Machado de Assis
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CARTA AO SR. BISPO DO RIO DE JANEIRO
Ex.mo Rev.mo Sr. — No meio das práticas religiosas, a que as altas funções de prelado chamam hoje V. Ex.ª., consinta que se possa ouvir o rogo, a queixa, a indignação, se não é duro o termo, de um cristão que é dos primeiros a admirar as raras e elevadas virtudes, que exornam a pessoa de V. Exª.
Não casual, senão premeditada e muito de propósito, é a coincidência desta carta com o dia de hoje. Escolhi. como próprio, o dia da mais solene comemoração da igreja, para fazer chegar a V. Ex ª algumas palavras sem atavios de polêmica, mas simplesmente nascidas do coração.
Estou afeito desde a infância a ouvir louvar as virtudes e os profundos conhecimentos de V. EXª. Estes verifiquei-os mais tarde pela leitura das obras, que aí correm por honra de nossa terra; as virtudes se as não apreciei de perto, creio nelas hoje como dantes, por serem contestes todos quantos têm a ventura de tratar de perto com V. Exª.
É fiado nisso que me dirijo francamente à nossa primeira autoridade eclesiástica.
Logo ao começar este período de penitência e contrição, que está a findar, quando a Igreja celebra a admirável história da redenção, apareceu nas colunas das folhas diárias da Corte um bem elaborado artigo, pedindo a supressão de certas práticas religiosas do nosso país, que por grotescas e ridículas, afetavam de algum modo a sublimidade de nossa religião.
Em muitas boas razões se firmavam o articulista para provar que as procissões, derivando de usanças pagãs, não podiam continuar a ser sancionadas por uma religião que veio destruir os cultos da gentilidade.
Mas a quaresma passou e as procissões com ela, e ainda hoje, Ex.mo. Sr., corre a população para assistir à que, sob a designação de Enterro do Senhor, vai percorrer esta noite as ruas da capital.
Não podem as almas verdadeiramente cristãs olhar para essas práticas sem tristeza e dor.
As conseqüências de tais usanças são de primeira intuição. Aos espíritos menos cultos, a idéia religiosa, despida do que tem mais elevado e místico, apresenta-se com as fórmulas mais materiais e mundanas. Aos que, meros rústicos, não tiveram, entretanto, bastante filosofia cristã para opor a esses espetáculos, a esses entibia-se a fé, e o cepticismo invade o coração.
E V. Exª. não poderá contestar que a nossa sociedade está afetada do flagelo da indiferença. Há indiferença em todas as classes, e a indiferença melhor do que eu sabe V. Exª., é o veneno sutil, que corrói fibra por fibra um corpo social.
Em vez de ensinar a religião pelo seu lado sublime, ou antes, pela sua verdadeira e única face, é pelas cenas impróprias e improveitosas que a propagam. Os nossos ofícios e mais festividades estão longe de oferecer a majestade e a gravidade imponente do culto cristão. São festas de folga, enfeitadas e confeitadas, falando muito aos olhos e nada ao coração.
Neste hábito de tornar os ofícios divinos em provas de ostentação, as confrarias e irmandades, destinadas à celebração dos respectivos órgãos, levam o fervor até uma luta vergonhosa e indigna, de influências pecuniárias; cabe a vitória, à que melhor e mais pagãmente reveste a sua celebração. Lembrarei, entre outros fatos, a luta de duas ordens terceiras, hoje em tréguas, relativamente à procissão do dia de hoje. Nesse conflito só havia um fito — a ostentação dos recursos e do gosto, e um resultado que não era para a religião, mas sim para as paixões e interesses terrestres.
Para esta situação deplorável, Ex.mo. Sr., contribui imensamente o nosso clero. Sei que toco em chaga tremenda, mas V. Exª. reconhecerá sem dúvida que, mesmo errando, devo ser absolvido, atenta a pureza das intenções que levo no meu enunciado.
O nosso clero está longe de ser aquilo que pede a religião do cristianismo. Reservadas as exceções, o nosso sacerdote nada tem do caráter piedoso e nobre que convém aos ministros do crucificado.
E, a meu ver, não há religião que melhor possa contar bons e dignos levitas. Aqueles discípulos do filho de Deus, por promessa dele tornados pescadores de homens, deviam dar lugar a imitações severas e dignas; mas não é assim, Ex.mo. Sr., não há aqui sacerdócio, há ofício rendoso, como tal considerado pelos que o exercem, e os que o exercem são o vício e a ignorância, feitas as pouquíssimas e honrosas exceções. Não serei exagerado se disser que o altar tornou-se balcão e o evangelho tabuleta. Em que pese a esses duplamente pecadores, é preciso que V. Exª. ouça estas verdades.
As queixas são constantes e clamorosas contra o clero; eu não faço mais que reuni-las e enuncia-las por escrito.
Fundam-se elas em fatos que, pela vulgaridade, não merecem menção. Merca-se no templo, Ex.mo Sr., corno se mercava outrora quando Cristo expeliu os profanadores dos sagrados lares; mas a certeza de que um novo Cristo não virá expeli-los, e a própria tibieza da fé nesses corações, anima-os e põe-lhes na alma a tranqüilidade e o pouco caso pelo futuro.
Esta situação é funesta para a fé, funesta para a sociedade. Se, corno creio, a religião é uma grande força, não só social, senão também humana, não se pode contestar que por esse lado a nossa socie-dade contém em seu seio poderosos elementos de dissolução
Dobram, entre nos , as razões pelas quais o clero de todos Os Países católicos tem sido acusado.
No meio da indiferença e do cepticismo social, qual era o papel que cabia ao clero? Um: converter-se ao Evangelho e ganhar nas consciências o terreno perdido. Não acontecendo assim, as invectivas praticadas pela imoralidade clerical, longe de afrouxarem e diminuírem, crescem de número e de energia.
Com a situação atual de chefe da Igreja, V. Ex.a compreende bem que triste resultado pode provir daqui.
Felizmente que a ignorância da maior parte dos nossos clérigos evita a organização de um partido clerical, que, com o pretexto de socorrer a Igreja nas suas tribulações temporais, venha lançar a perturbação nas consciências, nada adiantando à situação do supremo chefe católico.
Não sei se digo uma heresia, mas por esta vantagem acho que é de apreciar essa ignorância.
Dessa ignorância e dos maus costumes da falange eclesiástica é que nasce um poderoso auxílio ao estado do depreciamento da religião.
Proveniente dessa situação, a educação religiosa, dada no centro das famílias, não responde aos verdadeiros preceitos da fé. A religião é ensinada pela prática e como prática, e nunca pelo sentimento e como sentimento.
O indivíduo que se afaz desde a infância a essas fórmulas grotescas, se não tem por si a luz da filosofia, fica condenado para sempre a não compreender, e menos conceber, a verdadeira idéia religiosa.
E agora veja V. Exª. mais: há muito bom cristão que compara as nossas práticas católicas com as dos ritos dissidentes, e, para não mentir ao coração, dá preferência a estas por vê-las símplices, severas, graves, próprias do culto de Deus.
E realmente a diferença é considerável.
Note bem, Ex.mo Sr., que eu me refiro somente às excrescências da nossa Igreja Católica, à prostituição do culto entre nós. Estou longe de condenar as práticas sérias. O que revolta é ver a materialização grotesca das cousas divinas, quando elas devem ter manifestação mais elevada, e, aplicando a bela expressão de S. Paulo, estão escritas não com tinta, mas com o espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne do coração.
O remédio a estes desregramentos da parte secular e eclesiástica empregada no culto da religião deve ser enérgico, posto que não se possa contar com resultados imediatos e definitivos.
Pôr um termo às velhas usanças dos tempos coloniais, e encaminhar o culto para melhores, para verdadeiras fórmulas; fazer praticar o ensino religioso como sentimento e como idéia e, moralizar o clero com as medidas convenientes, são Ex.mo Sr., necessidades urgentíssimas.
É grande o descrédito da religião, porque é grande o descrédito do clero. E V. Exa deve saber que os maus intérpretes são nocivos aos dogmas mais santos.
Desacreditada a religião, abala-se essa grande base da moral, e onde irá parar esta sociedade?
Sei que V. Exª. se alguma cousa fizer no sentido de curar estas chagas, que não conhece, há de ver levantar-se em roda de si muitos inimigos, desses que devem-lhe ser pares no sofrimento e na glória. Mas V. Ex.ª é bastante cioso das cousas santas para olhar com desdém para as misérias eclesiásticas e levantar a sua consciência de sábio prelado acima dos interesses dos falsos ministros do altar.
V. Exª receberá os protestos de minha veneração e me deitará a sua bênção.
CARTA À REDAÇÃO DA IMPRENSA ACADÊMICA [Corte, 21 ago. 1864.]
MEUS BONS AMIGOS: — Um cantinho em vosso jornal para responder duas palavras ao Sr. Sílvio-Silvis, folhetinista do Correio Paulistano, a respeito da minha comédia o Caminho da Porta.
Não é uma questão da susceptibilidade literária, é uma questão de probidade.
Está longe de mim a intenção de estranhar a liberdade da crítica, e ainda menos a de atribuir à minha comédia um merecimento de tal ordem que se lhe não possam fazer duas observações. Pelo contrário eu não ligo ao Caminho da Porta outro valor mais que o de um trabalho rapidamente escrito, como um ensaio para entrar no teatro.
Sendo assim, não me proponho a provar que haja na minha comédia — verdade, razão e sentimento, cumprindo-me apenas declarar que eu não tive em vista comover os espectadores, como não pretendeu fazê-lo, salva a comparação, o autor da Escola das Mulheres.
Tampouco me ocuparei com a deplorável confusão que o Sr. Sílvio-Silvis faz entre a verdade e a verossimilhança; dizendo: “Verdade não tem a peça que até é inverossímil.”– Boileau, autor de unia arte poética que eu recomendo à atenção do Sílvio-Silvis, escreveu esta regra: Le vrai peut quelquefois n’être pas vraisemblable.
O que me obriga a tomar a pena é a insinuação do furto literário, que me parece fazer o Sr. Sílvio-Silvis, censura séria que não pode ser feita sem que se aduzam provas. Que a minha peça tenha urna fisionomia comum a muitas outras do mesmo gênero, e que, sob este ponto de vista, não possa pretender uma originalidade perfeita, isso acredito eu; mas que eu tenha copiado e assinado uma obra alheia, eis o que eu contesto e nego redondamente.
Se, por efeito de uma nova confusão, tão deplorável como a outra, o Sr. Sílvio-Silvis chama furto à circunstância a que aludi acima, fica o dito por não dito, sem que eu agradeça a novidade. Quintino Bocaiúva, com a sua frase culta e elevada, já me havia escrito: “As tuas duas peças, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não revelam mais do que a maravilhosa aptidão do teu espírito, a própria riqueza do teu estilo.” E em outro lugar: “O que te peço é que apresentes neste mesmo gênero algum trabalho mais sério, mais novo, mais original, mais completo.
É de crer que o Sr. Sílvio-Silvis se explique cabalmente no próximo folhetim.
Se eu insisto nesta exigência não e para me justificar perante os meus amigos pessoais, ou literários, porque esses, com certeza, julgam- me incapaz de uma má ação literária. Não é também para desarmar alguns inimigos que tenha aqui, apesar de muito obscuro, porque eu me importo mediocremente como o juízo desses senhores.
Insisto em consideração ao público em geral.
Não terminarei sem deixar consignado todo o meu reconhecimento pelo agasalho que a minha peça obteve da parte dos distintos acadêmicos e do público paulistano. Folgo de ver nos aplausos dos primeiros uma animação dos soldados da pena aos ensaios do recruta inexperiente.
Nesse conceito de aplausos lisonjeia-me ver figurar a Imprensa Acadêmica e, com ela, um dos seus mais amenos e talentosos folhetinistas.
Reitero, meus bons amigos, os protestos da minha estima e admiração. MACHADO DE ASSIS
O VISCONDE DE CASTILHO
NÃO, NÃO ESTÁ de luto a língua portuguesa; a poesia não chora a morte do Visconde de Castilho. O golpe foi, sem dúvida, imenso; mas a dor não pôde resistir à glória; e ao ver resvalar no túmulo o poeta egrégio o mestre da língua, o príncipe da forma, após meio século de produção variada e rica, há um como deslumbramento que faria secar todas as lágrimas.
Longa foi a vida do Visconde de Castilho; a lista de seus escritos numerosíssima. O poeta dos Ciúmes de Bardo e da Noite do Castelo, o tradutor exímio de Ovídio, Virgílio e Anacreonte, de Shakespeare, Goethe e Molière, o contemporâneo de todos os gênios familiar com todas as glórias, ainda assim não sucumbiu no ócio a que lhe davam jus tantas páginas de eterna beleza. Caiu na liça, às mãos com o gênio de Cervantes, seu conterrâneo da península, que ele ia sagrar português, a quem fazia falar outra língua, não menos formosa e sonora que a do Guadalquivir.
A Providência fê-lo viver bastante para opulentar o tesouro do idioma natal, o mesmo de Garret e G. Dias, de Herculano e J. F. Lisboa, de Alencar e Rebelo da Silva. Morre glorificado, deixando a imensa obra que perfez à contemplação e exemplos das gerações vindouras. Não há lugar para pêsames, onde a felicidade é tamanha.
Pêsames, sim, e cordiais merece aquele outro talento possante, último de seus irmãos, que os viu morrer todos, no exílio ou na Pátria, e cuja alma, tão estreitamente vinculada à outra, tem direito e dever de pranteá-lo.
A língua e a poesia cobrem-lhe a campa de flores e sorriem orgulhosas do lustre que ele lhes dera. É assim que desaparecem da terra Tem entrada no paço, e reina no salão os homens imortais.
UM CÃO DE LATA AO RABO
ERA UMA VEZ um mestre-escola, residente em Chapéu d’Uvas, que se lembrou de abrir entre os alunos um torneio de composição e de estilo; idéia útil, que não somente afiou e desafiou as mais diversas ambições literárias, como produziu páginas de verdadeiro e raro.
merecimento.
— Meus rapazes, disse ele. Chegou a ocasião de brilhar e. mostrar que podem fazer alguma coisa. Abro o concurso, e dou quinze dias aos concorrentes. No fim dos quinze dias, quero ter em minha mão os trabalhos de todos; escolherei um júri para os examinar, comparar e premiar.
–Mas o assunto? perguntaram os rapazes batendo palmas alegria.
–Podia dar-lhes um assunto histórico; mas seria fácil, e eu quero experimentar a aptidão de cada um. Dou-lhes um assunto simples, aparentemente vulgar mas profundamente filosófico.
–Diga, diga.
–O assunto é este: — UM CÃO DE LATA AO RABO. Quero vê-los brilhar com opulências de linguagem e atrevimentos de idéia. Rapazes, à obra! Claro é que cada um pode apreciá-lo conforme o entender.
O mestre-escola nomeou um júri, de que eu fiz parte. Sete escritos foram submetidos ao nosso exame. Eram geralmente bons; mas três, sobretudo mereceram a palma e encheram de pasmo o júri e o mestre, tais eram– neste o arrojo do pensamento e a novidade do estilo, — naquele a pureza da linguagem e a solenidade acadêmica — naquele outro a erudição rebuscada e técnica, — tudo novidade, ao menos em Chapéu d’ Uvas.
Nós os classificamos pela ordem do mérito e do estilo. Assim, temos:
1.º Estilo antitético e asmático.
2.º Estilo ab ovo.
3.º Estilo largo e clássico.
Para que o leitor fluminense julgue por si mesmo de tais méritos, vou dar adiante os referidos trabalhos, até agora inéditos, mas já agora sujeitos ao apreço público.
I — ESTILO ANTITÉTICO E ASMÁTICO
O cão atirou-se com ímpeto. Fisicamente, o cão tem pés, quatro; moralmente, tem asas, duas. Pés: ligeireza na linha reta. Asas: ligeireza na linha ascensional. Duas forças, duas funções. Espádua de anjo no dorso de uma locomotiva.
Um menino atara a lata ao rabo do cão. Que é rabo? Um prolongamento e um deslumbramento. Esse apêndice, que é carne, é também um clarão. Di-lo a filosofia? Não; di-lo a etimologia. Rabo, rabino: duas idéias e uma só raiz. A etimologia é a chave do passado, como a filosofia é a chave do futuro.
O cão ia pela rua fora, a dar com a lata nas pedras. A pedra faiscava, a lata retinia, o cão voava. Ia como o raio, como o vento corno a idéia. Era a revolução, que transtorna, o temporal que derruba, o incêndio que devora. O cão devorava. Que devorava o cão? O espaço. o espaço é comida. O céu pôs esse transparente manjar ao alcance dos impetuosos. Quando uns jantam e outros jejuam; quando, em oposição às toalhas da casa nobre, há os andrajos da casa do pobre; quando em cima as garrafas choram lacrimachristi, e embaixo os olhos choram lágrimas de sangue, Deus inventou um banquete para a alma. Chamou-lhe espaço. Esse imenso azul, que esta entre a criatura e o criador, é o caldeirão dos grandes famintos. Caldeirão azul: antinomia, unidade.
O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim. De caminho envolveu-se nas pernas de um homem. O homem parou; o cão Parou: pararam diante um do outro. Contemplação única! Homo, canis. Um parecia dizer:
— Liberta-me! O outro parecia dizer:–Afasta-te! Após alguns instantes, recuaram ambos; o quadrúpede deslaçou-se do bípede. Canis levou a sua lata; homo levou a sua vergonha. Divisão eqüitativa. A vergonha é a lata ao rabo do caráter.
Então, ao longe, muito longe, troou alguma coisa funesta e miste-riosa. Era o vento, era o furacão que sacudia as algemas do infinito e rugia como uma imensa pantera. Após o rugido, o movimento, o ímpeto, a vertigem. O furacão vibrou, uivou, grunhiu. O mar catou o seu tumulto, a terra calou a sua orquestra. O furacão vinha retor-cendo as árvores, essas torres da natureza, vinha abatendo as torres, essas árvores da arte; e rolava tudo, e aturdia tudo, e ensurdecia tudo. A natureza parecia atônita de si mesma. O condor, que é o colibri dos Andes, tremia de terror, como o colibri. que é o condor das rosas. O furacão igualava o píncaro e a base. Diante dele o má-ximo e o mínimo eram uma só coisa: nada. Alçou o dedo e apagou o sol. A poeira cercava-o todo; trazia poeira adiante, atrás, à esquer-da, à direita; poeira em cima, poeira embaixo. Era o redemoinho, a convulsão, o arrasamento.
O cão, ao sentir o furacão, estacou. O pequeno parecia desafiar o grande. O finito encarava o infinito, não com pasmo, não com medo; — com desdém. Essa espera do cão tinha alguma coisa de sublime. Há no cão que espera uma expressão semelhante à tranqüilidade do leão ou à fixidez do deserto. Parando o cão, parou a lata. O furacão viu de longe esse inimigo quieto; achou-o sublime e desprezível. Quem era ele para o afrontar? A um quilômetro de distância, o cão investiu para o adversário. Um e outro entraram a devorar o espaço, o tempo, a luz. O cão levava a lata, o furacão trazia a poeira. Entre eles, e em redor deles, a natureza ficara extática, absorta, atônita.
Súbito grudaram-se. A poeira redemoinhou, a lata retiniu com o fragor das armas de Aquiles. Cão e furacão envolveram-se um no outro; era a raiva, a ambição, a loucura, o desvario; eram todas as forças, todas as doenças; era o azul, que dizia ao pó: és baixo; era o pó, que dizia ao azul: és orgulhoso. Ouvia-se o rugir, o latir, o retinir; e por cima de tudo isso, uma testemunha impassível, o Destino; e por baixo de tudo, uma testemunha risível, o Homem.
As horas voavam como folhas num temporal. O duelo prosseguia sem misericórdia nem interrupção. Tinha a continuidade das grandes cóleras. Tinha. a persistência das pequenas vaidades. Quando o fura-cão abria as largas asas, o cão arreganhava os dentes agudos. Arma por arma; afronta por afronta; morte por morte. Um dente vale uma asa. A asa buscava o pulmão para sufocá-lo; o dente buscava a asa para destruí-la. Cada uma dessas duas espadas implacáveis trazia a morte na ponta.
De repente, ouviu-se um estouro, um gemido, um grito de triunfo. A poeira subiu, o ar clareou, e o terreno do duelo apareceu aos olhos do homem estupefato. O cão devorara o furacão. O Pó Vencera o azul. O mínimo derrubara o máximo. Na fronte do vencedor havia uma aurora; na do vencido negrejava uma sombra. Entre ambas jazia, inútil, uma coisa: a lata.
II — ESTILO AB OVO
Um cão saiu de lata ao rabo. Vejamos primeiramente o que é o cão, o barbante e a lata; e vejamos, se é possível saber a origem do uso de pôr uma lata ao rabo do cão.
O cão nasceu no sexto dia. Com efeito, achamos no Gênesis, cap. 1, v. 24 e 25, que, tendo criado na véspera os peixes e as aves, Deus criou naqueles dias a bestas da terra e os animais domésticos, entre os quais figura o de que ora trato.
Não se pode dizer com acerto a data do barbante e da lata. Sobre o primeiro, encontramos no Êxodo, cap. XXVII, v.1, estas palavras de Jeová: “Farás dez cortinas de linho retorcido”, donde se pode inferir que ia se torcia o linho, e por conseguinte se usava o cordel. Da lata as induções são mais vagas. No mesmo livro do Êxodo, cap. -XXVII, v. 3, fala o profeta em caldeiras; mas logo adiante recomen-da que sejam de cobre. O que não é o nosso caso.
Seja como for, temos a existência do cão, provada pelo Gênesis, e a do barbante citada com verossimilhança no Êxodo. Não havendo prova cabal da lata, podemos crer, sem absurdo, que existe, visto o uso que dela fazemos.
Agora: –donde vem o uso de atar uma lata ao rabo do cão? Sobre este ponto a história dos povos semíticos é tão obscura como a dos povos arianos. O que se pode afiançar é que os Hebreus não o tiveram. Quando Davi (Reis, cap. V, v. 16) entrou na cidade a bailar defronte da arca, Micol, a filha de Saul, que o viu, ficou fazendo má idéia dele, por motivo dessa expansão coreográfica. Concluo que era um povo triste. Dos Babilônios suponho a mesma coisa, e a mesma dos Cananeus, dos Jabuseus, dos Amorreus, dos Filisteus, dos Fariseus, dos Heteus e dos Heveus.
Nem admira que esses povos desconhecessem o uso de que se trata. As guerras que traziam não davam lugar à criação o município, que é de data relativamente moderna; e o uso de atar a lata ao cão, há fundamento para crer que é contemporâneo do município, porquanto nada menos é que a primeira das liberdades municipais.
O Município é o verdadeiro alicerce da sociedade, do mesmo modo que a família o é do município. Sobre este ponto estão de acordo os mestres da ciência. Daí vem que as sociedades remotís-simas, se bem tivessem o elemento da família e o uso do cão, não tinham nem podiam ter o de atar a lata ao rabo desse digno compa-nheiro do homem, por isso que lhe faltava o município e as liberdades correlatas.
Na Ilíada não há episódio algum que mostre o uso da lata atada ao cão. O mesmo direi dos Vedas, do Popol-Vuh e dos livros de Confúncio. Num hino a Varuna (Rig-Veda, cap. I v. 2), fala-se em um “cordel atado embaixo”. Mas não sendo as palavras postas na boca do cão, e sim na do homem, é absolutamente impossível ligar esse texto ao uso moderno.
Que os meninos antigos brincavam, e de modo vário, é ponto incontroverso, em presença dos autores. Varrão, Cícero, Aquiles, Aúlio Gélio, Suetônio, Higino, Propércio, Marcila falam de diferen-tes objetos com que as crianças se entretinham, ou fossem bonecos, ou espadas de pau, ou bolas, ou análogos artifícios. Nenhum deles, entretanto, diz uma só palavra do cão de lata ao rabo. Será crível que, se tal gênero de divertimento houvera entre romanos e gregos, nenhum autor nos desse dele alguma notícia, quando o fator de haver Alcibíades cortado a cauda de um cão seu é citado solenemente no livro de Plutarco?
Assim explorada a origem do uso, entrarei no exame do assunto que… (Não houvera tempo para concluir)
III — ESTILO LARGO E CLÁSSICO
Larga messe de louros se oferece às inteligências altíloquas, que, no prélio agora encetado, têm de terçar armas temperadas e finais, ante o ilustre mestre e guia de nossos trabalhos; e, porquanto os apoucamentos do meu espírito me não permitem justar com glória, e quiçá me condenam a pronto desbaratamento, contento-me em seguir de longe a trilha dos vencedores, dando-lhes as palmas da admiração.
Manha foi sempre puerícia atar uma lata ao apêndice posterior do cão: e essa manha, não por certo louvável, é quase certo que a tiveram os párvulos de Atenas, não obstante ser a abelha-mestra da antigüidade, cujo mel ainda hoje gosta o paladar dos sabedores.
Tinham alguns infantes, por brinco e gala, atado uma lata a um cão, dando assim folga a aborrecimentos e enfados de suas tarefas escolares. Sentindo a mortificação do barbante, que lhe prendia a lata, e assustado com o soar da lata nos seixos do caminho, o cão ia tão cego e desvairado, que a nenhuma coisa ou pessoa parecia atender.
Movidos da curiosidade, acudiam os vizinhos às portas de suas vivendas, e, longe de sentirem a compaixão natural do homem quando vê padecer outra criatura, dobravam os agastamentos do cão com surriadas e vaias. O cão perlustrou as ruas, saiu aos campos, aos andurriais, até entestar com uma montanha, em cujos alcantilados píncaros desmaiava o sol, e ao pé de cuja base um mancebo apascoava o seu gado.
Quis o Supremo Opífice que este mancebo fosse mais compassivo que os da cidade, e fizesse acabar o suplício do cão. Gentil era ele, de olhos brandos e não somenos em graça aos da mais formosa donzela. Com o cajado ao ombro, e sentado num pedaço de rochedo, manuseava um tomo de Virgílio, seguindo com o pensamento a trilha daquele caudal engenho. Apropinquando-se o cão do mancebo, este lhe lançou as mãos e o deteve. O mancebo varreu jogo da memória o poeta e o gado, tratou de desvincular a lata do cão e o fez em poucos minutos, com mor destreza e paciência.
O cão, aliás vultoso, parecia haver desmedrado fortemente, depois a malícia dos meninos o pusera em tão apertadas andanças. Livre da lata, lambeu as mãos do mancebo, que o tomou Para si, dizendo: — De ora avante, me acompanharás ao pasto.
Folgareis certamente com o caso que deixo narrado, embora não possa o apoucado e rude estilo do vosso condiscípulo dar ao quadro os adequados toques. Feracíssimo é o campo para engenhos de mais alto quilate; e, embora abastado de urzes, e porventura coberto de trevas, a imaginação dará o fio de Ariadne com que sói vencer os mais complicados labirintos.
Entranhado anelo me enche de antecipado gosto, por ler os produtos de vossas inteligências, que serão em tudo dignos do nosso digno mestre, e que desafiarão a fouce da morte colhendo vasta seara de louros imarcessíveis com que engrinaldareis as fontes imortais.
Tais são os três escritos; dando-os ao prelo, fico tranqüilo com a minha consciência; revelei três escritores.
FILOSOFIA DE UM PAR DE BOTAS
UMA DESTAS TARDES, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou-me dar um passeio à Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama digerir em paz. Ali fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me sentar, e nenhum fôlego vivo nem morto. — Nem morto, felizmente. Sentei-me, alonguei os olhos, espreguicei a alma, respirei à larga, e disse ao estômago: — Digere a teu gosto, meu velho companheiro. Deus nobis haec otia fecit.
Digeria o estômago, enquanto o cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo neste mundo se resolve na mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei logo que havia, a poucos passos de mim, um par de coturnos velhos e imprestáveis. Um e outro tinham a sola rota, o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens camba, ou para um ou para outro lado. Um dos coturnos (digamos botas, que não lembra tanto a tragédia), uma das botas tinha um rasgão de calo. Ambas estavam maculadas de lama velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.
Olhando casulmente para as botas, entrei a considerar as vicitudes humanas, e a conjeturar qual seria a vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço um rumor de vozes surdas; em seguida, ouvi sílabas, palavras, frases, períodos; e não havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era ventríloquo; e já podem ver se fiquei consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que falavam entre si, suspiravam e riam, mostrando em vez de dentes, umas Pontas de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido; eis o que diziam as botas:
BOTA ESQUERDA — Ora, pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.
BOTA DIREITA– Um pouco? Todo o resto da nossa vida, que não há de ser muito grande; mas enfim, algum descanso nos trouxe a velhice. Que destino! Uma praia! Lembras-te do tempo em que brilhávamos na vidraça da Rua do Ouvidor?
BOTA ESQUERDA — Se me lembro! Quero até crer que éramos as mais bonitas de todas. Ao menos na elegância…
BOTA DIREITA — Na elegância, ninguém nos vencia.
BOTA ESQUERDA — Pois olha que havia muitas outras, e presumidas, sem contar aquelas botinas cor de chocolate … aquele par …
BOTA DIREITA — O dos botões de madrepérola?
BOTA ESQUERDA –Esse.
BOTA DIREITA– O daquela viúva?
BOTA ESQUERDA — O da viúva.
BOTA DIREITA — Que tempo! Éramos novas, bonitas, asseadas; de quando em quando, uma passadela de pano de linho, que era uma consolação. No mais, plena ociosidade. Bom tempo, mana, bom tempo! Mas, bem dizem os homens: não há bem que sempre dure, nem mal que se não acabe.
BOTA ESQUERD — O certo é que ninguém nos inventou para vivermos novas toda vida. Mais de uma pessoa ali foi experimentar nós; éramos calçadas com cuidado, postas sobre um tapete, até que um dia, o Dr. Crispim passou, viu-nos, entrou e calçou-nos. Eu, de raivosa, apertei-lhe um pouco os dois calos.
BOTA DIREITA — Sempre te conheci pirracenta.
BOTA ESQUERDA — Pirracenta, mas infeliz. Apesar do apertão, o Dr. Crispim levou-nos.
BOTA DIREITA — Era bom homem, o Dr. Crispim; muito nosso amigo. Não dava caminhadas largas, não dançava. Só jogava o voltarete até tarde, duas e três horas da madrugada; mas, como o divertimento parado, não nos incomodava muito. E depois na pontinha dos pés, para não acordar a mulher. Lembras-te?
BOTA ESQUERDA — Ora! por sinal que a mulher fingia dormir para lhe não tirar as ilusões. No dia seguinte ele contava que estivera na maçonaria. Santa senhora!
BOTA DIREITA — Santo casal! Naquela casa fomos sempre felizes, sempre! E a gente que eles freqüentavam? Quando não havia tapetes, havia palhinha; pisávamos o macio, o limpo, o asseado. Andávamos de carro muita vez, e eu gosto tanto de carro’ Estivemos ali uns quarenta dias, não?
BOTA ESQUERDA — Pois então! Ele gastava mais sapatos do que a Bolívia gasta constituições.
BOTA DIREITA — Deixemos nos de política.
BOTA ESQUERDA –Apoiado.
BOTA DIREITA (com força) — Deixemo-nos de política, já disse!
BOTA ESQUERDA (sorrindo)– Mas um pouco de política debaixo da mesa?… Nunca te contei… contei, sim… o caso das botinas cor de chocolate… as da viúva…
BOTA DIREITA — Da viúva, para quem o Dr. Crispim quebrava muito os olhos? Lembra-me que estivemos juntas, num jantar do Comendador Plácido. As botinas viram-nos logo, e nós daí a pouco as vimos também, porque a viúva, como tinha o pé pequeno, andava a mostrá-lo a cada passo. Lembra-me também que, à mesa, conversei muito com uma das botinas. O Dr. Crispim. sentara-se ao pé do comendador e defronte da viúva; então, eu fui direita a uma delas e falamos, falamos pelas tripas de Judas… A princípio, não; a princípio ela fez-se de boa; e toquei-lhe no bico, respondeu-me zangada “Vá-se, me deixe!” Mas eu insisti, perguntei-lhe por onde tinha andado, disse-lhe que estava ainda muito bonita, muito conservada; ela foi-se amansando, buliu com o bico, depois com o tacão, pisou em mim, eu pisei nela e não te digo mais…
BOTA ESQUERDA– Pois é justamente o que eu queria contar…
BOTA DIREITA –Também conversaste?
BOTA ESQUERDA — Não; ia conversar com a outra. Escorreguei devagarinho, muito evagarinho, com cautela, por causa da bota do comendador.
BOTA DIREITA–Agora me lembro: Pisaste a bota do comendador.
BOTA ESQUERDA– A bota? Pisei o calo. O comendador: Ui! As senhoras: Ai! Os homens: Hein? E eu recuei; e o Dr. Crispim ficou muito vermelho, muito vermelho …
BOTA DIREITA — Parece que foi castigo. No dia seguinte o Dr. Crispim deu-nos de presente a um procurador de poucas causas.
BOTA ESQUERDA– Não me fales! Isso foi a nossa desgraça! Um procurador! Era o mesmo que dizer: mata-me estas botas; esfrangalha-me estas botas!
BOTA DIREITA — Dizes bem. Que roda viva! Era da Relação para os escrivães, dos escrivães para os juízes, dos juízes para os advogados, dos advogados para as partes (embora poucas), das partes para a Relação, da Relação para os escrivães…
BOTA ESQUERDA — Et caetera. E as chuvas! E as lamas! Foi o procurador quem primeiro me deu este corte para desabafar um calo. Fiquei asseada com esta janela à banda.
BOTA DIREITA –Durou pouco; passamos então para o fiel de feitos, que no fim de três semanas nos transferiu ao remendão. O remendão (ali! já nãoera a Rua do Ouvidor!) deu-nos alguns pontos, tapou-nos este buraco, e impingiu-nos ao aprendiz de barbeiro do Beco dos Aflitos.
BOTA DIREITA — Com esse havia pouco que fazer de dia, mas de noite…
BOTA ESQUERDA — No curso de dança; lembra-me. O diabo do rapaz valsava como quem se despede da vida. Nem nos comprou para outra coisa, porque para os passeios tinha um par de botas novas, de verniz e bico fino. Mas para as noites… Nós éramos as botas do curso…
BOTA DIREITA — Que abismo entre o curso e os tapetes do Dr. Crispim …
BOTA ESQUERDA — Coisas!
BOTA DIREITA — Justiça, justiça; o aprendiz não nos escovava, não tínhamos o suplício da escova. Ao menos, por esse lado, a nossa vida era tranqüila.
BOTA ESQUERDA — Relativamente creio. Agora, que era alegre não há dúvida; em todo caso, era muito melhor que a outra que nos esperava.
BOTA DIREITA — Quando fomos parar às mãos…
BOTA ESQUERDA — Aos pés.
BOTA DIREITA — Aos pés daquele servente das obras públicas. Daí fomos atiradas à rua, onde nos apanhou um preto padeiro, que nos reduziu enfim a este último estado! Triste! triste!
BOTA ESQUERDA –Tu queixas-te, mana?
BOTA DIREITA — Se te parece!
BOTA ESQUERDA — Não sei; se na verdade é triste acabar assim tão miseravelmente, numa praia, esburacadas e rotas, sem tacões nem ilusões, por outro lado, ganhamos a paz, e a experiência.
BOTA DIREITA — A paz? Aquele mar pode lamber-nos de um relance.
BOTA ESQUERDA — Trazer-nos-á outra vez à praia. Demais, está longe.
BOTA DIREITA — Que eu, na verdade, quisera descansar agora estes últimos dias; mas descansar sem saudades, sem a lembrança do que foi. Viver tão afagadas, tão admiradas na vidraça do autor dos nossos dias; passar uma vida feliz em casa do nosso primeiro dono, suportável na casa dos outros; e agora…
BOTA ESQUERDA — Agora quê?
BOTA DIREITA — A vergonha, mana.
BOTA ESQUERDA — Vergonha, não. Podes crer, que fizemos felizes aqueles a quem calçamos; ao menos, na nossa mocidade. Tu que pensas? Mais de um, não olha para suas idéias com a mesma satisfação com que olha para suas botas. Mana, a bota é a metade da circunspecção; em todo o caso é a base da sociedade civil…
BOTA DIREITA — Que estilo! Bem se vê que nos calçou um advogado.
BOTA ESQUERDA — Não reparaste que, à medida que íamos envelhecendo, éramos menos cumprimentadas?
BOTA DIREITA — Talvez.
BOTA ESQUERDA — Éramos, e o chapéu não se engana. O chapéu fareja a bota… Ora, pois! Viva a liberdade! Viva a paz! Viva a velhice! (A Bota Direita abana tristemente o cano). Que tens?
BOTA DIREITA — Não posso; por mais que queira, não posso afazer-me a isto. Pensava que sim, mas era ilusão … Viva a paz e a velhice, concordo; mas há de ser sem as recordações do passado…
BOTA ESQUERDA — Qual passado? O de ontem ou o de anteontem? O do advogado ou o do servente?
BOTA DIREITA — Qualquer; contanto que nos calçassem. O mais reles pé de homem é sempre um pé de homem.
BOTA ESQUERDA — Deixa-te disso; façamos da nossa velhice uma coisa útil e respeitável.
BOTA DIREITA — Respeitável, um par de botas velhas! Útil, par de botas velhas! Que utilidade? Que respeito? Não vês que os homens tiraram de nós o que podiam, e quando não valíamos um caracol mandaram deitar-nos à margem? Quem é que nos há de respeitar? – aqueles mariscos?
(olhando para mim) Aquêle sujeito- que está ali com os olhos assombrados?
BOTA ESQUERDA — Vanitas! Vanitas!
BOTA DIREITA — Que dizes tu?
BOTA ESQUERDA — Quero dizer que és vaidosa, apesar de muito acalcanhada, e que devemos dar-nos por felizes com esta aposentadoria, lardeada de algumas recordações.
BOTA DIREITA — Onde estarão a esta hora as botinas da viúva?
BOTA ESQUERDA — Quem sabe lá! Talvez outras botas conversem com outras botinas… Talvez: é a lei do mundo; assim caem os Estados e as instituições. Assim perece a beleza e a mocidade. Tudo botas, mana; tudo botas, com tacões ou sem tacões, novas ou velhas, direita ou acalcanhadas, lustrosas ou ruças, mas botas, botas, botas!
Neste ponto calaram-se as duas interlocutoras, e eu fiquei a olhar para uma e outra, a esperar se diziam alguma coisa mais. Nada; estavam pensativas.
Deixei-me ficar assim algum tempo, disposto a lançar mão delas, e levá-las Para casa com o fim de as estudar, interrogar, e depois escrever uma memória, que remeteria a todas as academias do mundo. Pensava também em as apresentar nos circos de cavalinhos, ou ir vendê-las a Nova Iorque. Depois, abri mão de todos esses projetos. Se elas queriam a paz, uma velhice sossegada, por que motivo iria eu arrancá-las a essa justa paga de uma vida cansada e laboriosa? Tinham servido tanto! Tinham rolado todos os degraus da escala social; chegavam ao último, a praia, a triste Praia de Santa Luzia… Não, velhas botas! Melhor é que fiqueis aí no derradeiro descanso.
Nisto vi chegar um sujeito maltrapilho; era um mendigo. Pediu-me urna esmola; dei-lhe um níquel.
MENDIGO — Deus lhe pague meu senhor! (Vendo as botas) Um par de botas! Foi um anjo que as pôs aqui…
EU (ao mendigo) — Mas, espere…
MENDIGO — Espere o que? Se lhe digo que estou descalço! (Pegando tias botas) Estão bem boas! Cosendo-se isto aqui, com um barbante…
BOTA DIREITA — Que é isto, mana? Que é isto? Alguém pega em nós… Eu sinto-me no ar…
BOTA ESQUERDA — É um mendigo.
BOTA DIREITA– Um mendigo? Que quererá ele?
BOTA DIREITA (alvoroçada) — Será possível?
BOTA ESQUERDA — Vaidosa!
BOTA DIREITA — Ah! Mana! Esta é a filosofia verdadeira: — Não há bota velha que não encontre um pé cambaio.
ELOGIO DA VAIDADE
LOGO QUE A MODÉSTIA acabou de falar, com os olhos no chão, a Vaidade empertigou-se e disse:
I
Damas e cavalheiros, acabais de ouvir a mais chocha de todas as virtudes, a mais peca, a mais estéril de quantas podem reger o coração dos homens; e ides ouvir a mais sublime delas, a mais fecunda, a mais sensível, a que pode dar maior cópia de venturas sem contraste.
Que eu sou a Vaidade, classificada entre os vícios por alguns retóricos de profissão; mas na realidade, a primeira das virtudes. Não olheis para este gorro de guizos, nem para estes punhos carregados de braceletes, nem para estas cores variegadas com que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o preconceito da Modéstia; mas se o não tendes, reparai bem que estes guizos e tudo mais, longe de ser uma casca ilusória e vã, são a mesma polpa do fruto da sabedoria; e reparai mais que vos chamo a todos, sem os bicocos e meneios daquela senhora, minha mana e minha rival.
Digo a todos, porque a todos cobiço, ou sejais formosos como Paris, ou feios como Tersites, gordos como Pança, magros como Quixote, varões e mulheres, grandes e pequenos, verdes e maduros, todos os que compondes este mundo, e haveis de compor o outro; a todos falo, como a galinha fala aos seus pintinhos, quando os convoca à refeição, a saber, com Interesse, com graça, com amor. Porque nenhum, ou raro, poderá afirmar que eu o não tenha alçado ou consolado.
II
Onde é que eu não entro? Onde é que eu não mando alguma coisa? Vou do salão do rico ao albergue do pobre, do palácio ao cortiço, da seda fina e roçagante ao algodão escasso e grosseiro. Faço exceções, é certo (infelizmente!); mas, em geral, tu que possuis, busca-me no encosto da tua otomana, entre as porcelanas da tua baixela, na portinhola da tua carruagem; que digo? Busca-me em ti mesmo, nas tuas botas, na tua casaca. no teu bigode; busca-me no teu próprio coração. Tu, que não possuis nada, perscruta bem as dobras da tua estamenha, os recessos da tua velha arca; lá me acharás entre dois vermes famintos; ou ali, ou no fundo dos teus sapatos sem graxa, ou entre os fios da tua grenha sem óleo.
Valeria a pena ter, se eu não realçasse os teres? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que mandaste vir de tão longe esse vaso opulento? Foi Para escondê-lo ou mostrá-lo, que encomendaste à melhor fábrica o tecido que te veste, a safira que te arreia, a carruagem que te leva? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que ordenaste esse festim babilônio e pediste ao pomar os melhores vinhos? E tu, que nada tens, por que aplicas o salário de uma semana ao jantar de uma hora, senão porque eu te possuo e te digo que alguma coisa deves parecer melhor do que és na realidade? Por que levas ao teu casamento um coche, tão rico e tão caro, como o do teu opulento vizinho, quando podias ir à igreja com teus pés? Por que compras essa jóia e esse chapéu? Por que talhas o teu vestido pelo padrão mais rebuscado, e por que te remiras ao espelho com amor, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada, dando-te a troco de um sacrifício grande um benefício ainda maior?
III
Quem é esse que aí vem, com os olhos no eterno azul? É um poeta; vem compondo alguma coisa; segue o vôo caprichoso da estrofe. — Deus te salve, Píndaro! Estremeceu; moveu a fronte, desabrochou em riso. Que é da inspiração? Fugiu-lhe; a estrofe perdeu-se entre as moitas; a rima esvaiu-se-lhe por entre os dedos da memória. Não importa; fiquei eu com ele, — eu, a musa décima, e, portanto, o conjunto de todas as musas, pela regra dos doutores, de Sganarello. Que ar beatífico! Que satisfação sem mescla! Quem dirá a esse homem que uma guerra ameaça levar um milhão de outros homens? Quem dirá que a seca devora uma porção do país? Nesta ocasião ele nada sabe, nada ouve. Ouve-me, ouve-se; eis tudo.
Um homem caluniou-o há tempos; mas agora, ao voltar a esquina, dizem-lhe que o caluniador o elogiou.
— Não me fales nesse maroto.
— Elogiou-te; disse que és um poeta enorme.
— Outros o têm dito, mas são homens de bem, e sinceros. Será ele sincero?
— Confessa que não conhece poeta maior.
— Peralta! Naturalmente arrependeu-se da injustiça que me fez. Poeta enorme, disse ele.
— O maior de todos.
— Não creio. O maior?
— O maior.
— Não contestarei nunca os seus méritos; não sou como ele que me caluniou; isto é, não sei, disseram-mo. Diz-se tanta mentira! Tem gosto o maroto; é um pouco estouvado às vezes, mas tem gosto. Não contestarei nunca os seus méritos. Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões? Que eu não lhe tenho ódio. Oh! nenhum ódio. É estouvado, mas imparcial.
Uma semana depois, vê-lo-eis de braço com o outro, à mesa do café, à mesa do jogo, alegres, íntimos, perdoados. E quem embotou esse ódio velho, senão eu? Quem verteu o bálsamo do esquecimento nesses dois corações irreconciliáveis? Eu, a caluniada amiga do gênero humano.
Dizem que o meu abraço dói. Calúnia, amados ouvintes! Não escureço a verdade; às vezes há no mel uma pontazinha de fel; mas como eu dissolvo tudo! Chamai aquele mesmo poeta, não Píndaro, mas Trissotin. Vê-lo-eis derrubar o carão, estremecer, rugir, morder-se como os zoilos de Bocage. Desgosto. Convenho, mas desgosto curto. Ele irá dali remirar-se nos próprios livros. A justiça que um atrevido lhe negou, não lha negarão as páginas dele. Oh! A mãe que gerou o filho, que o amamenta e acalenta, que põe nessa frágil criaturinha o mais puro de todos os amores, essa mãe é Medéia, se a compararmos àquele engenho, que se consola da injúria, relendo-se: porque se o amor de mãe e a mais elevada forma do altruísmo, o dele é a mais profunda forma de egoísmo, e só há uma coisa mais forte que o amor materno, é o amor de si próprio.
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