William Shakespeare
PERSONAGENS
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O REI DA FRANÇA
O DUQUE DE FLORENÇA
BERTRAM, Conde de Rossilhão
LAFEU, um velho nobre
PAROLLES, companheiro de Bertram
O Intendente da Condessa de Rossilhão
LAVACHE, bobo da casa da condessa
Um pajem.
A CONDESSA DE ROSSILHÃO, mãe de Bertram.
HELENA, jovem nobre, protegida pela condessa.
Uma velha viúva de Florença.
DIANA, filha da viúva.
VIOLENTA, vizinha da viúva e sua amiga.
MARIANA, vizinha da viúva e sua amiga.
Nobres, oficiais, soldados, etc., franceses e florentinos.
ATO I
Cena I
Rossilhão. Um quarto no palácio da condessa. Entram Bertram, a Condessa de Rossilhão, Helena e Lafeu, todos de luto.
CONDESSA — Consentindo que meu filho se afaste de mim, enterro um segundo marido.
BERTRAM — E eu, senhora, partindo, renovo o pranto pela morte de meu pai; mas preciso acatar a ordem de Sua Majestade, de quem ainda sou pupilo, como sou e serei sempre vassalo.
LAFEU — O rei, minha senhora, vai ser para vós como segundo marido, e para vós, senhor, como segundo pai. Quem sempre e em tudo se mostrou bondoso, não há de desmentir-se agora em relação a vós, cujo merecimento é mais próprio para despertar a bondade onde quer que haja falta dela, do que vir a padecer-lhe a falta onde ela viceja com tanta exuberância.
CONDESSA — Que esperanças há quanto ao restabelecimento de Sua Majestade?
LAFEU — Já abandonou os médicos, minha senhora, sob cujos cuidados ele malgastava o tempo com esperanças, tendo lucrado com essa resolução por perder definitivamente a esperança.
CONDESSA — Esta menina teve pai Oh! que tristes recordações se encerram neste “teve”! — cujo talento era quase tão grande quanto a honestidade. A se terem igualado, teria deixado imortal a natureza, ficando a morte em férias, por falta de trabalho. Em benefício do rei, fora de desejar que ele ainda estivesse vivo. Penso que seria a morte da doença do rei.
LAFEU — Como se chamava o médico a que vos referis, minha senhora?
CONDESSA — Foi muito célebre em sua profissão, senhor, e com toda justiça; chamava-se Gerard de Narbon.
LAFEU — Com efeito, minha senhora; foi um excelente médico. Não faz muito tempo o rei me falou dele com admiração e pesar. Seus conhecimentos lhe assegurariam vida longa, se a ciência pudesse levar vantagem com relação à morte.
BERTRAM — De que sofre o rei, meu caro senhor?
LAFEU — De uma fístula, milorde.
BERTRAM — Ainda não tinha ouvido falar nisso.
LAFEU — Desejara que o fato não fosse notório. Esta senhorita é filha de Gerard de Narbon?
CONDESSA — Filha única, milorde, que ficou confiada aos meus cuidados. Tenho esperanças de que a sua bondade confirme o que promete a educação. Herdou uma disposição que torna mais belos os talentos; pois sempre que um espírito grosseiro vai de par com boas qualidades, o elogio arrasta à comiseração: são, a um tempo, virtudes e traidores. Nela, porém, essas qualidades se distinguem tanto mais por causa da simplicidade que lhe é própria: a honestidade é herdada; a bondade, adquirida.
LAFEU — Vosso elogio, senhora, arrancou-lhe lágrimas.
CONDESSA — Não há melhor sal para uma jovem temperar o elogio de si própria. Nunca se lhe aproxima do coração a lembrança do pai, sem que a tirania da tristeza lhe faça desaparecer das faces a aparência da vida. Basta, Helena, basta para que não pareça que demonstras uma tristeza que não sentes.
HELENA — A tristeza que eu demonstro é realmente sentida.
LAFEU — Os mortos têm direito a lamentações moderadas; a tristeza excessiva é inimiga da vida.
HELENA — Se a vida e a tristeza são inimigas, o excesso de tristeza acaba sendo fatal para si própria.
BERTRAM — Querida mãe, imploro vossas santas orações.
LAFEU (a Helena) — Como compreendermos isso?
CONDESSA — Eu te abençôo, Bertram. Desejo que herdes de teu pai o exterior e as qualidades. Que o sangue te regule, em competência sempre com a virtude, e que a bondade do berço se te iguale. A todos ama, confia-te de poucos, não ofendas ninguém; temer te faças dos inimigos mais pela tua força do que mesmo pelo uso que fazer dela pudesses; guarda o amigo no peito a sete chaves; antes ser censurado por calado do que por falador. Que as bênçãos todas que o céu te queira dar e as que te possam advir de meus pedidos, em ti caiam. Passa bem. Ele ainda não se encontra, caro senhor, maduro para a corte. Aconselhai-o para o bem.
LAFEU — Não há de lhe faltar nunca o que puder obter-lhe minha dedicação.
CONDESSA — Todas as bênçãos do céu caiam sobre ele. Adeus, Bertram. (Sai.)
BERTRAM (a Helena) — Que fiquem à vossa disposição todos os bons desejos que amadurecerem em vosso entendimento. Sede o consolo de minha mãe, vossa senhora, e tende-a sempre em consideração.
LAFEU — Adeus, gentil senhorita; é preciso sustentardes a reputação de vosso pai.
(Saem Bertram e Lafeu.)
HELENA — Oh, se tudo fosse isso! Mas não penso quase em meu pai. Aquelas grandes lágrimas lhe honram mais a memória do que quantas por ele eu derramasse. Como era ele? Esqueci-me de todo; não conservo na retentiva traços fisionômicos além dos de Bertram. Estou perdida. Vida não há onde Bertram não se ache. Mas é o mesmo que amar um fulgente astro e querer desposá-lo. Está tão alto! Posso alegrar-me em sua luz radiosa e dela receber algum reflexo, mas não mover-me nunca em sua esfera. Minha ambição, desta arte, se castiga. Deve morrer de amor a corça tímida que aspirava a um leão para consorte. Admirável, a um tempo, e doloroso era vê-lo a toda hora, desenhar-lhe na tela do meu peito os lindos cachos, o arco dos supercílios o olhar de águia, neste peito tão ávido das linhas do menor traço de seu doce rosto. Mas partiu, só restando à minha idólatra paixão simples relíquias. Quem vem vindo? Um de seus companheiros de viagem. Estimo-o só por isso, embora o tenha na conta de um notório mentiroso, poltrão de marca, um tolo irremediável; mas resguardam-no muito esses defeitos e lhe vão bem, ao passo que a virtude de ossos de aço tirita ao vento frio. Não poucas vezes vemos a indigente sabedoria depender em tudo da tolice suntuosa e exuberante.
(Entra Parolles.)
PAROLLES — Deus vos guarde, bela rainha.
HELENA — E a vós também, monarca.
PAROLLES — Monarca, não.
HELENA — Nem rainha, tampouco.
PAROLLES — Estáveis a meditar sobre a virgindade?
HELENA — Justamente. E já que tendes algo de soldado, permiti que vos faça uma pergunta. O homem é inimigo da virgindade: de que modo nos defendermos dele?
PAROLLES — Repelindo-o.
HELENA — Mas ele redobra de esforços; e conquanto valente, a virgindade é fraca. Ensinai-nos algum processo guerreiro de defesa.
PAROLLES — É tudo inútil, que o homem assenta diante de vós o acampamento, dispara suas minas e vos fará ir pelos ares.
HELENA — O céu nos preserve a virgindade contra mineiros e explosões. Não haverá artifício militar que permita à virgindade jogar os homens pelos ares?
PAROLLES — Quanto mais depressa cair a virgindade, com tanto maior rapidez irá o homem pelos ares. Mas quando recair na brecha que vós mesmos fizestes, já tereis perdida a cidade. Não há medida política na república da natureza capaz de preservar a virgindade. Sua perda é de utilidade para a população. Não há virgem que não houvesse nascido de uma virgindade perdida. É do metal de que fostes feita que procedem todas as virgens; perdida uma vez a virgindade, poderá ser encontrada dez vezes; mas se ficar muito guardada, estará para sempre perdida. Não há companhia mais fria do que ela. Fora, pois, com a virgindade!
HELENA — Pretendo conservá-la por algum tempo, ainda que venha a morrer virgem.
PAROLLES — A esse respeito não há muito o que dizer; vai contra a lei da natureza. Tomar o partido da virgindade é acusar a própria mãe, o que constitui flagrante desobediência. A virgem é igual ao indivíduo que se enforca; a virgindade se suicida, e deveria ser enterrada nas estradas, longe dos lugares santificados, tal como se faz com os desesperados, que procedem contra a natureza. A virgindade procria gusanos, como o queijo, gasta-se até à casca e morre devorando o próprio estômago. Além do mais, é rabugenta, ociosa, altiva e composta exclusivamente de egoísmo, que é o pecado mais condenado nos mandamentos. Não a conserveis, que só tereis a perder. Fora com ela! Dentro de um ano terá duplicado, o que já é um juro apreciável, sem que fique ressentido o capital. Fora com ela!
HELENA — Como fazer, senhor, para perdê-la de acordo com o próprio gosto?
PAROLLES — Deixai-me refletir… Não há jeito, senão sofrer para ser agradável a quem se desagrada dela. É mercadoria que perde o brilho quando fica muito tempo guardada. Desembaraçai-vos dela, enquanto pode ser vendida; aproveitai a disposição dos compradores. A virgindade é como um velho cortesão de chapéu fora da moda e roupagem rica, mas caída em desuso, tal como se dá com os broches e palitos, que já tiveram sua época. Ficará melhor vossa tâmara no pastel ou no caldo do que nas faces. Vossa virgindade, vossa velha virgindade é tal qual pêra murcha da França: de aspecto e gosto insuportáveis. Pudera! Se não tem seiva! Já foi gostosa; mas presentemente não passa de uma pêra murcha. Estou de partida para a corte; quereis alguma coisa de lá?
HELENA — Da virgindade, nada. Lá vai achar teu amo apaixonadas sem conta: mãe, amante, uma inimiga, uma amiga, uma fênix, diretora, uma guia, uma deusa, uma rainha, conselheira, traidora, apaixonada; sua humilde ambição, alta humildade, concórdia dissonante, desacordo agradável de ouvir, sua lealdade, seu doce azar e um mundo de afilhados graciosos e travessos, que Cupido deixa ainda mais falantes. Mas agora vai ele… Nem sei mesmo o que vai ser. Que Deus o ampare. A corte é grande escola, e ele é um…
PAROLLES — Um quê?
HELENA — Que eu quero bem. É pena.
PAROLLES — Pena por quê?
HELENA — Por não nos ser possível dar um corpo sensível aos desejos, por de berço sermos baixos e fadadas por humildes astros a formular tão-só desejos que não se concretizam. Poderíamos, então, chegar até nossos amigos e lhes sentir o que pensamos, o que não nos enseja, de outro modo, nem agradecimentos.
(Entra um pajem.)
PAJEM — Monsieur Parolles, meu amo vos mandou chamar.
PAROLLES — Adeus, pequena Helena; se não me esquecer, na corte pensarei em ti.
HELENA — Monsieur Parolles, nascestes sob a influência de um planeta caridoso.
PAROLLES — Sob a influência de Marte.
HELENA — Foi o que sempre pensei: debaixo de Marte.
PAROLLES — Por que debaixo?
HELENA — As guerras vos trazem tanto por baixo, que necessariamente deveríeis ter nascido debaixo de Marte.
PAROLLES — Quando ele predominava no firmamento.
HELENA — Seria preferível dizer: quando estava em retirada.
PAROLLES — Que vos leva a pensar dessa maneira?
HELENA — Porque quando vos bateis, recuais sempre.
PAROLLES — Para obter vantagem.
HELENA — O mesmo se dá na fuga, quando o medo aconselha a salvação. A combinação resultante de vossa virtude e de vosso medo é uma virtude de boas asas, que vai muito bem com vosso todo.
PAROLLES — As preocupações me assoberbam de tal modo, que não me dão vagar para te dar uma resposta espirituosa. Voltarei como cortesão perfeito; então, os meus conhecimentos servirão para te naturalizar, no caso, bem entendido, de seres suscetível de receber conselhos de um cortesão e de compreender o que te comunicar a prudência. Caso contrário, morrerás de ingratidão, para seres arrebatada pela ignorância. Adeus. Quando tiveres tempo, dize as tuas orações, e se dele careceres, lembra-te dos amigos. Arranja um bom marido e comporta-te com relação a ele como ele se comportar contigo. E com isto, adeus. (Sai.)
HELENA — Em nós, por vezes, se acha a medicina que em vão ao céu pedimos. A divina Providência nos deu livre alvedrio, só se opondo com todo o poderio aos nossos lentos planos, quando escravos nos revelamos e no agir ignavos. Que poder meu amor faz subir tanto, que me abre os olhos e em mim cria o espanto? As maiores distâncias do destino vence a natura em tempo pequeno, fazendo que num beijo se congrace quanto apartava obstáculo falace. Irrealizável só parece o plano mais ousado e fator de desengano, para quem pensa muito e considera que o que nunca se deu é vã quimera. Acaso já deixou de ser amada quem no elogiar-se não ficou parada? Essa doença do rei… Será loucura; mas, decidida, atiro-me à aventura. (Sai.)
Cena II
Paris. Um quarto no palácio do rei. Toque de clarins. Entra o Rei de França, com cartas na mão; nobres e pessoas do séqüito.
REI — Estão engalfinhados os sienenses e os florentinos; com igual fortuna, têm ficado até agora; bravamente lutam de parte a parte.
PRIMEIRO NOBRE — É o que nos dizem.
REI — E é muito crível. A certeza temo-la de nosso primo de Áustria, com a notícia de que logo virão os florentinos pedir-nos pronto auxílio. Antecipando nossa resolução, o caro amigo manifesta o desejo de recusa formal de nossa parte.
PRIMEIRO NOBRE — Sua grande dedicação a Vossa Majestade, aliada ao saber próprio, lhe asseguram, por certo, à sugestão boa acolhida.
REI — Decidiu-nos, de fato. Os florentinos recusada terão sua requesta antes de a formularem. Mas os nossos fidalgos que quiserem ver a guerra da Toscana, com toda a liberdade poderão escolher qualquer partido.
SEGUNDO NOBRE — Boa escola, decerto, para os moços que tanto anseiam por ações heróicas.
REI — Quem é que vem ai?
(Entram Bertram Lafeu e Parolles.)
PRIMEIRO NOBRE — É o jovem Conde de Rossilhão, Bertram, meu bom senhor.
REI — Jovem, tu te pareces com teu pai. A natureza liberal, mostrando-se nesse particular mais cautelosa do que apressada, soube dar-te forma. Possas herdar, também, as qualidades de teu bom pai. Paris te acolhe alegre.
BERTRAM — Meus agradecimentos e meus préstimos são de Vossa Grandeza.
REI — Desejara ter a saúde prístina de quando, ligado com teu pai pela amizade, na vida militar nos estreamos. Conhecia ele, como poucos, a arte militar de seu tempo, tendo sido discípulo de bravos. Muitos anos conseguiu resistir; mas a velhice disforme em nós se insinuou, tirando-nos, finalmente, da liça. Falar nele me faz ficar mais jovem. Possuía na mocidade o espírito brilhante que eu noto nos rapazes da nobreza que me cerca. Contudo, por mais que estes procurem gracejar, suas pilhérias, não percebidas por ninguém, retornam para eles próprios, sem que seus autores disfarçar possam suas sutilezas com as roupagens da honra. Era um perfeito cortesão: nem desdém nem azedume na altivez revelava e na finura. Se tal aconteceu algumas vezes, foi contra seus iguais. A honra, nessa hora, relógio de si própria, lhe mostrava o minuto preciso em que forçoso lhe era manifestar-se obedecendo sem detença ao ponteiro a mão robusta. Os pequenos tratava como seres de classe diferente, permitindo que sua fronde altiva se inclinasse para a planura deles, com o que a todos orgulhosos deixava da humildade, por se tornar humilde em seus encômios. Aos tempos jovens de hoje falta um homem como esse, para exemplo, o que viria nos demonstrar que para trás andamos.
BERTRAM — Sua memória, majestade, brilha com mais intensidade em vosso encômio do que no seu sepulcro; nem a própria lápide tumular tão alto o exalça quanto vossas palavras.
REI — Quem me dera que com ele me achasse! Costumava dizer — Só me parece que ainda o ouço. Suas palavras de ouro, ele as poupava; não as jogava à toa nas orelhas, mas enxertava-as para que, com o tempo, viessem a criar raízes e dar frutos. — “Não desejo viver” — assim sua boa melancolia, às vezes, se expressava, no último ato, ao findar o passatempo, quando tudo acabava. — “Não desejo viver”, dizer sofa, quando à minha lâmpada faltar óleo, para ver-me reduzido a morrão da gente moça, cujo leviano espírito desdenha quanto não seja novo, e que de idéias muda como de roupa, pois com a moda pauta a própria constância transitória”. Era a isso que aspirava. Eu, no seu rasto, desejo o mesmo. Já que mel e cera não trago para casa, preferira ser retirado logo da colmeia, para ceder o posto a outros obreiros.
SEGUNDO NOBRE — Estima-vos o povo, majestade. Os que vos desconhecem, vossa falta sentirão mais que todos.
REI — Sim, ocupo um lugar; sei disso. Conde, há quanto tempo faleceu o médico de vosso pai? Gozava de alto nome.
BERTRAM — Há seis meses, senhor.
REI — Se ainda vivesse, poderia tentar uma experiência… Dai-me o braço… Os demais me enfraqueceram com tantos tratamentos. Ora podem a natureza e as doenças à vontade decidir do meu caso. Sois bem-vindo, conde; meu filho não é mais caro.
BERTRAM — Sou muito agradecido a Vossa Graça.
(Saem. Clarins.)
Cena III
Rossilhão. Um quarto no palácio da condessa. Entram a condessa, o intendente e o bobo.
CONDESSA — Agora posso ouvir-vos. Que dizíeis dessa senhorita?
INTENDENTE — Desejaria, minha senhora, que o zelo revelado por mim na execução de vossos desejos fosse registrado no calendário de meus serviços anteriores, porque quando nós próprios os publicamos, ferimos a modéstia e embaçamos a candura de nosso merecimento.
CONDESSA — Que faz este sujeito aqui? Fora daqui, maroto! Não quero dar crédito a todas as queixas que me fazem de vós. Sou muito lerda para tanto, porque sei perfeitamente que não careceis de loucura, para concebê-las, nem de habilidade, para pô-las em prática.
BOBO — Como não deveis ignorar, minha senhora, eu não passo de um pobre-diabo.
CONDESSA — Bom.
BOBO — Não, minha senhora; não é bom que eu seja pobre, conquanto muitos ricos tenham ido parar no inferno. Mas se eu puder alcançar as boas graças de Vossa Senhoria no sentido de me ajudar a tomar estado, eu e Isbel faremos o que for possível.
CONDESSA — Estás querendo tornar-te mendigo?
BOBO — Mendigo de vossa boa vontade para este caso.
CONDESSA — Que caso?
BOBO — Meu caso e de Isbel. Serviço não é herança. Estou convencido de que não chegarei a alcançar as bênçãos de Deus, enquanto não vir a minha prole, porque, como diz o povo, os filhos são como bênçãos de Deus.
CONDESSA — Dá-me as tuas razões de quereres casar.
BOBO — É o meu corpo que o deseja, minha senhora. Sou arrastado pela carne, e quando o diabo puxa, a gente não pode resistir.
CONDESSA — São essas todas as razões de Vossa Senhoria?
BOBO — Para dizer toda a verdade, minha senhora, poderia aduzir outras razões tão pias quanto essas.
CONDESSA — Poderia o mundo tomar conhecimento delas?
BOBO — Até agora, minha senhora, eu tenho sido uma criatura pecadora, como vós e todos os seres de carne e sangue. Daí a razão de querer casar, para poder arrepender-me.
CONDESSA — Mais do casamento do que dos pecados.
BOBO — Careço de amigos, minha senhora, e espero adquirir alguns por intermédio de minha mulher.
CONDESSA — Amigos dessa espécie são inimigos, tolo.
BOBO — Nessa questão de bons amigos, minha senhora, não sois bastantemente profunda, porque os marotos irão fazer o que para mim já for trabalho. Quem lavra a minha terra poupa-me os bois e me enseja vagar para a colheita; se faz de mim cabrão, faço dele meu escravo. Quem consola minha mulher, cuida do meu corpo e do meu sangue; quem cuida do meu corpo e do meu sangue, teu amor ao meu corpo e ao meu sangue, e quem tem amor a meu corpo e a meu sangue é meu amigo. Logo, quem beija minha mulher é meu amigo. Se os homens se contentassem com ser o que são, ninguém teria medo de casar. O jovem e puritano Charbon e o velho papista Poysam, por mais discordantes que a religião lhes deixe os corações, têm as cabeças do mesmo feitio: podem dar marradas com os cornos tão bem como qualquer bode do rebanho.
CONDESSA — Nunca deixarás de ser um boca-suja e maldizente?
BOBO — Profeta, minha senhora, é o que eu sou. Só digo a verdade nua e crua. Antiga balada eu canto, que os homens acharão certa: o casamento é destino, o cuco está sempre alerta.
CONDESSA — Ide embora, senhor; sobre isso, conversaremos melhor noutra ocasião.
INTENDENTE — Se julgardes conveniente, minha senhora, ele poderá chamar Helena. É a respeito dela que pretendo falar-vos.
CONDESSA — Maroto, vai dizer a minha dama de companhia que desejo falar-lhe. Refiro-me a Helena.
BOBO — Foi essa a causa, disse ela, de os gregos queimarem Tróia? Oh, que tolice! Era Helena de Príamo a melhor jóia? Assim falando, suspira; assim falando, suspira e diz profunda sentença: se em nove más, uma é boa, se em nove más, uma é boa, uma em dez tudo compensa.
CONDESSA — Como! Só uma boa entre dez? Estás a adulterar a balada, maroto.
BOBO — Uma mulher entre dez, minha senhora. É assim que eu purifico a balada. Assim servisse Deus o mundo todos os anos, que eu não teria de que me queixar do dízimo das mulheres, no caso de ser eu o pároco. Se nos nascesse uma mulher boa por cada cometa ou cada tremor de terra, a loteria só teria a lucrar; mas primeiro o homem arrancará o próprio coração, sem que encontre uma nessas condições.
CONDESSA — Ide logo, senhor velhaco, e fazei o que vos ordenei.
BOBO — Ser a gente obrigado a obedecer a uma mulher, sem que daí resulte nenhum mal! Embora a honestidade não seja puritana, não causará mal nenhum; porá a sobrepeliz da humanidade sobre as vestes negras de um coração inflado. Já vou, já vou! É para dizer a Helena que venha até aqui. (Sai)
CONDESSA — Agora podeis falar.
INTENDENTE — Eu sei, minha senhora, que dedicais grande afeição a vossa dama de companhia.
CONDESSA — Com efeito; seu pai ma confiou ao morrer. Mas por seus próprios méritos, sem outras recomendações, ela teria direito à afeição que lhe consagro. Devo-lhe mais do que o que lhe pago e lhe pagarei mais do que o que ela vier a exigir de mim.
INTENDENTE — Recentemente, minha senhora, penso que estive mais perto dela do que ela teria desejado. Achava-se só e falava para os próprios ouvidos, sem suspeitar que ouvidos estranhos pudessem escutar o que ela dizia. O assunto de seu monólogo era o amor que ela dedica a vosso filho. A Fortuna, dizia, não era deusa, pois havia criado tão grande abismo entre a sua condição e a dele; o Amor não era deus, por não usar do seu poder, a não ser quando as qualidades se encontram em igual nível; Diana, também, não era rainha das virgens, pois permitia que uma de suas pobres ninfas fosse surpreendida sem possibilidade de socorro no primeiro assalto nem, posteriormente, de resgate. Tudo isso ela proferia num tom do mais amargo queixume, como eu nunca ouvira de nenhuma donzela. Por isso, julguei do meu dever vos pôr a par do que há, porque, no caso de alguma desgraça, é necessário saberdes o que se passa.
CONDESSA — Desincumbistes-vos de vosso recado com honestidade; sede discreto nesse particular, não conversando com ninguém a esse respeito. Alguns indícios já me tinham levado a pensar nisso; mas de tal modo faziam esses indícios oscilar os pratos da balança, que eu não podia crer nem duvidar. Deixai-me, por obséquio. Guardai no peito esse segredo. Agradeço-vos de coração a diligência. Ainda voltarei a vos falar sobre isso. (Sai o intendente. Entra Helena.) Quando jovem, também passei por isso. A natureza é assim; esses espinhos inseparáveis são da rosa em viço. A muito o sangue obriga em seus caminhos. A natureza claudicar não há de, onde em paixões estua a mocidade. Nossos erros de então, para nós todas, virtudes eram de acabar em bodas. O olhar é de quem sofre; é o que lhe noto.
HELENA — Senhora, que mandais?
CONDESSA — Como sabeis, Helena, mãe vos sou.
HELENA — Senhora minha.
CONDESSA — Foi mãe que eu disse. E por que não? Dizendo “mãe”, parece que vistes uma serpe. Por que esse nome tanto vos assusta? Sou vossa mãe, repito, e vos incluo entre os seres nascidos deste ventre. A adoção a apostar com a natureza por vezes se tem visto, e de semente peregrina nascer galho excelente. Dores maternas nunca me custastes. Graças a Deus, menina! Acaso sentes que o sangue se te esfria, quando me ouves dizer que sou tua mãe? Por que motivo te cerca os olhos essa núncia doente das lágrimas, essa Íris matizada? Tão somente por seres minha filha?
HELENA — Vossa filha não sou.
CONDESSA — Mas já vos disse que vos sou mãe.
HELENA — Perdão, minha senhora; mas meu irmão não pode ser o Conde de Rossilhão. Meu nome é muito humilde; o dele é da nobreza. Ele meu amo será, caro senhor. Vassala fida dele hei de ser enquanto tiver vida. Irmão meu não será.
CONDESSA — Nem eu mãe vossa?
HELENA — Sois minha mãe, senhora. Ah, se, realmente — sem que me fosse irmão vosso alto filho — fôsseis vós minha mãe! Se de nós ambos fôsseis mãe! Galardão mais elevado, nem mesmo o céu eu desejar pudera. Mas sendo eu vossa filha, haverá jeito de não ser irmã dele por direito?
CONDESSA — Sim, Helena, podeis ser minha nora. Deus permita que aceiteis essa hipótese. Esses nomes de mãe e sogra o pulso vos alteram. Por que essa palidez? Minhas suspeitas se confirmam. Percebo ora o mistério de vossa solidão e a fonte encontro dessas freqüentes lágrimas. É claro: amais meu filho. Cora a hipocrisia, diante do que a paixão por ti proclama, de me dizer que não. Sê, pois, sincera: dize-me que acertei, porque essas faces contam uma para outra o que se passa, e com tanta clareza os olhos lêem em tuas atitudes, que o proclamam, sem que o queiras, com sua fala própria. Não fosse essa culposa e infernal teima que a língua te reprime, poder-se-ia suspeitar a verdade. Dize: é isso? Se for assim, um nó bem firme deste; caso contrário, jura-o. Neste instante, só desejo que me uses de franqueza, para que o céu me inspire sobre o modo de te poder valer. Sê, pois, sincera.
HELENA — Perdão, minha senhora.
CONDESSA — Amais meu filho?
HELENA — Não lhe tendes amor, digna senhora?
CONDESSA — Não me fujas do ponto, que meu título de afeição para o mundo todo é válido. Vamos, vamos! Revela-me o que sentes, que tua inquietação já disse tudo.
HELENA — Já que insistis, confesso aqui, de joelhos diante de vós e do alto céu, que acima de vós e abaixo do alto céu eu amo vosso filho. Pobres foram meus pais, porém honestos; assim é meu amor. Não vos zangueis, que do fato de ser por mim amado, mal nenhum lhe advirá. Não o persigo com nenhuma insistência presunçosa, nem desejo alcançá-lo sem que tenha chegado a merecê-lo, muito embora não saiba como merecê-lo possa. Sei que amo em vão, e inutilmente luto contra toda esperança. Apesar disso, nesse crivo capcioso e insustentável não paro nunca de deitar as águas do meu amor, sem que jamais se esgotem, porque a perdê-las venha sem descanso. Como Indiana, portanto, persistente na minha ilusão pia, o sol adoro que me olha sem tomar conhecimento de seu humilde crente. Minha cara senhora, que vosso ódio não castigue meu amor por amar a quem amais. Se vós, acaso — cujas cãs honradas são penhor de virtuosa mocidade — vos incendiastes em tão pura flama e tivestes tão castas esperanças, unificando, assim, o Amor e Diana: apiedai-vos, então, de uma coitada que a emprestar de contínuo põe o estudo onde venha, afinal, a perder tudo, que não tenta encontrar o que procura e, qual enigma, vive a morte pura.
CONDESSA — Não fizeste a intenção, recentemente, de ir a Paris?
HELENA — Senhora, sim.
CONDESSA — Sê franca: com que intuito?
HELENA — Direi toda a verdade, jurando pela Graça celestial. Como sabeis, meu pai deixou-me algumas fórmulas de eficiência comprovada, que seus conhecimentos muito vastos e a manifesta prática apontavam como infalíveis. Ao morrer deixou-mas sob o maior sigilo, como notas de intrínseco valor muito mais alto do que nelas notar se poderia. Há uma receita entre essas, de um remédio muito experimentado para os males desesperados de que o rei se fina.
CONDESSA — É esse o motivo que vos leva à corte? Sede franca.
HELENA — Milorde, vosso filho, me fez pensar no caso. Não fora isso, Paris, a medicina, o rei ausentes teriam sempre estado das conversas que a sós comigo mesma às vezes tenho.
CONDESSA — Mas Helena, pensais que se chegardes a oferecer vosso suposto auxílio, há de aceitá-lo o rei? Ele e seus médicos estão de acordo nisto: ele, que médico nenhum pode curá-lo; eles, que a doença do rei não terá cura. Será crível que eles revelem confiança numa donzela pobre sem nenhum preparo, quando as escolas, gastas as doutrinas, o perigo a si mesmo abandonaram?
HELENA — Tenho o pressentimento mais potente do que a arte de meu pai, que foi famoso em sua profissão — de que essa fórmula de efeito comprovado vai servir-me como herança abençoada pelos astros mais felizes do céu. Se me consente Vossa Honra permissão para a aventura, arriscarei a vida nessa cura, em dia e hora marcados.
CONDESSA — Estais bem certa?
HELENA — Sei o que estou dizendo.
CONDESSA — Pois que seja! Dou-te o consentimento e, de crescença, toda a minha afeição, recursos, gente para seguir contigo, e meus saudares aos amigos da corte. Em casa fico, para pedir a Deus que te auxilie. Parte amanhã com a maior certeza de que contas comigo nessa empresa.
(Saem.)
ATO II
Cena I
Paris. Um quarto no palácio do rei.
(Clarins. Entra o rei com vários fidalgos moços, que se despedem para a guerra de Florença; Bertram, Parolles e pessoas do séqüito.)
REI — Jovens fidalgos, passai bem; que a vossa disposição guerreira se mantenha. Adeus, também, senhores. O conselho servirá para todos. Se ganhardes, dobrará de valor a recompensa, bastando para os dois.
PRIMEIRO NOBRE — O que almejamos, ao voltarmos da guerra como bravos, é encontrar Vossa Graça com saúde.
REI — Não, é impossível, posto se me negue o coração a confessar que abrigo concede ao mal que me bloqueia a vida. Adeus, jovens senhores; sede sempre, quer eu viva, quer morra, filhos dignos de dignos pais franceses. Que a alta Itália — cuja prole mirrada herdou somente a decadência do último governo — possa ver que não ides como simples cortejadores da honra, mas ansiosos por desposá-la, e que levais a cabo quanto intentais, onde os mais bravos tremem, porque muito alto a Fama vos consagre. Tomo a dizer: adeus.
SEGUNDO NOBRE — Fique a saúde sempre s ordens de Vossa Majestade.
REI — As moças italianas… Cautelai-vos! Dizem que nós, franceses, não sabemos negar o que elas pedem. Prisioneiros não vos torneis, portanto, antes da guerra.
AMBOS OS NOBRES — No coração guardamos esse aviso.
REI — Adeus. Vinde comigo.
(Sai amparado.)
PRIMEIRO NOBRE — Oh! Não seguir conosco o nobre conde!
PAROLLES — Não cabe culpa alguma ao cavalheiro.
SEGUNDO NOBRE — Oh! Como são gloriosas essas guerras!
PAROLLES — Admiráveis! Já estive nessas guerras.
BERTRAM — Tenho ordem de ficar. O mesmo lema de sempre: “És muito moço” “É cedo ainda” “No ano vindouro”.
PAROLLES — Se te pede o peito, meu rapaz, foge logo com coragem.
BERTRAM — Terei de aqui ficar, na qualidade de pajem de senhoras, os sapatos a gastar nestas pedras, até vermos toda a honra despendida, sem que sobre outra espada a não ser para bailados. Pelo céu, vou fugir!
PRIMEIRO NOBRE — Honroso feito fora essa fuga.
PAROLLES — Fazei isso, conde.
SEGUNDO NOBRE — Sou nisso vosso cúmplice. Até logo.
BERTRAM — De tal modo nos identificamos nesse particular, que nossa separação mais parece um corpo submetido a tratos.
PRIMEIRO NOBRE —Adeus, capitão.
SEGUNDO NOBRE — Meu caro monsieur Parolles!
PAROLLES — Nobres heróis, minha espada e as vossas são parentas: iguais faíscas, brilho idêntico. Uma palavra, meus valentes: no regimento dos Spirii haveis de encontrar um Capitão Spurio com uma cicatriz, emblema da guerra, aqui na face esquerda. Pois foi cavada com a espada que aqui vedes. Comunicai-lhe que eu ainda vivo e tomai nota do que ele disser de mim.
SEGUNDO NOBRE — Assim o faremos, nobre capitão.
(Saem os nobres.)
PAROLLES — Que Marte se vos mostre afeiçoado, por serdes noviço. Que pretendeis fazer?
BERTRAM — Ficar. O rei…
(Volta o rei. Bertram e Parolles se afastam.)
PAROLLES — Sede mais cerimonioso com esses nobres senhores; fechastes-vos nos limites de uma despedida por demais fria. É preciso ser mais expansivo com eles, por serem a nata de seu tempo, o modelo do andar, do comer, do conversar, e por se moverem sob o influxo dos mais reconhecidos astros. Ainda que fosse o diabo que marcasse o compasso, deveriam ser seguidos. Correi atrás deles e despedi-vos com mais formalidades.
BERTRAM — É o que vou fazer.
PAROLLES — Rapazes de valor! Com o tempo, as suas espadas se tornarão irresistíveis.
(Saem Bertram e Parolles. Entra Lafeu.)
LAFEU (ajoelhando-se) — Desculpai-me, senhor, e às minhas novas.
REI — Teu prêmio é levantares-te depressa.
LAFEU — Vedes, dessa maneira, uma pessoa que comprou seu perdão. Só desejara, milorde, que estivésseis de joelho diante de mim, para que a um meu aceno vos levantásseis.
REI — Também eu quisera isso, que, assim, te quebraria o casco, para pedir, depois, que me perdoásseis.
LAFEU — De cruz, não é? Mas, meu gracioso lorde, com licença: quereis ficar curado de vossa enfermidade?
REI — Não.
LAFEU — É certo? Não quereis uvas, minha real raposa? Pois haveríeis de querê-las, caso minha raposa real pudesse minhas nobres uvas pegar. Vi uma doutora capaz de insuflar vida até nas pedras, de forçar um rochedo a andar depressa e vos fazer dançar uma canária com fogo é desempeno. Seu contacto ressuscitar faria o Rei Pepino. Mais, ainda: obrigara ao próprio grande Carlos Magno a tomar da pena e versos de amor para ela enviar.
REI — Para “ela!” Como?
LAFEU — Uma doutora, é claro. Já na corte se acha, milorde, se quiserdes vê-la. Por minha honra e minha fé, no caso de eu poder expressar os pensamentos com seriedade, após esse prelúdio: Falei com uma donzela, cuja idade, sabedoria, profissão, firmeza de caráter, perplexo me deixaram mais do que fora de esperar de minha fraqueza irremediável. Quereis vê-la — é o seu desejo — e discorrer ouvi-la? Depois, ride de mim quanto quiserdes.
REI — Meu bom Lafeu, trazei-me esse milagre, para, juntos, mostrarmos nosso espanto ou fazermos que o teu venha a acabar-se tão-só por te espantares de ti próprio.
LAFEU — Então vos servirei, sem perder tempo. (Sai.)
REI — Seus nadas sempre têm prólogos grandes.
(Volta Lafeu com Helena.)
LAFEU — Vinde logo.
REI — Tinha asas sua pressa.
LAFEU — Vinde logo. Eis aqui Sua Majestade; dizei-lhe o que pensais. Vossa aparência é de conspirador, mas Sua Graça desses conspiradores não se teme. Sou o tio de Cressida; não receio deixar-vos em colóquio. Passai bem. (Sai.)
REI — Então, bela menina, tendes algo a me comunicar?
HELENA — Sim, Majestade. Sou filha de Gerard de Narbon, que em sua profissão teve alta fama.
REI — Conheci-o.
HELENA — Isso vem minha tarefa facilitar. Se o conhecestes, basta. Ao morrer me deixou muitas receitas; uma, principalmente, ele avaliava como a mais fina flor de seus estudos, de provada experiência a filha amada, tendo pedido que a guardasse como se fosse um terceiro olho, mais precioso para mim do que os próprios. Assim fiz. E por ouvir dizer que Vossa Graça sofria dessa doença perniciosa que tão alto elevou a grande fama de meu querido pai, humildemente vos venho oferecer os meus serviços.
REI — Nós vos agradecemos, rapariga. Mas, de que modo acreditar em cura, se abriram mão do caso nossos médicos mais conspícuos, e toda a Faculdade decidiu que jamais o esforço da arte poderá ser auxílio à natureza em seu precário estado? Não devemos, por isso, permitir que nosso juízo se deturpe e que falsas esperanças nos desviem, a ponto de chegarmos a prostituir a charlatães a nossa doença irremediável, degradando nossa grandeza, assim, e nosso crédito, por julgarmos que possa ainda ter cura um mal que tanto quanto a vida dura.
HELENA — O cumprimento do dever me paga de todo o meu trabalho. Não insisto nos oferecimentos. Só imploro de vossos reais conceitos o modesto favor de permitir que me retire.
REI — Menos não é possível conceder-te, sem passar por ingrato. Imaginaste socorrer-me, razão de agradecer-te como costuma o moribundo a quantos desejam que reviva. Do conjunto da situação conheces só uma parte; para o meu mal inútil é tua arte.
HELENA — Se na descrença pondes todo o siso, poderíeis tentar, sem prejuízo, quanto ora vos proponho. O que realiza todas as obras grandes, improvisa muitas vezes os meios, conseguindo com fraca gente resultado infindo. As Santas Escrituras nos meninos reconheceram senso onde os rabinos infantis se mostraram. De minguante fonte pode jorrar água abundante, como pôde secar um mar profundo, quando o milagre os sábios deste mundo tinham por impossível. É freqüente falhar a expectativa mais florente, como concretizar-se, quando fria já se achava a esperança em demasia.
REI — Basta, bela menina; recompensa nenhuma te dará minha descrença, senão tão-só palavras.
HELENA — Desse jeito torna estéril um sopro o mais perfeito desígnio. O Ser que sabe quanto passa, não se comporta como nossa escassa percepção, que das coisas o que estima é aparência, tão-só, muito por cima. É presunção, considerar terrena a ajuda com que o céu de longe acena. Caro senhor, cedei ao meu pedido; não de mim, mas do céu tirai partido. Impostora não sou, para valia me atribuir que transcenda a mediania. Mas podeis crer-me: livre de impostura será minha arte e, certa, vossa cura.
REI — Vejo que tua fé não se embaraça. Em quanto tempo sararei?
HELENA — Se a Graça divina me der graça, antes que ao poente duas vezes consiga a reluzente parelha conduzir a luz radiosa e Héspero duas vezes na fumosa fímbria a tocha mergulhe sonolenta; antes, ainda, de mostrar a lenta ampulheta, por vinte e quatro vezes, aos minutos seus passos descorteses: ficareis bom; a dor terá fugido, para afundar de vez no eterno olvido.
REI — A tal ponto mostrando-te confiada, que arriscas nessa empresa?
HELENA — Ser chamada de impudente, de baixa e de rameira; ver a honra divulgada por maneira vergonhosa em baladas infamantes nome impoluto já não ter, como antes; mais, se for concebível: prematura vir a morte a alcançar pela tortura.
REI — Parece que uma força sublimada fala por ti, valendo-se de nada para nos dar de seu poder notícia. O que ao senso comum fora estultícia, em tua fala adquire alto sentido. Tua vida é preciosa, pois reunido tens em tua pessoa tudo quanto torna o nosso viver digno de encanto: saber, graça, virtude, mocidade, quanto a sazão propícia, nessa idade de bom pode ensejar. Tanta confiança indício é de um saber que tudo alcança, se não for de infinito desespero. Assim, cara doutora, com esmero cuida de exercitar a medicina, pois se tua dita se mostrar mofina, resultando-me disso a negra morte, para ti não esperes melhor sorte.
HELENA — Se eu não puder, no prazo combinado, cumprir quanto prometo, que meu fado seja morrer, porque viver não há de quem revelou tão grande pravidade. Mas, se o erro não me der sorte tão dura, qual virá a ser o galardão da cura?
REI — Pede-me o que quiseres.
HELENA — E obtê-lo-ei?
REI — Sim, pelo céu e meu penhor de rei.
HELENA — Tuas mãos reais, então, dar-me-ão o esposo que eu escolher por digno e donairoso, estando em ti ceder-mo, sem que medo conceber possas de um projeto tredo, de eu apontar um príncipe da França, que a tanto o meu querer não se abalança. Jamais imaginei que de futuro pudesse a ti ligar meu nome obscuro. Não; o vassalo que ora trago em mente, poderás conceder-me livremente.
REI — Eis minha mão, que recusar não há de quanto manifestar tua vontade, depois de me cumprires a promessa. Ora o momento de experiência apressa, porque eu, na qualidade de cliente, prometo ser-te em tudo obediente. Muito, ainda, desejava perguntar-te; mas com isso a confiança, que tua arte de início me inspirou, não cresceria: como vieste até aqui? E a companhia? Sê, portanto, bem-vinda e abençoada, sem maiores perguntas à chegada. A mão, aí! Se tua arte for potente, igualará tua cura o meu presente.
(Toque de clarins. Saem.)
Cena II
Rossilhão. Um quarto no palácio da condessa. Entram a condessa e o bobo.
CONDESSA — Vinde cá, senhor; desejo pôr vossa educação à prova.
BOBO — Com isso vereis que estou muito bem alimentado, mas pessimamente educado, o que, para a corte, é o suficiente.
CONDESSA — Para a corte? Que lugar, então, vos merece consideração, e vos referis à corte com tão grande desprezo? “Para a corte é o suficiente!”
BOBO — Em verdade, minha senhora, quem recebe boas maneiras de Deus, pode perfeitamente desembaraçar-se delas na corte. Quem não souber fazer um rapapé, tirar o chapéu, beijar a mão e não dizer palavra, carece de pernas, de mão, de boca e de chapéu. Uma pessoa nessas condições, para falar com maior precisão, não é feita para a corte. Mas no que me diz respeito, tenho uma resposta que servirá para todos os homens.
CONDESSA — Para servir a todas as perguntas, deve ser uma resposta liberal.
BOBO — É tal qual cadeira de barbeiro, que serve para todos os assentos: pontudos, redondos, carnudos… Para todos, em suma.
CONDESSA — Vossa resposta vai bem com todas as perguntas?
BOBO — Tão bem como uma moeda de dez vinténs na mão de um procurador, ou uma coroa francesa na de uma prostituta vestida de tafetá, ou o junco de Tib no indicador de Tom, ou um filhós na terça-feira gorda, a dança mourisca no dia 1.° de maio, o prego no seu buraco, os cornos na fronte de quem os merece, a megera rilhenta ao lado de algum arruaceiro, os lábios de uma freira na boca de um monge… Sim, tão bem quanto o chouriço na sua pele.
CONDESSA — Tendes uma resposta — torno a perguntar-vos — tão adequada assim para todas as questões?
BOBO — Desde debaixo do duque até embaixo do inspetor de polícia, irá bem com todas as perguntas.
CONDESSA — Então deve ser uma resposta de dimensões monstruosas, para corresponder a todas as perguntas.
BOBO — Para ser sincero, não passará de uma ninharia, para o sábio que souber dizer a verdade. Aqui está ela com todos os seus adminículos: perguntai-me se eu sou cortesão; nada tereis a perder com a lição que eu vos der.
CONDESSA — Voltar a ser jovem, se isso fosse possível… Vou ficar suficientemente tola para vos dirigir essa pergunta, na esperança de que a resposta me deixe sábia. Por obséquio, senhor, sois cortesão?
BOBO — Oh Deus, senhor! Foi dito muito depressa. Mais perguntas! Mais perguntas! Dirigi-me cem perguntas iguais a essa.
CONDESSA — Não passo, meu senhor, de uma humilde amiga vossa, que vos dedica afeição.
BOBO — Oh Deus, Senhor! Prossegui! Prossegui! Não me poupeis.
CONDESSA — Penso, meu senhor, que não podeis comer nenhum desses pratos caseiros.
BOBO — Oh Deus, Senhor! Ponde-me à prova, sem cerimônia.
CONDESSA — Fostes recentemente chibateado, não é verdade?
BOBO — Oh Deus, Senhor! Não me poupeis.
CONDESSA — Exclamais “Oh Deus, Senhor!” quando estais sendo chibateado e “Não me poupeis”? Realmente, o vosso “Oh Deus, Senhor!” vem muito a ponto com vossa correção. Responderíeis com muito acerto, se fosseis chibateado.
BOBO — Nunca tive tão pouca sorte com o meu “Oh Deus, Senhor!” Vejo que as coisas podem servir para muito tempo, não, porém, para sempre.
CONDESSA — Como dona de casa esbanjadora, com um bobo, alegre, o tempo estou gastando.
BOBO — Oh Deus, Senhor! Serviu-me ainda a frase.
CONDESSA — Basta, senhor! A Helena entregai isto, e dizei-lhe que logo me responda. Lembranças aos parentes e a meu filho. A incumbência é pequena, me parece.
BOBO — Pequenas, as lembranças para todos.
CONDESSA — Vossa incumbência, disse. Compreendestes-me?
BOBO — Completamente, estarei lá primeiro que minhas pernas.
CONDESSA — Vinde sem delongas.
(Saem por lados diferentes.)
Cena III
Paris. Um quarto no palácio do rei. Entram Bertram, Lafeu e Parolles.
LAFEU — Dizem que já não há milagres, e aí está os nossos filósofos que deixam ordinárias e familiares as coisas sobrenaturais e inexplicáveis. Daí resulta brincarmos com os fenômenos mais terríveis, barricando-nos por trás de nosso suposto conhecimento, quando devêramos ceder ao medo do desconhecido.
PAROLLES — Realmente, é o maior motivo de admiração de que se teve notícia nestes últimos tempos.
BERTRAM — Com efeito.
LAFEU — Depois de ter ficado abandonado pelos conhecedores da arte…
PAROLLES — É o que eu digo.
LAFEU — Por Galeno e Paracelso…
PAROLLES — É o que eu digo.
LAFEU — Pelos mais sábios e autênticos doutores…
PAROLLES — É isso mesmo que eu penso.
LAFEU — Que o deram por incurável…
PAROLLES — Justamente. É também o que eu digo. Bela menina, a vista lança em torno. Este grupo de jovens da nobreza, solteiros todos, que aqui vês reunidos, farão minha vontade em toda a linha. Poder tenho sobre eles, não somente de rei, como de pai. Nomeia um deles. De escolheres qualquer tens liberdade; de recusar-te nenhum deles há de.
HELENA — Que o Amor uma virtuosa e bela noiva dê a cada um de vós salvo a um somente.
LAFEU — Era capaz de dar o meu cavalo baio rabão, com todos os arreios, para ter dentes como estes rapazes e, como eles, não ter barba no queixo.
REI — Observa-os bem. São todos da nobreza.
HELENA — Cavalheiros, valendo-se de mim, restituiu Deus ao rei a saúde.
TODOS — Já o soubemos, e ao céu, por isso, agradecidos somos.
HELENA — Sou uma donzela humilde; toda a minha fortuna é confessar que sou donzela. Se da vontade for de Vossa Graça, declaro que estou pronta, embora as faces, coradas de vergonha, me segredem: “Coramos, por te veres na premência de fazer uma escolha; mas se fores recusada, virá cobrir-nos, pronta, a palidez da morte, sem que as cores jamais recuperemos”.
REI — Sê confiante, que ficará de meu amor à parte quem o ousio tiver de recusar-te.
HELENA — Agora, Diana, o teu altar evito, para cultuar Amor, o deus bendito, a quem dirijo os meus suspiros todos. Ouviríeis, senhor, o meu pedido?
PRIMEIRO NOBRE — Sim, e o satisfaria.
HELENA — Agradecida; nada mais vos direi.
LAFEU — Preferira ser um dos que vão ser escolhidos, a só tirar o ás a vida inteira.
HELENA — A honra que brilha nesses belos olhos, antes que eu fale, me promete abrolhos. O Amor vos ponha vezes dez acima desta a quem sempre teve em desestima.
SEGUNDO NOBRE — Grato; mais não desejo.
HELENA — Bom sucesso vos dê Amor. Com isso, me despeço.
LAFEU — Todos a recusam? Se fossem meus filhos, mandaria chibateá-los, ou os enviaria para o Turco, a fim de fazer deles eunucos.
HELENA — (ao terceiro nobre) — De vos tomar a mão não mostreis medo; não vos desejo mal; será brinquedo. Deus vos exalce os votos. Feliz sorte vos dê Amor na escolha da consorte.
LAFEU — Esses rapazes são de gelo; nenhum a quer. Por certo todos são bastardos ingleses, que nenhum francês os teria nunca gerado.
HELENA — Sois moço, bom demais e de alto brilho porque de mim possais vir a obter filho.
QUARTO NOBRE — Não sou desse pensar, bela menina.
LAFEU — Ainda está faltando uma uva. Sei, com segurança que teu pai bebia vinho. Mas se não fores um asno, não passo de um meninote de quatorze anos; há muito que te conheço.
HELENA (a Bertram) — Se vos tomasse a mão, fora atrevida. Eu é que a vós me entrego, enquanto vida tiver, para me guiardes. Eis o esposo.
REI — Jovem Bertram, tomai-a; é vossa esposa.
BERTRAM — Minha mulher, senhor? A Vossa Alteza suplico me deixar nesses assuntos valer dos próprios olhos.
REI — Não soubeste, jovem Bertram, quanto ela por mim fez?
BERTRAM — Sim, meu senhor; mas nunca saber pude que devo desposá-la.
REI — Não ignoras que, graças a ela, me livrei da morte.
BERTRAM — Mas segue-se, senhor, que minha queda compense vossa cura? Sim, conheço-a; foi educada à custa de meu pai. Com a filha me casar de um pobre médico! Prefiro que a vergonha me acabrunhe.
REI — desdenhas nela o estado, tão-somente, que em mim está prover. É muito estranho que o nosso sangue, quando misturado com o das outras pessoas, igual peso, cor e temperatura nos revele. mas tanta diferença gere em todos. Se virtuosa ela for e a desprezares. por ser filha, tão-só, de um pobre médico, a virtude desprezas por um nome. Não procedas assim. Quando a virtude mora em lugar humilde, vê-se amiúde deixar ela o lugar enobrecido. Mas onde falta, embora haja apelido da mais alta nobreza, a honra é vazia. Somente o bem é em si de alta valia. O mal é mal. As coisas tão-somente valem pelo que são, independente dos títulos que tenham. Em beleza, mocidade e saber a natureza fez dela em tudo primorosa herdeira, dotando-a de nobreza verdadeira. Zomba da honra quem diz que provém dela sem com ela parecer-se. A honra singela vale mais, quando vem de nosso atos, do que dos avós, embora gratos. A palavra honra é escravo desonrado sobre cada sepulcro, um mutilado troféu na sepultura, que, freqüente, se cala porque o nome resplendente como mortalha venha a ter a poeira e o merecido olvido. Verdadeira resposta me concede. Se possível te for amar a jovem — coisa incrível tão grande indecisão! — farei o resto. Ela e sua virtude manifesto dote constituirão; ouro e nobreza de minha parte lhe darão grandeza.
BERTRAM — Amá-la, é-me impossível, nem pretendo esforçar-me para isso.
REI — A ti te ofendes, mostrando-te indeciso nessa escolha.
HELENA — Alegra-me saber que estais curado, senhor; deixai o resto.
REI — Minha honra está em jogo; urge valer-me de todo o meu poder. Vamos, aceita-a, moço orgulhoso e fútil. Não mereces ser galardoado com tão grande prêmio. Com teu desdém repeles, a um só tempo, meu amor e seu mérito. Não sonhas que se nos colocássemos no prato mais leve da balança em que ela se acha, às traves te jogáramos? Ignoras que depende de nós a honra plantar-te onde nos aprouver que a crescer venha? Refreia o orgulho e nosso alvitre acata, que em teu bem, só, se esforça. Não dês crédito a esse desdém, mas faze que trabalhe para tua fortuna a vassalagem a que o dever te obriga e nossa força. Se não, de nossa graça te afastamos para sempre, atirando-te vertigem da mocidade e aos erros da tolice, e o ódio e a vingança sobre ti lançamos em nome da justiça, sem parcela de piedade. Responde-me depressa.
BERTRAM — Perdão, gracioso rei; a vossos olhos submeto a fantasia. Quando penso no que de honra e de estado a um vosso aceno pode nascer, acabo convencendo-me de que esta jovem, que até pouco me era tão baixa para os altos pensamentos, nos louvores de um rei lucrou de modo que a nobreza alcançou, como se nobre, de fato, ela nascesse.
REI — Então é tua; toma-lhe a mão e faze dela esposa. Comprometo-me a dar-lhe um dote grande, que não será igual ao teu estado, só porque o excederá.
BERTRAM — A mão lhe aceito.
REI — Que a sorte e o real favor a este contrato sejam sempre propícios. Esta noite celebrada há de ser a cerimônia do recente noivado, mas adiamos o banquete solene, porque a vinda dos amigos ausentes aguardemos. Ama-a com o mesmo amor que me votares, porque te mostres digno de teus pares.
(Saem o rei, Bertram, Helena, nobres e séqüito.)
LAFEU — Estais me ouvindo, monsieur? Uma palavrinha.
PAROLLES — Que ordenais, senhor?
LAFEU — Vosso senhor e amo fez muito bem em se retratar.
PAROLLES — Retratar-se? Meu senhor? Meu amo?
LAFEU — Isso mesmo; não falo linguagem de gente?
PAROLLES — Vossa linguagem é muito dura de se ouvir, e só pode ser compreendida com acompanhamento de sangue. Meu amo!
LAFEU — Não pertenceis à companhia do Conde de Rossilhão?
PAROLLES — De qualquer conde, de todos os condes, de toda a gente.
LAFEU — De toda a gente do conde; mas o amo do conde seria papafina.
PAROLLES — Sois muito velho, senhor. Que isso vos baste. Sois muito velho.
LAFEU — É preciso que eu te diga, maroto, que eu sou um homem, o que não chegarás a ser nem depois de velho.
PAROLLES — Não ouso fazer o que posso fazer bem.
LAFEU — Depois de duas ceias em tua companhia, tomei-te por um rapaz de alguma inteligência. De tuas viagens fazias um vento tolerável. Poderia passar; mas as bandeirolas e os pavilhões que apresentavas contribuíram muito para me dissuadir de te considerar navio de grande calado. Agora que te encontrei; pouco se me dá perder-te de novo. Só serves para que te apanhem do chão, e assim mesmo quase não compensa o trabalho.
PAROLLES — Se em tua pessoa não mostrasses a carta de privilégio da antigüidade…
LAFEU — Não puxes demasiado pela cólera, que isso pode apressar-te o castigo. Se tal acontecer… Deus se apiade de ti, galinha choca! E com isso, minha boa janela de rótulas, passa bem. Não tenho necessidade de abrir-te as folhas, porque vejo através de ti. Dá-me a mão.
PAROLLES — O senhor me mimoseia com a mais insigne indignidade.
LAFEU — De todo o coração, que é o que mereces.
PAROLLES — Nada fiz por merecê-la, senhor.
LAFEU — Sim, por minha fé; mereces todas as dracmas dessa indignidade. Não abaixarei um escrópulo sequer.
PAROLLES — Está bem; procurarei ser mais razoável.
LAFEU — Que seja isso o mais cedo possível, porque exalas cheiro justamente do oposto. Se algum dia fores amarrado em tua própria bandeirola e receberes uma coça, perceberás o que é ficar orgulhoso do próprio cativeiro. Às vezes me dá vontade de não interromper nossas relações, ou melhor, o meu conhecimento de tua pessoa, para que em caso de apuro pudesse declarar: conheço esse tipo!
PAROLLES — Submeteis-me, senhor, a um vexame insuportável.
LAFEU — Desejaria poder infligir-te penas infernais para toda a eternidade, mas não tenho poder para tanto. Contudo, não deixarei de fazer o que a idade me permitir, que é afastar-me de tua pessoa. (Sai.)
PAROLLES — Deixa estar! Tens um filho, que vai pagar-me esses insultos. É preciso ter paciência, que não se pode algemar a circunspecção. Por minha vida, hei de bater-lhe, no caso de o encontrar de jeito, embora ele fosse duas vezes um senhor de respeito. Terei tanta consideração com a velhice como… Hei de lhe dar uma coça à primeira vez que o encontrar.
(Volta Lafeu.)
LAFEU — Maroto, vosso senhor e amo está casado; trago-vos essa novidade. Tendes nova patroa.
PAROLLES — Suplico sinceramente a Vossa Senhoria parar um pouco com vossos ultrajes. Ele é meu bom senhor; mas só considero como meu amo o que está lá em cima.
LAFEU — Quem? Deus?
PAROLLES — Perfeitamente, senhor.
LAFEU — O diabo é que é teu amo. Por que pões ligas nos braços? Das mangas pretendes fazer calças? Os outros criados andam dessa maneira? Farias melhor se pusesses o assento onde trazes o nariz. Por minha honra, se eu fosse mais moço de duas horas apenas, dar-te-ia uma tunda valente. Pareces-me uma ofensa universal, em que toda a gente deveria bater. Sou de parecer que foste criado para que todo o mundo se exercitasse em tua pessoa.
PAROLLES — Vosso procedimento, senhor, é duro e imerecido.
LAFEU — Ide embora, senhor! Fostes castigado na Itália por haverdes roubado pevides de romã. Não passais de um vagabundo; não sois um viajante verdadeiro. Mostrais-vos mais insolente com os fidalgos e pessoas de respeito do que vos autoriza vossa virtude e a nobreza do vosso nascimento. Não mereceis que eu vos dê nenhum qualificativo, senão tão-somente o de velhaco. Deixo-vos sozinho. (Sai.)
PAROLLES — Bem; muito bem. Que seja assim. Bem; muito bem. Deixemos isso oculto por algum tempo.
(Volta Bertram.)
BERTRAM — Perdido! Entregue para sempre às preocupações!
PAROLLES — Que aconteceu, meu coração?
BERTRAM — Muito embora jurado eu tenha ao padre, não quero saber dela.
PAROLLES — Que acontece, meu coração?
BERTRAM — Ó meu Parolles! Acho-me casado! Para a guerra da Toscana prefiro ir, sem jamais subir ao tálamo da que hoje é minha esposa.
PAROLLES — Nossa França não passa de um chiqueiro. Não merece que pés a calquem de homens. À guerra! À guerra!
BERTRAM — Recebi estas cartas de minha mãe; não sei o que contêm.
PAROLLES — Isso se verá logo. Para a guerra, meu rapaz, para a guerra! A honra no bolso traz escondida sempre quem se deixa ficar em casa a acariciar a amada, gastando nos seus braços a energia com que os corcovos dominar pudera do ginete de Marte generoso. Para outras terras! De uma estrebaria não passa a França, e nós, que aqui vivemos, não somos mais do que éguas. Para a guerra!
BERTRAM — Será assim. Vou mandá-la para casa; escreverei a minha mãe acerca do ódio que lhe dedico e dos motivos de seguir para a guerra, e ao rei, por carta, direi o que não ouso pessoalmente. O dote recebido vai servir-me para os gastos da guerra da Toscana, onde se encontram muitos gentis-homens. Com casa escura e esposa detestada, a guerra é brincadeira ou quase nada.
PAROLLES — Esse capricho vai durar bastante?
BERTRAM — Vem comigo até o quarto e me aconselha. Mandá-la-ei embora com presteza; à guerra irei, deixando-a sem tristeza.
PAROLLES — Quanta bala a zunir! Que estrondo! É duro! Quem casa cedo é assim, não tem futuro. Pela guerra abandona-a bravamente. Magoou-te o rei… Coragem! Para a frente!
(Saem.)
Cena IV
O mesmo. Outro quarto no palácio. Entram Helena e o bobo.
HELENA — Minha mãe me envia saudares amistosos. Ela está passando bem?
BOBO — Não está bem, mas está com saúde. Encontra-se bastante alegre; contudo, não está bem. Mas graças sejam dadas, porque ela está passando muito bem, sem que nada lhe falte; mas agora, não vai passando bem.
HELENA — Mas se ela está passando bem, de que sofre, para não estar bem?
BOBO — O que é certo que tudo lhe corre bem, com exceção de duas coisas.
HELENA — Quais são elas?
BOBO — Uma, é por não estar ela no céu, para onde Deus deveria levá-la sem demora; a outra, é por se encontrar na terra, de onde Deus deveria tirá-la o mais depressa possível.
(Entra Parolles.)
PAROLLES — Deus vos abençoe, venturosa dama.
HELENA — Penso, meu senhor, que conto com vossa boa vontade para a minha boa sorte, pois não?
PAROLLES — Contais com minhas orações para que ela vos alcance e para que possais segurá-la e entrar na posse dela. Olá, maroto! Como vai passando a minha velha senhora?
BOBO — Se pudésseis ter suas rugas e eu o seu dinheiro, desejaria que ela estivesse como dizeis que está.
PAROLLES — Mas seu eu não disse nada!
BOBO — O que vem provar que sois inteligente, porque muita língua de criado faz vir à luz os podres do patrão. Não dizer nada, não fazer nada, não saber de nada e não ter nada: eis o vosso melhor título, que, afinal, é pouco menos de nada.
PAROLLES — Vai saindo, maroto!
BOBO — Deveríeis ter dito, senhor, que eu sou um maroto diante de outro; nestes termos: em minha frente não passas de um maroto. Com isso teríeis dito a verdade, senhor.
PAROLLES — Sai! És um bobo espirituoso. Encontrei-te!
BOBO — Ou vos ensinaram a me encontrar? A busca foi proveitosa, senhor, e é de desejar que encontreis em vós mesmo muita tolice, para maior alegria do mundo e incremento da hilaridade.
PAROLLES — Bom maroto, realmente, e bem nutrido. Senhora, o conde vai partir à noite, para tratar de assunto muito urgente. Reconhece, sem dúvida, os direitos do amor e os privilégios que podíeis reclamar para vós. Mas é forçado, repito, que a abstinência ora ele aceita, cujo prolongamento condiciona no futuro delícias inefáveis. O tempo escuro agora nos castiga para que, muito breve, as horas fiquem repletas de alegrias até à borda, e de prazer transbordem.
HELENA — Além disso, que mais ele deseja?
PAROLLES — Que hoje mesmo vos despeçais do rei, fazendo ver-lhe que essa resolução de vós proveio, sobre justificardes tanta pressa com razões que julgardes mais plausíveis.
HELENA — Que mais ele me ordena?
PAROLLES — Que após terdes alcançado a licença, novas ordens fiqueis dele a aguardar.
HELENA — Sua vontade em tudo acatarei.
PAROLLES — Vou dizer-lhe isso.
HELENA — Muito vos agradeço. Vamos bobo.
(Saem.)
Cena V
Outro quarto no mesmo. Entram Lafeu e Bertram.
LAFEU — Espero que Vossa Senhoria não o tenha na conta de um soldado.
BERTRAM — Pois não, senhor, de um soldado de comprovada bravura.
LAFEU — Essas informações vos vieram dele mesmo.
BERTRAM — E de testemunhas fidedignas.
LAFEU — Nesse caso, meu relógio não regula. Tomava essa cotovia por uma calhandra.
BERTRAM — Posso asseverar-vos, senhor, que ele possui profundos conhecimentos, que vão de par com sua valentia.
LAFEU — Então eu pequei contra sua experiência e violei as regras de seu valor, sendo a minha situação tanto mais perigosa, por não encontrar no coração do que me arrepender. Aí vem ele. Por obséquio, reconciliai-nos, que me esforçarei por cultivar essa amizade.
(Entra Parolles.)
PAROLLES (a Bertram) — Tudo está sendo providenciado, senhor.
LAFEU — Por obséquio, senhor, quem é o alfaiate dele?
PAROLLES — Senhor?
LAFEU — Oh! Conheço-o perfeitamente. Sim, senhor; é um bom artista, excelente alfaiate.
BERTRAM (à parte, a Parolles) — Ela foi falar com o rei?
PAROLLES — Foi.
BERTRAM — Partirá esta noite?
PAROLLES — Conforme o determinastes.
BERTRAM — Escrevi várias cartas, fiz pacotes de todo o meu dinheiro, ordens expressas mandei, porque aprontassem bons cavalos… E hoje noite, ao invés de entrar na posse do leito nupcial, tudo arremato antes de começar.
LAFEU — Um viajante inteligente é sempre bem-vindo ao fim da refeição; mas o que vive a soltar mentiras e se vale de uma verdade conhecida para nos impingir mil pataratas, merece ser escutado uma vez e batido três. Deus vos guarde, capitão.
BERTRAM — Houve algum desacordo entre vós e este nobre senhor, monsieur?
PAROLLES — Ignoro o motivo de haver incorrido no desagrado de Sua Senhoria.
LAFEU — Saltastes açodadamente para a vasilha, de bota e esporas tal como o bufão que se joga no creme, e primeiro vos poreis a correr do que apresentareis razões de aí vos encontrardes.
BERTRAM — É possível, milorde, que o tivésseis compreendido mal.
LAFEU — O que sempre acontecerá, ainda que o venha a encontrar no momento de dizer as orações. Passai bem, milorde, e acreditai no que vos digo: não há miolo nessa casca de noz; esse indivíduo tem a alma no vestuário. Não lhe deis crédito em assunto de importância. Já domestiquei muitos tipos dessa espécie e conheço-lhes as manhas. Passai bem, senhor; falei de vós em termos mais lisonjeiros do que merecíeis de mim ou possais vir a merecê-lo. Mas é preciso pagarmos o mal com o bem. (Sai.)
PAROLLES — Sujeito fútil, sou capaz de jurar.
BERTRAM — Não penso assim.
PAROLLES — Então não o conheceis?
BERTRAM — Conheço-o bem; é tido pelo povo em muito grande estima. Eis minha cruz.
(Entra Helena.)
HELENA — Senhor, seguindo nisso vossas ordens, falei com o rei e permissão obtive para deixar a corte. Ele somente vos quer dizer uma palavra à parte.
BERTRAM — Far-lhe-ei nisso a vontade. Minha conduta, Helena, não vos deve causar admiração, por parecer-vos sem cor e sem propósito e ir de encontro ao que do meu dever se esperaria. Mas não me achava preparado para tal acontecimento, que, sem dúvida me apanhou de surpresa. Esse o motivo de vos pedir que vades para casa sem que estranheza reveleis por isso. Tenho motivos muito mais razoáveis do que dão impressão, sendo que há muito mais urgência no assunto dessa viagem do que à primeira vista poderíeis supor, desconhecendo o que se passa. Dai isto a minha mãe. (Entrega-lhe uma carta.) Como só posso ver-vos daqui a dois dias, vos entrego à vossa discrição.
HELENA — Nada vos digo, senhor, senão que sou vossa fiel serva.
BERTRAM — Deixai; não faleis nisso.
HELENA — E que hei de sempre me esforçar por suprir o que não pôde me dar humilde estrela, em tudo digna me mostrando da sorte inesperada.
BERTRAM — Deixai. Estou com pressa. Voltai logo para casa.
HELENA — Perdoai-me, por obséquio, senhor.
BERTRAM — Que pretendeis dizer com isso?
HELENA — Não mereço a fortuna que me coube; não me atrevo a dizer que me pertence. No entanto, é minha mesmo. Qual medroso ladrão, hei de roubar modestamente do que me deu a lei.
BERTRAM — Que mais quereis?
HELENA — Um quase nada… Muito… Nada! Nada! Não vos direi, senhor, o que me ocorre… Não; vou dizer: só estranhos e inimigos se despedem sem se beijarem.
BERTRAM — Por favor, depressa! Montai logo a cavalo.
HELENA — Vossas ordens, meu bom senhor, serão obedecidas.
BERTRAM — (a Parolles): Os outros homens, onde estão? (A Helena): Adeus, (Sai Helena.) Vai logo para casa, onde não hei de tornar a pôr os pés enquanto espada puder brandir e o toque ouvir da luta. Para a guerra!
PAROLLES — Coraggio! Bravo! Bravo!
(Saem.)
ATO III
Cena I
Florença. Um quarto no palácio do duque. Clarins. Entram o duque, com séqüito, dois nobres franceses e soldados.
DUQUE — Assim, de ponta a ponta, ouvistes todas as razões desta guerra inevitável, que tanto sangue tem custado e muito mais sede ainda revela.
PRIMEIRO NOBRE — A luta é santa de vosso lado, negra e pavorosa do lado dos contrários.
DUQUE — Por isso mesmo muito nos surpreende que nosso primo, o Rei da França, o peito feche aos nossos apelos.
PRIMEIRO NOBRE — Caro príncipe, razões do Estado, nunca as soube, nunca. Como um particular que sempre longe viveu da corte, só na fantasia me figuro os conselhos imponentes. Não ouso, pois, dizer-vos o que penso, visto já ter errado muitas vezes em minhas oscilantes conjeturas.
DUQUE — Seja o que ele quiser.
SEGUNDO NOBRE — Mas estou certo de que os nossos fidalgos, enfarados por não fazerem nada, aqui, bem presto, virão buscar a cura por que anseiam.
DUQUE — Serão muito bem-vindos. Neles hão de pousar as honras que de mim voarem. Conheceis vossos postos. Tereis sorte, se os grandes alcançar a fria morte.
(Clarins. Saem.)
Cena II
Rossilhão. Um quarto no palácio da condessa. Entram a condessa e o bobo.
CONDESSA — Tudo se passou como eu o desejara, com a diferença de ele não a trazer consigo.
BOBO — Por minha fé, considero meu jovem senhor um homem muito melancólico.
CONDESSA — Como chegastes a essa conclusão, por obséquio?
BOBO — Ora, ele olha para as botinas e canta, endireita a gola e canta, faz perguntas e canta, palita os dentes e canta. Conheço um homem que tinha esse vício da melancolia e vendeu uma bela propriedade por uma canção.
CONDESSA (abrindo a carta) — Vejamos o que ele me escreve e quando pretende voltar.
BOBO — Não penso em Isbel desde que estive na corte. Nosso velho bacalhau e os Isbéis do campo são coisa nenhuma em confronto com o velho bacalhau e as Isbéis da corte. Meu Cupido levou uma marretada na cabeça, tendo eu começado a amar, como os velhos amam o dinheiro, sem grande apetite.
CONDESSA — Que temos aqui?
BOBO — Precisamente o que tendes aí. (Sai.)
CONDESSA — “Envio-vos uma nora; ela curou o rei e me desgraçou. Desposei-a, mas não compartilhei do leito dela, tendo jurado comigo mesmo que esse ‘Não’ será eterno. Mais cedo ou mais tarde tereis de ficar sabendo da minha partida; recebei, pois, de mim esta notícia, antes de virdes a sabê-la por outras vias. Se o mundo for bastante largo, manter-me-ei sempre a grande distância. Meus respeitos filiais. Vosso desventurado filho Bertram.” Foi malfeito. Oh rapaz precipitado, sem medida nenhuma! Desse modo desprezar os favores de um monarca, contra ti próprio lhe chamando a cólera, por desprezado haver uma donzela tão rica de virtudes e que fora digna até mesmo de ocupar um trono!
(Volta o bobo.)
BOBO — Ó madame! Lá fora há notícias pesadas entre dois soldados e a minha jovem senhora.
CONDESSA — Que é que há?
BOBO — Mas há alguma consolação nessas notícias, alguma consolação: vosso filho não há de ser morto tão depressa como eu julgava.
CONDESSA — Por que haveria de ser ele morto?
BOBO — Quero dizer, madame, no caso de fugir, como dizem que o fez. O perigo consiste em enfrentar o perigo, que é como os homens perdem e as crianças vêm ao mundo. Eis que chegam as pessoas que vos poderão contar melhor do que eu o de que se trata. De minha parte, só ouvi dizer que vosso filho fugiu.
(Entram Helena e dois gentis-homens.)
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Deus vos guarde, senhora.
HELENA — Ó condessa! o meu senhor partiu, partiu para sempre!
SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Não faleis desse modo.
CONDESSA — Ficai calma. Senhores, por obséquio… Tantos golpes me têm tocado a um tempo, de alegria e tristeza, que impossível terá de ser qualquer deixar-me agora sem a calma precisa. Por obséquio: meu filho onde se encontra?
SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Foi, senhora servir na guerra ao Duque de Florença. Em caminho o encontramos, pois viemos justamente de lá, sendo que logo que nos desincumbirmos da mensagem que à corte nos conduz, para Florença voltaremos de novo.
HELENA — Nesta carta, senhora, encontrareis meu passaporte. Quando conseguires o anel que trago no dedo, e que jamais sairá dele, e quando puderes mostrar-me um filho nascido de teu ventre, que tenha sido gerado por mim: então poderás dar-me o nome de esposo. Mas esse “então“ vale por um “nunca.” Que sentença terrível!”
CONDESSA — Cavalheiros, fostes os portadores desta carta?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Sim, condessa, pesando-nos o esforço de trazê-la, ao sabermos do que trata.
CONDESSA — Menina, por favor mostra-te alegre; se ficares com todas as tristezas, senhoreias a parte que me toca. Ele era filho meu. Seu nome agora do sangue apago, porque fiques sendo minha filha tão-só. Então, certo que foi para Florença?
SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Sim, condessa.
CONDESSA — Quer ser soldado?
SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Esse seu nobre empenho, e podeis ficar certa de que o duque vai cobri-lo de quantas honrarias faz jus seu nobre sangue.
CONDESSA — Novamente viajais para Florença?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Sim, condessa; com as lestas asas que nos der a pressa.
HELENA — “Enquanto esposa eu não tiver, em França não terei coisa alguma,” É muito amargo.
CONDESSA — Na carta encontrais isso?
HELENA — Sim, condessa.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Talvez a mão, somente houvesse tido semelhante ousadia, sem que dela tomasse o coração conhecimento
CONDESSA — Enquanto esposa não tiver, em França não terá coisa alguma! Nada a França tem digno dele, se não for Helena, que merece um marido a que servissem dez rapazes assim como ele, rudes, que a toda hora a chamassem de senhora. Quem estava com ele?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Um criado, apenas, e um cavalheiro que eu conheço há pouco.
CONDESSA — Parolles, não?
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Precisamente, minha cara senhora.
CONDESSA — É um tipo difamado, cheio de malvadez. Meu filho estraga na companhia dele o seu caráter de princípios tão bons.
PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Razão vos sobra no que dizeis, condessa. Ele defeitos em excesso possui, que hão de impedi-lo de alguma coisa ser em qualquer tempo.
CONDESSA — Sois bem-vindos, senhores. Quando virdes novamente meu filho, por obséquio dizei-lhe que jamais com a espada ele há de ganhar a honra perdida. Outros recados de minha parte, em carta, heis de levar-lhe.
SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Contai conosco, nobre dama, nisto, como em qualquer assunto de importância.
CONDESSA — Isso só bastará, se não mudarmos. Vireis comigo, não?
(Saem a condessa e os gentis-homens.)
HELENA — “Enquanto esposa eu não tiver, em França não tereis coisa alguma.” Não tem nada na França, enquanto não tiver esposa! Nenhuma esposa, Rossilhão, na França virás a ter, nenhuma. Depois, tudo de novo há de ser teu. Pobre marido! Eu sou a que te expulso de tua pátria e os gráceis membros aos cruéis eventos das batalhas te exponho? Eu, que da corte tão amável te arranco, onde olhos temos sobre ti convergiam, para seres alvo dos fumegantes mosqueteiros? Mensageiros de chumbo, que os ginetes de fogo cavalgais devastadores, errai o alvo! Cortai o ar sossegado, que canta ao ser rasgado, mas no esposo não me toqueis! Se a mira puser nele qualquer atirador, de mim lhe veio semelhante incumbência; se lhe o peito nobre alguém atacar, a miserável fui eu que o concitei a essa aventura. E conquanto o não mate, sempre a causa serei de seu trespasse. Melhor fora, para mim, encontrar o leão terrível, quando ruge acossado pela fome; muito melhor que todas as misérias da natureza, a um tempo, fossem minhas. Não, Rossilhão, retorna para casa! Esses lugares deixa em que a honra ganha somente cicatrizes e, por vezes, chega tudo a perder. Sairei de casa. Se a causa eu sou de andares desterrado, poderei aqui estar? Não! Ainda mesmo que aqui do paraíso o ar respirasse e servida por anjos eu me visse. Partirei, porque o boato compassivo fale de minha fuga e, de algum modo, te sirva de consolo. Vem depressa, noite escura! Termina, ó dia feio! que eu, pobre ladra, as trevas não receio. (Sai.)
Cena III
Florença. Diante do palácio do duque. Clarins. Entram o duque, Bertram, Parolles e soldados tocando tambores e trombetas.
DUQUE — Ficarás sendo o general de nossa cavalaria. Rico de esperanças, depositando nosso amor em tua fortuna promissora.
BERTRAM — É muito peso, senhor, para estes ombros. Todavia, por se tratar de vossa causa digna, procurarei levá-lo ao ponto extremo.
DUQUE — Vai logo, e que a Fortuna, qual amada caprichosa, te afague o capacete.
BERTRAM — Ó grande Marte, neste dia eu entro para tuas fileiras! Dá que eu seja conforme os pensamentos que me agitam, que amante eu provarei ser do tambor, como inimigo acérrimo do amor.
(Saem.)
Cena IV
Rossilhão. Um quarto no palácio da condessa. Entram a condessa e o intendente.
CONDESSA — Por que aceitaste a carta? Não previas que ao te entregar a carta ela haveria de fazer o que fez? Lê-a de novo.
INTENDENTE (lê) — Parto como devota de São Tiago. Culpada me tornou o amor ousado; descalça, agora, o frio chão afago porque demover possa o dum fado. Escrevei logo, porque meu marido, vosso filho, sair possa da guerra. Vivei felizes, que este dolorido coração ficará numa outra terra. Possa ele me perdoar a dura sorte. Juno implacável, o mandei para onde os heróis acossados são da morte, longe da corte onde o prazer se esconde. É bom demais para morrer agora. Que a morte, então, me leve em boa hora.
CONDESSA — Quantos espinhos nessas frases brandas! Rinaldo, nunca te mostraste tanto destituído de senso, como ao teres deixado que se fosse. Se eu tivesse conversado com ela, a demovera de semelhante intento. Ora burlou-nos qualquer expectativa de retê-la.
INTENDENTE — Perdão, senhora, mas se eu vos tivesse dado a carta esta noite, é bem possível que a houvéssemos pegado. Todavia, ela escreveu que tudo fora inútil.
CONDESSA — Como pode haver anjo que abençoe marido tão indigno? Venturoso jamais poderá ser, se lhe faltarem as orações da esposa, que acolhida sempre acharam no céu, porque da cólera do Julgador supremo o deixem livre. Rinaldo, escreve, escreve sem demora ao marido que indigno se revela de uma tal companheira. Que as palavras de tua carta pesem tanto quanto cada um dos grandes méritos de Helena, que tão de leve ele avalia agora. Mostra-lhe quanto é grande o meu desgosto, conquanto mossa alguma isso lhe faça. Confia a carta a um mensageiro prático. Talvez retorne, quando ouvir a nova da partida de Helena, sendo crível que esta, ao saber que em casa ele se encontra, voltará sem demora, conduzida pelo mais puro amor. Dizer não posso qual dos dois me é mais caro; habilidade para tanto me falta. Cuida logo do mensageiro. O coração no peito se me aperta; a velhice em mim já pesa. A chorar a tristeza ora me obriga, mas discursos me arranca a dor imiga.
(Saem.)
Cena V
Diante dos muros de Florença. Ao longe, toque de trombeta. Entram uma viúva de Florença, Violenta, Mariana e vários cidadãos.
VIÚVA — Vinde para mais perto, porque se eles se aproximarem da cidade, não veremos coisa nenhuma.
DIANA — Dizem que o conde francês prestou serviços inestimáveis.
VIÚVA — O que corre por aí é que ele aprisionou o principal comandante e que com a própria mão tirou a vida ao irmão do duque. Perdemos o trabalho! Tomaram outra estrada. Atenção! Trombetas!
MARIANA — Vamos embora. Contentemo-nos em ouvir o que nos contarem. Diana, toma cuidado com esse conde francês. A honra de uma donzela é sua fama, não havendo dote de mais valor do que a honestidade.
VIÚVA — Contei a minha vizinha que fostes solicitada por um gentil-homem da companhia dele.
MARIANA — Conheço esse tipo. Que se enforque! Um tal Parolles; é um oficial ignóbil, o demônio tentador do jovem conde. Diana, cuidado com eles; suas promessas, seduções, juramentos, presentinhos e todos esses artifícios da luxúria, não são o que parecem ser. Muitas donzelas já foram desviadas por eles; mas infelizmente o espetáculo da virgindade naufragada, com suas terríveis conseqüências, não serve de exemplo para ser evitado, havendo muitas donzelas que se deixam pegar no visgo que para elas é preparado. Penso que não precisarei insistir, por estar certa de que a tua virtude te conservará como estás, ainda que a perda da modéstia fosse o único perigo a temer.
DIANA — Podeis ficar tranqüila a meu respeito.
VIÚVA — É o que espero. Vêde; aí vem uma peregrina. É certeza ir pousar em casa, porque todos os peregrinos a recomendam. Vou falar-lhe. (Entra Helena, em trajes de peregrino.) Deus vos proteja em tudo, peregrina. Onde ides repousar?
HELENA — Na hospedaria de São Jaques le Grand, onde se alojam todos os peregrinos. Onde fica?
VIÚVA — Perto dos Franciscanos, junto ao porto.
HELENA — É este o caminho?
VIÚVA — Sim; por aí mesmo. (Marcha guerreira, ao longe.) Vêm vindo por aqui. Se demorardes, santa peregrina, para ver o desfile, eu te encarrego de até lá conduzir-vos, pois conheço como a mim própria a dona da hospedagem.
HELENA — Sois ela, não?
VIÚVA — Decerto, peregrina, se não vos causo incômodo.
HELENA — Obrigada. Esperarei o tempo que quiserdes.
VIÚVA — Viestes da França, penso.
HELENA — De lá mesmo.
VIÚVA — Ides ver um patrício valoroso, que adquiriu grande fama.
HELENA — Qual seu nome?
VIÚVA — É o Conde Rossilhão. Sabeis quem seja?
HELENA — Só de nome o conheço; falam dele com muitos elogios. Nunca o vi.
DIANA — Seja quem for, é tido em alta conta. Por aqui dizem que fugiu de França porque o rei o casou contra a vontade. Pensais que seja assim?
HELENA — Pura verdade; conheço sua esposa.
DIANA — Um gentil-homem do serviço de conde fala dela com muito desrespeito.
HELENA — Qual seu nome?
DIANA — Monsieur Parolles.
HELENA — Dou-lhe todo crédito, porque em matéria de elogios, tendo-se em mira o grande conde, ela é pequena por demais para ser sequer lembrada. Consiste todo o seu merecimento na moral mais severa, não havendo quem sobre isso aventure qualquer dúvida.
DIANA — Pobre senhora! É escravidão penosa casar-se alguém com quem ódio lhe vota.
VIÚVA — decerto. Coitadinha! Em qualquer parte que esteja, há de sofrer. Esta menina que aqui vêdes, podia preparar-lhe uma velhacaria.
HELENA — Em que sentido dizeis isso? Pensais que, apaixonado dela, o conde podia apresentar-lhe propostas menos lícitas?
VIÚVA — Foi isso, realmente, o que se deu. Ele se vale de todos os engodos que em tais casos a grácil honra ameaçam das donzelas. Mas ela está de guarda e se acautela contra ele numa honesta resistência.
MARIANA — Deus não queira que seja de outro modo!
(Entram Bertram e Parolles, precedidos de tambores e estandartes e seguidos de parte do exército florentino.)
VIÚVA — Ei-los! Aquele é Antônio, o primogênito do duque. Aquele é Escalo.
HELENA — Qual é o conde francês?
DIANA — Aquele ali, que traz a pluma. É um moço lindo. Desejara que ele tivesse amor à esposa. Caso fosse mais fiel, me parecera mais amável Não é elegante?
HELENA — A mim parece bem.
DIANA — É pena ser desleal. Aquele é o biltre que leva o conde para o mau caminho. Se eu fosse a esposa, já teria dado veneno a esse patife.
HELENA — Qual é deles?
DIANA — Aquele mono ali, cheio de fachas. Mas por que estará triste?
HELENA — Foi ferido, decerto, no combate.
PAROLLES — Ora! Ora! Perder nosso tambor!
MARIANA — Parece muito contrariado. Atenção, que ele nos viu!
VIÚVA — Vai te enforcar, idiota!
MARIANA — Por que tanta reverência para um alcoviteiro?
(Saem Bertram, Parolles, oficiais e soldados.)
VIÚVA — As tropas já passaram. Peregrina, vou levar-vos agora para casa. Já estão na hospedaria quatro ou cinco penitentes que vão cumprir promessa no túmulo do grande São Tiago.
HELENA — Agradeço-vos muito humildemente. Se esta senhora e sua gentil filha se dignarem de cear hoje conosco, os gastos pagarei, sobre ficar-lhes agradecida. Mais: porque vos possa recompensar, darei alguns conselhos a esta menina, dignos de anotados.
AMBAS — Aceitamos de grado vosso invite.
(Saem.)
Cena VI
Acampamento diante de Florença. Entram Bertram e dois nobres franceses.
PRIMEIRO NOBRE — Assim mesmo, caro conde; experimentai-o; fazei-lhe a vontade nesse ponto.
SEGUNDO NOBRE — Se Vossa Senhoria, não se convencer de que ele é um poltrão de marca, consinto em perder vossa estima.
PRIMEIRO NOBRE — Por minha vida, senhor, não passa de uma bolha de sabão.
BERTRAM — Acreditais que eu me iludi a tal ponto a respeito dele?
PRIMEIRO NOBRE — Podeis crer no que vos digo, milorde. Por tudo o que sei a seu respeito, por experiência própria, falando sem qualquer malícia, como se se tratasse de um parente, considero-o um covarde de primeira, mentiroso infinito e ilimitado, sujeito que a todos os momentos falta com a palavra, carecente de qualquer qualidade merecedora das atenções de Vossa Senhoria.
SEGUNDO NOBRE — Seria bom que o ficásseis conhecendo, para não acontecer que em algum negócio importante venhais a contar com qualidades que ele não possuir e, assim, ficardes em situação desagradável.
BERTRAM — Desejara que se oferecesse uma oportunidade para experimentá-lo.
SEGUNDO NOBRE — Não há melhor oportunidade do que mandá-lo buscar o tambor que os inimigos lhe tomaram, o que ele tanto se gaba de poder fazer.
PRIMEIRO NOBRE — Eu e outros florentinos haveremos de surpreendê-lo. Terei o cuidado de escolher gente desconhecida dele, para que ele julgue tratar-se de inimigos. Havemos de amarrá-lo e de tapar-lhe os olhos, de forma que não possa deixar de acreditar que o conduzimos para o acampamento dos adversários, quando, em verdade, o levamos para nossas tendas. Assista Vossa Senhoria ao interrogatório a que o submetermos. Se, levado pelo mais vergonhoso medo da morte, só pela promessa de o deixarmos vivo, ele não se prontificar a vos trair e a nos revelar tudo o que sabe a vosso respeito, empenhando nisso até mesmo a salvação da alma, nunca mais confieis no meu julgamento, seja sobre que assunto for.
SEGUNDO NOBRE — Oh! Pelo amor da gargalhada, mandai-o buscar o tambor. Ele espalha por aí tudo que dispõe de um estratagema infalível. Quando Vossa Senhoria puder enxergar até ao fundo de seu êxito e se certificar da escória a que ficou reduzido esse falso lingote de metal, se não passardes a tratá-lo como um João Tambor, é que vossa inclinação é realmente inabalável. Ei-lo que chega.
PRIMEIRO NOBRE — Oh! pelo amor da gargalhada, não nos priveis de semelhante brincadeira. Mandai-o buscar o tambor, seja como for.
(Entra Parolles.)
BERTRAM — Então, monsieur! Ainda estais a pensar no tambor?
SEGUNDO NOBRE — Ora, que o leve a breca.’ Afinal, que é um tambor?
PAROLLES — Que é um tambor? Sim, é um tambor. Mas perder um tambor dessa maneira! Excelente comando, em verdade! Atirar a cavalaria contra nossas próprias asas e destroçar nossos próprios soldados!
SEGUNDO NOBRE — Não devemos censurar o comando; foi um desastre que o próprio César não poderia ter evitado, se tivesse sido dele a direção.
BERTRAM — Bem; não lastimemos o que se deu. É certo que alguma desonra nos atinge com a perda desse tambor. Mas agora não podemos pensar em reavê-lo.
PAROLLES — Pois é possível reavê-lo.
BERTRAM — Já foi possível; agora é tarde.
PAROLLES — Ainda é possível. Se o mérito dos grandes feitos nas campanhas militares não fosse tão raramente atribuído a quem os executa com verdade e exatidão, eu poderia reaver não só esse tambor como qualquer outro, ou hic jacet.
BERTRAM — Então, monsieur, se revelais tanto desejo disso, se tendes a certeza de que vosso misterioso estratagema poderá fazer voltar para o seu quartel natal esse instrumento de honra, sêde magnânimo no empreendimento, e mãos à obra! Considerarei tal feito como uma façanha gloriosa. Se fordes bem-sucedido, o duque não somente falará de semelhante empreendimento, como vos fará sentir os benefícios de sua grandeza até à última sílaba do vosso mérito.
PAROLLES — Por esta mão de soldado, vou tentá-lo.
BERTRAM — Não deixeis que o assunto durma.
PAROLLES — Vou começar ainda esta tarde, passando desde já a desenhar os planos, a dar força a minha resolução e a ditar as minhas últimas disposições. Lá pela meia-noite ouvireis falar de mim.
BERTRAM — Posso ter a ousadia de comunicar a Sua Graça que já destes início a esse empreendimento?
PAROLLES — Qual seja o fim disso, milorde, não saberei dizê-lo; mas juro que farei uma tentativa.
BERTRAM — Tenho-te na conta de bravo, e subscrevo tudo o que é de esperar de tua coragem de soldado.
PAROLLES — Não sou amigo de muitas palavras. (Sai.)
PRIMEIRO NOBRE — Tão pouco amigo quanto o peixe da água. Que achais de um sujeito como esse, milorde, que parece entrar com tamanha confiança em um negócio que antecipadamente tem por impraticável? Com essa resolução ele mesmo se condena às penas eternas, preferindo ser condenado a levar avante o empreendimento.
SEGUNDO NOBRE — Não o conheceis tanto quanto nós, milorde. É certo que sabe o segredo de insinuar-se nas graças de qualquer pessoa, evitando, por uma semana, que se lhe descubram as tricas; mas, uma vez desmascarado, tê-lo-eis preso para sempre.
BERTRAM — Como! Acreditais que não fará nada do que prometeu com tanta solenidade?
PRIMEIRO NOBRE — Absolutamente nada; voltará da aventura com uma invencionice qualquer, pespegando-vos duas ou três mentiras a jeito. Mas já lhe descobrimos o rasto; esta noite haveis de vê-lo na armadilha, porque, em verdade, não é digno das atenções de Vossa Senhoria.
SEGUNDO NOBRE — Primeiro, brincaremos um pouco com a raposa, antes de lhe tirarmos a pele. O velho senhor Lafeu já está na pista. Quando lhe tirarmos a máscara, haveis de ver que tipo sórdido ele é, de fato, o que não passará desta noite.
PRIMEIRO NOBRE — Preciso ir preparar a armadilha; havemos de apanhá-lo.
BERTRAM — Vosso irmão ficará comigo.
PRIMEIRO NOBRE — Como for do agrado de Vossa Senhoria. Deixo-vos. (Sai.)
BERTRAM — Agora vou levar-vos à hospedagem, onde a jovem está de que falamos.
SEGUNDO NOBRE — Dissestes que ela é honesta.
BERTRAM — É o seu defeito. Falei-lhe uma só vez, tendo-a encontrado extremamente fria. Mas mandei-lhe por esse mesmo biltre, em cuja pista nos pusemos, presentes e missivas, que ela me devolveu. É tudo o que houve. É uma criatura linda. Quereis vê-la?
SEGUNDO NOBRE — Irei de todo coração, milorde.
(Saem.)
Cena VII
Florença. Um quarto em casa da viúva. Entram Helena e a viúva.
HELENA — Se duvidais que eu seja ela, realmente, não sei que outras razões possa aduzir-vos se não for estragando o próprio plano.
VIÚVA — Conquanto empobrecida, sou de boa família; desconheço esses assuntos. Não posso, assim, comprometer o nome numa ação duvidosa.
HELENA — Nunca tive semelhante intenção. Mas podeis crer-me: o conde é meu marido. Tudo quanto vos confiei há momentos é verdade, palavra por palavra. Nem possível será, portanto, cometerdes algo passível de censura, se me derdes o auxílio que vos disse.
VIÚVA — Convencida me confesso depois que apresentastes prova de que sois rica.
HELENA — Tomai esta bolsa com moedas de ouro, permitindo-me vos compre, desta forma, a ajuda amiga, que de pagar não deixarei mais vezes depois de obtido tudo. A vossa filha corteja o conde, tendo posto cerco, com o viço que lhe é próprio, à sua rara formosura, disposto a conquistá-la. Ela que ceda e à risca siga os nossos conselhos, que há de em bem acabar tudo. Não há de recusar o sangue altivo do conde o que ela exigir dele em paga. Um anel de família usa ele sempre, que de pai para filho vem passando há quatro ou cinco gerações, contadas desde o primeiro dono. Em alta estima tem o conde esse anel; mas ante a ardência de seus desejos, porque o intento alcance, dele se desfará, embora venha depois a arrepender-se.
VIÚVA — Já começo a entender vosso plano.
HELENA — E quanto ele é legítimo. Consiste, simplesmente, em mostrar-lhe vossa filha, antes de parecer que se lhe entrega, desejos de possuir aquela jóia. Depois lhe marcará uma entrevista, que ficará a meu cargo, conservando-se castamente a distância. Alcançando isso, lhe darei, de crescença, como dote, três mil coroas mais do que assentamos.
VIÚVA — Nada mais oporei. Só falta, agora, dardes a minha filha as necessárias instruções, porque o tempo e as circunstâncias esse embuste legal ajudar possam. Como sempre, à noitinha trará músicos variados e canções feitas em honra de sua indignidade. Em vão tentamos enxotá-lo de casa; ele persiste como quem joga nisso a própria vida.
HELENA — Então à noite a peça ensaiaremos. Sendo bem-sucedida, em ação boa transmudaremos o ato que destoa, e embora seja, em si, o passo errado, nenhum dos dois cometerá pecado. Mas passemos à ação.
(Saem.)
ATO IV
Cena I
Fora do campo florentino. Entra o primeiro nobre francês, com cinco ou seis soldados, que se põem de emboscada.
PRIMEIRO NOBRE — Ele não poderá deixar de passar pelo canto desta sebe. Quando saltardes sobre ele, falai a linguagem terrível que bem vos parecer, não importando que vós mesmos não vos entendais, pois teremos de dar a impressão de não entender o que ele disser, com exceção de um do nosso grupo, que servirá de intérprete.
PRIMEIRO SOLDADO — Bom capitão, permiti que seja eu o intérprete.
PRIMEIRO NOBRE — Não és das relações dele? Ele não conhece a tua voz?
PRIMEIRO SOLDADO — Não, senhor; posso assegurar-vos.
PRIMEIRO NOBRE — Mas em que geringonça falarás conosco?
PRIMEIRO SOLDADO — Na mesma em que me falardes.
PRIMEIRO NOBRE — É preciso que ele nos tome por um bando de estrangeiros a soldo do inimigo. Mas como ele possui umas tinturas dos dialetos da vizinhança, cada um de nós terá de falar como lhe ditar a fantasia, sem se preocupar com o que os outros possam estar a dizer. O que importa é darmos a impressão de que nos entendemos; a linguagem das gralhas ou o grasnar dos corvos, tudo serve. Quanto a vós, intérprete, precisareis agir como um grande político. Mas agachai-vos! Aí vem ele, para enganar duas horas a dormir e depois voltar e jurar quantas mentiras tenha forjicado.
(Entra Parolles.)
PAROLLES — Dez horas! Daqui a três horas será tempo de voltar para casa. Que direi que fiz neste meio-tempo? Preciso inventar qualquer mentira plausível, que me tire deste apuro. Já começam a desconfiar; de certo tempo a esta parte, a infelicidade me tem batido à porta com bastante freqüência. Sei que tenho a língua ousada, mas o coração sempre se mostrou medroso de Marte e de seus filhos, motivo por que não se atreve a pôr em execução o que ela avança.
PRIMEIRO NOBRE (à parte) — Essa é a primeira verdade de que em qualquer tempo a tua língua se mostrou culpada.
PAROLLES — Que diabo me levou a dizer que eu podia reaver esse tambor, se eu sabia perfeitamente que se tratava de feito impraticável e nunca tivera a intenção de realizá-lo? Terei de praticar em mim mesmo alguns ferimentos, para poder afirmar, depois, que os adquiri nesta aventura. Mas ferimentos superficiais de nada servirão, pois poderão objetar-me: “Voltastes da empresa com tão pouco?” Bem, mas ferimentos graves, não tenho coragem de fazer. E, afinal, para quê? Língua, pôr-te-ei na boca de uma mulher de manteiga e comprarei outra dos mudos de Bajazet, se com tua tagarelice te meteres em outra enrascada igual a esta.
PRIMEIRO NOBRE (à parte) — Será possível que se conheça a tal ponto e continue sendo o que é?
PAROLLES — Quem me dera que bastasse para me tirar do apuro produzir alguns rasgões na roupa, ou quebrar a minha espada espanhola!
PRIMEIRO NOBRE (à parte) — O que não te permitiríamos.
PAROLLES — Ou cortar a barba, para depois dizer que isso fazia parte dos meus planos.
PRIMEIRO NOBRE (à parte) — De pouco te serviria tal serviço.
PAROLLES — Ou atirar na água as vestes, e dizer que me despojaram.
PRIMEIRO NOBRE (à parte) — Será difícil.
PAROLLES — Ainda que eu jurasse haver saltado da janela da cidadela…
PRIMEIRO NOBRE (à parte) — De que altura?
PAROLLES — …trinta toezas.
PRIMEIRO NOBRE (à parte) — Três juramentos solenes ainda foram insuficientes para que acreditassem em tua palavra.
PAROLLES — Se eu conseguisse arranjar um tambor qualquer dos inimigos, juraria que havia reconquistado o meu.
PRIMEIRO NOBRE (à parte) — Vais ouvir um neste momento.
PAROLLES — Um tambor do inimigo!
(Ouve-se sinal de alarma.)
PRIMEIRO NOBRE — Throca movousus, cargo, cargo, cargo!
TODOS — Cargo, cargo, villianda par corbo, cargo. (Atiram-se sobre Parolles e amarram-lhe os olhos.)
PAROLLES — Oh! Resgate! Resgate! Não me amarreis os olhos!
PRIMEIRO NOBRE — Boskos thromuldo boskos.
PAROLLES — Vejo que sois do regimento Muskos. Oh! Terei de morrer, por ser-me estranha vossa linguagem. Entre vós, acaso, não há nenhum francês, ou italiano, holandês, alemão, dinamarquês? Que me venha falar; hei de fazer-lhe revelações capazes de a desgraça levar aos florentinos.
PRIMEIRO SOLDADO — Boskos vauvado. Falo tua língua e entendo o que disseste. Kerelybonto, amigo. Pensa na salvação, pois dezessete punhais tens ante o peito.
PAROLLES — Oh!
PRIMEIRO SOLDADO — Reza! Reza! Manha revania dulche.
PRIMEIRO NOBRE — Oscorbidulchos volivorco.
PRIMEIRO SOLDADO — Permite o general que te poupemos. Vendado como estás, irás conosco, porque ele te interrogue. Talvez possas dizer-nos algo que te salve a vida.
PAROLLES — Oh! Deixai-me viver, que vos prometo revelar tudo o que há no nosso campo: a quanto montam nossos efetivos, os planos de campanha. Vou deixar-vos perplexos, podeis crer-me.
PRIMEIRO SOLDADO — Sem mentiras?
PAROLLES — Por minha salvação: puras verdades.
PRIMEIRO SOLDADO — Acordo linta. Vem conosco; damos-te algum tempo de prova.
(Saem escoltando Parolles alarma ao longe.)
PRIMEIRO NOBRE — Ide dizei ao meu irmão e ao Conde de Rossilhão que o pássaro está preso. Vendado vai ficar até que novas venhamos a ter deles.
SEGUNDO SOLDADO — Sem demora, meu capitão.
PRIMEIRO NOBRE — Dizei-lhes, também, que ele nos pretende trair para nós mesmos.
SEGUNDO SOLDADO — Perfeitamente.
PRIMEIRO NOBRE — Mas que até esse instante na sombra ficará sob sete chaves.
(Saem.)
Cena II
Um quarto em casa da viúva. Entram Bertram e Diana.
BERTRAM — Chamai-vos Fontebela? Assim disseram-me.
DIANA — Não meu senhor; Diana.
BERTRAM — Excelsa deusa.! Sois digna desse nome e demais, ainda. Mas dizei-me, linda alma; nessa forma tão perfeita não tem o amor império? Se o coração não vos anima o fogo da mocidade, é que não sois vivente, mas uma estátua, apenas. Quando morta, ficareis como agora: fria e séria. Mas deveríeis ser neste momento como era vossa mãe, ao engendrar-vos assim tão meiga e bela.
DIANA — Ela era honesta.
BERTRAM — Vós também o sereis.
DIANA — Não, que ela apenas cumpria o seu dever, tal qual, milorde, como de vós espera vossa esposa.
BERTRAM — Não falemos mais nisso. Por obséquio, deixa de resistir a minhas súplicas. A outra, a mal de meu grado, me ligaram; mas preso a ti me sinto pelos próprios elos do amor, tão gratos e inquebráveis, pondo-me eternamente a teu serviço.
DIANA — Vós nos servis até que vos sirvamos; mas, uma vez colhidas nossas rosas, permitis, simplesmente, que nos punjam nossos próprios acúleos, sobre rirdes do estado em que ficamos.
BERTRAM — Não te tenho jurado tantas vezes?
DIANA — A verdade, muitas juras nem sempre a certificam; um só voto, para isso, é suficiente, do imo peito nascido. Só juramos pelo que é mais sagrado, reportando-nos à presença do Altíssimo. Dizei-me, por favor: se eu jurasse pelos grandes atributos de Jove que vos tinha amor quase infinito, acreditáreis em quanto vos dissesse, se em prejuízo vosso fosse esse amor? Não é insensato jurar a quem protesto amar deveras que pretendo arruiná-lo? Vossas juras, portanto, são palavras sem sentido, carecem de chancela, pelo menos no meu modo de ver.
BERTRAM — Muda de idéia. Não sejas cruel e santa ao mesmo tempo. O amor é coisa santa. Não condiz com meu caráter fraude alguma dessas de que acusas os homens. Não persistas em tua resistência, mas entrega-te ao meu doente desejo, que, com isso, ficará bom de todo. Dize apenas que és minha, que este amor ficará sempre como ora se te mostra.
DIANA — Os homens prendem cordas nas rochas íngremes, visando nosso perigo. Então dai-me esse anel.
BERTRAM — Poderei emprestar-to, cara amiga, mas não tenho o direito de presente fazer dele a ninguém.
DIANA — Não quereis dar-mo?
BERTRAM — É que esse anel é jóia de família, de grande estimação, que nos vem sendo transmitido de herança; fora mácula indelével perdê-la.
DIANA — É assim minha honra como esse anel. A castidade é a jóia principal da família, que vem sendo transmitida de herança; fora mácula indelével perdê-la. Desse modo, vossa sabedoria se transforma em campeã de minha honra, protegendo-a contra vossos ataques improfícuos.
BERTRAM — Recebe, então, o anel. Família, honra, minha própria existência é tua agora, ficando eu para sempre teu escravo.
DIANA — Batei à meia-noite na janela do meu quarto. Farei que não perceba minha mãe o que passa. Prometei-me, contudo, pela vossa probidade, que depois da conquista do meu leito virginal, ficareis somente uma hora, sem nenhuma palavra dirigir-me. Tenho razões para isso, que a seu tempo vos comunicarei, ao restituir-vos o anel que ora me destes. Esta noite no dedo vos porei um outro anel, que testemunho dar possa em futuro até onde chegou nosso amor puro. Não falteis; conquistastes uma esposa, cuja esperança em vós, tão-só, repousa.
BERTRAM — Ganhei um céu na terra ao conquistar-te. (Sai.)
DIANA — Vivei bastante para que, desta arte, me agradeçais e ao céu. É bem possível que algum dia o façais. Minha mãe me contou como ele havia de declarar-se. Bem parece que ela lera em seu coração. Todos os homens, disse ela, fazem sempre as mesmas juras. Ele jurou que havia de esposar-me, quando a mulher morresse. Assim, somente depois de morta hei de deitar-me com ele. Com francês case a moça que quiser, que, virgem, de ninguém serei mulher. Nesta fraude não pode haver pecado, que é virtude deixar o mal frustrado. (Sai.)
Cena III
O campo florentino. Entram os dois nobres franceses, com dois ou três soldados.
PRIMEIRO NOBRE — Entregastes-lhe a carta da mãe dele?
SEGUNDO NOBRE — Entreguei-lhe há uma hora. Devia conter algo que o compungiu bastante, pois à sua leitura parecia outro.
PRIMEIRO NOBRE — Tornou-se passível de censuras graves, por haver repudiado tão boa esposa e tão digna senhora.
SEGUNDO NOBRE — Mas incorreu, principalmente, no eterno desagrado do rei, que já havia afinado a sua generosidade para cantar-lhe a dita. Desejo contar-vos uma coisa, mas devereis guardá-la no mais recôndito da alma.
PRIMEIRO NOBRE — Logo que falardes, será coisa morta, tornando-me eu a sua sepultura.
SEGUNDO NOBRE — Ele perverteu uma senhorita aqui de Florença, de nome ilibado. Esta noite ele vai saciar o seu desejo no despojo da honra dela. Fez-lhe presente do anel de família e se considera felicíssimo com esse compromisso escandaloso.
PRIMEIRO NOBRE — Que Deus nos atenue o instinto de rebelião. Que somos, quando não passamos de nós mesmos!
SEGUNDO NOBRE — Apenas traidores de nós próprios. E da mesma maneira que as traições, em seu curso regular, se revelam tais quais são, antes de alcançarem a meta abominável, assim também o indivíduo que pratica violência contra sua dignidade, chega a inundar as próprias margens.
PRIMEIRO NOBRE — Não será altamente condenável essa propensão de nos fazermos pregões de nossas intenções ilegítimas? Assim sendo, vamos ficar privados de sua companhia?
SEGUNDO NOBRE — Mas só depois da meia-noite, que é a hora marcada para a entrevista.
PRIMEIRO NOBRE — Então falta pouco. Teria muito gosto em que ele visse ser anatomizado o seu amigo, para que pudesse avaliar o seu próprio discernimento, que o leva, por maneira tão estranha, a praticar semelhante velhacaria.
SEGUNDO NOBRE — Enquanto o conde não chegar, não nos ocuparemos com o outro, pois é a presença dele que lhe vai servir de açoite.
PRIMEIRO NOBRE — Enquanto esperamos, que tendes ouvido a respeito desta guerra?
SEGUNDO NOBRE — Ouvi falar em negociações de paz.
PRIMEIRO NOBRE — É isso mesmo, pois posso assegurar-vos que a paz já foi assinada.
SEGUNDO NOBRE — Assim sendo, que fará o Conde de Rossilhão? Continuará a viajar, ou voltará para a França?
PRIMEIRO NOBRE — Só por essa pergunta concluo que sois estranho a seu conselho.
SEGUNDO NOBRE — Deus me livre, senhor! Que de outro modo me tornaria cúmplice de seus atos.
PRIMEIRO NOBRE — Há cerca de dois meses sua esposa desapareceu de casa, sob pretexto de ir em peregrinação até o santuário de São Jaques le Grand, promessa que cumpriu com austera piedade. Enquanto esteve em casa tornou-se presa do acabrunhamento pela própria delicadeza de sua constituição. Por fim, transformou em gemido o último alento, e agora canta no céu.
SEGUNDO NOBRE — Como se chegou a saber isso?
PRIMEIRO NOBRE — Principalmente por cartas dela própria, que confirmam sua história até ao momento da morte, que não podendo ser contada por ela mesma, foi fielmente descrita pelo pároco do lugar.
SEGUNDO NOBRE — E o conde, está a par de todos esses fatos?
PRIMEIRO NOBRE — De todos, ponto por ponto, não lhe sendo estranha a menor partícula da verdade total.
SEGUNDO NOBRE — Sinto de coração que ele venha a alegrar-se com essa notícia.
PRIMEIRO NOBRE — É extraordinário, isso de encontrarmos, por vezes, consolo em nossas próprias perdas.
SEGUNDO NOBRE — E como, muitas vezes, afogamos em lágrimas aquisições reais! As honrarias que a sua bravura lhe granjeou por aqui irão encontrar em casa opróbrio equivalente.
PRIMEIRO NOBRE — A teia de nossa vida é composta de fios misturados: de bens e de males. Nossas virtudes se tornariam orgulhosas sem os açoites de nossos defeitos, como os nossos vícios desesperariam, se não fossem alentados pela virtude. (Entra um criado.) Então, por onde anda teu amo?
CRIADO — Encontrou o duque na rua, senhor, e despediu-se solenemente dele. Sua Senhoria parte amanhã para a França. O duque lhe deu cartas de recomendação para o rei.
SEGUNDO NOBRE — Que lhe serão mais do que necessárias, ainda que em seu louvor digam mais do que possam fazê-lo
PRIMEIRO NOBRE — Não poderão ser muito brandas, dada a disposição áspera em que se encontra o rei. Aí vem vindo Sua Senhoria. (Entra Bertram.) Então, milorde; já não passa de meia-noite?
BERTRAM — Liquidei dezesseis negócios esta noite, cada um do comprimento de um mês, tal foi a minha atividade. Despedi-me do duque, ofereci os préstimos às pessoas que o cercam, enterrei uma esposa, pus luto por ela, escrevi a minha mãe que estou de volta, arrumei as malas e, no intervalo de tantos negócios de monta, ainda pude levar a bom termo algumas coisinhas agradáveis. A última é a mais importante; mas essa ainda não está concluída.
SEGUNDO NOBRE — Se for cercada de certa dificuldade e tiverdes de viajar amanhã, será preciso que Vossa Senhoria se apresse.
BERTRAM — Quando digo que ainda não está concluída, é pelo receio de ouvir falar dela para diante. Mas não tiremos, afinal, representar o diálogo entre o bufão e os soldados? Vamos, trazei-me logo o modelo falso. Enganou-me tal qual profeta de oráculos duvidosos.
SEGUNDO NOBRE — Ide buscá-lo. (Saem alguns soldados.) Passou a noite no tronco, o coitado do valoroso embusteiro.
BERTRAM — Não faz mal, que seus calcanhares se tornaram merecedores disso mesmo, por haverem usurpado esporas por tanto tempo. Em que disposição se encontra?
PRIMEIRO NOBRE — Já disse a Vossa Senhoria que ele se encontra no cepo. Mas para responder como deveis ser compreendido, direi que chora como uma rapariga que houvesse derramado o leite. Confessou-se com Morgan que ele acreditou ser padre — enumerando-lhe todos os pecados, desde quando alcança a memória, até ao recente desastre que lhe valeu ser posto no tronco. E que imaginais que tenha ele confessado?
BERTRAM — Decerto nada com relação a minha pessoa?
SEGUNDO NOBRE — Sua confissão foi tomada por escrito e será lida em sua presença. Se Vossa Senhoria estiver incluído nela, o de que tenho quase certeza, será preciso revestir-vos de paciência por ocasião de sua leitura.
(Voltam os soldados com Parolles.)
BERTRAM — A peste carregue esse embuçado! De mim ele nada poderá dizer. Mas silêncio! Silêncio!
PRIMEIRO NOBRE — Chegou o cabra-cega. Porto tartarossa.
PRIMEIRO SOLDADO — Está determinando a tortura. Não quereis falar sem que recorramos a esse processo?
PAROLLES — Para eu dizer o que sei não há necessidade de violência. Se me apertardes como uma empada nada mais poderei dizer.
PRIMEIRO SOLDADO — Bosko chimurcho.
PRIMEIRO NOBRE — Boblibindo chicurmurco.
PRIMEIRO SOLDADO — Sois um general misericordioso. Nosso general vos manda responder às perguntas que trago anotadas neste papel.
PAROLLES — Com tanta sinceridade como espero viver.
PRIMEIRO SOLDADO — “Primeiro, perguntai-lhe a quanto monta a cavalaria do duque.” Que respondeis a isso?
PAROLLES — Cinco ou seis mil cavalos, mas fracos e imprestáveis. As tropas estão espalhadas, sendo todos os comandantes uns pobres diabos, afirmo-o pela minha reputação e meu crédito; tão certo como ainda espero viver.
PRIMEIRO SOLDADO — Devo escrever vossa resposta nesses termos?
PAROLLES — Perfeitamente; poderei confirmá-la sob juramento, da maneira que julgardes mais conveniente.
BERTRAM — Para ele tudo é o mesmo. O patife está perdido de todo.
PRIMEIRO NOBRE — Estais enganado, milorde; quem está diante de vós é monsieur Parolles, o galante militarista — para usarmos de sua própria expressão — que traz no nó da charpa toda a teoria da guerra e na ponteira do punhal a sua prática de soldado.
SEGUNDO NOBRE — De hoje em diante não confiarei em nenhum homem só porque tras a espada limpa, nem acreditarei que possa ter merecimento só por ser impecável no trajar.
PRIMEIRO SOLDADO — Muito bem; já está escrito.
PAROLLES — Cinco ou seis mil homens de cavalo, disse… Só direi a verdade… Anda por aí. Podeis tomar nota, pois só direi a verdade.
PRIMEIRO NOBRE — Nesse ponto, de fato, ele anda perto da verdade.
BERTRAM — Mas nem por isso lhe sou agradecido pela maneira por que a enunciou.
PAROLLES — Uns pobres diabos, é o que vos digo. Anotai isso também, por obséquio.
PRIMEIRO SOLDADO — Muito bem; já está escrito.
PAROLLES — Humildemente vos agradeço, senhor. A verdade é a verdade. Os coitados são miseráveis a conta inteira.
PRIMEIRO SOLDADO — “Pergunta-lhe a quanto sobe a infantaria.” Que respondeis a isso?
PAROLLES — Por minha honra, senhor; tivesse eu de vida apenas esta hora, vou dizer-vos a verdade. Deixai-me refletir: Spurio, cento e cinqüenta; Sebastião, outro tanto; Corambus, outro tanto; Jaques, outro tanto; Guiltian, Cosmo, Ludovico e Gratii, duzentos e cinqüenta cada; minha própria companhia, a de Cristóvão, Vaumond, Bentii, duzentos e cinqüenta cada. Desse modo, o cômputo das tropas, entre doentes e sãos, por minha vida, andará por umas quinze mil cabeças, sendo que metade dessa gente, de medo de cair em pedaços, não se atreve a sacudir a neve dos casacos.
BERTRAM — Que é que esse sujeito merece que lhe façamos?
PRIMEIRO NOBRE — Nada, a não ser agradecermos-lhe. Pergunta o que ele pensa a meu respeito e de que conceito eu gozo junto do duque.
PRIMEIRO SOLDADO — Muito bem; já está escrito. “Deveis perguntar-lhe se no acampamento há um certo Capitão Dumain, francês; em que conceito é tido pelo duque, se é homem de valor, honesto e experiente em assunto de guerra, e se não será possível, mediante uma boa soma de ouro induzi-lo a rebelar-se.” Que dizeis disto agora? Sabeis algo a respeito?
PAROLLES — Por obséquio, permiti que responda por partes. Formulai as perguntas uma a uma.
PRIMEIRO SOLDADO — Conheceis esse Capitão Dumain?
PAROLLES — Conheço-o, sim; era aprendiz de um remendão, em Paris, de onde foi expulso a chibatadas por haver engravidado uma rapariga simplória da casa do xerife, idiota e muda, que não sabia dizer não.
(Dumain, encolerizado, levanta a mão.)
BERTRAM — Por obséquio, deixai a mão em paz, que o cérebro dele se tornará alvo da primeira telha que escapar de cima.
PRIMEIRO SOLDADO — Muito bem. Esse capitão se acha no acampamento do Duque de Florença?
PAROLLES — Por tudo quanto sei, está, e cheio de piolhos.
PRIMEIRO NOBRE — Oh, não me olheis desse modo, senhor, que dentro de pouco vamos ouvir falar de Vossa Senhoria.
PRIMEIRO SOLDADO — De que conceito ele goza junto do duque?
PAROLLES — O duque só o considera como um pobre oficial da minha companhia, tendo-me escrito há dias uma carta para que o mandasse embora. Penso que ainda devo ter essa carta no bolso.
PRIMEIRO SOLDADO — Então vamos procurá-la.
PAROLLES — Para ser sincero, não tenho muita certeza; se não estiver no bolso, deve estar na minha tenda, num maço de cartas do duque.
PRIMEIRO SOLDADO — Aqui está ela! Se não é ela, é coisa semelhante. Posso ler-vos o que contém?
PAROLLES — Não sei se será essa carta.
BERTRAM — Nosso intérprete representa muito bem o seu papel.
PRIMEIRO NOBRE — Excelentemente.
PRIMEIRO SOLDADO — “Diana, o conde é um bobo cheio de dinheiro…”
PAROLLES — Isso não é a carta do duque, mas uma advertência a uma senhorita honesta de Florença, uma tal Diana, para acautelar-se contra as seduções de um tal Conde de Rossilhão, um rapazola tolo e sem ocupação, mas, por isso mesmo, muito luxurioso. Por obséquio, guardai esse papel.
PRIMEIRO SOLDADO — Não; primeiro hei de lê-lo, com vossa permissão.
PAROLLES — Minha intenção, ao escrevê-lo, posso asseverar-vos, era das mais honestas, com relação à donzela, pois tenho o conde na conta de um rapaz lúbrico e perigoso, verdadeira baleia da virtude, que devora quanto peixinho lhe passa pela frente.
BERTRAM — Velhaco de uma figa! Patife por todos os lados!
PRIMEIRO SOLDADO — “Em vez de juras, toma-lhe dinheiro. Conta feita por ele é coisa morta. Por isso, trata de o cobrar, primeiro; por menos que lho arranques, é o que importa. Ouve, Diana, o conselho de um soldado: beijar não deves moço ou namorado. Conheço bem a condição do conde, que nunca soube onde o rubor se esconde. Teu, conforme aos ouvidos já te disse, Parolles.”
BERTRAM — Será levado por todo o acampamento, para ser chibateado com esses versos na testa.
PRIMEIRO NOBRE — É o vosso amigo devotado, senhor, o famoso poliglota e soldado invencível.
BERTRAM — Nunca suportei a vista de gatos; de agora em diante, para mim ele não passará de um gato.
PRIMEIRO SOLDADO — Do olhar de nosso general, senhor, deduzo que teremos de enforcar-vos.
PAROLLES — Oh, senhor! A vida, seja por que preço for! Não é que a morte me cause medo; mas sendo tantos os meus pecados, desejaria passar o que me sobrasse de tempo a arrepender-me deles. Deixai-me viver
PRIMEIRO SOLDADO — Veremos o que é possível fazer, no caso de serdes sincero na confissão. Mas voltemos a esse Capitão Dumain. Já respondestes com relação ao seu valor e ao conceito em que ele é tido junto ao duque. E quanto à honestidade?
PAROLLES — Roubará, senhor, um ovo de um convento, pois quanto a roubos e violações só é comparável a Nessus. Ele se gaba de não manter juramentos, sendo mais forte do que Hércules para quebrá-los. Mentirá, senhor, com tal volubilidade, que a verdade vos parecerá uma tola. O vício da bebida é a sua maior virtude, pois se embebeda como um porco e no sono não causa nenhum dano, a não ser à roupa da cama. Mas, por ser conhecido nesse particular, é posto a dormir sobre palha. A respeito da honestidade, senhor, pouquíssimo ainda poderá ser acrescentado, se não for que ele tem tudo quanto uma pessoa honesta não deve ter, sendo inteiramente carecente de quanto precisa ter uma pessoa honesta.
PRIMEIRO NOBRE — Já começo a amá-lo por isso.
BERTRAM — Por causa da descrição de tua honestidade? A peste que o carregue! Para mim, cada vez torna-se mais gato.
PRIMEIRO SOLDADO — E que dizeis de seus conhecimentos bélicos?
PAROLLES — Por minha fé, senhor, ele tocou tambor diante dos comediantes ingleses… Não está em mim caluniá-lo, mas ignoro que houvesse exercido qualquer outra atividade soldadesca, a não ser que teve a honra de ser na Inglaterra oficial no lugar denominado Mile-end, para ensinar os recrutas a formarem a dois de fundo. Desejaria conceder ao homem as honras que pudesse, mas nesse particular não estou muito seguro.
PRIMEIRO NOBRE — De tal modo ele supervilanizou a vilania, que se tornou digno de admiração pela sua própria raridade.
BERTRAM — A peste que o carregue! Continua sendo um gato.
PRIMEIRO SOLDADO — Sendo tão minguado de virtudes, não terei necessidade de perguntar-vos se o ouro poderia levá-lo à deserção.
PAROLLES — Por um quart d’écu, senhor, ele seria capaz de vender sua parte da salvação e o direito de herança no céu, chegando, até, a despojar para sempre desse direito todos os seus descendentes.
PRIMEIRO SOLDADO — E que dizem de seu irmão, o outro Capitão Dumain?
SEGUNDO NOBRE — Para que perguntar-lhe a meu respeito?
PRIMEIRO SOLDADO — Como é ele?
PAROLLES — Corvo do mesmo ninho; não tão grande, realmente, em bondade quanto o outro, mas muito maior no mal. Em covardia, sobrepuja o irmão, que passa por ser um dos maiores poltrões do mundo. Numa retirada, passa na frente de qualquer lacaio; mas quando se trata de avançar, atacam-lhe as cãibras.
PRIMEIRO SOLDADO — Se vos deixarmos com vida, consentireis em trair os florentinos?
PAROLLES — Sim, e o capitão de sua cavalaria, o Conde de Rossilhão.
PRIMEIRO SOLDADO — Vou falar em particular com o general, para ver o que ele decide.
PAROLLES (à parte) — Nunca mais quero saber de tambor. A peste que leve a todos. Meti-me nesse perigo, somente para fingir valentia e desfazer a suspeita desse rapazola lascivo, o conde. Mas quem poderia suspeitar de uma emboscada no ponto em que fui preso?
PRIMEIRO SOLDADO — Não há remédio, senhor; tereis de morrer. Disse o nosso general que depois de haverdes revelado por maneira tão vil os segredos do exército a que pertenceis, e dado informações tão pestíferas de pessoas tidas em tão alto conceito, não podeis ser de nenhum uso honesto neste mundo. Por tudo isso, precisais morrer. Carrasco, fora com a cabeça dele!
PAROLLES — Oh, Deus, senhor! Deixai-me viver, ou deixai-me ver a morte!
PRIMEIRO SOLDADO — Bem; isso vos será permitido, como também despedir-vos de vossos amigos. (Desvenda-lhe os olhos.) Olhai à volta: conheceis algum dos presentes?
BERTRAM — Bom dia, nobre capitão.
SEGUNDO NOBRE — Deus vos abençoe, Capitão Parolles.
PRIMEIRO NOBRE — Deus vos guarde, nobre capitão.
SEGUNDO NOBRE — Capitão, tendes alguma comissão para o senhor Lafeu? Estou de viagem para a França.
PRIMEIRO NOBRE — Meu bom capitão, não podeis dar-me uma cópia do soneto que escrevestes a Diana, a propósito do Conde de Rossilhão? Se eu não fosse tão covarde, vo-la tomaria à força Passai bem.
(Saem Bertram e os nobres.)
PRIMEIRO SOLDADO — Capitão, ficastes reduzido a nada, com exceção de vossa charpa, que ainda conserva um nó.
PAROLLES — Quem não seria esmagado por uma conjura?
PRIMEIRO SOLDADO — Se puderdes encontrar um lugar em que as mulheres sejam tão destituídas de vergonha quanto vós, fundareis um povo de deslavados. Eu também parto para a França. Lá falaremos de vós. (Sai.)
PAROLLES — Ainda assim, agradeço. Se no peito tivesse grande coração, agora teria ele estourado. Foi-se o título de capitão; mas como qualquer deles vou tratar de comer, beber e ao sono calmamente entregar-me. Minha vida vai depender, de agora em diante, apenas do que realmente sou. Os que na conta se tiverem de biltres tomem nota, pois é certeza revelar-se burro todo lorpa que é gente por bamburro. Brio, arrefece! Espada, cria ronha! Parolles vai deixar de ter vergonha. A vida continua a ser risonha. Vou segui-los. (Sai.)
Cena IV
Florença. Um quarto em casa da viúva. Entram Helena, a viúva e Diana.
HELENA — Para terdes certeza de que em tudo convosco fui sincera, vou trazer-vos como fiador um nome dos maiores da cristandade, sendo necessário que ante seu trono eu vá dobrar os joelhos antes de ao fim chegar do meu propósito. Prestei-lhe há tempo singular serviço, tão caro quanto a vida. O próprio peito do tártaro insensível abalado poderia ficar e em tudo grato. Soube de fonte certa que Sua Graça se acha em Marselha, estando de partida para lá um comboio de confiança. Dispersadas as tropas, meu marido voltará para casa, onde, com a ajuda do céu e a permissão do rei meu amo, chegaremos primeiro.
VIÚVA — Gentil dama, nunca tivestes serva a quem tocasse tão perto vossa dita.
HELENA — Nem amiga, senhora, já tivestes, cuja mente tão indefesa trabalhasse para premiar-vos a amizade. Fui eleita pelo céu, podeis crer-me, para o dote prover de vossa filha, assim como ela também o foi para ajudar-me agora a reaver meu marido. Ó estranhos homens, que vos mostrais, assim, tão carinhosos para quem vos tem ódio, quando as formas lascivas dos sentidos enganados a tenebrosa noite deixam suja! Desse modo a luxúria se alimenta com o que repulsa lhe produz violenta. Mas depois voltaremos a esse assunto, sendo preciso, Diana, que sob minha modesta direção venhais de novo a padecer por mim.
DIANA — Embora a morte, de par com a honestidade, me adviesse de vossa imposição, a vós pertenço, declarando-me pronta a sofrer quanto me mandardes fazer.
HELENA — Paciência um pouco. Não falta muito para que de novo tenhamos o verão, quando as roseiras se cobrirem de flores e de espinhos, agradáveis ficando, a um tempo, e agudas. Precisamos partir; nossa carruagem já se acha pronta; o tempo nos convida. É sempre bom tudo o que acaba bem. O fim coroa a obra. A trajetória mais difícil importa maior glória.
(Saem.)
Cena V
Rossilhão. Um quarto no palácio da condessa. Entram a condessa, Lafeu e o bobo.
LAFEU — Não, não, não! Vosso filho foi desencaminhado por um sujeito vestido de tafetá, cujo execrável açafrão poderia tingir toda a mocidade mal cozida e pastosa de uma nação. Sem ele, vossa nora ainda poderia estar viva, e em França vosso filho, muito mais favorecido pelo rei do que por esse zangão de cauda vermelha, a que me referi.
CONDESSA — Desejara nunca o ter conhecido. Foi a causa da morte da mais virtuosa donzela que jamais a natureza teve a honra de criar. Se ele fosse de meu sangue e me tivesse custado os mais agradáveis gemidos de uma mãe, não poderia dedicar-lhe mais entranhado amor.
LAFEU — Excelente menina! Excelente menina! Teremos de apanhar mil saladas para encontrar outra verdura igual.
BOBO — Realmente, senhor, ela era a mangerona, ou melhor, a arruda da salada.
LAFEU — Isso não são verduras, idiota, mas flores perfumadas.
BOBO — Ora, senhor, eu não sou o grande Nabucodonosor; entendo muito pouco de ervas.
LAFEU — Que é que presumes ser, realmente: velhaco ou tolo?
BOBO — Tolo, senhor, a serviço de uma mulher, e velhaco ao de um homem.
LAFEU — Por que essa diferença?
BOBO — Porque enganaria o homem com sua mulher e faria o serviço dele.
LAFEU — Assim, realmente, seríeis um velhaco ao serviço dele.
BOBO — E à mulher dele, senhor, daria o meu bastão, pondo-me ao seu serviço.
LAFEU — Direi de ti que és as duas coisas ao mesmo tempo: velhaco e tolo.
BOBO — Ao vosso serviço.
LAFEU — Não! Não! Não!
BOBO — Por que não, senhor? Se não puder ficar a vosso serviço, poderei ficar no de um príncipe tão grande quanto vós.
LAFEU — Quem é esse príncipe? É francês, acaso
BOBO — Por minha fé, senhor; o nome dele é inglês, mas sua fisionomia é mais quente na França do que aqui.
LAFEU — Que príncipe é esse?
BOBO — O príncipe negro, senhor; aliás, o príncipe das trevas, o demônio.
LAFEU — Basta; toma esta bolsa, que, aliás, não é dada com a intenção de afastar-te do amo de que falaste. Continua a servi-lo.
BOBO — Eu sou um habitante dos bosques, senhor, que sempre gostei de uma boa fogueira. Ora, o amor de que vos falei mantém sempre um fogo vivo. Mas uma vez que ele é o príncipe do mundo, que sua nobreza permaneça na corte. Eu sou pela casa da porta estreita, que considero pequena em demasia para que possa entrar a pompa; os que se humilharem, passarão; mas em sua maioria os homens são por demais delicados e friorentos e só transitam pela estrada florida, que vai dar na porta ampla e no fogo vivo.
LAFEU — Segue o teu caminho. Começo a me enfarar de ti, o que declaro com antecedência, para que não venhamos a nos desavir. Segue o teu caminho e vai ver se os meus cavalos estão sendo tratados sem nenhuma maroteira.
BOBO — Se com eles usasse de maroteira, senhor, seriam maroteiras cavalares, o que eles têm direito, pela lei da natureza. (Sai.)
LAFEU — Um maroto ladino e de grande malvadez.
CONDESSA — É o que ele é, de fato. O meu defunto marido se divertia bastante à custa dele. Só continua aqui em casa por ser isso disposição testamentária de meu marido, que ele considera carta de privilégio para suas maroteiras. O certo é que ninguém lhe embarga o passo, correndo ele por onde bem entende.
LAFEU — Gosto muito dele; não é mau sujeito. Mas estava para dizer-vos que, desde que eu soube da morte da boa senhora e que meu senhor vosso filho já estava de volta, intercedi junto ao rei para que ele lhe falasse a favor de minha filha, o em que Sua Alteza já havia pensado em sua graciosa deliberação, quando ambos eram de menoridade. Sua Alteza prometeu interceder nesse sentido, o que é a melhor maneira de desfazer a má vontade que ele pudesse ter em relação a vosso filho. Que diz Vossa Senhoria dessa idéia?
CONDESSA — Alegra-me bastante, milorde, sendo meu desejo que possa vir a realizar-se sem nenhum embaraço.
LAFEU — Sua Alteza chega de Marselha tão lépido como quando tinha trinta anos. Estará aqui amanhã, se desta vez não me enganou a pessoa cujas informações raramente falham
CONDESSA — Alegra-me a esperança de revê-lo antes de morrer. Recebi cartas de meu filho, com a notícia de sua chegada para esta noite. Peço que Vossa Senhoria se demore aqui em casa, até que eles se falem.
LAFEU — Estava a procurar um pretexto, minha senhora, para justificar isso mesmo.
CONDESSA — Bastaria invocardes vosso honroso privilégio.
LAFEU — A que já tenho recorrido muitas vezes, minha senhora; mas, graças a Deus, ainda conserva o prestígio.
(Volta o bobo.)
BOBO — Minha senhora! Lá fora está o jovem conde, vosso filho, com um emplastro de veludo no rosto. Se esconde alguma cicatriz, só o veludo é que poderá dizê-lo. Mas é um ótimo emplastro de veludo. A face esquerda dele é de três pêlos e meio; mas a direita é inteiramente glabra.
LAFEU — Uma cicatriz adquirida nobremente, ou uma cicatriz nobre, é uma bela distinção honorífica, tal como é de supor que seja essa.
BOBO — Sim, mas o rosto é que nos fica riscado!
LAFEU — Vamos ao encontro de vosso filho; já me tarda poder conversar com esse jovem e nobre soldado.
BOBO — Por minha fé! há uma dúzia deles, com chapéus delicados e ricos, de plumas galantes, que não param de fazer mesuras e cumprimentar todo o mundo.
(Saem.)
ATO V
Cena I
Marselha. Uma rua. Entram Helena, a viúva e Diana, com dois criados.
HELENA — O viajar incessante, dia e noite, vos deixou esgotada. Não podemos dar remédio para isso. Mas se os dias e as noites confundistes, e esse gráceis membros magoastes para meu proveito, tende paciência, pois de tal maneira na minha gratidão vos enraizastes, que impossível será dali sairdes. Feliz encontro! (Entra um gentil-homem falcoeiro.) Este homem poderia obter-me audiência junto ao rei, no caso de usar a meu favor de seu prestígio. Deus vos guarde, senhor!
FALCOEIRO — E a vós também.
HELENA — Em França já vos vi, senhor; na corte.
FALCOEIRO — Sim, lá já estive algumas vezes.
HELENA — Creio, senhor, que ainda gozais do alto conceito da bondade que todos vos louvavam. Assim, premida pelas circunstâncias que esquecida me fazem por completo das maneiras corteses, ora apelo para vossa virtude, que há de ser-me para sempre lembrada.
FALCOEIRO — Que quereis?
HELENA — Que tenhais a bondade de ao rei fazer chegar este pedido de minha parte, humilde, e de ajudar-me quanto em vós estiver, porque falar-lhe me venha a ser possível.
FALCOEIRO — Mas Sua Alteza não se acha aqui.
HELENA — Que me dizeis, senhor!
FALCOEIRO — Partiu à última noite, com mais pressa do que de hábito.
VIÚVA — Oh Deus! Perdemos todo nosso trabalho!
HELENA — Ainda vos afirmo que bem está tudo o que bem acaba, muito embora pareça o tempo adverso e os meios deficientes. Por obséquio, para onde foi o rei?
FALCOEIRO — Para o castelo de Rossilhão, segundo me disseram. Para lá me dirijo.
HELENA — Por obséquio, senhor, já que é provável encontrardes o rei antes de mim, nas mãos graciosas entregai-lhe esta carta. Nenhum dano disso vos advirá, sendo possível que venhais a alcançar alguma graça. Seguir-vos-ei com toda a diligência possível.
FALCOEIRO — Bem; farei o que pedistes.
HELENA — Haveis de ser recompensado, tenha tudo o fim que tiver. Mas é preciso montarmos a cavalo novamente. Depressa! Cuidai disso.
(Saem.)
Cena II
Rossilhão. Pátio interior do palácio da condessa. Entram o bobo e Parolles.
PAROLLES — Meu bom senhor Lavache, entregai esta carta a milord Lafeu. Já me conhecestes em melhores condições, senhor, quando eu vivia na familiaridade de roupas mais limpas. Mas agora, senhor, sujei-me no pântano da Fortuna e exalo o cheiro muito ativo de seu ativo desfavor.
BOBO — Por minha fé, é preciso que o desfavor da Fortuna seja, de fato, repelente, para exalar cheiro tão ativo como dissestes. De hoje em diante não comerei peixe fritado na manteiga da Fortuna. Por obséquio, não fiqueis do lado de que sopra o vento.
PAROLLES — Ora, senhor, não há necessidade de tapardes o nariz; falei só por metáfora.
BOBO — Pouco importa, senhor. Se as vossas metáforas federem, taparei, da mesma forma, o nariz diante delas, como diante das metáforas de quem quer que seja. Afastai-vos, por obséquio.
PAROLLES — Por obséquio, senhor, entregai este papel à pessoa de que vos falei.
BOBO — Pah! Recuai, senhor! Entregar a um gentil-homem um papel que vem da retrete da Fortuna! Mas vêde! Aí vem vindo ele. (Entra Lafeu.) Aqui está, senhor, um bichano ou gato da Fortuna — sem ser almiscareiro que caiu no viveiro nauseabundo do seu desfavor e que, como ele próprio o declarou, se emporcalhou todo. Conjuro-vos, senhor, a proceder com esta carpa da maneira por que bem entenderdes, pois parece ser um pobre-diabo, decaído, engenhoso e idiota. Com esses símiles de consolo, lamento-lhe a desgraça e o entrego a Vossa Senhoria.
PAROLLES — Milorde, eu sou uma criatura a quem a Fortuna arranhou por maneira crudelíssima.
LAFEU — E que quereis que eu faça? Agora é tarde para aparar-lhe as unhas. Mas que maroteira fizestes à Fortuna, para que ela vos arranhasse? De si, ela é uma boa senhora; apenas não suporta que os marotos prosperem sob sua capa. Aqui tendes um quart d’écu. Que o juiz promova a paz entre vós; tenho outras ocupações.
PAROLLES — Suplico a Vossa Honra ouvir-me apenas uma palavra.
LAFEU — Com isso, apenas mendigais mais um vintém. Bem; que seja; será vosso; mas dispensai-me de ouvir essa palavra.
PAROLLES — Meu nome, meu bondoso lorde, é Parolles.
LAFEU — Desse modo, pedis mais de uma palavra. Deus é a minha paixão! Dai-me a mão. Como passa o vosso tambor?
PAROLLES — Oh, meu bom senhor! Fostes o primeiro a encontrar-me.
LAFEU — Verdade? E o primeiro, também, a perder-te.
PAROLLES — Dependerá de vós, milorde, repor-me junto da graça, por que fostes vós que me tirastes de perto dela.
LAFEU — Como assim, maroto! Atribuís-me, a um só tempo, o oficio de Deus e do diabo? Um te repõe na graça e o outro te tira dela. (Ouve-se toque de clarim.) O rei vem vindo; conheço-o pelo toque de clarim. Depois procura por mim, maroto; ainda esta noite falei a teu respeito. Embora sejas maroto e tonto, precisarás comer. Vamos; vem comigo.
PAROLLES — Rogarei a Deus por vós.
(Saem.)
Cena III
O mesmo. Um quarto no palácio da condessa. Clarins Entram o rei, a condessa, Lafeu, nobres, gentis-homens, guardas, etc.
REI — Nela perdemos uma jóia rara, o que nos depreciou. Mas vosso filho, louco de todo em todo, revelou-se inteiramente falho de sentidos para avaliar-lhe o preço.
CONDESSA — Isso ao passado pertence, meu senhor. Suplico a Vossa Majestade tomar o caso como rebelião natural da mocidade, em que o leo e o fogo, em demasia fortes para a razão, em chamas se derramam.
REI — Mui prezada senhora, perdoei tudo, tudo esqueci, conquanto já contra ele minha vingança armada se encontrasse, pronta para o disparo.
LAFEU — Devo dizer — pedindo previamente perdão do atrevimento que milorde moço ofendeu, de fato, seu monarca, sua mãe e a consorte; mas foi ele, ele mesmo, quem teve mais prejuízo: perdeu a esposa, cuja formosura ofuscava a visão mais aguçada, cuja fala prendia as oiças todas, cujo primor forçava os mais ardentes peitos a declararem-se cativos.
REI — O louvor do passado, mais querida deixa sua lembrança. Bem; chamei-o. Já estamos calmos; a primeira vista apagará qualquer lembrança triste. Não nos peça perdão; morta já se acha a natureza de sua grande culpa, cujos restos ardentes enterramos mais fundo do que o oblíquo. Ele que venha como estrangeiro, não como culpado. Explicai-lhe qual é nossa vontade.
GENTIL-HOMEM — Pois não, meu soberano.
REI — Que diz. ele de vossa filha? Acaso lhe falastes?
LAFEU — Põe-se ao dispor de Vossa Majestade.
REI — Então faremos esse casamento Recebi cartas que me falam dele em termos elogiosos.
(Entra Bertram.)
LAFEU — No semblante lê-se-lhe que está bem.
REI — Não sou um dia de nevoeiro contínuo, que a um só tempo poderás em mim ver sol e granizo. Cedem, porém, o passo as nuvens negras aos raios luminosos. Aproxima-te; volta a ser belo o tempo.
BERTRAM — Meu querido soberano, perdoai-me os grandes erros de que sinceramente me arrependo.
REI — Tudo está bem; nem mais uma palavra sobre o passado. A ocasião peguemos pelos cabelos, pois já estamos velhos; nossas resoluções mais apressadas, o pé sutil do tempo silencioso talvez as ultrapasse antes que possam tornar-se realidade. Estais lembrado da filha deste nobre?
BERTRAM — Com inefável admiração, senhor. Logo de início fiz dela a minha escolha, antes que o ousado coração se atravesse a transformar-me em arauto atrevido a língua tímida. Ao fixar nela os olhos, a mirada desdenhosa emprestou-me o vil desprezo que torce os traços a qualquer beleza, desdenha as cores frescas, por espúrias, e dilata ou comprime qualquer forma proporcional no mais hediondo objeto. Foi por ter isso acontecido que ela — objeto de louvor de todo o mundo e que eu amava desde que a perdera — passou-me a ser na vista o grão de poeira que incomoda sem tréguas.
REI — Boa escusa. O fato de lhe teres algum dia dedicado esse amor, apaga enormes colunas de tua dívida vultosa. Mas o amor atrasado, como a própria demência relutante e obtida a custo, para o grande doador não cessa nunca de clamar, qual censura merecida: “Já está morto o inocente”. Nossas faltas precipitadas só desprezo mostram por quanto de valioso seja nosso, não lhes dando valor, enquanto dura, senão quando já está na sepultura. Por vezes, nosso desprazer, injusto conosco mesmo, esmaga a todo custo nossos amigos, para lastimá-los, quando cinza se tornam. Despertado, o amor, em nós, lastima o acontecido, enquanto o ódio dormita a tarde toda. Sirva de dobre de finados isto para a bondosa Helena. E agora esquece-te dela. Remete o teu penhor sincero para a bela Magdala, que já é tua. Permanecer aqui é meu intento, para assistir do viúvo o casamento.
CONDESSA — Que o céu abençoará mais que o primeiro; ou, natureza, mata-me ligeiro!
LAFEU — Filho, em quem deve continuar o nome de minha casa, dá-me um penhor digno de teu afeto, que a centelha avive no espírito da noiva, porque prestes ela venha até aqui. (Bertram lhe entrega um anel.) Por minha velha barba e seus pêlos, a defunta Helena era graciosa e boa. Ao despedir-se da corte a última vez, vi-lhe no dedo um anel igual a este.
BERTRAM — Mas não este!
REI — Mostrai-mo, por obséquio, pois enquanto vos falava o olhar tinha nele fixo. Esse anel já foi meu; a Helena o dei, Tendo-lhe asseverado que se um dia se visse abandonada pela sorte, pronto a auxiliá-la me acharia, vista desta minha lembrança. Como o ousio tivestes de privá-la do que acima de tudo ela prezava?
BERTRAM — Meu gracioso soberano, conquanto vos agrade considerar o anel sob esse aspecto, jamais lhe pertenceu.
CONDESSA — Filho, por minha vida, esse anel eu vi no dedo dela, que o amava tanto como a própria vida.
LAFEU — Tenho certeza de a ter visto com ele.
BERTRAM — Enganais-vos, milorde; jamais ela viu semelhante anel. Este jogado, em Florença, me foi de uma janela, num papel envolvido, que continha o nome da pessoa que o jogara. Era uma jovem nobre, que me tinha na conta de solteiro. Mas ao pô-la a par da situação, com informar-lhe sem circunlóquios que impossível fora, dentro das normas da honra, efetivar-se o que eu adivinhava em seus acenos, ficou de todo satisfeita e nunca me reclamou o anel.
REI — O próprio Pluto, sabedor do elixir e da alquimia, não conhece os mistérios da natura como eu os desse anel, sim, esse mesmo, que foi meu e de Helena. Pouco importa quem vo-lo houvesse dado. Assim, se tendes pleno conhecimento de vós próprio, confessai que esta jóia foi de Helena, revelando-nos a áspera violência por que viestes a obtê-la. O testemunho ela invocou dos santos, de que nunca do dedo o tiraria, se não fosse para no leito vo-lo dar de núpcias (a que jamais subistes) ou enviar-no-lo, quando se visse em conjuntura extrema.
BERTRAM — Ela jamais o viu.
REI — Estás mentindo, afirmo-o por minha honra. E ora me fazes admitir conjeturas que o receio me leva a repelir. Caso tu houvesses sido tão desumano, o que impossível será de demonstrar, embora a dúvida me remanesça, ainda… Tinhas-lhe ódio mortal, e ela morreu. Nada podia fazer-me crer mais nisso do que a vista desse anel. Vale o mesmo que eu a houvesse visto morrer. Levai-o daqui preso! (Os guardas seguram Bertram.) Seja qual for o desenlace disto, minha experiência do passado leva-me a não considerar vãos meus receios. Vamos! Levai-o logo! Ainda haveremos de examinar esta questão por miúdo.
BERTRAM — Caso possais provar que em qualquer tempo lhe pertenceu o anel, tereis provado que como esposo lhe subi no leito, e isso em Florença, onde ela nunca esteve. (Sai escoltado.)
REI — Uma suspeita atroz me deixa aflito.
(Entra o gentil-homem falcoeiro.)
FALCOEIRO — Gracioso soberano, ignoro se mereço, ou não, censura. Este requerimento me foi dado por uma florentina que atrasada ficou de vós de três ou quatro postas, para que em mãos pudesse apresentar-vo-lo. Aceitei a incumbência, comovido ante a graça e as palavras eloqüentes da pobre suplicante, que, segundo me disseram, aguarda aqui despacho. Traduz-se-lhe nos traços fisionômicos a importância do assunto, que, conforme ela própria o explicou em termos suaves e concisos, tanto a ela diz respeito como a Vossa Grandeza.
REI — “Ante as inúmeras promessas de casar comigo, quando sua esposa viesse a falecer — coro ao confessá-lo — deixei-me conquistar por ele. Agora, o Conde de Rossilhão está viúvo, falharam todos os seus juramentos, o que me custou a honra. Fugiu de Florença sem despedir-se de mim, tendo-o eu seguido até este país, a fim de impetrar justiça. Concedei-ma, ó rei! que está em vós fazê-lo, que, de outro modo, um sedutor triunfa e uma pobre donzela ficará perdida. Diana Capuleto.”
LAFEU — Vou comprar um genro na feira; não quero saber deste; pagarei a sua taxa.
REI — Inspirou-te, o céu, fazendo-te descobrir isto tudo. Que introduzam logo essas suplicantes e trazei-me de novo o conde. (Saem o gentil-homem falcoeiro e alguns guardas.) Tenho muito medo, senhora, de que Helena houvesse sido assassinada por maneira bárbara.
CONDESSA — Então, justiça para os criminosos.
(Volta Bertram escoltado.)
REI — Admira-me, senhor, que, sendo todas as mulheres, segundo vós, uns monstros de que correis, depois de lhes jurardes fidelidade, ainda penseis em núpcias. (Volta o gentil-homem falcoeiro com a viúva e Diana.) Quem é essa mulher?
DIANA — Uma ultrajada florentina, milorde, que descende da casa dos antigos Capuletos. A par já estais, segundo me disseram, do que me trouxe aqui. Sabeis, portanto, até quando sou digna de piedade.
VIÚVA — É minha filha, meu senhor; meus anos e meu nome padecem vitupério pela ofensa que a vossos pés nos trouxe, sendo força extinguirem-se, no caso de não nos dardes o remédio azado.
REI — Aproximai-vos, conde. Quem são estas senhoras? Conhecei-las?
BERTRAM — Majestade, não posso nem desejo contestá-lo. Acusam-me de mais alguma coisa?
DIANA — Por que olhais vossa esposa desse modo?
BERTRAM — Não é minha, senhor.
DIANA — Se vos casardes, essa mão heis de dar, que me pertence; o voto quebrareis, que me pertence; a mim própria dareis, que me pertenço, pois nossas juras nos uniram tanto que quem vos desposar casa comigo. Ou nós dois, ou nenhum.
LAFEU (a Bertram) — Vossa reputação caiu muito ante minha filha; não sois marido para ela.
BERTRAM — Senhor, esta mulher é uma criatura apaixonada e louca. Diverti-me, por vezes, ao seu lado, mas conjuro Vossa Graça a fazer melhor conceito do meu nome, não dando acolhimento à idéia de que viesse a cair tanto.
REI — Não podereis, senhor, ficar amigo do meu conceito, enquanto, pelos atos, merecedor não vos mostrardes disso. Tratai de dar mais forte brilho ao nome do que o que tem no meu conceito agora.
DIANA — Bondoso soberano, perguntai-lhe, sob juramento, se ele não presume que me colheu, de fato, a virgindade?
REI — Que lhe respondes a isso?
BERTRAM — É uma impudente, senhor; no acampamento era manceba de todos os soldados.
DIANA — É injustiça, senhor, que ele me faz, porque se eu fosse isso que ora falou, ter-me-ia, certo, adquirido por preço insignificante. Crédito não lhe deis. Vêde este anel, que em alta estima e rica avaliação não acha paralelo. No entretanto, com isto ele comprou uma manceba de todos os soldados, se é que eu o era.
CONDESSA — Ele ficou corado; é o anel dele. Desde seis gerações vem esta jóia sendo doada em testamento e sempre trazida pelo dono em alta estima. Ela é, de fato, esposa dele; vale por mil provas o anel.
REI — Não me dissestes que havíeis visto alguém aqui na corte que vos podia confirmar tudo isso?
DIANA — Disse, milorde; mas é envergonhada que apelo para o testemunho dele. Parolles é o seu nome.
LAFEU — Vi esse homem hoje mesmo na corte, se é que o nome de homem podemos dar-lhe.
REI — Ide buscá-lo.
(Sai um criado.)
BERTRAM — A que vem ele aqui? Na conta é tido de um pérfido sujeito, conspurcado de todos os defeitos deste mundo, e que doente se mostra só idéia de dizer a verdade. É concebível que eu venha a ser o que disser um homem que afirma o que quiserem?
REI — Mas é certo ter ela o vosso anel.
BERTRAM — Não o nego; é o mesmo. Confesso que cheguei a gostar dela e que lho declarei, seguindo nisso o uso da mocidade. Tendo plena consciência da distância que medeava entre nós dois, com risos e negaças soube engodar-me o ardor, por ser sabido que tudo o que se opõe à fantasia só serve de excitá-la. Finalmente, sua infinita astúcia associada à beleza vulgar que me inflamava, me venceram de todo. Desse modo conseguiu ela o anel, tendo eu obtido por esse custo o que qualquer soldado viria a ter por preço do mercado.
DIANA — Preciso revestir-me de paciência. Vós, que esposa tão nobre repudiastes menoscabar de mim podeis agora. Só uma coisa vos peço pois tão falho de brio vos mostrais, perco o marido — mandai buscar o anel, que eu vo-lo entrego; mas devolvei o meu.
BERTRAM — Não está comigo.
REI — Por favor, a que anel vos referistes?
DIANA — Em tudo igual, meu soberano, a esse que vos vejo no dedo.
REI — Conhecei-lo? Até há pouco este anel lhe pertencia.
DIANA — Então foi esse que lhe dei no leito.
REI — Assim, não é verdade que lho houvésseis jogado da janela?
DIANA — Disse o que houve.
(Volta o criado com Parolles.)
BERTRAM — Senhor, confesso que esse anel foi dela.
REI — Vacilais a toda hora; qualquer pena vos faz estremecer. É este o sujeito a que vos referistes?
DIANA — Sim, milorde.
REI — Concito-vos, maroto, a declarar-nos — mas sem mentir e sem mostrardes medo de poder vir a desgostar vosso amo — o que dele sabeis e desta dama.
PAROLLES — Se for do agrado de Vossa Majestade, direi que meu amo sempre se portou como um gentil-homem honrado. É certo ter praticado algumas arrelias, mas isso como qualquer gentil-homem costuma fazer.
REI — Vamos ao que importa. Ele amou esta mulher?
PAROLLES — Por minha fé, senhor, amou. Mas como?
REI — Como? É o que pergunto.
PAROLLES — Ele a amou, senhor, como um cavalheiro ama uma mulher.
REI — E como é isso?
PAROLLES — Ele a amou, senhor, e ao mesmo tempo não a amou.
REI — Como tu és velhaco e ao mesmo tempo não és velhaco. Que sujeito cheio de distinções!
PAROLLES — Sou um pobre homem, senhor, às ordens de Vossa Majestade.
LAFEU — Tambor ele é bom, milorde, mas péssimo orador.
DIANA — Sabeis que ele me prometeu casamento?
PAROLLES — Por minha fé, sei muito mais do que vou falar.
REI — Então não pretendes dizer tudo o que sabes?
PAROLLES — Se for do agrado de Vossa Majestade. Como disse, eu era o intermediário entre ambos. Mas, acima disso, ele a amava, porque, de fato, estava louco por ela, e falava de Satanás, do limbo, das Fúrias e de não sei o que mais. Naquele tempo era tão grande o meu prestígio junto deles, que eu sabia quando subiam para a cama e outras coisinhas mais, como, por exemplo, a promessa de casamento e certas particularidades que me ensejariam um bom castigo, no caso de vir a revelá-las. Por isso não direi o que sei.
REI — Já disseste tudo, a menos que pudesses acrescentar que eles se casaram. Mas és muito precioso na tua exposição. Põe-te de lado. Segundo o dissestes, este anel vos pertenceu?
DIANA — Sim, milorde.
REI — Quem vo-lo deu? Ou então, onde o compraste?
DIANA — Não o comprei, milorde, nem mo deram.
REI — Quem, pois, vo-lo emprestou?
DIANA — Ninguém, milorde.
REI — Onde o encontrastes?
DIANA — Em nenhuma parte.
REI — Se por maneira alguma o anel foi vosso, como o destes a alguém?
DIANA — Nunca dei nada.
LAFEU — Essa mulher, senhor, é tal qual mão em luva folgada: entra e sai à vontade.
REI — Levai-a presa; não me agrada agora. Ponde-a no cárcere: e este aqui também. Se não disseres como achaste o anel, morrerás hoje mesmo.
DIANA — Jamais hei de confessar-vos tal coisa.
REI — Ide com ela!
DIANA — Posso dar uma fiança.
REI — Agora creio que eras mesmo rameira de soldados.
DIANA — Por Jove! Se algum homem me possuiu, fostes vós.
REI — Por que causa tanto tempo lhe assacastes tais coisas?
DIANA — Por ser ele inocente e culpado. Ele tem ciência de que eu já não sou virgem, e o jurara; mas eu juro que o sou, sem que ele o creia. Não me chameis, ó rei, de qualquer coisa; ou virgem sou ou deste velho esposa. (Aponta para Lafeu.)
REI — Zomba de nós. Levai-a logo presa.
DIANA — Bondosa mãe, trazei depressa a fiança.
(Sai a viúva.) Já virá o joalheiro, o proprietário do anel, que me será fiador seguro. Quanto a este nobre, que tem ciência plena de me ter desonrado, muito embora mal nenhum me fizesse, absolvo-o em tudo. Julga ele que meu leito está manchado, conquanto a esposa ele haja engravidado. Embora morta, nela o filho pula; nesta charada está minha escapula. Adivinhai agora.
(Volta a viúva, com Helena.)
REI — Que exorcista me ilude o ofício natural dos olhos? É real o que estou vendo?
HELENA — Não, milorde; a sombra apenas vedes de uma esposa; o nome, não a essência.
BERTRAM — Oh, ambos! ambos! Perdoa-me!
HELENA —Ó bondoso gentil-homem, quando eu era como esta senhorita vos achei sobremodo pressuroso. Vosso anel está aqui, e aqui a carta que me escrevestes. Nela pode ler-se: “Quando do dedo o anel me arrebatares, e um filho meu tiveres…” Está feito. E ora quereis ser meu com mais direito?
BERTRAM — Se ela isso demonstrar, ó rei, eu juro que lhe dedicarei o amor mais puro.
HELENA — Se tudo claro eu não deixar depois, haja eterno divórcio entre nós dois. Ó mãe querida! Vejo-vos com vida?
LAFEU — Sinto alho nos olhos; estou a ponto de chorar. (A Parolles.) Meu caro João Tambor, empresta-me o lenço. Assim; obrigado. Aparece lá em casa, para me distraíres um pouco; mas deixa de lado esses salamaleques, que são insuportáveis.
REI — Contar-me-eis essa história inteira e nua, porque a alegria em borbotões deflua.(A Diana.) Se ainda és botão de rosa, escolhe esposo, que eu te darei um dote generoso, pois estou vendo que uma esposa mestra, virgem como és, salvaste por honesta. Tudo isso e o mais que ouvir não posso agora me contareis depois, em melhor hora. Tudo parece bem; sendo o fim doce, que importa que o começo amargo fosse?
(Clarins. Saem.)
EPÍLOGO
(Dito pelo rei.)
Representada a peça, é o rei mendigo. Tudo acabará bem, é o que vos digo, se palma nos baterdes. Alegria vireis achar aqui dia por dia. Bastem-vos nossas boas intenções; dai-nos as mãos; eis nossos corações. (Sai.)
Fonte: www.ebooksbrasil.org
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