Vários Autores e Várias Obras

Lima Barreto

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Nós nunca somos senhores do rumo que deve tomar a nossa vida.

Nos primeiros anos, com os exemplos familiares, com os conselhos paternos, pensamos que ela deve seguir este ou aquele caminho e orientar-se segundo tal ou qual estrela.

Os acontecimentos supervenientes, porém, chegam e, aos poucos, devido aos embates deles, a nossa existência toma outro rumo muito diferente daquele que traçamos na carta do viver neste mundo.

É vão delinear todo e qualquer projeto de vida nesta terra ou em outra, porque nós não somos senhores dos acontecimentos, não podemos dominá-los nem evitar que eles nos levem para onde não queríamos ir.

Quando, há cerca de vinte anos, época em que já devia estar formado, me pus a escrever em pequenos jornais chamados humorísticos, nunca imaginei que tais ensaios, quase infantis, meros brincos de quem acabava de sair da meninice, viessem um dia me pôr em colisões mais atrozes do que as que passei, ao ser examinado em Mecânica Racional e Cálculo das Variações pelo Sr. Licínio Cardoso.

Perdi o respeito infundado que tinha desse meu antigo lente, no que fiz muito bem; mas, hoje, com a minha incipiente literatura, à vista das atrapalhações que ela, de onde em onde, me traz, sou obrigado a recordar-me dele e da sua mecânica.

A oferta de livros não cessa de me ser feita. É coisa que muito me desvanece; mas muito me embaraça também.

Às vezes, são poetas que me oferecem as suas “plaquettes” e mesmo os seus livros.

Sou obrigado, por delicadeza e para não parecer presunçoso, a dar uma opinião sobre eles. Ora, nunca estudei, mesmo nos seus menores elementos, a arte de fazer versos; não conheço as suas escolas, nem sei bem como elas se distinguem e diferenciam; entretanto, segundo as praxes literárias, tenho, ou por carta ou em artigo, que dar uma opinião sobre as obras poéticas que me são enviadas. É daí que me vem uma das complicações dolorosas que a literatura trouxe à minha existência. Se, de antemão, tivesse eu adivinhado que havia de escrevinhar livros e artigos de jornais, pelo que havia de merecer a atenção dos poetas, teria logo, nos meus primeiros anos de vida, tratado de estudar o Castilhos, porquanto, ao que parece, esse negócio de fazer versos, como a música e a geometria, só se aprende bem aí pelos quinze anos e mesmo antes.

Nessa idade, porém, não tinha a mínima preocupação literária, havia até abandonado o meu Júlio Verne e todo eu era seduzido para o positivismo e coisas correlatas.

Vieram, porém, os fatos duros e fatais que o destino guarda secretos, e eles me empurraram para as letras, sem nada saber de versificação.

Não é só ai que a minha humilde literatura complica a minha vida e me causa incômodos. Há outros pontos em que ela me põe abarbado.

Ainda há dias, recebi de S. Paulo, com uma lisonjeira dedicatória da autora, D. Maria Teresa de Abreu Costa, um curioso livro: Noções de Arte Culinária.

A autora pede-me justiça e eu que já escrevi sobre a sua obra, fiz o que estava em minhas mãos fazer.

Sou incompetente para dizer sobre o assunto que tanto interessa a todos os homens; mas, consultei minha irmã que, nessas coisas de Culinária, deve ser mais autorizada do que eu, e ela me afirmou que o livro de D. Maria Teresa é excelente como método e exposição; é muito claro e não tem as obscuridades daquele curioso Cozinheiro Imperial, edição do Laemmert, em 1852, a terceira, em cujas páginas fui buscar algum chiste para alegrar meus artiguetes de vários números da Careta, desta cidade.

Diz-me, por carta, o Sr. J. N. Pereira, que a Sra. D. Maria Teresa dirigiu um curso anexo à Escola Normal da capital paulista, onde as respectivas alunas aprendiam a ser donas de casa. Esse curso, por economias mal entendidas, foi extinto.

Longe de mim querer censurar este ou aquele governo, daqui ou de S. Paulo. Tenho um medo “brabo” de todos eles, nestes tempos que correm, de violência e pavor, governamentais, mas uma coisa, sem perigo, posso notar, à vista da criação desses cursos de coisas domésticas e similares: é a decadência da família; é o enfraquecimento das tradições domésticas.

Há cinqüenta anos ninguém admitiria que uma moça, fosse qual fosse a sua condição, aprendesse essas artes familiares, senão no seu lar, ou no dos parentes ou no dos amigos de sua família.

Não era só a culinária, incluindo os doces, que dessa forma se aprendia; era a renda de almofada, o “crochet”, o “filet”, o bordado, etc., etc.

Hoje, não; as famílias não sabem ensinar mais essas coisas às suas filhas ou às dos amigos e parentes; e quando as moças querem aprendê-las, tem que se dirigir a escolas especiais.

Se é bom ou não, não sei. O tempo dirá.

À oferta deste livro tão curioso da professora paulista, seguiu-se uma outra a mim feita pelo coronel Ivo do Prado, da sua sólida obra: A Capitania de Sergipe e as suas ouvidorias.

É uma obra de erudição e de pensamento. O Sr. Ivo do Prado não é unicamente um cartógrafo, nem um compilador de cartas de sesmarias e outros documentos rebarbativos. É também um observador das coisas sociais, dos movimentos das populações, das razões naturais e sociais por que elas preferiram tais ou quais caminhos, para o povoamento do interior.

Não tenho espaço nem competência para acompanhar de perto o seu valioso trabalho; entretanto, uma observação sua me traz algumas reflexões que, talvez, não sejam de todo minhas, mas cujo contexto me apaixona.

Trata-se de nossa nomenclatura topográfica. O coronel Ivo do Prado nota, e com muita razão, que é difícil identificar os nossos acidentes da terra e mesmo os potamográficos, porque eles estão, a toda hora e a todo momento, a mudar de nomes, por mero capricho vaidoso das autoridades a que tal coisa incumbe.

É uma grande verdade. Basta ver o que se passa na Estrada de Ferro Central, onde a vaidade ou a bajulação dos engenheiros, que isso podem, faz mudar, em curto prazo de tempo, os nomes tradicionais das estações, batizando-as com os apelidos de figurões e poderosos do momento.

Podia citar exemplos; mas creio não ser necessário. No Ministério da Marinha, um ministro, usurpando as atribuições da respectiva Câmara Municipal, mudou o nome da enseada da Tapera, em Angra dos Reis, para o pomposo de almirante doutor Batista das Neves.

Decididamente não é o bom senso e o sentimento do equilíbrio que dominam os nossos atos. Para prestar homenagem à memória do desditoso almirante Batista das Neves, há, havia e haverá outros meios que não este, onde não se encontra uma razão qualquer que o explique.

A observação do coronel Ivo do Prado, sobre essa nossa mania de estar, a toda a hora, mudando a denominação das nossas localidades, rios., etc, provocou-me lembrar um artigo de Gaston Boissier, tratando de saber onde exatamente ficava Alésia, a célebre cida- dela em que César encurralou Vercingétorix e foi cercado também, mas derrotou os que o sitiavam, e acabou ornando o seu “triunfo” com aquele infeliz chefe gaulês.

Um dos elementos para identificar Alésia foram as denominações locais que, com alguma corrução, desde quase dois mil anos, guardavam mais ou menos a fisionomia da primitiva denominação. Entre nós um tal meio de pesquisa seria impossível…

Estão em moda os Estados Unidos; mas acredito que, apesar do amor histérico dos “yankees” pela novidade, lá as coisas não se passam desse modo.

O livro que o Sr. Carlos Vasconcelos me ofereceu e é de sua autoria, dá-me a entender isso. Em Casados… na América, tal é o titulo da obra, aqui e ali nos apelidos de lugares, vê-se que há ainda lá muita coisa de huron e pele-vermelha. Os americanos mataram-nos sem dó nem piedade; mas os nomes que eles deram às regiões de que se apossaram os seus algozes foram conservados por estes e passaram até aos seus couraçados e cruzadores.

O livro do Sr. Carlos de Vasconcelos é livro de um grande escritor. O que me parece diminuir o seu valor, é a preocupação do autor em encaixar, a força, os Estados Unidos nas suas novelas.

Não sei se é porque tenho uma rara antipatia por semelhante país, não sei se é por outra qualquer causa; o certo, porém, é que a sua mania americana me dá a impressão de que a sua obra não é sincera, não nasceu do seu fundo íntimo.

Estou convencido de que se a sua frase quente e ondeante, colorida e musical, fosse aplicada a assuntos mais nossos, o seu trabalho ganharia muito e muito!

Esse “engouement” pelos Estados Unidos há de passar, como passou o que havia pela Alemanha, e da mesma forma.

Não dou cinqüenta anos para que todos os países da América do Sul, Central e o México se coliguem a fim de acabar de vez com essa atual opressão disfarçada dos “yankees”, sobre todos nós; e que cada vez mais se torna intolerável.

Quem viver, verá!

Um outro escritor que, com raras qualidades, parece ainda estar à procura do seu caminho, é o Sr. Adelino Magalhães.

Há nele uma grande capacidade de observação até ao mínimo detalhe, à minúcia; é vivo e ligeiro; tem grande originalidade no dizer; mas lá vem o “mas”! – o Sr. Adelino Magalhães não quer ver nada além dos fatos concretos, atém-se às aparências, pretende ficar impassível diante do Tumulto da vida (é o título de sua última obra) e não o perfuma de sonho, de dor, de piedade e de amor.

A sua estética é muito cruel e primitiva; os seus contos ou antes, as suas “tranches de vie” têm alguma coisa de bárbaro, de selvagem, de maldade inconsciente. Contudo, o seu livro tem um grande merecimento: é próprio, é original. O trabalho com que o abre – “Um prego! Mais outro prego! …” – é sobre todos os aspectos notável, apesar do abuso da onomatopéia – Pan! Pan!

É uma dificuldade passar de autor tão impulsivo, como é o Sr. Adelino Magalhães, para um escritor laborioso, cauteloso, prudente, tal qual se nos apresenta o Sr. Nestor Vítor.

Se Adelino é todo arremesso, o Sr. Nestor é a cautela em pessoa – o que bem condiz com o seu nome.

Se há defeito no seu último livro – Folhas que ficam – deve provir desse seu feitio de ser. Há falta de espontaneidade. É um livro de reflexões esparsas a que o autor tentou coordenar em várias partes, mas que só ele mesmo poderá justificar semelhante coordenação.

Ninguém pense que o Sr. Nestor as mandou para o livro tal qual elas saíram do primeiro jacto da sua pena ou do seu lápis.

O autor da A Crítica de Ontem é muito filósofo para não fazer semelhante tolice.

As suas reflexões e observações são pensadas e repensadas. Há algumas profundas e irônicas; outras, amargas; outras, céticas. Há muitas morais e muitas sociais. A observação sobre o nosso “doutor” é aguda e perfeita; a reflexão sobre o “Marimbondo metafísico” é de uma ironia acerada e do melhor quilate; e assim é quase todo o livro.

Não é possível lê-lo de um hausto; requer vagar e tempo, porque, se ele faz sorrir, faz também meditar e provoca inevitavelmente o aparecimento, na inteligência do leitor, de pensamentos contíguos ao do autor, desdobrando-se aqueles em outros diferentes, até perder-se a origem de que eles provieram.

Espécie de obra muito rara na nossa produção literária, o trabalho do Sr. Nestor Vítor dá-lhe um lugar à parte nas nossas letras.

É com estas palavras da mais pura satisfação que fecho esta crônica, com a qual me desobrigo dos compromissos que contraí com tantos autores e amigos.

Possam todos eles crer que a leitura de suas obras foi nesta minha quinzena de “férias” o máximo encanto do meu voluntário recolhimento.

Gazeta de Notícias, 6-12-1920

 

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