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José de Alencar
Representada pela primeira vez no Teatro do Ginásio, do Rio de Janeiro,
em 28 de outubro de 1857
(A ***
Uma noite vi-a no Ginásio; representava-se uma comédia um pouco
livre.
Veio-me o desejo de fazê-la sorrir sem obrigá-la a corar. Conservei
algum tempo essa impressão fugitiva; um dia ela correu aos bicos da
pena, e cristalizou-se.
Escrevi a minha primeira comédia, O Rio de Janeiro [Verso e Reverso;
logo depois O Demônio Familiar, e ultimamente O Crédito que deve
representar-se breve.
Se algum dia pois eu for um autor dramático deverei unicamente àquela
boa inspiração; a glória e os aplausos que o público,
de generoso, quiser dar a essas pobres produções de minha inteligência,
lhe pertencem.
A flor não se abriria se o raio de sol não a aquecesse e animasse.
PERSONAGENS
ERNESTO, [estudante de São Paulo].
TEIXEIRA, [capitalista tio de Ernesto].
AUGUSTO, [zangão da praça].
CUSTÓDIO, [empregado aposentado].
PEREIRA, poeta conhecido de].
HENRIQUE, [moço elegante].
FILIPE, [cambista de loterias].
JÚLIA, [filha de Teixeira].
BRAGA, [caixeiro de loja].
D. LUÍSA, [viúva de idade].
D. MARIANA, (parenta de Teixeira].
ATO PRIMEIRO
Um caixeiro de loja; um menino que vende fósforos; uma menina de realejo.
NOTA
A cena é na cidade do Rio de Janeiro e contemporânea.
O primeiro quadro passa-se em uma loja da Rua do Ouvidor nos fins de novembro.
O segundo na casa de Teixeira nas Laranjeiras, [em princípio de março].
Urna loja da Rua do Ouvidor, [montada com luxo e no gosto francês].
CENA PRIMEIRA
ERNESTO, BRAGA, depois UM MENINO que vende fósforos.
ERNESTO (entrando de um salto) – Apre! É insuportável! Não
se pode viver em semelhante cidade; está um homem sujeito a ser empurrado
por todos esses meus senhores, e esmagado a cada momento por quanto carro,
carroça, carreta ou carrinho anda nestas ruas. Com efeito é
uma família… Desde o ônibus, o Noé dos veículos,
até o coupé aristocrático e o tílburi plebeu!
BRAGA (dobrando as fazendas) – É porque o senhor ainda não
está habituado.
O MENINO ([entrando e] dirigindo-se a ERNESTO) – Fósforos! Fósforos!
Inalteráveis e superiores! … (A BRAGA) Fósforos Sr. Braga.
ERNESTO – Deixe-me, menino!
O MENINO – Excelentes fósforos de cera a vintém!
ERNESTO (a BRAGA) – Oh! que maçada! Deixe-me! (O MENINO sai.) Esta
gente toma-me naturalmente por algum acendedor de lampiões; entendem
que eu vim ao Rio de Janeiro unicamente para comprar fósforos. Já
não me admira que haja aqui tantos incêndios. (Senta-se junto
do balcão; uma pausa.) Como as coisas mudam vistas de perto! Quando
estava em São Paulo o meu sonho dourado era ver o Rio de Janeiro, esse
paraíso terrestre, essa maravilha de luxo, de riqueza e de elegância!
Depois de três anos de esperanças consigo enfim realizar o meu
desejo: dão-se as férias, embarco, chego e sofro uma das mais
tristes decepções da minha vida. Há oito dias apenas
que estou na corte e já tenho saudades de São Paulo. (Ergue-se.)
BRAGA – O Sr. não escolhe alguma coisa? Presentes para festas, o que
há de mais delicado; perfumarias…
ERNESTO [voltando-lhe as costas] – Obrigado!
CENA II
Os mesmos, FILIPE
FILIPE ([entrando] a ERNESTO) – Vinte contos, meu caro senhor! Anda amanhã
a roda!… Vinte contos!
ERNESTO – Agradeço; não estou disposto.
BRAGA – Oh! Sr. Filipe!
FILIPE – Quer um bilhete, um meio ou um quarto? Vigésimos… Também
temos.
ERNESTO (passeando) – Nada; não quero nada.
FILIPE – Bom número este; premiado três vezes! Mas se prefere
este…
ERNESTO – Já lhe disse que não preciso dos seus bilhetes.
FILIPE – Pois enjeita? A sorte grande? Olhe não se arrependa!
ERNESTO – A sorte grande que eu desejo é ver-me livre de sua pessoa!
FILIPE (baixo a BRAGA) – Malcriado!
BRAGA (baixo a FILIPE) – É um provinciano! (FILIPE sai.)
ERNESTO – Enfim! Estou livre deste! Que terra!… É uma perseguição
constante. (Passeia.)
CENA III
ERNESTO, BRAGA, AUGUSTO
AUGUSTO [entrando] – Oh! (examinando ERNESTO) Será algum acionista?..
Vejamos! Tratemos de entabular relações! ERNESTO (tira o relógio)
– Já duas horas! Uma manhã inteiramente perdida.
AUGUSTO (cumprimentando) – O Sr. faz-me o obséquio de dizer que horas
são?
ERNESTO – Como?
AUGUSTO – Que horas tem no seu relógio?
ERNESTO – Ah! desculpe; está parado. (Baixo a BRAGA) É o que
faltava!… servir de torre de igreja aqui ao Sr.
AUGUSTO (a BRAGA) – Decididamente é acionista! Que diz? Tem-me ares
de lavrador; são pelo menos vinte ações. Justamente as
que me faltam para completar as cem que vendi. A dez mil-réis de prêmio…
(Corre atrás de um homem que passa no fundo da loja.)
Olá sio!… Aquelas trinta não quer vender?… Dou-lhe sete!…
ERNESTO (a BRAGA) – Que extravagante! Vê-se cada figura neste Rio de
Janeiro! (Senta-se e tira um charuto.) Ora deixe-me experimentar um dos tais
fósforos de cera. (Acende o charuto.)
BRAGA – Aí vem o homem outra vez. (Ri-se.)
AUGUSTO (voltando) – O Sr. faz-me obséquio do seu fogo?
ERNESTO (a BRAGA) – Ainda! Isto não tem jeito.
AUGUSTO (tomando o charuto) – Com licença! Creio que não me
enganei; o Sr. é um dos contemplados; trinta pelo menos…
ERNESTO (a BRAGA) – Estou quase oferecendo-lhe uma caixa de fósforos.
AUGUSTO (dando o charuto) – Obrigado! Volto para a Praça que está
hoje animada.
ERNESTO – Estimo muito.
AUGUSTO – Se quer vender as suas ações, hão perca a
ocasião.
ERNESTO – Vender as minhas ações?
AUGUSTO – Sim, Sr.; acredite no que lhe digo; não valem mais do que
cinco mil-réis e já são bem pagas.
ERNESTO – O Sr. quer brincar naturalmente!
AUGUSTO – Não brinco em negócio. Para encurtar razões
dou-lhe seis mil-réis. Quer? Aqui estão. Quantas tem?
ERNESTO (a BRAGA) – Deste gênero ainda não tinha encontrado!
É pior do que os tais cambistas de loterias. (Passeia.)
AUGUSTO – Então que decide? ERNESTO – Nada, Sr.
AUGUSTO – Acha pouco? Tenho mais baratas; porém para concluir dou-lhe
seis e quinhentos… Sete pagando a corretagem.
ERNESTO [contrariado] – Pelo que, Sr.?… Disse-lhe que desejava vender alguma
coisa para que o Sr. esteja a maçar-me há meia hora, oferecendo-me
preços?
AUGUSTO – Não me disse; mas eu adivinhei. Nós cá, homens
habilitados ao negócio, não precisamos que nos digam as coisas.
Apenas o ví, descobri logo que era acionista…
ERNESTO – O quê? Acionista?.
AUGUSTO – Sim; que tinha sido contemplado na distribuição das
ações da Estrada de Ferro, na qualidade de lavrador naturalmente;
por isso ofereço-lhe os meus serviços.
ERNESTO – E o que é o Sr.?
AUGUSTO – Corretor de fundos e mercadorias; incumbo-me de todas as transações
de crédito e câmbio, como saques, descontos.
ERNESTO – Pois, meu Sr., sinto dizer-lhe que nem sou acionista, nem fui contemplado
em distribuição de coisa alguma.
AUGUSTO – Deveras?
ERNESTO – Dou-lhe minha palavra.
AUGUSTO – Basta; às suas ordens. (A BRAGA) Levei um logro! uma transação
magnífica! Também não sei onde estava com a cabeça!
Devia ver logo que este sujeitinho não tem a cara respeitável
de um acionista! (Vai sair pelo fundo).
ERNESTO [a BRAGA] – Que diabo de profissão é a que exerce este
buscapé vestido de paletó?
BRAGA – Creio que é um corretor.
ERNESTO – Fico-o conhecendo.
(AUGUSTO saindo, encontra CUSTÓDIO que entra.)
CENA IV
Os mesmos, CUSTÓDIO
CUSTÓDIO [cumprimentando AUGUSTO] – Passou bem, Sr. Augusto? Que há
de novo?…
AUGUSTO (rápido) – Câmbio 27 ½; juros 9 e 10%; cotação
oficial. Ações – vendas animadas; Estradas de Ferro, dez, bastante
procuradas. Tem Estrada de Ferro?…
CUSTÓDIO – Dizem que o ministério não está seguro?…
AUGUSTO (rápido) – Seguro monstro – estacionário. Banco do
Brasil – 102; Hipotecário 205 – mercado regular, poucas vendas. Mangaratiba
– frouxo; Paquetes e Gás – oscilam; Rua do Cano – baixa completa, desconto.
CUSTÓDIO – Então não diz nada a respeito da política?
AUGUSTO – Digo que tome o meu conselho; Estrada de Ferro, Estrada de Ferro,
e largue o mais. Adeus; vou concluir uma operação importante.
(Sai.)
ERNESTO (a BRAGA) – Eis como se diverte um homem aqui na corte, olhando para
o tempo e sofrendo as maçadas de todos estes importunos! Oh! Os Srs.
folhetinistas com os seus contos de mil e uma noites são os culpados
do que me acontece! Quem os lê e quem vê a realidade!
vai ao fundo.]
CENA V
ERNESTO, CUSTÓDIO
CUSTÓDIO – Muito bom dia? [Apertam as mãos].
ERNESTO – Viva, senhor! (A BRAGA) Eis um sujeito que me conhece, mas que
naturalmente nunca me viu.
CUSTÓDIO – Que há de novo?
ERNESTO – E esta? O senhor não leu os jornais?
CUSTÓDIO – Passei apenas os olhos… (Senta-se.)
ERNESTO – Pois eu nem isto. (A BRAGA) Pensa este senhor que sou algum almanaque
de notícias? Achou-me com cara de boletim?
CUSTÓDIO – Que calor que está fazendo. Creio que teremos mudança
de tempo. O senhor não acha?
ERNESTO – Vou ver, depois lhe direi.
(Vai sair, encontra-se com HENRIQUE que entra.)
CENA VI
Os mesmos, HENRIQUE
HENRIQUE – Ernesto! Oh! Quando chegaste?
ERNESTO – Adeus; como vais, Henrique?
HENRIQUE – Perfeitamente, e tu? Alegro-me muito em ver-te por aqui.
ERNESTO – Não esperava ter o prazer de te encontrar.
HENRIQUE – Desembarcaste hoje mesmo?
ERNESTO – Não; há oito dias.
HENRIQUE – Como deixaste São Paulo?
ERNESTO – No mesmo estado.
HENRIQUE – É verdade; aproveito a ocasião para pedir-te um
pequeno obséquio.
ERNESTO – Estou às tuas ordens.
HENRIQUE – Chegaste há pouco, e naturalmente deves ter curiosidade
de ver os nossos teatros; aceita este bilhete, é do benefício
de um hábil artista.
ERNESTO (com ironia) – Ora, meu amigo, és tu que me fazes o obséquio:
obrigadíssimo.
HENRIQUE – Onde estás morando?
ERNESTO – No Hotel de Botafogo.
HENRIQUE – Sei; adeus. Havemos de nos ver.
ERNESTO – Sim; quando quiseres.
HENRIQUE (saindo, passa por CUSTÓDIO) – Tem passado bem, Sr. Custódio?
CUSTÓDIO (levanta-se) – Bem, obrigado. Que há de novo?
HENRIQUE – Quer ficar com um bilhete do benefício de…
CUSTÓDIO – Nada. Há vinte anos não freqüento os
espetáculos; no meu tempo…
HENRIQUE (rindo-se) – Freqüentava o teatrinho de bonecos! (Sai.)
CUSTÓDIO – Criançola!
CENA VII
ERNESTO, CUSTÓDIO
ERNESTO (mostrando o cartão) – Mais uma bucha!
CUSTÓDIO – Pois caiu?
ERNESTO – Está me parecendo que esta gente não faz outra coisa
desde o princípio até o fim do ano senão beneficiar se
mutuamente; mas beneficiar-se desta maneira! Proudhomme que definiu a propriedade
um roubo legitimado pela lei se viesse ao Rio de Janeiro, não podia
deixar de definir o benefício um estelionato legitimado pela sociedade.
A pretexto de teatro e de baile um amigo abusa da nossa confiança e
nos toma cinco ou dez mil-réis contra a nossa vontade.
CUSTÓDIO – Pensa muito bem! O governo é o culpado…
ERNESTO – Dos benefícios?
CUSTÓDIO – De tudo!
(Entram HENRIQUE e PEREIRA.)
CENA VIII
Os mesmos, HENRIQUE, PEREIRA
HENRIQUE – Meu amigo, desculpa; não pude deixar de voltar para ter
o prazer de apresentar-te o Sr. Pereira, um dos nossos poetas mais distintos.
PEREIRA – É bondade de meu amigo!
CUSTÓDIO (a meia voz) – Que firma!
ERNESTO – Ah! O Sr. é poeta! Estimo muito conhecê-lo: tenho
uma grande simpatia pelos poetas, embora na minha vida nunca conseguisse fazer
um verso.
PEREIRA – Isto não quer dizer nada; Chateaubriand é um grande
poeta e escreveu em prosa.
HENRIQUE – Meu amigo, nós não queremos tomar-te o tempo. O
Sr. Pereira vai publicar um volume de suas primeiras poesias e espera que
tu, que és amante da literatura, protejas essa publicação.
ERNESTO – Tu pedes, Henrique, não posso recusar.
PEREIRA – Submeto à consideração de V.Sa. o programa
da assinatura. Um belo volume in-8o francês, de cem páginas,
5$OOO no ato da entrega. Não exijo adiantado.
ERNESTO – Mas não há necessidade de demorar uma coisa que pode
ficar concluída. (Tira a carteira.)
PEREIRA – V.Sa. ordena…
HENRIQUE – Tomas duas assinatura ou três?
ERNESTO – Uma basta, Henrique; sabes que a minha fortuna não está
a par do meu gosto pela literatura.
PEREIRA – É sempre assim; os grandes talentos são ricos de
inteligência, mas pobres desse vil objeto a que se chama dinheiro. (Recebe
a nota.) Muito obrigado, Sr….
ERNESTO – Não tem de quê.
(Entra D. LUÍSA.)
CENA IX
Os mesmos, D. LUÍSA
D. LUÍSA – Perdão, meus Srs.; tenham a bondade de ler este
papel.
HENRIQUE (finge não ouvir) – Até logo, Ernesto.
PEREIRA (a ERNESTO) – Tive muito prazer em conhecer a V.Sa..
D. LUÍSA – Uma pobre viúva! Meu marido…
PEREIRA – Se puder servir-lhe para alguma coisa…
ERNESTO – Igualmente!
HENRIQUE (a PEREIRA) – Vamos; tenho pressa.
D. LUÍSA – Então, Srs! Qualquer coisa…
PEREIRA – Às suas ordens. (Sai.)
D. LUÍSA – Não lê?
HENRIQUE – Adeus, adeus. (Sai.)
CENA X
ERNESTO, CUSTÓDIO, D. LUÍSA
ERNESTO (a CUSTÓDIO) – Que papel será esse que aquela Sra.
pede com tanta instância para ler? Talvez alguma notícia importante?
CUSTÓDIO (levantando-se) – Com sua licença.
D. LUÍSA (a CUSTÓDIO, apresentando o papel) – O Sr. faz obséquio?…
CUSTÓDIO (saindo) – Esqueci os óculos em casa. (Sai.)
CENA XI
ERNESTO, D. LUÍSA, depois BRAGA
D. LUÍSA – V.Sa. ao menos me fará a caridade!
ERNESTO – Deixe ver. [Abre o papel] Ah! uma subscrição! Por
isso é que os tais amigos se puseram todos ao fresco, fazendo-se desentendidos;
um tinha pressa, o outro esqueceu os óculos. [Fecha.] Desculpe, minha
Sra.; não posso dar nada; tenho feito muitas despesas.
D. LUÍSA – Pouco mesmo que seja; tudo serve. É para fazer o
enterro do meu pobre marido que expirou esta noite e deixou-me ao desamparo
com oito filhinhos…
ERNESTO – Pobre mulher! Para esta não há um benefício!
Mas diga-me, seu marido nada possuía? A Sra. não tem parentes?
D. LUÍSA – Nem um; não tenho ninguém de quem me valer.
Acredite, Sr., que para chegar a este estado de recorrer à piedade
dos que não me conhecem, foi preciso ver meus pobres filhinhos nus,
e chorando de fome, os coitadinhos.
BRAGA (dentro do balcão) – Temos choradeira!
ERNESTO – Corta o coração, não acha? Torne, minha Sra.;
sinto não poder dar mais; porém não sou rico. (Dá
uma nota.)
D. LUÍSA [Examinando a nota] – Cinco mil-réis!… [Olha ERNESTO
com ar de zombaria e sai].
ERNESTO – E esta! Nem sequer um obrigado; julga que não lhe fiz favor?
BRAGA – Ora o Sr. ainda deixa-se lograr por esta gente?
ERNESTO – E o Sr. não viu? Por que não me avisou?
BRAGA – Não gosto de me intrometer nos negócios dos outros.
ERNESTO – Boa moral!… Oh! mas esta não aturo.
(Vai sair correndo e encontra-se com TEIXEIRA, JÚLIA e D. MARIANA
que entram.)
CENA XII
ERNESTO, TEIXEIRA, JÚLIA, D. MARIANA, BRAGA
ERNESTO – Ah!…
JÚLIA – Ernesto!
TEIXEIRA – Bom dia, sobrinho.
ERNESTO – Adeus, meu tio. D. Mariana… Como está, prima?
JÚLIA – Boa, obrigada.
ERNESTO – Anda passeando?
JÚLIA – Não; vim fazer algumas compras.
TEIXEIRA – Júlia, enquanto ficas vendo as fazendas com D. Mariana,
vou à Praça e já volto.
JÚLIA – Sim, papai; mas não se demore.
TEIXEIRA – um instante! (Sai.)
BRAGA (fora do balcão) – O que deseja V.Ex.a?
JÚLIA – Alguns cortes de musselina e barege.
BRAGA – Temos lindíssimos, do melhor gosto, chegados no paquete, da
última moda; hão de agradar a V. Ex.a; é fazenda superior.
JÚLIA – Pois deite-os lá dentro que já vou escolher.
BRAGA – Sim, Sra.; V.Ex.a há de ficar satisfeita. (Sobe a cena com
D. MARIANA).
ERNESTO – Como, prima! A Sra. já tem excelência?
JÚLIA (sorrindo) – Aqui na corte todo o mundo tem, Ernesto. Não
custa dinheiro.
ERNESTO – Entendo! Entendo! Mais esta singularidade para as minhas notas.
BRAGA (dentro do balcão à D. MARIANA) – Sim, minha Sra.; tenha
a bondade de esperar um momento; já venho mostrar-lhe fazenda que há
de agradar-lhe.
(JÚLIA senta-se.)
CENA XIII
ERNESTO, JÚLIA, D. MARIANA, depois BRAGA
JÚLIA – Diga-me, Ernesto, como tem achado o Rio de Janeiro?
ERNESTO – Quer que lhe confesse a verdade, Júlia?
JÚLIA – Decerto, primo; não há necessidade de encobrir.
Já sei que não gostou?
ERNESTO – Ah! Se fosse só isso! [D. MARIANA desce.]
JÚLIA – O que é mais então?
ERNESTO – Sinto declarar; mas o seu Rio de Janeiro é um verdadeiro
inferno!
D. MARIANA – Com efeito, Sr. Ernesto!
JÚLIA – Não diga isto, primo.
ERNESTO – Digo e repito; um verdadeiro inferno.
JÚLIA – Mas por quê?
ERNESTO – Eu lhe conto. Logo que cheguei, não vi, como já lhe
disse, no aspecto geral da cidade, nada que me impressionasse. Muita casa,
muita gente, muita lama; eis o que há de notável. Porém
isto não é nada; de perto é mil vezes pior.
JÚLIA – E depois? Quando passeou?
ERNESTO – Quando passeei? Por ventura passeia-se no Rio de Janeiro? O que
chama a senhora passear? É andar um homem saltando na lama, como um
passarinho, atropelado por uma infinidade de carros, e acotovelado por todo
o mundo? É não ter um momento de sossego, e estar obrigado a
resguardar os pés de uma carroça, o chapéu de um guarda-chuva,
a camisa dos respingos de lama, e o ombro dos empurrões? Se é
isto que a senhora chama passear, então sim, admite que se passeie
no Rio de Janeiro; mas é preciso confessar que não são
muito agradáveis esses passeios.
JÚLIA – Já vejo que o primo não gosta da sociedade;
é mais amigo da solidão.
D. MARIANA (no balcão vendo fazendas) – Pois em um moço admira.
ERNESTO – Perdão, Júlia; gosto da sociedade; com ser estudante
de São Paulo, não desejo passar por um roceiro. Mas quero estar
na sociedade à minha vontade e não à vontade dos outros;
quero divertir-me, olhar, observar; e não ser obrigado a responder
a um sujeito que me pede fogo, a outro que me pergunta o que há de
novo, e a outro que deseja saber quantas horas são.
JÚLIA – E a Rua do Ouvidor? Que me diz? Não achou bonita? À
noite sobretudo?
ERNESTO – Oh! não me fale na tal Rua do Ouvidor! Se o Rio de Janeiro
é o inferno, a Rua do Ouvidor é o purgatório de um pobre
estudante de São Paulo que vem passar as férias na corte.
JÚLIA – Não o compreendo, primo; e inteiramente o contrario
do que me dizem todos.
D. MARIANA (sempre no balcão) – Decerto; não há quem
não fique encantado!
ERNESTO – Pode ser, D. Mariana, não contesto; os gostos são
diferentes, mas eu lhe digo os encantos que achei na Rua do Ouvidor. Apenas
dei o primeiro passo, saltou-me um sujeito gritando a goelas despregadas “Fósforos!
Fósforos inalteráveis e superiores! A vintém!” Para
me ver livre do tal menino tive que trocar uma nota e comprar um embrulho
de caixas de fósforos.
JÚLIA (rindo) – Mas para que comprou?
D. MARIANA – Não tinha necessidade…
ERNESTO – Queriam que andasse com aquele pajem de nova espécie a aturdir-me
os ouvidos?… Porém não fica nisto; apenas vejo-me livre de
um, eis-me com outro: “Vigésimos, quartos, bilhetes, meios e inteiros!
Sorte grande!” Lá se foram dez mil-réis.
JÚLIA – Ainda? Foi também para se ver livre?
ERNESTO – E porque estavam muitas pessoas que olhavam para mim, e não
queria que me tornassem por um pobretão.
JÚLIA – Que idéia! Todos eles estão acostumados a isso,
e não fazem caso.
ERNESTO – Ainda não acabei. Daí a pouco um benefício
do ator tal, uma subscrição para isto, um cartão de baile
das sociedades de beneficência de todas as nações do mundo.
Enfim encontro um amigo que não me via há três anos, e
o primeiro cumprimento que me dirigiu foi empurrar-me este bilhete e ainda
em cima um volume de poesias que já paguei, mas que ainda não
está impresso.
JÚLIA (sorrindo) – Abusam de sua boa-fé, meu primo. É
natural; ainda não conhece os nossos costumes; mas no meio de tudo
isso, não vejo razão para desgostar-se tanto do Rio de Janeiro.
ERNESTO – Pois eu vejo. Que quer dizer sair um homem de casa para divertir-se,
e voltar com as algibeiras cheias (tirando) de caixas de fósforos,
de programas de espetáculos, de bilhetes de todas as qualidades, e
de todas as cores, menos do tesouro; e além de tudo com a carteira
vazia? Não, a Sra. pode achar muito boa a sua terra, mas eu não
estou disposto a aturá-la por mais tempo.
JÚLIA – Que diz, primo?
ERNESTO – Vou-me embora; amanhã sai o vapor Josefina e eu aproveito.
JÚLIA – Deveras, Ernesto? Não é possível!
D. MARIANA – Não vê que está brincando?
ERNESTO – Palavra de honra! Tenho pressa de dizer adeus a esta terra dos
fósforos, das loterias, e dos benefícios. . . Oh! dos benefícios
sobretudo!…
JÚLIA – Escute, meu primo. Admito que essas primeiras impressões
influam no seu espírito; que o Rio de Janeiro tenha realmente estes
inconvenientes; mas vá passar um dia conosco nas Laranjeiras, e eu
lhe mostrarei que em compensaç&atiatilde;o há muitas belezas, muitos
divertimentos que só na corte se podem gozar.
ERNESTO – Quais são eles? Os passeios dos arrabaldes? – Um banho de
poeira e de suor. Os bailes? – Um suplício para os calos e um divertimento
só para as modistas e os confeiteiros. O teatro lírico? – Uma
excelente coleção de medalhas digna do museu. As moças?…
Neste ponto bem vê que não posso ser franco, prima.
JÚLIA – Fale; não me importa. Tenho até curiosidade
em saber o que pensa das moças do Rio. Fale!
ERNESTO – Pois bem; já que manda, dir-lhe-ei que isto de moça
é espécie desconhecida aqui na corte.
JÚLIA – Como? Não sei o que quer dizer.
ERNESTO – Quero dizer que não há moças no Rio de Janeiro.
JÚLIA – E eu o que sou?
ERNESTO – Pior é esta! Não falo dos presentes.
JÚLIA – Bem; mas explique-se.
ERNESTO – No Rio de Janeiro, prima, há balões, crinolinas,
chapéus à pastora, bonecas cheias de arames, tudo o que a Sra.
quiser; porém, moças, não; não posso admitir.
Ignoro que haja no mundo uma degeneração da raça humana
que tenha a cabeça mais larga do que os ombros; que carregue uma concha
enorme como certos caramujos; que apresente enfim a forma de um cinco.
JÚLIA – De um cinco? Que esquisitice é esta?
ERNESTO – É a verdade. Olhe uma moça de perfil, e verá
um cinco perfeito. O corpo é a haste fina, o balão é
a volta, e o chapéu arrebitado é o corte. (Apontando para o
espelho fronteiro; Olhe!
Lá está um.
JÚLIA (voltando-se) – Aonde?
ERNESTO (rindo-se) – Ah! Perdão, prima, era a Sra.
JÚLIA – Obrigada pelo cumprimento! (Senta-se.)
ERNESTO – Ficou zangada comigo, Júlia?
JÚLIA – Não; zangada, por quê?
ERNESTO – Cuidei. (Uma pausa.)
JÚLIA – À vista disto o primo não viu no Rio de Janeiro
nada que lhe agradasse?
ERNESTO – Nada absolutamente, não; vi alguma coisa, mas…
JÚLIA – Mas. . . Acabe!
ERNESTO – O que me agrada é justamente o que não me persegue,
o que me foge mesmo.
JÚLIA – Diga o que é?
ERNESTO – Não posso… Não devo…
JÚLIA – Ora quer fazer mistério.
ERNESTO – Pois bem; vai por sua conta; depois não se zangue.
D. Mariana, faça que não ouve. São seus olhos, Júlia!
D. MARIANA – Hein!…
JÚLIA (corando) – Ah! Ernesto! Quer zombar de mim?
ERNESTO – Olhe que eu não sou cá do Rio de Janeiro.
JÚLIA – Não importa; mas é estudante.
ERNESTO – Boa maneira de lembrar-me a minha humilde posição.
JÚLIA – Primo, não interprete mal as minhas palavras.
ERNESTO – Oh! Não pense que desconfio, não! Sei que um estudante
é um animal que não tem classificação social;
pode ser tudo, mas ainda não é nada. É uma letra de câmbio
que deve ser descontada pelo futuro, grande capitalista de sonhos e de esperanças.
Ora as moças têm medo do futuro, que para elas quer dizer o cabelo
branco, a ruga, o carmim, o pó de arroz, et caetera.
JÚLIA – Isto são as moças vaidosas que só vivem
de frivolidades, e eu creio, meu primo, que o Sr. não deve fazer esta
idéia de mim; ao contrário…
BRAGA (adianta-se entre os dois) – Minha Sra., os cortes de vestidos estão
às ordens de V.Ex.a.
ERNESTO [consigo] – Maldito caixeiro!
JÚLIA – Já vou.
ERNESTO – Adeus, Júlia, lembranças a meu tio, D. Mariana…
JÚLIA – Venha cá, Ernesto, espere por papai.
ERNESTO – Não posso; adeus. (Sai.)
CENA XIV
JÚLIA, D. MARIANA
JÚLIA – Não sei por que me interessa esse caráter original.
Tenho-lhe amizade já, e apenas o vi há oito dias, e com esta
a segunda vez.
D. MARIANA – Ouviu o que ele disse?… Seus olhos…
JÚLIA – Qual, D. Mariana, não creia. Cumprimentos de moço…
Parte amanhã!…
D. MARIANA – Isto diz ele.
JÚLIA – Ora, deixe-me escolher os vestidos. Vamos!…
(Entram no interior da loja.)
CENA XV
FILIPE, D. LUÍSA
D. LUÍSA – O Sr. tenha a bondade de ler este papel.
FILIPE – Vejamos. (Lê) A Sra. é viúva então?
D. LUÍSA – É verdade; perdi meu marido; estou na maior desgraça;
nove filhinhos dos quais o maior não tem cinco anos.
FILIPE – Nesse caso nasceram de três meses como os cordeiros. Nove
filhos em cinco anos!
D. LUÍSA – São gêmeos, Sr.
FILIPE – Ah! tem razão! Foi uma ninhadazinha de pintos.
D. LUÍSA – O Sr. está zombando de mim? Se não fosse
a dor de ver os pobrezinhos nus, chorando de fome, coitadinhos, não
me animaria a recorrer à esmola das pessoas caridosas.
FILIPE – Fique certa que elas não deixarão de ampará-la
nessa desgraça.
D. LUÍSA – E o Sr…. pouco mesmo…
FILIPE – Eu, minha Sra., não posso ser insensível ao seu infortúnio;
a Sra. está justamente no caso de ser feliz. Não há desgraça
que sempre dure. Só a sorte grande a pode salvar.
D. LUÍSA – Que diz, senhor?
FILIPE (tirando os bilhetes) – Um meio, um quarto, um vigésimo! Não
perca esta ocasião; não rejeite a fortuna que a procura.
D. LUÍSA – Ora, senhor! Não se ria da desgraça do próximo.
FILIPE – Eu rir-me da desgraça dos outros! Eu que vivo dela!
D. LUÍSA – Estou quase aproveitando os cinco mil-réis de há
pouco.
FILIPE – Vamos, resolva-se.
D. LUÍSA – Está bom! Sempre compro um quarto.
FILIPE – Antes um meio.
D. LUÍSA – Não quero; há de ser um quarto.
FILIPE – Aqui tem. (A meia voz) E pede esmolas!…
(Entra uma menina de realejo que pede a gorjeta com um pandeiro.)
D. LUÍSA – Sai-te, vadia! A polícia não olha para estas
coisas.
FILIPE – É verdade; não sei para que servem as autoridades.
D. LUÍSA – Deixam as pessoas honestas serem perseguidas por esta súcia
de mendigos…
FILIPE – Que não têm profissão.
(Saem à direita; JÚLIA, D. MARIANA e BRAGÁ entram do
interior da loja.)
CENA XVI
JÚLIA, D. MARIANA, BRAGA
(BRAGA traz uma caixa de corte de vestido.)
D. MARIANA – São muito bonitos os vestidos; você soube-os escolher,
Júlia.
BRAGA – A senhora tem muito bom gosto.
JÚLIA – Mande deixar isto no meu carro.
BRAGA – Vou eu mesmo. (Sai pelo fundo.)
CENA XVII
ERNESTO, JÚLIA, D. MARIANA
ERNESTO (entrando à direita todo enlameado) – Bonito!… Estou fresco.
D. MARIANA (rindo) – Ah! ah! ah!
JÚLIA – O que é isto, Ernesto?
ERNESTO – O que vê, prima. A sua Rua do Ouvidor pôs-me neste
estado miserável! Uma maldita carroça! Estúpidos que
não olham para quem passa!
JÚLIA [sorrindo] – Foi uma vingança, primo; o senhor acabava
de dizer mal do Rio de Janeiro.
ERNESTO – E não tinha razão? Uma cidade de lama! Felizmente
já mandei tomar a minha passagem. [Entra Teixeira.]
JÚLIA – Como! Sempre vai amanhã?
ERNESTO – Que dúvida! E até por segurança embarco hoje
mesmo.
CENA XVIII
Os mesmos, TEIXEIRA
TEIXEIRA – Que é isto! Falas em embarcar. Para onde vais?
ERNESTO – Volto para São Paulo, meu tio.
JÚLIA – Veio-lhe agora esta idéia! Diz que não gosta
da corte, que é uma terra insuportável…
D. MARIANA – Um inferno!
TEIXEIRA – Caprichos de rapaz! Não há cidade como o Rio de
Janeiro. É verdade que já não é o que foi. Bom
tempo, o tempo das trovoadas. Que diz, D. Mariana?
D. MARIANA – Tem razão, Sr. Teixeira.
ERNESTO – Faço idéia! Se sem as tais trovoadas estou neste
estado!
TEIXEIRA – Não sabes o que dizes. As trovoadas é que nos preservam
da febre amarela, do cólera e de todas essas moléstias que nos
perseguem agora.
ERNESTO – Não quero contrariá-lo, meu tio; a sua corte é
bela, é magnífica, com ou sem trovoadas. Mas eu por causa das
dúvidas vou admirá-la de longe.
JÚLIA – Já tomou passagem, papai; vai amanhã.
TEIXEIRA (a ERNESTO) – Pois não! Julgas que consinto nessa loucura!
Em falta de meu irmão, teu pai, eu faço as suas vezes. Proíbo-te
expressamente…
ERNESTO – Meu tio, é impossível, moralmente impossível…
TEIXEIRA – Tá, tá, tá! Não me entendo com os
teus palavrões de Academia. Eu cá sou homem do pão, pão,
queijo, queijo: disse que não irás e está dito.
JÚLIA – Muito bem, papai. (A ERNESTO) Não tem remédio
senão ficar.
D. MARIANA – E não se há de arrepender.
ERNESTO Meu tio, previno-lhe que se me obriga a ficar nesta terra, suicido-me.
JÚLIA – Ah! Ernesto!
D. MARIANA – Que rapaz cabeçudo!
TEIXEIRA – Fumaças! Não façam caso.
ERNESTO – Ou me suicido, ou mato o primeiro maçante que vier importunar-me.
TEIXEIRA – Lá isto é negócio entre ti e a polícia.
(Tira o relógio.) Quase três horas! Vamos D. Mariana, Júlia.
. . Ande, Sr. recalcitrante, há de jantar hoje conosco.
JÚLIA (a ERNESTO) – Bravo! Estou contente, vou vingar-me.
ERNESTO [Enquanto os outros se dirigem à porta] – Três meses
nesta terra! Meus três meses de férias do quinto ano, que eu
contava fossem três dias de prazer! Vão ser três séculos
de aborrecimento.
JÚLIA (da porta) – Ernesto, venha.
ERNESTO – Lá vou, prima! (Vai sair e encontra CUSTÓDIO que
entra.)
CENA XIX
ERNESTO, CUSTÓDIO
CUSTÓDIO (cumprimentando) – Como tem passado? Que há de novo?
ERNESTO (ao ouvido) – Que não estou disposto a aturá-lo. (Sai.)
[CUSTÓDIO fica pasmo no meio da cena; cai o pano.]ATO SEGUNDO
Uma sala elegante em casa de Teixeira, nas Laranjeiras,
[abrindo sobre um jardim]CENA PRIMEIRA
JÚLIA, D. MARIANA
(D. MARIANA lê os jornais junto à mesa)
JÚLIA (entrando) – Ernesto ainda não acordou?
D. MARIANA – Creio que não.
JÚLIA – Que preguiçoso! Nem por ser o último dia que
tem de passar conosco. Às onze horas deve embarcar. (Olhando a pêndula)
Ah! meu Deus já são nove! Vou acordá-lo!… Sim; ele
disse-me ontem que era um dos seus maiores prazeres acordar ao som do meu
piano, quando eu estudava minha lição.
D. MARIANA – Não tem mau gosto.
JÚLIA – Obrigada!… Mas qual é a música de que ele
é mais apaixonado? Ah! a ária da Sonâmbula! (Abre o piano
e toca.)
CENA II
Os mesmos, ERNESTO
ERNESTO [aparecendo à direita] – Sinto não ser poeta, minha
prima, para responder dignamente a um tão amável bom dia. Como
passou, D. Mariana?
D. MARIANA – Bem; e o Sr.?
JÚLIA [levantando-se] – Ah! já estava acordado! [Apertam as
mãos].
ERNESTO – Há muito tempo; aproveitei a manhã para fazer uma
porção de despedidas que me faltavam. Não se lembra que
hoje é sábado?
JÚLIA [entristecendo] – É verdade; daqui a pouco… ERNESTO
– Quis ficar livre para gozar dessas duas últimas horas que devemos
passar juntos. Fui a Botafogo, a S. Clemente, e ainda voltei à cidade.
JÚLIA – Tudo esta manhã?
ERNESTO – Sim; admira-se? Oh! no Rio de Janeiro pode-se fazer isto. Com essa
infinidade de carros sempre às ordens!..
JÚLIA (sorrindo) – E que atropelam a gente que anda nas ruas.
ERNESTO – Aqueles que andam a pé; mas os que vão dentro, vão
depressa e comodamente.
D. MARIANA [erguendo-se] – Estimo muito ouvir isto do Sr. (JÚLIA faz
à D. MARIANA sinal de silêncio.)
ERNESTO – Por que, D. Mariana?
JÚLIA (a ERNESTO) – Até logo; agora não tem mais despedidas
a fazer.
ERNESTO – Por isso mesmo não deve deixar-me.
JÚLIA – Vou dar algumas ordens; volto já. Uma dona de casa
tem obrigações a cumprir, sobretudo quando deve fazer as últimas
honras a um hóspede que vai deixá-la. Não me demoro.
ERNESTO – Olhe lá!…
JÚLIA (sorrindo) – Um minuto! (Sai.)
CENA III
ERNESTO, D. MARIANA
ERNESTO – Que graça e elegância ela tem nos seus menores movimentos;
e ao mesmo tempo que simplicidade!… Oh! não há como as moças
do Rio de Janeiro para fazerem de um nada, de uma palavra, de um gesto, um
encanto poderoso! Seu espírito anima tudo; onde elas se acham tudo
brinca, tudo sorri, porque a sua alma se comunica a todos os objetos que as
cercam.
D. MARIANA – Que entusiasmo!
ERNESTO – E não é justo, D. Mariana?
D. MARIANA – Certamente! (Uma pausa.)
ERNESTO – Como passaram rápidos estes três meses! Pareceram-me
um sonho!
D. MARIANA – Sim?
ERNESTO – Oh! tenho-os impressos na memória hora por hora, instante
por instante. De manhã os sons prazenteiros do piano de Júlia
acordavam-me no fim de um sono tranqüilo. Daí a um instante uma
xícara de excelente chocolate confortava-me o estômago, condição
essencial para a poesia.
D. MARIANA – Ah! Não sabia…
ERNESTO – Pois fique sabendo, D. Mariana. Esses poetas que se alimentam de
folhas de rosas, têm a imaginação pobre e raquítica.
Pouco depois dava um passeio com Júlia pelo jardim, apanhávamos
juntos flores para os vasos, eu escolhia a mais linda para os seus cabelos,
e assim passávamos o tempo até a hora do almoço, em que
meu tio ia para a cidade tratar dos seus negócios na Praça…
Bela instituição esta da Praça do Comércio! Foi
criada expressamente para que os pais e maridos deixassem as suas filhas e
mulheres livres, sob pretexto de tratar dos negócios. A princípio
aborreceu-me…
D. MARIANA – E agora?
ERNESTO – Agora compreendo as suas imensas vantagens.
D. MARIANA – Ora, Sr. Ernesto, já vê que as velhas do Rio de
Janeiro têm sempre algum préstimo.
ERNESTO – Que quer dizer, D. Mariana?
D. MARIANA – Quero dizer que uma parenta velha que acompanha uma prima bonita
serve não só para fazer-lhe companhia, como para receber as
confidências de um primo apaixonado.
ERNESTO (rindo) – Ora!… Não tem razão!
D. MARIANA – Não se ria; é sério! (Sobe.) Aí
vem um moço que eu não conheço.
ERNESTO [olhando] – Ah! Henrique!
D. MARIANA – seu amigo? Deixo-lhe com ele. [Sai].
CENA IV
ERNESTO, HENRIQUE
HENRIQUE [entrando] – Aqui me tens às tuas ordens. Como passas?
ERNESTO – Bem, meu amigo; peço-te desculpa do incômodo que te
dei.
HENRIQUE [com volubilidade] – Qual incômodo! Recebi o teu bilhete,
dizias que precisavas de mim; fiz o que farias. Vejamos; de que se trata?
ERNESTO – Desejava pedir-te um obséquio; mas tenho acanhamento; temo
abusar da tua amizade.
HENRIQUE – Escuta, Ernesto. Nós aqui no Rio de Janeiro costumamos
ser francos; quando um amigo precisa de outro, pede; se ele pode, satisfaz;
se não, diz abertamente: e nem por isso deixam de estimar-se da mesma
maneira.
ERNESTO – Tu me animas; vou dizer-te tudo.
HENRIQUE – É o meio de nos entendermos. [Sentam-se].
ERNESTO – Sabes que ainda sou estudante, e por conseguinte não tenho
grande abundância de dinheiro; vindo passar aqui as férias, julguei
que a mesada que o meu pai me dava chegasse para as minhas despesas. Mas na
corte são tantos os prazeres e divertimentos, que quanto se tenha,
gasta-se; e gasta-se mesmo mais do que se tem. Foi o que me sucedeu.
HENRIQUE – Fizeste algumas dívidas? Não é isso?
ERNESTO – Justamente: procedi mal. Mas que queres? Encontrei no Rio de Janeiro
uma coisa que eu não conhecia senão de nome – o crédito;
hoje que experimentei os seus efeitos não posso deixar de confessar
que é uma instituição maravilhosa.
HENRIQUE – Vale mais do que dinheiro!
ERNESTO – Decerto; é a ele que devo ter comprado o que precisava,
sem mesmo passar pelo incômodo de pagar. Mas agora vou retirar-me para
São Paulo, e não desejava que viessem incomodar meu tio, além
de que seria desairoso para mim partir sem ter saldado essas contas.
HENRIQUE – Tens razão; um homem honesto pode demorar por necessidade
o pagamento de uma dívida; mas não deve fugir de seu credor.
ERNESTO – Quis a princípio falar a meu tio, mas tive vergonha de tocar
nisso; resolvi-me recorrer a ti.
HENRIQUE – Em quanto importam essas dívidas?
ERNESTO – Não chegam a cem mil-réis.
HENRIQUE – Ora! uma bagatela. [Abre a carteira] Aqui tens.
ERNESTO – Obrigado, Henrique, não fazes idéia do serviço
que me prestas! Vou passar-te um recibo ou um vale…
HENRIQUE – Que lembrança, Ernesto! Não sou negociante; tiro-te
de um pequeno embaraço; quando puderes me pagarás. Não
há necessidade de papel e tinta em negócios de amizade.
ERNESTO – A tua confiança ainda mais me penhora. Entretanto mesmo
para tranqüilidade minha desejava…
HENRIQUE – Não falemos mais nisso. Quando embarcas?
ERNESTO – Hoje; daqui a duas horas.
HENRIQUE – Pois se não nos virmos mais, conta que aqui tens um amigo.
ERNESTO – Eu te escreverei.
HENRIQUE – Se é por simples atenção, não tomes
esse incômodo; escreve-me quando precisares de qualquer coisa.
ERNESTO – Ora, graças a ti, estou livre de uma grande inquietação!…
Mas quero confessar-te uma injustiça que cometi para contigo, e de
que me acuso.
HENRIQUE – Como assim?
ERNESTO – Quando vi os moços aqui da corte, com seu ar de pouco caso,
julguei que não passavam de espíritos levianos! Hoje reconheço
que sob essa aparência frívola, há merecimento real e
muita nobreza de caráter. Tu és um exemplo. A princípio,
desculpa, mas tomei-te por um sujeito que especulava sobre a amizade para
a emissão de bilhetes de benefício e de poesias inéditas!
HENRIQUE (rindo-se) – E mais é que às vezes assim é
necessário! Não podemos recusar certos pedidos!.
CENA V
Os mesmos, CUSTÓDIO
CUSTÓDIO (na porta) – Muito bons dias tenham todos nesta casa.
ERNESTO [a HENRIQUE] – Oh! Aí vem o nosso compadre como seu eterno
que há de novo. (A CUSTÓDIO) Bom dia, Sr. Custódio, como
vai?
CUSTÓDIO [desce] – Bem, obrigado! Vai-se arrastando a vida enquanto
Deus é servido. [Aperta-lhe a mão] Que há de novo?
ERNESTO [rindo] – Tudo é velho; ali estão os jornais, mas não
trazem coisas de importância.
CUSTÓDIO – Conforme o costume. (Voltando a HENRIQUE) Tem passado bem?
Que há…
HENRIQUE – Nada, Sr. Custódio, nada absolutamente.
(CUSTÓDIO vai sentar-se à mesa e lê os jornais).
ERNESTO (a HENRIQUE) – Nas províncias não se encontra essa
casta de bípedes implumes, que vivem absorvidos com a política,
esperando antes de morrer ver realizada uma espécie de governo que
sonharam e que se parece com a república de Platão!… Eis o
verdadeiro tipo da raça desses fósseis da Independência
e do Sete de Abril. Cinqüenta anos de idade, empregado aposentado, bengala,
caixa de rapé e gravata branca. Não tem outra ocupação
mais do que ler os jornais, perguntar o que há de novo e queixar-se
da imoralidade da época.
HENRIQUE [rindo] – Serviam outrora para parceiro de gamão nas boticas.
CUSTÓDIO (lendo) – Oh! Cá temos um artiguinho da oposição!…
Começa! Já era tempo! Com este ministério não
sei onde iremos parar.
ERNESTO (a HENRIQUE) – Agora ei-lo ferrado com o tal artigo! Bom homem! Quando
eu queria conversar com Júlia, nós o chamávamos sempre.
Assim éramos três, e ao mesmo tempo estávamos sós;
porque, agarrando-se a um jornal, não ouve, fica cego. Podia apertar
a mão de minha prima que ele não percebia!
HENRIQUE – Esta habilidade não sabia que eles tinham.
ERNESTO – Pois recomendo-te!
HENRIQUE – Fica ao meu cuidado. Adeus; dá cá um abraço;
até a volta.
ERNESTO [abraça] – Adeus, Henrique; lembra-te dos amigos, (Quer segui-lo.)
HENRIQUE – Não te incomodes. [Sai].
CENA VI
ERNESTO, CUSTÓDIO, TEIXEIRA, JÚLIA
CUSTÓDIO [erguendo-se com o jornal na mão] – Isto é
desaforo!… Como é que um governo se anima a praticar semelhantes
coisas na capital do império?
TEIXEIRA – Que é isto, compadre! Por que está tão zangado?
[A ERNESTO] Ernesto, como passaste a noite?
ERNESTO – Bem, meu tio.
CUSTÓDIO [mostrando o jornal] – Pois não leu? Criou-se uma
nova repartição! Um bom modo de arranjar os afilhados! No meu
tempo havia menos empregados e trabalhava-se mais. O Real Erário tinha
dezessete, e fazia-se o serviço perfeitamente!
TEIXEIRA – Que quer, compadre? É o progresso.
CUSTÓDIO – O progresso da imoralidade.
(TEIXEIRA toma um jornal sobre a mesa; CUSTÓDIO continua a ler; ERNESTO
aproxima-se de JÚLIA.)
ERNESTO – Um minuto!… Foi um minuto com privilégio de hora!
JÚLIA [sorrindo] – Acha que me demorei muito?
ERNESTO – Inda pergunta! E agora aí está meu tio, não
teremos um momento de liberdade!
JÚLIA – Sente-se! Podemos conversar.
ERNESTO [sentando-se] – Preferia que conversássemos sem testemunhas!
JÚLIA – Tenha paciência, não é culpa minha.
ERNESTO – É de quem é, Júlia? Se não se demorasse!
[Entra AUGUSTO].
CENA VII
Os mesmos, AUGUSTO
AUGUSTO [entrando] – Com licença!
TEIXEIRA – Oh! Sr. Augusto!
AUGUSTO [a JÚLIA] – Minha senhora! [a ERNESTO e CUSTÓDIO] Meus
Srs.! [A TEIXEIRA] Como passou de ontem, Sr. Teixeira? Peço desculpa
da hora imprópria… [ERNESTO levanta-se e passa ao outro lado].
TEIXEIRA – Não tem de que. Estou sempre às suas ordens.
AUGUSTO – Como me disse que talvez não fosse hoje à cidade…
TEIXEIRA – Sim; por causa de meu sobrinho que embarca às onze horas.
AUGUSTO – Assentei de passar por aqui, para saber o que decide sobre aquelas
cem ações. Talvez hoje tenham subido, mas em todo o caso, não
é bom fiar. Se quer o meu conselho – Estrada de Ferro – Estrada de
Ferro – e largue o mais. Rua do Cano, nem de graça! Seguros estão
em completa oscilação.
TEIXEIRA – O Sr. pode demorar-se cinco minutos?
AUGUSTO – Como? Mais que o Sr. queira; apesar de que são quase dez
horas, e às onze devo fechar uma transação importante.
Mas temos tempo…
TEIXEIRA – Pois então faça favor; passemos ao meu gabinete;
quero incumbir-lhe de uns dois negócios que podem ser lucrativos.
AUGUSTO – Vamos a isso! [cumprimentando] Minha Sra.! Meus Srs.! [A TEIXEIRA,
dirigindo-se ao gabinete] É sobre estradas de ferro? [Saem, ERNESTO
aproxima-se de JÚLIA].
CENA VIII
ERNESTO, CUSTÓDIO, JÚLIA
CUSTÓDIO – Estrada de ferro! Outra mania! No meu tempo viajava-se
perfeitamente daqui para Minas, e as estradas eram de terra. Agora querem
de ferro! Naturalmente para estragar os cascos dos animais.
ERNESTO – Tem razão, Sr. Custódio, tem toda a razão!
JÚLIA (a meia voz) – Vá, vá excitá-lo, depois
não se queixe, quando armar uma das suas questões intermináveis.
ERNESTO – É verdade! Mas fiquei tão contente, quando meu tio
saiu, que não me lembrei que estávamos sós. [Senta-se].
Diga-me uma coisa, prima; que profissão tem este Sr. Augusto?
JÚLIA – É um zangão!
ERNESTO – Estou na mesma. Que emprego é esse?
JÚLIA [sorrindo] – Eu lhe explico. Quando passeávamos pelo
jardim, não se lembra que às vezes parávamos diante dos
cortiços de vidro que meu pai mandou preparar, e escondidos entre as
folhas levávamos horas e horas a ver as abelhas fabricarem os seus
favos?
ERNESTO – Lembro-me; e por sinal que uma tarde uma abelha fez para mim um
favo de mel mais doce do que o seu mel de flores. Tomou a sua face por uma
rosa, quis mordê-la; a Sra. fugiu com o rosto, mas eu que nunca volto
a cara ao perigo, não fugi… com os lábios.
JÚLIA (confusa) – Está bom, primo! Ninguém perguntou-lhe
por esta história! Se quer que lhe acabe de contar, cale a boca.
ERNESTO – Estou mudo como um governista. Vamos ao zangão!
JÚLIA – Enquanto estávamos embebidos a olhar aquele trabalho
delicado, víamos um besouro parecido com uma abelha, que entrava disfarçado
no cortiço; e em vez de trabalhar, chupava o mel já fabricado.
Não via?
ERNESTO – O que eu me recordo ter visto perfeitamente eram dois olhozinhos
travessos…
JÚLIA (batendo o pé) – Via sim; eu lhe mostrei muitas vezes.
ERNESTO – Está bom! Já, que deseja, confesso que via; via com
seus olhos!
JÚLIA – Pois suponha que a Praça do Comércio é
uma colmeia: e que o dinheiro é um favo de mel. Este sujeito que saiu
daqui é o besouro disfarçado, o zangão. Os corretores
arranjam as transações, dispõem os negócios; vem
o zangão e atravessa os lucros.
ERNESTO – Compreendo agora o que é o zangão; é uma excelente
profissão para quem não tem nada que fazer, e demais bastante
útil para a sociedade.
JÚLIA – Útil em quê?
ERNESTO – Oh! Se não fosse ele, ficaríamos sós? Se não
fosse ele, meu tio estaria ainda aqui, querendo por força provar-me
que a desgraça dos fluminenses provém de não haver mais
trovoadas! Querendo convencer-me que as maravilhas do Rio de Janeiro são
a laranja seleta, o badejete, a farinha de Suruí e a água da
Carioca! Sim! É uma profissão muito útil! Aconselharei
a todos os meus amigos que desejarem seguir o comércio, se façam
zangãos da praça!…
JÚLIA – Então é nisso que está a grande utilidade…
ERNESTO – Mas seriamente, prima; essa profissão fácil e lucrativa
é uma carreira aberta à mocidade, que pretenda seguir a vida
comercial.
CUSTÓDIO – Vou até a cidade! Já passaria o ônibus
das dez?
JÚLIA – Não sei, Sr. Custódio; mas o senhor não
almoça conosco?
CUSTÓDIO [erguendo-se] – Almoçar a esta hora! Obrigado!. Sr.
Ernesto, boa viagem!
ERNESTO [apertando-lhe a mão] – Adeus, Sr. Custódio.
CUSTÓDIO – Dê-nos notícias suas. Sem mais. . . D. Júlia!
[Sai].
CENA IX
ERNESTO, JÚLIA
[ERNESTO vem sentar-se na conversadeira junto da JÚLIA; ambos estãoconfusos].
JÚLIA [erguendo a cabeça] – Então, meu primo, ainda
não me disse se leva saudades do Rio de Janeiro?
ERNESTO – É preciso que lhe diga, Júlia!
JÚLIA – Naturalmente não sente deixar a corte; não achou
aqui atrativos que o prendessem; viu uma grande cidade, é verdade;
muita gente, muita casa, muita lama.
ERNESTO – Sim, mas no meio desse vasto montão de edifícios,
encontra-se aqui e ali um oásis magnífico, onde a vida é
um sonho, um idílio; onde nada falta para a comodidade da existência
e o gozo do espírito; onde apenas se forma um desejo, ele é
logo satisfeito. Vi alguns desses paraísos terrestres, minha prima,
e vivi três meses em um deles, aqui nas Laranjeiras, nesta casa…
JÚLIA – Não exagere, não é tanto assim; há
algumas casas bonitas, com efeito, mas a cidade em si é insuportável;
não se pode andar pelas ruas sem ver-se incomodado a cada momento pelas
carroças, pelos empurrões dos que passam.
ERNESTO – Que tem isso? Essa mesma confusão tira a monotonia do passeio.
Demais, quando se anda pela Rua do Ouvidor, como andamos tantas vezes, todos
esses contratempos são prazeres. O susto de um carro faz com que a
moça que nos dá o braço se recline sobre nós;
um sujeito que impede a passagem dá um pretexto para que se pare e
se torne o passeio mais longo.
JÚLIA – Ao menos não negará uma coisa; e é que
temos uma verdadeira praga aqui no Rio de Janeiro.
ERNESTO – Qual, prima?… Não sei.
JÚLIA – Os benefícios.
ERNESTO – Não diga isso, Júlia. Que coisa mais bela, do que
as pessoas que vivem na abastança protegerem divertindo-se aqueles
que necessitam e são pobres! O prazer eleva-se à nobreza da
virtude; o dinheiro que o rico esperdiça para satisfazer os seus caprichos,
transforma-se em oferta generosa, mas nobremente disfarçada, que anima
o talento do artista e alivia o sofrimento do enfermo; a caridade evangélica
torna-se uma instituição social. Não; não tem
razão, prima! Esses benefícios, que a Sra. censura, formam um
dos mais belos títulos do Rio de Janeiro, o título de cidade
generosa e hospitaleira.
JÚLIA – Não sei por que, meu primo, o Sr. vê tudo, agora,
de bons olhos. Por mim, confesso-lhe que, apesar de ser filha daqui, não
acho na corte nada que me agrade. O meu sonho é viver no campo; a corte
não tem seduções que me prendam.
ERNESTO Ora, Júlia, pois realmente não há no Rio de
Janeiro nada que lhe agrade?
JÚLIA – Nada absolutamente. Os passeios nos arrabaldes são
um banho de poeira; os bailes, uma estufa; os teatros, uma sensaboril.
ERNESTO – Como se diz isto, meu Deus! Pode haver coisa mais linda do que
um passeio ao Corcovado, donde se vê toda esta cidade, que merece bem
o nome que lhe deram de princesa do vale? Pode haver nada de mais encantador
do que um baile no Clube? Que noites divertidas não se passa no Teatro
Lírico, e mesmo no Ginásio, onde fomos tantas vezes?
JÚLIA – Fui por comprazer, e não por gostar. Acho tudo isto
tão insípido! Mesmo as moças do Rio de Janeiro…
ERNESTO – Que têm?
JÚLIA – Não são moças. São umas bonecas
de papelão, uma armação de arames.
ERNESTO – Mas é a moda, Júlia. Que remédio têm
elas senão usar? Hão de fazer-se esquisitas? Demais, prima,
quer que lhe diga uma coisa? Essas saias balões, cheias de vento, têm
uma grande virtude.
JÚLIA – Qual é?
ERNESTO – Fazer com que um homem acredite mais na realidade e não
se deixe levar tanto pelas aparências.
JÚLIA – Não o entendo; é charada.
ERNESTO – Ora! Está tão claro! Quando se dá a um pobre
um vintém de esmola, ele recebe e agradece; mas, se lhe derem uma moeda
que pareça ouro, desconfiará. Pois o mesmo me sucede com a moda.
Quando vejo uma crinolina, digo com os meus botões – “é
mulher ou pode ser”. Quando vejo um balão, não tem dúvida.
– “é saia, e saia unicamente!”
JÚLIA [rindo] – Pelo que vejo, não há nada no Rio de
Janeiro, ainda mesmo o que é ruim, que não tenha um encanto,
uma utilidade para o senhor, meu primo? Na sua opinião é uma
terra excelente.
ERNESTO – Diga um paraíso, um céu na terra! (JÚLIA dá
uma gargalhada.) De que ri-se, Júlia?
JÚLIA [rindo-se] – Muito bem! Eis onde eu queria chegar. Há
três meses, no primeiro dia em que veio morar conosco, tivemos uma conversa
perfeitamente igual a esta; com a diferença que então os papéis
estavam trocados; o senhor achava que o Rio de Janeiro era um inferno.
ERNESTO – Não me fale desse tempo! Não me lembro dele! Estava
cego!
JÚLIA – Bem; o que eu desejava era vingar a minha terra. Estou satisfeita:
esqueço tudo o que houve entre nós.
ERNESTO – Como! Que diz, Júlia? Não, é impossível!
Esses três meses que se passaram, esses três meses de felicidade,
foi apenas uma vingança de sua parte?
JÚLIA – Apenas.
ERNESTO (despeitado) – Oh! Obrigado, prima.
JÚLIA – Não tem de que, meu primo; jogamos as mesmas armas;
o senhor ganhou a primeira partida, eu tomei a minha desforra.
ERNESTO – Eu ganhei a primeira partida! De que maneira? Acreditando na senhora.
JÚLIA – Fazendo que eu chegasse a aborrecer o meu belo Rio de Janeiro,
tão cheio de encantos; que achasse feio tudo quanto me agradava; que
desprezasse os meus teatros, as minhas modas, os meus enfeites, tudo para.
ERNESTO – Para… Diga, diga, Júlia!
JÚLIA – Tudo para satisfazer um capricho do senhor; tudo por sua causa!
(Foge.)
ERNESTO – Ah! perdão… A vingança foi doce ainda; mas agora
vou sofrer uma mais cruel. Oito meses de saudade e ausência!
JÚLIA – Para quem tem uma memória tão fraca. .. Adeus!
[Vai sair] Adeus!
ERNESTO – Ainda uma acusação.
JÚLIA – E se fosse um receio! (Sai de repente.)
ERNESTO (seguindo-a) – Júlia! Escute, prima! [Sai].
CENA X
AUGUSTO, D. LUÍSA
AUGUSTO (na porta, a TEIXEIRA) – Sim, senhor; pode contar que hoje mesmo
fica o negócio concluído! Vou hoje à praça. Quinze
e quinhentos, o último. [Dirige-se à porta e encontra-se com
D. LUÍSA que entra].
D. LUÍSA – O senhor faz obséquio de ver este papel?
AUGUSTO – Ações?… De que companhia? Estrada de ferro? Quantas?
A como? Hoje baixaram. [Abre o papel].
D. LUÍSA – Qualquer coisa me serve! Pouco mesmo! Oito filhinhos…
AUGUSTO – Uma subscrição!… [Entregando] Não tem cotação
na praça.
D. LUÍSA – Uma pobre viúva…
AUGUSTO – É firma que não se desconta. Com licença!
D. LUÍSA – Para fazer o enterro de meu marido! A empresa funerária…
AUGUSTO – Não tenho ações desta empresa; creio mesmo
que ainda não foi aprovada. Naturalmente alguma especulação…
Passe bem! [Sai].
CENA XI
D. LUÍSA, TEIXEIRA
TEIXEIRA (atravessando a sala) – Hoje não nos querem dar almoço.
D. LUÍSA – Sr. Teixeira!
TEIXEIRA [voltando-se] – Viva, senhora.
D. LUÍSA – Vinha ver se me podia dar alguma coisa!
TEIXEIRA – Já? Pois acabou-se o dinheiro que lhe dei?
D. LUÍSA – O pecurrucho faz muita despesa! É verdade que o
Sr. não tem obrigação de carregar com elas! Mas seu amigo,
o pai da criança não se importa.
TEIXEIRA – Quem lhe diz que não se importa? Tem família, deve
respeitar as leis da sociedade; demais, sabe que eu tomei isto a mim.
D. LUÍSA – Sim, Senhor.
TEIXEIRA – Espere; vou dar-lhe dinheiro.
CENA XII
ERNESTO, D. LUÍSA
ERNESTO [entra sem ver D. LUÍSA] – Oito meses sem vê-la!
D. LUÍSA [adianta-se] – V.Sa. ainda não leu este papel.
ERNESTO [voltando-se] – Já vi a senhora… Sim e por sinal que…
Pode guardar o seu papel; sei o que ele contém; uma história
de oito filhinhos.
D. LUÍSA – Nus os pobrezinhos, sem ter o que comer.
ERNESTO – Não me logra segunda vez.
D. LUÍSA – Mas V.Sa. talvez precise de uma pessoa…
ERNESTO – Onde mora a senhora?
D. LUÍSA – Rua da Guarda Velha, n.0 175; se o senhor deseja alguma
comissão, algum recado… estou pronta.
ERNESTO – Diga-me; se eu lhe mandasse de São Paulo por todos os vapores
uma carta para entregar a uma moça, dentro de uma sua, a senhora entregava?
D. LUÍSA – Ora, na carreira; contanto que a carta de dentro viesse
com o porte pago.
ERNESTO – Há de vir; um bilhete de 5$OOO.
D. LUÍSA – Serve; pode mandar.
ERNESTO – Pois então está dito; deixe-me tomar a sua morada.
D. LUÍSA – Não precisa; leve esse papel.
ERNESTO – E a senhora fica sem ele?
D. LUÍSA – Tenho outro. [Tira do bolso rindo] Essa história
de viúva já está muito velha, agora sou mulher de um
entrevado
ERNESTO – Que mulher impagável! Isto só se encontra aqui no
Rio de Janeiro. Oh! agora! Posso escrever-lhe a Júlia.
CENA XIII
Os mesmos, JÚLIA, depois TEIXEIRA
ERNESTO (a JÚLIA) – Sabe? Estou alegre.
JÚLIA – Por quê?
ERNESTO – Achei uma maneira de escrever-lhe de São Paulo sem que meu
tio saiba.
JÚLIA – Oh! não, meu primo! Não posso receber!…
ERNESTO – Mas então quer que passemos oito meses sem ao menos trocar
uma palavra.
JÚLIA – Se houvesse outro meio…
ERNESTO – Que melhor do que uma carta inocente?…
JÚLIA – Sem consentimento de meu pai?… Não!
ERNESTO – Então eu falo a meu tio logo de uma vez, e está acabado.
Quer?
JÚLIA Não sei. Faça o que entender.
ERNESTO – Espere! Mas não sei como hei de dizer-lhe isto. (Entra TEIXEIRA
e dá dinheiro a LUÍSA.)
TEIXEIRA – Aqui tem, creio que isto é suficiente para um mês;
portanto não me apareça antes.
D. LUÍSA – Sim, senhor, obrigada. (A JÚLIA) Minha senhora!
(Baixo, a ERNESTO [comprimentando]) O dito, dito.
ERNESTO – Sim. [Sai LUÍSA].
CENA XIV
TEIXEIRA, ERNESTO, IÚLIA
JÚLIA – Não sei, papai, por que ainda dá dinheiro a
esta velha. É uma vadia!
TEIXEIRA – Uma pobre mulher! Para que Deus deu aos abastados senão
para esperdiçar como os que não têm?
ERNESTO – Se o Sr. compromete-se a fazer aceitar esta teoria, meu tio, declaro
que me inscrevo no número dos pobretões.
TEIXEIRA – Já mandaste deitar o almoço, Júlia?
JÚLIA – Já dei ordem, papai.
TEIXEIRA – Ernesto precisa almoçar quanto antes, pois não lhe
resta muito tempo para embarcar.
JÚLIA – Não é às onze horas?
TEIXEIRA – Sim, e já são dez. (Sobe.)
ERNESTO (baixo, a JÚLIA) – Não a deixo senão no último
momento; hei de aproveitar um minuto.
JÚLIA (baixo, a ERNESTO) – Um minuto nessas ocasiões vale uma
hora.
TEIXEIRA (descendo) – Agora, Ernesto, tão cedo não te veremos
por cá!
ERNESTO – Daqui a oito meses estou de volta, meu tio.
TEIXEIRA – Pois não! Teu pai, na última carta que me escreveu,
disse que estava arrependido depois que consentira em que viesses ao Rio,
e que pelo gosto dele não voltarás tão cedo. Queixa-se
porque tens gasto muito!
JÚLIA – Ah!
ERNESTO – Meu pai disse isto?
TEIXEIRA – Posso mostrar-te a carta.
ERNESTO – Paciência. Ele está no seu direito.
TEIXEIRA – Agora é tratares de te formar, e ganhar uma posição;
poderás fazer o que te aprouver. (Sobe) Nada de almoço.
JÚLIA (baixo) – Quando nos veremos!
ERNESTO – Quem sabe! Talvez meu pai…
ERNESTO (com ironia) – É muito para esperar, não é,
prima?
JÚLIA (sentida) – Não, Ernesto; mas é muito para sofrer!
CENA XV
Os mesmos, FELIPE
FILIPE [entra na carreira e faz um grande barulho] – Alvíssaras! Alvíssaras!
Número 1221! Sorte grande! Premiado! Alvíssaras! Número
1221!
TEIXEIRA – Que louco é este?
ERNESTO – Está danado!
FILIPE – Enganado, não! Número 1221! Sorte grande!
TEIXEIRA – O que quer o Sr.?
FILIPE – As minhas alvíssaras!
TEIXEIRA – Mas pelo quê? Explique-se.
FILIPE – Pelo bilhete que vendi ao Sr. (aponta para ERNESTO) e que saiu premiado.
ERNESTO – A mim? É engano.
FILIPE – Engano! Não é possível! Ontem, na Rua do Ouvidor,
em casa do Wallerstein; por sinal que o Sr. estava comprando uns corais, justamente
aqueles! (Aponta para o colo de JULIA, a qual volta-se confusa).
ERNESTO – Tem razão, nem me lembrava; deve estar na carteira. Ei-lo!
Número mil duzentos..
FILIPE – E vinte e um! Não tem que ver!, é o mesmo. Não
me engano nunca!
ERNESTO – Assim, este papel… eu tirei?…
FILIPE – A sorte grande… É meio bilhete! Pertencem-lhe nove contos
e duzentos!
ERNESTO – Nove contos! Sou rico! Tenho dinheiro para vir ao Rio de Janeiro,
ainda que meu pai não consinta.
TEIXEIRA – Agora vai gastá-los em extravagâncias!
ERNESTO – Pois não! Servirão para me estabelecer aqui; montar
minha casa. Quero uma linda casinha como esta, um retiro encantador, onde
a vida seja um sonho eterno! (A JÚLIA, baixo) Onde recordaremos os
nossos três meses de felicidade!
TEIXEIRA – Vamos; despacha este homem.
ERNESTO – Tome, meu tio; tome o bilhete e arranje isto como entender. V.Mcê.
me guardará o dinheiro.
(TEIXEIRA e FILIPE saem; TEIXEIRA examina o bilhete).
JÚLIA (a ERNESTO) – Como a felicidade vem quando menos se espera!
Há pouco tão tristes!
ERNESTO – É verdade! E se soubesse como isto me caiu do céu!
Nem me passava pela idéia semelhante coisa, quando este homem começou
a importunar-me de tal maneira, que tomei-lhe o bilhete para ver-me livre
da maçada. É só a ele que devo a fortuna.
JÚLIA (sorrindo) – Eis então mais uma vantagem do Rio de Janeiro.
ERNESTO (sorrindo) – Tem razão!
TEIXEIRA (a FILIPE, dando-lhe dinheiro) – Tome; como alvíssaras, basta.
FILIPE – Obrigado! (Desce a cena, a ERNESTO) Então, um meio, um inteiro,
um quarto? Enquanto venta, molha-se a vela.
ERNESTO – Agradeço; não sou ambicioso. Quero deixar a sorte
grande também para os outros.
FILIPE – E a senhora? E a Sra. e o Sr.?… Um meio?… Tenho justamente o
número premiado.
TEIXEIRA – Nada, nada; já compramos!
FILIPE – As suas ordens. (Sai.)
CENA XVI
TEIXEIRA, ERNESTO, JÚLIA
TEIXEIRA – Ora, enfim, vamos almoçar.
ERNESTO – Espere, meu tio, tenho urna palavra a dar-lhe.
TEIXEIRA – Pois então já; uma palavra custa pouco a dizer.
ERNESTO (baixo, a JÚLIA) – Sim! Porém, a mim custa mais do
que um discurso!
JÚLIA (baixo a ERNESTO) – Que vai fazer? Ao menos deixe-me retirar.
ERNESTO (baixo, a JÚLIA) – Para quê?
JÚLIA (baixo, a ERNESTO) – Morro de vergonha.
TEIXEIRA – Então? a tal palavra? Estão combinados? Tu sabes
o que é, Júlia?
JÚLIA (vexada) – Eu, papai!… Não, Sr.
TEIXEIRA – Ora, tu sabes! Ficaste corada.
JÚLIA – Foi porque Ernesto riu-se.
TEIXEIRA (a ERNESTO) – Falas ou não?
ERNESTO – Tenho a palavra aqui atravessada na garganta! Lá vai!
TEIXEIRA – Ainda bem! O que é?
ERNESTO – Escute, meu tio. Eéééé…
TEIXEIRA – É…
ERNESTO – Queêêêê….
TEIXEIRA – Já vejo que é preciso ajudar-te! É que…
ERNESTO – Euuu… (Júlia faz sinal que não…) Quero…
TEIXEIRA – Ah! Queres brincar? Pois não estou para te aturar. (Sobe.)
CENA XVII
Os mesmos, D. MARIANA, depois PEREIRA
D. MARIANA (entrando) – Então, por quem se espera? São quase
dez horas.
TEIXEIRA – Vamos, D. Mariana.
ERNESTO (a JÚLIA, baixo) – Está tudo perdido.
PEREIRA – Permitam o ingresso. O Sr. Teixeira?
TEIXEIRA – Um seu criado. O que pretende o Sr.?
PEREIRA – Tomei a liberdade de oferecer a V.EX.a esta minha produção
poética por ocasião do fausto motivo que enche hoje esta casa
de júbilo.
TEIXEIRA – Não tenho excelência; nem o compreendo. Queira explicar-se.
PEREIRA – Com muito gosto. A minha veia poética inspirou-me este epitalâmio
que ofereço ao doce himeneu, às núpcias venturosas, ao
feliz consórcio da senhora sua filha com o senhor seu sobrinho. (Espanto
geral).
JÚLIA (escondendo o rosto) – Ah!…
ERNESTO – Bravo!
D. MARIANA – Calúnias, Sr. Teixeira!
TEIXEIRA – O consórcio de minha filha com meu sobrinho!… O senhor
está louco!
PEREIRA (a TEIXEIRA) – É verdade que alguns espíritos mesquinhos
chamam os poetas de loucos, porque não os compreendem; mas V.Ex.a não
está neste número.
TEIXEIRA – Entretanto, o senhor vem com um despropósito! Onde ouviu
falar de casamento de minha filha?
PEREIRA – Há muito tempo sabia que o senhor seu sobrinho e a senhora
sua filha se amam ternamente…
TEIXEIRA (olhando JÚLIA e ERNESTO, cabisbaixos) – Se amam ternamente!…
(A PEREIRA) E que tem isto? Quando mesmo fosse verdade, é natural;
são moços, são primos…
PEREIRA – Por isso, sendo hoje um sábado, e não tendo V.Ex.a
ido à Praça, conjeturei que as bodas, a feliz união dos
dois corações…
TEIXEIRA conjeturou mal; e para outra vez seja mais discreto em não
intrometer-se nos negócios de família.
PEREIRA – E a poesia? V.Ex.a não a recebe?
TEIXEIRA – Leve a quem a encomendou; ele que lhe pague! (Voltando-lhe as
costas.)
ERNESTO (baixo, a PEREIRA) – É justo que seja eu que aproveitei. O
senhor não sabe o serviço que me prestou. (Dando-lhe um bilhete)
Tome e safe-se quanto antes.
PEREIRA – Entendo!
ERNESTO (a JÚLIA e D. MARIANA) – Sublime raça que é
esta dos poetas! Sem o tal Sr. Pereira ainda estava engasgado com a palavra,
e ele achou uma porção de sinônimos: consórcio,
feliz união, bodas, núpcias, himeneu e não sei que mais…
PEREIRA (a TEIXEIRA) – Peço a V.Ex.a queira desculpar.
TEIXEIRA – Está bom, Sr., não falemos mais nisto.
PEREIRA – Passar bem. (Sai.)
CENA XVIII
TEIXEIRA, ERNESTO, JÚLIA, MARIANA, depois CUSTÓDIO
TEIXEIRA acompanha PEREIRA que sai pelo fundo].
JÚLIA (a D. MARIANA) – Não tenho ânimo de olhar para
meu pai!
D. MARIANA – Ele não foi moço? Não amou? [TEIXEIRA desce).
ERNESTO – Aí vem o temporal desfeito.
TEIXEIRA – Com que então ama-se nesta casa; a gente de fora sabe;
e eu sou o último a quem se diz…
ERNESTO – Perdão, meu tio, não tive ânimo de confessar-lhe.
TEIXEIRA – E tu, Júlia, que dizes a isto?
D. MARIANA (a JÚLIA, baixo) – Fale! Não tenha medo!
JÚLIA – Papai!…
TEIXEIRA – Percebo… Queres casar com teu primo, não é? Pois
está feito!
JÚLIA – Ah!
D. MARIANA – Muito bem!
TEIXEIRA (a ERNESTO) – Com uma condição, porém; não
admito epitalâmios, nem versos de qualidade alguma.
ERNESTO – Sim, meu tio; tudo quanto o Sr. quiser! Hoje mesmo podia ser…
É sábado…
TEIXEIRA – Alto lá, Sr. estudante! Vá se formar primeiro e
volte.
(D. MARIANA sobe e encontra-se com CUSTÓDIO.)
ERNESTO — Oito meses!…
D. MARIANA (a CUSTÓDIO) – Voltou?
CUSTÓDIO – Perdi o ônibus! O recebedor roeu-me a corda!
ERNESTO (a JÚLIA) – Esperar tanto tempo!
JÚLIA – Mas assim é doce esperar.
ERNESTO – Oito meses longe do Rio de Janeiro! Que martírio, meu Deus!
TEIXEIRA (levantando-se) – Vamos! O café já deve estar frio.
(Sobe e vê CUSTÓDIO) Oh! compadre!
CUSTÓDIO Perdi o ônibus. Que há de novo?
TEIXEIRA – Que vamos almoçar.
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