Reflexões e contradições à margem de um livro

Lima Barreto

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De uns tempos a esta parte, os fartamente enriquecidos, com o abalo que, na ordem econômica, sucessos externos e internos trouxeram ao nosso país, resolveram apelar para a religião, fonte de consolação para os humilhados e oprimidos, sobretudo a religião católica, a fim de estabilizar a sua situação e o futuro de sua descendência.

O que vai acontecer, mete-lhes medo e pedem auxílio à religião, no intuito de defender as suas cobiçadas fortunas.

Até bem pouco, essa gente superenriquecida – Deus sabe como! – contentava-se em converter o genro ambicioso, mediante o dote das filhas que tinham passado pelos colégios de irmãs de caridade.

Viram, porém, que isto não bastava e muito pouco podia impedir que se avolumasse a sincera onda de revolta que crescia em todos os corações contra o atroz despotismo da riqueza e os miseráveis e torpes processos de enriquecimento, usados atualmente.

A última guerra foi-lhes favorável em dois sentidos: eles, esses gananciosos que simulam caridade e temor aos mandamentos da Santa Madre Igreja, prosperaram ainda mais; e a crueldade sem nome do espetáculo e a amplitude da inútil carnificina levaram inteligências honestas e desinteressadas a pensar mais maduramente sobre o mistério da nossa existência e o sentido dela.

Muitas dessas inteligências voltaram um pouco ao catolicismo romano; e eis os magnatas do comércio, do banco e da indústria, de mãos dadas ao inacismo, cantando vitória e contentes porque tinham esmagado os adversários que lhes ameaçavam o pleno gozo e uso das fortunas, não só no que toca a eles, mas também a filhos e netos.

Essa revivescência religiosa é muito natural. Não há como a provação das dores profundas para nos impor indagações sobre as coisas do Além; e a humanidade passou ou está passando por uma das mais duras privações de sua existência.

De mais, o homem nunca deixou de ser um animal religioso e a religião é uma necessidade fundamental de sua natureza. Seja com que fito for, os grandes acontecimentos da humanidade sempre se revestiram de aspecto de crença mística, de férvida esperança no futuro, de religião enfim.

Entre nós, diversos moços, cedendo a esse impulso que a crise guerreira acelerou, se hão dedicado à apologética católica.

Entre eles, sobressai por todos os títulos Jackson de Figueiredo, de quem muito sinto andar em tal matéria afastado. Aparece agora como uma brilhante revelação o Sr. Perilo Gomes.

O seu livro – Penso e Creio – é deveras notável, já por ser escrito superiormente, com grande “élan” de paixão e soberbos toques de poesia, já pela erudição que demonstra.

Todo o livro não é ocupado somente com a parte apologética propriamente. Há uma segunda parte que podia ser dispensada, pois nenhum parentesco tem com a primeira. Ao que me parece, o autor quis provar, com os artigos de sua lavra, que aduziu à parte principal de sua obra, que o nosso interesse artístico ou a nossa angustiosa perquirição intelectual, científica e teológica, não devem tão-somente ser encaminhados para o obscuro, para o desconhecido ou para o debatido.

Algumas vezes é proveitoso que o nosso exame e as nossas faculdades pensantes se dirijam e repousem no evidente, no respeitado e no que está claro como água.

Deixemos, porém, isso de lado, para considerar somente o escritor e o pensador do Penso e Creio, porque o que encanta nele é o escritor, é a sua clareza, é o seu poder de expressão, é a sua veemência apaixonada e, sobretudo, a sua simplicidade no dizer e a sua total ausência de pedantismo.

Já houve, entre nós, o pedantismo dos gramáticos que andou esterilizando a inteligência nacional com as transcendentes questões de saber se era necrotério ou necroteca, telefone ou teléfono, etc., etc.; já houve o pedantismo dos positivistas que aterrava toda a gente com a matemática; hoje há ou está aparecendo um outro: o pedantismo católico que se entrincheira atrás de São Tomás de Aquino e outros respeitáveis e sutis doutores da Igreja.

Perilo Gomes não parece nada com esses senhores respeitáveis que hão de ser camareiros de S.S.; ele é um escritor para toda a gente, claro, forte, escondendo com pudor o seu real saber.

Andava bem o catolicismo de Petrópolis necessitado de um espírito como esse que põe a serviço dele a sua fé sincera e o seu talento, pois, em geral, os que ele nos dá, são jesuítas alemães ou italianos e irmãos leigos da Companhia, nos quais o saber de detalhes e a pouca familiaridade com a língua tiram as indispensáveis qualidades de escritor de combate: a atração e a veemência.

Digo catolicismo de Petrópolis porque o Sr. Perilo não se pode furtar em confessar que a sua obra não é de pura contemplação, não é uma confissão, não é um ato de contrição de sua irreligiosidade passada; é militante, é dirigida aos que pensam, aos condutores do pensamento nacional, no intuito, senão de convencê-los, ao menos de abalá-los no seu volterianismo ou agnosticismo.

É, em substância, no sentido mais alto da palavra, uma obra política e o catolicismo de Petrópolis, por todos os meios, tem visado fins políticos, pacientemente, sorrateiramente. Ele tende à reforma da Constituição; até agora, contentara-se com disfarces na violação dos preceitos dela que interessam ao Catolicismo; nos dias atuais, porém, aproveitando o mo- mento de angústias que atravessamos, quer obter a vitória completa.

Sem que nada me autorize a tal explicitamente, eu filio Penso e Creio à ação do partido que se esboça aí com o título de nacionalismo. A Igreja quer aproveitar ao mesmo tempo a revivescência religiosa que a guerra trouxe, e a recrudescência exaltada do sentimento de pátria, também conseqüência dela, em seu favor aqui, no Brasil.

O tal partido, pelos seus órgãos mais autorizados, está sempre a apelar para as tradições católicas de nossa terra; e nao é difícil ver nisso o desejo de riscar da carta de 24 de Fevereiro a separação do poder temporal do espiritual e suas conseqüências, como: o casamento civil e o ensino oficial inteiramente leigo.

O culto à brasilidade que ele prega, é o apego à herança do passado de respeito, não só à religião, mas também à riqueza e às regras sociais vigentes, dai a aliança da jovem fortuna, representada pelos improvisados ricaços de Petrópolis, com a Igreja. Mas tal culto tende a excomungar, não o estrangeiro, mas as idéias estrangeiras de reivindicações sociais que são dirigidas contra os cresos de toda a ordem. O Jeca deve continuar Jeca, talvez com um pouco de farinha a mais.

Estas reformas me parecem odiosas e sobremodo retrógradas. Dado que a maioria dos brasileiros seja verdadeiramente de católicos, decretada como oficial a Igreja Romana, mesmo toleradas outras seitas, é evidente que há em semelhante ato uma violência

inqualificável contra a consciência individual, por parte da massa que nem sempre está com a razão – coisa que, como ameaça, me causa apreensões e, como fato consumado, não pode deixar de revoltar um liberal como eu.

Entretanto, o Sr. Perilo Gomes não trata dessas questões claramente, como já disse; mas, remotamente, se ligam a elas algumas das suas afirmações.

Por isso, julgo não ser demais fazer as observações que acima ficam, já que se me oferece pretexto para fazê-las, definindo de vez o meu humilde pensamento em face da agitação católico-nacionalista que está empolgando todos que no Brasil tem alguma responsabilidade mental.

Estaria e estou de acordo com o Sr. Perilo, quando afirma que a ciência não satisfaz; que ela parte do mistério e acaba no mistério; e que, fora dela, há muitas razões de crer em Deus e de obedecer à revelação da voz divina na nossa consciência; mas, no que não estou de acordo com o Sr. Perilo, é em afirmar ele que essa revelação de Deus em nós, só nos pode levar ao catolicismo. Não sei por quê!

Para os que nasceram na religião católica e a abandonaram, ao se sentirem tocados pela graça divina, por isto ou aquilo, é muito natural que voltem a ela. Mas, se o convertido ou arrependido de irreligiosidade, nasceu no islamismo ou na igreja grega voltaria para o catolicismo ou para o maometismo ou para a igreja ortodoxa? A resposta não se faz esperar: ele voltaria para a doutrina religiosa em que foi educado.

As religiões são expressões humanas de Deus, mas não Deus mesmo. É minha desautorizada opinião, em matéria que muito pouco tenho meditado e muito menos pensado.

No argumento, aliás muito antigo, de que a maioria dos homens eminentes em toda a sorte de atividades teóricas e práticas, crê ou têm crido em Deus, o autor não faz entre eles a separação dos católicos, dos protestantes, dos simples deístas, dos religiosos de qualquer espécie.

Admiro muito a religião católica; mas sei bem que ela é uma criação social, baseada na nossa necessidade fundamental de Deus e impregnada do cesarismo romano, que a anima e a sustém no seu velho sonho de domínio universal; sei que ela tem sabido aproveitar as conquistas de toda a ordem obtidas por este ou aquele homem, incorporando-as ao seu patrimônio, e até aproveitou-se em seu favor, de argumentos dos seus inimigos contra ela; sei bem disso tudo.

Porém, essa admirável plasticidade da Igreja, através de quase dois mil anos de existência, amoldando-se a cada idade e cada transformação social, poderia tentar a outro, que, no assunto, tivesse verdadeira erudição pois não tenho nenhuma, a demonstrar que tem havido, desde o édito de Milão, ou mesmo antes, até hoje, várias igrejas superpostas com os afloramentos fatais das mais antigas através das mais modernas.

Seria certamente um capítulo de uma espécie de geologia religiosa em que, talvez, a classificação dos termos não fosse difícil de estabelecer.

Penso e Creio é luxuriante e há tanta riqueza de idéias nele que a gente se perde querendo escolher as que deseja discutir. Vou me deter alguns instantes no que toca à extinção da escravidão antiga.

É fato, como diz o Sr. Perilo, citando o Sr. Guiraud, que ela instituindo o dogma da fraternidade humana matava a escravatura.

Mas, nessa questão do acabamento dessa odiosa instituição na Europa, na sua transformação em selvagem, sob a benéfica influência da Igreja, e no final desaparecimento desta última forma de elementar trabalho humano, desaparecimento que só se fez total com a Grande Revolução (Vid. Taine – Origines de la France Contemporaine); – nessa questão há um argumento em desfavor do papel social da Igreja moderna.

Esse serviço, que não é preciso aqui mostrar de quanto é credora a humanidade ao catolicismo, segundo tudo faz crer, deve-se pela primeira vez, como sendo patrimônio dele, a um filósofo que a Igreja mais combate – Augusto Comte.

Entretanto, quem acabou com esta infame instituição, a que o mundo antigo, no acertado dizer do Sr. Perilo, estava a tal ponto identificado que os seus filósofos mais eminentes, mesmo o virtuoso Sócrates, mesmo o quase divino Platão e o conciso Aristóteles reconheciam a sua legalidade; entretanto, dizia eu, quem conseguiu a vitória de extinguir semelhante infâmia, não soube ou não pôde impedir a moderna escravidão negra nem propagou a sua abolição. Há exemplos isolados de eclesiásticos que a combateram; mas nunca um ato solene da igreja que a condenasse. A sua atitude perante a nefanda instituição foi a dos filósofos antigos de que fala o Sr. Perilo; foi a de reconhecer-lhe, senão a legalidade, pelo menos a necessidade.

Não fossem os filósofos do século XVIII, especialmente Condorcet, e os filantropos ingleses, talvez ainda a escravatura negra estivesse admitida como legal, apesar dos Evangelhos, onde, afinal, todos nós que conhecemos os homens bebemos inspiração.

A Convenção extinguiu-a nas colônias francesas, para Napoleão criminosamente a restabelecer; e essa grande Convenção Francesa, conforme tudo leva a crer, não foi um concílio muito ortodoxo.

É por isso que Macaulay diz, não me lembro onde, que, durante o século XVII, os Evangelhos tinham passado das mãos dos religiosos para a dos filósofos, ateus ou não.

Estou a muitas centenas de quilômetros dos meus modestos livros, senão citaria integralmente esse famoso trecho do grande escritor inglês.

Esta incapacidade que a Igreja demonstrou para abolir a escravidão negra nas colônias dos países catolicíssimos, como a França, a Espanha e Portugal, dá a entender que ela não tem mais força para reprimir no coração dos seus fiéis a ganância, a cupidez, mesmo quando essa ambição desenfreada de dinheiro e de lucro se faça em troca da dignidade moral da pessoa humana.

A força moral da Igreja é toda aparente; ela, a força, já se esvaneceu ou vai se esvanecendo. A última guerra mostrou a fraqueza do ascendente do Papado que não quis francamente experimentar o seu prestígio sobre os povos em luta, chamando-os ao bom caminho da paz e da concórdia; e, se tal tentou, foi repelido.

Não creio, portanto, que a Igreja possa resolver a questão social que os nossos dias põem para ser solucionada urgentemente.

Se os socialistas, anarquistas, sindicalistas, positivistas, etc., etc. não a podem resolver estou muito disposto a crer que o catolicismo não a resolverá também, tanto mais que nunca foram tão íntimas as relações do clero com o capital, e é contra este que se dirige toda a guerra dos revolucionários.

Nestas reflexões que o vibrante livro do Sr. Perilo Gomes me provocou fazer, não há o menor sinal de má vontade ou de hostilidade; mas, tão-somente humilde homenagem de um adversário que, inesperadamente, encontra diante de si campeão contrário de tão raro valor e estranha bizarria, de cuja ação e de cuja crença quisera partilhar para sossego de sua alma.

A.B.C., 23-4-1921

 

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