Poesias – Alberto de Oliveira

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A Alma dos Vinte Anos

A alma dos meus vinte anos noutro dia
Senti volver-me ao peito, e pondo fora
A outra, a enferma, que lá dentro mora,
Ria em meus lábios, em meus olhos ria.

Achava-me ao teu lado então, Luzia,
E da idade que tens na mesma aurora;
A tudo o que já fui, tornava agora,
Tudo o que ora não sou, me renascia.

Ressenti da paixão primeira e ardente
A febre, ressurgiu-me o amor antigo
Com os seus desvarios e com os seus enganos…

Mas ah! quando te foste, novamente
A alma de hoje tornou a ser comigo,
E foi contigo a alma dos meus vinte anos.

A Casa da Rua Abílio

A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade

Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.

Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falaram,

E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.

Afrodite I

Móvel, festivo, trépido, arrolando,
À clara voz, talvez da turba iriada
De sereias de cauda prateada,
Que vão com o vento os carmes concertando,

O mar, – turquesa enorme, iluminada,
Era, ao clamor das águas, murmurando,
Como um bosque pagão de deuses, quando
Rompeu no Oriente o pálio da alvorada.

As estrelas clarearam repentinas,
E logo as vagas são no verde plano
Tocadas de ouro e irradiações divinas;

O oceano estremece, abrem-se as brumas,
E ela aparece nua, à flor de oceano,
Coroada de um círculo de espumas.

Afrodite II

Cabelo errante e louro, a pedraria
Do olhar faiscando, o mármore luzindo
Alvirróseo do peito, – nua e fria,
Ela é a filha do mar, que vem sorrindo.

Embalaram-na as vagas, retinindo,
Ressoantes de pérolas, – sorria
Ao vê-la o golfo, se ela adormecia
Das grutas de âmbar no recesso infindo.

Vede-a: veio do abismo! Em roda, em pêlo
Nas águas, cavalgando onda por onda
Todo o mar, surge um povo estranho e belo;

Vêm a saudá-la todos, revoando,
Golfinhos e tritões, em larga ronda,
Pelos retorsos búzios assoprando.

A Janela e o Sol

“Deixa-me entrar, – dizia o sol – suspende
A cortina, soabre-te! Preciso
O íris trêmulo ver que o sonho acende
Em seu sereno virginal sorriso.

Dá-me uma fresta só do paraíso
Vedado, se o ser nele inteiro ofende…
E eu, como o eunuco, estúpido, indeciso,
Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende.”

E, fechando mais, zelosa e firme,
Respondia a janela: “Tem-te, ousado!
Não te deixo passar! Eu, néscia, abri-me!

E esta que dorme, sol, que não diria
Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,
E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?!”

Aspiração

Ser palmeira! existir num píncaro azulado,

Vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando;

Dar ao sopro do mar o seio perfumado,

Ora os leques abrindo, ora os leques fechando;

Só de meu cimo, só de meu trono, os rumores

Do dia ouvir, nascendo o primeiro arrebol,

E no azul dialogar com o espírito das flores,

Que invisível ascende e vai falar ao sol;

Sentir romper do vale e a meus pés, rumorosa,

Dilatar-se a cantar a alma sonora e quente

Das árvores, que em flor abre a manhã cheirosa,

Dos rios, onde luz todo o esplendor do Oriente;

E juntando a essa voz o glorioso murmúrio

De minha fronde e abrindo ao largo espaço os véus

Ir com ela através do horizonte purpúreo

E penetrar nos céus;

Ser palmeira, depois de homem ter sido esta alma

Que vibra em mim, sentir que novamente vibra,

E eu a espalmo a tremer nas folhas, palma a palma,

E a distendo, a subir num caule, fibra a fibra:

E à noite, enquanto o luar sobre os meus leques

treme, E estranho sentimento, ou pena ou mágoa ou dó,

Tudo tem e, na sombra, ora ou soluça ou geme,

E a distendo, a subir num caule, fibra a fibra;

Que bom dizer então bem alto ao firmamento

O que outrora jamais — homem — dizer não pude,

Da menor sensação ao máximo tormento

Quanto passa através minha existência rude!

E, esfolhando-me ao vento, indômita e selvagem,

Quando aos arrancos vem bufando o temporal,

— Poeta — bramir então à noturna bafagem,

Meu canto triunfal!

E isto que aqui digo então dizer: — que te amo,

Mãe natureza! mas de modo tal que o entendas,

Como entendes a voz do pássaro no ramo

E o eco que têm no oceano as borrascas tremendas;

E pedir que, o uno sol, a cuja luz referves,

Ou no verme do chão ou na flor que sorri,

Mais tarde, em qualquer tempo, a minh’alma conserves,

Para que eternamente eu me lembre de til

A vingança da Porta

Era um hábito antigo que ele tinha:

Entrar dando com a porta nos batentes.

— Que te fez essa porta? a mulher vinha

E interrogava. Ele cerrando os dentes:

— Nada! traze o jantar! — Mas à noitinha

Calmava-se; feliz, os inocentes

Olhos revê da filha, a cabecinha

Lhe afaga, a rir, com as rudes mãos trementes.

Urna vez, ao tornar à casa, quando

Erguia a aldraba, o coração lhe fala:

Entra mais devagar… — Pára, hesitando…

Nisto nos gonzos range a velha porta,

Ri-se, escancara-se. E ele vê na sala,

A mulher como doida e a filha morta.

Cheiro de Espádua

“Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava,
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.

Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixão, eu, que a beijava,
Hauri sequiosa toda a essência dela!

Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh! ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.

E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que à luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!”

Choro de Vagas

Não é de águas apenas e de ventos,
No rude som, formada a voz do Oceano.
Em seu clamor – ouço um clamor humano;
Em seu lamento – todos os lamentos.

São de náufragos mil estes acentos,
Estes gemidos, este aiar insano;
Agarrados a um mastro, ou tábua, ou pano,
Vejo-os varridos de tufões violentos;

Vejo-os na escuridão da noite, aflitos,
Bracejando ou já mortos e de bruços,
Largados das marés, em ermas plagas…

Ah! que são deles estes surdos gritos,
Este rumor de preces e soluços
E o choro de saudades destas vagas!

Flor de Caverna

Fica às vezes em nós um verso a que a ventura
Não é dada jamais de ver a luz do dia;
Fragmento de expressão de idéia fugidia,
Do pélago interior bóia na vaga escura.

Sós o ouvimos conosco; à meia voz murmura,
Vindo-nos da consciência a flux, lá da sombria
Profundeza da mente, onde erra e se enfastia,
Cantando, a distrair os ócios da clausura.

Da alma, qual por janela aberta par e par,
Outros livre se vão, voejando cento e cento
Ao sol, à vida, à glória e aplausos. Este não.

Este aí jaz entaipado, este aí jaz a esperar
Morra, volvendo ao nada, – embrião de pensamento
Abafado em si mesmo e em sua escuridão.

Horas Mortas

Breve momento após comprido dia
De incômodos, de penas, de cansaço
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia.

Desta janela aberta, à luz tardia
Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparência azul da noite fria.

Chegas. O ósculo teu me vivifica
Mas é tão tarde! Rápido flutuas
Tornando logo à etérea imensidade;

E na mesa em que escrevo apenas fica
Sobre o papel – rastro das asas tuas,
Um verso, um pensamento, uma saudade.

Luva Abandonada

Uma só vez calçar-vos me foi dado,
Dedos claros! A escura sorte minha,
O meu destino, como um vento irado,
Levou-vos longe e me deixou sozinha!

Sobre este cofre, desta cama ao lado,
Murcho, como uma flor, triste e mesquinha,
Bebendo ávida o cheiro delicado
Que aquela mão de dedos claros tinha.

Cálix que a alma de um lírio teve um dia
Em si guardada, antes que ao chão pendesse,
Breve me hei de esfazer em poeira, em nada…

Oh! em que chaga viva tocaria
Quem nesta vida compreender pudesse
A saudade da luva abandonada!

O Pior dos Males

Baixando à Terra, o cofre em que guardados
Vinham os Males, indiscreta abria
Pandora. E eis deles desencadeados
À luz, o negro bando aparecia.

O Ódio, a Inveja, a Vingança, a Hipocrisia,
Todos os Vícios, todos os Pecados
Dali voaram. E desde aquele dia
Os homens se fizeram desgraçados.

Mas a Esperança, do maldito cofre
Deixara-se ficar presa no fundo,
Que é última a ficar na angústia humana…

Por que não voou também? Para quem sofre
Ela é o pior dos males que há no mundo,
Pois dentre os males é o que mais engana.

Soneto

Agora é tarde para novo rumo
Dar ao sequioso espírito; outra via
Não terei de mostrar-lhe e à fantasia
Além desta em que peno e me consumo.

Aí, de sol nascente a sol a prumo,
Deste ao declínio e ao desmaiar do dia,
Tenho ido empós do ideal que me alumia,
A lidar com o que é vão, é sonho, é fumo.

Aí me hei de ficar até cansado
Cair, inda abençoando o doce e amigo
Instrumento em que canto e a alma me encerra;

Abençoando-o por sempre andar comigo
E bem ou mal, aos versos me haver dado
Um raio do esplendor de minha terra.

Taça de Coral

Lícias, pastor — enquanto o sol recebe,

Mugindo, o manso armento e ao largo espraia.

Em sede abrasa, qual de amor por Febe,

— Sede também, sede maior, desmaia.

Mas aplacar-lhe vem piedosa Naia

A sede d’água: entre vinhedo e sebe

Corre uma linfa, e ele no seu de faia

De ao pé do Alfeu tarro escultado bebe.

Bebe, e a golpe e mais golpe: — “Quer ventura

(Suspira e diz) que eu mate uma ânsia louca,

E outra fique a penar, zagala ingrata!

Outra que mais me aflige e me tortura,

E não em vaso assim, mas de uma boca

Na taça de coral é que se mata”

Terceiro Canto

Cajás! Não é que lembra à Laura um dia
(Que dia claro! esplende o mato e cheira!)
Chamar-me para em sua companhia
Saboreá-los sob a cajazeira!

– Vamos sós? perguntei-lhe. E a feiticeira:
– Então! tens medo de ir comigo? – E ria.
Compõe as tranças, salta-me ligeira
Ao braço, o braço no meu braço enfia.

– Uma carreira! – Uma carreira! – Aposto!
A um sinal breve dado de partida,
Corremos. Zune o vento em nosso rosto.

Mas eu me deixo atrás ficar, correndo,
Pois mais vale que a aposta da corrida
Ver-lhe as saias a voar, como vou vendo.

Última deusa

Foram-se os deuses, foram-se, eu verdade;
Mas das deusas alguma existe, alguma
Que tem teu ar, a tua majestade,
Teu porte e aspecto, que és tu mesma, em suma.

Ao ver-te com esse andar de divindade,
Como cercada de invisível bruma,
A gente à crença antiga se acostuma
E do Olimpo se lembra com saudade.

De lá trouxeste o olhar sereno e garço,
O alvo colo onde, em quedas de ouro tinto,
Rútilo rola o teu cabelo esparto…

Pisas alheia terra… Essa tristeza
Que possuis é de estátua que ora extinto
Sente o culto da forma e da beleza.

Vaso Chinês

Estranho mimo aquele vaso! Vi-o,

Casualmente, uma vez, de um perfumado

Contador sobre o mármor luzidio,

Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,

Nele pusera o coração doentio

Em rubras flores de um sutil lavrado,

Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura,

Quem o sabe?… de um velho mandarim

Também lá estava a singular figura.

Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a,

Sentia um não sei quê com aquele chim

De olhos cortados à feição de amêndoa.

Vaso Grego

Esta de áureos relevos, trabalhada

De divas mãos, brilhante copa, um dia,

Já de aos deuses servir como cansada,

Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que o suspendia

Então, e, ora repleta ora esvasada,

A taça amiga aos dedos seus tinia,

Toda de roxas pétalas colmada.

Depois… Mas, o lavor da taça admira,

Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas

Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,

Ignota voz, qual se da antiga lira

Fosse a encantada música das cordas,

Qual se essa voz de Anacreonte fosse.

Vestígios Divinos

(Na Serra de Marumbi)

Houve deuses aqui, se não me engano;
Novo Olimpo talvez aqui fulgia;
Zeus agastava-se, Afrodite ria,
Juno toda era orgulho e ciúme insano.

Nos arredores, na montanha ou plano,
Diana caçava, Actéon a perseguia.
Espalhados na bruta serrania,
Inda há uns restos da forja de Vulcano.

Por toda esta extensíssima campina
Andaram Faunos, Náiades e as Graças,
E em banquete se uniu a grei divina.

Os convivas pagãos ainda hoje os topas
Mudados em pinheiros, como taças,
No hurra festivo erguendo no ar as copas.

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