Lygia Fagundes Telles
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Chão da infância. Algumas lembranças me parecem fixadas nesse chão movediço, as minhas pajens. Minha mãe fazendo seus cálculos na ponta do lápis ou mexendo o tacho de goiabada ou ao piano; tocando suas valsas. E tia Laura, a viúva eterna que foi morar na nossa casa e que repetia que meu pai era um homem instável. Eu não sabia o que queria dizer instável mas sabia que ele gostava de fumar charutos e gostava de jogar. A tia um dia explicou, esse tipo de homem não consegue parar muito tempo no mesmo lugar e por isso estava sempre sendo removido de uma cidade para outra como promotor. Ou delegado. Então minha mãe fazia os tais cálculos de futuro, dava aquele suspiro e ia tocar piano. E depois, arrumar as malas.
— Escutei que a gente vai se mudar outra vez, vai mesmo? perguntou minha pajem Maricota. Estávamos no quintal chupando os gomos de cana que ela ia descascando. Não respondi e ela fez outra pergunta: Sua tia vive falando que agora é tarde porque a Inês é morta, quem é essa tal de Inês?
Sacudi a cabeça, não sabia. Você é burra, Maricota resmungou cuspinhando o bagaço. Fiquei olhando meu pé amarrado com uma tira de pano, tinha sempre um pé machucado (corte, espinho) onde ela pingava tintura de iodo (ai, ai!) e depois amarrava aquele pano. No outro pé, a sandália pesada de lama. Essa pajem era uma órfã que minha mãe recolhera, tive sempre uma pajem que me dava banho, me penteava (papelotes nas festas) e me contava histórias até que chegasse o tempo da escola. Maricota era preta e magra, a carapinha repartida em trancinhas com uma fita amarrada na ponta de cada trancinha. Não sei da Inês mas sei do seu namorado, tive vontade de responder. Ele tem feição de cavalo e é trapezista no circo do leão desdentado. Estava sabendo também que quando ela ia encontrar o trapezista, soltava as trancinhas e escovava o cabelo até vê-lo abrir-se em leque como um sol negro. Fiquei quieta. Tinha procissão no sábado e era bom lembrar que eu ia de anjo com asas de penas brancas (meu primeiro impulso de soberba) enquanto que as asas dos outros anjos eram de papel crepom.
— Corta mais cana, pedi e ela levantou-se enfurecida: Pensa que sou sua escrava, pensa? A escravidão já acabou!, ficou resmungando enquanto começou a procurar em redor, estava sempre procurando alguma coisa e eu saía atrás procurando também, a diferença é que ela sabia o que estava procurando, uma manga madura? Jabuticaba? Eu já tinha perguntado ao meu pai o que era isso, escravidão. Mas ele soprou a fumaça para o céu (dessa vez fumava um cigarro de palha) e começou a recitar uma poesia que falava num navio cheio de negros presos em correntes e que ficavam chamando por Deus. Deus, eu repeti quando ele parou de recitar. Fiz que sim com a cabeça e fui saindo, Agora já sei.
— Sábado tem procissão, eu lembrei. Vai me fazer papelote?
— Vamos ver, ela disse enquanto juntava os bagaços da cana no avental. Foi até a lata de lixo. E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca, quem chegar por último vira um sapo! Eram as pazes. Levantei-me e saí correndo atrás dela, sabia que ia perder mas ainda assim apostava.
Quando não aparecia nada melhor a gente ia até o campo para colher flores que Maricota enfeixava num ramo e, com cara de santa, oferecia à Madrinha, chamava minha mãe de Madrinha. Às vezes, ela desenhava com carvão no muro as partes dos meninos e mostrava, É isto que fica no meio das pernas, está vendo? É isto! Mas logo passava um trapo no muro e fazia a ameaça, Se você contar você me paga!
Depois do jantar era a hora das histórias fantásticas. Na escada que dava para a horta, instalavam-se as crianças com a cachorrada, eram tantos os cachorros que a gente não sabia que nome dar ao filhote da última ninhada da Keite, acabou sendo chamado de Hominho, era um macho. Foi nessa época que apareceu a Filó, uma gata meio doida que acabou amamentando os cachorrinhos porque a Keite estava com crise e rejeitou todos. Cachorro também tem crise, avisou tia Laura olhando pensativa para a Keite que dava mordidas no filhote que vinha procurar suas tetas.
As histórias apavorantes das noites na escada. Eu fechava os olhos-ouvidos nos piores pedaços e o pior de todos era mesmo aquele, quando os ossos da alma penada iam caindo diante do viajante que se abrigou no casarão abandonado. Noite de tempestade, vinha o vento uivante e apagava a vela e a alma penada ameaçando cair, Eu caio! Eu caio! — gemia a Maricota com a voz fanhosa das caveiras. Pode cair! ordenava o valente viajante olhando para o teto. Então caía um pé ou uma perna descarnada, ossos cadentes pulando e se buscando no chão até formar o esqueleto. Em redor, a cachorrada latindo, Quer parar com isso? gritava a Maricota sacudindo e jogando longe o cachorro mais exaltado. Nessas horas sempre aparecia um dos grandes na janela (tia Laura, tio Garibaldi?) para impor o respeito.
Quando Maricota fugiu com o trapezista eu chorei tanto que minha mãe ficou preocupada: Menina mais ingrata aquela! Acho cachorro muito melhor do que gente, ela disse ao meu pai enquanto ia arrancando os carrapichos do pêlo do Volpi que já chegava gemendo, ele sofria com antecedência a dor da retirada de carrapichos e bernes.
A pajem seguinte também era órfã mas branca. Falava pouco e também não sabia ler mas ouvi minha mãe prometer (como prometeu à outra), Eu vou te ensinar. Chamava-se Leocádia. Quando minha mãe tocava piano ela parava de fazer o que estava fazendo e vinha escutar: Madrinha, por favor, toca “O sonho de Lili”!
Leocádia não sabia contar histórias mas sabia cantar, aprendi com ela a cantiga de roda que cantarolava enquanto lavava roupa:
Nesta rua nesta rua tem um bosque
Que se chama que se chama Solidão.
Dentro dele dentro dele mora um Anjo
Que roubou que roubou meu coração.
— Menina afinada, tem voz de soprano, disse tia Laura batendo com o leque na mesa, estava sempre se abanando com o leque. Soprano, soprano! fiquei repetindo e correndo em redor de Leocádia que ria aquele riso de dentes fortes e perguntava o que era soprano e eu também não sabia mas gostava das palavras desconhecidas, Soprano, soprano!
— Vem brincar, Leocádia! eu chamava e ela ria e dava um adeusinho, Depois eu vou! Fiquei sondando, e o namorado? Da Maricota eu descobri tudo mas dessa não descobri nada.
Morávamos agora em Apiaí, depois da mudança tão comprida, com o piano no gemente carro-de-boi. Isso sem falar nos vasos de plantas e na cachorrada que veio no caminhão com a Leocádia e mais a Custódia, uma cozinheira meio velha que mascava fumo e sabia fazer o peru de Natal. Meu pai, a tia e minha mãe comigo no colo, todos amontados no tal fordeco meio escangalhado que meu pai ganhou numa rifa. Com o carcereiro guiando, era o único que sabia guiar.
Apiaí e a escola das freirinhas. Quando nessa tarde voltei da escola, encontrei todo mundo de olho arregalado e falando baixo. No quintal, os cachorros se engalfinhando. Por que a Leocádia não foi me buscar? E cadê minha mãe? Tia Laura baixou a cabeça, cruzou o xale no peito, fechou o leque e foi saindo meio de lado, andava desse jeito quando aconteciam coisas. Fechou-se no quarto. Custódia soprou o braseiro do fogão e avisou que ia estourar pipoca. A Leocádia fugiu?, perguntei. Ela começou a debulhar o milho, Isso não é conversa de criança.
Então entrou minha mãe. Fez um sinal para a Custódia, sinal que eu conhecia (depois a gente se fala), acariciou minha cabeça e foi para o quarto de tia Laura. Disfarcei com o prato de pipoca na mão, banzei um pouco e fui escutar detrás da porta da tia. Contei que meu marido estava viajando (era a voz da minha mãe) e que a gente não sabe lidar com isso. Uma tragédia, Laura, uma tragédia! Então o médico disse (minha mãe parou para se assoar) que ela pode ficar na enfermaria até o fim, vai morrer, Laura! Enfiou a agulha de tricô lá no fundo, meu Deus!… – A voz sumiu e logo voltou mais forte: Grávida de quatro meses e eu sem desconfiar de nada, era gordinha e agora engordou mais, foi o que pensei. Hoje ela me reconheceu e fez aquela carinha alegre, Ô! Madrinha. Era tão inteligente, queria tanto aprender a ler, queria até aprender música. Tia Laura demorou para falar: Agora é tarde!, gemeu. Mas não tocou na Inês.
Em dezembro tinha quermesse. Minha mãe e tia Laura foram na frente porque eram as barraqueiras, eu iria mais tarde com a Custódia que ficou preparando o peru. Quando passei pelo jasmineiro no quintal (anoitecia) vi o vulto esbranquiçado por entre os galhos. Parei. A cara úmida de Leocádia abriu-se num sorriso.
— A quermesse, Leocádia! Vamos?, eu convidei e ela recuou um pouco.
— Não posso ir, eu estou morta.
Keite apareceu de repente e começou com aquele latido desesperado. Antes que viessem os outros, tomei-a no colo, Fica quieta, quieta! ordenei baixinho na sua orelha. E o latido virou um gemido de sofrimento. Quieta! Aquela é a Leocádia, você não se lembra da Leocádia? Comecei a tremer. É a Leocádia! repeti e apertei a Keite contra o peito e ela também tremia. Soltei-a: Pode ir mas não chame os outros, escutou isso?
Keite saiu correndo e desapareceu no fundo do quintal. Quando olhei na direção do jasmineiro não vi mais nada, só a folhagem com as florinhas brancas no feitio de estrelas.
Entrei na cozinha. Que cara é essa? estranhou a Custódia. Encolhi os ombros e ajudei a embrulhar o peru no papel-manteiga. Vamos depressa que a gente está atrasada, ela resmungou me pegando pelo braço. Parou um pouco para me examinar melhor.
— Mas o que aconteceu, você está chorando? Enxuguei a cara na barra da saia.
— Me deu uma pontada no dente.
— Foi naquele que o dentista chumbou? Quer a Cera do Doutor Lustosa?
— Deu só uma pontada, já parou de doer.
— Pegue o meu lenço, ela disse abrindo a sacola. Ofereceu-me o lenço de algodão branco, bem dobrado. Na calçada deserta ela ainda parou um pouco para prender a fivela no cabelo. O peru era meio velho mas acho que ficou bom.
Enxuguei os olhos com raiva e cruzei os braços contra o peito, outra vez o tremor? Fomos andando lado a lado e em silêncio.
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