Sr. Graciliano Ramos a injustica se erguia no horror dessa divisao: de um lado, criancas submissas e maltratadas, do outro lado, adultos, crueis e despoticos. Pais, maes, mestres, todos os adultos pareciam dotados da missao particular de oprimir as criancas. Um mundo intoleravel de castigos, privacoes e vergonhas. Uma ou outra excecao, que atravessa de leve essas recordacoes, nao chega a partir a unidade na fisionomia de infortunio e desolacao.

Toma quase que o aspecto de uma figura do outro mundo a professora Maria, com a voz suave, com seus impulsos de ternura, que por isso mesmo tanto surpreendeu a principio o menino Graciliano Ramos, ja acostumado, em casa, com o tratamento de “bolos, chicotadas, cocorotes, puxoes de orelhas”. A professora Maria, porem, e um episodio que logo desaparece; a realidade que fica e a da professora Maria do O, quase sadica no tratamento impiedoso dado a menina Adelaide. E o que foi o espetaculo da infancia desgracada, para a visao do Sr. Graciliano Ramos, ve-se no capitulo comovente “A Crianca Infeliz,” um dos ultimos do livro.

Seria impossivel que esse ambiente de educacao deformada, de crueldade e dureza, nao se refletisse na imaginacao do romancista, nao influisse decisivamente na sua visao dos acontecimentos e dos homens. Alem das sugestoes, indiretas, ele indica claramente as impressoes que guardou para sempre de certos episodios da infancia. Um dia, o seu pai julgou que ele havia escondido um cinturao, quis obriga-lo a encontrar um objeto em que ele nao havia sequer tocado. Foi surrado brutalmente, sem investigacao e sem culpa. Ao reviver agora esta cena, reconstruida no livro com magnifica intensidade literaria, o Sr. Graciliano Ramos ve nela o seu “primeiro contato com a justica”, e comenta: As minhas primeiras relacoes com a justica foram dolorosas e deixaram-me funda impressao.

Seu pai, juiz substituto de interior, prendera impulsivamente um pobre-diabo, que nenhuma falta cometera, que nao praticara nenhum crime. Testemunhando esse abuso de autoridade, escreve agora a respeito: Mais tarde, quando os castigos cessaram, tornei-me em casa insolente e grosseiro – e julgo que a prisao de Venta-Romba influiu nisto. Deve ter contribuido tambem para a desconfianca que a autoridade me inspira.

Teve desde cedo a sensacao da desigualdade entre os homens: Notava diferencas entre os individuos que se sentavam nas redes e os que se acocoravam nos alpendres. O gibao do meu pai tinha diversos enfeites; no de Amaro havia numerosos buracos.

O folclore do seu ambiente no interior tornou-o cetico quanto ao heroismo: Mais tarde, entrando na vida, continuei a venerar a decisao e o heroismo, quando isto se grava no papel e os gatos se transformam em papa-ratos. De perto, os individuos capazes de amarrar fachos nos rabos dos gatos nunca me causaram admiracao. Realmente sao espantosos, mas e necessario ve-los a distancia, modificados.

Elogiaram-lhe certa vez, com risos, por pilheria, o seu paleto cor de macaco; e ele deixou de acreditar em elogios: Guardei a licao, -conservei longos anos esse paleto.

Conformado, avaliei o forro, as dobras e os pespontos das minhas acoes cor de macaco. Paciencia, tinham de ser assim.

Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele e realmente: chinfrim e cor de macaco.

Do ambiente familiar, a impressao definitiva que lhe ficou, traduz-se nesta confissao: Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, o pavor.

Do pai e da mae reve “pedacos deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem labios, maos grossas e calosas, finas e leves, transparentes”.

Porque nao se sentiu amado, nem teve uma infancia de ternuras e afagos, o Sr. Graciliano Ramos reagiu com sentimentos de indiferenca e desprezo em face de toda a humanidade. Ele nao escreveu estas memorias apenas por motivos literarios, antes para se libertar dessas lembrancas opressivas e torturantes.

Escreveu a historia da sua infancia porque a detesta com amargura. Nao se achou, por isso, obrigado a complacencias para com os outros. Refere-se aos pais com realismo, com objetividade, como se estivesse. desligado deles. Nao manifesta propriamente odio a nenhum dos seres que o fizeram sofrer, mas da-lhes uma retribuicao na frieza, na dureza implacavel com que os revive. E este rigor, este sistema anti-sentimental de observacao, estende-se a si mesmo sem qualquer condescendencia. Verificamos nestas memorias que a atitude do Sr. Graciliano Ramos em face da vida nao e bem a do humour, mas a do sarcasmo, produto da revolta de uma sensibilidade vibratil e tensa. Sensibilidade que, maltratada, macerada, sufocada, reagiu depois por intermedio da criacao de um mundo de ficcao em que se projetaram as sombras e as sensacoes de um pavoroso mundo infantil.

Literariamente, o Sr. Graciliano Ramos encontrou no genero memorias uma forma de rara adequacao para a sua arte de escritor, para o seu estilo. Creio que este e o mais bem escrito de todos os seus livros. Percebe-se aqui o apuro do trabalho de composicao e estilo, o seguro artesanato literario. A secura, a frieza dessas impressoes de infancia encontra a devida correspondencia no seu estilo sobrio, ascetico, livre de adornos. A prosa do Sr. Graciliano Ramos e moderna, no seu aspecto desnudado, no vocabulario, no gosto das palavras e das construcoes sintaticas, e e classica pela correcao, pelo tom como que hieratico das frases. O que a valoriza propriamente nao e a beleza, no sentido hedonistico da palavra, mas a sua precisao, a sua capacidade de transmitir sensacoes e impressoes com um minimo de metaforas e imagens, quase so com o jogo e o atrito de vocabulos, principalmente de adjetivos. Destacaria em Infancia, pelo conteudo dramatico e pela arte literaria, capitulos como.

“O Moleque Jose”, “O Cinturao”, “Minha Irma Natural”, “Um Enterro”, “Venta-Romba”, “A Crianca Infeliz”. Nenhum deles, porem, chega a superar o capitulo final, “Laura”, em cujas paginas descreve a passagem da infancia para a adolescencia, com as primeiras inquietacoes da carne e do sexo. Ao lado destes, certos capitulos como “O Fim do Mundo”, “O Inferno” e “Antonio do Vale” tornam-se mais ou menos insignificantes.

Imagino que as pessoas sentimentais, ou as educadas normalmente, ficarao constrangidas ao ler as memorias do Sr.

Graciliano Ramos, mas espero que, antes de tudo, tambem se sintam comovidas. Estas paginas determinam igualmente a compreensao dos seus romances, do seu mundo romanesco marcado pela tristeza e pela solidao. Escreveu Wilhelm Dilthey que “a autobiografia nao e senao a expressao literaria da autognosis do homem acerca do curso de sua vida” . A autobiografia do Sr. Graciliano Ramos explica o carater aspero e sombrio da sua obra de romancista: o criador de S. Bernardo e Angustia ja estava no menino amargurado de Infancia, onde encontramos agora as raizes do seu niilismo implacavel e devastador.

Setembro de .

( WILHELM DILn EY – La imaginacion del poeta, in Poetica.

Traduccion del aleman de Elsa Tahernig. Editorial Losada S.A.

Buenos Aires, ).

III – Romances, novelas e contos: visao em bloco de uma obra de ficcionista Um acontecimento ao mesmo tempo literario e editorial e o aparecimento em conjunto de todas as obras de ficcao do Sr. Graciliano Ramos, quatro romances e um livro de contos s. Em rigor, seria preferivel, porque mais exata, esta classificacao: dois romances: Caetes e Angustia; duas novelas: S. Bernardo e Vidas Secas; um volume de contos: Insonia. A distincao nao decorre do tamanho, nem mesmo da qualidade dos livros, mas do espirito de concepcao e realizacao. A falta de diferenciacao neste sentido, e, alias, muito comum na literatura brasileira, na qual a maioria dos livros classificados como romances mereceria com mais propriedade o titulo de novelas. Por coincidencia, em nosso caso, dos dois livros do Sr. Graciliano Ramos que nos parecem especificamente romances, um, Angustia, e a sua obraprima, e uma das realizacoes importantes e caracteristicas da ficcao brasileira, enquanto o outro, Caetes, e uma obra de todo falhada e inexpressiva. As duas novelas, por sua vez, sao ambas excelentes e consideraveis, nao obstante alguns defeitos fundamentais de idealizacao e de construcao, que serao indicados no decorrer destes artigos, com os quais voltamos pela terceira vez a tratar de um autor especialmente estimado e de uma obra calorosamente admirada por todos os seus companheiros de vida literaria .

Nos estudos anteriores, o meu objetivo foi interpretar o sentido geral da obra do Sr. Graciliano Ramos, procurando fixar os tracos de personalidade do escritor e a projecao dela atraves da arte literaria. Tinha imaginado discutir desta vez a significacao politica da sua obra, e com uma opiniao GRACILIANO RAMOS – Caetes. Rio de Janeiro, . GRACILIANO RAMOS – S. Bernardo. Rio de Janeiro, .

GRACILIANO. RAMOS – Vidas Secas. Rio de Janeiro, .

GRACILIANO RAMOS – Insonia. Rio de Janeiro, .

Nao havia nessa epoca ainda nenhum estudo de conjunto – hoje acontece com o tao importante ensaio de Antonio Candido – acerca da criacao ficcionista de Graciliano Ramos. Este Autor, nos presentes capitulos, foi o primeiro a quem coube faze-lo, nao obstante em proporcoes modestas, e nas condicoes possiveis com referencia a um romancista ainda vivo, cuja obra a ninguem seria dado entao saber se estaria ou nao ja concluida como um todo.

contraria a que se acha estabelecida, no que me vejo impedido pelas circunstancias exteriores, pois nao seria leal e correto abrir esse debate num momento que lhe e pouco oportuno, prestando-se a minha atitude a exploracoes extraordinarias”. Procuremos, entao, outro terreno para esses comentarios, a fim de que nao redundem em simples repeticao ou variacao dos anteriores. Este terreno podera ser o da evolucao literaria do Sr. Graciliano Ramos, vista melhor atraves de uma leitura de conjunto dos seus romances e novelas, fixada em cada um dos seus livros. Pois a verdade e que este ficcionista, bastante limitado, a certo respeito, nas suas visoes, jogando com um ambiente social reduzido, e nao muito vastos recursos de revelacao psicologica, conseguiu, no entanto, fazer de cada um dos seus livros uma obra independente, sempre com elementos particulares e caracteristicas proprias, sem se repetir, sem transmitir nunca a sensacao de que um deles esta prolongando o outro atraves de aspectos semelhantes. Isso e um resultado da sua arte literaria, da sua capacidade de utilizar, com o maximo proveito, todos os elementos de observacao, inspiracao, imaginacao e cultura, de que dispoe conscientemente.

A primeira edicao de Caetes apareceu em ; o seu autor, nessa epoca, era uma figura municipal, tendo vivido ate a maturidade numa cidade do interior de Alagoas. Nao se tinha ai a estreia de um rapaz, de um jovem, pois ao publica-lo ja entrara o romancista na casa dos quarenta anos. Essa circunstancia explicara, talvez que, sendo Este Autor projetara – e nisto estava interessado o proprio romancista – realizar um estudo de interpretacao da obra de Graciliano Ramos sob o ponto de vista do marxismo, aproveitando a circunstancia de ter-se inscrito ele, dois anos antes, como membro do Partido Comunista. Todavia, isto se tornou impossivel, em realidade etica, porque no momento em que apareceram os seus livros em conjunto, e quando, consequentemente, preparei este ensaio – julho de – os comunistas brasileiros estavam sendo objeto de uma perseguicao policial zoologicamente feroz e brutal por parte do governo do marechal Dutra. Um governo que deve ficar caracterizado pelos intelectuais – e para vergonha e anatema de quem nele ocupou cargos e posicoes – como o mais violento, o mais grosseiro e o mais desonesto de todos os governos republicanos.

um livro falhado e sem valor, Caetes nem sequer tenha deixado suspeitar o grande escritor que surgiria depois em S.

Bernardo, Angustia e Vidas Secas. Nao havia nele as indecisoes, os erros, as perplexidades, os excessos, misturados, porem, a certas revelacoes de talento, que nos livros de alguns estreantes nos levam a jogar certo no futuro deles. Nao; nao era este o caso de Caetes. Tudo nas suas proprias paginas revelava seguranca e estabilidade, mas de ma qualidade. Um livro macicamente ruim. A vulgaridade do ambiente do romance – e todo ele se processa atraves de coisas reles, pequenas intrigas e conversinhas de uma cidade do interior parece ter contaminado a propria arte do romancista, de modo que assunto e realizacao permanecem no mesmo plano mediocre. Logo na primeira pagina, na primeira cena, encontramos a vulgaridade de expressao daquele “e deulhe dois beijos no cachaco”, seguida mais adiante de outra, que escolhemos apenas entre os possiveis e numerosos exemplares neste sentido: Que diabo! Se ela me preferisse ao marido, nao fazia mau negocio. E quando o velhote morresse, que aquele trambolho nao podia durar, eu amarrava-me a ela, passava a socio da firma e engendrava filhos muito bonitos.

Estilo correto, o do Sr. Graciliano Ramos, desde este primeiro romance, mas ainda sem a justeza, o vigor e a expressividade que lhe sao caracteristicos. O ritmo das frases ainda se apresentava sem regularidade, as vezes saltitante, as vezes telegrafico, como se estivesse comprimido: Acharam-me apatico e murcho. D. Maria Jose perguntou, solicita, se as comidas me desagradavam. Macada.

As comidas eram otimas, respondi, mas o estomago e a cabeca nao me iam bem. O Dr. Liberato me indicou um remedio.

Agradeci e recolhi-me.

Por sua vez o enredo de Caetes e comum e destituido de interesse. Torna-se simplesmente monotona aquela pretensao de Joao Valerio, aquele projeto de conquista amorosa, que nem se realiza, nem gera alguma acao romanesca. Arrastada e a acao, arrastados os dialogos. Alem disso, o processo do romance .e de carater fotografico, com mais pitoresco do que dramaticidade; os personagens sao tipos convencionais, que nao se individualizam nem pelos seus atos nem pelos seus caracteres. Costuma-se dizer que este primeiro romance do Sr. Graciliano Ramos foi muito influenciado por Eca de Queiros. Ora, a nao ser em algumas pilherias, e na pagina final, que realmente parece ter sido inspirada nas ultimas paginas de A Ilustre Casa de Ramires, nao vejo nitidamente as linhas dessa ligacao. Parece-me que mais verdadeiro foi o Sr.

Joao Gaspar Simoes quando o aproximou de Camilo Castelo Branco, naturalmente de um Camilo Castelo Branco despojado do arcaismo e da linguagem artificiosa. Por que nao me agradou nada este romance Caetes? Nao quero ser categorico na minha opiniao; e tomo a iniciativa de sugerir ao leitor que talvez ela tenha decorrido da circunstancia de so agora o haver lido, depois de conhecer toda a capacidade e toda a arte do autor de uma obra como Angustia.

Apenas um ano depois de Caetes, em , aparecia S.

Bernardo, e dir-se-ia que era o livro de um novo escritor, tal a diferenca entre um e outro, quanto ao valor literario e a significacao humana. A nao ser que o primeiro tenha sido escrito muitos anos antes do aparecimento, a evolucao tao fundamente marcada no segundo, num insignificante espaco de tempo, e inexplicavel, e um dos muitos misterios da criacao artistica. Isso seria assunto, alias, para uma pagina de depoimento ou interpretacao, a ser escrita por algum dos companheiros que viveram em intimidade com o Sr. Graciliano Ramos na sua’ fase alagoana.

Nao e pelo ambiente que o plano de concepcao e de construcao do romancista se amplia, engrandecido em S.

Bernardo. O ambiente de Caetes e uma pequena cidade do interior; o de S. Bernardo ainda e menor: uma fazenda. Os personagens tambem nao sao nem mais numerosos, nem mais significativos socialmente. Pelo contrario: o mundo romanesco e mais reduzido e concentrado no segundo livro, o que lhe da um carater marcante e segurissimo de novela bem estruturada.

A fazenda S. Bernardo transfigura-se num autentico microcosmo. As figuras apresentam humanidade, paixoes, dramas, miserias, anseios de felicidade e quedas na irremediavel desgraca. O Sr. Graciliano Ramos, ao criar e movimentar personagens como Paulo Honorio e Madalena, parece ter encontrado, definitivamente, o seu plano de ficcionista: o do romance psicologico. A sua especialidade nao e a invencao de acontecimentos, nem mesmo o aproveitamento em extensao, com objetivos dramaticos, de acontecimentos porventura observados ou vividos diretamente.

Neste sentido,. o mundo romanesco do Sr. -Graciliano Ramos e pobre, limitado, deficiente. O que transmite vitalidade e beleza artistica aos seus romances nao e o movimento exterior, mas a existencia interior dos personagens. Os acontecimentos so tem significacao pelos seus reflexos nas almas, nos caracteres, nos pensamentos. E isto constitui a forma superior da ficcao, tanto mais estimavel no Brasil quanto o nosso temperamento nao se mostra muito propicio ao que ela exige de concentracao espiritual, densidade psicologica e complexidade literaria. Com S. Bernardo, o Sr.

Graciliano Ramos apresentou a sua primeira obra de analise psicologica, de iluminacao interior de personagens, na linha de um processo que daria em seguida todos os seus resultados em Angustia. Acompanhando os assuntos para esse terreno subjetivo, o estilo do romancista adquiriu, por sua vez, a propriedade, a elegancia e o vigor que fazem do Sr.

Graciliano Ramos um dos escritores que melhor manejam atualmente a lingua portuguesa. As vezes, em certos trechos, ele me desagrada pela secura e dureza, como pela ausencia de vibracao e dinamismo, mas isto talvez decorra em grande parte daquela limitacao de assuntos e de problemas, acima sugerida.

O principal defeito de S. Bernardo ja tem sido apontado mais de uma vez: e a inverossimilhanca de Paulo Honorio como narrador, e o contraste entre o livro e seu imaginario escritor, o que se ja verificara em Caetes. De certo modo, em todos os romances escritos na primeira pessoa, concede-se uma margem para a inverossimilhanca. Contudo, em S. Bernardo ela e excessiva e inaceitavel. Uma novela de tanta densidade psicologica, elaborada com tantos requintes de arte literaria, nao suporta o artificio de ser apresentada como escrita por um personagem primario, rustico, grosseiro, ordinario, da especie de Paulo Honorio. Mesmo com um narrador impessoal, alias, ainda subsistiria alguma inverossimilhanca, pois aquele personagem, como aparece no romance, nao podia ter a vida interior que lhe atribui o romancista. E a inverossimilhanca que se verificara, embora sob outro aspecto, em Vidas Secas.

Nota-se a principio uma certa hesitacao na marcha do enredo de S. Bernardo. Os primeiros capitulos se lancam em varias direcoes, como se o proprio romancista nao estivesse ainda no dominio da linha central do desenvolvimento dramatico. Ha mesmo alguns trechos que parecem enxertados, podendo figurar ou nao no conjunto, indiferentemente, como o capitulo VII, com a historia independente de seu Ribeiro.

Como ficcao, rigorosamente, o livro so se afirma e define a partir do casamento de Paulo Honorio com Madalena. E seu nucleo central, com efeito, e a existencia desses dois seres, o patetico do nao entendimento entre eles, o jogo de contraste e separacao daquelas duas criaturas dentro de uma mesma casa. Atraves dessas situacoes, o romancista desvenda e analisa o carater de Paulo Honorio, o que constitui a maior atracao de S. Bernardo. Tratado com uma sobriedade, que as vezes atinge o esquematismo, o assunto se apresenta, no entanto, muito rico em sugestoes, cabendo ao leitor compreender e sentir o que esta alem das palavras e dos episodios. Alias, o valor do livro se engrandece na proporcao em que se aproxima do final. A meu ver, o seu ponto mais alto e o capitulo XXXI no- suicidio de Madalena. A certo respeito, ele sintetiza toda a novela: no principio, uma breve descricao da fazenda naquele momento; depois, uma cena de ciume de Paulo Honorio e a reacao de Madalena, em dialogos e alusoes que resumem o drama de ambos; em seguida, a morte de Madalena. E que sutileza, que originalidade, que senso e gosto literario do escritor na preparacao e na apresentacao do episodio! Ele nao cometeu a banalidade de lancar em cena, objetivamente, o suicidio da mulher, mas por isso mesmo, porque o envolveu numa atmosfera de misterio e de sombra, e que ele comove intensamente. Este capitulo XXXI de S.

Bernardo, sem duvida, e uma pequena obra-prima, que contrabalanca os defeitos e deficiencias que porventura possam ser apontados em toda a novela. Para encontrar paginas semelhantes na obra do Sr. Graciliano Ramos sera preciso busca-las em capitulos culminantes de Angustia, como veremos a seguir.

Em , dois anos depois de S. Bernardo, aparecia Angustia, num momento, alias, em que o Sr.

Graciliano Ramos se achava na cadeia, perseguido de maneira estupida e inexplicavel pela Policia Politica que preparava o ambiente para a ditadura”. Nao era ele naquela epoca um homem de partido, mas apenas – e como ainda hoje nos seus livros de ficcao – um escritor independente, tendo a consciencia de sua arte como expressao de realidades humanas, honestamente observadas e superiormente reveladas.

Angustia, por sinal, e o menos “social” dos seus romances, o mais introspectivo, o mais impregnado de subjetivismo, o mais voltado para a vida interior dos personagens, a despeito de alguns aspectos que dizem respeito a organizacao da sociedade. O ambiente nao e mais uma fazenda ou uma pequena cidade do interior: o ambiente de Angustia e a capital de Alagoas, em parte o Rio de Janeiro, atraves das – reminiscencias de Luis da Silva. Simples referencias nominais, porem; pois o problema do espaco, como o do tempo, nao tem limitacoes neste romance. Ele foi colocado num plano em que tanto o autor como o leitor fazem abstracao de locais e de horas. O seu centro vital e o processo psicologico de um personagem, que vai da normalidade espiritual de um modesto burocrata ate a exacerbacao de um delirio de criminoso, cercado de problemas e sugestoes de dramaticidade. Nao obstante este centralizar da acao num so personagem, as situacoes humanas e literarias se desdobram de tal maneira que logo identificamos esta obra como um autentico romance.

Em S. Bernardo e Vidas Secas, novelas, a substancia e a forma estao concentradas numa unica direcao, disposta para a revelacao de um so drama ou episodio. Angustia, ao contrario, desdobra-se em varios episodios, que circulam o drama principal, ou com ele se cruzam em multiplas direcoes, de modo que a acao se processa em diversos planos, dando-lhe a extensao e a amplitude de um romance. Ao lado de Luis da Silva, surgem Juliao Tavares e a criada Vitoria, que provocam rapidamente o nosso interesse como tipos humanos.

Tal como ja acontecera em Caetes e S. Bernardo, o romance Angustia esta escrito na primeira pessoa, com o personagem principal como narrador. Mas enquanto Joao ( Viu-se preso e violentado Graciliano Ramos como objeto de especial perseguicao do general Newton Cavalcanti, uma especie de guarda de campo de concentracao nazi-fascista, em quem, todavia, apuseram no Brasil, como em alguns outros de igual feitio e mentalidade no Exercito, Marinha e Aeronautica, os bordados das mais altas patentes militares).

Valerio, um incapaz absoluto, e Paulo Honorio, um bandido rustico, nao tem verossimilhanca como imaginarios autores daqueles dois primeiros livros, Luis da Silva, no terceiro, em nada se choca com as boas regras do jogo literario nessa debatida e complexa questao do personagem-narrador. E: certo que ele se classifica, logo na primeira pagina, como um pobre-diabo, mas toda a acao do romance, ao contrario do que se observa quanto a Joao Valerio e Paulo Honorio, demonstra que existe adequacao entre ele e a historia que nos oferece como protagonista. Alem disso, Angustia exigia realmente a narracao na primeira pessoa, enquanto S. Bernardo, a meu ver, se tomaria mais verossimil e melhor estruturado com uma narracao impessoal. Assim, uma certa desordem, que se observa em Angustia, com uma linha condutora em ziguezague, nao e um defeito, mas um carater do livro. Defeito de tecnica, talvez, sera que a primeira parte se tenha alongado demais em prejuizo da segunda. De orientacao, porem, nenhum defeito.

Aquela desordem aparente e a consequencia logica e perfeita do estado de espirito do personagem-narrador, por ele proprio assim caracterizado: Ha nas minhas recordacoes estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois, um esquecimento quase completo. As minhas acoes surgem baralhadas e esmorecidas como se fossem de outra pessoa.

Penso nelas com indiferenca. Certos atos parecem inexplicaveis. Ate as feicoes das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez.

O enredo de Angustia nao tem importancia ou significacao, nem e sobre o enredo que repousa o valor deste romance, como de qualquer outro do Sr. Graciliano Ramos. Numa rua modesta, Luis da Silva apaixona-se por uma moca, Marina, que nada apresenta de especial ou extraordinario. Ajustado ja o casamento, aparece Juliao Tavares, gordo, rico e cretino, que envolve Marina no comum processo de seducao, separando-a de Luis da Silva, tomando-a sua amante por algum tempo. Enredo simples, ate banal, como se ve. Contudo, o que principalmente valoriza Angustia e que sobre um enredo dessa especie o Sr.

Graciliano Ramos tenha realizado um dos mais apaixonantes e intensos romances da nossa literatura contemporanea. De que se formou, entao, o romance? Da vida interior e da analise psicologica de Luis da Silva. E nao pode por isso ser resumido, nem mesmo apresentado ao leitor. Sera preciso le-lo por inteiro, e mais de uma vez, acompanhando com emocao aquela figura angustiada de Luis da Silva, no tumulto e desordem dos seus pensamentos, sentimentos, reminiscencias, intencoes, projetos, delirios. Por detras da aparente desordem, a mao do romancista reune, dispoe, compoe com a mestria de um demiurgo. Se tivesse de indicar dois trechos, como os pontos culminantes da arte literaria do Sr.

Graciliano Ramos neste livro, eles seriam os que se encontram as paginas – e – desta terceira edicao.* O primeiro deles descreve o movimento da ideia do crime a entrar e a instalar-se na cabeca ja perturbada de Luis da Silva. Dias antes, em casa, ele olhara um cano com a sensacao de que aquele objeto era uma arma terrivel. Olhou-o com mais insistencia e pareceu-lhe que ` o cano se estirava ao pe da parede, como corda”. Agora, no trecho destacado, um amigo lhe traz de presente uma corda. E a visao dela comeca a provocar em Luis da Silva reminiscencias de crimes, de enforcados, ate fixar-se nele o projeto de assassinar Juliao Tavares com esse instrumento. Este e um capitulo magistral, em que se sentem como que as marchas e as voltas de um pensamento, conduzido por uma forca secreta e misteriosa para um ponto que, conscientemente, procura afastar com horror. Dai por diante, Luis da Silva ja nao se pertence, nem se domina. Ve-se jogado cada vez mais para dentro de uma atmosfera de sombra e anormalidade, movimentando-se como um possesso, em estado de vertigem e de alucinacao. Assim, num crescimento, ele chega ao delirio com que se encerra o romance. E este e o outro trecho que eu destacaria como um dos pontos culminantes de Angustia. Deve-se ainda assinalar que, dentro embora de um processo de romance universalmente utilizado, Angustia nao se liga particularmente a qualquer modelo europeu ou norteamericano, sendo um livro brasileiro quanto ao espirito e a forma.

Alias, o mais brasileiro dos livros do Sr. Graciliano Ramos e sem duvida a novela Vidas Secas, publicada em (Nota da Editora – Estes dois trechos se encontram as pags. – e – da ‘ ed. ilustrada de Angustia).

. Revelaram-se nesta obra algumas das melhores qualidades do seu autor, ausentes no que escrevera antes.

Antes, em S. Bernardo e Angustia, a sua atitude humana era quase simplesmente de sarcasmo e revolta egoista. Em Vidas Secas, ele se mostra mais humano, sentimental e compreensivo, acompanhando o pobre vaqueiro Fabiano e sua familia com uma simpatia e uma compaixao indisfarcaveis. Alias, nao sera significativo e explicativo a este respeito que Vidas Secas seja a sua primeira obra de ficcao em que a pessoa encarregada de narrar a historia nao e nu personagem, mas o proprio romancista. Nao sera isto um sinal de que antes deixava os personagens entregues a propria sorte, enquanto agora se identifica com os desgracados nordestinos de Vidas Secas? Eis uma novidade desta obra quanto a forma: a narrativa na terceira pessoa, como o autor a movimentar diretamente os seres da sua criacao. Contudo, tecnicamente, Vidas Secas apresenta dois defeitos consideraveis. Um deles e que a novela, tendo sido construida em quadros, os seus capitulos, assim independentes, nao se articulam formalmente com bastante firmeza e seguranca. Cada um deles e uma peca autonoma, vivendo por si mesma, com um valor literario tao indiscutivel, alias, que se poderia escolher qualquer um, conforme o gosto pessoal, para as antologias. O outro defeito e o excesso de introspeccao em -personagens tao primarios e rusticos, estando constituida quase toda a novela de monologos interiores. A inverossimilhanca, neste caso, nao provem da substancia da novela, roas da tecnica. Se houvesse maior proporcao entre episodios e monologos, entre a vida exterior e a interior dos personagens, este problema da ficcao teria sido resolvido de maneira perfeita. Porque, no mais, nenhuma inverossimilhanca, nenhum defeito fundamental sera encontrado em Vidas Secas. Tudo o que o romancista, nos monologos interiores, atribui a Fabiano, sua mulher e seus filhos, sao pensamentos e eflexoes a altura do que lhes poderia ter ocorrido realmente. Eles pensam, imaginam e sentem o que seriam pessoalmente capazes de pensar, imaginar e sentir. O romancista caiu numa inverossimilhanca quanto a tecnica de disposicao dos monologos, mas se salvou dessa falha no que diz respeito ao conteudo deles. Por outro lado, a falta de unidade formal, acima assinalada, nao se verifica na parte do assunto. Na substancia, a novela apresenta uma perfeita unidade, uma completa harmonia interior. O drama do primeiro capitulo repete-se no ultimo; e tudo o mais que se encontra entre eles constitui uma materia de ligacao entre os dois episodios semelhantes.

Alem de ser o mais humano e comovente dos livros de ficcao do Sr. Graciliano Ramos, Vidas Secas e o que contem maior sentimento da terra nordestina, daquela parte que e aspera, dura e cruel, sem deixar de ser amada pelos que a ela estao ligados teluricamente. O que impulsiona os seres desta novela, o que lhes marca a fisionomia e os caracteres, e o fenomeno da seca. No primeiro capitulo, Fabiano e a sua familia sao retirantes, em busca de um novo. pedaco de terra.

Alojam-se como servidores de uma fazenda, e ai que vamos conhece-los atraves de alguns episodios e muitos monologos. A cada figura da novela – Fabiano, Vitoria, sua mulher, o menino mais velho e o menino mais novo – o romancista dedica um capitulo, que e como que um retrato de caracterizacao, em que o proprio personagem se apresenta ao leitor. Da familia tambem faz parte a cachorra Baleia, e o capitulo que lhe e dedicado se acha revestido de uma humanidade talvez maior que a dos seres humanos, sendo esta uma das paginas mais famosas do Sr. Graciliano Ramos. Em Vidas Secas, no entanto, nenhum capitulo me agrada mais do que “Festa”, em que, ao poder descritivo e a capacidade de visualizacao, o ficcionista ajuntou uma sutileza de tons e de notas psicologicas realmente admiravel; ou ainda “Inverno”, quadro de uma familia em noite de frio e miseria. Por fim, tambem a nova fazenda e atingida pela seca; e Fabiano se decide a partir, numa outra etapa do seu destino de movimentar-se sempre como um judeu errante em busca de uma nunca atingida terra da promissao. O final do livro e uma retirada, como o principio fora uma chegada, dentro de uma fatalidade que o romancista sugere ao dizer que eles “dali se afastavam rapidos, como se alguem os tangesse”.

Parece-me que Vidas Secas representa ainda uma evolucao na obra do Sr. Graciliano Ramos quanto ao estilo e a qualidade estritamente literaria. Em nenhum outro dos seus livros encontramos tanta beleza e tanta harmonia na construcao verbal. E somente aqui este autor, de espirito tao pouco poetico,, consegue atingir as vezes um estado de poesia. Foi tambem em Vidas Secas que o Sr. Graciliano Ramos pela primeira vez se libertou por inteiro de algumas quedas no mau gosto ou na vulgaridade de expressao, com que nos surpreende, tao frequentemente, em S. Bernardo e ate em Angustia. Afinal, se Angustia e a sua maior realizacao como ficcionista, Vidas Secas e a obra que nos oferece toda a sua medida como escritor, juntamente com Infancia.

O volume de contos Insonia, com excecao de duas ou tres pecas, representa a parte fraca da obra do Sr. Graciliano Ramos, somente nao comparavel a Caetes pelas qualidades de estilo. Creio que quase todos estes contos sao paginas de circunstancia, escritas para jornais e revistas, sem grandes cuidados. Rigorosamente, nenhum deles e um conto. “Insonia” e “O Relogio do Hospital” sao dois monologos magnificos, mas como classifica-los ‘ na categoria de contos? Do mesmo genero e o capitulo “Paulo”, mas de qualidade inferior. Estes tres capitulos, alias, sao variacoes sobre um mesmo tema. “Um Ladrao’, que provoca- a principio um interesse apaixonante, decepciona em seguida pelo convencionalismo do desfecho.

Pecas como “A Prisao de J. Carmo Gomes”, “A Testemunha”, “Ciumes” e “Uma Visita”, so desejariamos que nunca houvessem sido escritas; elas sao literariamente indignas de qualquer escritor, ainda mais de um escritor da especie do Sr.

Graciliano Ramos. A meu ver, os capitulos de mais significacao e valor literario deste volume, sao “Dois Dedos” e “Minsk”, sendo tambem aqueles que mais se aproximam do que ha de particular e especifico no conto. Reparando bem, a verdade e que uma peca como “Minsk” salva todo um volume, vivendo por si mesma de maneira definitiva. Entre os capitulos que sao pequenas obras-primas, no sentido de perfeitas e completas, dentro da obra geral de ficcionista do Sr. Graciliano Ramos, a historia de “Minsk” bem merece ser incluida ao lado da “Baleia” de Vidas Secas. Alias, o assunto de “Minsk” e tambem um bicho; e quem sabe se o Sr. Graciliano Ramos, a este respeito, nao esta sentimentalmente proximo do seu personagem Fabiano, que “vivia longe dos homens” e “so se dava bem com animais”? Com meia duzia de livros, a obra do Sr. Graciliano Ramos ja avulta hoje como uma das mais expressivas e valiosas da literatura brasileira, a despeito da desproporcao que existe entre a riqueza da sua vida interior e a insuficiencia do seu material de observacao, entre a sua arte de escrever e o seu pequeno mundo de ficcao.

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