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12 de Setembro
I
O sol oriental brilha nas nuvens,
Mais docemente a viração murmura
E mais doce no vale a primavera
Saudosa e juvenil é toda em rosa…
Como os ramos sem folhas
Do pessegueiro em flor.
Ergue-te, minha noiva, ó natureza!
Somos sós — eu e tu: — acorda e canta
No dia de meus anos!
II
Debalde nos meus sonhos de ventura
Tento alentar minha esperança morta
E volto-me ao porvir…
A minha alma só canta a sepultura
E nem última ilusão beija e conforta
Meu ardente dormir…
III
Tenho febre… meu cérebro transborda.
Eu morrerei mancebo, inda sonhando
Da esperança o fulgor…
Oh! cantemos ainda: a última corda
Treme na lira… morrerei cantando
O meu único amor!
IV
Meu amor foi o sol que madrugava
O canto matinal da cotovia
E a rosa predileta…
Fui um louco, meu Deus, quando tentava
Descorado e febril nodoar na orgia
Os sonhos de poeta…
V
Meu amor foi a verde laranjeira
Que ao luar orvalhoso entreabre as flores,
Melhor que ao meio-dia,
As campinas, a lua forasteira,
Que triste, como eu sou, sonhando amores
Se embebe de harmonia.
VI
Meu amor!… foi a mãe que me alentava,
Que viveu e esperou por minha vida
E pranteia por mim…
E a sombra solitária que eu sonhava
Lânguida como vibração perdida
De roto bandolim…
VII
Eu vaguei pela vida sem conforto,
Esperei o meu anjo noite e dia
E o ideal não veio…
Farto de vida, breve serei morto…
Não poderei ao menos na agonia
Descansar-lhe no seio…
VIII
Passei como Don Juan entre as donzelas,
Suspirei as canções mais doloridas
E ninguém me escutou…!
Oh! nunca à virgem flor das faces belas
Sorvi o mel nas longas despedidas…
Meu Deus! ninguém me amou!
IX
Vivi na solidão!… odeio o mundo
E no orgulho embucei meu rosto pálido
Como um astro na treva…
Senti a vida um lupanar imundo:
Se acorda o triste profanado, esquálido
— A morte fria o leva…
X
E quantos vivos não caíram frios,
Manchados de embriaguez da orgia em meio
Nas infâmias do vício!
E quantos morreram inda sombrios,
Sem remorsos dos loucos devaneios…
— Sentindo o precipício!…
XI
Perdoa-lhes, meu Deus! o sol da vida
Nas artérias ateia o sangue em lava
E o cérebro varia…
O século na vaga enfurecida
Levou a geração que se acordava
E nuta de agonia…
XII
São tristes deste século os destinos!
Seiva mortal as flores que despontam
Infecta em seu abrir…
E o cadafalso e a voz dos Girondino
Não falam mais na glória e não apontam
A aurora do porvir!
XIII
Fora belo talvez, em pé, de novo,
Como Byron surgir, ou na tormenta
O herói de Waterloo…
Com sua idéia iluminar um povo,
Como o trovão nas nuvens que rebenta
E o raio derramou!
XIV
Fora belo talvez sentir no crânio
A alma de Goethe e reunir na fibra,
Byron, Homero e Dante;
Sonhar-se num delírio momentâneo
A alma da criação e o som que vibra
A terra palpitante…
XV
Mas ah! o viajor nos cemitérios
Nessas nuas caveiras não escuta
Vossas almas errantes,
Do estandarte da sombra nos impérios
A morte — como a torpe prostituta —
Não distingue os amantes.
XVI
Eu pobre sonhador… em terra inculta,
Onde não fecundou-se uma semente,
Convosco dormirei…
E dentre nós a multidão estulta
Não vos distinguirá a fronte ardente
Do crânio que animei…
XVII
Ó morte! a que mistério me destinas?
Esse átomo de luz que inda me alenta,
Quando o corpo morrer,
Voltará amanhã… aziagas sinas!…
Da terra sobre a face macilenta
Esperar e sofrer?
XVIII
Meu Deus, antes, meu Deus, que uma outra vida
Com teu sopro eternal meu ser esmaga
E minh’alma aniquila…
A estrela de verão no céu perdida
Também, às vezes, teu alento apaga
Numa noite tranqüila!…
À minha mãe
Se a terra é adorada, a mãe não é mais
digna de veneração.
Digest of hindu law.
Como as flores de uma árvore silvestre
Se esfolham sobre a leiva que deu vida
A seus ramos sem fruto,
Ó minha doce mãe, sobre teu seio
Deixa que dessa pálida coroa
Das minhas fantasias
Eu desfolhe também, frias, sem cheiro,
Flores da minha vida, murchas flores
Que só orvalha o pranto!
Adeus, meus sonhos!
Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!
Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto…
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.
Que me resta, meu Deus?!… morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!
Aí Jesus!
Ai Jesus! não vês que gemo,
Que desmaio de paixão
Pelos teus olhos azuis?
Que empalideço, que tremo,
Que me expira o coração?
Ai Jesus!
Que por um olhar, donzela,
Eu poderia morrer
Dos teus olhos pela luz?
Que morte! que morte bela!
Antes seria viver!
Ai Jesus!
Que por um beijo perdido
Eu de gozo morreria
Em teus níveos seios nus?
Que no oceano dum gemido
Minh’alma se afogaria?
Ai Jesus!
Álvares de Azevedo
Cuidado, leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar
num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Baratária
de D. Quixote, onde Sancho é rei e vivem Panúrgio, sir John
Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório:
— a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.
Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se
numa binomia: — duas almas que moram nas cavernas de um cérebro
pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de
duas faces.
Demais, perdoem-me os poetas do tempo, isto aqui é um tema, senão
mais novo, menos esgotado ao menos que o sentimentalismo tão fasbionable
desde Werther até René.
Por um espírito de contradição, quando os homens se
vêem inundados de páginas amorosas preferem um conto de Bocaccio,
uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff no Henrique IV de Shakespeare,
um provérbio fantástico daquele polisson Alfredo de Musset,
a todas as ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda na
moda e reduz as moedas de oiro sem liga dos grandes poetas ao troco de cobre,
divisível até ao extremo, dos liliputianos poetastros. Antes
da Quaresma há o Carnaval.
Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando
a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo e caiu do céu
sentindo exaustas as suas asas de oiro.
O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem: Homo sum, como
dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais,
sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado. Tem nervos,
tem fibra e tem artérias — isto é, antes e depois de ser
um ente idealista, é um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem,
sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não
há poesia.
O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma
ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta,
porque sua vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema
dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade
e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico, sem ser monótono.
Digam e creiam o que quiserem: — todo o vaporoso da visão abstrata
não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem
amamos.
O poema então começa pelos últimos crepúsculos
do misticismo, brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia
puríssima banha com seu reflexo ideal a beleza sensível e nua.
Depois a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo
cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna
e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios
onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.
É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema
irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina
e o Giaour de Byron vem o Cain e Don Juan – Don Juan que começa
como Cain pelo amor e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.
Agora basta.
Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não
lesses essas páginas, destinadas a não serem lidas. Deus me
perdoe! assim é tudo!… até prefácios!
Amor
Quand la mort est si belle,
Il est doux de mourir.
V. HUGO
Amemos! quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu’alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!
Quero em teus lábios beber
Os teus amores do céu!
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d’esperança!
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!
Vem, anjo, minha donzela,
Minh’alma, meu coração…
Que noite! que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento,
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!
Anima Mea
E como a vida é bela e doce e amável!
Não presta o espinhal a sombra ao leito
Do pastor do rebanho vagaroso,
Melhor que as sedas do lençol noturno
Onde o pávido rei dormir não pode?
SHAKESPEARE, Henrique VI, 3ª p.
Quando nas sestas do verão saudoso
A sombra cai nos laranjais do vale,
Onde o vento adormece e se perfuma…
E os raios d’oiro, cintilando vivos,
Como chuva encantada se gotejam
Nas folhas do arvoredo recendente,
Parece que de afã dorme a natura
E as aves silenciosas se mergulham
No grato asilo da cheirosa sombra.
E que silêncio então pelas campinas!…
A flor aberta na manhã mimosa
E que os estos do sol d’estio murcham
Cerra as folhas doridas e procura
Da grama no frescor doentio leito.
É doce então das folhas no silêncio
Penetrar o mistério da floresta,
Ou reclinado à sombra da mangueira
Um momento dormir, sonhar um pouco!
Ninguém que turve os sonhos de mancebo,
Ninguém que o indolente adormecido
Roube das ilusões que o acalentam
E do mole dormir o chame à vida!
E é tão doce dormir! é tão suave
Da modorra no colo embalsamado
Um momento tranqüilo deslizar-se!
Criaturas de Deus se peregrinam
Invisíveis na terra, consolando
As almas que padecem… certamente
Que são anjos de Deus que aos seios tomam
A fronte do poeta que descansa!
Ó floresta! ó relva amolecida,
A cuja sombra, em cujo doce leito
É tão macio descansar nos sonhos!
Arvoredos do vale! derramai-me
Sobre o corpo estendido na indolência
O tépido frescor e o doce aroma!
E quando o vento vos tremer nos ramos
E sacudir-vos as abertas flores
Em chuva perfumada, concedei-me
Que encham meu leito, minha face, a relva…
Onde o mole dormir a amor convida!
E tu, Ilná, vem pois! deixa em teu colo
Descanse teu poeta: é tão divino
Sorver as ilusões dos sonhos ledos,
Sentindo à brisa teus cabelos soltos
Meu rosto encherem de perfume e gozo!
Tudo dorme, não vês? dorme comigo,
Pousa na minha tua face bela
E o pálido cetim da tez morena…
Fecha teus olhos lânguidos… no sono
Quero sentir os túmidos suspiros
No teu seio arquejar, morrer nos lábios…
E no sono teu braço me enlaçando!
Ó minha noiva, minha doce virgem,
No regaço da bela natureza,
Anjo de amor, reclina-te e descansa!
Neste berço de flores tua vida
Límpida e pura correrá na sombra,
Como gota de mel em cálix branco
Da flor das selvas que ninguém respira.
Além, além nas árvores tranqüilas
Uma voz acordou como um suspiro…
São ais sentidos de amorosa rola
Que nos beijos de amor palpita e geme?
Ah! nem tão doce a rola suspirando
Modula seus gemidos namorados,
Não trina assim tão longa e molemente…
Em argentinas pérolas o canto
Se exala como as notas expirantes
De uma alma de mulher que chora e canta…
É a voz do sabiá: ele dormia
Ebrioso de harmonia e se embalava
No silêncio, na brisa e nos eflúvios
Das flores de laranja… Ilná, ouviste?
É o canto saudoso da esperança,
É dos nossos amores a cantiga
Que o aroma que exalam teus cabelos,
Tua lânguida voz… talvez lhe inspiram!
Vem, Ilná, dá-me um beijo: adormeçamos…
A cantilena do sabiá sombrio
Encanta as ilusões, afaga o sono…
Ó! minha pensativa, descuidosa,
Eu sinto a vida bela em teu regaço,
Sinto-a bela nas horas do silêncio
Quando em teu colo me reclino e durmo…
E ainda os sonhos meus vivem contigo!
Ah! vem, ó minha Ilná: sei harmonias
Que a noite ensina ao violão saudoso
E que a lua do mar influi na mente;
E quando eu vibro as cordas tremulosas,
Como alma de donzela que respira,
Coa nas vibrações tanta saudade,
Tanto sonho de amor esvaecido…
Que o terno coração acorda e geme
E os lábios do poeta inda suspiram!
Anjo do meu amor! se os ais da virgem
Têm doçuras, têm lágrimas divinas,
É quando, no silêncio e no mistério,
Sobre o peito do amante se derramam
No sufocado alento os moles cantos…
— Cantos de amor, de sede e d’esperanças
Que nos lábios febris lhe afoga um beijo!
Ouves, Ilná?… meu violão palpita:
Quero lembrar um cântico de amores…
Fora doce ao poeta, teu amante,
Nos ais ardentes das maviosas fibras
Ouvir os teus alentos de mistura
E as moles vibrações da cantilena
Este meu peito remoçar um pouco!
Virgem do meu amor vem dar-me ainda
Um beijo! um beijo longo, transbordando
De mocidade e vida; e nos meus sonhos
Minh’alma acordará — sopro errabundo
Da alma da virgem tremerá meus seios…
E a doce aspiração dos meus amores
No condão da harmonia há de embalar-se!
Anjinho
And from her fair and unpolluted flesch May violets spring!
HAMLET
Não chorem… que não morreu!
Era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!
Pobre criança! Dormia:
A beleza reluzia
No carmim da face dela!
Tinha uns olhos que choravam,
Tinha uns risos que encantavam!…
Ai meu Deus! era tão bela.
Um anjo d’asas azuis,
Todo vestido de luz,
Sussurrou-lhe num segredo
Os mistérios doutra vida!
E a criança adormecida
Sorria de se ir tão cedo!
Tão cedo! que ainda o mundo
O lábio visguento, imundo,
Lhe não passara na roupa!
Que só o vento do céu
Batia do barco seu
As velas d’ouro da poupa!
Tão cedo! que o vestuário
Levou do anjo solitário
Que velava seu dormir!
Que lhe beijava risonho
E essa florzinha no sonho
Toda orvalhava no abrir!
Não chorem! lembro-me ainda
Como a criança era linda
No fresco da facezinha!
Com seus lábios azulados,
Com os seus olhos vidrados
Como de morta andorinha!
Pobrezinho! o que sofreu!
Como convulso tremeu
Na febre dessa agonia!
Nem gemia o anjo lindo,
Só os olhos expandindo
Olhar alguém parecia!
Era um canto de esperança
Que embalava essa criança?
Alguma estrela perdida,
Do céu c’roada donzela…
Toda a chorar-se por ela
Que a chamava doutra vida?
Não chorem… que não morreu!
Que era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!
Era uma alma que dormia
Da noite na ventania
E que uma fada acordou!
Era uma flor de palmeira
Na sua manhã primeira
Que um céu d’inverno murchou!
Não chorem! abandonada
Pela rosa perfumada,
Tendo no lábio um sorriso,
Ela se foi mergulhar
— Como pérola no mar —
Nos sonhos do paraíso!
Não chorem! chora o jardim
Quando marchado o jasmim
Sobre o seio lhe pendeu?
E pranteia a noite bela
Pelo astro ou a donzela
Mortos na terra ou no céu?
Choram as flores no afã
Quando a ave da manhã
Estremece, cai, esfria?
Chora a onda quando vê
A boiar um irerê
Morta ao sol do meio-dia?
Não chorem!… que não morreu!
Era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!
Anjos do mar
As ondas são anjos que dormem no mar,
Que tremem, palpitam, banhados de luz…
São anjos que dormem, a rir e sonhar
E em leito d’escuma revolvem-se nus!
E quando, de noite, vem pálida a lua
Seus raios incertos tremer, pratear…
E a trança luzente da nuvem flutua…
As ondas são anjos que dormem no mar!
Que dormem, que sonham… e o vento dos céus
Vem tépido, à noite, nos seios beijar!…
São meigos anjinhos, são filhos de Deus,
Que ao fresco se embalam do seio do mar!
E quando nas águas os ventos suspiram,
São puros fervores de ventos e mar…
São beijos que queimam… e as noites deliram
E os pobres anjinhos estão a chorar!
Ai! quando tu sentes dos mares na flor
Os ventos e vagas gemer, palpitar…
Por que não consentes, num beijo de amor,
Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar?
Boêmios
Totus mundus,agit histríonem.
Provérbio do tempo de SHAKESPEARE
A cena passa-se na Itália, no século XVI. Uma rua escura e
deserta. Alta noite. Numa esquina uma imagem de Madona em seu nicho alumiado
por uma lâmpada.
Puff dorme no chão abraçando uma garrafa. Nini entra tocando
guitarra. Dão 5 horas.
NINI
Olá! que fazes, PufF? dormes na rua?
PUFF, acordando
Não durmo… Penso.
NINI
Estás enamorado?
E deitado na pedra acaso esperas
O abrir de uma janela? Estás cioso
E co’a botelha em vez de durindana
Aguardas o rival?
PUFF
Ceei à farta
Na taverna do Sapo e das Três-Cobras…
Faço o quilo… ao repouso me abandono.
Como o Papa Alexandre ou como um Turco,
Me entrego ao far niente e bem a gosto
Descanso na calçada imaginando.
NINI
Embalde quis dormir. Na minha mente
Fermenta um mundo novo que desperta.
Escuta, Puff: eu sinto no meu crânio,
Como em seio de mãe, um feto vivo…
Na minha insônia vela o pensamento:
Os poetas passados e futuros
Vou todos ofuscar… Aqui no cérebro
Tenho um grande poema. Hei de escrevê-lo…
É certa a glória minha!
PUFF
A idéia é boa:
Toma dez bebedeiras… são dez cantos.
Quanto a mim, tenho fé que a poesia
Dorme dentro do vinho.
Os bons poetas
Para ser imortais beberam muito.
NINI
Não rias… Minha idéia é nova e bela.
A Musa me votou a eterna glória.
Não me engano, meu Puff, enquanto sonho
Se aos poetas divinos Deus concede
Um céu mais glorioso, ali com Tasso,
Com Dante e Ariosto eu hei de ver-me…
Se eu fizer um poema, certamente
No Pantheon da fama cem estátuas
Cantarão aos vindouros o meu gênio!
PUFF
Em estátua, meu Nini? Estás zombando!
E impossível que saias parecido…
Que mármore daria a cor vermelha
Desse imenso nariz, dessas melenas?
NINI
Estás bêbado, Puff. Tresandas vinho.
PUFF
O vinho!?… és uma besta!… só um parvo
Pode a beleza desmentir do vinho.
Tu nunca leste o Cântico dos Cânticos
Onde o Rei Salomão, como elogio,
Dizia à noiva: — Pulchriora sunt
Ubera tua vino!
NINI
És sempre um Bobo.
PUFF
E tu és sempre esse nariz vermelho,
Que ainda aqui na treva desta rua
Flameja ao pé de mim. Quando te vejo,
Penso que estou na igreja ouvindo missa
Dita por Cardeal.
NINI
És um devasso…
PUFF
Respondo-te somente o que dizia
Sir John Falstaff, da noite o cavaleiro:
"Se Adão pecou no estado de inocência,
Que muito é que nos dias da impureza
Peque o mísero Puff?" Tu bem o sabes:
Toda a fragilidade vem da carne…
E na carne se eu tanto excedo os outros,
Vícios não devem meus causar espanto.
Minh’alma dorme em treva completíssima
Pela minha descrença… E tu, maldito,
Por que sempre não vens esclarecer-me
Com esse teu farol aceso sempre,
Cavaleiro da lâmpada vermelha,
As trevas de minh’alma?
NINI
Que leproso!
PUFF
Sou um homem de peso. Entendo a vida,
Tenho muito miolo; e a prova disto
É que não sou poeta, nem filósofo…
E gosto de beber, como Panúrgio.
Se tu fosses tonel, como pareces,
Eu te bebera agora de um só trago.
NINI
Quero-te bem contudo. Amigos velhos
Deixemo-nos de histórias. Meu poema…
PUFF
Se falas em poema, eu logo durmo.
NINI
Uma vez era um Rei…
PUFF
Não vês? eu ronco.
NINI
Quero a ti dedicar minha obra-prima…
Irás junto comigo à eternidade!
Teu retrato porei no frontispício.
Meu poema será uma coroa
Que as nossas frontes engrinalde juntas.
PUFF
Pensei-te menos doudo. O teu poema
Seria uma sublime carapuça!
Mas, já que sonhas tanto, olha, meu Nini,
Tu precisas de um saco.
NINI
Impertinente!
PUFF
Dá-me aqui tua mão. Sabes, amigo?
Passei ontem o dia de namoro:
Minhas paixões voltei à nova esposa
Do velho Conde que ali mora em frente…
Estou adiantado nos amores.
A cozinheira, outrora minha amante,
Meus passos guia, meus suspiros leva:
Mas preciso com pressa de um soneto!
Prometes-me fazê-lo?
NINI
Se me ouvires
Recitar meu poema…
PUFF
Eu me resigno.
Declama teu sermão, como um vigário…
Mas o sono ao rebanho se permite?
(Entra um criado correndo.)
Roa-me o diabo as tripas, se não vejo
Ali correr com pernas de cabrita
O criado do cônego Tansoni.
NINI
Onde vais, Gambioletto?
GAMBIOLETTO
Vou à pressa
Ao doutor Fossuário.
PUFF
Acaso agora
O carrasco fugiu?
NINI
Quem agoniza?
GAMBIOLETTO
O Reverendo e Santo Sr. Cônego!
Deitando-se a dormir, depois da ceia,
No colo de Madona la Zaffeta,
Umas dores sentiu pela barriga,
Caiu estrebuchando sobre a sala…
Morre de apoplexia.
NINI
O diabo o leve!
GAMBIOLETTO
E o médico, Srs.!
PUFF
Venturoso!
Sempre é Cônego… Nini, dulce et decus
Pro patria mori… É doce e glorioso
Morrer de apoplexia! Quem me dera
Morrer depois da ceia, de repente!
Não vem o confessor contar novelas,
Não soam cantos fúnebres em torno,
Nem se força o medroso moribundo
A rezar, quando só dormir quisera!
Venturosos os Cônegos e os Bispos…
E os papudos Abades dos conventos!
Eles podem morrer de apoplexia!
E se morrem pensando — cousa nova! —
Quem nunca no viver cansou-se nisso,
Se eles morrem pensando, ante seus olhos,
No momento final sem ter pavores,
Inda corre a visão da bela mesa!
A não morrer-se como o velho Píndaro
Cantando, sobre o seio amorenado
De sua amante Grega, oh! quem me dera
Cair morto no chão, beijando ainda
A botelha divina!
NINI
Que maluco!
A estas horas da noite, assim no escuro
Não temes de lembrar-te de defuntos?
Beijarias até uma caveira,
Se espumante o Madeira ali corresse!
PUFF
Os cálices doirados são mais belos!
Inda porém mais doce é nos beicinhos
Da bela moça que sorrindo bebe…
Libar mais terno o saibo dos licores…
Eu prefiro beijar a tua amante.
NINI
Tens medo de defuntos?
PUFF
Um bocado.
Sinto que não nasci para coveiro.
Contudo, no domingo, à meia-noite…
Pela forca passei: vi nas alturas,
Do luar sem vapor à luz formosa,
Um vilão pendurado. Era tão feio!
A língua um palmo fora, sobre o peito,
Os olhos espantados, boca lívida,
Sobre a cabeça dele estava um corvo…
O morto estava nu, pois o carrasco
Os mortos despe pra vestir os filhos
E deixa à noite o padecente à fresca.
Eu senti pelo corpo uns arrepios…
Mas depois veio o ânimo… trepei
Pela escada da forca, fui acima…
E pintei uns bigodes no enforcado.
NINI
Bravo como um Vampiro!
PUFF
Oh! antes d’ontem
Passei pelos telhados sem ter medo,
Para evitar um pátio onde velava
Um cão — que enorme cão! — subindo ao quarto
Onde dorme Rosina Belvidera…
NINI
Ousaste ao Cardeal depor na fronte
Tão pesada coroa?
PUFF
A mitra cobre…
Dizem que a santidade lava tudo!
Depois… o Cardeal estava bêbado…
A propósito, sabes dos amores
Do capitão Tybald? O tal maroto
Não sei de que milagres tem segredo
Que deu volta à cabeça da rainha.
NINI
Por isso o pobre Rei anda tão triste!
PUFF
Spadaro, o fidalgote barba-ruiva,
Contou-me que espiando p’la janela
Do quarto da rainha os viu… Caluda!
NINI
E o Rei que faz? Não tem lá na cozinha
Algum pau de vassoura ou um chicote?
PUFF
El-Rei Nosso Senhor então ceava.
NINI
Santo Rei!
PUFF
E demais é bem sabido
Que El-Rei só reina à mesa e nas caçadas.
NINI
Nunca perde um veado quando atira.
PUFF
Ele caça veados?… Má fortuna!
Não o cacem também pela ramagem!
NINI
Com língua tão comprida e viperina
Irás parar na forca…
PUFF
Nini, escuta:
Assisti esta noite a um pagode
Na taverna do Sapo e das Três-Cobras.
Era já lusco-fusco… e eu entrando
Dou com Frei São José e Frei Gregório,
O Prior do convento dos Bernardos
E mais uns dois ou três que só conheço
De ver pelas esquinas se encostando,
Ou dormidos na rua a sono solto…
Que soberbo painel! Faze uma idéia!
Um banquete! fartura! que presuntos!
Que tostados leitões que recendiam!
Numa enorme caldeira enormes peixes!
Recheados capões fervendo ainda!
Perus! olhas podridas! costeletas…
— Esgotara o talento a cozinheira!
Abertos garrafões! garrafas cheias!
Vinho em copos imensos transbordando…
Na toalha, já suja, debruçados
Aqueles religiosos cachaçudos
De boca aberta e de embotados olhos.
Gastrônomos! ali é que se via
Que é ciência o comer… e como um frade
Goza pelo nariz e pelos olhos,
Pelas mãos, pela boca… e faz focinho
E bate a língua ao paladar gostoso
Ao celeste sabor de um bom pedaço!
Depois! era bonito! Frei Gregório
Co’a boca de gordura reluzente,
Farto de vinho, esquece o reumatismo,
Esquece a erisipela já sem cura,
Canta rondós e dança a tarantela…
Arrasta-se caindo e se babando
Aos pés da taverneira. De joelhos
Faz-lhe a corte, cantando o Miserere,
Principia sermões, engrola textos,
E a gorda mão estende ao nédio seio
Da bela mocetona… a mão lhe beija,
A mão que o cetro cinge de vassoura…
Chora, soluça e cai, estende os braços,
Ainda a chama e cantochão entoa…
Era de rir! os velhos amorosos,
Uns de joelhos no chão, outros cantando
Estendidos na mesa entre os despojos,
Outros beijando a moça, outros dormindo…
E ela no meio delambida e fresca
Excita-os mutuamente e os rivaliza,
Passa-lhes pelo queixo a mão gorducha…
Corre o Prior a soco um Barbadinho,
Atracam-se, blasfemam, se esconjuram…
Um agarra na barba do contrário,
Outro tenta apertar o papo alheio…
Abraçam-se na luta os dois volumes
E rolam como pipas. No oceano
Assim duas baleias ciumentas
Atracam-se na luta… Que risadas!
Que risadas, meu Deus! arrebentando
Soltou o pobre Puff ante a comédia!
NINI
Ouve agora o poema…
PUFF
Espera um pouco:
A taverna do canto não se fecha…
Está aberta. Compra uma garrafa…
Bom vinho… tu bem sabes! Tenho a goela
Fidalga como um Rei. Não tenho dúvida:
Mentiu a minha mãe quando contou-me
Que nasci de um prosaico matrimônio…
Eu filho de escrivão!… Para criar-me
Era — senão um Rei — preciso um Bispo!
NINI
(Vai à taverna e volta.)
Eis aqui uma bela empada fria,
Uma garrafa e copo.
PUFF, quebrando o copo
O Demo o leve!
Eu sou como Diógenes: só quero
Aquilo sem o que viver não posso.
Deitado nesta laje, preguiçoso,
Olhando a lua, beijo esta garrafa…
E o mundo para mim é como um sonho.
Creio até que teu ventre desmedido,
Como escura caverna, vai abrir-se,
Mostrando no seio iluminado
Panoramas de harém, sultanas lindas
E longas prateleiras de bom vinho!
NINI
Dou começo ao poema. Escuta um pouco.
I
"Havia um Rei, numa ilha solitária,
Um Rei valente, cavaleiro e belo.
O Rei tinha um irmão: — era um mancebo
Pálido, pensativo. A sua vida
Era nas serras divagar cismando,
Sentar-se junto ao mar, dormir no bosque
Ou vibrar no alaúde os seus gemidos.
II
Vagabundo, uma vez, junto das ondas
O Príncipe encontrou na areia fria
Uma branca donzela desmaiada,
Que um naufrágio na praia arremessara:
Revelavam-lhe as roupas gotejantes
O belo talhe níveo, o melindroso
Das bem moldadas formas. O mancebo
Nos braços a tomou e foi com ela
Esconder-se no bosque.
Quando a bela
Suspirando acordou, o belo Príncipe
Aos pés dela velava de joelhos.
Amaram-se. É a vida. Eles viveram
Desse desmaio que dá corpo aos sonhos,
Que realiza visões e aroma a vida
Na sua primavera. A lua pálida,
As sombras da floresta e dentre a sombra
As aves amorosas que suspiram
Viram aquelas frontes namoradas,
Ouviram, sufocando-se num beijo,
Suspiros que o deleite evaporava.
III
O Rei tinha um truão. O caso é visto:
É muito natural. Se Reis sombrios
Gostam de bobos na doirada corte,
Não admira decerto que um risonho
Em vez de capelão tivesse um Bobo.
Loriolo — o truão do Rei, acaso,
Um dia, atravessando p’la floresta,
Foi dar numa cabana de folhagens:
Ninguém estava ali, porém num leito
De brandas folhas e cheirosas flores
Ele viu estendidas roupas alvas
— E roupas de mulher! e junto um gorro,
Que pelas jóias e flutuantes plumas
E pela firma no veludo negro
Denunciava o Príncipe.
Loriolo,
Apesar de na corte ser um Bobo,
Não era um zote. Foi-se remoendo…
Jurou dar com a história dos namoros
E, para andar melhor em tal caminho,
Ele, que adivinhava que as Américas
Sem proteção de Rei ninguém descobre,
Madrugou muito cedo… inda era escuro
E convidou El-Rei para o passeio.
IV
Ora, por uma triste desventura,
O Rei entrando na Cabana Verde
Achou só a mulher… Adormecida
No desalinho descuidoso e belo
Com que elas dormem, soltos os cabelos,
A face sobre a mão e os seios lindos
Batendo à solta na macia tela
Da roupa de dormir que os modelava…
Não digo mais…
Loriolo pôs-se à espreita.
O Rei de leve despertou a bela,
Acordou-a num beijo…
V
A linda moça,
Se havia ali raivosa apunhalar-se,
Fazer espalhafato e gritaria,
Por um capricho, voluptuoso assomo,
Entregou-se ao amor do Rei…
VI
"Maldito!"
Bradou-lhe à porta um vulto macilento.
"Maldito! meu irmão, aquela moça
É minha, minha só, é minha amante
E minha esposa fora…"
O Rei sorrindo
Lhe estende a régia mão e diz alegre:
"A culpa é tua. Eu disto não sabia;
Se do teu casamento me falasses,
Eu respeitara a tua…"
"Basta, infame!
Não acrescentes zombaria ao crime.
Hei de punir-te. É solitário o bosque;
Aqui não és um Rei, porém um homem,
Um vil em cujo sangue hei de lavar-me,
Oh! sangue! quero sangue! eu tenho sede!"
VII
Despiu tremendo a reluzente espada.
O mesmo fez o Rei. Lutaram ambos.
Foeminae sacra fames, quantum pectora
Mortalia cogis! E embalde a moça,
Ajoelhando, seminua e pálida,
Vinha chorando, mais gentil no pranto,
Entre as espadas se lançar gemendo.
Embalde! Longo tempo encarniçada
A peleja durou… Enfim caíram:
Rolaram ambos trespassados, frios…
E, na treva de morte que o cegava,
Inda alongando os braços convulsivos
Que avermelhava o fratricida sangue,
Procuravam no sangue o inimigo!
VIII
O Bobo fez as covas. Na montanha
Enterrou os irmãos. E quanto à moça,
Pelo braço a tomou chorosa e fria,
Foi ao paço e, na gótica varanda,
De coroa real e longo manto,
Falou à plebe, prometeu franquezas…
Impostos levantar e dar torneios.
Falou aos guardas: prometeu-lhes vinho…
Falou à fidalguia, mas no ouvido…
E prometeu-lhe consentir nos vícios
E depressa fazer uma lei nova
Pela qual, se um fidalgo assassinasse
Algum torpe vilão, ficasse impune…
E nem pagasse mais a vil quantia
Que era pena do crime; e alto disse
Que havia conquistar países novos.
IX
A história infelizmente é muito vista.
Não sou original! É uma desgraça!
Mas prefiro o caráter verdadeiro
De trovador cronista.
Loriolo
Trocou de guizo o boné sonoro
— Muito leve chapéu! — pela coroa…
Só teve uma desgraça o Rei novato:
Foi que um dia fugiu-lhe do palácio
A tal moça volante nos amores.
X
Muitos anos passaram. Loriolo
Era um sublime Rei. De Rei a Bobo
Já tantos têm caído! Não admira
Que um Bobo sendo Rei primasse tanto.
Governava tão bem como governam
Os Reis de sangue azul e raça antiga.
Demais gastava pouco e, se não fosse
Seu amor pelas alvas formosuras,
Decerto que na lista dos monarcas
Ele ficava sendo o Rei-Sovina.
Enfim, era um monarca de mão cheia.
Tinha só um defeito — vendo sangue
Tinha frio no ventre e desmaiava
Ao luzir de uma espada… Era nervoso!
Ninguém falava nisso. Até a giba,
A figura de anão, a pele escura,
Aquela boca negra escancarada
(E que nem dentes amarelos tinha
Pra ser de Adamastor), as gâmbias finas,
Eram tipo dos quadros dos pintores.
Se pintavam Adônis ou Cupido
Copiavam o Rei em corpo inteiro!
E o oiro das moedas, que trazia
A ventosa bochecha, os beiços grossos,
O porcino perfil e a cabeleira…
Era beijado com fervor e culto.
XI
Loriolo envelhecia entre os aplausos,
Dando a mão a beijar à fidalguia.
Demais, um sabichão fizera um livro
Em vinte e tantos volumões in-fólio,
Obra cheia de mapas e figuras,
Em que provava que por linha reta
De Hércules descendia Loriolo
E portanto de Júpiter Tonante!…
E apresentou as certidões em cópia
De óbito e nascimento e batistério
E até de casamento! e para prova
De que nas veias puras do Monarca
Não correra a mais leve bastardia…
É inútil dizer que os tais volumes
Nada contavam sobre o pai — porqueiro,
Como o do Santo Papa Sixto Quinto…
E sobre a mãe do Rei — a velha Mória,
Que vendera perus… Deus sabe o resto!
Nos tempos folgazões da mocidade!
XII
Um dia o reino cem navios tocam:
São piratas do Norte! — são Normandos!
Infrene multidão nas praias corre,
Levando tudo a ferro… até os frades
Matam, queimam, saqueiam, furtam moças…
E a infrene turba corre até os paços.
XIII
Enquanto vem a campo a fidalguia,
Armada pied en cap, espada em punho,
Loriolo sem fala, nos apertos…
Nas adegas se esconde.
Embalde o chamam,
Embalde corre voz que dos Normandos
Emissário de paz o Rei procura,
El-Rei suou de susto a roupa inteira!
Nem era de pasmar que a Reis e povo,
Como ao bicho da seda a trovoada,
Camisas de onze varas apavorem
E façam frio aparições de forca!
XIV
Um soldado normando, que buscava
Nas adegas reais alguma pinga,
Mete a verruma numa velha pipa:
Um grito sai dali, mas não licores…
O soldado feroz destampa o nicho,
Agarra um vulto dentro, mas somente
Sente nas mãos vazia cabeleira…
Desembainha a torva durindana,
Nas cavernas da pipa e nas cavernas
Do coração do Rei reboa o golpe.
Estala-se o tonel de meio a meio.
Entretanto o bom Rei que não falava,
Sujo da lia da inosa pipa,
Mais morto do que vivo (já pensando
Que seu reino acabava num espeto
Como o reino do galo), às cambalhotas
Rola aos pés do soldado, chora e treme,
Gagueja de pavor nos calafrios
E pelo amor de Deus perdão implora.
XV
O soldado, maroto e bom gaiato,
Agarra às costas o real trambolho,
Como um vilão que à feira leva um porco…
E no meio do pátio, entre despojos,
De pernas para o ar e cara suja
Atira o Bobo…
— El-Rei! clama um fidalgo.
XVI
Porém o Rei não fala… Sua e treme.
"Singofredo o pirata aqui me envia:
Diz ao Rei o pacífico Mercúrio
O Arauto de paz que vem de bordo —
Eu venho aqui propor-vos um tratado.
Por direito de espada e por herança
Singofredo é senhor destes países;
Ele vem reclamar sua coroa…
Se o Rei não se opuser não corre sangue:
Senão hão de fazê-lo em sarrabulho,
Puxado p’lo nariz o encher de lodo
E espetar-lhe a careta sobre um mastro.
Singofredo, o feroz, exige apenas
Que o Rei deixando o cetro deste reino
Seja sempre na corte Rei… da Lua.
Loriolo virá ao seu caminho
Trajando seu gibão amarelado
Com remendos de cor e campainhas,
Meias roxas e gorro afunilado."
XVII
Loriolo suspira. O povo espera.
Pela face do Bobo corre a furto
Uma lágrima trêmula. É desgraça
Tendo subido a Rei voltar…
Nem ousa
O nome proferir de sua infâmia.
De repente uma idéia o ilumina…
Deu uma das antigas gargalhadas,
Inda em trajes de Rei graceja e pula.
Foi uma dança cômica, fantástica,
Um riso que doía — tão gelado
Coava ao coração!… Estava doudo…
Dançou a gargalhar… caiu exausto,
Caiu sem movimento sobre o lodo…
Escutaram-lhe o peito. Estava morto.
Ora, o pirata, o invasor normando,
Era filho da nossa conhecida,
Que, posto não pudesse com acerto
Dizer quem era o pai do seu boêmio,
Afirmava contudo afoutamente
Que, em todo o caso, tinha jus ao trono.
Reina pela cidade a bebedeira…
E bebendo-se à saúde do bastardo
O Bobo que foi Rei ninguém sepulta…"
***
Bem vês, amigo Puff, que neste conto
Em poucos versos digo histórias longas:
— Amores, mortes e no trono um Bobo
E sobre o lodo um Rei que não se enterra.
Muito embora a mulher as roupas façam,
Eu provo que o burel não faz o monge,
E um Bobo é sempre um Bobo. Mostro ainda
De meu estro no vário cosmorama
Um Rei que numa pipa o trono perde
E um bastardo que o pai dizer não pode
E em nome de dois pais, ambos em dúvida,
Vem na sangueira reclamar seu nome.
Um outro só com isso dera a lume
Um poema em dez cantos. Sou conciso,
Não ouso tanto: dou somente idéias,
Esboço aqui apenas meu enredo.
Mas… Puff olá, meu Puff, estás dormindo,
Prosaico beberrão! Acorda um pouco!
Bebeu todo o meu vinho, a empada foi-se…
Não resta-me esperança! Este demônio
De um poeta como eu nem vale um murro!
Um Homem Da Platéia
Silêncio! fora a peça! que maçada!
Até o ponto dorme a sono solto!
Levanta-se o pano até o meio.
Passa por debaixo e vem até a rampa o
Prólogo,
velho de cabeça calva, camisola branca, carapuça
frígia coroada de louros. Tem um ramo de oliveira
na mão. Faz as cortesias do estilo e fala:
Dom Quixote, sublime criatura!
Tu sim! foste leal e cavaleiro,
O último herói, o paladim extremo
De Castela e do mundo. Se teu cérebro
Toldou-se na loucura, a tua insânia
Vale mais do que o siso destes séculos
Em que a infâmia, Dagon cheio de lodo,
Recebe as orações, mirras e flores…
E a louca multidão renega o Cristo!
Tua loucura revelava brio:
No triste livro do imortal Cervantes
Não posso crer um insolente escárnio
De cavaleiro andante aos nobres sonhos,
Ao fidalgo da Mancha, cuja nódoa
Foi só ter crido em Deus e amado os homens
E votado seu braço aos oprimidos.
Aquelas folhas não me causam riso,
Mas desgosto profundo e tédio à vida.
Soldado e trovador, era impossível
Que Cervantes manchasse um valeroso
Em vil caricatura! e desse à turba,
Como presa de escárnio e de vergonha,
Esse homem que à virtude, amor e cantos
Abria o coração!…
Estas idéias
Servem para desculpa do poeta.
Apesar de bom moço o autor da peça
Tem uns laivos talvez de Dom Quixote…
E nestes tempos de verdade e prosa
— Sem Gigantes, sem Mágicos medonhos
Que velavam nas torres encantadas
As donzelas dormidas por cem anos —
Do seu imaginar esgrime as sombras
E dá botes de lança nos moinhos.
Mas não escreve sátiras: apenas
Na idade das visões dá corpo aos sonhos,
Faz trovas e não talha carapuças,
Nem rebuça no véu do mundo antigo,
Pra realce maior, presentes vícios,
Não segue Juvenal e não embebe
Em venenoso fel a pena escura
Para nódoas pintar no manto alheio.
O tempo em que se passa agora a cena
É o século dos Bórgias. O Ariosto
Depôs na fronte a Rafael gelado
Sua c’roa divina e o segue ao túmulo.
Ticiano inda vive. O rei da turba
É um gênio maldito — o Aretino,
Que vende a alma e prostitui as crenças.
Aretino! essa incríivel criatura,
Poeta sem pudor, onda de lodo
Em que do gênio profanou-se a pérola…
Vaso d’oiro que um óxido sem cura
Azinhavrou de morte… homem terrível
Que tudo profanou co’as mãos imundas,
Que latiu como um cão mordendo um século!
E, como diz um epitáfio antigo,
Só em Deus não mordeu, porque o não vira…
Como ele, foi devasso todo o século:
Os contos de Boccaccio e de Brantôme
São mais puros que a história desses tempos…
Tasso enlouquece. O Rei que se diverte
— O herói de Marignan e de Pavia
Que num vidro escrevera do palácio
"Femme souvent varie", mas leviano
Com mais amantes que um Sultão vivia —
Mandava ao Aretino amáveis letras,
Um colar d’oiro com sangrentas línguas
E dava-lhe pensões. O Vaticano
Viu o Papa beijando aquela fronte.
Carlos V o nomeia cavaleiro,
Abraça-o e — inda mais! — lhe manda escudos.
O Duque João Médici, o adora,
Dorme com ele a par no mesmo leito…
É um tempo de agonias: a arte pálida,
Suarenta, moribunda, desespera
E aguarda o funeral de Miguel Ângelo,
Para com ele abandonar o mundo
E angélica voltar ao céu dos Anjos.
Agora basta. Revelei minh’alma.
A cena descrevi onde correra
Inteira uma comédia, em vez de um ato
Se o poeta, mais forte, se atrevesse
A erguer nos versos a medonha Sombra
Da loucura fatal do mundo inteiro.
Boas noites! platéia e camarotes:
O ponto já me diz que deixe o campo,
O primeiro galã todo empoado,
Cheio de vermelhão, já dentro fala…
Estão cheios de luz os bastidores.
Uma última palavra: o autor da peça,
Puxando-me da túnica romana,
Diz-me da cena que eu avise às Damas
Que desta feita os sais não são precisos…
Não há de sarrabulho haver no palco.
É uma peça clássica. O perigo
Que pode ter lugar é vir o sono;
Mas dormir é tão bom, que certamente
Ninguém por esse dom fará barulho.
O assunto da Comédia e do Poema
Era digno sem dúvida, Senhores,
De uma pena melhor; mas desta feita
Não fala Shakespeare, nem Gil Vicente.
O poeta é novato, mas promete:
Posto que seja um homem barrigudo
E tenha por Tália o seu cachimbo
Merece aplausos e merece glória.
Cantiga do sertanejo, A
Love me, and leave me not.
SHAKESPEARE, Merch. Of Venice
Donzela! Se tu quiseras
Ser a flor das primaveras
Que tenho no coração:
E se ouviras o desejo
Do amoroso sertanejo
Que descora de paixão!…
Se tu viesses comigo
Das serras ao desabrigo
Aprender o que é amar…
— Ouvi-lo no frio vento,
Das aves no sentimento,
Nas águas e no luar!…
Ouvi-lo nessa viola,
Onde a modinha espanhola
Sabe carpir e gemer!…
Que pelas horas perdidas
Tem cantigas doloridas,
Muito amor, muito doer…
Pobre amor! o sertanejo
Tem apenas seu desejo
E as noites belas do val!…
Só o ponche adamascado,
O trabuco prateado
E o ferro de seu punhal!…
E tem as lendas antigas
E as desmaiadas cantigas
Que fazem de amor gemer!…
E nas noites indolentes
Bebe cânticos ardentes
Que fazem estremecer!…
Tem mais… na selva sombria
Das florestas a harmonia,
Onde passa a voz de Deus,
E nos relentos da serra
Pernoita na sua terra,
No leito dos sonhos seus!
Se tu viesses, donzela,
Verias que a vida é bela
No deserto do sertão:
Lá têm mais aroma as flores
E mais amor os amores
Que falam do coração!
Se viesses inocente
Adormecer docemente
À noite no peito meu!…
E se quisesses comigo
Vir sonhar no desabrigo
Com os anjinhos do céu!
É doce na minha terra
Andar, cismando, na serra
Cheia de aroma e de luz,
Sentindo todas as flores,
Bebendo amor nos amores
Das borboletas azuis!
Os veados da campina
Na lagoa, entre a neblina,
São tão lindos a beber!…
Da torrente nas coroas
Ao deslizar das canoas
É tão doce adormecer!…
Ah! Se viesses, donzela,
Verias que a vida é bela
No silêncio do sertão!
Ah!… morena, se quiseras
Ser a flor das primaveras
Que tenho no coração!
Junto às águas da torrente
Sonharias indolente
Como num seio d’irmã!…
— Sobre o leito de verduras
O beijo das criaturas
Suspira com mais afã!
E da noitinha as aragens
Bebem nas flores selvagens
Efluviosa fresquidão!…
Os olhos têm mais ternura
E os ais da formosura
Se embebem no coração!…
E na caverna sombria
Tem um ai mais harmonia
E mais fogo o suspirar!…
Mais fervoroso o desejo
Vai sobre os lábios num beijo
Enlouquecer, desmaiar!…
E da noite nas ternuras
A paixão tem mais venturas
E fala com mais ardor!…
E os perfumes, o luar,
E as aves a suspirar,
Tudo canta e diz — amor!
Ah! vem! amemos! vivamos!
O enlevo do amor bebamos
Nos perfumes do serão!
Ah! Virgem, se tu quiseras
Ser a flor das primaveras
Que tenho no coração!…
Cantiga
I
Em um castelo doirado
Dorme encantada donzela…
Nasceu; e vive dormindo
— Dorme tudo junto dela.
Adormeceu-a, sonhando,
Um feiticeiro condão,
E dormem no seio dela
As rosas do coração.
Dorme a lâmpada argentina
Defronte do leito seu;
Noite a noite a lua triste
Vem espreitá-la do céu.
Voam os sonhos errantes
Do leito sob o dossel
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel.
E no castelo, sozinha,
Dorme encantada donzela…
Nasceu; e vive dormindo
— Dorme tudo junto dela.
Dormem cheirosas, abrindo,
As roseiras em botão…
E dormem no seio dela
As rosas do coração.
II
A donzela adormecida
É a tua alma, santinha,
Que não sonha nas saudades
E nos amores da minha.
— Nos meus amores que velam
Debaixo do teu dossel
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel.
Acorda, minha donzela,
Foi-se a lua, eis a manhã
E nos céus da primavera
É a aurora tua irmã.
Abriram no vale as flores
Sorrindo na fresquidão:
Entre as rosas da campina
Abram-se as do coração.
Acorda, minha donzela,
Soltemos da infância o véu…
Se nós morrermos num beijo,
Acordaremos no céu.
Cônego Filipe, O
O cônego Filipe! Ó nome eterno!
Cinzas ilustres que da terra escura,
Fazeis rir nos ciprestes as corujas!
Por que tão pobre lira o céu doou-me
Que não consinta meu inglório gênio
Em vasto e heróico poema decantar-te?
Voltemos ao assunto. A minha musa,
Como um falado imperador romano,
Distrai-se, às vezes, apanhando moscas.
Por estradas mais longas ando sempre:
Com o cônego ilustre me pareço,
Quando ele já sentia vir o sono,
Para poupar caminho até a vela,
Sobre a vela atirava a carapuça.
Então, no escuro, em camisola branca,
Ia apalpando procurar na sala —
Para o queijo flamengo da careca
Dos defluxos guardar — o negro saco.
À ordem, Musa! Canta agora como
O poeta Ali-Moon no harém entrando,
Como um poeta que enamora a lua,
Ou que beija uma estátua de alabastro,
Suando de calor… de sol e amores…
Cantava no alaúde enamorado!
E como ele saiu-se do namoro…
Assunto bem moral, digno de prêmio,
E interessante como um catecismo…
Que tem ares até de ladainha!
Quem não sonhou a terra do Levante?
As noites do Oriente, o mar, as brisas,
Toda aquela suave natureza
Que amorosa suspira e encanta os olhos?
Principio no harém. Não é tão novo…
Mas esta vida é sempre deleitosa.
As almas d’homem ao harém se voltam…
Ser um dia sultão quem não deseja?
Quem não quisera das sombrias folhas
Nas horas do calor, junto do lago,
As odaliscas espreitar no banho
E mais bela a sultana entre as formosas?
Mas ah! o plágio nem perdão merece!
Digam — pega ladrão! Confesso o crime:
Não é Ovídio só que imito e sonho,
Quando pinta Acteon fitando os olhos
Nas formas nuas de Diana virgem!
Não! embora eu aqui não fale em ninfas,
Essa idéia é do cônego Filipe!
Crepúsculo do Mar
Que rêves-tu plus beau sur ces lointaines plages
Que cette chaste mer qui baigne nos rivages?
Que ces mornes couverts de bois silencieux,
Autels d’où nos parfurns s’élèvent dans les cieux?
LAMARTINE
No céu brilhante do poente em fogo
Com auréola ardente o sol dormia,
Do mar doirado nas vermelhas ondas
Purpúreo se escondia.
Como da noite o bafo sobre as águas
Que o reflexo da tarde incendiava,
Só a idéia de Deus e do infinito
No oceano boiava!
Como é doce viver nas longas praias
Nestas ondas e sol e ventania!
Como ao triste cismar encanto aéreo
Nas sombras preludia!
O painel luminoso do horizonte
Como as cândidas sombras alumia
Dos fantasmas de amor que nós amamos
Na ventura de um dia!
Como voltam gemendo e nebulosas,
Brancas as roupas, desmaiado o seio,
Inda uma vez a murmurar nos sonhos
As palavras do enleio!…
Aqui nas praias, onde o mar rebenta
E a escuma no morrer os seios rola,
Virei sentar-me no silêncio puro
Que o meu peito consola!
Sonharei… lá enquanto, no crepúsculo,
Como um globo de fogo o sol se abisma
E o céu lampeja no clarão medonho
De negro cataclisma…
Enquanto a ventania se levanta
E no ocidente o arrebol se ateia
No cinábrio do empíreo derramando
A nuvem que roxeia…
Hora solene das idéias santas
Que embala o sonhador nas fantasias,
Quando a taça do amor embebe os lábios
Do anjo das utopias!
Oceano de Deus! Que moribundo,
A cantiga do nauta mais sentida
Tão triste suspirou nas tuas ondas,
Como um adeus à vida?
Que nau cheia de glória e d’esperanças,
Floreando ao vento a rúbida bandeira,
Na luz do incêndio rebentou bramindo
Na vaga sobranceira?
Por que ao sol da manhã e ao ar da noite
Essa triste canção, eterna, escura,
Como um treno de sombra e de agonia,
Nos teus lábios murmura?
É vermelho de sangue o céu da noite,
Que na luz do crepúsculo se banha:
Que planeta do céu do roto seio
Golfeja luz tamanha?
Que mundo em fogo foi bater correndo
Ao peito de outro mundo; – e uma torrente
De medonho clarão rasgou no éter
E jorra sangue ardente?
Onde as nuvens do céu voam dormindo,
Que doirada mansão de aves divinas
Num véu purpúreo se enlutou rolando
Ao vento das ruínas?
Crepúsculo nas Montanhas
Que rêves-tu plus beau sur ces lointaines plages
Que cette chaste mer qui baigne nos rivages?
Que ces mornes couverts de bois silencieux,
Autels d’où nos parfurns s’élèvent dans les cieux?
LAMARTINE
No céu brilhante do poente em fogo
Com auréola ardente o sol dormia,
Do mar doirado nas vermelhas ondas
Purpúreo se escondia.
Como da noite o bafo sobre as águas
Que o reflexo da tarde incendiava,
Só a idéia de Deus e do infinito
No oceano boiava!
Como é doce viver nas longas praias
Nestas ondas e sol e ventania!
Como ao triste cismar encanto aéreo
Nas sombras preludia!
O painel luminoso do horizonte
Como as cândidas sombras alumia
Dos fantasmas de amor que nós amamos
Na ventura de um dia!
Como voltam gemendo e nebulosas,
Brancas as roupas, desmaiado o seio,
Inda uma vez a murmurar nos sonhos
As palavras do enleio!…
Aqui nas praias, onde o mar rebenta
E a escuma no morrer os seios rola,
Virei sentar-me no silêncio puro
Que o meu peito consola!
Sonharei… lá enquanto, no crepúsculo,
Como um globo de fogo o sol se abisma
E o céu lampeja no clarão medonho
De negro cataclisma…
Enquanto a ventania se levanta
E no ocidente o arrebol se ateia
No cinábrio do empíreo derramando
A nuvem que roxeia…
Hora solene das idéias santas
Que embala o sonhador nas fantasias,
Quando a taça do amor embebe os lábios
Do anjo das utopias!
Oceano de Deus! Que moribundo,
A cantiga do nauta mais sentida
Tão triste suspirou nas tuas ondas,
Como um adeus à vida?
Que nau cheia de glória e d’esperanças,
Floreando ao vento a rúbida bandeira,
Na luz do incêndio rebentou bramindo
Na vaga sobranceira?
Por que ao sol da manhã e ao ar da noite
Essa triste canção, eterna, escura,
Como um treno de sombra e de agonia,
Nos teus lábios murmura?
É vermelho de sangue o céu da noite,
Que na luz do crepúsculo se banha:
Que planeta do céu do roto seio
Golfeja luz tamanha?
Que mundo em fogo foi bater correndo
Ao peito de outro mundo; — e uma torrente
De medonho clarão rasgou no éter
E jorra sangue ardente?
Onde as nuvens do céu voam dormindo,
Que doirada mansão de aves divinas
Num véu purpúreo se enlutou rolando
Ao vento das ruínas?
Desalento
Por que havíeis passar tão doces dias?
A. F. DE SERPA PIMENTEL
Feliz daquele que no livro d’alma
Não tem folhas escritas
E nem saudade amarga, arrependida,
Nem lágrimas malditas!
Feliz daquele que de um anjo as tranças
Não respirou sequer
E nem bebeu eflúvios descorando
Numa voz de mulher…
E não sentiu-lhe a mão cheirosa e branca
Perdida em seus cabelos,
Nem resvalou do sonho deleitoso
A reais pesadelos…
Quem nunca te beijou, flor dos amores,
Flor do meu coração,
E não pediu frescor, febril e insano
Da noite à viração!
Ah! feliz quem dormiu no colo ardente
Da huri dos amores,
Que sôfrego bebeu o orvalho santo
Das perfumadas flores…
E pôde vê-la morta ou esquecida
Dos longos beijos seus,
Sem blasfemar das ilusões mais puras
E sem rir-se de Deus!
Mas, nesse doloroso sofrimento
Do pobre peito meu,
Sentir no coração que à dor da vida
A esperança morreu!…
Que me resta, meu Deus? aos meus suspiros
Nem geme a viração…
E dentro, no deserto do meu peito,
Não dorme o coração!
Desânimo
Estou agora triste. Há nesta vida
Páginas torvas que se não apagam,
Nódoas que não se lavam… se esquecê-las
De todo não é dado a quem padece…
Ao menos resta ao sonhador consolo
No imaginar dos sonhos de mancebo!
Oh! voltai uma vez! eu sofro tanto!
Meus sonhos, consolai-me! distraí-me!
Anjos das ilusões, as asas brancas
As névoas puras, que outro sol matiza.
Abri ante meus olhos que abraseiam
E lágrimas não tem que a dor do peito
Transbordem um momento…
E tu, imagem,
Ilusão de mulher, querido sonho,
Na hora derradeira, vem sentar-te,
Pensativa e saudosa no meu leito!
O que sofres? que dor desconhecida
Inunda de palor teu rosto virgem?
Por que tu’alma dobra taciturna,
Como um lírio a um bafo d’infortúnio?
Por que tão melancólica suspiras?
Ilusão, ideal, a ti meus sonhos,
Como os cantos a Deus se erguem gemendo!
Por ti meu pobre coração palpita…
Eu sofro tanto! meus exaustos dias
Não sei por que logo ao nascer manchou-os
De negra profecia um Deus irado.
Outros meu fado invejam… Que loucura!
Que valem as ridículas vaidades
De uma vida opulenta, os falsos mimos
De gente que não ama? Até o gênio
Que Deus lançou-me à doentia fronte,
Qual semente perdida num rochedo,
Tudo isso que vale, se padeço!
Nessas horas talvez em mim não pensas:
Pousas sombria a desmaiada face
Na doce mão e pendes-te sonhando
No teu mundo ideal de fantasia…
Se meu orgulho, que fraqueia agora,
Pudesse crer que ao pobre desditoso
Sagravas uma idéia, uma saudade…
Eu seria um instante venturoso!
Mas não… ali no baile fascinante,
Na alegria brutal da noite ardente,
No sorriso ebrioso e tresloucado
Daqueles homens que, pra rir um pouco,
Encobrem sob a máscara o semblante,
Tu não pensas em mim. Na tua idéia
Se minha imagem retratou-se um dia
Foi como a estrela peregrina e pálida
Sobre a face de um lago…
Despedidas
Se entrares, ó meu anjo, alguma vez
Na solidão onde eu sonhava em ti,
Ah! vota uma saudade aos belos dias
Que a teus joelhos pálido vivi!
Adeus, minh’alma, adeus! eu vou chorando…
Sinto o peito doer na despedida…
Sem ti o mundo é um deserto escuro
E tu és minha vida…
Só por teus olhos eu viver podia
E por teu coração amar e crer…
Em teus braços minh’alma unir à tua
E em teu seio morrer!
Mas se o fado me afasta da ventura,
Levo no coração a tua imagem…
De noite mandarei-te os meus suspiros
No murmúrio da aragem!
Quando a noite vier saudosa e pura,
Contempla a estrela do pastor nos céus,
Quando a ela eu volver o olhar em pranto…
Verei os olhos teus!
Mas antes de partir, antes que a vida,
Se afogue numa lágrima de dor,
Consente que em teus lábios num só beijo
Eu suspire de amor!
Sonhei muito! sonhei noites ardentes
Tua boca beijar… eu o primeiro!
A ventura negou-me… mesmo até
O beijo derradeiro!
Só contigo eu podia ser ditoso,
Em teus olhos sentir os lábios meus!
Eu morro de ciúme e de saudade…
Adeus, meu anjo, adeus!
Dinheiro
Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune,
adoré; on a considération, honneurs, qualités, vertus.
Quand on n’a point d’argent on est dans la dépendance
de toutes choses et de tout le monde.
CHATEAUBRIAND
Sem ele não há cova! quem enterra
Assim grátis, a Deo? O batizado
Também custa dinheiro. Quem namora
Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio?
Demais, as Danáes também o adoram…
Quem imprime seus versos, quem passeia,
Quem sobe a deputado, até ministro,
Quem é mesmo eleitor, embora sábio,
Embora gênio, talentosa fronte,
Alma romana, se não tem dinheiro?
Fora a canalha de vazios bolsos!
O mundo é para todos… Certamente
Assim o disse Deus, mas esse texto
Explica-se melhor e d’outro modo…
Houve um erro de imprensa no Evangelho:
O mundo é um festim, concordo nisso,
Mas não entra ninguém sem ter as louras,
Dorme
Dorme, meu coração! Em paz esquece
Tudo, tudo que amaste neste mundo!
Sonho falaz de tímida esperança
Não interrompa teu dormir profundo!
Tradução do Dr. Octaviano
Fui um douto em sonhar tantos amores…
Que loucura, meu Deus!
Em expandir-lhe aos pés, pobre insensato,
Todos os sonhos meus!
E ela, triste mulher, ela tão bela,
Dos seus anos na flor,
Por que havia de sagrar pelos meus sonhos
Um suspiro de amor?
Um beijo — um beijo só! eu não pedia
Senão um beijo seu
E nas horas do amor e do silêncio
Juntá-la ao peito meu!
_____
Foi mais uma ilusão! de minha fronte
Rosa que desbotou
Uma estrela de vida e de futuro
Que riu… e desmaiou!
Meu triste coração, é tempo, dorme,
Dorme no peito meu!
Do último sonho despertei e n’alma
Tudo! tudo morreu!
Meus Deus! por que sonhei e assim por ela
Perdi a noite ardente…
Se devia acordar dessa esperança,
E o sonho era demente?…
Eu nada lhe pedi: ousei apenas
Junto dela, à noitinha,
Nos meus delírios apertar tremendo
A sua mão na minha!
Adeus, pobre mulher! no meu silêncio
Sinto que morrerei…
Se rias desse amor que te votava,
Deus sabe se te amei!
Se te amei! se minha alma só queria
Pela tua viver,
No silêncio do amor e da ventura
Nos teus lábios morrer!
Mas vota ao menos no lembrar saudoso
Um ai ao sonhador…
Deus sabe se te amei!… Não te maldigo,
Maldigo o meu amor!…
Mas não… inda uma vez… Não posso ainda
Dizer o eterno adeus
E a sangue frio renegar dos sonhos
E blasfemar de Deus!
Oh! Fala-me de amor!… — eu quero crer-te
Um momento sequer…
E esperar na ventura e nos amores,
Num olhar de mulher!
É Ela! É Ela!
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou — é ela!…
Eu a vi… minha fada aérea e pura,
A minha lavadeira na janela!
Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas…
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! que profundo sono!…
Tinha na mão o ferro do engomado…
Como roncava maviosa e pura!
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido…
Fui beijá-la… roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido…
Oh! De certo … (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores!…
São versos dela… que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores…
Trem de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio…
É ela! é ela! — repeti tremendo,
Mas cantou nesse instante uma coruja…
Abri cioso a página secreta…
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela… eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela…
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!
Editor, O
A poesia transcrita é de Torquato,
Desse pobre poeta enamorado
Pelos encantos de Leonora esquiva,
Copiei-a do próprio manuscrito;
E, para prova da verdade pura
Deste prólogo meu, basta que eu diga
Que a letra era um garrancho indecifrável,
Mistura de borrões e linhas tortas!
Trouxe-ma do Arquivo lá da lua
E decifrou-ma familiar demônio…
Demais… infelizmente é bem verdade
Que Tasso lastimou-se da penúria
De não ter um ceitil para a candeia.
Provo com isso que do mundo todo
O sol é este Deus indefinível,
Ouro, prata, papel, ou mesmo cobre,
Mais santo do que os Papas — o dinheiro!
Byron no seu Don Juan votou-lhe cantos,
Filinto Elísio e Tolentino o sonham,
Foi o Deus de Bocage e d’Aretino,
— Aretino! essa incrível criatura
Lívida, tenebrosa, impura e bela,
Sublime… e sem pudor, onda de lodo
Em que do gênio profanou-se a pérola,
Vaso d’ouro que um óxido terrível
Envenenou de morte, alma — poeta
Que tudo profanou com as mãos imundas
E latiu como um cão mordendo um século…
………………………………………………………………….
Quem não ama o dinheiro? Não me engano
Se creio que Satã, à noite, veio
Aos ouvidos de Adão adormecido,
Na sua hora primeira, murmurar-lhe
Essa palavra mágica da vida,
Que vibra musical em todo o mundo,
Se houvesse o Deus-Vintém no Paraíso
Eva não se tentava pelas frutas,
Pela rubra maçã não se perdera:
Preferira decerto o louro amante
Que tine tão suave e é tão macio!
Se não faltasse o tempo a meus trabalhos,
Eu mostraria quanto o povo mente
Quando diz que — a poesia enjeita e odeia
As moedinhas doiradas. É mentira!
Desde Homero (que até pedia cobre),
Virgílio, Horácio, Calderón, Racine,
Boileau e o fabuleiro LaFontaine
E tantos que melhor decerto fora
De poetas copiar algum catálogo,
Todos a mil e mil por ele vivem
E alguns chegaram a morrer por ele!
Eu só peço licença de fazer-vos
Uma simples pergunta: — na gaveta
Se Camões visse o brilho do dinheiro…
Malfilâtre, Gilbert, o altivo Chatterton
Se o tivessem nas rotas algibeiras,
Acaso blasfemando morreriam?
Esperanças
Oh! si elle m’eût aimé…
ALFRED DE VIGNY, Chatterton
Se a ilusão de minh’alma foi mentida
E, leviana, da árvore da vida,
As flores desbotei…
Se por sonhos do amor de uma donzela
Imolei meu porvir e o ser por ela
Em prantos esgotei…
Se a alma consumi na dor que mata
E banhei de uma lágrima insensata
A última esperança,
Oh! não me odeies, não! eu te amo ainda,
Como dos mares pela noite infinda
A estrela da bonança!
Como nas folhas do Missal do templo
Os mistérios de Deus em ti contemplo
E na tu’alma os sinto!
Às vezes, delirante, se eu maldigo
As esperanças que sonhei contigo,
Perdoa-me, que minto!
Oh! não me odeies, não! eu te amo ainda,
Como do peito a aspiração infinda
Que me influi o viver…
E como a nuvem de azulado incenso…
Como eu amo esse afeto único, imenso
Que me fará morrer!
Rompeste a alva túnica luzente
Que eu doirava por ti de amor demente
E aromei de abusões…
Deste-me em troco lágrimas aspérrimas…
Ah! que morreram a sangrar misérrimas
As minhas ilusões!
Nos encantos das fadas da ventura
Podes dormir ao sol da formosura
Sempre bela e feliz!
Irmã dos anjos, sonharei contigo:
A alma a quem negaste o último abrigo
Chora… não te maldiz!
Chora e sonha e espera: a negra sina
Talvez no céu se apague em purpurina
Alvorada de amor…
E eu acorde no céu num teu abraço
E repouse tremendo em teu regaço
Teu pobre sonhador!
Fantasia
Quanti dolci pensier, quanto disio!
DANTE
C’est alors que ma voix
Murmure un nom tout bas… c’est alors que je vois
M’apparaître à demi, jeune, voluptueuse,
Sur ma couche penchée une femme amoureuse!
…………………………………………………………………
Oh! toi que j’ai rêvée,
Femme à mes longs baisers si souvent enlevée,
Ne viendras-tu jamais? ………………………………..
CH. DOVALLE
À noite sonhei contigo…
E o sonho cruel maldigo
Que me deu tanta ventura.
Uma estrelinha que vaga
Em céu de inverno e se apaga
Faz a noite mais escura!
Eu sonhava que sentia
Tua voz que estremecia
Nos meus beijos se afogar!
Que teu rosto descorava
E teu seio palpitava
E eu te via a desmaiar!
Que eu te beijava tremendo,
Que teu rosto enfebrecendo
Desmaiava a palidez!
Tanto amor tua alma enchia
E tanto fogo morria
Dos olhos na languidez!
E depois… dos meus abraços,
Tu caíste, abrindo os braços,
Gélida, dos lábios meus…
Tu parecias dormir,
Mas debalde eu quis ouvir
O alento dos seios teus…
E uma voz, uma harmonia
No teu lábio que dormia
Desconhecida acordou,
Falava em tanta ventura,
Tantas notas de ternura
No meu peito derramou!
O soído harmonioso
Falava em noites de gozo
Como nunca eu as senti.
Tinha músicas suaves,
Como no canto das aves,
De manhã eu nunca ouvi!
Parecia que no peito
Nesse quebranto desfeito
Se esvaía o coração…
Que meu olhar se apagava,
Que minhas veias paravam
E eu morria de paixão…
E depois… num santuário
Junto do altar solitário
Perto de ti me senti,
Dormias junto de mim…
E um anjo nos disse assim:
"Pobres amantes, dormi!"
Tu eras inda mais bela…
O teu leito de donzela
Era coberto de flores…
Tua fronte empalecida,
Frouxa a pálpebra descida,
Meu Deus! que frio palor!…
Dei-te um beijo… despertaste,
Teus cabelos afastaste,
Fitando os olhos em mim…
Que doce olhar de ternura!
Eu só queria a ventura
De um olhar suave assim!
Eu dei-te um beijo, sorrindo
Tremeste os lábios abrindo,
Repousaste ao peito meu…
E senti nuvens cheirosas,
Ouvi liras suspirarem,
Rompeu-se a névoa… era o céu!
Caía chuva de flores
E luminosos vapores
Davam azulada luz…
E eu acordei… que delírio!
Eu sonho findo o martírio
E acordo pregado à cruz!
Harmonia, A
Quanti dolci pensier, quanto disio!
DANTE
C’est alors que ma voix
Murmure un nom tout bas… c’est alors que je vois
M’apparaître à demi, jeune, voluptueuse,
Sur ma couche penchée une femme amoureuse!
…………………………………………………………………
Oh! toi que j’ai rêvée,
Femme à mes longs baisers si souvent enlevée,
Ne viendras-tu jamais? ………………………………..
CH. DOVALLE
À noite sonhei contigo…
E o sonho cruel maldigo
Que me deu tanta ventura.
Uma estrelinha que vaga
Em céu de inverno e se apaga
Faz a noite mais escura!
Eu sonhava que sentia
Tua voz que estremecia
Nos meus beijos se afogar!
Que teu rosto descorava
E teu seio palpitava
E eu te via a desmaiar!
Que eu te beijava tremendo,
Que teu rosto enfebrecendo
Desmaiava a palidez!
Tanto amor tua alma enchia
E tanto fogo morria
Dos olhos na languidez!
E depois… dos meus abraços,
Tu caíste, abrindo os braços,
Gélida, dos lábios meus…
Tu parecias dormir,
Mas debalde eu quis ouvir
O alento dos seios teus…
E uma voz, uma harmonia
No teu lábio que dormia
Desconhecida acordou,
Falava em tanta ventura,
Tantas notas de ternura
No meu peito derramou!
O soído harmonioso
Falava em noites de gozo
Como nunca eu as senti.
Tinha músicas suaves,
Como no canto das aves,
De manhã eu nunca ouvi!
Parecia que no peito
Nesse quebranto desfeito
Se esvaía o coração…
Que meu olhar se apagava,
Que minhas veias paravam
E eu morria de paixão…
E depois… num santuário
Junto do altar solitário
Perto de ti me senti,
Dormias junto de mim…
E um anjo nos disse assim:
"Pobres amantes, dormi!"
Tu eras inda mais bela…
O teu leito de donzela
Era coberto de flores…
Tua fronte empalecida,
Frouxa a pálpebra descida,
Meu Deus! que frio palor!…
Dei-te um beijo… despertaste,
Teus cabelos afastaste,
Fitando os olhos em mim…
Que doce olhar de ternura!
Eu só queria a ventura
De um olhar suave assim!
Eu dei-te um beijo, sorrindo
Tremeste os lábios abrindo,
Repousaste ao peito meu…
E senti nuvens cheirosas,
Ouvi liras suspirarem,
Rompeu-se a névoa… era o céu!
Caía chuva de flores
E luminosos vapores
Davam azulada luz…
E eu acordei… que delírio!
Eu sonho findo o martírio
E acordo pregado à cruz!
Hinos do Profeta
UM CANTO DO SÉCULO
Spiritus meus attenuabitur, dies mei
Breviabuntur, et solum mihi superest
Sepulchrum.
JOB
Debalde nos meus sonhos de ventura
Tento alentar minha esperança morta
E volto-me ao porvir:
A minha alma só canta a sepultura
E nem última ilusão beija e conforta
Meu suarento dormir…
Debalde! que exauriu-me o desalento:
A flor que aos lábios meus um anjo dera
Mirrou na solidão…
Do meu inverno pelo céu nevoento
Não se levantará nem primavera,
Nem raio de verão!
Invejo as flores que murchando morrem,
E as aves que desmaiam-se cantando
E expiram sem sofrer…
As minhas veias inda ardentes correm…
E na febre da vida agonizando
Eu me sinto morrer!
Tenho febre! meu cérebro transborda…
Eu morrerei mancebo, inda sonhando
Da esperança o fulgor…
Oh! cantemos ainda: a última corda
Inda palpita… morrerei cantando
O meu hino de amor!
Meu sonho foi a glória dos valentes,
De um nome de guerreiro a eternidade
Nos hinos seculares,
Foi nas praças, de sangue ainda quentes,
Desdobrar o pendão da liberdade
Nas frontes populares!
Meu amor foi a verde laranjeira,
Cheia de sombra, à noite abrindo as flores,
Melhor que ao meio-dia,
A várzea longa… a lua forasteira
Que pálida, como eu, sonhando amores,
De névoa se cobria.
Meu amor foi o sol que madrugava,
O canto matinal dos passarinhos
E a rosa predileta…
Fui um louco, meu Deus! quando tentava
Descorado e febril manchar no vinho,
Meus louros de poeta!
Meu amor foi o sonho dos poetas
— O belo, o gênio, de um porvir liberto
A sagrada utopia!…
E, à noite, pranteei como os profetas,
Dei lágrimas de sangue no deserto
Dos povos à agonia!…
Meu amor!?… foi a mãe que me alentava,
Que viveu, esperou por minha vida
E pranteia por mim…
E a sombra solitária que eu sonhava
Lânguida como vibração perdida
De roto bandolim…
E agora o único amor!… o amor eterno,
Que no fundo do peito aqui murmura
E acende os sonhos meus,
Que lança algum luar no meu inverno,
Que minha vida no penar apura,
— É o amor de meu Deus!
É só no eflúvio desse amor imenso
Que a alma derrama as emoções cativas
Em suspiros sem dor…
E no vapor do consagrado incenso
Que as sombras da esperança redivivas
Nos beijam o palor…
Eu vaguei pela vida sem conforto,
Esperei minha amante noite e dia
E o ideal não veio…
Farto de vida, breve serei morto…
Nem poderei ao menos na agonia
Descansar-lhe no seio…
Passei como Don Juan entre as donzelas,
Suspirei as canções mais doloridas
E ninguém me escutou…
Oh! nunca à virgem flor das faces belas
Sorvi o mel, nas longas despedidas…
Meu Deus! ninguém me amou!
Vivi na solidão, odeio o mundo…
E no orgulho embucei meu rosto pálido
Como um astro nublado…
Ri-me da vida — lupanar imundo,
Onde se volve o libertino esquálido
Na treva… profanado
Quantos hei visto desbotarem frios,
Manchados de embriaguez da orgia em meio
Nas infâmias do vício!
E quantos morreram inda sombrios,
Sem remorso dos negros devaneios…
Sentindo o precipício!
Quanta alma pura… e virgem menestrel,
Que adormeceu no tremedal sem fundo,
No lodo se manchou!
Que liras estaladas no bordel!
E que poetas que perdeu o mundo
Em Bocage e Marlowe!
Morrer! ali na sombra, na taverna,
A alma que em si continha um canto aéreo
No peito solitário!
Sublime como a nota obscura, eterna,
Que o bronze vibra em noites de mistério
No escuro campanário!
O meus amigos, deve ser terrível
Sobre as tábuas imundas, inda ebrioso,
Na solidão morrer!
Sentir as sombras dessa noite horrível
Surgirem dentre o leito pavoroso…
Sem um Deus para crer!
Sentir que a alma, desbotado lírio,
Dum mundo ignoto vagará chorando
Na treva mais escura…
E o cadáver sem lágrimas, nem círio,
Na calçada da rua, desbotando,
Não terá sepultura…
Perdoa-lhes, meu Deus! o sol da vida
Nas artérias inflama o sangue em lava
E o cérebro varia…
O século na vaga enfurecida
Mergulha a geração que se acordava…
E nuta de agonia.
São tristes deste século os destinos!…
Seiva mortal as flores que despontam
Infecta em seu abrir…
E o cadafalso e a voz dos Girondinos
Não falam mais na glória e não apontam
A aurora do porvir…
Fora belo talvez, em pé, de novo,
Como Byron, surgir, ou na tormenta
O homem de Waterloo!
Com sua idéia iluminar um povo,
Como o trovão da nuvem que rebenta
E o raio derramou…
Fora belo talvez sentir no crânio
A alma de Goethe e resumir na fibra
Milton, Homero e Dante,
Sonhar-se, num delírio momentâneo,
A alma da criação e o som que vibra
A terra palpitante…
Mas ah! o viajor nos cemitérios
Nessas nuas caveiras não escuta
Vossas almas errantes…
Do estandarte medonho nos impérios
A morte, leviana prostituta,
Não distingue os amantes!…
Eu, pobre sonhador! eu, terra inculta
Onde não fecundou-se uma semente,
Convosco dormirei…
E dentre nós a multidão estulta
Não vos distinguirá a fronte ardente
Do crânio que animei…
Ó morte! a que mistério me destinas?
Esse átomo de luz, que inda me alenta,
Quando o corpo morrer,
Voltará amanhã!… aziagas sinas!…
À terra numa face macilenta
Esperar e sofrer?
Meu Deus! antes, meu Deus! que uma outra vida,
Com teu braço eternal meu ser esmaga
E minh’alma aniquila:
A estrela de verão no céu perdida
Também, às vezes, seu alento apaga
Numa noite tranqüila!…
II
LÁGRIMAS DE SANGUE
Taedet animam meam vitae meae.
JOB
Ao pé das aras, ao clarão dos círios,
Eu te devera consagrar meus dias…
Perdão, meu Deus! perdão…
Se neguei meu Senhor nos meus delírios
E um canto de enganosas melodias
Levou meu coração!
Só tu, só tu podias o meu peito
Fartar de imenso amor e luz infinda
E uma saudade calma!
Ao sol de tua fé doirar meu leito
E de fulgores inundar ainda
A aurora na minh’alma.
Pela treva do espírito lancei-me,
P’ras esperanças suicidei-me rindo…
Sufocando-as sem dó…
No vale dos cadáveres sentei-me
E minhas flores semeei sorrindo
Dos túmulos no pó.
Indolente Vestal, deixei no templo
A pira se apagar! na noite escura
O meu gênio descreu…
Voltei-me para a vida… só contemplo
A cinza da ilusão que ali murmura:
Morre! — tudo morreu!
Cinzas, cinzas… Meu Deus! só tu podias
À alma que se perdeu bradar de novo:
— Ressurge-te ao amor!
Macilento, das minhas agonias
Eu deixaria as multidões do povo
Para amar o Senhor!
Do leito aonde o vício acalentou-me
O meu primeiro amor fugiu chorando…
Pobre virgem de Deus!
Um vendaval sem norte arrebatou-me,
Acordei-me na treva… profanando
Os puros sonhos meus!
Oh! se eu pudesse amar!… — É impossível!
Mão fatal escreveu na minha vida…
A dor me envelheceu…
O desespero pálido, impassível,
Agoirou minha aurora entristecida,
De meu astro descreu…
Oh! se eu pudesse amar! Mas não: agora
Que a dor emurcheceu meus breves dias,
Quero na cruz sanguenta
Derramá-los na lágrima que implora,
Que mendiga perdão pela agonia
Da noite lutulenta!
Quero na solidão… nas ermas grutas
A tua sombra procurar chorando
Com meu olhar incerto…
As pálpebras doridas nunca enxutas
Queimarei… teus fantasmas invocando
No vento do deserto.
De meus dias a lâmpada se apaga,
Roeram meu viver mortais venenos,
Curvo-me ao vento forte:
Teu fúnebre clarão que a noite alaga,
Como a estrela oriental, me guie ao menos
‘ Té ao vale da morte!
No mar dos vivos o cadáver bóia,
A lua é descorada como um crânio,
Este sol não reluz…
Quando na morte a pálpebra se engóia,
O anjo desperta em nós e subitânio
Voa ao mundo da luz!
Do val de Josafá pelas gargantas
Uiva na treva o temporal sem norte
E os fantasmas murmuram…
Irei deitar-me nessas trevas santas,
Banhar-me na friez lustral da morte,
Onde as almas se apuram!
Mordendo as clinas do corcel da sombra,
Sufocado, arquejante passarei
Na noite do infinito…
Ouvirei essa voz que a treva assombra,
Dos lábios de minh’alma entornarei
O meu cântico aflito!
Flores cheias de aroma e de alegria,
Por que na primavera abrir cheirosas
E orvalhar-vos abrindo?
As torrentes da morte vêm sombrias,
Hão de amanhã nas águas tenebrosas
Vos arrastar bramindo.
Morrer! morrer! — É voz das sepulturas!
Como a lua nas salas festivais
A morte em nós se estampa!
E os pobres sonhadores de venturas
Roxeiam amanhã nos funerais
E vão rolar na campa!
Que vale a glória, a saudação que enleva
Dos hinos triunfais na ardente nota
E as turbas devaneia?
Tudo isso é vão e cala-se na treva…
— Tudo é vão, como em lábios de idiota
Cantiga sem idéia.
Que importa? quando a morte se descarna,
A esperança do céu flutua e brilha
Do túmulo no leito:
O sepulcro é o ventre onde se encarna
Um verbo divinal que Deus perfilha
E abisma no seu peito!
Não chorem! que essa lágrima profunda
Ao cadáver sem luz não dá conforto…
Não o acorda um momento!
Quando a treva medonha o peito inunda,
Derrama-se nas pálpebras do morto
Luar de esquecimento!
Caminha no deserto a caravana,
Numa noite sem lua arqueja e chora…
O termo… é um sigilo!
O meu peito cansou da vida insana,
Da cruz à sombra, junto aos meus, agora,
Eu dormirei tranqüilo!
Dorme ali muito amor… muitas amantes,
Donzelas puras que eu sonhei chorando
E vi adormecer…
Ouço da terra cânticos cânticos errantes
E as almas saudosas suspirando
Que falam em morrer…
Aqui dormem sagradas esperanças,
Almas sublimes que o amor erguia…
E gelaram tão cedo!
Meu pobre sonhador! aí descansas,
Coração que a existência consumia
E roeu em segredo!
Quando o trovão romper as sepulturas,
Os crânios confundidos acordando
No lodo tremerão…
No lodo pelas tênebras impuras
Os ossos estalados tiritando
Dos vales surgirão!
Como rugindo a chama encarcerada
Dos negros flancos do vulcão rebenta
Golfejando nos céus,
Entre nuvem ardente e trovejada
Minh’alma se erguerá, fria, sangrenta,
Ao trono de meu Deus…
Perdoa, meu Senhor! O errante crente
Nos desesperos em que a mente abrasas
Não o arrojes p’lo crime!
Se eu fui um anjo que descreu demente
E no oceano do mal rompeu as asas,
Perdão! arrependi-me!
III
A TEMPESTADE
FRAGMENTO
Profeta escarnecido pelas turbas
Disse-lhes rindo — adeus!
Vim adorar na serrania escura
A sombra de meu Deus!
O céu enegreceu: lá no ocidente
Rubro o sol se apagou;
E galopa o corcel da tempestade
Nas nuvens que rasgou…
Da gruta negra a catarata rola,
Alaga a serra bronca,
Esbarra pelo abismo, escuma uivando
E pelas trevas ronca…
O chão nu e escarvado p’las torrentes
Trêmulo se fendeu…
Da serrania a lomba escaveirada
O raio enegreceu.
Cede a floresta ao arquejar fremente
Do rijo temporal,
Ribomba e rola o raio, nos abismos
Sibila o vendaval.
Nas trevas o relâmpago fascina,
A selva se incendeia…
Chuva de fogo pelas serras hirtas
Fantástica serpeia…
Amo a voz da tempestade,
Porque agita o coração…
E o espírito inflamado
Abre as asas no trovão!
A minh’alma se devora
Na vida morta e tranqüila…
Quero sentir emoções,
Ver o raio que vacila!
Enquanto as raças medrosas
Banham de prantos o chão,
Eu quero erguer-me na treva,
Saudar glorioso trovão!
Jeová! derrama em chuva
Os teus raios incendidos!
Tua voz na tempestade
Reboa nos meus ouvidos!
É quando as nuvens ribombam
E a selva medonha está,
Que no relâmpago surge
A face de Jeová!
A tuba da tempestade
Rouqueja nos longos céus,
De joelhos na montanha
Espero agora meu Deus!
O caminho rasgou-se: mil torrentes
Rebentam bravejando,
Rodam na espuma as rochas gigantescas
Pelo abismo tombando.
Como em noite do caos, os elementos
incandescentes lutam.
Negra — a terra, o céu — rubro, o mar — vozeia
— E as florestas escutam…
Tudo se escureceu e pela treva,
No chão sem sepultura,
Os mortos se revolvem tiritando
Na longa noite escura.
……………………………………………………………………
Profeta escarnecido pelas turbas
Disse-lhes rindo — adeus!
Vim fitar ao clarão da tempestade
— A sombra de meu Deus!
Idéias Íntimas
Fragmento
La chaise où je m’assieds, la natte où je me couche,
La table ou je t’écris ………………………………………….
………………………………………………………………………..
Mes gros souliers ferrés, mon baton, mon chapeau,
Mês libres pêle-mêle entassés sur leur planche.
………………………………………………………………………..
De cet espace étroit sont tout l’ameublement.
LAMARTINE, Jocelyn
I
Ossian — o bardo é triste como a sombra
Que seus cantos povoa. O Lamartine
É monótono e belo como a noite,
Como a lua no mar e o som das ondas…
Mas pranteia uma eterna monodia,
Tem na lira do gênio uma só corda,
— Fibra de amor e Deus que um sopro agita!
Se desmaia de amor… a Deus se volta,
Se pranteia por Deus… de amor suspira.
Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
Fantástico alemão, poeta ardente
Que ilumina o clarão das gotas pálidas
Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
Meu coração deleita-se… Contudo,
Parece-me que vou perdendo o gosto,
Vou ficando blasé: passeio os dias
Pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler, nem poetar… Vivo fumando.
Minha casa não tem menores névoas
Que as deste céu d’inverno… Solitário
Passo as noites aqui e os dias longos…
Dei-me agora ao charuto em corpo e alma:
Debalde ali de um canto um beijo implora,
Como a beleza que o Sultão despreza,
Meu cachimbo alemão abandonado!
Não passeio a cavalo e não namoro,
Odeio o lasquenet… Palavra d’honra!
Se assim me continuam por dois meses
Os diabos azuis nos frouxos membros,
Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso.
II
Enchi o meu salão de mil figuras.
Aqui voa um cavalo no galope,
Um roxo dominó as costas volta
A um cavaleiro de alemães bigodes,
Um preto beberrão sobre uma pipa,
Aos grossos beiços a garrafa aperta…
Ao longo das paredes se derramam
Extintas inscrições de versos mortos,
E mortos ao nascer!… Ali na alcova
Em águas negras se levanta a ilha
Romântica, sombria, à flor das ondas
De um rio que se perde na floresta…
— Um sonho de mancebo e de poeta,
El-Dorado de amor que a mente cria,
Como um Éden de noites deleitosas…
Era ali que eu podia no silêncio
Junto de um anjo… Além o romantismo!
Borra adiante folgaz caricatura
Com tinta de escrever e pó vermelho
A gorda face, o volumoso abdômen,
E a grossa penca do nariz purpúreo
Do alegre vendilhão entre botelhas,
Metido num tonel… Na minha cômoda
Meio encetado o copo, inda verbera
As águas d’oiro do Cognac ardente:
Negreja ao pé narcótica botelha
Que da essência de flores de laranja
Guarda o licor que nectariza os nervos.
Ali mistura-se o charuto havano
Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo…
A mesa escura cambaleia ao peso
Do titâneo Digesto, e ao lado dele
Childe-Harold entreaberto… ou Lamartine
Mostra que o romantismo se descuida
E que a poesia sobrenada sempre
Ao pesadelo clássico do estudo.
III
Reina a desordem pela sala antiga,
Desce a teia de aranha as bambinelas
À estante pulvurenta. A roupa, os livros
Sobre as poucas cadeiras se confundem.
Marca a folha do Faust um colarinho
E Alfredo de Musset encobre, às vezes
De Guerreiro, ou Valasco, um texto obscuro.
Como outrora do mundo os elementos
Pela treva jogando cambalhotas,
Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!
IV
Na minha sala três retratos pendem:
Ali Victor Hugo. — Na larga fronte
Erguidos luzem os cabelos louros,
Como c’roa soberba. Homem sublime!
O poeta de Deus e amores puros!
Que sonhou Triboulet, Marion Delorme
E Esmeralda — a Cigana… E diz a crônica
Que foi aos tribunais parar um dia
Por amar as mulheres dos amigos
E adúlteros fazer romances vivos.
V
Aquele é Lamennais — o bardo santo,
Cabeça de profeta, ungido crente,
Alma de fogo na mundana argila
Que as harpas de Sion vibrou na sombra,
Pela noite do século chamando
A Deus e à liberdade as loucas turbas.
Por ele a George Sand morreu de amores,
E dizem que… Defronte, aquele moço
Pálido, pensativo, a fronte erguida,
Olhar de Bonaparte em face austríaca,
Foi do homem secular as esperanças:
No berço imperial um céu de agosto
Nos cantos de triunfo despertou-o…
As águias de Wagram e de Marengo
Abriam flamejando as longas asas
Impregnadas do fumo dos combates
Na púrpura dos Césares, guardando-o…
E o gênio do futuro parecia
Predestiná-lo à glória. A história dele?…
Resta um crânio nas urnas do estrangeiro…
Um loureiro sem flores nem sementes…
E um passado de lágrimas… A terra
Tremeu ao sepultar-se o Rei de Roma
Pode o mundo chorar sua agonia
E os louros de seu pai na fronte dele
Infecundos depor… Estrela morta,
Só pode o menestrel sagrar-te prantos!
VI
Junto a meu leito, com as mãos unidas,
Olhos fitos no céu, cabelos soltos,
Pálida sombra de mulher formosa
Entre nuvens azuis pranteia orando.
É um retrato talvez. Naquele seio
Porventura sonhei douradas noites,
Talvez sonhando desatei sorrindo
Alguma vez nos ombros perfumados
Esses cabelos negros e em delíquio
Nos lábios dela suspirei tremendo,
Foi-se a minha visão… E resta agora
Aquele vaga sombra na parede
— Fantasma de carvão e pó cerúleo! —
Tão vaga, tão extinta e fumacenta
Como de um sonho o recordar incerto.
VII
Em frente do meu leito, em negro quadro,
A minha amante dorme. É uma estampa
De bela adormecida. A rósea face
Parece em visos de um amor lascivo
De fogos vagabundos acender-se…
E como a nívea mão recata o seio…
Oh! quanta s vezes, ideal mimoso,
Não encheste minh’alma de ventura,
Quando louco, sedento e arquejante
Meus tristes lábios imprimi ardentes
No poento vidro que te guarda o sono!
VIII
O pobre leito meu, desfeito ainda,
A febre aponta da noturna insônia.
Aqui lânguido à noite debati-me
Em vãos delírios anelando um beijo…
E a donzela ideal nos róseos lábios,
No doce berço do moreno seio
Minha vida embalou estremecendo…
Foram sonhos contudo! A minha vida
Se esgota em ilusões. E quando a fada
Que diviniza meu pensar ardente
Um instante em seus braços me descansa
E roça a medo em meus ardentes lábios
Um beijo que de amor me turva os olhos…
Me ateia o sangue, me enlanguece a fronte…
Um espírito negro me desperta,
O encanto do meu sonho se evapora…
E das nuvens de nácar da ventura
Rolo tremendo à solidão da vida!
IX
Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre meu peito!
Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher… e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida
Passar delicioso… Que delírios!
Acordo palpitante… inda a procuro:
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo…
Imploro uma ilusão… tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos?
X
Meu pobre leito! eu amo-te contudo!
Aqui levei sonhando noites belas;
As longas horas olvidei libando
Ardentes gotas de licor dourado,
Esqueci-as no fumo, na leitura
Das páginas lascivas do romance…
Meu leito juvenil, da minha vida
És a página d’oiro. Em teu asilo
Eu sonho-me poeta e sou ditoso…
E a mente errante devaneia em mundos
Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes
Do levante no sol entre odaliscas
Momentos não passei que valem vidas!
Quanta música ouvi que me encantava!
Quantas virgens amei! que Margaridas,
Que Elviras saudosas e Clarissas,
Mais trêmulo que Faust, eu não beijava…
Mais feliz que Don Juan e Lovelace
Não apertei ao peito desmaiando!
Ó meus sonhos de amor e mocidade,
Porque ser tão formosos, se devíeis
Me abandonar tão cedo… e eu acordava
Arquejando a beijar meu travesseiro?
XI
Junto do leito meus poetas dormem
— O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron
Na mesa confundidos. Junto deles
Meu velho candeeiro se espreguiça
E parece pedir a formatura.
Ó meu amigo, ó velador noturno,
Tu não me abandonaste nas vigílias,
Quer eu perdesse a noite sobre os livros,
Quer, sentado no leito, pensativo
Relesse as minhas cartas de namoro…
Quero-te muito bem, ó meu comparsa
Nas doudas cenas de meu drama obscuro!
E num dia de spleen, vindo a pachorra,
Hei de evocar-te dum poema heróico
Na rima de Camões e de Ariosto,
Como padrão às lâmpadas futuras!
…………………………………………………………………..
XII
Aqui sobre esta mesa junto ao leito
Em caixa negra dois retratos guardo:
Não os profanem indiscretas vistas.
Eu beijo-os cada noite: neste exílio
Venero-os juntos e os prefiro unidos…
— Meu pai e minha mãe! Se acaso um dia,
Na minha solidão me acharem morto,
Não os abra ninguém. Sobre meu peito
Lancem-os em meu túmulo. Mais doce
Será certo o dormir da noite negra
Tendo no peito essas imagens puras.
XIII
Havia uma outra imagem que eu sonhava
No meu peito, na vida e no sepulcro,
Mas ela não o quis… rompeu a tela,
Onde eu pintara meus dourados sonhos.
Se posso no viver sonhar com ela,
Essa trança beijar de seus cabelos
E essas violetas inodoras, murchas,
Nos lábios frios comprimir chorando,
Não poderei na sepultura, ao menos,
Sua imagem divina ter no peito.
XIV
Parece que chorei… Sinto na face
Uma perdida lágrima rolando…
Satã leve a tristeza! Olá, meu pagem,
Derrama no meu copo as gotas últimas
Dessa garrafa negra…
Eia! bebamos!
És o sangue do gênio, o puro néctar
Que as almas de poeta diviniza,
O condão que abre o mundo das magias!
Vem, fogoso Cognac! É só contigo
Que sinto-me viver. Inda palpito,
Quando os eflúvios dessas gotas áureas
Filtram no sangue meu correndo a vida,
Vibram-me os nervos e as artérias queimam,
Os meus olhos ardentes se escurecem
E no cérebro passam delirosos
Assomos de poesia… Dentre a sombra
Vejo num leito d’ouro a imagem dela
Palpitante, que dorme e que suspira,
Que seus braços me estende…
Eu me esquecia:
Faz-se noite; traz fogo e dois charutos
E na mesa do estudo acende a lâmpada…
Lágrimas da Vida
On pouvait à vingt ans le clouer dans la bière
— Cadavre sans illusions…
THÉOPH. GAUTIER
Je me suis assis en blasphémant sur le bord
du chemin. Et je me suis dit: — je n’irai pas plus
loin. Mais je suis bien jeune encore pour mourir,
n’est-ce pas, Jane?
GEORGE SAND, Aldo
Se tu souberas que lembrança amarga
Que pensamento desflorou meus dias,
Oh! tu não creras meu sorrir leviano,
Nem minhas insensatas alegrias!
Quando junto de ti eu sinto, às vezes,
Em doce enleio desvairar-me o siso,
Nos meus olhos incertos sinto lágrimas…
Mas da lágrima em troco eu temo um riso!
O meu peito era um templo — ergui nas aras
Tua imagem que a sombra perfumava…
Mas ah! emurcheceste as minhas flores!
Apagaste a ilusão que o aviventava!
E por te amar, por teu desdém, perdi-me…
Tresnoitei-me nas orgias macilento,
Brindei blasfemo ao vício e da minh’alma
Tentei me suicidar no esquecimento!
Como um corcel abate-se na sombra,
A minha crença agoniza e desespera…
O peito e lira se estalaram juntos…
E morro sem ter tido primavera!
Como o perfume de uma flor aberta
Da manhã entre as nuvens se mistura,
A minh’alma podia em teus amores
Como um anjo de Deus sonhar ventura!
Não peço o teu amor… eu quero apenas
A flor que beijas para a ter no seio…
E teus cabelos respirar medroso…
E a teus joelhos suspirar d’enleio!
E quando eu durmo… e o coração ainda
Procura na ilusão tua lembrança,
Anjo da vida passa nos meus sonhos
E meus lábios orvalha d’esperança!
Lélia
Passou talvez ao alvejar da lua,
Como incerta visão na praia fria…
Mas o vento do mar não escutou-lhe
Uma voz a seu Deus!…ela não cria!
Uma noite, aos murmúrios do piano
Pálida misturou um canto aéreo…
Parecia de amor tremer-lhe a vida
Revelando nos lábios um mistério!
Porém, quando expirou a voz nos lábios,
Ergueu sem pranto a fronte descorada,
Pousou a fria mão no seio imóvel,
Sentou-se no divã… sempre gelada!
Passou talvez do cemitério à sombra
Mas nunca numa cruz deixou seu ramo,
Ninguém se lembra de lhe ter ouvido
Numa febre de amor dizer: "eu amo!"
Não chora por ninguém… e quando, à noite,
Lhe beija o sono as pálpebras sombrias
Não procura seu anjo à cabeceira
E não tem orações, mas ironias!
Nunca na terra uma alma de poeta,
Chorosa, palpitante e gemebunda
Achou nessa mulher um hino d’alma
E uma flor para a fronte moribunda.
Lira sem cordas não vibrou d’enlevo,
As notas puras da paixão ignora,
Não teve nunca n’alma adormecida
O fogo que inebria e que devora!
Descrê. Derrama fel em cada riso,
Alma estéril não sonha uma utopia…
Anjo maldito salpicou veneno
Nos lábios que tressuam de ironia.
É formosa contudo. Há dessa imagem
No silêncio da estátua alabastrina
Como um anjo perdido que ressumbra
Nos olhos negros da mulher divina.
Há nesse ardente olhar que gela e vibra,
Na voz que faz tremer e que apaixona
O gênio de Satã que transverbera,
E o langor pensativo da Madona!
É formosa, meu Deus! Desde que a vi
Na minh’alma suspira a sombra dela…
E sinto que podia nesta vida
Num seu lânguido olhar morrer por ela.
Lembrança de Morrer
No more! O never more!
SHELLEY
Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento caminheiro…
Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro…
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia,
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade — e dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas…
E de ti, ó minha mãe! pobre coitada
Que por minhas tristezas te definhas!
De meu pai… de meus únicos amigos,
Poucos, — bem poucos! e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei!… que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Ó tu, que à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores…
Se vivi… foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo…
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu! eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz! e escrevam nela:
— Foi poeta, sonhou e amou na vida. —
Sombras do vale, noites da montanha,
Que minh’alma cantou e amava tanto,
Protejei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe um canto!
Mas quando preludia ave d’aurora
E quando, à meia-noite, o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri as ramas…
Deixai a lua pratear-me a lousa!
Lembrança dos quinze anos
Et pourtant sans plaisir je dépense la vie;
Et souvent quand, pour moi, les heures de la nuit
S’écoulent sans sommeil, sans songes, sans bruit,
Il passe dans mon coeur de brillantes pensées,
D’invincibles désirs, de fougues insensées!
CH. DOVALLE
… Heureux qui, dès les premiers ans,
A senti de son sang, dans ses veines stagnantes,
Couler d’un pas égal les ondes languissantes;
Dont les désirs jamais n’ont troublé la raison;
Pour qui les yeux n’ont point de suave poison.
ANDRÉ CHÉNIER
Nos meus quinze anos eu sofria tanto!
Agora enfim meu padecer descansa…
Minh’alma emudeceu, na noite dela
Adormeceu a pálida esperança!
Já não sinto ambições e se esvaíram
As vagas formas, a visão confusa
De meus dias de amor, nem doces voltam
Os sons aéreos da divina Musa!
Porventura é melhor as brandas fibras
Embotadas sentir nessa dormência…
E viver esta vida… e na modorra
Repousar-se na sombra da existência!
E que noites de sôfrego desejo!
Que pressentir de uma volúpia ardente!
Que noites de esperança e desespero!
E que fogo no sangue incandescente!
Minh’alma juvenil era uma lira
Que ao menor bafejar estremecia…
A triste decepção rompeu-lhe as cordas…
Só vibra num prelúdio d’agonia!
Quanto, quanto sonhei! como velava
Cheio de febre, ansioso de ternuras!
Como era virgem o meu lábio ardente!
A alma tão santa! as emoções tão puras!
Como o peito sedento palpitava
Ao roçar de um vestido, à voz divina
De uma pálida virgem! ao murmúrio
De uns passos de mulher pela campina!
E como t’esperei, anjo dos sonhos,
Ideal de mulher que me sorrias,
E me beijando nesta fronte pálida
A um mundo belo de ilusões me erguias!
O meu peito era um eco de murmúrios…
De delírio vivi como os insanos!
Nos meus quinze anos eu sofria tanto!
Ardi ao fogo dos primeiros anos!
Agora vivo no deserto d’alma…
Um mundo de saudade ali dormita…
Não o quero acordar… oh! não ressurjam
Aquelas sombras na minh’alma aflita!
Mas por que volves os teus olhos negros
Tão langues sobre mim? Ilná, suspiras?
Por que derramas tanto amor nos olhos?
Eu não posso te amar e tu deliras.
Também a aurora tem neblina e sombras,
E há vozes que emudece a desventura,
Há flores em botão que se desfolham,
E a alma também morre prematura.
Repousa no meu peito o meu passado,
Minh’alma adormeceu por um momento…
Sou a flor sem perfume em sol d’inverno…
Uma lousa que encerra? — o esquecimento!…
Não me fales de amor… um teu suspiro
Tantos sonhos no peito me desperta!…
Sinto-me reviver e como outrora
Beijo tremendo uma visão incerta…
Ah! quando as belas esperanças murcham
E o gênio dorme e a vida desencanta,
D’almas estéreis a ironia amarga
E a morte sobre os sonhos se levanta…
Embora fundo o sono do descrido
E o silêncio do peito e seu retiro…
Inda pode inflamar muitos amores
O sussurro de um lânguido suspiro!
Lenço Dela, O
Quando, a primeira vez, da minha terra
Deixei as noites de amoroso encanto,
A minha doce amante suspirando
Volveu-me os olhos úmidos de pranto.
Um romance cantou de despedida,
Mas a saudade amortecia o canto!
Lágrimas enxugou nos olhos belos…
E deu-me o lenço que molhava o pranto.
Quantos anos, contudo, já passaram!
Não olvido porém amor tão santo!
Guardo ainda num cofre perfumado
O lenço dela que molhava o pranto…
Nunca mais a encontrei na minha vida,
Eu contudo, meu Deus, amava-a tanto!
Oh! quando eu morra estendam no meu rosto
O lenço que eu banhei também de pranto.
Macário
Puff
Criei para mim algumas idéias teóricas sobre o drama. Algum
dia, se houver tempo e vagar, talvez as escreva e de a lume.
O meu protótipo seria alguma coisa entre o teatro inglês, o
teatro espanhol e o teatro grego:-a forca das paixões ardentes de Shakespeare,
de Marlowe e Otway, a imaginação de Calderon de la Barca e Lope
de Vega, e a simplicidade de Ésquilo e Eurípedes:-alguma coisa
como Goethe sonhou, e cujos elementos eu iria estudar numa parte dos dramas
dele, em Goetz de Berlichingen, Clavijo, Egmont, no episódio da Margarida
de Faust e a outra na simplicidade ática de sua Ifigênia. Estudá-lo-ia
talvez em Schiller, nos dois dramas do Wallenstein, nos Salteadores, no D.
Carlos; estudá-lo-ia ainda na Noiva de Messina com seus coros, com
sua tendência à regularidade.
É um tipo talvez novo, que não se parece com o misticismo do
teatro de Werner, ou as tragédias teogônicas de OEhlenschläger
e ainda menos com o de Kotzebue ou o de Victor Hugo e Dumas.
Não se pareceria com o de Ducis, nem com aquela tradução
bastarda, verdadeira castração do Otelo de Shakespeare, feita
pelo poeta sublime do Chatterton, o conde Vigny. Quando não se tem
alma adejante para emparelhar com o gênio vagabundo do autor de Hamlet,
haja ao menos modéstia bastante para não querer emendá-lo.
Por isso o Otelo de Vigny é morto. Era uma obra de talento, mas devia
ser um rasgo de gênio.
Emendá-lo! pobres pigmeus que querem limar as monstruosidades do Colosso!
Raça de Liliput que queria aperfeiçoar os membros do gigante
disforme para eles de Gulliver!
E digam-me; que é o disforme? há ai um anão ou um gigante?
Não é assim que eu o entendo. Haveria enredo, mas não
a complicação exagerada da comédia espanhola. Haveria
paixões, porque o peito da tragédia deve bater, deve sentir-se
ardente; mas não requintaria o horrível, e não faria
um drama daqueles que parecem feitos para reanimar corações-cadáveres,
como a pilha galvânica as fibras nervosas do morto!
Não; o que eu penso é diverso. É uma grande idéia
que talvez nunca realize. É difícil encerrar a torrente de fogo
dos anjos decaídos de Milton ou o pântano de sangue e lágrimas
do Alighieri dentro do pentâmetro de mármore da tragédia
antiga. Contam que a primeira idéia de Milton foi fazer do Paraíso
Perdido uma tragédia, um mistério…não sei o quê..:
não o pôde: o assunto transbordava, crescia; a torrente se tornava
num oceano. É difícil marcar o lugar onde pára o homem
e começa o animal, onde cessa a alma e começa o instinto, onde
a paixão se torna ferocidade. É difícil marcar onde deve
parar o galope do sangue nas artérias, e a violência da dor no
crânio. Contudo deve haver — e o há-um limite às expansões
do autor, para que não haja exageração, nem degenere
num papel de fera o papel de homem. O Pobre Idiota tem esse defeito entre
mil outros. A cena do subterrâneo é interessante, mas é
de um interesse semelhante àquele que excitava o Jocko ou o homem dos
matos, aquele macaco representado por Morietti que fazia chorar a platéia.
O Pobre Idiota representa o idiotismo do homem caído na animalidade.
O ator fez o papel que devia: não exagerou: representou a fera na sua
fúria, uma fera, onde por um enxerto caprichoso do imitador de Hauser,
havia um amor poético por uma flor e uma estampa!
A vida e só a vida! mas a vida tumultuosa, férvida, anelante,
às vezes sangrenta-eis o drama. Se eu escrevesse, se minha pena se
desvairasse na paixão, eu a deixaria correr assim: Iago enganaria o
Mouro, traíria Cássio, perderia Desdêmona e desfrutaria
a bolsa de Rodrigo. Cássio seria apunhalado na cena. Otelo sufocaria
sua Veneziana com o travesseiro, escondê-la-ia com o cortinado quando
entrasse Emília; chamaria sua esposa -a whore-e gabar-se-ia de seu
feito. O honest, most honest Iago viria ver a sua vítima, Emília
soluçando a mostraria ao demônio; o Africano delirante, doido
de amor, doido de a ter morto, morreria beijando os lábios pálidos
da Veneziana. Hamlet no cemitério conversaria com os coveiros, ergueria
do chão a caveira de Yorick- o truão; Ofélia coroada
de flores cantaria insana as balatas obscenas do povo: Laertes apertaria nos
braços o cadáver da pobre louca. Orlando no What you will penduraria
suas rimas de Rosalinda nos arvoredos dos Cevennes. Isto seria tudo assim.
Se eu imaginasse o Otelo, seria com todo o seu esgar, seu desvario selvagem,
com aquela forma irregular que revela a paixão do sangue. É
que as nódoas de sangue quando caem no chão não têm
forma geométrica. As agonias da paixão, do desespero e do ciúme
ardente quando coam num sangue tropical não se derretem em alexandrinos,
não se modulam nas falas banais dessa poesia de convenção
que se chama-conveniências dramáticas.
Mas se eu imaginasse primeiro a minha idéia, se a não escrevesse
como um sonâmbulo, ou como falava a Pitonisa convulsa agitando-se na
trípode, se pudesse, antes de fazer meu quadro, traçar as linhas
no painel, fálo-ia regular como um templo grego ou como a Atália,
arquétipa de Racine.
São duas palavras estas: mas estas duas palavras têm um fim:
é declarar que o meu tipo, a minha teoria, a minha utopia dramática,
não é esse drama que aí vai. Esse é apenas como
tudo que até hoje tenho esboçado, como um romance que escrevi
numa noite de insônia, como um poema que cismei numa semana de febre
-uma aberração dos princípios da ciência, uma exceção
às minhas regras mais íntimas e sistemáticas. Esse drama
é apenas uma inspiração confusa, rápida, que realizei
à pressa como um pintor febril e trêmulo.
Vago como uma aspiração espontânea, incerto como um sonho;
como isso o dou, tenham-no por isso.
Quanto ao nome, chamem-no drama, comédia, dialogismo; não importa.
Não o fiz para o teatro; é um filho pálido dessas fantasias
que se apoderam do crânio e inspiram a Tempestade a Shakespeare, Beppo
e o IX Canto de D. Juan a Byron; que fazem escrever Annunziata e O Conto de
Antônia a quem é Hoffmann, ou Fantasio ao poeta de Namouna.
PRIMEIRO EPISÓDIO
NUMA ESTALAGEM DA ESTRADA
MACÁRIO (falando para fora)
Olá, mulher da venda! Ponham-me na sala uma garrafa de vinho. Façam-me
a cama, e mandem-me ceia: palavra de honra que estou com fome! Dêem
alguma ponta de charuto ao burro que está suado como um frade bêbado!
Sobretudo não esqueçam o vinho!
UMA VOZ
Há aguardente unicamente, mas boa.
MACÁRIO
Aguardente! Pensas que sou algum jornaleiro?… Andar seis léguas
e sentir-se com a goela seca! Ó mulher maldita! aposto que também
não tens água?
A MULHER
E pura, senhor! Corre ali embaixo uma fonte que é limpa como o vidro
e fria como uma noite de geada. (Sai) .
MACÁRIO
Eis aí o resultado das viagens. Um burro frouxo. uma garrafa vazia.
(Tira uma garrafa do bolso). Conhaque! És um belo companheiro de viagem.
És silencioso como um vigário em caminho, mas no silêncio
que inspiras, como nas noites de luar, ergue-se às vezes um canto misterioso
que enleva! Conhaque! Não te ama quem não te entende! Não
te amam essas bocas feminis acostumadas ao mel enjoado da vida, que não
anseiam prazeres desconhecidos, sensações mais fortes! E eis-te
aí vazia, minha garrafa! Vazia como mulher bela que morreu! Hei de
fazer-te uma nênia.
E não ter nem um gole de vinho! Quando não há o amor,
há o vinho; quando não há o vinho, há o fumo;
e quando não há amor, nem vinho, nem fumo, há o spleen.
O spleen encarnado na sua forma mais lúgubre naquela velha taverneira
repassada de aguardente que tresanda!
(Entra a mulher com uma bandeja).
A MULHER
Eis aqui a ceia.
MACÁRIO
Ceia! que diabo de comida verde é essa? Será algum feixe de
capim? Leva para o burro.
A MULHER
São couves…
MACÁRIO
Leva para o burro.
A MULHER
É fritado em toucinho…
MACÁRIO
Leva para o burro com todos os diabos!(Atira-lhe o prato na cabeça.
A mulher sai. Macário come).
UM DESCONHECIDO (entrando)
Boa-noite, companheiro.
MACÁRIO (comendo)
Boa-noite
O DESCONHECIDO
Tendes um apetite!
MACÁRIO
Entendo-vos. Quereis comer? sentai-vos. Quereis conversar? esperai um pouco.
O DESCONHECIDO
Esperarei. (Senta-se).
MACÁRIO (comendo)
Parece-me que não é a primeira vez que vos encontro. Quando
a noite caía, ao subir da garganta da serra
O DESCONHECIDO
Um vulto com um ponche vermelho e preto roçou a bota por vossa perna…
MACÁRIO
Tal e qual por sinal que era fria como o focinho de um cão.
O DESCONHECIDO
Era eu.
MACÁRIO
Há um lugar em que estende-se um vale cheio de grama. À direita
corre uma torrente que corta a estrada pela frente. . Há uma ladeira
mal calçada que se perde pelo mato…
O DESCONHECIDO
Aí encontrei-vos outra vez… A propósito, não bebeis
?
MACÁRIO
Pois não sabeis? Essa maldita mulher só tem aguardente; e eu
que sou capaz de amar a mulher do povo como a filha da aristocracia, não
posso beber o vinho do sertanejo…O DESCONHECIDO tira uma garrafa do bolso
e derrama vinho no copo de Macário).
Ah!
MACÁRIO
Vinho! (Bebe). À fé que é vinho de Madeira! À
vossa saúde, cavalheiro!
O DESCONHECIDO
À vossa. ( Tocam os copos) .
MACÁRIO
Tendes as mãos tão frias!
O DESCONHECIDO
É da chuva. (Sacode o ponche). Vede: estou molhado até os ossos!
MACÁRIO
Agora acabei: conversemos ..
O DESCONHECIDO
Vistes-me duas vezes. Eu vos vi ainda outra vez. Era na serra, no alto da
serra. A tarde caía, os vapores azulados do horizonte se escureciam.
Um vento frio sacudia as folhas da montanha. E vós contempláveis
a tarde que caía. Além, nesse horizonte, o mar como uma linha
azul orlada de escuma e de areia…e no vale, como bando de gaivotas brancas
sentadas num paul, a cidade que algumas horas antes tínheis deixado.
Daí vossos olhares se recolhiam aos arvoredos que vos rodeavam, ao
precipício cheio das flores azuladas e vermelhas das trepadeiras, às
torrentes que mugiam no fundo do abismo, e defronte víeis aquela cachoeira
imensa que espedaça suas águas amareladas, numa chuva de escuma,
nos rochedos negros do seu leito. E olháveis tudo isso com um ar perfeitamente
romântico. Sois poeta?
MACÁRIO
Enganai-vos. Minha mula estava cansada. Sentei-me ali para descansá-la.
Esperei que o fresco da neblina a reforçasse. Nesse tempo divertia-me
em atirar pedras no despenhadeiro e contar os saltos que davam.
O DESCONHECIDO
É um divertimento agradável.
MACÁRIO
Nem mais nem menos que cuspir num poço, matar moscas, ou olhar para
a fumaça de um cachimbo A minha mala …(Chega à janela). Ó
mulher da casa! olá! o de casa!
UMAVOZ(de fora)
Senhor!
MACÁRIO
Desate a mala de meu burro e traga-m’a aqui .
A VOZ
O burro?
MACÁRIO
A mala, burro!
A VOZ
A mala com o burro?
MACÁRIO
Amarra a mala nas tuas costas e amarra o burro na cerca.
A VOZ
O senhor é o moço que chegou primeiro?
MACÁRIO
Sim. Mas vai ver o burro.
A VOZ
Um moço que parece estudante?
MACÁRIO
Sim. Mas anda com a mala.
A VOZ
Mas como hei-de ir buscar a mala? Quer que vá a pé?
MACÁRIO
Esse diabo é doido! Vai a pé, ou monta numa vassoura como tua
mãe!
A VOZ
Descanse, moço. O burro há-de aparecer. Quando madrugar iremos
procurar.
OUTRA VOZ
Havia de ir pelo caminho do Nhô Quito. Eu conheço o burro…
MACÁRIO
E minha mala?
A VOZ
Não vê? Está chovendo a potes!…
MACÁRIO (fecha a janela).
Malditos! (Atira com uma cadeira no chão).
O DESCONHECIDO
Que tendes, companheiro?
MACÁRIO
Não vedes? O burro fugiu…
O DESCONHECIDO
Não será quebrando cadeiras que o chamareis…
MACÁRIO
Porém a raiva…
O DESCONHECIDO
Bebei mais um copo de Madeira. (Bebem). Levais de certo alguma preciosidade
na mala? (Sorri-se).
MACÁRIO
Sim…
O DESCONHECIDO
Dinheiro?
MACÁRIO
Não, mas…
O DESCONHECIDO
A coleção completa de vossas cartas de namoro, algum poema
em borrão, alguma carta de recomendação?
MACÁRIO
Nem isso, nem aquilo…Levo…
O DESCONHECIDO
A mala não pareceu-me muito cheia. Senti alguma coisa sacolejar dentro.
Alguma garrafa de vinho?
MACÁRIO
Não! não! mil vezes não! Não concebeis, uma perda
imensa, irreparável… era o meu cachimbo ..
O DESCONHECIDO
Fumais?
MACÁRIO
Perguntai de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o copo sem
vinho, a noite sem mulher… não me pergunteis se fumo!
O DESCONHECIDO ( Dá-lhe um cachimbo. )
Eis aí um cachimbo primoroso. É de pura escuma do mar. O tubo
é de pau de cereja. O bocal é de âmbar.
MACÁRIO
Bofé! Uma Sultana o fumaria! E fumo?
O DESCONHECIDO
É uma invenção nova. Dispensa-o. Acendei-o na vela.
(Macário acende).
MACÁRIO
E vós?
O DESCONHECIDO
Não vos importeis comigo. (Tira outro cachimbo e fuma)
MACÁRIO
Sois um perfeito companheiro de viagem. Vosso nome?
O DESCONHECIDO
Perguntei-vos o vosso?
MACÁRIO
O caso é que é preciso que eu pergunte primeiro. Pois eu sou
um estudante. Vadio ou estudioso, talentoso ou estúpido, pouco importa.
Duas palavras só: amo o fumo e odeio o Direito Romano. Amo as mulheres
e odeio o romantismo.
O DESCONHECIDO
Tocai! Sois um digno rapaz. (Apertam a mão).
MACÁRIO
Gosto mais de uma garrafa de vinho que de um poema, mais de um beijo que
do soneto mais harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhos, ao luar sonolento,
às noites límpidas, acho isso sumamente insípido. Os
passarinhos sabem só uma cantiga. O luar é sempre o mesmo. Esse
mundo é monótono a fazer morrer de sono.
O DESCONHECIDO
E a poesia?
MACÁRIO
Enquanto era a moeda de ouro que corria só pela mão do rico,
ia muito bem. Hoje trocou-se em moeda de cobre; não há mendigo,
nem caixeiro de taverna que não tenha esse vintem azinhavrado. Entendeis-me?
O DESCONHECIDO
Entendo. A poesia, de popular tornou-se vulgar e comum. Antigamente faziam-na
para o povo; hoje o povo fá-la-á para ninguém .
MACÁRIO ( bebe )
Eu vos dizia pois… Onde tínhamos ficado?
O DESCONHECIDO
Não sei. Parece-me que falávamos sobre o Papa.
MACÁRIO
Não sei: creio que o vosso vinho subiu-me à cabeça.
Puah! vosso cachimbo tem sarro que tresanda!
O DESCONHECIDO
Sois triste, moço… Palavra que eu desejaria ver essa poesia vossa.
MACÁRIO
Por quê?
O DESCONHECIDO
Porque havia ser alegre como Arlequim assistindo a seu enterro…
MACÁRIO
Poesias a quê?
O DESCONHECIDO
À luz, ao céu, ao mar…
MACÁRIO
Primeiramente — o mar é uma coisa soberanamente insípida…O
enjôo é tudo quanto há mais prosaico. Sou daqueles de
quem fala o corsário de Byron "whose soul would sicken o’er the
heaving wave".
O DESCONHECIDO
E enjoais a bordo?
MACÁRIO
É a única semelhança que tenho com D. Juan.
O DESCONHECIDO
Modéstia!
MACÁRIO
Pergunta à taverneira se apertei-lhe o cotovelo, pisquei-lhe o olho,
ou pus-lhe a mão nas tetas
O DESCONHECIDO
Um dragão!
MACÁRIO
Uma mulher! Todas elas são assim. As que não são assim
por fora o são por dentro. Algumas em falta de cabelos na cabeça
os têm no coração. As mulheres são como as espadas,
às vezes a bainha é de ouro e de esmalte, e a folha é
ferrugenta.
O DESCONHECIDO
Falas como um descrido, como um saciado! E contudo ainda tens os beiços
de criança! Quantos seios de mulher beijaste além do seio de
tua ama de leite? Quantos lábios além dos de tua irmã?
MACÁRIO
A vagabunda que dorme nas ruas, a mulher que se vende corpo e alma, porque
sua alma é tão desbotada como seu corpo, te digam minhas noites.
Talvez muita virgem tenha suspirado por mim! Talvez agora mesmo alguma donzela
se ajoelhe na cama e reze por mim!
O DESCONHECIDO
Na verdade és belo. Que idade tens?
MACÁRIO
Vinte anos. Mas meu peito tem batido nesses vinte anos tantas vezes como
o de um outro homem em quarenta.
O DESCONHECIDO
E amaste muito?
MACÁRIO
Sim e não. Sempre e nunca.
O DESCONHECIDO
Fala claro.
MACÁRIO
Mais claro que o dia. Se chamas o amor a troca de duas temperaturas, o aperto
de dois sexos, a convulsão de dois peitos que arquejam, o beijo de
duas bocas que tremem, de duas vidas que se fundem …tenho amado muito e
sempre!… Se chamas o amor o sentimento casto e poro que faz cismar o pensativo,
que faz chorar o amante na relva onde passou a beleza, que adivinha o perfume
dela na brisa, que pergunta às aves, à manhã, à
noite, às harmonias da música, que melodia é mais doce
que sua voz; e ao seu coração, que formosura mais divina que
a dela…eu nunca amei. Ainda não achei uma mulher assim. Entre um
charuto e uma chávena de café lembro-me às vezes de alguma
forma divina, morena, branca, loura, de cabelos castanhos ou negros. Tenho-as
visto que fazem empalidecer-e meu peito parece sufocar meus lábios
se gelam, minha mão se esfria…Parece-me então que, se aquela
mulher que me faz estremecer assim, soltasse sua roupa de veludo e me deixasse
por os lábios sobre seu seio um momento, eu morreria num desmaio de
prazer! Mas depois desta vem outra, mais outra e o amor se desfaz numa saudade
que se desfaz no esquecimento. Como eu te disse, nunca amei.
O DESCONHECIDO
Ter vinte anos e nunca ter amado! E para quando esperas o amor?
MACÁRIO
Não sei. Talvez eu ame quando estiver impotente!
O DESCONHECIDO
E o que exigirias para a mulher de teus amores?
MACÁRIO
Pouca coisa. Beleza, virgindade, inocência, amor
O DESCONHECIDO (irônico)
Mais nada?
MACÁRIO
Notai que por beleza indico um corpo bem feito, arredondado, setinoso, uma
pele macia e rosada, um cabelo de seda frouxa e uns pés mimosos…
O DESCONHECIDO
Quanto à virgindade?
MACÁRIO
Eu a quereria virgem na alma como no corpo. Quereria que ela nunca tivesse
sentido a menor emoção por ninguém. Nem por um primo,
nem por um irmão… Que Deus a tivesse criado adormecida na alma até
ver-me, como aquelas princesas encantadas dos contos que uma fada adormecera
por cem anos. Quereria que um anjo a cobrisse sempre com seu véu, e
a banhasse todas as noites do seu óleo divino para guardá-la
santa… Quereria que ela viesse criança transformar-se em mulher nos
meus beijos.
O DESCONHECIDO
Muito bem, mancebo! E esperas essa mulher?
MACÁRI O
Quem sabe!
O DESCONHECIDO
E é no lodo da prostituição que hás-de encontrá-la?
MACÁRIO
Talvez! É no lodo do oceano que se encontram as pérolas
O DESCONHECIDO
Em mau lugar procuras a virgindade! É mais fácil achar uma
pérola na casa de um joalheiro que no meio das areias do fundo do mar.
MACÁRIO
Quem sabe!..
O DESCONHECIDO
Duvidas pois?
MACÁRIO
Duvido sempre. Descreio às vezes. Parece-me que este mundo é
um logro. O amor, a glória, a virgindade, tudo é uma ilusão.
O DESCONHECIDO
Tens razão: a virgindade é uma ilusão! Qual é
mais virgem, aquela que é deflorada dormindo, ou a freira que ardente
de lágrimas e desejos se revolve no seu catre, rompendo com as mãos
sua roupa de morte, lendo algum romance impuro?
MACÁRIO
Tens razão: a virgindade da alma pode existir numa prostituta, e não
existir numa virgem de corpo.-Há flores sem perfume, e perfume sem
flores. Mas eu não sou como os outros. Acho que uma taça vazia
pouco vale, mas não beberia o melhor vinho numa xícara de barro.
O DESCONHECIDO
E contudo bebes o amor nos lábios de argila da mulher corrupta!
MACÁRIO
O amor? Que te disse que era o amor? É uma fome impura que se sacia.
O corpo faminto é como o conde Ugolino na sua torre-morderia até
num cadáver.
O DESCONHECIDO
Tua comparação é exata. A meretriz é um cadáver.
MACÁRIO
Vale-nos ao menos que sobre seu peito não se morre de frio!
O DESCONHECIDO
Admira-me uma coisa. Tens vinte anos: deverias ser puro como um anjo e és
devasso como um cônego!
MACÁRIO
Não é que eu não voltasse meus sonhos para o céu.
A cisterna também abre seus lábios para Deus, e pede-lhe uma
água pura-e o mais das vezes só tem lodo. Palavra de honra,
que às vezes quero fazer-me frade.
O DESCONHECIDO
Frade! Para quê?
MACÁRIO
É uma loucura. Enche esse copo. (Bebe) Pela Virgem Maria! Tenho sono.
Vou dormir.
O DESCONHECIDO
E eu também Boa-noite.
MACÁRIO
Ainda uma vez, antes de dormir, o teu nome?
O DESCONHECIDO
Insistes nisso?
MACÁRIO
De todo o meu coração. Sou filho de mulher.
O DESCONHECIDO
Aperta minha mão. Quero ver se tremes nesse aperto ouvindo meu nome.
MACÁRIO
Juro-te que não, ainda que fosses
O DESCONHECIDO
Aperta minha mão. Até sempre: na vida e na morte!
MACÁRIO
Até sempre, na vida e na morte!
O DESCONHECIDO
E o teu nome?
MACÁRIO
Macário. Se não fosse enjeitado, dir-te-ia o nome de meu pai
e o de minha mãe. Era de certo alguma libertina. Meu pai, pelo que
penso, era padre ou fidalgo.
O DESCONHECIDO
Eu sou o diabo. Boa-noite, Macário.
MACÁRIO
Boa-noite, SATÃ. (Deita-se. O desconhecido sai). O diabo! uma boa
fortuna! Há dez anos que eu ando para encontrar esse patife! Desta
vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo é ser
Fausto sem Mefistófeles…Olá, Satã!
SATÃ
Macário
MACÁRIO
Quando partimos?
SATÃ
Tens sono?
MACÁRIO
Não
SATÃ
Então já.
MACÁRIO
E o meu burro?
SATÃ
Irás na minha garupa.
NUM CAMINHO(Satã montado num barro preto; Macário na garupa.)
MACÁRIO
Pára um pouco teu burro.
SATÃ
Não queres chegar?
MACÁRIO
É que ele tem um trote inglês de desesperar os intestinos.
SATÃ
E contudo este burro descende em linha reta do burro em que fez a sua entrada
em Jerusalém o filho do velho carpinteiro José. Vês pois
que é fidalgo como um cavalo árabe.
MACÁRIO
Tudo isso não prova que ele não trota danadamente. Falta-nos
muito para chegar?
SATÃ
Não. Daqui a cinco minutos podemos estar à vista da cidade.
Hás de vê-la desenhando no céu suas torres escuras e seus
casebres tão pretos de noite como de dia, iluminada, mas sombria como
uma essa de enterro.
MACÁRIO
Tenho ânsia de lá chegar. É bonita?
SATÃ ( boceja )
Ah! é divertida.
MACÁRIO
Por acaso também há mulheres ali?
SATÃ
Mulheres, padres, soldados e estudantes. As mulheres são mulheres,
os padres são soldados, os soldados são padres, e os estudantes
são estudantes: para falar mais claro: as mulheres são lascivas,
os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes vadios. Isto
salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã em diante,
tu.
MACÁRIO
Esta cidade deveria ter o teu nome.
SATÃ
Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito
que faz o monge. Demais, essa terra é devassa como uma cidade, insípida
como uma vila e pobre como uma aldeia. Se não estás reduzido
a dar-te ao pagode, a suicidar-te de spleen, ou a alumiar-te a rolo, não
entres lá. É a monotonia do tédio. Até as calçadas!
MACÁRIO
Que têm?
SATÃ
São intransitáveis. Parecem encastoadas as tais pedras. As
calçadas do inferno são mil vezes melhores. Mas o pior da história
é que as beatas e os cônegos cada vez que saem, a cada topada,
blasfemam tanto com o rosário na mão que já estou enjoado.
Admiras-te? por que abres essa boca espantada? Antigamente o diabo corria
atrás dos homens, hoje são eles que rezam pelo diabo. Acredita
que faço-te um favor muito grande em preferir-te à moça
de um frade que me trocaria pelo seu Menino Jesus, e a um cento de padres
que dariam a alma, que já não têm, por uma candidatura.
MACÁRIO
Mas, como dizias, as mulheres…
SATÃ
Debaixo do pano luzidio da mantilha, entre a renda do véu, com suas
faces cor-de-rosa, olhos e cabelos pretos (e que olhos e que longos cabelos!)
são bonitas. Demais, são beatas como uma bisavó; e sabem
a arte moderna de entremear uma Ave-Maria com um namoro; e soltando uma conta
do rosário lançar uma olhadela.
MACÁRIO
Oh! a mantilha acetinada! os olhares de andaluza! e a tez fresca como uma
rosa! os olhos negros, muito negros, entre o véu de seda dos cílios!..
Apertá-las ao seio com seus ais, seus suspiros, suas orações
entrecortadas de soluços! Beijar-lhes o seio palpitante e a cruz que
se agita no seu colo, apertar-lhes a cintura, e sufocar-lhes nos lábios
uma oração… Deve ser delicioso!
SATÃ
Tá! tá! tá… Que ladainha… parece que já estás
enamorado, meu Dom Quixote, antes de ver as Dulcinéias!
MACÁRIO
Que boa terra! É o Paraíso de Mafoma!
SATÃ
Mas as moças poucas vezes tem bons dentes. A cidade colocada na montanha,
envolta de várzeas relvosas, tem ladeiras íngremes e ruas péssimas.
É raro o minuto em que não se esbarra a gente com um burro ou
com um padre. Um médico que ali viveu e morreu deixou escrito numa
obra inédita, que para sua desgraça o mundo não há-de
ler, que a virgindade era uma ilusão. E contudo não há
em parte alguma mulheres que tenham sido mais vezes virgens que ali.
MACÁRIO
Têm-se-me contado muito bonitas histórias. Dizem na minha terra
que aí, à noite, as moças procuram os mancebos, que lhes
batem à porta, e na rua os puxam pelo capote Deve ser delicioso! Quanto
a mim, quadra-me essa vida excelentemente; nem mais nem menos que um Sultão
escolherei entre essas belezas vagabundas a mais bela. Aplicarei contudo o
ecletismo ao amor. Hoje uma, amanhã outra: experimentarei todas as
taças. A mais doce embriaguez é a que resulta da mistura dos
vinhos.
SATÃ
A única que tu ganharás será nojenta. Aquelas mulheres
são repulsivas. O rosto é macio, os olhos lânguidos, o
seio morno… Mas o corpo é imundo. Têm uma lepra que ocultam
num sorriso. Bofarinheiras de infâmia dão em troco do gozo o
veneno da sífilis. Antes amar uma lazarenta!
MACÁRIO
És o diabo em pessoa. Para ti nada há bom. Pelo que vejo, na
criação só há uma perfeição, a tua.
Tudo o mais nada vale para ti. Substância da soberba, ris de tudo o
mais embuçado no teu desdém. Há uma tradição,
que quando Deus fez o homem, veio SATÃ; achou a criatura adormecida,
apalpou-lhe o corpo: achou-o perfeito, e deitou aí as paixões.
SATÃ
Essa história é uma mentira. O que Satã pôs aí
foi o orgulho. E o que são vossas virtudes humanas senão a encarnação
do orgulho?
MACÁRIO
Oh! Ali vejo luzes ao longe. Uma montanha oculta no horizonte. Disséreis
um pântano escuro cheio de fogos errantes. Por que paras o teu animal?
SATÃ
Tenho uma casa aqui na entrada da cidade. Entrando à direita, defronte
do cemitério. Sturn, meu pajem, lá está preparando a
ceia. Levanta-te sobre meus ombros: não vês naquele palácio
uma luz correr uma por uma as janelas? Sentiram a minha chegada.
MACÁRIO
Que ruínas são estas? É uma igreja esquecida? A lua
se levanta ao longe nas montanhas. Sua luz horizontal banha o vale, e branqueia
os pardieiros escuros do convento. Não mora ali ninguém? Eu
tinha desejo de correr aquela solidão.
SATÃ
É uma propensão singular a do homem pelas ruínas. Devia
ser um frade bem sombrio, ébrio de sua crença profunda, o Jesuíta
que aí lançou nas montanhas a semente dessa cidade. Seria o
acaso quem lhe pôs no caminho, à entrada mesmo, um cemitério
à esquerda e umas ruínas à direita?
MACÁRIO
Se quisesses, Satã, podíamos descer pelo despenhadeiro, e ir
ter lá embaixo, enquanto Sturn prepara ceia.
SATÃ
Não, Macário. Minha barriga está seca como a de um eremita;
deves também ter fome. Molhar os pés no orvalho não deve
ser bom para quem vem de viagem. Vamos cear. Daqui a pouco o luar estará
claro e poderemos vir.
MACÁRIO
Fiat voluntas tua.
SATÃ
Amen!
AO LUAR
(Junto de uma janela está uma mesa.)
SATÃ
Então, não bebes, Macário? Que tens, que estás
pensativo e sombrio? Olha, desgraçado, é verdadeiro vinho do
Reno que desdenhas!
MACÁRIO
E tu és mesmo Satã?
SATÃ
É nisso que pensavas? És uma criança. De certo que querias
ver-me nu e ébrio como Calibã, envolto no tradicional cheiro
de enxofre! Sangue de Baco! Sou o diabo em pessoa! Nem mais nem menos: porque
tenha luvas de pelica, e ande de calças à inglesa, e tenha os
olhos tão azuis como uma alemã! Queres que to jure pela Virgem
Maria?
MACÁRIO ( bebe )
Este vinho é bom. Quando se têm três garrafas de Johannisberg
na cabeça, sente-se a gente capaz de escrever um poema. O poeta árabe
bem o disse:–o vinho faz do poeta um príncipe, e do príncipe
um poeta. Sabes quem inventou o vinho?
SATÃ
É uma bela coisa o vapor de um charuto! E demais, o que é tudo
no mundo senão vapor? A adoração é incenso e o
incenso o que é? O amor é o vapor do coração que
embebeda os sentidos. Tu o sabes-a glória é fumaça.
MACÁRIO
Sim. É belo fumar! O fumo, o vinho e as mulheres! Sabes… há
ocasião em que dão-me venetas de viver no Oriente.
SATÃ
Sim… o Oriente! mas que achas de tão belo naqueles homens que fumam
sem falar, que amam sem suspirar? É pelo fumo? Fuma aqui… vê,
o luar está belo: as nuvens do céu parecem a fumaça do
cachimbo do Onipotente que resfolga dormindo. Pelas mulheres? Faze-te vigário
de freguesia…
MACÁRIO
É uma coisa singular esta vida. Sabes que às vezes eu quereria
ser uma daquelas estrelas para ver de camarote essa Comédia que se
chama o Universo? essa Comédia onde tudo que há mais estúpido
é o homem que se crê um espertalhão? Vês aquele
boi que rumina ali deitado sonolento na relva? Talvez seja um filósofo
profundo que se ri de nós. A filosofia humana é uma vaidade.
Eis aí, nós vivemos lado a lado, o homem dorme noite a noite
com uma mulher: bebe, come, ama com ela, conhece todos os sinais de seu corpo,
todos os contornos de suas formas, sabe todos os ais que ela murmura nas agonias
do amor, todos os sonhos de pureza que ela sonha de noite e todas as palavras
obscenas que lhe escapam de dia. . . Pois bem-a esse homem que se deitou mancebo
com essa mulher ainda virgem, que a viu em todas as fases, em todos os seus
crepúsculos, e acordou um dia com ela ambos velhos e impotentes, a
esse homem, perguntai-lhe o que é essa mulher, ele não saberá
dizê-lo! Ter volvido e revolvido um livro a ponto de manchar-lhe e romper-lhe
as folhas, e não entendê-lo! Eis o que é a filosofia do
homem! Há cinco mil anos que ele se abisma em si, e pergunta-se quem
é, donde veio, onde vai, e o que tem mais juízo é aquele
que moribundo crê que ignora!
SATÃ
Eis o que é profundamente verdade! Perguntai ao libertino que venceu
o orgulho de cem virgens e que passou outras tantas noites no leito de cem
devassas, perguntai a D. Juan, Hamlet ou ao Faust o que é a mulher,
e… nenhum o saberá dizer. E isso que te digo não é
romantismo. Amanhã numa taverna poderás achar Romeu com a criada
da estalagem, verás D. Juan com Julietas, Hamlet ou Faust sob a casaca
de um dandy. É que esses tipos são velhos e eternos como o sol.
E a humanidade que os estuda desde os primeiros tempos ainda não entende
esses míseros, cuja desgraça é não entender; e
o sábio que os vê a seu lado deixa esse estudo para pensar nas
estrelas; o médico que talvez foi moço de coração
e amou e creu, e desesperou e descreu, ri-se das doenças da alma e
só vê a nostalgia na ruptura de um vaso, o amor concentrado quando
se materializa numa tísica. Se Antony ainda vive e deu-se à
medicina é capaz de receitar uma dose de jalapa para uma dor íntima;
um cautério para uma dor de coração!
MACÁRIO
Falas como um livro, como dizem as velhas. Só Deus ou tu sabes se
o La Ramée ou D. Cesar de Basan, Santa Teresa ou Marion Delorme, o
sábio ou o ignorante, Creso ou Iro, Goethe ou o mendigo ébrio
que canta, entenderam a vida. Quem sabe onde está a verdade? nos sonhos
do poeta, nas visões do monge, nas canções obscenas do
marinheiro, na cabeça do doido, na palidez do cadáver, ou no
vinho ardente da orgia? Quem sabe?
SATÃ
És triste como um sino que dobra. Não falemos nisto. Fala-me
antes na beleza de alguma virgem nua, na languidez de uns olhos negros, na
convulsão que te abala nalguma hora de deleite. A minha guitarra está
ali: queres que te cante alguma modinha? Pela lua! estás distraído
como um fumador de ópio!
MACÁRIO
No que penso? Hás de rir se contar-to. É uma história
fatal.
SATÃ
Deixa-me acender outro charuto…Muito bem. Conta agora. É algum romance?
MACÁRIO
Não: lembrei-me agora de uma mulher. Uma noite encontrei na rua uma
vagabunda. A noite era escura. Eu ia pelas ruas à toa …Segui-a. Ela
levou-me à sua casa. Era um casebre. A cama era um catre: havia um
colchão em cima, mas tão velho, tão batido, que parecia
estar desfeito ao peso dos que aí haviam-se revolvido. Deitei-me com
ela. Estive algumas horas. Essa mulher não era bela: era magra e lívida.
Essa alcova era imunda. Eu estava aí frio: o contato daquele corpo
amolecido não me excitava sensações; e contudo eu mentia
à minha alma, dando-lhe beijos. Eu saí dali. No outro dia de
manhã voltei. A casa estava fechada. Bati. Não me responderam.
Entrei: uma mulher saíu-me ao encontro. Perguntei-lhe pela outra. Silêncio!
me disse a velha, está deitada ali no chão Morreu esta noite
E com um ar cínico…"Quereis vê-la? está nua…
vão amortalhá-la…"
SATÃ
Na verdade, é singular. E o nome dessa mulher?
MACÁRIO
Esqueci-o. Talvez amanhã eu to diga: amanhã ou depois… que
importa um nome? E contudo essa misérrima com quem deitei-me uma noite,
que pretendia ter o segredo da virgindade eterna de Marion Delorme, que me
falava de amanhã com tanta certeza, que mercadejava sua noite de amanhã
como vendera segunda vez a de seu hoje e que de certo morreu pensando nos
meios de excitar mais deleite, na receita da virgindade eterna que ela sabia
como a antiga Marion Delorme… essa mulher que esqueci como se esquecem os
que são mortos, me fez ainda agora estremecer.
SATÃ
E quem sabe se aquela mulher a cujo lado estiveste não era a ventura?
MACÁRIO
Não te entendo.
SATÃ
Quem sabe se naquele pântano não encontrarias talvez a chave
de ouro dos prazeres que deliram?
MACÁRIO
Quem sabe! Talvez.
SATÃ
É tarde. Agora é uma caveira a face que beijaste -uma caveira
sem lábios, sem olhos e sem cabelos. O seio se desfez… A vulva onde
a sede imunda do soldado se enfurnava-como um cão se sacia de lodo-foi
consumida na terra. Tudo isso é comum. É uma idéia velha
não? E quem sabe se sobre aquele cadáver não correram
lágrimas de alguma esperança que se desvaneceu? se com ela não
se enterrou teu futuro de amor? Não gozaste aquela mulher?
MACÁRIO
Não.
SATÃ
Se ali ficasse mais alguma hora, talvez ela te morresse nos braços.
Aquela agonia, o beijo daquela moribunda talvez te regenerasse. Da morte nasce
muitas vezes a vida. Dizem que se a rabeca de Paganini dava sons tão
humanos, tão melodiosos, é que ele fizera passar a alma de sua
mãe, de sua velha mãe moribunda, pelas cordas e pela caverna
de seu instrumento. Sentes frio, que te embuças assim no teu capote?
MACÁRIO
Satã, fecha aquela janela. O ar da noite me faz mal. O luar me gela.
Demais, senti nas folhagens ao longe um estremecer. Que som abafado é
aquele ao longe? Dir-se-ia o arranco de um velho que estrebucha.
SATÃ
É a meia-noite. Não ouves?
MACÁRIO
Sim. É a meia-noite. A hora amaldiçoada; a hora que faz medo
às beatas, e que acorda o ceticismo. Dizem que a essa hora vagam espíritos,
que os cadáveres abrem os lábios inchados e murmuram mistérios
É verdade, Satã?
SATÃ
Se não tivesses tanto frio, eu te levaria comigo ao campo. Eu te adormeceria
no cemitério e havias ter sonhos como ninguém os tem, e como
os que os têm não querem crê-los.
MACÁRIO
Bem, muito bem. Irei contigo.
SATÃ
Vamos pois. Dá-me tua mão. Está fria como a de um defunto!
Dentro em alguns momentos estaremos longe daqui. Dormirás esta noite
um sono bem profundo.
MACÁRIO
O da morte?
SATÃ
Fundo como o do morto: mas acordarás, e amanhã lembrarás
sonhos como um ébrio nunca vislumbrou.
MACÁRIO
Vamos: –estou pronto.
SATÃ
Deixa-me beber um trago de curaçau. Vamos. A lua parou no céu.
Tudo dorme. É a hora dos mistérios. Deus dorme no seio da criação
como Lot no regaço incestuoso de sua filha. Só vela satã.
satã, com a mão sobre o estômago de Macário, que
está deitado sobre um túmulo.
SATÃ
Acorda!
MACÁRIO (estremece)
Ah! pensei nunca mais acordar! Que sono profundo!
SATÃ
Divertis-te muito à noite, não?
MACÁRIO
É horrível! horrível!
SATÃ
Fala.
MACÁRIO
Meu peito se exauriu. Meus lábios não podem transbordar estes
mistérios.
SATÃ
Era pois muito medonho o que vias? Levanta-te daí.
MACÁRIO
Não posso: quebrou-se meu corpo entre os braços do pesadelo.
Não posso.
SATÃ
Liba esse licor: uma gota bastaria para reanimar um cadáver.
MACÁRIO (toca-o nos lábios)
Que fogo! meu peito arde. Ah! ah! que dor!
SATÃ
Não sabes que para o metal bruto se derreter e cristalizar é
míster um fogo ardente, ou a centelha magnética ?
MACÁRIO
Que sonho! Era um ar abafado…sem nuvens e sem estrelas!…Que escuridão!
Ouvia-se apenas de espaço a espaço um baque como o de um peso
que cai no mar e afunda-se … Às vezes vinha uma luz, como uma estrela
ardente, cair e apagar-se naquela lagoa negra… Depois eu vi uma forma de
mulher pensativa. Era nua… e seu corpo perfeito como era de um anjo-mas
era lívido como o mármore. Seus olhos eram vidrados, os lábios
brancos, e as unhas roxeadas. Seu cabelo era louro, mas tinha uns reflexos
de branco. -Que dor desconhecida a gelara assim e lhe embranquecera os cabelos?
Não o sei. Ela se erguia às vezes, cambaleando, estremecendo
suas pernas indecisas, como uma criança que tirita;…e se perdia nas
trevas. Eu a segui. Caminhamos longo tempo num chão pantanoso…
SATÃ
E tu a viste parar numa torrente que transbordava de cadáveres-tomá-los
um por um nos braços sem sangue, apertar-se gelada naqueles seios de
gelo, revolver-se, tremer, arquejar e erguer-se depois sempre com um sorriso
amargo.
MACÁRIO
Quem era essa mulher?
SATÃ
Era um anjo. Há cinco mil anos que ele tem o corpo da mulher e o anátema
de uma virgindade eterna. Tem todas as sedes, todos os apetites lascivos,
mas não pode amar. Todos aqueles em que ela toca se gelam. Repousou
o seu seio, roçou suas faces em muitas virgens e prostitutas, em muitos
velhos e crianças, bateu a todas as portas da criação,
estendeu-se em todos os leitos e com ela o silêncio… Essa estátua
ambulante é quem murcha as flores, quem desfolha o outono, quem amortalha
as esperanças.
MACÁRIO
Quem é?
SATÃ
E depois o quc viste?
MACÁRIO
Vi muita coisa. . . Eram mil vozes que rebentavam do abismo, ardentes de
blasfêmia! Das montanhas e dos vales da terra, das noites de amor e
das noites de agonia, dos leitos do noivado aos túmulos da morte erguia-se
uma voz que dizia:-Cristo, sê maldito! Glória, três vezes
glória ao anjo do mal! E as estrelas fugiam chorando, derramando suas
lágrimas de fogo. . . E uma figura amarelenta beijava a criação
na fronte, e esse beijo deixava uma nódoa eterna…
SATÃ
Estás muito pálido. E contudo sonhaste só meia hora.
MACÁRIO
Eu pensei que era um século. O que um homem sente em cem anos não
equivale a esse momento. Que estrela é aquela que caiu do céu,
que ai é esse que gemeu nas brisas?
SATÃ
É um filho que o pai enjeitou. É um anjo que desliza na terra.
Amanhã talvez o encontres. A pérola talvez se enfie num colar
de bagas impuras, talvez o diamante se engaste em cobre. Aposto como daqui
a um momento será uma mulher, daqui a um dia uma Santa Madalena!
MACÁRIO
Descrido?
SATÃ
O anjo é a criatura do amor. E o que há mais aberto ao amor
que a filha de Jerusalém? Qual é a sombra onde mais vezes tem
vibrado essa pólvora mágica e incompreensível? Qual é
o seio onde têm caído ardentes mais lágrimas de gozo?
MACÁRIO
Não ouviste um ai? um outro ai ainda mais dorido?
SATÃ
É algum bacurau que passou: algum passarinho que acordou nas garras
de uma coruja.
MACÁRIO
Não: o eco ainda o repete. Ouves? é um ai de agonia, uma voz
humana! Quem geme a essas horas? Quem se torce na convulsão da morte?
SATÃ (dando uma gargalhada)
Ah! ah! ah!
MACÁRIO
Que risada infernal. Não vês que tremo? que o vento que me trouxe
esse ai me arrepiou os cabelos? Não sentes o suor frio gotejar de minha
fronte?
SATÃ (ri-se)
Ah! ah! ah!
MACÁRIO
satã! satã! Que ai era aquele?
SATÃ
Queres muito sabê-lo?
MACÁRIO
Sim! pelo inferno ou pelo céu!
SATÃ
É o último suspiro de uma mulher que morreu, é a última
oração de uma alma que se apagou no nada.
MACÁRIO
E de quem é esse suspiro? por quem é essa oração?
SATÃ
De certo que não é por mim! Insensato, não adivinhas
que essa voz é a de tua mãe, que essa oração era
por ti?
MACÁRIO
Minha mãe! minha mãe!
SATÃ
Pelas tripas de Alexandre Bórgia! Choras como uma criança!
MACÁRIO
Minha mãe! minha mãe!
SATÃ
Então ficas aí?
MACÁRIO
Vai-te, vai-te; Satã! Em nome de Deus! em nome de minha mãe!
eu te digo:-Vai-te!
SATÃ (desaparecendo)
É por pouco tempo. Amanhã me chamarás. Quando me quiseres
é fácil chamar-me. Deita-te no chão com as costas para
o céu; põe a mão esquerda no coração: com
a direita bate cinco vezes no chão, e murmura- Satã!
A ESTALAGEM DA ESTRADA (Do princípio. As janelas fechadas. Batem à
porta.)
MACÁRIO ( acordando)
Que sonho! Foi um sonho… Satã! Qual Satã! Aqui estão
as minhas botas, ali está o meu ponche… A ceia está intacta
na mesa! Minha garrafa vazia do mesmo modo! Contudo eu sou capaz de jurar
que não sonhei! Olá mulher da venda!
A MULHER (batendo de fora)
Senhor moço! Abra! abra!
MACÁRIO
Que algazarra do diabo é essa?
(Abre a porta. Entra a mulher).
A MULHER
Ah! Senhor! estou cansada de bater à sua porta! Pois o senhor dorme
a sono solto até três horas da tarde!
MACÁRIO
Como?
A MULHER
Nem ceou-aposto:.. Nem ceou. A vela ardeu toda. Ora vejam como podia pegar
fogo na casa! Pegou no sono, comendo de certo!
MACÁRIO
Esta é melhor! Pois aqui não esteve ninguém ontem comigo?
A MULHER
Pela fé de Cristo! ninguém.
MACÁRIO
Pois eu não saí daqui de noite, alta noite, na garupa de um
homem de ponche vermelho e preto, porque meu burro tinha fugido para o sítio
do Nhô Quito?
A MULHER (espantada, benzendo-se)
N ao, senhor! não ouvi nada….O burro está amarrado na baia.
Comeu uma quarta de milho. . .
MACÁRIO (chega à janela)
Como! Não choveu a cântaros esta noite? É singular! Eu
era capaz de jurar que cheguei até a cidade, antes de meia-noite!
A MULHER (benzendo-se)
Se não foi por artes do diabo, o senhor estava sonhando.
MACÁRIO
O diabo! (Dá uma gargalhada à força.) Ora, sou um pateta!
Qual diabo, nem meio diabo! Dormi comendo, e sonhei nestas asneiras!. . Mas
que vejo! (Olhando para o chão) Não vês?
A MULHER
O que é? Ai! ai! uns sinais de queimado aí pelo chão!
Cruz! Cruz! minha Nossa Senhora de S. Bernardo!.. É um trilho de um
pé…
MACÁRIO
Tal e qual um pé!…
A MULHER
Um pé de cabra …um trilho queimado…Foi o pé do diabo! o
diabo andou por aqui!
SEGUNDO EPISÓDIO
NA ITÁLIA
(Um vale, montanhas à esquerda.-Um rio torrentoso à direita
-No caminho uma mulher sentada no chão acalenta um homem com a cabeça
deitada no seu regaço.)
MACÁRIO ( cismando)
Morrer! morrer!… quando o vinho do amor embebeda os sentidos, quando corre
em todas as veias e agita todos os nervos… parece que esgotou-se tudo. Amanhã
não pode ser tão belo como hoje. E acordar do sonho, ver desfeita
uma ilusão! Nunca!. . Olá, mulher, afasta-te do caminho. Quero
passar.
A MULHER
Não o piseis, não, ele dorme. Dorme…. está cansado
Não vedes como está pálido? Coitado!
MACÁRIO
Sim: está pálido: não é o luar que o faz lívido.
Eu o vejo. É teu amante? A lua que alveja tuas tranças grisalhas
ri de teu amor. Messalina de cabelos brancos, quem apertas no seio emurchecido?
Tão alta noite, quem é esse mancebo de cabelos negros que adormece
no teu colo? . Como está pálido… Que testa fria… Mulher!
louca mulher, quem acalentas é um cadáver.1
A MULHER
Um defunto?… não… ele dorme: não vedes? É meu filho…
Apanharam-no boiando nas águas levado pelo rio…Coitado! como está
frio!… é das águas. Tem os cabelos ainda gotejantes . . Diziam
que ele morreu…. Morrer! meu filho! é impossível… Não
sabeis? ele é a minha esperança, meu sangue, minha vida. É
meu passado de moça, meus amores de velha…Morrer ele? É impossível.
Morrer? Como? Se eu ainda sinto esperanças, se ainda sinto o sangue
correr-me nas veias, e a vida estremecer meu coração!
MACÁRIO
Velha! estás doida.
A MULHER
Não morreu, não… Ele está dormindo. Amanhã
há de acordar. . . Há muito tempo que ele dorme… Que sono
profundo… nem um ressonar! Ele foi sempre assim desde criança Quando
eu o embalava ao meu seio, ele às vezes empalidecia… que parecia
um morto, tanto era pálido e frio… Meu filho! Hei-de aquentá-lo
com meus beiços, com meu corpo…
MACÁRIO
Pobre mãe!
A MULHER
Falai mais baixo. Eu pedi ao vento que se calasse, ao rio que emudecesse…
Não vedes? tudo é silencio. Escuta: sabes tocar? Vai ver tua
viola-e canta alguma cantiga da tua terra. Dizem que a música faz ter
sonhos sossegados…
MACÁRIO
Sonhos! que sonhos soerguem teu lençol, ó leito da. morte?
(Passa adiante). Esta mulher está doida. Este moço foi banhar-se
na torrente e afogou-se. Eu vi carregarem seu cadáver úmido
e gelado. Pobre Mãe! embala-o nu e macilento no seu peito, crendo embalar
a vida. Lonca… Feliz talvez! quem sabe se a ventura não é
a insânia?
(Mais longe, sentado num rochedo à beira do rio, está Penseroso
cismando).
PENSEROSO
É alta noite. Disseram-me ainda agora que eram duas horas. É
doce pensar ao clarão da lua quando todos dormem. A solidão
tem segredos amenos para quem sente. O coração do mancebo é
como essas flores pálidas que só abrem de noite, e que o sol
murcha e fecha. Tudo dorme. A aldeia repousa. Só além, junto
das fogueiras os homens da montanha e do vale conversam suas saudades. Mais
longe a toada monótona da viola se mistura à cantilena do sertanejo,
ou aos improvisos do poeta singelo da floresta, alma ignorante e pura que
só sabe das emoções do sentimento, e dos cantos que lhe
inspira a natureza virgem de sua terra. O rio corre negro a meus pés,
quebrando nas pedras sua escuma prateada pelos raios da lua que parecem gotejar
dentre os arvoredos da margem. No silencio sinto minha alma acordar-se embalada
nas redes moles do sonho. É tão doce o sonhar para quem ama!…No
que estará ela pensando agora? Cisma, e lembra-se de mim? Dorme e sonha
comigo? Ou encostada na sua janela ao luar sente uma saudade por mim?
MACÁRIO ( passando )
Penseroso! Boa noite, Penseroso! Que imaginas tão melancólico?
PENSEROSO
Boa noite, Macário. Onde vais tão sombrio?
MACÁRIO (sombrio)
Vou morrer.
PENSEROSO
Eu sonhava em amor!
MACÁRIO
E eu vou morrer!
PENSEROSO
Tu brincas. Vi um sorriso nos teus lábios.
MACÁRIO
É um sorriso triste, não? Eu to juro pela alma de minha mãe,
vou morrer.
PENSEROSO
Morrer! tão moço! E não tens pena dos que chorarão
por ti? daquelas pobres almas que regarão de lágrimas ardentes
teu rosto macilento, teu cadáver insensível ?
MACÁRIO
Não; não tenho mae. Minha mãe não me embalará
endoidecida entre seus joelhos, pensando aquentar com sua febre de louca o
filho que dorme. Ninguém chorará. Não tenho mãe.
PENSEROSO
Pobre moço! não amas!
MACÁRIO
Amo… amo sim. Passei toda esta noite junto ao seio de uma donzela, pura
e virgem como os anjos.
PENSEROSO
Que tens? Cambaleias. Estás ébrio?
MACÁRIO
Ébrio sim! ébrio de amor…de prazer. Aquela criança
inocente embebedou-me de gozo. Que noite! Parece que meu corpo desfalece.
E minha alma absorta de ternura só tem um pensamento-morrer!
PENSEROSO
Amar e não querer viver!
MACÁRIO
Ela é muito bela. Eu vivi mais nesta noite que no resto de minha vida.
Um mundo novo se abriu ante mim. Amei.
PENSEROSO
Não é verdade que a mulher é um anjo?
MACÁRIO
Sim-é um anjo que nos adormece, e nos seus braços nos leva
a uma região de sonhos de harmonias desconhecidas. Sua alma se perde
conosco num infinito de amor, como essas aves que voam à noite, e se
mergulham no seio do mistério.
PENSEROSO
A mulher! Oh! se todos os homens as entendessem! Essas almas divinas são
como as fibras harmoniosas de uma rabeca. O ignorante não arranca dela
um som melodioso…embalde suas mãos grosseiras revolvem e apertam
o arco sobre elas-embalde! somente sons ásperos ressoam. Mas que a
mão do artista as vibre, que a alma do músico se derrame nelas,
e do instrumento grosseiro do mendigo ignorante, ou do cego vagabundo, como
do stradivarius divino, exalam-se ais, vozes humanas, suspiros e acentos entrecortados
de lágrimas.
MACÁRIO
Oh! sim! Se na vida há uma coisa real e divina é a arte; e
na arte se há um raio do céu é na música; na música
que nos vibra as cordas da alma, que nos acorda da modorra da existência
a alma embotada. Oh! é tão doce sentir a voz vaporosa que trina,
que nos enleva c que parece que nos faz desfalecer, amar, e morrer!
PENSEROSO
E é tão doce amar! Eu amei, eu amo muito. Sabe Deus as noites
que me ajoelho pensando nela!… A brisa bebe meus suspiros, e minhas lágrimas
silenciosas e doces orvalham meu rosto.
MACÁRIO
Oh! o amor! e por que não se morre de amor! Como uma estrela que se
apaga pouco a pouco entre perfumes e nuvens cor-de-rosa, por que a vida não
desmaia e morre num beijo de mulher? Seria tão doce inanir e morrer
sobre o seio da amante enlanguescida! No respirar indolente de seu colo confundir
um último suspiro!
PENSEROSO
Amar de joelhos, ousando a medo nos sonhos roçar de leve num beijo
os cílios dela, ou suas tranças de veludo! Ousando a medo suspirar
seu nome! Esperando a noite muda para contá-lo à lua vagabunda!
MACÁRIO
Morrer numa noite de amor! Rafael no seio de sua Fornarina! Nos lábios
perfumados da Italiana, adormecer sonolento…dormir e não acordar!
PENSEROSO
Que tens? Estás fraco. Senta-te junto de mim. Repousa tua cabeça
no meu ombro. O luar está belo, e passaremos a noite conversando em
nossos sonhos e nossos amores . . .
MACÁRIO (desfalecendo)
Tudo se escurece… Não sentes que tudo anda à roda?… Que
vertigem!… Dá-me tua mão!… Sim. Enxuga minha fronte. Que
suor!
PENSEROSO
Como estás abatido…Como empalideces! Ah! Como resvalas… Que tens,
meu amigo?
MACÁRIO
Se eu pudesse morrer! (Desmaia).
SATÃ (entra) .
SATÃ
Que loucura! Esse desmaio veio a tempo; seria capaz de lancar-se à
torrente. Porque amou, e uma bela mulher c embriagou no seu seio, querer morrer!
(Carrega-o nos braços).
Vamos… E como é belo descorado assim! com seus cabelos castanhos
em desordem, seus olhos entreabertos e úmidos, e seus lábios
feminis! Se eu não fora Satã, eu te amaria, mancebo…
(Vai levá-lo).
PENSEROSO
Quem és tu? Deixa-o. . eu o levarei.
SATÃ
Quem eu sou? que te importa? Vou deitá-lo num leito macio. Daqui a
pouco seu desmaio passará. É um efeito do ar frio da noite sobre
uma cabeça infantil ardente de febre. Adeus, Penseroso.
PENSEROSO
Quem és tu, desconhecido, que sabes meu nome?
MACÁRIO E SATÃ
MACÁRIO
Tenho tédio, Satã! Aborreces-me como se aborrecem as amantes
esquecidas.
SATÃ
Tens cartas aí? Joguemos. Que queres? a ronda, a barca, o lasquenet?
MACÁRIO
Sou infeliz no jogo. Queimo-me e perco. Quando aposto e perco, tenho desejos
de atirar com as cartas à cara do banqueiro.
SATÃ
Pois eu jogo, perco e gosto de jogar. É que somos como Adão
e Eva, os ex ossibus, caro ex carne. A propósito de jogo, queres que
te conte uma história?
MACÁRIO
Mentirosa ou verdadeira?
SATÃ
É o que não importa: nem mais nem menos que as Mil e Uma Noites.
Um dia deu-me à lua para virar a cabeça de uma moca. Meti-me
no paletó de um mancebo pálido, alumiado de seus sonhos de poeta,
transbordando de orgulho: no mais nem feio nem bonito, tinha olhos pardos,
o cabelo longo em anéis e a barba luzente como cetim. O moço
tinha uma amante. Era uma moca bonita, morena, de olhos muito lânguidos
e muito úmidos; o que tinha de mais melindroso era a boquinha de rosa
e mãozinhas as mais suaves do mundo.
MACÁRIO
Tua história é velha como o dilúvio. É difusa
como um folhetim.
SATÃ
Estás massante como Falstaff bêbedo. Não importa Quero
alegrar-te um pouco. A história é divertida. Podia-se bem torneá-la
num volume em 8° com estampas e retrato do autor, com a competente carta-prólogo
de moda.Mas escuta: sou mais fiel que os Sermonistas, serei breve o mais possível.
Ora, a amante tinha uma irmã. Pálida e suave como a mais bela
das amantes de Filipe II: era o retrato vivo da Calderona. Eram aquelas pálpebras
rasgadas à espanhola, uns olhos negros cheios de fogo meridional, o
seio adormecido. Acrescenta a essa imagem que a moça era virgem como
um botão de rosa…Fazia sonhar a amante do rei quando seminua, sentada
sobre as bordas do leito, repousando a mão sobre a face, sentia as
lágrimas do amor e da saudade banharem-lhe os olhos ao luar. Isto que
te digo o moço o pensou. Foi um nunca findar de versos, de passeios
românticos pelos vales, pelas encostas das montanhas, um inteiro viver
e morrer por ela, como ele o dizia nalgum soneto… Vês que torno-me
poético… Quando vi o moço com a cabeça tonta, revolvendo-se
pálido nos seus delírios esperançosos, à fé
de bom Diabo que sou, interessei-me por ele. Demais, pareciam morrer um pelo
outro. Os apertos de mãos a furto, os olhares cheios de languidez,
tudo isso parece que azoinou a mente virginal da donzela. Uma noite na sombra,
a medo beijaram-se. Aquele beijo tinha amor e loucura nos lábios. O
moço perdeu-se de amor. Escreveu-lhe uma carta: transbordou aí
todas as suas poesias, toda a febre de seu devaneio… Não te rias,
é d’estilo, Macário. O que há de mais sério e
risível que o amor? As falas de Romeu ao luar, os suspiros de Armida,
os sonetos de Petrarca tomados ao sério dão desejos de gargalhar…
A partida estava proposta, as paradas feitas, e eu para assegurar o jogo
tinha chumbado os dados. Era de apostar a minha cabeça contra a de
um santo, todas as mulheres belas da terra por uma bruxa.
MACÁRIO
Adivinho…ganhaste?
SATÃ
Que sofreguidão! Não contava com o anjo da guarda da moça.
Fez umas cócegas na criancice da virgem, e lá se vai ela toda
chorosa levar a carta à irmã… O tal anjo que sabia orelhar
a sua sota bifou-me o jogo; velhaqueou com o velhaco, surripiou os dados,
e numa risada inocente chuleou-me a parada.
MACÁRIO
Pobre moça!
SATÃ
E o rapaz que perdeu as suas ilusões…Mas quero desforra.
MACÁRIO
Desforra? tomas duas vezes.
SATÃ
É doloroso. Mas o mundo é do diabo, assim como o céu
é dos tolos. Falam de convento. Querem cortar os cabelos negros da
moça e cosê-la na mortalha da freira. Ora pois, se consigo ao
mesmo tempo virar a cabeça da moça e da freira, mandar o anjo
limpar a mão à parede, as santas que lhe peguem com um trapo
quente. Demais a partida começou.
MACÁRIO
E ela quer?
SATÃ
Isso de mulheres, nem eu, que sou o Diabo, as entendo. Quem entende o vento,
as ondas e o murmurar das folhas? A mulher é um elemento. A santa mais
santa, a virgem mais pura, há instantes em que se daria a Quasímodo;
e Messalina era capaz de enjeitar Romeu ou Don Juan. Mas enfim… Macário?
MACÁRIO ( dormindo)
Hum!
SATÃ
Dorme como um cão. Boa noite, minha criança. Vou fazer uma
visita a uma bela da vizinhança que anda regateando o que lhe resta
de alma para ser moça três dias. Até lá dará
meia-noite.
MACÁRIO, PENSEROSO.
MACÁRIO
Que idéia rola no teu cérebro inflamado, meu poeta Como um
ramo despido de folhas que se dobra ao peso de um bando de aves da noite,
por que tua cabeça se inclina ao peso dos pensamentos?
PENSEROSO
E contudo eu amei-a! eu amei tanto Sagrei-a no fundo de minha alma a rainha
das fadas, e ressumbrei nela o anjo misterioso que me havia de conduzir adormecido
no seu batel mágico a um mundo maravilhoso de amores divinos. Se fui
poeta, se pedi a Deus os delírios da inspiração, foi
para encantar com seu nome as cordas douradas do alaúde, para votar
nos seus joelhos as páginas de ouro de meus poemas, e semear o seu
caminho dos louros da minha glória!
MACÁRIO
Oh! acordar como Julieta com seu Romeu pálido no seio, com a cabeça
romântica ainda dourada do último reflexo do crepúsculo
da vida, acordar dos sonhos de noiva no sudário da morte, com os goivos
murchos dos finados na fronte em vez da coroa nupcial cheirosa da amante de
Romeu! Apertá-lo embalde ao seio ardente, banhar-lhe de lágrimas
de fogo as faces pálidas, e de beijos os lábios frios, e procurar-lhe
insana pelos lábios um derradeiro assomo de vida ou uma gota de veneno
para ela. É duro, é triste! é um caso que merece as lágrimas
mais doloridas dos olhos.-Mas dói ainda mais fundo acordar dos sonhos
esperançosos com o cadáver frio das esperanças sobre
o peito! Pobre Penseroso! Amaste um instante que foi tua vida, como Julieta
e como Romeu: e não tiveste a conversa ao luar no jardim de Capuleto,
não tremeste nas falas amorosas da primeira noite de amor, e não
soubeste que doces que são os beijos da longa despedida, e o pensar
que não são as aves da manhã, mas o rouxinol do vale
quem gorjeia nas romeiras, que o revérbero de luz branca nas nuvens
do Oriente, e o apagar das estrelas não crespusculava o dia, e crer
na vida em si e numa mulher com as mãos de uma pálida amante
sobre o coração!
PENSEROSO
Por ela fui pedir à solidão os murmúrios, fui abrir
meu coração aos hálitos moribundos do crepúsculo,
ajoelhei-me junto das cruzes da montanha, e no sussurro das aves que adormeciam,
no cintilar das primeiras estrelas da noite, na gaze transparente e purpurina
que desdobrava seu véu luminoso por entre as sombras do vale, em toda
essa natureza bela que dormia fui escutar as vozes intimas do amor, e meu
peito acordou-se cantando e sonhando com ela!
MACÁRIO
Tenho pena de ti. Mas consola-te. Que valem as lágrimas insensatas?
Todas elas são assim. Eu também chorei, mas, como as gotas que
porejam da abóbada escura das cavernas, essas lágrimas ardentes
deixaram uma crosta de pedra no meu coração. Não chores.
Vem antes comigo. Geórgio dá hoje uma ceia: uma orgia esplêndida
como num romance. Teremos os vinhos da Espanha, as pálidas voluptuosas
da Itália, e as americanas morenas, cujos beijos têm o perfume
vertiginoso das magnólias e o ardor do sangue meridional. Não
há melhor túmulo para a dor que uma taça cheia de vinho
ou uns olhos negros cheios de languidez.
PENSEROSO
Não: vai só.-Se tu soubesses no que eu penso e no que tenho
pensado! Enquanto eu falo a minha alma desvaria, e a minha febre devaneia.
Sonhei sangue no peito dela, sangue nas minhas mãos, sangue nos meus
lábios, no céu, na terra…. em tudo! Pareceu-me que tremia
nas escadas bambas do cadafalso… senti a risada amarela do homem da vingança…
depois minha cabeça escureceu-se…Pensei no suicídio…Macário,
Macário, não te rias de mim! como o vagabundo, que se debruça
sobre um precipício sem fundo, senti a vertigem regelar meus cabelos
hirtos e um suor de medo banhar minha fronte…tenho medo! Sou um doido, Macário,
eu o sei. Que longa vai essa noite! A lua avermelhada não lança
luz no céu escuro; nem a brisa no ar: é uma noite de verão,
ardente como se a natureza também tivesse a febre que inflama meu cérebro!…
NUMA SALA
(Sobre a mesa livros de estado. PENSEROSO encostado na mesa. MACÁRIO
fumando.)
PENSEROSO
Li o livro que me deste, Macário… Li-o avidamente. Parece que no
coração humano há um instinto que o leva à dor,
como o corvo ao cadáver. Aquele poema é frio como um cadáver.
É um copo de veneno. Se aquele livro não é um jogo de
imaginação, se o ceticismo ali não é máscara
de comédia, a alma daquele homem é daquelas mortas em vida,
onde a mão do vabagundo podia semear sem susto as flores inodoras da
morte.
MACÁRIO
E o ceticismo não tem a sua poesia?… O que é a poesia, Penseroso?
Não é porventura essa comoção íntima de
nossa alma com tudo que nos move as fibras mais íntimas, com tudo que
é belo e doloroso?… A poesia será só a luz da manhã
cintilando na areia, no orvalho, nas águas, nas flores, levantando-se
virgem sobre um leito de nuvens de amor, e de esperança? Olha o rosto
pálido daquele que viu, como a Niobe, morrerem uma por uma, feridas
pela mão fatal que escreveu a sina do homem, suas esperanças
nutridas da alma e do coração-e dize-me se no riso amargo daquele
descrido, se na ironia que lhe cresta os beiços não há
poesia como na cabeça convulsa do Laocoonte. As dores do espírito
confrangem tanto um semblante como da carne. Assim como se cobre de capelas
de flores a cruz de uma cova abandonada, por que não derramar os goivos
da morte no cemitério das ilusões da vida? A natureza é
um concerto cuja harmonia só Deus entende, porque só ele ouve
a música que todos os peitos exalam. Só ele combina o canto
do corvo e o trinar do pintassilgo, as nênias do rouxinol e o uivar
da fera noturna, o canto de amor da virgem na noite do noivado, e o canto
de morte que na casa junta arqueja na garganta de um moribundo. Não
maldigas a voz rouca do corvo-ele canta na impureza um poema desconhecido,
poema de sangue e dores peregrinantes como a do bengali é de amor e
ventura! Fora loucura pedir vibrações a uma harpa sem cordas,
beijos à donzela que morreu, fogo a uma lâmpada que se apaga.
Não peças esperanças ao homem que descrê e desespera.
PENSEROSO
Macário! É ele tão velho, teve tantos cadáveres
que apertar nos braços nas horas de despedida, que o seu sangue se
gelasse, e seus nervos que não dormem precisassem do ceticismo, como
Paganini do ópio para adormecer? Por que foi ele banhar sua fronte
juvenil na vertigem dos gotos amaldiçoados? Com as maos virgens, por
que vibrou o alaúde lascivo esquecido num canto do lupanar? É
um livro imoral, por que esse moço entregou-se delirante a essa obra
noturna de envenenamento? Não te rias, Macário: pobre daquele
que não tem esperanças; porém maldito aquele que vai
soprar as cinzas de sua esterilidade sobre a cabeça fecunda daquele
que ainda era puro! O coração é um oceano que o bafejar
de um louco pode turvar, mas a quem só o hálito de Deus aplaca
as tormentas.
Esperanças! e esse descrido não palpita de entusiasmo no rodar
do carro do século, nos alaridos do progresso, nos hosanas do industrialismo
laurífero? Não sente ele que tudo se move,que o século
se emancipa c a cruzada do futuro se recruta? Não sonha ele também
com esse Oriente para onde todos se encaminham sedentos de amor e de luz?
Esperanças! e esse Americano não sente que ele é o filho
de uma nação nova, não a sente o maldito cheia de sangue,
de mocidade e verdor? Não se lembra que seus arvoredos gigantescos,
seus oceanos escumosos, os seus rios, suas cataratas, que tudo lá é
grande e sublime? Nas ventanias do sertão, nas trovoadas do sul, no
sussurro das florestas à noite, não escutou nunca os prelúdios
daquela música gigante da terra que entoa a manhã a epopéia
do homem e de Deus? Não sentiu ele aquela sua nação infante
que se embala nos hinos da indústria européia como Júpiter
nas cavernas do Ida ao alarido dos Coribantes-tem futuro imenso?
Esperanças! não tê-las quando todos as têm! quando
todos os peitos se expandem como as velas de uma nau, ao vento do futuro!
Por que antes não cantou a sua América como Chateaubriand e
o poeta de Virgínia,’ a Itália como a Mignon de Goethe, o Oriente
como Byron, amor dos anjos como Thomas Moore, o amor das virgens como Lamartine?
MACÁRIO
Muito bem, Penseroso. Agora cala-te: falas como esses oradores de lugares
comuns que não sabem o que dizem. A vida está na garrafa de
conhaque, na fumaça de um charuto de Havana, nos seios voluptuosos
da morena. Tirai isso da vida-o que resta? Palavra de honra que é deliciosa
a água morna de bordo de vossos navios! que têm um aroma saudável
as máquinas de vossos engenhos a vapor! que embalam num far niente
balsâmico os vossos cálculos de comércio! Não sabeis
da vida. Acende esse charuto. Penseroso, fuma e conversemos.
Falas em esperanças. Que eternas esperanças que nada parem!
o mundo está de esperanças desde a primeira semana da criação…
e o que tem havido de novo? Se Deus soubesse do que havia de acontecer, não
se cansara em afogar homens na água do dilúvio, nem mandar crucificar,
macilenta e ensangüentada, a imagem de seu Cristo divino. O mundo hoje
é tão devasso como no tempo da chuva de fogo de Sodoma. Falais
na indústria, no progresso? As máquinas são muito úteis,
concordo. Fazem-se mais palácios hoje, vendem-se mais pinturas e mármores,
mas a arte-degenerou em ofício e o gênio suicidou-se.
Enquanto não se inventar o meio de ter mocidade eterna, de poder amar
cem mulheres numa noite, de viver de música e perfumes, e de saber-se
a palavra mágica que fará recuar das salas do banquete universal
o espectro da morte…antes disso pouco tereis adiantado.
Dizes que o mundo caminha para o Oriente. Não serei eu, nem o sonhador
daquele livro que ficaremos no caminho. O harém, os cavalos da Arábia,
o ópio, o hatchiz, o café de Moka, e o latakiá são
coisas soberbas!
A poesia morre: deixá-a que cante seu adeus de morimbunda. Não
escutes essa turba embrutecida no plagiar e na cópia. Não sabem
o que dizem esses homens que para apaixonar-se pelo canto esperam que o hosana
da glória tenha saudado o cantor. São estéreis em si
como a parasita. Músicos-nunca serão Beethoven, nem Mozart.
Escritores-todas as suas garatujas não valerão um terceto do
Dante. Pintores-nunca farão viver na tela uma carnação
de Rubens ou erguer-se no fresco um fantasma de Miguel Angelo. É a
miséria das misérias!. Como uma esposa árida, tressuam
e esforçam-se debalde para conceber. Todos os dias acordam de um sonho
mentiroso em que creram sentir o estremecer do feto nas entranhas reanimadas.
Falam nos gemidos da noite no sertão, nas tradições
das raças perdidas da floresta, nas torrentes das serranias, como se
lá tivessem dormido ao menos uma noite, como se acordassem procurando
túmulos, e perguntando como Hamlet no cemitério a cada caveira
do deserto o seu passado.
Mentidos! Tudo isso lhes veio à mente lendo as páginas de algum
viajante que esqueceu-se talvez de contar que nos mangues e nas águas
do Amazonas e do Orenoco há mais mosquitos e sezões do que inspiração
que na floresta há insetos repulsivos, répteis imundos; que
a pele furta-cor do tigre não tem o perfume das flores, que tudo isto
é sublime nos livros, mas é soberanamente desagradável
na realidade!
Escuta-me ainda. O autor deste livro não é um velho. Se não
crê é porque o ceticismo é uma sina ou um acaso, assim
como é às vezes um fato de razão. As cordas daquela lira
foram vibradas por mãos de moço, mãos ardentes e convulsas
de febre… talvez de inspiração
Foi talvez um delírio; mas foi da cabeça e do coração
que se exalaram aqueles cantos selvagens. Foi numa vibração
nervosa, com o sangue a galopar-lhe febril pelas veias, com a mente ébria
de seu sonho ou do seu pesadelo que ele cantou. Se as fibras da harpa desafinam,
se a mão ríspida as estala, se a harpa destoa, é que
ele não pensou nos versos quando pensava na poesia, é que ele
cria e crê que a estância é uma roupa como outra apenas,
como o diz George Sand, a arte é um manto para as belezas nuas: é
que ele preferira deixar uma estátua despida, a pespontar de ouro uma
túnica de veludo para embuçar um manequim. É que ele
pensa que a música do verso é o acompanhamento da harmonia das
idéias e ama cem vezes mais o Dante com sua versificação
dura, os rasgos de Shakespeare com seus versos ásperos, do que os alexandrinos
feitos a compasso de Sainte-Beuve ou Turquety.
PENSEROSO
Tudo isso nada prova. É uma poesia, concordo, concordo; mas é
uma poesia terrível. É um hino de morte sem esperança
do céu, como o dos fantasmas de João Paulo Richter. É
o mundo sem a luz, como no canto da Treva., o ateísmo como na Rainha
Mab de Shelley. Tenho pena daqueles que se embriagam com o vinho do ceticismo.
MACÁRIO
Amanhã pensarás comigo. Eu também fui assim. O tronco
seco sem seiva e sem verdor foi um dia o arvoredo cheio de flores e de sussurro.
PENSEROSO
Não crer! e tão moço! Tenho pena de ti.
MACÁRIO
Crer? e no quê? No Deus desses sacerdotes devassos? desses homens que
saem do lupanar quentes dos seios da concubina, com sua sotaina preta ainda
alvejante do cótão do leito dela para ir ajoelhar-se nos degraus
do templo! Crer no Deus em que eles mesmos não crêem, que esses
ébrios profanam até do alto da tribuna sagrada?
PENSEROSO
Não falemos nisto. Mas o teu coração não te diz
que se nutre de fé e de esperanças?
MACÁRIO
A filosofia é vã. É uma cripta escura onde se esbarra
na treva. As idéias do homem o fascinam, mas não o esclarecem.
Na cerração do espírito ele estala o crânio na
loucura ou abisma-se no fatalismo ou no nada.
PENSEROSO
Não; não é o filosofismo que revela Deus. A razão
do homem é incerta como a chama desta lâmpada: não a excites
muito, que ela se apagará.
MACÁRIO
Só restam dois caminhos àquele que não crê nas
utópias do filósofo. O dogmatismo ou o ceticismo.
PENSEROSO
Eu creio porque creio. Sinto e não raciocino.
MACÁRIO
Talvez seja a treva de meu corpo que me escureça minha alma. Talvez
um anjo mau soprasse no meu espírito as cinzas sufocadoras da dúvida.
Não sei. Se existe Deus, ele me perdoará se a minha alma era
fraca, se na minha noite lutei embalde com o anjo como Jacó, e sucumbi.Quem
sabe?-eis tudo o que há no meu entendimento. Às vezes creio,
espero: ajoelho-me banhado de pranto, e oro; outras vezes não creio,
e sinto o mundo objetivo vazio como um túmulo.
PENSEROSO
Vê: o mundo é belo. A natureza estende nas noites estreladas
o seu véu mágico sobre a terra, e os encantos da criação
falam ao homem de poesia e de Deus. As noites, o sol, o luar, as flores, as
nuvens da manhã, o sorriso da infância, até mesmo a agonia
consolada e esperançosa do moribundo ungido que se volta para Deus…
tudo isso será mentira? As esperanças espontâneas, as
crenças que um olhar de virgem nos infiltra, as vibracões unânimes
das fibras sensiveis serão uma irrisão? O amor de tua mãe,
as lágrimas do teu amor… tudo isso não te acorda o coração?
Serás como essas harpas abandonadas cujas cordas roem a umidade e a
ferrugem, e onde ninguém pode acordar uma harmonia? Por que estalaram?
que dor profunda as rebentou? Quando tua alma ardente abria seus vôos
para pairar sobre a vida cheia de amor, que vento de morte murchou-te na fronte
a coroa das ilusões, apagou-te no coração o fanal do
sentimento, e despiu-te das asas da poesia? Alma de guerreiro, deu-te Deus
porventura o corpo inteiriçado do paralítico? Coração
de Romeu, tens o corpo do lazarento ou a fealdade de Quasímodo? Lira
cheia de músicas suspirosas, negou-te a criação cordas
argentinas? Oh! não! abre teu peito e ama. Tu nunca viste uma ilusão
gelar-se na fronte da amante morta, teu amor degenerar nos lábios de
uma adúltera. Alma fervorosa, no orgulho de teu ceticismo não
te suicides na atonia do desespero. A descrença é uma doença
terrível; destrói com seu bafo corrosivo o aço mais puro:
é ela quem faz de Rembrandt um avarento, de Bocage um libertino…
Para os peitos rotos, desenganados nos seus afetos mais íntimos, onde
sepultam-se como cadáveres todas as crenças, para esses aquilo
que se dá a todos os sepulcros: uma lágrima! Aquele que jogou
sua vida como um perdulário, que eivou-se numa dor secreta, que sentiu
cuspirem-lhe nas faces sublimes esses que riam como Demócrito, duvidem
como Pirrhon, ou durmam indiferentes no seu escárnio como Diógenes,
o cínico, no seu tonel. A esses leva uma torrente profunda: revolvem-se
na treva da descrença como Satã no infinito da perdição
e do desespero! Mas nós, mas tu e eu que somos moços, que sentimos
o futuro nas aspirações ardentes do peito, que temos a fé
na cabeça e a poesia nos lábios, a nós o amor e a esperança:
a nós O lago prateado da existência. Embalemo-nos nas suas águas
azuis-sonhemos, cantemos e creiamos! Se o poeta da perdição
dos anjos nos conta o crime da criatura divina liba-nos da despedida do Éden
o beijo de amor que fez dos dois filhos da terra uma criatura, uma alma cheia
de futuro. Se na primeira página da história da passagem do
homem sobre a terra há o cadáver de Abel, e o ferrete de Caim
o anátema naquelas tradições ressoa o beijo de mãe
de Eva pálida sobre os lábios de seu filho!
MACÁRIO
Ilusões! O amor,a poesia, a glória…Ilusões! Não
te ris tu comigo da glória, como eu rio dela? A glória! entre
essa plebe corrupta e vil que só aplaude o manto do Tartufo e apedreja
as estátuas mais santas do passado! Glória! Nunca te lembras
do Dante, de Byron, de Chatterton, o suicida? E Verner poeta, sublime e febril
também, morto de ceticismo e desespero sob sua grinalda de orgia? Glória!
São acaso os louros salpicados de lodo, manchados, descridos, cuspidos
do poviléu, e que o futuro só consagra ao cadáver que
dorme?
Escuta. Eu também amei. Eu também talvez possa amar ainda.
Às vezes quando a mente se me embebe na melancolia, quando me passam
na alma sonhos de homem que não dorme, e que chamam poesia; eu sinto
ainda reabrir-se o meu peito a amores de mulher. Parece que, se aquela beleza
de olhos e cabelos negros, de colo arquejante e flutuoso me deixasse repousar
a cabeça sobre seu peito, eu poderia ainda viver e querer viver, e
ter alento bastante para desmaiar ali na voluptuosidade pura de um espasmo,
na vertigem de um beijo.
Mas o que me agita as fibras ainda é voluptuosidade -é o ademã
de uma beleza lânguida, a sede insaciável do gozo.
São sonhos! sonhos, Penseroso! É loucura abrir tanto os véus
do coração e essas brisas enlevadas que vêm tão
sussurrantes de enleio, tão repassadas de aromas e beijos! É
loucura talvez! E contudo quando o homem só vive deles, quando todas
as portas se fecharam ao enjeitado por que não ir bater na noite de
febre ao palácio da fada das imaginações? Põe
a mão no meu coração. Tuas falas mo fizeram bater. Havia
uma voz dentro dele que eu pensava morta, mas que estava só emudecida.
Escuta-a. Há uma mulher em quem eu pensei noites e noites: que encheu
minhas noites de insônia, meu sono de visões fervorosas, meus
dias de delírio. Eu amei essa mulher. Eu a segui passo a passo na minha
vida. Deite-me na calçada da rua defronte de sua janela, para ouvir
a sua voz, para entrevê-la a furto branca e vaporosa, para respirar
o ar que ela bebia, para sentir o perfume de seus cabelos e ouvir o canto
de seus lábios. Eu amei muito essa mulher. E por vê-la uma hora
ao pé de mim, seminua, embora fosse adormecida, só por vê-la,
e por beijá-la de leve, eu daria minha vida inteira ao nada. E essa
mulher, essa mulher…
PENSEROSO
Que tem, fala …
MACÁRIO
Adeus, Penseroso. Eu pensei que tu me acordavas a vida no peito. Mas a fibra
em que tocaste e onde foste despertar uma harmonia é uma fibra maldita,
cheia de veneno e de morte. Adeus. Penseroso. Ai daquele a quem um verme roeu
a flor da vida como a Werther! A descrença é a filha enjeitada
do desespero. Faust é Werther que envelheceu, e o suicídio da
alma é o cadáver de um coração. O desfolhar das
ilusões anuncia o inverno da vida.
PENSEROSO
Onde vais, onde vais?
MACÁRIO
Onde vou todas as noites. Vagarei à toa pelos campos até que
o sono feche meus olhos e que eu adormeça na relva fria das orvalhadas
da noite. Adeus.
A MESMA SALA
PENSEROSO SÓ (escreve)
Não escreverei mais: não. Calarei o meu segredo e morrerei
com ele.
Esqueceu tudo! tudo! Esqueceu as noites solitárias em que eu estava
a sós com ela, com sua mão na minha, com seus olhos nos meus.
Esqueceu! Deus lhe perdoe. E se eu morro por ela, seja ela feliz!
Mas por que mentia se ela se ria de mim? Por que aqueles olhares tão
lânguidos, aqueles suspiros tão doces? Por que sua mão
estremecia nas minhas e se gelava quando eu a apertava? Por que naquela noite
fatal, quando eu a beijei, ela escondeu seu rosto de virgem nas mãos,
c as lágrimas corriam por entre seus dedos, e ela fugiu soluçando
? ( Pensativo ) .
Ela não me ama…é certo. Nunca, nunca ela me teve amor: a
ilusão morreu… Oh! não morrerei com ela? Ontem falei com Davi
sobre o suicídio. Davi declamou, repetiu o que dizem esses homens sem
irritabilidade de coração, que julgam que as palavras provam
alguma coisa. Eu sorri. Davi é feliz: ele sim, nunca amará,
não há de sentir esse sentimento único e queimador absorver
como uma casuarina toda a seiva do peito, alimentar-se de todas as esperanças,
todas as ambições, todos os amores da terra e do céu,
dos homens e de Deus, para fazer de tudo isso uma única essência,
para transubstanciar tudo isso no amor de uma mulher! E depois, quando esse
amor morrer, achando o peito vazio como o de um esqueleto, não terá
animo para adormecer no seio da morte!
Eis aí o veneno, ó minha terra! Ó minha mãe!
mais nunca te verei! Meu pai, meu santo pai! e tu, mãe’! de minha mãe
que sentias por mim, cuja vida era uma oração por mim, que enxugavas
tuas lágrimas nos teus cabelos brancos pensando no teu pobre neto!
Adeus! Perdão! perdão!
Creio que chorei. Tenho a face molhada. A dor me enfraqueceria? Não!
não Não há remédio. Morrerei.
PÁGINAS DE PENSEROSO
Se há um homem que cresse no futuro, fui eu. Tive confiança
no orgulho de meu coração e no gênio que sentia na minha
cabeça. Eu sinto-o. Deus me fez poeta. Esse mundo, a natureza, as montanhas,
o eflúvio luminoso das noites de luar, tudo isso me acordava vibrações,
me revelava no peito cordas que nunca escutei senão nos poetas divinos,
que nunca senti no peito cavernoso e vazio dos outros homens. Sou rico, moço,
morrerei pouco mais velho que o desgraçado Chatterton. E por todo o
meu futuro, minhas glórias, toda essa ambição imensa,
essa sede fogosa de uma alma que não se sacia com os prazeres de convenção
da vida suntuosa dos palácios esplêndidos, e das aclamações
da fama, eu só queria seu peito junto do meu…sua mão na minha.
O andrajo do miserável não me doeria se eu tivesse o manto de
ouro do seu amor.
Oh! ela não me entendeu! Não merecia tamanho amor. Tomei-a
nua, fria e bruta como o escultor uma pedra de mármore…a visão
que vesti com a gaze acetinada das minhas ilusões, a estátua
que despertei do seio da matéria, não estava aí. Estava
no meu coração e só nele. Fi-la bela, dessa beleza divina
que Deus me ressumbrou na alma de poeta. Talvez é assim-mas assim mesmo
eu morro por ela…Amo-a como o pintor a sua Madona, como o escultor a sua
Vênus, como Deus a sua criatura.
Era a única estátua da criação que se podia aviventar
ao bafo ardente de meu peito. Não amei nunca outra mulher. Se o coração
é um lírio que as paixões desfloram, sou ainda virgem;
no deleite das minhas noites delirantes, tu o sabes, meu Deus, eu nunca amei!
E por que viver se o coração é morto? Se eu hoje dormisse
sobre essa idéia, se eu pudesse adormecer no ócio e no tédio,
seria isso ainda viver?
Viver era sentir, era amar, era crer que a ventura não é um
sonho, e que eu tinha um leito de flores onde descansar da vida, onde eu pudesse
crer que a glória, o futuro não valem um beijo de mulher!
Morrerei..!Não posso trazer no peito o cadáver de minhas ilusões,
como a infanticida o remorso a lhe tremer nas entranhas. Há doenças
que não têm cura. A tempestade é violenta, e o cansado
marinheiro adormeceu no seio da morte. Antes isso que a lenta agonia do desespero,
do que esse corvo da descrença e da ironia que rói as fibras
ainda vivas como um cancro.
E seria contudo tão bela a vida se ela me amasse! Oh! por que me traiu…
Por que embalou-me nos seus joelhos, nos acentos mágicos da música
dos anjos da esperanca, do amor, para lançar-me na treva erma desse
desalento e dessa saudade eivada de morte!
Viveríamos tão bem! Era tão fácil minha ventura!
Por esses rios imensos da minha terra há tantas margens viçosas
e desertas, cheias de flores e de berços de verdura, de retiros amenos,
onde as aves cantam na primavera eterna do nosso céu, e as brisas suspiram
tão docemente nas tardes purpurinas! Seríamos sós,sós
e essa solidão nós a povoaríamos com o mundo angélico
do nosso amor! Nos crepúsculos de verão eu a levaria pelas montanhas
a embriagar-se de vida nos aromas da terra palpitante, pelos vales ainda úmidos
de orvalho e ao tom das águas sem pensar na vida, pensando só
que o amor é o oito dos rochedos brancos da existência, a estrela
dos céus misteriosos, a palavra sacramental e mágica que rompe
as cavernas do infinito e da ventura! Oh! deitado nos seus joelhos, ouvindo
sua voz misturar-se ao silêncio do deserto, vendo sua face mais bela
no véu luminoso e pálido do luar, como seria doce viver! Era
assim que eu esperava amar, era assim que eu podia morrer sem saudades da
vida, suspirando de amor! Sou um doido, meu Deus! Por que mergulhar mais o
meu coração nessa lagoa venenosa das ilusões? Quero ter
ânimo para morrer. Estalou-se nas minhas mãos o último
ramo que me erguia sobre o abismo. Para que sonhar mais o que é impossível?
É ainda um sonho o que vou escrever.
Eu sonhei esta noite…e sonhei com ela. Era meio-dia na floresta. A sombra
caía no ar calmoso
…………………………………………………………………………………………………………
UMA RUA
PENSEROSO ( passeando )
Tenho febre. É o efeito do veneno? Para que obre melhor tenho-o tomado
aos poucos. Tenho às vezes estremecimentos que me gelam. Sinto um fogo
no estômago e as veias do meu cérebro parecem queimar o meu crânio
e inundá-lo de sangue fervente. A cabeça me dói: às
vezes parece-me que os ossos do meu crânio estalam, a minha vista se
escurece e meus nervos tremem… meu coração parece abafado
e palpita ansioso a respiração me custa. Oh! custa tanto morrer!
O DOUTOR LARIUS ( passando a cavalo)
Penseroso! Penseroso! Onde vais tão pálido?
PENSEROSO
Doutor, bom-dia. Acha-me pálido?
O DOUTOR
Como tua mão está ardente! Como tua testa queima! Tens febre,
Penseroso.
PENSEROSO
Tenho febre, não é assim? Ponha a mão no meu coração,
veja como bate!
O DOUTOR
Como teu peito está úmido de suor! Como pulsa teu coração!
Penseroso, Penseroso! o que tens, meu amigo?
PENSEROSO
O que tenho? não tenho nada… absolutamente nada. Adeus, doutor.
O DOUTOR
Onde vais? O sol está ardente, e tens febre. Descansemos aqui na sombra.
Ou então vamos para casa e deita-te
PENSEROSO
Sim. Adeus, doutor. (Vai-se apressado).
O DOUTOR
Penseroso! Penseroso!
UMA SALA
(Num canto da sala, junto do piano, PENSEROSO só com a Italiana. Ouve-se
o falar confuso partindo de outros lados da sala. Risadas, murmúrios
de homens e mulheres que conversam.)
PENSEROSO
Adeus, senhora: eu me vou. Adeus, mas ao menos dai-me um olhar de compaixão
para que se eu morrer de abandono, não morra sem uma bênção:
e o vosso olhar é uma bênção!
A ITALIANA
Que dizeis, senhor Penseroso?
PENSEROSO
Sim…não me entendeis: eu sou um insensato. Pcbre daquele a quem
não compreendem!
A ITALIANA
Por que o dizeis? não vos prometi a minha mão? Por quem se
espera no altar? É por mim? Não Penseroso, é pela vontade
de teu pai… Não te dei eu minha alma, assim como te darei meu corpo?
PENSEROSO
Ó virgem! se acaso um só momento de tua vida tu consagraste
um suspiro ao desgraçado, se um só momento tu o amaste, ah!
que Deus em paga desse instante te dê um infinito de ventura!
A ITALIANA
Penseroso! Que tens? Nunca te vi assim. Eras pensativo e estás sombrio.
Eras melancólico e estás triste. Que tens, que me não
confias? Não sou eu tua noiva?
PENSEROSO
Ó senhora! Se uma eternidade se pode comprar por um sonho, o sonho
que me embalou na minha existência bem valera ser comprado por uma eternidade!
A ITALIANA
O teu sonho é o meu…é o nosso amor…a minha vida por ti,
a tua vida por mim: nós dois formando um único ser, uma única
alma, um mundo de delícias e de mistério só para nós
e por nós!
PENSEROSO
Oh! senhor e acordar!
A ITALIANA
Então…
PENSEROSO
Meu Deus! meu Deus! perdoai-me. Adeus! adeus! (Com os olhos em lágrimas).
Quem sabe se não será para sempre? (Sai).
A ITALIANA (empalidecendo)
Para sempre? Ah!
O QUARTO DE PENSEROSO
PENSEROSO ( só )
Ela não me ama. Que importa? eu lh’o perdôo. I’erdôo a
leviandade daquela criança pura e santa que me leva ao suicídio…Oh!
se eu pudesse vê-la ainda!
Passei toda a noite pelo campo que se estende junto à casa dela. Vi
as luzes apagarem-se uma por uma. Só o quarto dela ficara iluminado.
Havia ser muito tarde quando a luz se apagou. Pareceu-me ver ainda depois
uma imagem branca encostada na janela . .
Coitada! ela não sabe que eu estava ali, a seus pés, com o
desespero n’alma, e o veneno no peito, cheio de desejos e de morte, cheio
de saudades e de desesperança!
Vaguei toda a noite. Quando acordei estava muito longe. Assentei-me à
borda do caminho. A meus pés se estendia o precipício coberto
de ervaçal
À direita, longe numa lagoa saíram os primeiros raios do dia.
O orvalho reluzia nas folhas das árvores antigas do caminho, em cuja
sombra imensa acordavam os passarinhos cantando
Perdoai-me, meu Deus! talvez seja uma fraqueza o suicídio-por que
será um crime ao pobre louco sacrificar os seus sonhos da vida?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . .
Este cordão de cabelos quero que seja entregue a ela: são cabelos
de minha mãe…de minha mãe que morreu.
Trouxe-os sempre no meu peito. Quero que ela os beije às vezes e lembre-se
de mim………………………………………………………………..
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . .
Esse amor foi uma desgraça. Foi uma sina terrível. Ó
meu pai! ó minha segunda mãe! ó meus anjos! meu céu!
minhas campinas! É tào triste morrer! …………. . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . ………………………………………………………
Ah! que dores horríveis! tenho fogo no estômago.. Minha cabeça
se sufoca… Ar! ar! preciso de ar.. Eu te amei, eu te amei tanto!… (Desmaia).
HUBERTO ( entrando )
Penseroso! Que tens? Que convulsão! Ah! é uma agonia! Depressa,
depressa, chamem alguém… O Dr. larius. . . Ó meus companheiros,
socorrei nosso amigo. . Penseroso morre! Davi! Davi! onde está Davi?
UMA VOZ
Está caçando.
HUBERTO
E Macário, onde está também?
A VOZ
Tomou ontem uma bebedeira. Está ébrio como uma cabra.
À PORTA DE UMA TAVERNA
(MACÁRIO vai saindo e encontra SATÃ)
SATÃ
Onde vais?
MACÁRIO
Sempre tu, maldito!
SATÃ
Onde vais? Sabes de Penseroso?
MACÁRIO
Vou ter com ele.
SATÃ
Vai, doido, vai! que chegarás tarde! Penseroso morreu.
MACÁRIO
Mataram-no!
SATÃ
Matou-se.
MACÁRIO
Bem.
SATÃ
Vem comigo.
MACÁRIO
Vai-te.
SATÃ
És uma criança. Ainda não saboreaste a vida e já
gravitas para a morte. O que te falta? Ouro em rios? eu t’o darei. Mulheres?
tê-las-ás virgens, adúlteras ou prostitutas -O amor? dar-te-ei
donzelas que morram por ti, e realizem na tua fronte os sonhos de seu histerismo…Que
te falta?
MACÁRIO
Vai-te, maldito!
SATÃ ( afastando -se )
Abrir a alma ao desespero é dá-la a SATÃ. Tu és
meu. Marquei-te na fronte com meu dedo. Não te perco de vista. Assim
te guardarei melhor. Ouvirás mais facilmente minha voz partindo de
tua carne que entrando pelos teus ouvidos.
UMA RUA
(MACÁRIO E SATÃ de braços dados.)
SATÃ
Estás ébrio? Cambaleias.
MACÁRIO
Onde me levas?
SATÃ
A uma orgia. Vais ler uma página da vida, cheia de sangue e de vinho-que
importa?
MACÁRIO
É aqui, não? Ouço vociferar a saturnal lá dentro.
SATÃ
Paremos aqui. Espia nessa janela.
MACÁRIO
Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão
sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem
ali mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas… Que noite!
SATÃ
Que vida! não é assim? Pois bem! escuta, Macário.Há
homens para quem essa vida é mais suave que a outra.O vinho é
como o ópio, é o Letes do esquecimento…A embriaguez é
como a morte. . .
MACÁRIO
Cala-te. Ouçamos.
Malva-maçã
De teus seios tão mimosos
Dá que eu goze o talismã!
Dá que ali repouse a fronte
Cheia de amoroso afã!
E louco nele respire
A tua malva-maçã!
Dá-me essa folha cheirosa
Que treme no seio teu!
Dá-me a folha… hei de beijá-la
Sedenta no lábio meu!
Não vês que o calor do seio
Tua malva emurcheceu?…
A pobrezinha em teu colo
Tantos amores gozou,
Viveu em tanto perfume
Que de enlevos expirou!
Quem pudera no teu seio
Morrer como ela murchou!
Teu cabelo me inebria,
Teu ardente olhar seduz,
A flor de teus olhos negros
De tu’alma raia à luz…
E sinto nos lábios teus
Fogo do céu que transluz!
O teu seio que estremeceme
Enlanguesce-me de gozo:
Há um quê de tão suave
No colo voluptuoso…
Que num trêmulo delíquio
Faz-me sonhar venturoso!
Descansar nesses teus braços
Fora angélica ventura…
Fora morrer… nos teus lábios
Aspirar tu’alma pura!
Fora ser Deus dar-te um beijo
Na divina formosura!
Mas o que eu peço, donzela,
Meus amores, não é tanto!
Basta-me a flor do seio
Para que eu viva no encanto
E em noites enamoradas
Eu verta amoroso pranto!
Oh! virgem dos meus amores,
Dá-me essa folha singela!
Quero sentir teu perfume
Nos doces aromas dela…
E nessa malva-maçã
Sonhar teu seio, donzela!
Uma folha assim perdida
De um seio virgem no afã
Acorda ignotas doçuras
Com divino talismã!
Dá-me do seio esta folha
A tua malva-maçã!
Quero apertá-la a meu peito
E beijá-la com ternura…
Dormir com ela nos lábios
Desse aroma na frescura…
Beijando-a a sonhar contigo
E desmaiar de ventura!
A folha que tens no seio
De joelhos pedirei…
Se posso viver sem ela
Não o creio! bem o sei…
Dá-ma pelo amor de Deus,
Que sem ela morrerei!…
Pelas estrelas da noite,
Pelas brisas da manhã,
Por teus amores mais puros,
Pelo amor de tua irmã,
Dá-me essa folha cheirosa…
— A tua malva-maçã!
Meu Desejo
Meu desejo? era ser a luva branca
Que essa tua gentil mãozinha aperta,
A camélia que murcha no teu seio,
O anjo que por te ver do céu deserta…
Meu desejo? era ser o sapatinho
Que teu mimoso pé no baile encerra…
A esperança que sonhas no futuro,
As saudades que tens aqui na terra…
Meu desejo? era ser o cortinado
Que não conta os mistérios de teu leito,
Era de teu colar de negra seda
Ser a cruz com que dormes sobre o peito.
Meu desejo? era ser o teu espelho
Que mais bela te vê quando deslaças
Do baile as roupas de escumilha e flores
E mira-te amoroso as nuas graças!
Meu desejo? era ser desse teu leito
De cambraia o lençol, o travesseiro
Com que velas o seio, onde repousas,
Solto o cabelo, o rosto feiticeiro…
Meu desejo? era ser a voz da terra
Que da estrela do céu ouvisse amor!
Ser o amante que sonhas, que desejas
Nas cismas encantadas de langor!
Meu Sonho
EU
Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?
Cavaleiro, quem és? — O remorso?
Do corcel te debruças no dorso…
E galopas do vale através…
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?
Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?…
Tu escutas… Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?
Cavaleiro, quem és? que mistério…
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?
O FANTASMA
Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!…
Minha Amante
Coração de mulher, qual filomela,
É todo amor e canto ao pé da noite.
JOÃO DE LEMOS
Fulcite me floribus… quia amore langueo.
Cant. Canticorum
Ah! volta inda uma vez! foi só contigo
Que, à noite, de ventura eu desmaiava…
E só nos lábios teus eu me embebia
De volúpias divinas!
Volta, minha ventura! eu tenho sede
Desses beijos ardentes que os suspiros
Ofegando interrompem! quantas noites
Fui ditoso contigo!
E quantas vezes te embalei tremendo
Sobre os joelhos meus! Quanto amorosa
Unindo à minha tua face pálida
De amor e febre ardias!
Oh! volta inda uma vez! ergue-se a lua,
Formosa como dantes, é bem noite,
Na minha solidão brilha, de novo,
Estrela de minh’alma!
Desmaio-me de amor, descoro e tremo…
Morno suor me banha o peito langue…
Meu olhar se escurece e eu te procuro
Com os lábios sedentos!
Oh! quem pudera sempre em teus amores
Sobre teu seio perfumar seus dias,
Beijar a tua fronte e em teus cabelos
Respirar ebrioso!
És a coroa de meus anos breves,
És a corda de amor d’íntima lira,
O canto ignoto, que me enleva em sonhos
De saudosas ternuras!
E tu és como a lua: inda és mais bela,
Quando a sombra nos vales se derrama,
Astro misterioso à meia-noite
Te revela a minh’alma!
Ó! minha lira, ó viração noturna,
Flores, sombras do vale, à minha amante…
Dizei que nesta noite de desejos
E de ternuras morro!
Minha Desgraça
Minha desgraça não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco…
E, meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco…
Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro…
Eu sei… O mundo é um lodaçal perdido
cujo sol (quem mo dera) é o dinheiro…
Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que meu peito assim blasfema,
É ter por escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela.
Morena
Ó Teresa, um outro beijo! e abandona-me
a meus sonhos e a meus suaves delírios.
JACOPO ORTIS
É loucura, meu anjo, é loucura
Os amores por anjos… bem sei!
Foram sonhos, foi louca ternura
Esse amor que a teus pés derramei!
Quando a fronte requeima e delira,
Quando o lábio desbota de amor,
Quando as cordas rebentam na lira
Que palpita no seio ao cantor…
Quando a vida nas dores é morta,
Ter amores nos sonhos é crime?
E loucura: eu o sei! mas que importa?
Ai! morena! és tão bela!… perdi-me!
Quando tudo, na insônia do leito,
No delírio de amor devaneia
E no fundo do trêmulo peito
Fogo lento no sangue se ateia…
Quando a vida nos prantos se escoa
Não merece o amante perdão?
Ai! morena! és tão bela! perdoa!
Foi um sonho do meu coração!
Foi um sonho… não cores de pejo!
Foi um sonho tão puro!… ai de mim!
Mal gozei-lhe as frescuras de um beijo!
Ai! não cores, não cores assim!
Não suspires! por que suspirar?
Quando o vento num lírio soluça,
E desmaia no longo beijar,
E ofegante de amor se debruça…
Quando a vida lhe foge, lhe treme,
Pobre vida do seu coração,
Essa flor que o ouvira, que geme,
Não lhe dera no seio o perdão?
Mas não cores! se queres, afogo
No meu seio o fogoso anelar!
Calarei meus suspiros de fogo
E esse amor que me há de matar!
Morrerei, ó morena, em segredo!
Um perdido na terra sou eu!
Ai! teu sonho não morra tão cedo
Como a vida em meu peito morreu!
Na Minha Terra
Laisse-toi donc aimer! Oh! l’amour c’est la vie!
C’est tout ce qu’on regrette et tout ce qu’on envie,
Quand on voit sa jeunesse au couchant décliner!
…………………………………………………………………….
La beauté c’est le front, l’amour c’est la couronne:
Laisse-toi couronner!
V. HUGO
I
Amo o vento da noite sussurrante
A tremer nos pinheiros
E a cantiga do pobre caminhante
No rancho dos tropeiros;
E os monótonos sons de uma viola
No tardio verão,
E a estrada que além se desenrola
No véu da escuridão;
A restinga d’areia onde rebenta
O oceano a bramir,
Onde a lua na praia macilenta
Vem pálida luzir;
E a névoa e flores e o doce ar cheiroso
Do amanhecer na serra,
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu de minha terra;
E o longo vale de florinhas cheio
E a névoa que desceu,
Como véu de donzela em branco seio,
As estrelas do céu.
II
Não é mais bela, não, a argêntea praia
Que beija o mar do sul,
Onde eterno perfume a flor desmaia
E o céu é sempre azul;
Onde os serros fantásticos roxeiam
Nas tardes de verão
E os suspiros nos lábios incendeiam
E pulsa o coração!
Sonho da vida que doirou e azula
A fada dos amores,
Onde a mangueira ao vento que tremula
Sacode as brancas flores…
E é saudoso viver nessa dormência
Do lânguido sentir,
Nos enganos suaves da existência
Sentindo-se dormir…
Mais formosa não é, não doire embora
O verão tropical
Com seus rubores… a alvacenta aurora
Da montanha natal…
Nem tão doirada se levante a lua
Pela noite do céu,
Mas venha triste, pensativa e nua
Do prateado véu…
Que me importa? se as tardes purpurinas
E as auroras dali
Não deram luz às diáfanas cortinas
Do leito onde eu nasci?
Se adormeço tranqüilo no teu seio
E perfuma-se a flor,
Que Deus abriu no peito do poeta,
Gotejante de amor?
Minha terra sombria, és sempre bela,
Inda pálida a vida
Como o sono inocente da donzela
No deserto dormida!
No italiano céu nem mais suaves
São da noite os amores,
Não tem mais fogo o cântico das aves
Nem o vale mais flores!
III
Quando o gênio da noite vaporosa
Pela encosta bravia
Na laranjeira em flor toda orvalhosa
De aroma se inebria…
No luar junto à sombra recendente
De um arvoredo em flor,
Que saudades e amor que influi na mente
Da montanha o frescor!
E quando, à noite no luar saudoso
Minha pálida amante
Ergue seus olhos úmidos de gozo
E o lábio palpitante…
Cheia da argêntea luz do firmamento,
Orando por seu Deus,
Então… eu curvo a fronte ao sentimento
Sobre os joelhos seus…
E quando sua voz entre harmonias
Sufoca-se de amor
E dobra a fronte bela de magias
Como pálida flor…
E a alma pura nos seus olhos brilha
Em desmaiado véu,
Como de um anjo na cheirosa trilha
Respiro o amor do céu!
Melhor a viração uma por uma
Vem as folhas tremer,
E a floresta saudosa se perfuma
Da noite no morrer…
E eu amo as flores e o doce ar mimoso
Do amanhecer da serra
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu da minha terra!
Na Várzea
Como é bela a manhã! Como entre a névoa
A cidade sombria ao sol clareia
E o manto dos pinheiros se aveluda…
E o orvalho goteja dos coqueiros…
E dos vales o aroma acorda o pássaro…
E o fogoso corcel no campo aberto
Sorve d’alva o frescor, sacode as clinas,
Respira na amplidão, no orvalho rola,
Cobra em leito de folhas novo alento
E galopa nitrindo!
Agora que a manhã é fresca e branca
E o campo solitário e o val se arreia…
Ó meu amigo, passeemos juntos
Na várzea que do rio as águas negras
Umedecem fecundas…
O campo é só: na chácara florida
Dorme o homem do vale e no convento
Cintila a medo a lâmpada da virgem,
Que pálidas vestais no altar acendem!
Tudo acorda, meu Deus, nestas campinas!
Os cantos do Senhor erguem-se em nuvens,
Como o perfume que evapora o leito
Do lírio virginal!
Acorda, ó meu amigo: quando brilha
Em toda a natureza tanto encanto,
Tanta magia pelo céu flutua
E chovem sobre os vales harmonias,
É descrer do Senhor dormir no tédio,
É renegar das santas maravilhas
O ardente coração não expandir-se
E a alma não jubilar dentro do peito!
Lá onde mais suave entre os coqueiros,
O vento da manhã nas casuarinas
Cicia mais ardente suspirando,
Como de noite no pinhal sombrio
Aéreo canto de não vista sombra,
Que enche o ar de tristeza e amor transpira…
Lá onde o rio molemente chora
Nas campinas em flor e rola triste…
Alveja, à sombra, habitação ditosa,
Coroa os frisos da janela verde
A trepadeira em flor do jasmineiro
E pelo muro se avermelha a rosa.
Ali quando a manhã acorda a bela,
A bela, que eu sonhei nos meus amores…
Ao primeiro calor do sol d’aurora
Entorna-se da flor o doce aroma,
Inda mais doce em matutino orvalho,
Nas tranças negras da donzela pálida,
Mais bela que o diamante se aveluda,
Camélia fresca, inda em botão, tingida
De neve e de coral… no seio dela
Não reluz o colar… em negro fio
A cruz da infância melhor guarda o seio,
Que o amor virginal beija tremendo
E os ais do coração melhor perfuma…
Vem comigo, mancebo: aqui sentemo-nos…
Ela dorme: a janela inda cerrada
Se enche de rosas e jasmins, à noite…
E as flores virgens com o aberto seio
Um beijo da donzela ainda imploram.
Mais doce o canto foge de mistura
Co’as doces notas do violão divino!
Anjo da vida te verteu nos lábios
O mel dos serafins que a voz serena,
Que a transborda de encanto e de harmonia
E faz no eco propulsar meu peito!
Suspire o violão: nos seus lamentos
Murmura essa canção dos meus amores,
Que este peito sangrento lhe votara,
Quando a seus pés, acesa a fantasia,
Em doce engano derramei minh’alma!
Quando a brisa seus ais melhor afina,
Quando a frauta no mar branda suspira,
Com mais encanto as folhas do salgueiro
Debruçam-se nas águas solitárias
E deixam, gota a gota, o argênteo orvalho
Como prantos nas folhas deslizar-se.
Quando a voz do cantor perder-se, à noite,
Na margem da torrente, ou nas campinas,
Ou no umbroso jardim que flores cobrem…
Mais doce a noite pelo céu vagueia,
Melhor florescem as noturnas flores…
E o seio da mulher, que a noite embala,
Pulsa quente e febril com mais ternura!
Se o anjo de meus tímidos amores
Pudesse ouvir-te os cândidos suspiros,
Que a minha dor de amante lhe revelam…
Se ela acordasse, nos cabelos soltos
Inda o semblante sonolento e pálido
E o seio seminu e os ombros níveos
E as trêmulas mãos cobrindo o seio…
Se esta janela num instante abrisse
A fada da ventura, embora apenas
Um instante… sequer… Meus pobres sonhos,
Como saudosos vos murchais sedentos!
Flores do mar que um triste vagabundo
Arrancou de seu leito umedecido
E grosseiro apertou nas mãos ardentes,
Eu morro de saudade! e só me nutre
Inda nas tristes, desbotadas veias
O sangue do passado e da esperança!
Namoro a Cavalo
Eu moro em Catumbi: mas a desgraça,
Que rege minha vida maldada,
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.
Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
A minha namorada na janela…
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado…
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito… mas furtado.
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento…
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a comédia — em casamento…
Ontem tinha chovido… Que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando… uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama…
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada…
Mas eis que no passar pelo sobrado,
Onde habita nas lojas minha bela,
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela…
O cavalo ignorante de namoro,
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada…
Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode…
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!…
No Túmulo do meu Amigo
EPITÁFIO
Perdão, meu Deus, se a túnica da vida…
Insano profanei-a nos amores!
Se da c’roa dos sonhos perfumados
Eu próprio desfolhei as róseas flores!
No vaso impuro corrompeu-se o néctar,
A argila da existência desbotou-me…
O sol de tua gloria abriu-me as pálpebras,
Da nódoa das paixões purificou-me!
E quantos sonhos na ilusão da vida!
Quanta esperança no futuro ainda!
Tudo calou-se pela noite eterna…
E eu vago errante e só na treva infinda…
Alma em fogo, sedenta de infinito,
Num mundo de visões o vôo abrindo,
Como o vento do mar no céu noturno
Entre as nuvens de Deus passei dormindo!
A vida é noite! o sol tem véu de sangue…
Tateia a sombra a geração descrida!…
Acorda-te, mortal! é no sepulcro
Que a larva humana se desperta à vida!
Quando as harpas do peito a morte estala,
Um treno de pavor soluça e voa…
E a nota divinal que rompe as fibras
Nas dulias angélicas ecoa!
noite na Taverna
How now, Horatio? You tremble, and look
pale. Is not this something more
than phantasy? What think you of it?
Hamlet. Ato I. Shakespeare
I
UMA NOITE DO SÉCULO
Bebamos! nem um canto de saudade!
Morrem na embriaguez da vida as dores!
Que importam sonhos, ilusões desfeitas?
Fenecem como as flores!
José Bonifácio
— Silêncio, moços! acabai com essas cantilenas horríveis!
Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos?
Não sentis que o sono da embriaguez pesa negro naquelas pálpebras
onde a beleza sigilou os olhares da volúpia?
— Cala-te, Johann! enquanto as mulheres dormem e Arnold — o louro,
cambaleia e adormece murmurando as canções de orgia de Tieck,
que música mais bela que o alarido da saturnal? Quando as nuvens correm
negras no céu como um bando de corvos errantes, e a lua desmaia como
a luz de uma lâmpada sobre a alvura de uma beleza que dorme, que melhor
noite que a passada ao reflexo das taças?
— És um louco, Bertram! não é a lua que lá
vai macilenta: e o relâmpago que passa e ri de escárnio as agonias
do povo que morre… aos soluços que seguem as mortalhas do cólera!
— O cólera! e que importa? Não há por ora vida
bastante nas veias do homem? não borbulha a febre ainda as ondas do
vinho? não reluz em todo o seu fogo a lâmpada da vida na lanterna
do crânio?
— Vinho! vinho! Não vês que as taças estão
vazias bebemos o vácuo, como um sonâmbulo?
— É o Fichtismo na embriaguez! Espiritualista, bebe a imaterialidade
da embriaguez!
— Oh! vazio! meu copo esta vazio! Olá taverneira, não
vês que as garrafas estão esgotadas? Não sabes, desgraçada,
que os lábios da garrafa são como os da mulher: só valem
beijos enquanto o fogo do vinho ou o fogo do amor os borrifa de lava?
— O vinho acabou-se nos copos, Bertram, mas o fumo ondula ainda nos
cachimbos! Após os vapores do vinho os vapores da fumaça! Senhores,
em nome de todas as nossas reminiscências, de todos os nossos sonhos
que mentiram, de todas as nossas esperanças que desbotaram, uma última
saúde! A taverneira ai nos trouxe mais vinho: uma saúde! O fumo
e a imagem do idealismo, e o transunto de tudo quanto ha mais vaporoso naquele
espiritualismo que nos fala da imortalidade da alma! e pois, ao fumo das Antilhas,
a imortalidade da alma!
— Bravo! bravo!
Um urrah! tríplice respondeu ao moço meio ébrio.
Um conviva se ergueu entre a vozeria: contrastavam-lhe com as faces de moço
as rugas da fronte e a rouxidão dos lábios convulsos. Por entre
os cabelos prateava-se-lhe o reflexo das luzes do festim. Falou:
— Calai-vos, malditos! a imortalidade da alma!? pobres doidos! e porque
a alma é bela, por que não concebeis que esse ideal posse tornar-se
em lodo e podridão, como as faces belas da virgem morta, não
podeis crer que ele morra? Doidos! nunca velada levastes porventura uma noite
a cabeceira de um cadáver? E então não duvidastes que
ele não era morto, que aquele peito e aquela fronte iam palpitar de
novo, aquelas pálpebras iam abrir-se, que era apenas o ópio
do sono que emudecia aquele homem? Imortalidade da alma! e por que também
não sonhar a das flores, a das brisas, a dos perfumes? Oh! não
mil vezes! a alma não é como a lua, sempre moça, nua
e bela em sue virgindade eterna! a vida não e mais que a reunião
ao acaso das moléculas atraídas: o que era um corpo de mulher
vai porventura transformar-se num cipreste ou numa nuvem de miasmas; o que
era um corpo do verme vai alvejar-se no cálice da flor ou na fronte
da criança mais loira e bela. Como Schiller o disse, o átomo
da inteligência de Platão foi talvez para o coração
de um ser impuro. Por isso eu vo-lo direi: se entendeis a imortalidade pela
metempsicose, bem! talvez eu a creia um pouco; pelo platonismo, não!
— Solfieri! és um insensato! o materialismo é árido
como o deserto, é escuro como um túmulo! A nós frontes
queimadas pelo mormaço do sol da vida, a nós sobre cuja cabeça
a velhice regelou os cabelos, essas crenças frias? A nós os
sonhos do espiritualismo.
— Archibald! deveras, que é um sonho tudo isso! No outro tempo
o sonho da minha cabeceira era o espírito puro ajoelhado no seu manto
argênteo, num oceano de aromas e luzes! Ilusões! a realidade
é a febre do libertino, a taça na mão, a lascívia
nos lábios, e a mulher seminua, trêmula e palpitante sobre os
joelhos.
— Blasfêmia! e não crês em mais nada? teu ceticismo
derribou todas as estátuas do teu templo, mesmo a de Deus?
— Deus! crer em Deus!?… sim! como o grito íntimo o revela
nas horas frias do medo, nas horas em que se tirita de susto e que a morte
parece roçar úmida por nós! Na jangada do náufrago,
no cadafalso, no deserto, sempre banhado do suor frio do terror e que vem
a crença em Deus! Crer nele como a utopia do bem absoluto, o sol da
luz e do amor, muito bem! Mas, se entendeis por ele os ídolos que os
homens ergueram banhados de sangue e o fanatismo beija em sua inanimação
de mármore de há cinco mil anos… não creio nele!
— E os livros santos?
— Miséria! quando me vierdes falar em poesia eu vos direi: aí
há folhas inspiradas pela natureza ardente daquela terra como nem Homero
as sonhou, como a humanidade inteira ajoelhada sobre os túmulos do
passado nunca mais lembrará! Mas, quando me falarem em verdades religiosas,
em visões santas, nos desvarios daquele povo estúpido, eu vos
direi: miséria! miséria! três vezes miséria! Tudo
aquilo é falso: mentiram como as miragens do deserto!
— Estas ébrio, Johann! O ateísmo é a insânia
como o idealismo místico de Schelling, o panteísmo de Spinoza
— o judeu, e o esterismo crente de Malebranche nos seus sonhos da visão
em Deus. A verdadeira filosofia e o epicurismo. Hume bem o disse: o fim do
homem é o prazer. Daí vede que é o elemento sensível
quem domina. E pois ergamo-nos, nos que amanhecemos nas noites desbotadas
de estudo insano, e vimos que a ciência é falsa e esquiva, que
ela mente e embriaga como um beijo de mulher.
— Bem! muito bem! é um toast de respeito!
— Quero que todos se levantem, e com a cabeça descoberta digam-no:
Ao Deus Pã da natureza, aquele que a antigüidade chamou Baco o
filho das coxas de um deus e do amor de uma mulher, e que nos chamamos melhor
pelo seu nome — o vinho!…
— Ao vinho! ao vinho!
Os copos caíram vazios na mesa.
— Agora ouvi-me, senhores! entre uma saúde e uma baforada de
fumaça, quando as cabeças queimam e os cotovelos se estendem
na toalha molhada de vinho, como os braços do carniceiro no cepo gotejante,
o que nos cabe é uma historia sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos
como Hoffmann os delirava ao clarão dourado do Johannisberg!
— Uma história medonha, não, Archibald? falou um moço
pálido que a esse reclamo erguera a cabeça amarelenta. Pois
bem, dir-vos-ei uma historia. Mas quanto a essa, podeis tremer a gosto, podeis
suar a frio da fronte grossas bagas de terror. Não é um conto,
é uma lembrança do passado.
— Solfieri! Solfieri! aí vens com teus sonhos!
— Conta!
Solfieri falou: os mais fizeram silêncio.
II
SOLFIERI
…Yet one kiss on your pale clay
And those lips once so warm — my heart! my heart!
Cain. Byron
— Sabei-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição:
na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia, no leito da vendida
se pendura o Crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo
que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo
lascivo à embriaguez da crença!
— Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no verão
pôr aquele céu morno, o fresco das águas se exalava como
um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela
ponte de… As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas
se fazias ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma
sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma
branca. — A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida
à lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída,
rolavam fios de lágrimas.
Eu me encostei a aresta de um palácio. A visão desapareceu
no escuro da janela… e daí um canto se derramava. Não era
só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi,
um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento a noite
nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte.
Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se
havia alguém nas ruas. Não viu a ninguém: saiu. Eu segui-a.
A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu, e a chuva caía
as gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces caírem-me grossas lágrimas
de água, como sobre um túmulo prantos de órfão.
Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos
num campo.
Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal.
Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da
noite.
Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós
no cemitério. Contudo a criatura pálida não fora uma
ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto
a uma cruz.
O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre.
No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam
aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo…
Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no
sono da saciedade me vinha aquela visão…
Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa
Bárbara. Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida
com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos,
gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não
sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça
me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa:
nos lábios daquela criatura eu bebera até a última gota
o vinho do deleite…
Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus
raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios
batiam num caixão entreaberto. Abri-o: era o de uma moça. Aquele
branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida
e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados… Era uma defunta!
… e aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida. .
— Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro
por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços
para fora do caixão. Pesava como chumbo…
Sabeis a historia de Maria Stuart degolada e o algoz, "do cadáver
sem cabeça e o homem sem coração" como a conta Brantôme?
— Foi uma idéia singular a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe
mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário,
despi-lhe o véu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era mesmo
uma estátua: tão branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe
aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo
foi fervoroso — cevei em perdição aquela vigília.
A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu
peito, à febre de meus lábios, à convulsão de
meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito abriu
os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa,
apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços
azulados… Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele
abraço havia contudo alguma coisa de horrível. O leito de lájea
onde eu passara uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a custo soltar-me
daquele aperto do peito dela… Nesse instante ela acordou…
Nunca ouvistes falar da catalepsia? É um pesadelo horrível
aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que
sentem-se os membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas alheias
sem poder revelar a vida!
A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei-me na
capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário como uma criança.
Ao aproximar-me da porta topei num corpo; abaixei-me, olhei: era algum coveiro
do cemitério da igreja que aí dormira de ébrio, esquecido
de fechar a porta .
Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha.
— Que levas aí?
A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrão.
— É minha mulher que vai desmaiada…
— Uma mulher!… Mas essa roupa branca e longa? Serás acaso
roubador de cadáveres?
Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.
— É uma defunta…
Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. — Era a
vida ainda.
— Vede, disse eu.
O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram
pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um beijo… o punhal já
estava nu em minhas mãos frias…
— Boa noite, moço: podes seguir, disse ele.
Caminhei. — Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo; e eu sentia
que a moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem,
corri com mais esforço.
Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca
foi um grito de medo…
Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos meus companheiros
que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse.
Fechei a moça no meu quarto, e abri.
Meia hora depois eu os deixava na sala bebendo ainda. A turvação
da embriaguez fez que não notassem minha ausência.
Quando entrei no quarto da moça vi-a erguida. Ria de um rir convulso
como a insânia, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor
o ouvi-la.
Dois dias e duas noites levou ela de febre assim… Não houve como
sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas
noites e dois dias de delírio.
A noite saí; fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente
em cera, e paguei-lhe uma estátua dessa virgem.
Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto,
e com as mãos cavei aí um túmulo. Tomei-a então
pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito muda e fria,
beijei-a e cobri-a adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito.
Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele.
Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam.
Um dia o estatuário me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo…
— Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que
entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu
te respondi que era uma virgem que dormia?
— E quem era essa mulher, Solfieri?
— Quem era? seu nome?
— Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho lhe queima
assaz os lábios? quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia
e que sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele mister por escrever-lho
na lousa?
Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa quando um
dos convivas tomou-o pelo braço.
— Solfieri, não é um conto isso tudo?
— Pelo inferno que não! por meu pai que era conde e bandido,
por minha mãe que era a bela Messalina das ruas, pela perdição
que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus
pés na sua cova de terra, eu vô-lo juro — guardei-lhe como
amuleto a capela de defunta. Hei-la!
Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.
—Vede-la murcha e seca como o crânio dela!
III
BERTRAM
But why should I for others groan,
When none will sigh for me!
Childe Harold, I. Byron
Um outro conviva se levantou.
Era uma cabeça ruiva, uma tez branca, uma daquelas criaturas fleumáticas
que não hesitarão ao tropeçar num cadáver para
ter mão de um fim.
Esvaziou o copo cheio de vinho, e com a barba nas mãos alvas, com
os olhos de verde-mar fixos, falou:
— Sabeis, uma mulher levou-me a perdição. Foi ela quem
me queimou a fronte nas orgias, e desbotou-me os lábios no ardor dos
vinhos e na moleza de seus beijos: quem me fez devassar pálido as longas
noites de insônia nas mesas do jogo, e na doidice dos abraços
convulsos com que ela me apertava o seio! Foi ela, vós o sabeis, quem
fez-me num dia ter três duelos com meus três melhores amigos,
abrir três túmulos àqueles que mais me amavam na vida
— e depois, depois sentir-me só e abandonado no mundo, como a
infanticida que matou o seu filho, ou aquele Mouro infeliz junto a sua Desdêmona
pálida!
Pois bem, vou contar-vos uma história que começa pela lembrança
desta mulher…
Havia em Cadiz uma donzela… linda daquele moreno das Andaluzas que não
há vê-las sob as franjas da mantilha acetinada, com as plantas
mimosas, as mãos de alabastro, os olhos que brilham e os lábios
de rosa d’Alexandria sem delirar sonhos delas por longas noites ardentes!
Andaluzas! sois muito belas! se o vinho, se as noites de vossa terra, o luar
de vossas noites, vossas flores, vossos perfumes são doces, são
puros, são embriagadores, vos ainda o sois mais! Oh! por esse eivar
a eito de gozos de uma existência fogosa nunca pude esquecer-vos!
Senhores! aí temos vinho de Espanha, enchei os copos: — à
saúde das Espanholas!…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
Amei muito essa moça, chamava-se Ângela. Quando eu estava decidido
a casar-me com ela, quando após das longas noites perdidas ao relento
a espreitar-lhe da sombra um aceno, um adeus, uma flor, quando após
tanto desejo e tanta esperança eu sorvi-lhe o primeiro beijo, tive
de partir da Espanha para Dinamarca onde me chamava meu pai.
Foi uma noite de soluços e lágrimas, de choros e de esperanças,
de beijos e promessas, de amor, de voluptuosidade no presente e de sonhos
no futuro… Parti. Dois anos depois foi que voltei. Quando entrei na casa
de meu pai, ele estava moribundo; ajoelhou-se no seu leito e agradeceu a Deus
ainda ver-me, pôs as mãos na minha cabeça, banhou-me a
fronte de lágrimas — eram as últimas — depois deixou-se
cair, pôs as mãos no peito, e com os olhos em mim murmurou: Deus!
A voz sufocou-se-lhe na garganta: todos choravam.
Eu também chorava, mas era de saudades de Ângela…
Logo que pude reduzir minha fortuna a dinheiro pus-la no banco de Hamburgo,
e parti para a Espanha.
Quando voltei. Ângela estava casada e tinha um filho…
Contudo meu amor não morreu! Nem o dela!
Muito ardentes foram aquelas horas de amor e de lágrimas, de saudades
e beijos, de sonhos e maldições pare nos esqueceremos um do
outro.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Uma noite, dois vultos alvejavam nas sombras de um jardim, as folhas tremiam
ao ondear de um vestido, as brisas soluçavam aos soluços de
dois amantes, e o perfume das violetas que eles pisavam, das rosas e madressilvas
que abriam em torno deles era ainda mais doce perdido no perfume dos cabelos
soltos de uma mulher…
Essa noite — foi uma loucura! foram poucas horas de sonhos de fogo!
e quão breve passaram! Depois a essa noite seguiu-se outra, outra…
e muitas noites as folhas sussurraram ao roçar de um passo misterioso,
e o vento se embriagou de deleite nas nossas frontes pálidas…
Mas um dia o marido soube tudo: quis representar de Otelo com ela. Doido!…
Era alta noite: eu esperava ver passar nas cortinas brancas a sombra do anjo.
Quando passei, uma voz chamou-me. Entrei. — Ângela com os pés
nus, o vestido solto, o cabelo desgrenhado e os olhos ardentes tomou-me pela
mão… Senti-lhe a mão úmida…. Era escura a escada
que subimos: passei a minha mão molhada pela dela por meus lábios
. Tinha saibo de sangue.
— Sangue, Ângela! De quem é esse sangue?
A Espanhola sacudiu seus longos cabelos negros e riu-se.
Entramos numa sala. Ela foi buscar uma luz, e deixou-me no escuro.
Procurei, tateando, um lugar para assentar-me: toquei numa mesa. Mas ao passar-lhe
a mão senti-a banhada de umidade: além senti uma cabeça
fria como neve e molhada de um líquido espesso e meio coagulado. Era
sangue…
Quando Ângela veio com a luz, eu vi… Era horrível!… O marido
estava degolado.
Era uma estátua de gesso lavada em sangue… Sobre o peito do assassinado
estava uma criança de bruços. Ela ergueu-a pelos cabelos…
Estava morta também: o sangue que corria das veias rotas de seu peito
se misturava com o do pai!
— Vês, Bertram, esse era o meu presente: agora será, negro
embora, um sonho do meu passado. Sou tua e tua só. Foi por ti que tive
força bastante para tanto crime… Vem, tudo esta pronto, fujamos.
A nós o futuro!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Foi uma vida insana a minha com aquela mulher! Era um viajar sem fim. Ângela
vestia-se de homem: era um formoso mancebo assim. No demais ela era como todos
os moços libertinos que nas mesas da orgia batiam com a taça
na taça dela. Bebia já como uma inglesa, fumava como uma Sultana,
montava a cavalo como um Árabe, e atirava as armas como um Espanhol.
Quando o vapor dos licores me ardia a fronte ela ma repousava em seus joelhos,
tomava um bandolim e me cantava as modas de sua terra…
Nossos dias eram lançados ao sono como pérolas ao amor: nossas
noites sim eram belas!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . .
Um dia ela partiu: partiu, mas deixou-me os lábios ainda queimados
dos seus, e o coração cheio de gérmen de vícios
que ela aí lançara. Partiu. Mas sua lembrança ficou como
o fantasma de um mau anjo perto de meu leito.
Quis esquecê-la no jogo, nas bebidas, na paixão dos duelos.
Tornei-me um ladrão nas cartas, um homem perdido por mulheres e orgias,
um espadachim terrível e sem coração.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Uma noite eu caíra ébrio as portas de um palácio: os
cavalos de uma carruagem pisaram-me ao passar e partiram-me a cabeça
de encontro à lájea. Acudiram-me desse palácio. Depois
amaram-me: a família era um nobre velho viúvo e uma beleza peregrina
de dezoito anos. Não era amor de certo o que eu sentia por ela… Não
sei o que foi… Era uma fatalidade infernal. A pobre inocente amou-me; e
eu, recebido como o hóspede de Deus sob o teto do velho fidalgo, desonrei-lhe
a filha, roubei-a, fugi com ela… E o velho teve de chorar suas cãs
manchadas na desonra de sua filha, sem poder vingar-se.
Depois enjoei-me dessa mulher. A saciedade é um tédio terrível.
Uma noite que eu jogava com Siegfried — o pirata, depois de perder as
últimas jóias dela, vendi-a.
A moça envenenou Siegfried logo na primeira noite, e afogou-se…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . .
Eis aí quem eu sou: se quisesse contar-vos longas histórias
do meu viver, vossas vigílias correriam breves demais…
Um dia — era na Itália — saciado de vinho e mulheres eu
ia suicidar-me A noite era escura e eu chegara só na praia. Subi num
rochedo: daí minha última voz foi uma blasfêmia, meu último
adeus uma maldição, meu último… digo mal, porque senti-me
erguido nas águas pelo cabelo.
Então na vertigem do afogo o anelo da vida acordou-se em mim. A princípio
tinha sido uma cegueira, uma nuvem ante meus olhos, como aos daquele que labuta
na trevas. A sede da vida veio ardente: apertei aquele que me socorria: fiz
tanto, em uma palavra, que, sem querê-lo, matei-o. Cansado do esforço
desmaiei…
Quando recobrei os sentidos estava num escaler de marinheiros que remavam
mar em fora. Aí soube eu que meu salvador tinha morrido afogado por
minha culpa. Era uma sina, e negra; e por isso ri-me; ri-me, enquanto os filhos
do mar choravam.
Chegamos a uma corveta que estava erguendo âncora.
O comandante era um belo homem. Pelas faces vermelhas caiam-lhe os crespos
cabelos loiros onde a velhice alvejava algumas cãs.
Ele perguntou-me:
— Quem és?
— Um desgraçado que não pode viver na terra, e não
deixaram morrer no mar.
— Queres pois vir a bordo?
— A menos que não prefirais atirar-me ao mar.
— Não o faria: tens uma bela figura. Levar-te-ei comigo. Servirás…
— Servir!?…— e ri-me: depois respondi-lhe frio: deixai que
me atire ao mar…
— Não queres servir? queres então viajar de braços
cruzados?
— Não: quando for a hora da manobra dormirei: mas quando vier
a hora do combate ninguém será mais valente do que eu…
— Muito bem: gosto de ti, disse o velho lobo do mar. Agora que estamos
conhecidos Dize-me teu nome e tua história.
— Meu nome é Bertram. Minha história? escutai: o passado
é um túmulo! Perguntai ao sepulcro a história do cadáver
cujo guarda o segredo… e ele dir-vos-a apenas que tem no seio um corpo que
se corrompe! lereis sobre a lousa um nome — e não mais!
O comandante franziu as sobrancelhas, e passou adiante para comandar a manobra.
O comandante trazia a bordo uma bela moça. Criatura pálida,
parecera a um poeta o anjo da esperança adormecendo esquecido entre
as ondas. Os marinheiros a respeitavam: quando pelas noites de lua ela repousava
o braço na amurada e a face na mão aqueles que passavam junto
dela se descobriam respeitosos. Nunca ninguém lhe vira olhares de orgulho,
nem lhe ouvira palavras de cólera: era uma santa.
Era a mulher do comandante.
Entre aquele homem brutal e valente, rei bravio ao alto mar, esposado, como
os Doges de Veneza ao Adriático, à sua garrida corveta —
entre aquele homem pois e aquela madona havia um amor de homem como palpita
o peito que longas noites abriu-se às luas do oceano solitário,
que adormeceu pensando nela ao frio das vagas e ao calor dos trópicos,
que suspirou nas horas de quarto, alta noite na amurada do navio, lembrando-a
nos nevoeiros da cerração, nas nuvens da tarde… Pobres
doidos! parece que esses homens amam muito! A bordo ouvi a muitos marinheiros
seus amores singelos: eram moças loiras da Bretanha e da Normandia,
ou alguma espanhola de cabelos negros vista ao passar sentada na praia com
sua cesta de flores, ou adormecida entre os laranjais cheirosos, ou dançando
o fandango lascivo nos bailes ao relento! Houve-as… junto a mim, muitas
faces ásperas e tostadas ao sol do mar que se banharam de lágrimas…
Voltemos a história. — O comandante a estremecia como um louco:
— um pouco menos que a sua honra, um pouco mais que sua corveta.
E ela!?… ela no meio de sua melancolia, de sua tristeza e sua palidez,
ela sorria as vezes quando cismava sozinha, mas era um sorrir tão triste
que doía. Coitada!
Um poeta a amaria de joelhos. Uma noite — de certo eu estava ébrio
— fiz-lhe uns versos. Na lânguida poesia, eu derramara uma essência
preciosa e límpida que ainda não se poluíra no mundo…
Bofé que chorei quando fiz esses versos. Um dia, meses depois, li-os,
ri-me deles e de mim; e os atirei ao mar… Era a última folha da minha
virgindade que lançava ao esquecimento…
Agora, enchei os copos: o que vou dizer-vos é negro, e uma lembrança
horrível, como os pesadelos no Oceano.
Com suas lágrimas, com seus sorrisos, com seus olhos úmidos
e os seios intumescidos de suspiros, aquela mulher me enlouquecia as noites.
Era como uma vida nova que nascia cheia de desejos, quando eu cria que todos
eles eram mortos como crianças afogadas em sangue ao nascer.
Amei-a: por que dizer-vos mais? Ela amou-me também. Uma vez a luz
ia límpida e serena sobre as águas, as nuvens eram brancas como
um véu recamado de pérolas da noite, o vento cantava nas cordas.
Bebi-lhe na pureza desse luar, ao fresco dessa noite, mil beijos nas faces
molhadas de lágrimas, como se bebe o orvalho de um lírio cheio.
Aquele seio palpitante, o contorno acetinado, apertei-os sobre mim…
O comandante dormia
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Uma vez ao madrugar o gajeiro assinalou um navio. Meia hora depois desconfiou
que era um pirata…
Chegávamos cada vez mais perto. Um tiro de pólvora seca da
corveta reclamou a bandeira. Não responderam. Deu-se segundo: nada.
Então um tiro de bala foi cair nas águas do barco desconhecido
como uma luva de duelo. O barco que até então tinha seguido
rumo oposto ao nosso e vinha proa contra nossa proa virou de bordo e apresentou-nos
seu flanco enfumaçado: um relâmpago correu nas baterias do pirata,
um estrondo seguiu-se… e uma nuvem de balas veio morrer perto da corveta.
Ela não dormia, virou de bordo: os navios ficaram lado a lado. À
descarga do navio de guerra o pirata estremeceu como se quisesse ir a pique.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . .
O pirata fugia: a corveta deu-lhe caça: as descargas trocaram-se então
mais fortes de ambos os lados.
Enfim o pirata pareceu ceder. Atracaram-se os dois navios como para uma luta.
A corveta vomitou sua gente a bordo do inimigo. O combate tornou-se sangrento
— era um matadouro!… o chão do navio escorregava de tanto sangue,
o mar ansiava cheio de escumas ao boiar de tantos cadáveres. Nesta
ocasião sentiu-se uma fumaça que subia do porão. O pirata
dera fogo às pólvoras… Apenas a corveta por uma manobra atrevida
pôde afastar-se do perigo. Mas a explosão fez-lhe grandes estragos.
Alguns minutos depois o barco do pirata voou pelos ares. Era uma cena pavorosa
ver entre aquela fogueira de chamas, ao estrondo da pólvora, ao reverberar
deslumbrador do fogo nas águas, os homens arrojados ao ar irem cair
no oceano.
Uns a meio queimados se atiravam a água, outros com os membros esfolados
e a pele a despegar-se-lhes do corpo nadavam ainda entre dores horríveis
e morriam torcendo-se em maldições.
A uma légua da cena do combate havia uma praia bravia, cortada de
rochedos Aí se salvaram os piratas que puderam fugir.
E nesse tempo enquanto o comandante se batia como um bravo, eu o desonrava
como um covarde.
Não sei como se passou o tempo todo que decorreu depois. Foi uma visão
de gozos malditos!… eram os amores de Satã e de Eloá, da morte
e da vida, no leito do mar.
Quando acordei um dia desse sonho, o navio tinha encalhado num banco de areia:
o ranger da quilha a morder na areia gelou a todos… Meu despertar foi a
um grito de agonia…
— Olá, mulher, taverneira maldita, não vês que
o vinho acabou-se?
Depois foi um quadro horrível! Éramos nós numa jangada
no meio do mar. Vós que lestes o Don Juan, que fizestes talvez daquele
veneno a vossa Bíblia, que dormistes as noites da saciedade como eu,
com a face sobre ele e com os olhos ainda fitos nele, vistes tanta vez amanhecer,
sabeis quanto se côa de horror ante aqueles homens atirados ao mar,
num mar sem horizonte, ao balanço das águas, que parecem sufocar
seu escárnio na mudez fria de uma fatalidade!
Uma noite, a tempestade veio… apenas houve tempo de amarrar nossas munições…
Fora mister ver o Oceano bramindo no escuro como um bando de leões
com fome, pare saber o que é a borrasca!… fora mister vê-la
de uma jangada à luz da tempestade, às blasfêmias dos
que não crêem e maldizem, às lágrimas dos que esperam
e desesperam, aos soluços dos que tremem e tiritam de susto como aquele
que bate a porta do nada… E eu, eu ria: era como o gênio do ceticismo
naquele deserto. Cada vaga que varria nossas tábuas descosidas arrastava
um homem, mas cada vaga que me rugia aos pés parecia respeitar-me.
Era um Oceano como aquele de fogo, onde caíram os anjos perdidos de
Milton — o cego: quando eles passavam cortando-as a nado, as águas
do pântano de lava se apertavam: a morte era para os filhos de Deus,
não pare o bastardo do mal!
Toda aquela noite, passei-a com a mulher do comandante nos braços.
Era um himeneu terrível aquele que se consumava entre um descrido e
uma mulher pálida que enlouquecia: o tálamo era o oceano, a
escuma das vagas era a seda que nos a alcatifava o leito. Em meio daquele
concerto de uivos que nos ia ao pé, os gemidos nos sufocavam e nós
rolávamos abraçados, atados a um cabo da jangada, por sobre
as tábuas…
Quando a aurora veio, restávamos cinco: eu, a mulher do comandante,
ele e dois marinheiros…
Alguns dias comemos umas bolachas repassadas da salsugem da água do
mar. Depois tudo o que houve de mais horrível se passou…
— Por que empalideces, Solfieri! a vida e assim. Tu o sabes como eu
o sei. O que é o homem? é a escuma que ferve hoje na torrente
e amanha desmaia, alguma coisa de louco e movediço como a vaga, de
fatal como o sepulcro! O que é a existência? Na mocidade é
o caleidoscópio das ilusões, vive-se então da seiva do
futuro. Depois envelhecemos: quando chegamos aos trinta anos e o suor das
agonias nos grisalhou os cabelos antes do tempo e murcharam, como nossas faces,
as nossas esperanças, oscilamos entre o passado visionário e
este amanhã do velho, gelado e ermo despido como um cadáver
que se banha antes de dar a sepultura! Miséria! loucura!
— Muito bem! miséria e loucura! interrompeu uma voz.
O homem que falara era um velho. A fronte se lhe descalvara e longas e fundas
rugas a sulcavam: eram ondas que o vento da velhice lhe cavava no mar da vida…
Sob espessas sobrancelhas grisalhas lampejavam-lhe os olhos pardos e um espesso
bigode lhe cobria parte dos lábios. Trazia um gibão negro e
roto, e um manto desbotado, da mesma cor, lhe caia dos ombros.
— Quem és, velho? perguntou o narrador.
— Passava lá fora, a chuva caia a cântaros, a tempestade
era medonha, entrei. Boa-noite, senhores! se houver mais uma taça na
vossa mesa, enchei-a ate as bordas e beberei convosco.
— Quem és?
—Quem eu sou? na verdade fora difícil dizê-lo: corri muito
mundo, a cada instante mudando de nome e de vida. Fui poeta e como poeta cantei.
Fui soldado e banhei minha fronte juvenil nos últimos raios de sol
da águia de Waterloo. Apertei ao fogo da batalha a mão do homem
do século. Bebi numa taverna com Bocage — o português,
ajoelhei-me na Itália sobre o túmulo de Dante e fui a Grécia
para sonhar como Byron naquele túmulo das glórias do passado.
— Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte anos, um libertino aos trinta,
sou um vagabundo sem pátria e sem crenças aos quarenta. Sentei-me
a sombra de todos os sóis, beijei lábios de mulheres de todos
os países; e de todo esse peregrinar só trouxe duas lembranças
— um amor de mulher que morreu nos meus braços na primeira noite
de embriaguez e de febre — e uma agonia de poeta… Dela, tenho uma
rosa murcha e a fita que prendia seus cabelos. Dele olhai…
O velho tirou do bolso um embrulho: era um lençol vermelho o invólucro:
desataram-no: dentro estava uma caveira.
— Uma caveira! gritaram em torno: és um profanador de sepulturas?
— Olha, moço, se entendes a ciência de Gall e Spurzheim,
dize-me pela protuberância dessa fronte, e pelas bossas dessa cabeça
quem podia ser esse homem?
— Talvez um poeta… talvez um louco.
— Muito bem! adivinhaste. Só erraste não dizendo que
talvez ambas as coisas a um tempo. Sêneca o disse: — a poesia
é a insânia. Talvez o gênio seja uma alucinação
e o entusiasmo precise da embriaguez para escrever o hino sanguinário
e fervoroso de Rouget de l’Isle, ou para, na criação do painel
medonho do Cristo morto de Holbein, estudar a corrupção no cadáver.
Na vida misteriosa de Dante, nas orgias de Marlowe, no peregrinar de Byron
havia uma sombra da doença de Hamlet: quem sabe?
— Mas a que vem tudo isso?
— Não bradastes — miséria e loucura!… vós,
almas onde talvez borbulhava o sopro de Deus, cérebros que a luz divindade
gênio esclarecia, e que o vinho enchia de vapores e a saciedade de escárnios?
Enchei as taças ate a borda! enchei-as e bebei; bebei a lembrança
do cérebro que ardeu nesse crânio, da alma que aí habitou,
do poeta louco — Werner! e eu bradarei ainda uma vez: — miséria
e loucura!
O velho esvaziou o copo, embuçou-se e saiu. Bertram continuou a sua
história
— Eu vos dizia que ia passar-se uma coisa horrível: não
havia mais alimentos, e no homem despertava a voz do instinto, das entranhas
que tinham fome, que pediam seu cevo como o cão do matadouro, fosse
embora sangue.
A fome! a sede!… tudo quanto há de mais horrível!…
Na verdade, senhores, o homem é uma criatura perfeita? Estatuário
sublime, Deus esgotou no talhar desse mármore todo o seu esmero. Prometeu
divino, encheu-lhe o crânio protuberante da luz do gênio. Ergueu-o
pela mão, mostrou-lhe o mundo do alto da montanha, como Satã
quarenta séculos depois o fez a Cristo, e disse-lhe: Vê, tudo
isso e belo — vales e montes, águas do mar que espumam, folhas
das florestas que tremem e sussurram como as asas dos meus anjos — tudo
isso é teu. Fiz-te o mundo belo no véu purpúreo do crepúsculo,
dourei-to aos raios de minha face. Ei-lo rei da terra! banha a fronte olímpica
nessas brisas, nesse orvalho, na escuma dessas cataratas. Sonha como a noite,
canta como os anjos, dorme entre as flores! Olha! entre as folhas floridas
do vale dorme uma criatura branca como o véu das minhas virgens, loira
como o reflexo das minhas nuvens, harmoniosa como as aragens do céu
nos arvoredos da terra. É tua: acorda-a, ama-a e ela te amará;
no seio dela, nas ondas daquele cabelo, afoga-te como o sol entre vapores.
Rei no peito dela, rei na terra, vive de amor e crença, de poesia e
de beleza, levanta-te, vai, e serás feliz!
Tudo isso é belo, sim!… mas é a ironia mais amarga, a decepção
mais árida de todas as ironias e de todas as decepções.
Tudo isso se apaga diante de dois fatos muito prosaicos — a fome e a
sede.
O gênio, a águia altiva que se perde nas nuvens, que se aquenta
no eflúvio da luz mais ardente do sol — cair assim com as asas
torpes e verminosas no lodo das charnecas? Poeta! porque no meio do arroubo
mais sublime do espírito, uma voz sarcástica e mefistofélica
te brada: — meu Faust, ilusões… a realidade é a matéria!?…
Deus escreveu L n a ´g k h na fronte de sua criatura! — Don Juan!
porque choras a esse beijo morno de Haidea que desmaia-te nos braços?!…
a prostituta vender-tos-a amanhã mais queimadores!… Miséria!…
E dizer que tudo o que há de mais divino no homem, de mais santo e
perfumado na alma se infunde no lodo da realidade, se revolve no charco e
ache ainda uma convulsão infame pare dizer — sou feliz!. . .
Isso tudo, senhores, pare dizer-vos uma coisa muito simples… um fato velho
e batido, uma pratica do mar, uma lei do naufrágio — a antropofagia.
Dois dias depois de acabados os alimentos, restavam três pessoas: eu,
o comandante e ela. — Eram três figuras macilentas como o cadáver,
cujos peitos nus arquejavam como a agonia, cujos olhares fundos e sombrios
se injetavam de sangue como a loucura.
O uso do mar — não quero dizer a voz da natureza física,
o brado do egoísmo do homem —manda a morte de um para a vida
de todos. Tiramos a sorte… o comandante teve por lei morrer.
Então o instinto de vida se lhe despertou ainda. Por um dia mais,
de existência, mais um dia de fome e sede, de leito úmido e varrido
pelos ventos frios do norte, mais umas horas mortas de blasfêmia e de
agonia, de esperança e desespero, de orações e descrenças,
de febre e de ânsia, o homem ajoelhou-se, chorou, gemeu a meus pés…
— Olhai, dizia o miserável, esperemos até amanhã…
Deus terá compaixão de nos… Por vossa mãe, pelas entranhas
de vossa mãe! por Deus se ele existe! deixai, deixai-me ainda viver!
Oh! a esperança é pois como uma parasita que morde e despedaça
o tronco, mas quando ele cai, quando morre e apodrece, ainda o aperta em seus
convulsos braços! Esperar! quando o vento do mar açoita as ondas,
quando a escuma do oceano vos lava o corpo lívido e nu, quando o horizonte
é deserto e sem termo e as velas que. branqueiam ao longe parecem fugir!
Pobre louco!
Eu ri-me do velho. Tinha as entranhas em fogo. Morrer hoje, amanhã,
ou depois… tudo me era indiferente, mas hoje eu tinha fome, e ri-me porque
tinha fome.
O velho lembrou-me que me acolhera a seu bordo, por piedade de mim, lembrou-me
que me amava… e uma torrente de soluços e lágrimas afogava
o bravo que nunca empalidecera diante da morte.
Parece que a morte no oceano é terrível para os outros homens:
quando o sangue lhes salpica as faces, lhes ensopa as mãos, correm
a morte como um rio ao mar, como a cascavel ao fogo. Mas assim… no deserto
das águas… eles temem-na, tremem diante da caveira fria da morte!
Eu ri-me porque tinha fome.
Então o homem ergueu-se. A fúria levantou nele com a última
agonia. Cambaleava e um suor frio lhe corria no peito descarnado. Apertou-me
nos seus braços amarelentos, e lutamos ambos corpo a corpo, peito a
peito, pé por pé… por um dia de miséria!
A lua amarelada erguia sua face desbotada, como uma meretriz cansada de uma
noite de devassidão, o céu escuro parecia zombar desses dois
moribundos que lutavam por uma hora de agonia…
O valente do combate desfalecia… caiu: pus-lhe o pé na garganta,
sufoquei-o e expirou…
Não cubrais o rosto com as mãos — faríeis o mesmo…
Aquele cadáver foi nosso alimento dois dias…
Depois, as aves do mar já baixavam para partilhar minha presa; e às
minhas noites fastientas uma sombra vinha reclamar sua ração
de carne humana…
Lancei os restos ao mar…
Eu e a mulher do comandante passamos um dia, dois, sem comer nem beber…
Então ela propôs-me morrer comigo. — Eu disse-lhe que
sim. Esse dia foi a última agonia do amor que nos queimava: gastamo-lo
em convulsões para sentir ainda o mel fresco da voluptuosidade banhar-nos
os lábios… Era o gozo febril que podem ter duas criaturas em delírio
de morte. Quando soltei-me dos braços dela a fraqueza a fazia desvairar.
O delírio tornava-se mais longo, mais longo: debruçava-se nas
ondas e bebia a água salgada, e oferecia-ma nas mãos pálidas,
dizendo que era vinho. As gargalhadas frias vinham mais de entuviada…
Estava louca.
Não dormi, não podia dormir: uma modorra ardente me fervia
as pálpebras, o hálito de meu peito parecia fogo, meus lábios
secos e estalados apenas se orvalhavam de sangue.
Tinha febre no cérebro… e meu estômago tinha fome. Tinha fome
como a fera.
Apertei-a nos meus braços, oprimi-lhe nos beiços a minha boca
em fogo, apertei-a convulsivo, sufoquei-a. Ela era ainda tão bela!
Não sei que delírio estranho se apoderou de mim. Uma vertigem
me rodeava. O mar parecia rir de mim, e rodava em torno, escumante e esverdeado,
como um sorvedouro. As nuvens pairavam correndo e pareciam filtrar sangue
negro. O vento que me passava nos cabelos murmurava uma lembrança.
De repente senti-me só. Uma onda me arrebatara o cadáver. Eu
o vi boiar pálido como suas roupas brancas, seminu, com os cabelos
banhados de água; eu via-o erguer-se na escuma das vagas, desaparecer,
e boiar de novo; depois não o distingui mais: — era como a escuma
das vagas, como um lençol lançado nas águas…
Quantas horas, quantos dias passei naquela modorra nem o sei… Quando acordei
desse pesadelo de homem desperto, estava a bordo de um navio.
Era o brigue inglês Swallow, que me salvara…
Olá, taverneira, bastarda de Satã! não vês que
tenho sede, e as garrafas estão secas, secas como tua face como nossas
gargantas?
IV
GENNARO
Meurs ou tue…
Corneille
— Gennaro, dormes, ou embebes-te no sabor do último trago do
vinho, da última fumaça do teu cachimbo?
— Não: quando contavas tua história, lembrava-me uma
folha da vida, folha seca e avermelhada como as do outono e que o vento varreu.
— Uma história?
— Sim: e uma das minhas historias. Sabes, Bertram, eu sou pintor…
É uma lembrança triste essa que vou revelar, porque é
a história de um velho e de duas mulheres, belas como duas visões
de luz.
Godofredo Walsh era um desses velhos sublimes, em cujas cabeças as
cãs semelham o diadema prateado do gênio. Velho já, casara
em segundas núpcias com uma beleza de vinte anos. Godofredo era pintor:
diziam uns que este casamento fora um amor artístico por aquela beleza
romana, como que feita ao molde das belezas antigas; outros criam-no compaixão
pela pobre moca que vivia de servir de modelo. O fato e que ele a queria como
filha, como Laura, a filha única de seu primeiro casamento, Laura!…
corada como uma rosa e loira como um anjo.
Eu era nesse tempo moço: era aprendiz de pintura em casa de Godofredo.
Eu era lindo então; que trinta anos lá vão, que ainda
os cabelos e as faces me não haviam desbotado como nesses longos quarenta
e dois anos de vida! Eu era aquele tipo de mancebo ainda puro do ressumbrar
infantil, pensativo e melancólico como o Rafael se retratou no quadro
da galeria Barberini. Eu tinha quase a idade da mulher do mestre. Nauza tinha
vinte e eu tinha dezoito anos.
Amei-a; mas meu amor era puro como meus sonhos de dezoito anos. Nauza também
me amava: era um sentir tão puro! era uma emoção solitária
e perfumosa como as primaveras cheias de flores e de brisas que nos embalavam
aos céus da Itália.
Como eu o disse: o mestre tinha uma filha chamada Laura. Era uma moca pálida,
de cabelos castanhos e olhos azulados; sua tez era branca, e só às
vezes, quando o pejo a incendia, duas rosas lhe avermelhavam a face e se destacavam
no fundo de mármore. Laura parecia querer-me como a um irmão.
Seus risos, seus beijos de criança de quinze anos eram só para
mim. A noite, quando eu ia deitar-me, ao passar pelo corredor escuro com minha
lâmpada,, uma sombra me apagava a luz e um beijo me pousava nas faces,
nas trevas.
Muitas noites foi assim.
Uma manhã — eu dormia ainda — o mestre saíra e
Nauza fora a igreja, quando Laura entrou no meu quarto e fechou a porta: deitou-se
a meu lado. Acordei nos braços dela.
O fogo de meus dezoito anos, a primavera virginal de uma beleza, ainda inocente,
o seio seminu de uma donzela a bater sobre o meu, isso tudo… ao despertar
dos sonhos alvos da madrugada, me enlouqueceu…
Todas as manhãs Laura vinha a meu quarto…
Três meses passaram assim. Um dia entrou ela no meu quarto e disse-me:
— Gennaro, estou desonrada para sempre… A princípio eu quis-me
iludir, já não o posso, estou de esperanças…
Um raio que me caísse aos pés não me assustaria tanto.
— E preciso que cases comigo, que me peças a meu pai, ouves,
Gennaro?
Eu calei-me.
— Não me amas então?
Eu calei-me.
— Oh! Gennaro! Gennaro!
E caiu no meu ombro desfeita em soluços. Carreguei-a assim fria e
fora de si para seu quarto.
Nunca mais tornou a falar-me em casamento.
Que havia de eu fazer? contar tudo ao pai e pedi-la em casamento? Fora uma
loucura… Ele me mataria e a ela: ou pelo menos me expulsaria de sua casa…:
E Nauza? cada vez eu a amava mais. Era uma luta terrível essa que se
travava entre o dever e o amor, e entre o dever e o remorso.
Laura não me falara mais. Seu sorriso era frio: cada dia tornava-se
mais pálida, mas a gravidez não crescia, antes mais nenhum sinal
se lhe notava …
O velho levava as noites passeando no escuro. Já não pintava.
Vendo a filha que morria aos sons secretos de uma harmonia de morte, que empalidecia
cada vez mais, o misérrimo arrancava as cãs.
Eu contudo não esquecera Nauza, nem ela se esquecia de mim. Meu amor
era sempre o mesmo: eram sempre noites de esperança e de sede que me
banhavam de lágrimas o travesseiro. Só as vezes a sombra de
um remorso me passava, mas a imagem dela dissipava todas essas névoas
…
Uma noite… foi horrível… vieram chamar-me: Laura morria. Na febre
murmurava meu nome e palavras que ninguém podia reter, tão apressadas
e confusas lhe soavam. Entrei no quarto dela: a doente conheceu-me. Ergueu-se
branca, com a face úmida de um suor copioso, chamou-me. Sentei-me junto
do leito dela. Apertou minha mão nas suas mãos frias e murmurou
em meus ouvidos:
— Gennaro, eu te perdôo: eu te perdôo tudo… Eras um infame…
Morrerei… Fui uma louca… Morrerei… por tua causa… teu filho… o meu…
vou vê-lo ainda… mas no céu… Meu filho que matei… antes
de nascer…
Deu um grito, estendeu convulsivamente os braços como para repelir
uma idéia, passou a mão pelos lábios como para enxugar
as últimas gotas de uma bebida, estorceu-se no leito, lívida,
fria, banhada de suor gelado, e arquejou… Era o último suspiro.
Um ano todo se passou assim para mim. O velho parecia endoidecido. Todas
as noites fechava-se no quarto onde morrera Laura: levava aí a noite
toda em solidão. Dormia? ah que não! Longas horas eu o escutei
no silêncio arfar com ânsia, outras vezes afogar-se em soluços.
Depois tudo emudecia: o silêncio durava horas; o quarto era escuro;
e depois as passadas pesadas do mestre se ouviam pelo quarto, mas vacilantes
como de um bêbedo que cambaleia.
Uma noite eu disse a Nauza que a amava: ajoelhei-me junto dela, beijei-lhe
as mãos, reguei seu colo de lágrimas. Ela voltou a face: eu
cri que era desdém, ergui-me
—Então Nauza, tu não me amas, disse eu.
Ela permanecia com o rosto voltado.
— Adeus, pois; perdoai-me se vos ofendi; meu amor é uma loucura,
minha vida é uma desesperança — o que me resta? Adeus,
irei longe daqui… talvez então eu possa chorar sem remorso…
Tomei-lhe a mão e beijei-a.
Ela deixou sua mão nos meus lábios.
Quando ergui a cabeça, eu a vi: ela estava debulhada em lágrimas.
— Nauza! Nauza! uma palavra, tu me amas?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . .
Tudo o mais foi um sonho: a lua passava entre os vidros da janela aberta
e batia nela: nunca eu a vira tão pura e divina!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . .
E as noites que o mestre passava soluçando no leito vazio de sua filha,
eu as passava no leito dele, nos braços de Nauza.
Uma noite houve um fato pasmoso.
O mestre veio ao leito de Nauza. Gemia e chorava aquela voz cavernosa e rouca:
tomou-me pelo braço com força, acordou-me e levou-me de rasto
ao quarto de Laura…
Atirou-me ao chão: fechou a porta. Uma lâmpada estava acesa
no quarto defronte de um painel. Ergueu o lençol que o cobria. Era
Laura moribunda! E eu macilento como ela tremia como um condenado. A moca
com seus lábios pálidos murmurava no meu ouvido…
Eu tremi de ver meu semblante tão lívido na tela e lembrei-me
que naquele dia ao sair do quarto da morta, no espelho dela que estava ainda
pendurado a janela, eu me horrorizara de ver-me cadavérico…
Um tremor, um calafrio se apoderou de mim. Ajoelhei-me, e chorei lágrimas
ardentes. Confessei tudo: parecia-me que era ela quem o mandava, que era Laura
que se erguia dentre os lençóis do seu leito e me acendia o
remorso e no remorso me rasgava o peito.
Por Deus! que foi uma agonia!
No outro dia o mestre conversou comigo friamente. Lamentou a falta de sua
filha, mas sem uma lágrima. Mas sobre o passado na noite, nem palavra.
Todas as noites era a mesma tortura, todos os dias a mesma frieza.
O mestre era sonâmbulo…
E pois eu não me cri perdido…
Contudo, lembrei-me que uma noite, quando eu saia do quarto de Laura com
o mestre, no escuro vira uma roupa branca passar-me por perto, roçaram-me
uns cabelos soltos, e nas lájeas do corredor estalavam umas passadas
tímidas de pés nus Era Nauza que tudo vira c tudo ouvira, que
se acordara e sentira minha falta no leito, que ouvira esses soluços
e gemidos, e correra para ver…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
Uma noite, depois da ceia, o mestre Walsh tomou sua capa e uma lanterna e
chamou-me para acompanhá-lo. Tinha de sair fora da cidade e não
queria ir só. Saímos juntos: a noite era escura e fria. O outono
desfolhara as árvores e os primeiros sopros do inverno rugiam nas folhas
secas do chão. Caminhamos juntos muito tempo: cada vez mais nos entranhávamos
pelas montanhas, cada vez o caminho era mais solitário. O velho parou.
Era na fralda de uma montanha. À direita o rochedo se abria num trilho:
à esquerda as pedras soltas por nossos pés a cada passada se
despegavam e rolavam pelo despenhadeiro e, instantes depois, se ouvia um som
como de água onde cai um peso…
A noite era escuríssima. Apenas a lanterna alumiava o caminho tortuoso
que seguíamos. O velho lançou os olhos à escuridão
do abismo e se riu.
— Espera-me aí, disse ele, já venho.
Godofredo tomou a lanterna e seguiu para o cume da montanha: eu sentei-me
no caminho à sua espera: vi aquela luz ora perder-se, ora reaparecer
entre os arvoredos nos ziguezagues do caminho. Por fim vi-a parar. O velho
bateu a porta de uma cabana: a porta abriu-se. Entrou. O que aí se
passou nem o sei: quando a porta abriu-se de novo uma mulher lívida
e desgrenhada apareceu com um facho na mão.
A porta fechou-se. Alguns minutos depois o mestre estava comigo.
O velho assentou a lanterna num rochedo, despiu a capa e disse-me:
— Gennaro, quero contar-te uma história. É um crime,
quero que sejas juiz dele. Um velho era casado com uma moça bela. De
outras núpcias tinha uma filha bela também Um aprendiz —
um miserável que ele erguera da poeira, como o vento às vezes
ergue uma folha, mas que ele podia reduzir a ela quando quisesse…
Eu estremeci, os olhares do velho pareciam ferir-me.
— Nunca ouviste essa história, meu bom Gennaro?
— Nunca, disse eu a custo e tremendo.
— Pois bem, esse infame desonrou o pobre velho, traiu-o como Judas
ao Cristo.
— Mestre, perdão!
— Perdão! e perdoou o malvado ao pobre coração
do velho?
— Piedade!
— E teve ele dó da virgem, da desonra, da infanticida?
— Ah! gritei.
— Que tens? conheces o criminoso?
A voz de escárnio dele me abafava.
— Vês pois, Gennaro, disse ele mudando de tom, se houvesse um
castigo pior que a morte, eu to daria. Olha esse despenhadeiro! É medonho!
se o visses de dia, teus olhos se escureceriam e aí rolarias talvez
de vertigem! É um túmulo seguro; e guardará o segredo,
como um peito o punhal. Só os corvos irão lá ver-te,
só os corvos e os vermes. E pois, se tens ainda no coração
maldito um remorso, reza tua última oração: mas seja
breve. O algoz espera a vítima, a hiena tem fome de cadáver…
Eu estava ali pendente junto à morte. Tinha só a escolher o
suicídio ou ser assassinado. Matar o velho era impossível. Uma
luta entre mim e ele fora insana. Ele era robusto, a sua estatura alta, seus
braços musculosos me quebrariam como o vendaval rebenta um ramo seco.
Demais, ele estava armado. Eu… eu era uma criança débil: ao
meu primeiro passo ele me arrojaria da pedra em cujas bordas eu estava…
Só me restaria morrer com ele, arrastá-lo na minha queda. Mas
para que?
E curvei-me no abismo: tudo era negro, o vento lá gemia embaixo nos
ramos desnudos, nas urzes, nos espinhais ressequidos, e a torrente lá
chocalhava no fundo escumando nas pedras.
Eu tive medo.
Orações, ameaças, tudo seria debalde.
— Estou pronto, disse.
O velho riu-se: infernal era aquele rir dos seus lábios estalados
de febre. Só vi aquele riso… Depois foi uma vertigem… o ar
que sufocava, um peso que me arrastava, como naqueles pesadelos em que se
cai de uma torre e se fica preso ainda pela mão, mas a mão cansa,
fraqueja, sua, esfria… Era horrível: ramo a ramo, folha por folha
os arbustos me estalavam nas mãos, as raízes secas que saiam
pelo despenhadeiro estalavam sobre meu peso e meu peito sangrava nos espinhais.
A queda era muito rápida… De repente não senti mais nada…Quando
acordei estava junto a uma cabana de camponeses que me tinham apanhado junto
da torrente, preso nos ramos de uma azinheira gigantesca que assombrava o
rio.
Era depois de um dia e uma noite de delírios que eu acordara. Logo
que sarei, uma idéia me veio: ir ter com o mestre. Ao ver-me salvo
assim daquela morte horrível, pode ser que se apiedasse de mim, que
me perdoasse, e então eu seria seu escravo, seu cão, tudo o
que houvesse mais abjeto num homem que se humilha — tudo! — contanto
que ele me perdoasse. Viver com aquele remorso me parecia impossível.
Parti pois: no caminho topei um punhal. Ergui-o: era o do mestre. Veio-me
então uma idéia de vingança e de soberba. Ele quisera
matar-me, ele tinha rido à minha agonia e eu havia ir chorar-lhe ainda
aos pés para ele repelir-me ainda, cuspir-me nas faces, e amanhã
procurar outra vingança mais segura?… Eu humilhar-me quando ele me
tinha abatido! Os cabelos me arrepiaram na cabeça, e suor frio me rolava
pelo rosto.
Quando cheguei a casa do mestre achei-a fechada. Bati… não abriram.
O jardim da casa dava para a rua: saltei o muro: tudo estava deserto e as
portas que davam para ele estavam também fechadas. Uma delas era fraca:
com pouco esforço arrombei-a. Ao estrondo da porta que caiu só
o eco respondeu nas salas. Todas as janelas estavam fechadas: nem uma lamparina
acesa. Caminhei tateando ate a sala do pintor. Cheguei lá, abri as
janelas e a luz do dia derramou-se na sala deserta. Cheguei então ao
quarto de Nauza, abri a porta e um bafo pestilento corria daí. O raio
da luz bateu em uma mesa. Junto estava uma forma de mulher com a face na mesa,
e os cabelos caídos: atirado numa poltrona um vulto coberto com um
capote. Entre eles um copo onde se depositara um resíduo polvilhento.
Ao pé estava um frasco vazio. Depois eu o soube — a velha da
cabana era uma mulher que vendia veneno e fora ela decerto que o vendera,
porque o pó branco do copo parecia sê-lo…
Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça… — Era Nauza!…
mas Nauza cadáver, já desbotada pela podridão. Não
era aquela estátua alvíssima de outrora, as faces macias e colo
de neve… Era um corpo amarelo… Levantei uma ponta da capa do outro: o
corpo caiu de bruços com a cabeça para baixo; ressoou no pavimento
o estalo do crânio… — Era o velho!… morto também e
roxo e apodrecido!… Eu o vi: — da boca lhe corria uma escuma esverdeada.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . .
V
CLAUDIUS HERMANN
. . . Ecstacy!
My guise as yours doth temperately keep time
And makes a healthful music: It is not madness.
That I have utter’d.
Hamlet. Shakespeare
— E tu, Hermann! Chegou a tua vez. Um por um evocamos ao cemitério
do passado um cadáver. Um por um erguemo-lhe o sudário para
amostrar-lhe uma nódoa de sangue. Fala que chegou tua vez.
— Claudius sonha algum soneto ao jeito do Petrarca, alguma auréola
de pureza como a dos espíritos puros da Messiada! disse entre uma fumaça
e uma gargalhada Johann erguendo a cabeça da mesa.
— Pois bem! quereis um historia? Eu pudera conta-las, como vos, loucuras
de noites de orgia; mas para que? Fora escárnio Faust ir lembrar a
Mefistóteles as horas de perdição que lidou com ele.
Sabei-las… essas minhas nuvens do passado, leste-lo à farta o livro
desbotado de minha existência libertina. Se o não lembrásseis,
a primeira mulher das ruas pudera conta-lo. Nessa torrente negra que se chama
a vida, e que corre para o passado enquanto nos caminhamos para o futuro,
também desfolhei muitas crenças, e lancei despidas as minhas
roupas mais perfumadas, para trajar a túnica da Saturnal! O passado
é o que foi, é a flor que murchou, o sol que se apagou, o cadáver
que apodreceu. Lágrimas a ele? fora loucura! Que durma com suas lembranças
negras! revivam: acordem apenas os miosótis abertos naquele pântano!
Sobreágüe naquele não-ser o eflúvio de alguma lembrança
pura!
— Bravo! Bravíssimo! Claudius, estas completamente bêbedo!
bofé que estas romântico!
— Silêncio, Bertram! certo que esta não é uma lenda
para inscrever-se após das vossas: uma dessas coisas que se contêm
com os cotovelos na toalha vermelha, e os lábios borrifados de vinho
e saciados de beijos… Mas que importa ?
Vos todos, que amais o jogo, que vistes um dia correr naquele abismo uma
onda de ouro e redemoinhar-lhe no fundo, como um mar de esperanças
que se embate na ressaca do acaso, sabeis melhor que vertigem nos tonteia
então… ideai-la melhor a loucura que nos delira naqueles jogos de
milhares de homens, onde fortuna, aspirações, a vida mesma vão-se
na rapidez de uma corrida, onde todo esse complexo de misérias e desejos,
de crimes e virtudes que se chama a existência se joga numa parelha
de cavalos!
Apostei como homem a quem não doera empobrecer: o luxo também
sacia, e essa uma saciedade terrível! para ela nada basta… nem as
danças do Oriente, nem as lupercais romanas, nem os incêndios
de uma cidade inteira lhe alimentariam a seiva de morte, essa vitalidade do
veneno de que fala Byron. Meu lance no turf foi minha fortuna inteira. Eu
era rico, muito rico então: em Londres ninguém ostentava mais
dispendiosas devassidões: nenhum nababo numa noite esperdiçava
somas como eu. O suor de três gerações derramava-o eu
no leito das perdidas e no chão das minhas orgias.
No instante em que as corridas iam começar, em que todos sentiam-se
febris de impaciência, um murmúrio correu pelas multidões,
um sorriso… e depois eram as frontes que se expandiam e depois uma mulher
passou a cavalo.
Víssei-la como eu, no cavalo negro, com as roupas de veludo, as faces
vivas, o olhar ardente entre o desdém dos cílios, transluzindo
a rainha em todo aquele ademã soberbo: víssei-la bela na sua
beleza plástica e harmônica, linda nas suas cores puras e acetinadas,
nos cabelos negros, e a tez branca da fronte, o oval das faces coradas, o
fogo de nácar dos lábios finos, o esmero do colo ressaltando
nas roupas de amazona: víssei-la assim e, à fé, senhores,
que não havíeis rir de escárnio como rides agora!
— Romantismo! deves estar muito ébrio, Claudius, para que nos
teus lábios secos de Lovelace e na tua insensibilidade de D. Juan venha
a poesia ainda passar-te um beijo!
— Ride, sim! misérrimos! que não compreendeis o que porventura
vai de incêndio por aqueles lábios de Lovelace e como arqueja
o amor sob as roupas gotejantes de chuvas de D. Juan —o libertino! Insano,
que nunca sonhastes Lovelace sem sua máscara talvez chorando Clarisse
Harlowe, pobre anjo, cujas asas brancas ele ia desbotar maldizendo essa fatalidade
que fez do amor uma infâmia e um crime. Mil vezes insanos que nunca
sonhastes o Espanhol acordando no lupanar, passando a mão pela fronte
e rugindo de remorso e saudade ao lembrar tantas visões alvas do passado!
— Bravo! bravo!
— Poesia! poesia! murmurou Bertram.
— Poesia! por que pronunciar-lho à virgem casta o nome santo
como um mistério, no lodo escuro da taverna? Por que lembra-la a estrela
do amor a luz do lampião da crápula? Poesia! sabeis o que é
a poesia?
— Meio cento de palavras sonoras e vãs que um pugilo de homens
pálidos entende, uma escada de sons e harmonias que aquelas almas loucas
parecem idéias e lhes despertam ilusões como a lua as sombras…
Isto no que se chama os poetas. Agora, no ideal, na mulher, o ressaibo do
último romance, o delírio e a paixão da última
heroína de novela e o presente incerto e vago de um gozo místico,
pelo qual a virgem morre de volúpia, sem sabe-lo por que…
— Silêncio, Bertram! teu cérebro queimaram-to os vinhos,
como a lava de um vulcão as relvas e flores da campina. Silêncio!
és como essas plantas que nascem e mergulham no mar morto: cobre-as
uma cristalização calcária, enfezam-se e mirram. A poesia,
eu to direi também por minha vez, é o vôo das aves da
manhã no banho morno das nuvens vermelhas da madrugada, é o
cervo que se role no orvalho da montanha relvosa, que se esquece da morte
de amanhã, da agonia de ontem em seu leito de flores!
— Basta, Claudius: que isso que aí dizes ninguém o entende:
são palavras, palavras e palavras, como o disse Hamlet; e tudo isso
é inanido e vazio como uma caveira seca, mentiroso como os vapores
infectos da terra que o sol no crepúsculo irisa de mil cores, e que
se chamam as nuvens, ou essa fada zombadora e nevoenta que se chama a poesia!
— A história! a historia! Claudius, não vês que
essa discussão nos fez bocejar de tédio?
— Pois bem, contarei o resto da história. No fim desse dia eu
tinha dobrado minha fortuna.
No dia seguinte eu a vi: era no teatro. Não sei o que representaram,
não sei o que ouvi, nem o que vi; sei só que lá estava
uma mulher, bela como tudo quanto passa mais puro à concepção
do estatuário. Essa mulher era a duquesa Eleonora… No outro dia vi-a
num baile… Depois… Fora longo dizer-vos: seis meses! concebes? seis meses
de agonia e desejo anelante, seis meses de amor com a sede da fera! seis meses!
como foram longos!
Um dia achei que era demais. Todo esse tempo havia passado em contemplação,
em vê-la, ama-la e sonhá-la: apertei minhas mãos jurando
que isso não iria além, que era muito esperar em vão
e que se ela viria, como Gulnare aos pés do Corsário, a ele
cabia ir ter com ela.
Uma noite tudo dormia no palácio do duque. A duquesa, cansada do baile,
adormecia num diva. A lâmpada de alabastro estremecia-lhe sua luz dourada
na testa pálida. Parecia uma fade que dormia ao luar…
O reposteiro do quarto agitou-se: um homem aí estava parado, absorto.
Tinha a cabeça tão quente e febril e ele a repousava no portal.
A fraqueza era covarde: e demais, esse homem comprara uma chave e uma hora
a infâmia venal de um criado, esse homem jurava que nessa noite gozaria
aquela mulher: fosse embora veneno, ele beberia o mel daquela flor, o licor
de escarlate daquela taça. Quanto a esses prejuízos de honra
e adultério, não riais deles — não que ele ria
disso. Amava e queria: a sua vontade era como a folha de um punhal —
ferir ou estalar.
Na mesa havia um copo e um frasco de vinho, encheu o copo: era vinho espanhol…
Chegou-se a ela, ergueu-a com suas roupas de veludo desatadas, seus cabelos
a meio soltos ainda entremeados de pedraria e flores, seus seios meio-nus,
onde os diamantes brilhavam como gotas de orvalho, ergueu-a nos braços,
deu-lhe um beijo. Ao calor daquele beijo, seminua, ela acordou: entre os vagos
sonhos se lhe perdia uma ilusão talvez; murmurou "amor!"
e com olhos entreabertos deixou cair a cabeça e adormeceu de novo.
O homem tirou do seio um frasquinho de esmeralda.
Levou-o aos lábios entreabertos dela e verteu-lhe algumas gotas que
ela absorveu sem senti-las. Deitou-a e esperou. Daí a instantes o sono
dela era profundíssimo… A bebida era um narcótico onde se
misturaram algumas gotas daqueles licores excitantes que acordam a febre nas
faces e o desejo voluptuoso no seio.
O homem estava de joelhos, o seu peito tremia e ele estava pálido
como após de uma longa noite sensual. Tudo parecia vacilar-lhe em torno…
Ela estava nua: nem veludo, nem véu leve a encobria. O homem ergueu-se,
afastou o cortinado.
A lâmpada brilhou com mais força e apagou-se…
O homem era Claudius Hermann.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . .
Quando me levantei, embucei-me na capa e sai pelas ruas. Queria ir ter a
meu palácio, mas estava tonto como um ébrio. Titubeava e o chão
era lúbrico como para quem desmaia. Uma idéia contudo me perseguia.
Depois daquela mulher nada houvera mais para mim. Quem uma vez bebeu o suco
das uvas purpurinas do paraíso, mais nunca deve inebriar-se do néctar
da terra…
Quando o mel se esgotasse, o que restava a não ser o suicídio?
Uma semana se passou assim: todas as noites eu bebia nos lábios à
dormida um século de gozo. Um mês, o mês em que delirantes
iam os bailes do entrudo, em que mais cheia de febre ela adormecia quente,
com as faces em fogo…
Uma noite — era depois de um baile — eu a esperei na alcova,
escondido atrás do seu leito. No copo cheio d’água que estava
junto a sua cabeceira derramara as últimas gotas do filtro, quando
entrou ela com o Duque.
Era ele um belo moço! Antes de deixa-la passou-lhe as duas mãos
pelas fontes e deu-lhe um beijo. Embevecido daquele beijo, o anjo pendeu a
cabeça no ombro dele, e enlaçou-o com seus braços nus,
reluzentes das pulseiras de pedraria. O duque teve sede, pegou no copo da
duquesa, bebeu algumas gotas; ela tomou-lhe o copo, bebeu o resto. Eu os vi
assim: aquele esposo ainda tão moço, aquela mulher — ah!
e tão bela!… de tez ainda virgem — e apertei o punhal…
— Viras hoje, Maffio? disse ela.
— Sim, minh’alma.
Um beijo sussurrou, e afogou as duas almas. E eu na sombra sorri, porque
sabia que ele não havia de vir.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Ele saiu, ela começou a despir-se. Eu lhas vi uma por uma caírem
as roupas brilhantes, as flores e as jóias, desatarem-se-lhe as tranças
luzidias e negras e depois aparecia no véu branco do roupão
transparente, como as estátuas de ninfas meio-nuas, com as formas desenhadas
pela túnica repassada da água do banho.
O que vi… foi o que sonhara e muito, o que vos todos, pobres insanos, idealizastes
um dia como a visão dos amores sobre o corpo da vendida! Eram os seios
níveos e veiados de azul, trêmulos de desejo, a cabeça
perdida entre a chuva de cabelos negros, os lábios arquejantes, o corpo
todo palpitante: era a languidez do desalinho, quando o corpo da beleza mais
se enche de beleza, e, como uma rosa que abre molhada de sereno, mais se expande,
mais patenteia suas cores.
O narcótico era fortíssimo: uma sofreguidão febril lhe
abria os beiços: extenuada e lânguida, caída no leito,
com as pálpebras pálidas, os braços soltos e sem forca,
parecia beijar uma sombra.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Ergui-a do leito, carreguei-a com suas roupas diáfanas, suas formas
cetinosas, os cabelos soltos úmidos ainda de perfume, seus seios ainda
quentes…
Corri com ela pelos corredores desertos, passei pelo pátio —
a última porta estava cerrada — abri-a.
Na rua estava um carro de viagem: os cavalos nitriam e escumavam de impaciência.
Entrei com ela dentro do carro. Partimos.
Era tempo. Uma hora depois amanhecia.
Breve estivemos fora da cidade.
A madrugada aí vinha com seus vapores, seus rosais borrifados de orvalho,
suas nuvens aveludadas, e as águas salpicadas de ouro e vermelhidão.
A natureza corava ao primeiro beijo do sol, como branca donzela ao primeiro
beijo do noivo: não como amante afanada de noite voluptuosa como a
pintou o paganismo, antes como virgem acordada do sono infantil, meio ajoelhada
ante Deus, que ora e murmura suas orações balsâmicas ao
céu que se azula, à terra que cintila, às águas
que se douram. Essa madrugada baixava a terra como o bafo de Deus; e entre
aquela luz e aquele ar fresco a duquesa dormia, pálida como os sonos
daquelas criaturas místicas das iluminuras da Idade Media, bela como
a Vênus dormida do Ticiano, e voluptuosa como uma das amásias
do Veroneso.
Beijei-a: eu sentia a vida que se me evaporava nos seus lábios. Ela
sobressaltou-se, entreabriu os olhos; mas o peso do sono ainda a acabrunhava,
e as pálpebras descoradas se fecharam…
A carruagem corria sempre.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . .
O sol estava a prumo no céu — era meio-dia: o calor abafava:
pela fronte, pelas faces, pelo colo da duquesa rolavam gotas de suor como
aljôfares de um colar roto… Paramos numa estalagem: lancei-lhe sobre
a face um véu, tomei-a nos meus braços, e levei-a a um aposento.
Ela devia ser muito bela assim! os criados paravam nos corredores: era assombro
de tanta beleza, mais ainda que curiosidade indiscreta.
A dona da casa chegou-se a mim.
— Senhor, vossa esposa ou irmã, quem quer que ela seja, de certo
precisara de uma criada que a sirva…
— Deixai-me: ela dorme.
Foi essa a minha única resposta.
Deitei-a no leito, corri os cortinados, cerrei as janelas para que a luz
lhe não turbasse o sono. Não havia ali ninguém que nos
visse, estávamos sós, o homem e seu anjo; e a criatura da terra
ajoelhou-se ao pé do leito da criatura do céu.
Não sei quanto tempo correu assim, não sei se dormia, mas sei
que sonhava muito amor e muita esperança, não sei se velava,
mas eu a via sempre ali, eu lhe contemplava cada movimento gracioso do dormir,
eu estremecia a cada alento que lhe tremia os seios, e tudo me parecia um
sonho, um desses sonhos a que a alma se abandona como um cisne, que modorra,
ao som das águas… Não sei quanto tempo correu assim: sei só
que o meu delíquio quebrou-se, a duquesa estava sentada sobre o leito,
com os braços nus afastava as ondas do cabelo solto que lhe cobria
o rosto e o colo.
— É um sonho? murmurou. Onde estou eu? quem esse homem encostado
em meu leito?
O homem não respondeu.
Ela desceu da cama: seu primeiro impulso foi o pudor: quis encobrir com as
mãozinhas os seios palpitantes de susto. Sentiu-se quase nua, exposta
às vistas de um estranho, e tremia como contam os poetas que tremera
Diana ao ver-se exposta, no banho, nua às vistas de Acteon.
— Senhor, dizei-me por compaixão, se tudo isso não é
uma ilusão… se não fora uma infâmia! Nem quero pensa-lo.
Maffio não deve tardar, não é assim? o meu Maffio! Tudo
isso é uma comédia… Mas que alcova é esta? Eu adormeci
no meu palácio… como despertei numa sala desconhecida? Dizei, tudo
isso é um brinco de Maffio? quer se rir de mim… Mas, vede, eu tremo,
tenho medo.
O homem não respondia: tinha os olhos a fito naquela forma divina.
— Seria a estátua da paixão na palidez, no olhar imóvel,
nos lábios sedentos, se o arfar do peito lhe não denunciasse
a vida.
Ela ajoelhou-se: nem sei o que ela dizia. Não sei que palavras se
evaporaram daqueles lábios: eram perfumes, porque as rosas do céu
só tem perfumes; eram harmonias, porque as harpas do céu só
tem harmonias; e o lábio da mulher bela é uma rosa divina e
seu coração e uma harpa do céu. Eu a escutava, mas não
a entendia, sentia só que aquelas falas eram muito doces, que aquela
voz tinha um talismã irresistível para minh’alma, porque só
nos meus sonhos de infante que se ilude de amores, uma voz assim me passara.
Os gemidos de duas virgens abraçadas no céu, doiradas da luz
da face de Deus, empalidecidas pelos beijos mais puros, pelo tremuloso dos
abraços mais palpitantes, não seriam tão suaves assim!
A moça chorava, soluçava: por fim ela ergueu-se.
Eu a vi correr a janela, ia abri-la… Eu corri a ela e tomei-a pelas mãos…
— Pois bem, disse ela, eu gritarei… se não for um deserto,
se alguém passar por aqui… talvez me acudam… Socor…
Eu tapei-lhe a boca com as mãos…
— Silêncio, senhora!
Ela lutava para livrar-se de minhas mãos: por fim sentiu-se enfraquecida.
Eu soltei-a de pena dela.
— Então, dizei-me onde estou… dizei-mo, ou eu chamarei por
socorro…
— Não gritareis, senhora!
— Por compaixão então esclarecei-me nesta dúvida:
por que tudo isso que eu vejo? Tudo o que penso, o que adivinho é muito
horrível!
— Escutai pois, disse-lhe eu. Havia uma mulher… era um anjo. Havia
um homem que a amava, como as águas amam a lua que as prateia, como
as águias da montanha o sol que as fita, que as enche de luz e de amor.
Nem sei quem ele era: ergueu-se um dia de uma vida de febre, esqueceu-a; e
esqueceu o passado, diante de uns olhos transparentes de mulher, as manchas
de sua história, numa aurora de gozos, onde se lhe desenhava a sombra
desse anjo… Escutai: não o amaldiçoeis! Esse homem tinha muita
infâmia no passado: profanara sua mocidade, prostituíra-a como
a borboleta de ouro a sua geração, lançando-a no lodo;
frio, sem crenças, sem esperanças, abafara uma por uma suas
ilusões, como a infanticida seus filhos… Deus o tinha amaldiçoado
talvez! ou ele mesmo se amaldiçoara… Esquecera que era homem e tinha
no seu peito harmonias santas como as do poeta… Ele as esquecera e elas
dormiam-lhe no mistério como os suspiros nas cordas de uma guitarra
abandonada. Esquecera que a natureza era bela e muito bela, que o leito das
flores da noite era recendente, que a lua era a lâmpada dos amores,
as aragens do vale, os perfumes do poeta no seu noivado com os anjos e que
a aurora tinha eflúvios frescos… e com suas nuvens virginais, suas
folhas molhadas de orvalho, suas águas nevoentas tinha encantos que
só as almas puras entendem! Tudo isso enjeitou, esqueceu… para só
o lembrar a furto e com escárnio nas horas suarentas da devassidão…
Ele era muito infame!
— Mas tudo isso não me diz quem sois vos… nem porque estou
aqui…
— Escutai: — O libertino amou pois o anjo, voltou o rosto ao
passado, despiu-se dele como de um manto impuro. Retemperou-se no fogo do
sentimento, apurou-se na virgindade daquela visão, porque ela era bela
como uma virgem, e refletia essa luz virgem do espírito, nesse brilho
d’alma divina que alumia as formas que não são da terra, mas
do céu. Ainda o tempo não eivara o coração do
insano de uma lepra sem cura, nem selo inextinguível lhe gravara na
fronte — impureza! Deixou-se do viver que levara, desconheceu seus companheiros,
suas amantes venais, suas insônias cheias de febre, quis apagar todo
o gosto da existência, como o homem que perdeu uma fortuna inteira no
jogo quer esquecer a realidade.
E o homem pode esquecer tudo isto. Mas ele não era ainda feliz. As
noites passava-as ao redor do palácio dela, via-a às vezes bela
e descorada ao luar, no terraço deserto, ou distinguia suas formas
na sombra que passava pelas cortinas da janela aberta de seu quarto iluminado.
Nos bailes seguia com olhares de inveja aquele corpo que palpitava nas danças.
No teatro, entre o arfar das ondas da harmonia, quando o êxtase boiava
naquele ambiente balsâmico e luminoso, ele nada via senão ela
— e só ela! E as horas de seu leito… suas horas de sono não,
que mal as dormia, porque às vezes eram longas de impaciência
e insônia, outras vezes eram curtas de sonhos ardentes! O pobre insano
teve um dia uma idéia: era negra sim mas era a da ventura. O que fez
não sei, nem o sabereis nunca. E depois bastante ébrio para
vos sonhar, bastante louco para nos sonhos de fogo de seu delírio imaginar
gozar-vos, foi profano assaz para roubar a um templo o cibório d’oiro
mais puro. Esse homem… tende compaixão dele, que ele vos amara de
joelhos… ó anjo, Eleonora…
— Meu Deus! meu Deus! por que tanta infâmia, tanto lodo sobre
mim? Ó minha Madona! por que maldissestes minha vida, por que deixastes
cair na minha cabeça uma nódoa tão negra?
As lágrimas, os soluços abafavam-lhe a voz.
— Perdoai-me, senhora, aqui me tendes a vossos pés! tende pena
de mim, que eu sofri muito, que vos amei, que vos amo muito! Compaixão!
que serei vosso escravo, beijarei vossas plantas, ajoelhar-me-ei à
noite à vossa porta, ouvirei vosso ressonar, vossas orações,
vossos sonhos… e isso me bastará… Serei vosso escravo e vosso cão,
deitar-me-ei a vossos pés quando estiverdes acordada, velarei com meu
punhal quando a noite cair, e, se algum dia,. se algum dia vos me puderdes
amar… então… então…
— Oh! deixai-me! deixai-me!…
— Eleonora! Eleonora! Perder noites e noites numa esperança!
Alentá-la no peito como uma flor que murcha de frio, alentá-la,
revive-la cada dia, para vela desfolhada sobre meu rosto! Absorver-me em amor
e só ter irrisão e escárnio! Dizei antes ao pintor que
rasgue sua Madona, ao escultor que despedace a sua estátua de mulher.
Louca, pobre louca que sois! credes que um homem havia de encarnar um pensamento
em sua alma, viver desse cancro, embeber-se da vitalidade da dor, para depois
rasga-lo do seio? Credes que ele consentiria que se lhe pisasse no coração,
que lhe arrancassem… a ele, poeta e amante! da coroa de ilusões as
flores uma por uma, que pela noite da desgraça, ao amor insano de uma
mãe lhe sufocassem sobre o seio a criatura de seu sangue, o filho de
sua vida, a esperança de suas esperanças?
— Oh! e não tereis vós também dó de mim?
não sabei-lo? isto é infame! sou uma pobre mulher. De joelhos
eu vos peco perdão se vos ofendi…. Eu vo-lo peço, deixai-me!
que me importam vossos sonhos, vosso amor!
Doía-me profundamente aquela dor: aquelas lágrimas me queimavam.
Mas minha vontade fez-se rija e férrea como a fatalidade.
— Que te importam meus sonhos, que te importam meus amores? Sim, tens
razão! Que importa à água do deserto e à gazela
do areal que o árabe tenha sede ou que o leão tenha fome? Mas
a sede e a fome são fatais. O amor é como eles:— entendes-me
agora?
— Matai-me então! Não tereis um punhal! Uma punhalada
pelo amor de Deus! Eu juro, eu vos abençoarei…
— Morrer! e pensas no morrer! Insensata! Descer do leito morno do amor
à pedra fria dos mortos! Nem sabes o que dizes. Sabes o que é
essa palavra — morrer? É a duvida que afana a existência,
é a duvida, o pressentimento que resfria a fronte do suicida, que lhe
passa nos cabelos como um vento de inverno, e nos empalidece a cabeça
como Hamlet! Morrer! é a cessação de todos os sonhos,
de todas as palpitações do peito, de todas as esperanças!
É estar peito a peito com nossos antigos amores e não senti-los!
Doida! é um noivado medonho o do verme, um lençol bem negro
o da mortalha! Não fales nisso: por que lembrar o coveiro junto ao
leito da vida? Põe a mão no teu coração… bate…
e bate com força, como o feto nas entranhas de sua mãe. Há
aí dentro muita vida ainda, muito amor por amar, muito fogo por viver!
Oh! se tu me quisesses amar!
Ela escondeu a cabeça nas mãos e soluçou.
— É impossível, eu não posso amar-vos!
Eu disse-lhe:
—Eleonora, ouve-me, deixo-te só, velarei contudo sobre ti daquela
porta. Resolve-te, seja uma decisão firme sim, mas pensada. Lembra-te
que hoje não poderás voltar ao mundo: o duque Maffio seria o
primeiro que fugiria de ti, a torpeza do adultério senti-la-ia ele
nas tuas faces, creria roçar na tua boca a umidade de um beijo de estranho.
E ele te amaldiçoaria! Vê: além a maldição
e o escárnio, a irrisão das outras mulheres, a zombaria vingativa
daqueles que te amaram e que não amaste. Quando entrares, dir-se-a:
hei-la! arrependeu-se! o marido… pobre dele! perdoou-a… As mães
te esconderão suas filhas, as esposas honestas terão pejo de
tocar-te… E aqui, Eleonora, aqui terás meu peito e meu amor, uma
vida só para ti, um homem que só pensará em ti e sonhará
sempre contigo, um homem cujo mundo serás tu, serão teus risos,
teus olhares, teus amores: que se esquecerá de ontem e de amanhã
para fazer, como um Deus, de ti a sua Eternidade. Pensa, Eleonora! se quisesses,
partiríamos hoje; uma vida de venturas nos espera. Sou muito rico,
bastante para adornar-te como uma rainha. Correremos a Europa, iremos ver
a Franca com seu luxo, a Espanha, onde o clima convida ao amor, onde as tardes
se embalsamam nos laranjais em flor, onde as campinas se aveludam e se matizam
de mil flores, iremos à Itália, à tua pátria e,
no teu céu azul, nas tuas noites límpidas, nos teus crepúsculos
suavíssimos viver de novo ao sol meridional!… Se quiseres…
Senão seria horrível… não sei o que aconteceria:
mas quem entrasse neste quarto levaria os pés ensopados de sangue…
Sai: duas horas depois voltei.
— Pensaste, Eleonora?
Ela não respondeu. Estava deitada com o rosto entre as mãos.
À minha voz ergueu-se. Havia um papel molhado de sues lágrimas
sobre o leito. Estendi a mão para tome-lo, ela entregou-mo.
Eram uns versos meus. Olhei para a mesa, minha carteira de viagem, que eu
trouxera do carro, estava aberta, os papéis eram revoltos. Os versos
eram estes.
Claudius tirou do bolso um papel amarelado e amarrotado, atirou-o na mesa.
Johann leu:
Não me odeies, mulher, se no passado
Nódoa sombria desbotou-me a vida,
É que os lábios queimei no vício ardente
E de tudo descri com fronte erguida.
A masc’ra de Don Juan queimou-me o rosto
Na fria palidez do libertino:
Desbotou-me esse olhar… e os lábios frios
Ousam de maldizer do meu destino.
Sim! longas noites no fervor do jogo
Esperdicei febril e macilento
E votei o porvir ao Deus do acaso
E o amor profanei no esquecimento!
Murchei no escárnio as coroas do poeta,
Na ironia da glória e dos amores:
Aos vapores do vinho, a noite insano
Debrucei-me do jogo nos fervores!
A flor da mocidade profanei-a
Entre as águas lodosas do passado…
No crânio a febre, a palidez nas faces,
Só cria no sepulcro sossegado!
E asas límpidas do anjo em colo impuro
Mareei nos bafos da mulher vendida,
Inda nos lábios me roxeia o selo
Dos ósculos da perdida.
E a mirra das canções nem mais vapora
Em profanada taça eivada e negra:
Mar de lodo passou-me ao rio d’alma,
As níveas flores me estalou das bordas.
Sonho de glórias!… só me passa a furto, Qual flor aberta
a medo em chão de tumbas
— Abatida e sem cheiro…
O meu amor… o peito o silencia:
Guardo-o bem fundo em sombras do sacrário.
Onde ervaçal não se abastou nos ermos.
Meu amor… foi visão de roupas brancas
Da orgia à porta, fria e soluçando,
Lâmpada santa erguida em leito infame,
Vaso templário da taverna à mesa,
Estrela d’alva refletindo pálida
No tremedal do crime.
Como o leproso das cidades velhas
Sei me fugiras com horror aos beijos.
Sei, no doido viver dos loucos anos
As crenças desflorei em negra insânia…
— Vestal, prostitui as formas virgens,
Lancei eu próprio ao mar da c’roa as folhas,
Troquei a rósea túnica da infância
Pelo manto das orgias.
Oh! não me ames sequer! Pois bem! um dia
Talvez diga o Senhor ao podre Lázaro:
Ergue-te aí do lupanar da morte,
Revive ao fresco do viver mais puro!
E viverei de novo: a mariposa
Sacode as asas, estremece-as, brilha,
Despindo a negra tez, a bava imunda
Da larva desbotada.
Então, mulher , acordarei do lodo,
Onde Satã se pernoitou comigo,
Onde inda morno perfumou seu molde
Cetinosa nudez de formas níveas.
E a loira meretriz nos seios brancos
Deitou-me a fronte lívida, na insônia
Quedou-me a febre da volúpia à sede
Sobre os beijos vendidos.
E então acordarei ao sol mais puro,
Cheirosa a fronte às auras da esperança!
Lavarei-me da fé nas águas d’oiro
De Magdalena em lágrimas!… e ao anjo
Talvez que Deus me de, curvado e mudo,
Nos eflúvios do amor libar um beijo,
Morrer nos lábios dele!
Ela calou-se: chorava e gemia.
Acerquei-me dela, ajoelhei-me como ante Deus.
— Eleonora, sim ou não?
Ela voltou o rosto para o outro lado, quis falar… interrompia-se a cada
sílaba.
— Esperai, deixai que ore um pouco, a Madona talvez me perdoe.
Esperava eu sempre. — Ela ajoelhou-se.
— Agora… disse ela erguendo-se e me estendendo a sua mão.
— Então?
— Irei contigo.
E desmaiou.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . .
Aqui parou a historia de Claudius Hermann.
Ele abaixou a cabeça na mesa, não falou mais.
— Dormes, Claudius? Por Deus! ou esta bêbedo ou morto!
Era Archibald que o interpelava: sacudia-o a toda a força.
Claudius levantou um pouco a cabeça, estava macilento, tinha os olhos
fundos numa sombra negra.
— Deixai-me, amaldiçoados! deixai-me pelo céu ou pelo
inferno! não vedes que tenho sono… sono e muito sono?
— E a história, a historia? bradou Solfieri.
— E a duquesa Eleonora? perguntou Archibald.
— É verdade… a história. Parece-me que olvidei tudo
isso. Parece que foi um sonho!
— E a Duquesa?
— A Duquesa?… Parece-me que ouvi esse nome alguma vez… Com os diabos,
que me importa?
Aí quis prosseguir, mas uma forca invencível o prendia.
— A Duquesa… é verdade! Mas como esqueci tudo isso que
não me lembro!… Tirai-me da cabeça esse peso… Bofé
que encheram-me o crânio de chumbo derretido!…e ele batia na cabeça
macilenta como um médico no peito do agonizante para encontrar um eco
de vida.
— Então?
— Ah! ah! ah! gargalhou alguém que tinha ficado estranho a conversa.
— Arnold ! cala-te!
— Cala-te antes, Solfieri! eu contarei o fim da história.
Era Arnold — o louro, que acordava.
— Escutai vos todos, disse:
— Um dia Claudius entrou em casa. Encontrou o leito ensopado de sangue
e num recanto escuro da alcova um doido abraçado com um cadáver.
O cadáver era o de Eleonora, o doido nem o pudéreis conhecer
tanto a agonia o desfigurara! Era uma cabeça hirta e desgrenhada, uma
tez esverdeada, uns olhos fundos e baços onde o lume da insânia
cintilava a furto, como a emanação luminosa dos pauis entre
as trevas…
Mas ele o conheceu… — era o Duque Maffio…
Claudius soltou uma gargalhada. — Era sombria como a insânia,
fria como a espada do anjo das trevas. Caiu ao chão, lívido
e suarento como a agonia, inteiriçado como a morte…
Estava ébrio como o defunto patriarca Noé, o primeiro amante
da vinha, virgem desconhecida, até então e hoje prostituta de
todas as bocas… ébrio como Noé, o primeiro borracho de
que reza a história! Dormia pesado e fundo como o apóstolo S.
Pedro no Horto das Oliveiras… O caso é que ambos tinham ceado
à noite…
Arnold estendeu a capa no chão e deitou-se sobre ela.
Daí a alguns instances as seus roncos de barítono se mesclavam
ao magno concerto dos roncos dos dormidos…
VI
JOHANN
Pour quoi? c’est que mon coeur au milieu des délices
D’un souvenir jaloux constamment oppressé
Froid au bonheur présent, va chercher ses supplices
Dans l’avenir et le passé.
Alex. Dumas.
— Agora a minha vez! Quero lançar também uma moeda em
vossa urna: é o cobre azinhavrado do mendigo: pobre esmola por certo!
Era em Paris, num bilhar. Não sei se o fogo do jogo me arrebatar a,
ou se o kirsch e o curaçao me queimaram demais as idéias…
Jogava contra mim um moço: chamava-se Artur.
Era uma figure loura e mimosa como a de uma donzela. Rosa infantil lhe avermelhava
as faces: mas era uma rosa de cor desfeita. Leve buço lhe sombreava
o lábio, e pelo oval do rosto uma penugem doirada lhe assomava como
a felpa que rebuça o pêssego.
Faltava um ponto a meu adversário para ganhar. A mim, faltavam-me
não sei quantos: sei só que eram muitos e pois requeria-se um
grande sangue frio, e muito esmero no jogar.
Soltei a bola. Nessa ocasião o bilhar estremeceu… O moço
loiro, voluntariamente ou não, se encostara ao bilhar… A bola desviou-se,
mudou de rumo: com o desvio dela perdi… A raiva levou-me de vencida. Adiantei-me
para ele. A meu olhar ardente o mancebo sacudiu os cabelos loiros e sorriu
como de escárnio.
Era demais! Caminhei para ele: ressoou uma bofetada. O moço convulso
caminhou para mim com um punhal, mas nossos amigos nos sustiveram.
— Isso é briga de marujo. O duelo, eis a luta dos homens de
brio.
O moço rasgou nos dentes uma luva e atirou-ma a cara. Era insulto
por insulto; lodo por lodo: tinha de ser sangue por sangue.
Meia hora depois tomei-lhe a mão com sangue frio e disse-lhe no ouvido:
— Vossas armas, senhor?
— Saber-las-eis no lugar.
— Vossas testemunhas?
— A noite e minhas armas.
— A hora?
— Já.
— O lugar?
— Vireis comigo… Onde pararmos aí será o lugar…
— Bem, muito bem: estou pronto, vamos.
Dei-lhe o braço e saímos. Ao ver-nos tão frios a conversar
creram uma satisfação. Um dos assistentes contudo entendeu-nos.
Chegou a nós e disse:
— Senhores, não há pois meio de conciliar-vos?
Nós sorrimos ambos.
— É uma criançada, tornou ele.
Nós não respondemos.
— Se precisardes de uma testemunha, estou pronto.
Nós nos curvamos ambos.
Ele entendeu-nos: viu que a vontade era firme: afastou-se.
Nós saímos.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
Um hotel estava aberto. O moço levou-me para dentro.
— Moro aqui, entrai, disse-me.
Entramos.
— Senhor, disse ele, não há meio de paz entre nos: um
bofetão e uma luva atirada as faces de um homem saco nódoas
que só o sangue lava. E pois um duelo de morte.
— De morte, repeti como um eco.
— Pois bem: tenho no mundo só duas pessoas — minha mãe
e… Esperei um pouco.
O moço pediu papel, pena e tinta. Escreveu: as linhas eram poucas.
Acabando a carta deu-ma a ler.
— Vede, não é uma traição, disse.
— Artur, creio em vos: não quero ler esse papel.
Repeli o papel. Artur fechou a carta, selou o lacre com um anel que trazia
no dedo. Ao ver o anel uma lágrima correu-lhe na face e caiu sobre
a carta.
— Senhor, sois um homem de honra. Se eu morrer, tomai esse anel: no
meu bolso achareis uma carta: entregareis tudo a… Depois dir-vos-ei a quem…
— Estais pronto? perguntei.
— Ainda não! antes de um de nos morrer e justo que brinde o
moribundo ao último crepúsculo da vida. Não sejamos Abissínios:
demais, o sol no cinábrio do poente ainda e belo.
O vinho do Reno correu em águas d’oiro nas taças de cristal
verde. O moço ergueu-se.
— Senhor, permita que eu faça uma saúde convosco.
— A quem?
— É um mistério… é uma mulher, porque o nome
daquela que se apertou uma vez nos lábios, a quem se ama, é
um segredo. Não a fareis?
— Seja como quiserdes, disse eu.
Batemos os copos. O moço chegou a janela. Derramou algumas gotas de
vinho do Reno à noite. Bebemos.
— Um de nós fez a sua última saúde, disse ele.
Boa noite para um de nos… bom leito e sonos sossegados para o filho da terra!
Foi a uma secretária, abriu-a: tirou duas pistolas.
— Isto é mais breve, disse ele. Pela espada é mais longa
a agonia. Uma delas esta carregada, a outra não. Tirá-las-emos
à sorte. Atiraremos à queima-roupa.
— É um assassinato.
— Não dissemos que era um duelo de morte, que um de nos devia
morrer?
— Tendes razão. Mas dizei-me: onde iremos?
— Vinde comigo. Na primeira esquina deserta dos arrabaldes. Qualquer
canto de rua é bastante sombrio para dois homens dos quais um tem de
matar o outro.
A meia-noite estávamos fora da cidade. Ele pôs as duas pistolas
no chão.
— Escolhei, mas sem tocá-las.
Escolhi.
— Agora vamos, disse eu.
— Esperai, tenho um pressentimento frio e uma voz suspirosa me geme
no peito. Quero rezar… é uma saudade por minha mãe.
Ajoelhou-se. À vista daquele moço de joelhos — talvez
sobre um túmulo — lembrei-me que eu também tinha mãe
e uma irmã… e que eu as esquecia. Quanto a amantes, meus amores eram
como a sede dos cães das ruas, saciavam-se na água ou na lama.
Eu só amara mulheres perdidas.
— É tempo, disse ele.
Caminhamos frente a frente. As pistolas se encostaram nos peitos. As espoletas
estalaram, um tiro só estrondou, ele caiu quase morto…
— Tomai, murmurou o moribundo e acenava-me para o bolso.
Atirei-me a ele. Estava afogado em sangue. Estrebuchou três vezes e
ficou frio… Tirei-lhe o anel da mão. Meti-lhe a mão no bolso
como ele dissera. Achei dois bilhetes.
A noite era escura: não pude lê-los.
Voltei à cidade. À luz baça do primeiro lampião
vi os dois bilhetes. O primeiro era a carta para sua mãe. O outro estava
aberto, li:
— "A uma hora da noite na rua de… n.° 60, 1.° andar:
acharás a porta aberta.
Tua G."
Não tinha outra assinatura.
Eu não soube o que pensar. Tive uma idéia: era uma infâmia.
Fui a entrevista. Era no escuro. Tinha no dedo o anel que trouxera do morto…
Senti uma mãozinha acetinada tomar-me pela mão, subi. A porta
fechou-se.
Foi uma noite deliciosa! A amante do loiro era virgem! Pobre Romeu! Pobre
Julieta! Parece que essas duas crianças levavam a noite em beijos infantis
e em sonhos puros!
(Johann encheu o copo: bebeu-o, mas estremeceu.)
Quando eu ia sair, topei um vulto à porta.
— Boa noite, cavalheiro… eu vos esperava há muito.
Essa voz pareceu-me conhecida. Porém eu tinha a cabeça desvairada…
Não respondi: o caso era singular. Continuei a descer, o vulto acompanhou-me.
Quando chegamos a porta vi luzir a folha de uma faca. Fiz um movimento e a
lamina resvalou-me no ombro. A luta fez-se terrível na escuridão.
Eram dous homens que se não conheciam, que não pensavam talvez
se terem visto um dia à luz, e que não haviam mais se ver porventura
ambos vivos.
O punhal escapou-lhe das mãos, perdeu-se no escuro: subjuguei-o. Era
um quadro infernal, um homem na escuridão abafando a boca do outro
com a mão, sufocando-lhe a garganta com o joelho, e a outra mão
a tatear na sombra procurando um ferro.
Nessa ocasião senti uma dor horrível: frio e dor me correram
pela mão. O homem morrera sufocado, e na agonia me enterrara os dentes
pela carne. Foi a custo que desprendi a mão sangüenta e descarnada
da boca do cadáver. Ergui-me.
Ao sair tropecei num objeto sonoro. Abaixei-me para ver o que era. Era uma
lanterna furta-fogo. Quis ver quem era o homem. Ergui a lâmpada…
O ultimo clarão dela banhou a cabeça do defunto… e apagou-se…
Eu não podia crer: era um sonho fantástico toda aquela noite.
Arrastei o cadáver pelos ombros levei-o pela laje da calcada até
ao lampião da rua, levantei-lhe os cabelos ensangüentados do rosto…
(Um espasmo de medo contraiu horrivelmente a face do narrador… tomou o
copo, foi beber… os dentes lhe batiam como de frio… o copo estalou-lhe
nos lábios).
Aquele homem — sabei-lo!?… era do sangue do meu sangue, era filho
das entranhas de minha mãe como eu… era meu irmão! Uma idéia
passou ante meus olhos como um anátema. Subi ansioso ao sobrado. Entrei.
A moca desmaiara de susto ouvindo a luta. Tinha a face fria como o mármore.
Os seios nus e virgens estavam parados e gélidos como os de uma estátua…
A forma de neve eu a sentia meio nua entre os vestidos desfeitos, onde a infâmia
asselara a nódoa de uma flor perdida.
Abri a janela, levei-a ate aí…
Na verdade que sou um maldito! Olá, Archibald, dai-me um outro copo,
enchei-o de cognac, enchei-o até a borda! Vede!… sinto frio, muito
frio… tremo de calafrios e o suor me corre nas faces! Quero o fogo dos espíritos!
a ardência do cérebro ao vapor que tonteia… quero esquecer!
— Que tens, Johann? tiritas como um velho centenário!
— O que tenho? o que tenho? Não o vedes, pois? Era linha irmã!
VII
ÚLTIMO BEIJO DE AMOR
Well Juliet! I shall lie with thee to night! Romeu e Julieta. Shakespeare.
A noite ia alta: a orgia findara. Os convivas dormiam repletos, nas trevas.
Uma luz raiou súbito pelas fisgas da porta. A porta abriu-se. Entrou
uma mulher vestida de negro. Era pálida; e a luz de uma lanterna, que
trazia erguida na mão, se derramava macilenta nas faces dela e lhe
dava um brilho singular aos olhos. Talvez que um dia fosse uma beleza típica,
uma dessas imagens que fazem descorar de volúpia nos sonhos de mancebo.
Mas agora com sua tez lívida, seus olhos acesos, seus lábios
roxos, suas mãos de mármore, e a roupagem escura e gotejante
da chuva, disséreis antes — o anjo perdido da loucura.
A mulher curvou-se: com a lanterna na mão procurava uma por uma entre
essas faces dormidas um rosto conhecido.
Quando a luz bateu em Arnold, ajoelhou-se. Quis dar-lhe um beijo, alongou
os lábios… Mas uma idéia a susteve. Ergueu-se. Quando chegou
a Johann, que dormia, um riso embranqueceu-lhe os beiços, o olhar tornou-se-lhe
sombrio.
Abaixou-se junto dele, depôs a lâmpada no chão. O lume
baço da lanterna dando nas roupas dela espalhava sombra sobre Johann.
A fronte da mulher pendeu e sua mão passou na garganta dele. Um soluço
rouco e sufocado ofegou daí. A desconhecida levantou-se. Tremia; e
ao segurar na lanterna ressoou-lhe na mão um ferro… Era um punhal…
Atirou-o ao chão. Viu que tinha as mãos vermelhas, enxugou-as
nos longos cabelos de Johann…
Voltou a Arnold; sacudiu-o.
— Acorda e levanta-te!
— Que me queres?
— Olha-me… não me conheces?
— Tu! e não é um sonho? És tu! oh! deixa que eu
te aperte ainda! Cinco anos sem ver-te! E como mudaste!
— Sim, já não sou bela como há cinco anos! É
verdade, meu loiro amante! É que a flor de beleza é como todas
as flores. Alentai-as ao orvalho da virgindade, ao vento da pureza, e serão
belas… Revolvei-as no lodo… e, como os frutos que caem, mergulham nas
águas do mar, cobrem-se de um invólucro impuro e salobro! Outrora
era Giorgia — a virgem, mas hoje e Giorgia — a prostituta!
— Meu Deus! meu Deus!
E o moço sumiu a fronte nas mãos.
— Não me amaldiçoes, não!
— Oh! deixa que me lembre: estes cinco anos que passaram foram um sonho.
Aquele homem do bilhar, o duelo à queima-roupa, meu acordar num hospital,
essa vida devassa onde me lançou a desesperação, isto
é um sonho? Oh! lembremo-nos do passado! Quando o inverno escurece
o céu, cerremos os olhos; pobres andorinhas moribundas, lembremo-nos
da primavera!…
— Tuas palavras me doem… É um adeus, é um beijo de
adeus e separação que venho pedir-te: na terra nosso leito seria
impuro, o mundo manchou nossos corpos. O amor do libertino e da prostituta!
Satã riria de nos. É no céu, quando o túmulo nos
lavar em seu banho, que se levantará nossa manhã de amor…
— Oh! ver-te e para deixar-te ainda uma vez! E não pensaste,
Giorgia, que me fora melhor ter morrido devorado pelos cães na rua
deserta, onde me levantaram cheio de sangue? Que fora-te melhor assassinar-me
no dormir do ébrio, do que apontar-me a estrela errante da ventura
e apagar-me a do céu? Não pensaste que, após cinco anos,
cinco anos de febre e de insônias, de esperar e desesperar, de vida
por ti, de saudades e agonia, fora o inferno ver-te para te deixar?
— Compaixão, Arnold! É preciso que esse adeus seja longo
como a vida. Vês, minha sina é negra: nas minhas lembranças
há uma nódoa torpe… Hoje! é o leito venal… Amanhã!…
só espero no leito do túmulo! Arnold! Arnold!
— Não me chames Arnold! chama-me Artur, como dantes. Artur!
não ouves? Chama-me assim! Há tanto tempo que não ouço
me chamarem por esse nome!… Eu era um louco! quis afogar meus pensamentos
e vaguei pelas cidades e pelas montanhas deixando em toda a parte lágrimas…
nas cavernas solitárias, nos campos silenciosos, e nas mesas molhadas
de vinho! Vem, Giorgia! senta-te aqui, senta-te nos meus joelhos, bem conchegada
a meu coração… tua cabeça no meu ombro! Vem! um beijo!
quero sentir ainda uma vez o perfume que respirava outrora nos teus lábios.
Respire-o eu e morra depois!… Cinco anos! oh! tanto tempo a esperar-te,
a desejar uma hora no teu seio!… Depois… escuta… tenho tanto a dizer-te!
tantas lágrimas a derramar no teu colo! Vem! e dir-te-ei toda a minha
história! minhas ilusões de amante e as noites malditas da crápula
e o tédio que me inspiravam aqueles beiços frios das vendidas
que me beijavam! Vem! contar-te-ei tudo isto, dir-te-ei como profanei minh’alma
e meu passado… e choraremos juntos… e nossas lágrimas nos lavarão
como a chuva lava as folhas do lodo!
— Obrigada, Artur! obrigada!
A mulher sufocava-se nas lágrimas, e o mancebo murmurava entre beijos
palavras de amor.
— Escuta, Artur, eu vinha só dizer-te adeus! da borda do meu
túmulo; e depois contente fecharia eu mesma a porta dele… Artur,
eu vou morrer!
Ambos choravam.
— Agora vê, continuou ela. Acompanha-me: vês aquele homem?
Arnold tomou a lanterna.
— Johann! morto! sangue de Deus! quem o matou?
— Giorgia! Era ele um infame. Foi ele quem deixou por morto um mancebo
a quem esbofeteara numa casa de jogo. Giorgia — a prostituta! vingou
nele Giorgia — a virgem! Esse homem foi quem a desonrou! desonrou-a,
a ela que era sua… irmã!
— Horror! horror!
E o moço virou a cara e cobriu-a com as mãos.
A mulher ajoelhou-se a seus pés.
— E agora adeus! adeus que morro! Não vês que fico lívida,
que meus olhos se empanam e tremo… e desfaleço?
— Não! eu não partirei. Se eu vivesse amanhã haveria
uma lembrança horrível em meu passado…
— E não tens medo? Olha! é a morte que vem! é
a vida que crepúscula em minha fronte. Não vês esse arrepio
entre minhas sobrancelhas?…
— E que me importa o sonho da morte? Meu porvir amanhã seria
terrível: e à cabeça apodrecida do cadáver não
ressoam lembranças; seus lábios gruda-os a morte; a campa é
silenciosa. Morrerei!
A mulher recuava… recuava. O moço tomou-a nos braços, pregou
os lábios nos dela… Ela deu um grito e caiu-lhe das mãos.
Era horrível de se ver. O moço tomou o punhal, fechou os olhos,
apertou-o no peito, e caiu sobre ela. Dois gemidos sufocaram-se no estrondo
do baque de um corpo…
A lâmpada apagou-se.
Oh! Não maldigam!
Oh! não maldigam o mancebo exausto
Que nas orgias gastou o peito insano…
Que foi ao lupanar pedir um leito,
Onde a sede febril lhe adormecesse!
Não podia dormir! nas longas noites
Pediu ao vício os beijos de veneno…
E amou a saturnal, o vinho, o jogo
E a convulsão nos seios da perdida!
Misérrimo! não creu… Não o maldigam,
Se uma sina fatal o arrebatava…
Se na torrente das paixões dormindo
Foi naufragar nas solidões do crime.
Oh! não maldigam o mancebo exausto
Que no vício embalou, a rir, os sonhos,
Que lhes manchou as perfumadas tranças
Nos travesseiros da mulher sem brio!
Se ele poeta nodoou seus lábios…
É que fervia um coração de fogo
E da matéria a convulsão impura
A voz do coração emudecia!
E quando p’la manhã da longa insônia
Do leito profanado ele se erguia,
Sentindo a brisa lhe beijar no rosto
E a febre arrefecer nos roxos lábios…
E o corpo adormecia e repousava
Na serenada relva da campina…
E as aves da manhã em torno dele
Os sonhos do poeta acalentavam…
Vinha um anjo de amor uni-lo ao peito,
Vinha uma nuvem derramar-lhe a sombra…
E a alma que chorava a infâmia dele
Secava o pranto e suspirava ainda!
Página rota
Et pourtant que le parfum d’un pur
amour est suave!
GEORGE SAND
Meu pobre coração que estremecias,
Suspira a desmaiar no peito meu:
Para enchê-lo de amor, tu bem sabias
Bastava um beijo teu!
Como o vale nas brisas se acalenta,
O triste coração no amor dormia;
Na saudade, na lua macilenta
Sequioso ar bebia!
Se nos sonhos da noite se embalava
Sem um gemido, sem um ai sequer,
E que o leite da vida ele sonhava
Num seio de mulher!
Se abriu tremendo os íntimos refolhos,
Se junto de teu seio ele tremia,
E que lia a ventura nos teus olhos,
É que deles vivia!
Via o futuro em mágicos espelhos,
Tua bela visão o enfeitiçava,
Sonhava adormecer nos teus joelhos…
Tanto enlevo sonhava!
Via nos sonhos dele a tua imagem
Que de beijos de amor o recendia…
E, de noite, nos hálitos da aragem
Teu alento sentia!
Ó pálida mulher! se negra sina
Meu berço abandonado me embalou,
Não te rias da sede peregrina
Dest’alma que te amou…
Que sonhava em teus lábios de ternura
Das noites do passado se esquecer…
Ter um leito suave de ventura…
E amor onde morrer!
Pálida Imagem
Et pourtant que le parfum d’un pur
amour est suave!
GEORGE SAND
Meu pobre coração que estremecias,
Suspira a desmaiar no peito meu:
Para enchê-lo de amor, tu bem sabias
Bastava um beijo teu!
Como o vale nas brisas se acalenta,
O triste coração no amor dormia;
Na saudade, na lua macilenta
Sequioso ar bebia!
Se nos sonhos da noite se embalava
Sem um gemido, sem um ai sequer,
E que o leite da vida ele sonhava
Num seio de mulher!
Se abriu tremendo os íntimos refolhos,
Se junto de teu seio ele tremia,
E que lia a ventura nos teus olhos,
É que deles vivia!
Via o futuro em mágicos espelhos,
Tua bela visão o enfeitiçava,
Sonhava adormecer nos teus joelhos…
Tanto enlevo sonhava!
Via nos sonhos dele a tua imagem
Que de beijos de amor o recendia…
E, de noite, nos hálitos da aragem
Teu alento sentia!
Ó pálida mulher! se negra sina
Meu berço abandonado me embalou,
Não te rias da sede peregrina
Dest’alma que te amou…
Que sonhava em teus lábios de ternura
Das noites do passado se esquecer…
Ter um leito suave de ventura…
E amor onde morrer!
Pálida Inocência
Cette image du cíel — innocence et beauté!
LAMARTINE
Por que, pálida inocência,
Os olhos teus em dormência
A medo lanças em mim?
No aperto de minha mão
Que sonho do coração
Tremeu-te os seios assim?
E tuas falas divinas
Em que amor lânguida afinas
Em que lânguido sonhar?
E dormindo sem receio
Por que geme no teu seio
Ansioso suspirar?
Inocência! quem dissera
De tua azul primavera
As tuas brisas de amor!
Oh! quem teus lábios sentira
E que trêmulo te abrira
Dos sonhos a tua flor!
Quem te dera a esperança
De tua alma de criança,
Que perfuma teu dormir!
Quem dos sonhos te acordasse,
Que num beijo t’embalasse
Desmaiada no sentir!
Quem te amasse! e um momento
Respirando o teu alento
Recendesse os lábios seus!
Quem lera, divina e bela,
Teu romance de donzela
Cheio de amor e de Deus!
Pastor Moribundo, O
CANTIGA DE VIOLA
A existência dolorida
Cansa em meu peito: eu bem sei
Que morrerei…
Contudo da minha vida
Podia alentar-se a flor
No teu amor!
Do coração nos refolhos
Solta um ai! num teu suspiro
Eu respiro…
Mas fita ao menos teus olhos
Sobre os meus… eu quero-os ver
Para morrer!
Guarda contigo a viola
onde teus olhos cantei…
E suspirei!
Só a idéia me consola
Que morro como vivi…
Morro por ti!
Se um dia tu’alma pura
Tiver saudades de mim,
Meu serafim!
Talvez notas de ternura
Inspirem o doudo amor
Do trovador!
Pensamentos Dela
Talvez, à noite, quando a hora finda
Em que eu vivo de tua formosura,
Vendo em teus olhos… nessa face linda
A sombra de meu anjo da ventura,
Tu sorrias de mim porque não ouso
Leve turbar teu virginal repouso,
A murmurar ternura.
Eu sei. Entre minh’alma e tua aurora
Murmura meu gelado coração.
Meu enredo morreu. Sou triste agora,
Estrela morta em noite de verão!
Prefiro amar-te bela no segredo!
Se foras minha tu verias cedo
Morrer tua ilusão!
Eu não sou o ideal, alma celeste,
Vida pura de lábios recendentes,
Que teu imaginar de encantos veste
E sonhas nos teus seios inocentes!…
Flor que vives de aromas e luar,
Oh! nunca possas ler do meu penar
As páginas ardentes!
Se em cânticos de amor a minha fronte
Engrinaldo por ti, amor cantando,
Com as rosas que amava Anacreonte,
É que alma dormida, palpitando…
No raio de teus olhos se ilumina,
Em ti respira inspiração divina
E ela sonha cantando!
Não a acordes contudo. A vida nela
Como a ave no mar suspira e cai…
Às vezes, teu alento de donzela
E de teus lábios o morrer de um ai,
Tua imagem de fada, num instante
Estremecem-na, embalam-na expirante
E lhe dizem: "sonhai!"
Mas quando o teu amante fosse esposo
E tu, sequiosa e lânguida de amor,
O embalasses ao seio voluptuoso
E o beijasses dos lábios no calor,
Quando tremesses mais, não te doera
Sentir que nesse peito que vivera
Murchou a vida em flor?
Poemas Malditos
Todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como
a realidade da bela mulher a quem amamos. Cuidado, leitor, ao voltar esta
página!
Álvares de Azevedo
Prefácio
Cuidado leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar
num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Barataria de D.
Quixote, onde Sancho é rei, e vivem Panúrgio, sir John Falstaff,
Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório
I—a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.
Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se
numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco
mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas
faces.
Demais, perdoem-me os poetas do tempo, isto aqui é um tema, senão
mais novo, menos esgotado que o sentimentalismo tão fashionable desde
Werther e René
Por um espírito de contradição, quando os homens se
vêem inundados de páginas amorosas, preferem Um conto de Boccaccio,
uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff no Henrique IV de Shakespeare,
um provérbio fantástico daquele polisson, Alfred de Musset,
a todas as ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda na
moda, e reduz as mordas de oiro sem liga dos grandes poetas ao troco de
cobre, divisível até ao extremo, dos liliputianos poetastros.
Antes da Quaresma há o Carnaval.
Há uma crise nos séculos como nos homens. é quando
a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo, e caiu do céu
sentindo exaustas as suas asas de oiro.
O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem. Homo sum, como
dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais,
sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado Tem nervos,
tem fibra e tem artérias—isto é, antes e depois de ser
um ente idealista, é um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem,
sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não
há poesia.
O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma
ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta
porque sua vida f’ amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos
amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade
e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico sem ser
monótono. Digam e creiam o que quiserem. Todo o vaporoso da visão
abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher
a quem amamos.
O poema então começa pelos últimos crepúsculos
do misticismo, brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia
puríssima banha com seu reflexo ideal beleza sensível e nua.
Depois a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo
cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna
e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios
onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.
É assim. Depois dos poemas éticos, Homero escreveu o poema
irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina
e o Giaour de Byron vem o Cain e Don Juan—Don Juan que começa
como Cain pelo amor, e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.
Agora basta.
Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não
lesses essas páginas, destinadas a não ser lidas. Deus me
perdoe! assim é tudo! até os prefácios!
Um cadáver de poeeta
Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver! Tu não
pesaste sobre a ferra: a terra te seja leve!
L. Uhland
I
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto.. .
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava . .
Resta um poeta morto!
Morrer! e resvalar na sepultura.
Frias na fronte as ilusões—no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome . . sem um leito!
Em treva e solidão!
Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita. . .
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!
Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou…
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!. . .
II
Morreu um trovador—morreu de fome.
Acharam-no deitado no caminho:
Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
Flutuava-lhe um riso esperançoso.
E o morto parecia adormecido.
Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas da agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele… No seu peito
Não havia colar nem bolsa d’oiro;
Tinha até seu punhal um férreo punho…
Pobretão! não valia a sepultura!
Todos o viam e passavam todos.
Contudo era bem morto desde a aurora.
Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
Um ceitil para a cova!. . nem sudário!
O mundo tem razão, sisudo pensa,
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta—um pobre louco
Que leva os dias a sonhar—insano
Amante de utopias e virtudes
E, num tempo sem Deus, ainda crente?
A poesia é de cerco uma loucura,
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro.. Que doudos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes bravo! à inspiração divina,
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos…
Quando é gelada a fronte sonhadora,
Por que há de o vivo que despreza rimas
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvazia por um misérrimo
Quando a emprega melhor em lodo e vício!
E que venham aí falar-me em Tasso!
Culpar Afonso d’Este—um soberano!—
Por que não lhe dar a mão da irmã fidalga!
Um poeta é um poeta—apenas isso:
Procure para amar as poetisas!
Se na Franca a princesa Margarida,
De Francisco Primeiro irmã formosa,
Ao poeta Alain Chartier adormecido
Deu nos lábios um beijo, é que esta moça,
Apesar de princesa, era uma douda,
E a prova é que também rondós fazia.
Se Riccio o trovador obteve amores
—Novela até bastante duvidosa—
Dessa Maria Stuart formosíssima,
É que ela—sabe-o Deus!—fez tanta asneira,
Que não admira que um poeta amasse!
Por isso adoro o libertino Horácio.
Namorou algum dia uma parenta
Do patrono Mecenas? Parasita,
Só pedia dinheiro—no triclínio
Bebia vinho bom—e não vivia
Fazendo versos às irmãs de Augusto.
E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
As esmolas valeu. Mas quanto ao resto,
Por fazer umas trovas de vadio,
Deveriam lhe dar, além de glória
—E essa deram-lhe à farta—algum bispado,
Alguma dessas gordas sinecuras
Que se davam a idiotas fidalguias?
Deixem-se de visões, queimem-se os versos.
O mundo não avança por cantigas.
Creiam do poviléu os trovadores
Que um poeta não val meia princesa.
Um poema contudo, bem escrito,
Bem limado e bem cheio de tetéias,
Nas horas do café lido fumando,
Ou no campo, na sombra do arvoredo,
Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.
Mas não passe dali do vate a mente.
Tudo o mais são orgulhos, são loucuras!
Faublas tem mais leitores do que Homero. . .
Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola. . .
É prazer de um momento, é mero luxo.
Contente-se em traçar nas folhas brancas
De um Álbum da moda umas quadrinhas.
Nem faça apelações para o futuro.
O homem é sempre o homem. Tem juízo:
Desde que o mundo é mundo assim cogita.
Nem há negá-lo—não há doce lira
Nem sangue de poeta ou alma virgem
Que valha o talismã que no oiro vibra!
Nem músicas nem santas harmonias
Igualam o condão, esse eletrismo,
A ardente vibração do som metálico…
Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?
Ó poetas, silencio! é este o homem?
A feitura de Deus a imagem dele!
O rei da criação!. . .
Que verme infame!
Não Deus, porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te—o egoísmo!
Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!
III
Passou El-Rei ali com seus fidalgos.
Iam a degolar uns insolentes
Que ousaram murmurar da infâmia régia,
Das nódoas de uma vida libertina!
Iam em grande gala. O Rei cismava
Na glória de espetar no pelourinho
A cabeça de um pobre degolado.
Era um rei bon-vivant, e rei devoto;
E, como Luís XI, ao lado tinha
O bobo, o capelão e seu carrasco.
O cavalo do Rei, sentindo o morto,
—Trêmulo de terror parou nitrindo.
Deu d’esporas leviano o cavaleiro
E disse ao capelão:
"E não enterram
Esse homem que apodrece, e no caminho
Assusta-me o corcel?"
Depois voltou-se
E disse ao camarista de semana:
"Conheces o defunto? Era inda moço.
Faria certamente um bom soldado.
A figura é esbelta! Forte pena!
Podia bem servir para um lacaio."
Descoberto, o faceiro fidalgote
Responde-lhe fazendo a cortesia:
"Pelas tripas do Papa! eu não me engano,
Leve-me Satanás se este defunto
Ontem não era o trovador Tancredo!"
"Tancredo"! murmurou erguendo os óculos
Um anfíbio, um barbaças truanesco.
Alma de Tribouler, que além de bobo
Era o vate da corte—bem nutrido,
Farto de sangue, mas de veia pobre,
Caídos beiços, volumoso abdômen,
Grisalha cabeleira esparramada,
Tremendo narigão, mas testa curta;
Em suma um glosador de sobremesas.
"Tancredo!—repetiu imaginando—
Um asno! só cantava para o povo!
Uma língua de fel, um insolente!
Orgulho desmedido.. . e quanto aos versos
Morava como um sapo n’água doce. . .
Não sabia fazer um trocadilho. . ."
O rei passou—com ele a companhia.
Só ficou ressupino e macilento
Da estrada em meio o trovador defunto.
IV
Ia caindo o sol. Bem reclinado
No vagaroso coche madornando,
Depois de bem jantar fazendo a sesta,
Roncava um nédio, um barrigudo frade:
Bochechas e nariz, em cima uns óculos,
Vermelho solidéu… enfim um bispo,
E um bispo, senhor Deus! da idade média,
Em que os bispos—como hoje e mais ainda—
Sob o peso da cruz bem rubicundos,
Dormindo bem, e a regalar bebendo,
Sabiam engordar na sinecura;
Papudos santarrões, depois
Missa Lançando ao povo a bênção—por dinheiro!
O cocheiro ia bêbado por certo;
Os cavalos tocou p’lo bom caminho
Mesmo em cima das pernas do cadáver.
Refugou a parelha, mas o sota
—Que ao sol da glória episcopal enchia
De orgulho e de insolência o couro inerte,
Cuspindo o poviléu, como um fidalgo—
Que em falta de miolo tinha vinho
Na cabeça devassa, deu de esporas:
Como passara sobre a vil carniça
Reléu de corvos negros—foi por cima. . .
Mas desgraça! maldito aquele morto!
Desgraça!… não porque pisasse o coche
Aqueles magros ossos, mas a roda
Na humana resistência deu estalo. . .
E acorda o fradalhão…
"O que se sucede?
—Pergunta bocejando: É algum bêbado?
Em que bicho pisaram?"
"Senhor bispo"
Diz o servo da Igreja, o bom cocheiro
Ao vigário de Cristo, ao santo Apóstolo
Isto é—dessa fidalga raça nova
Que não anda de pé como S. Pedro,
Nem estafa os corcéis de S. Francisco:
"Perdoe Vossa Excelência Eminentíssima;
É um pobre diabo de poeta,
Um homem sem miolo e sem barriga
Que lembrou-se de vir morrer na estrada!"
"Abrenúncio! —rouqueja o Santo Bispo—
Leve o Diabo essa tribo de boêmios!
Não há tanto lugar onde se morra?
Maldita gente! inda persegue os Santos
Depois que o Diabo a leva!. . ."
E foi caminho.
Leve-te Deus! Apóstolo da crença,
Da esperança e da santa caridade!
Tu, sim, és religioso e nos altares
Vem cada sacristão, e cada monge
Agitar a teus pés o seu turíbulo!
E o sangue do Senhor no cálix d’oiro
Da turba na oração te banha os lábios
Leve-te Deus, Apóstolo da crença!
Sem padres como tu que fora o mundo?
É por ti que o altar apóia o trono!
E teu olhar que fertiliza os vales
Fecunda a vinha santa do Messias!
Leve-te Deus ou leve-te o Demônio!
V
Caiu a noite, do azulado manto,
Como gotas de orvalho, sacudindo
Estrelas cintilantes.—Veio a lua
Banhando de tristeza o céu noturno:
Derrama aos corações melancolia,
Derrama no ar cheiroso molemente
Cerúlea chama, dia incerto e pálido
Que ao lado da floresta ajunta as sombras
E lança pelas águas da campina
Alvacentos clarões que as flores bebem.
A galope, de volta do noivado,
Passa o Conde Solfier, e a noiva Elfrida.
Seguem fidalgos que o sarau reclama.
Elfrida
—Não vês, Solfier, ali da estrada em meio
Um defunto estendido?—
Solfier
—Ó minha Elfrida,
Voltemos desse lado: outro caminho
Se dirige ao castelo. É mau agouro
Por um morto passar em noites destas.
Mas Elfrida aproxima o seu cavalo.
Elfrida
—Tancredo vede! é o trovador Tancredo!
Coitado! assim morrer! um pobre moço!
Sem mãe e sem irmã! E não o enterram?
Neste mundo não teve um só amigo?—
"Ninguém, senhora—respondeu da sombra
Uma dorida voz—Eu vim, há pouco,
Ao saber que do povo no abandono
Jazia como um cão. Eu vim, e eu mesmo
Cavei junto do lago a cova impura."
Elfrida
—Tendes um coração. Tomai, mancebo,
Tomai essa pulseira Em oiro e jóias
Tem bastante p’ra erguer-lhe um monumento,
E para longas missas lhe dizerem
Pelo repouso d’alma…
O moço riu-se.
O desconhecido
—Obrigado. Guardai as vossas jóias.
Tancredo o trovador morreu de fome;
Passaram-lhe no corpo frio e morto,
Salpicaram de lodo a face dele,
Talvez cuspissem nesta fronte santa
Cheia outrora de eternas fantasias,
De idéias a valer um mundo inteiro!…
Por que lançar esmolas ao cadáver?
Leva-as, fidalga—tuas jóias belas!
O orgulho do plebeu as vê sorrindo.
Missas… bem sabe Deus se neste mundo
Gemeu alma tão pura como a dele!
Foi um anjo, e murchou-se como as flores,
Morreu sorrindo como as virgens morrem!
Alma doce que os homens enjeitaram,
Lírio que profanou a turba imunda,
Oh! não te mancharei nem a lembrança
Com o óbolo dos ricos! Pobre corpo,
És o templo deserto, onde habitava
O Deus que em ti sofreu por um momento!
Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços:
Na cova negra dormirás tranqüilo. . .
Tu repousas ao menos!. . . —
No entanto sofreando a custo a raiva,
Mordendo os lábios de soberba e fúria,
Solfier da bainha arranca a espada,
Avança ao moço e brada-lhe:
"Insolente!
Cala-te, doudo! Cala-te, mendigo!
Não vês quem te falou? Curva o joelho,
Tira o gorro, vilão!"
O desconhecido
—Tu vês: não tremo.
Tu não vales o vento que salpica
Tua fronte de pó. Porque és fidalgo,
Não sabes que um punhal vale uma espada
Dentro do coração?—
Mas logo Elfrida:
"Acalma-te, Solfier! O triste moço
Desespera, blasfema e não me insulta.
Perdoa-me também, mancebo triste;
Não pensei ofender tamanho orgulho.
Tua mágoa respeito. Só te imploro
Que sobre a fronte ao trovador desfolhes
Essas flores, as flores do noivado
De uma triste mulher . . E quanto às jóias,
Lança-as no lago. . .Mas quem és? teu nome?"
O desconhecido
—Quem sou? um doudo, uma alma de insensato,
Que Deus maldisse e que Satã devora;
Um corpo moribundo em que se nutre
Uma centelha de pungente fogo,
Um raio divinal que dói e mata,
Que doira as nuvens e amortalha a terra!. .
Uma alma como o pó em que se pisa;
Um bastardo de Deus, um vagabundo
A que o gênio gravou na fronte—anátema!
Desses que a turba com o dedo aponta. . .
Mas não; não hei de sê-lo! eu juro n’alma,
Pela caveira, pelas negras cinzas
De minha mãe o juro… agora há pouco
Junto de um morto reneguei do gênio,
Quebrei a lira à pedra de um sepulcro. . .
Eu era um trovador, sou um mendigo .
Ergueu do chão a dádiva d’Elfrida;
Roçou as flores aos trementes lábios;
Beijou-as. Sobre o peito de Tancredo
Pousou-as lentamente…
—Em nome dele,
Agradeço estas flores do teu seio,
Anjo que sobre um túmulo desfolhas
Tuas últimas flores de donzela!—
Depois vibrou na lira estranhas mágoas,
Carpiu à longa noite escuras nênias,
Cantou: banhou de lágrimas o morto.
De repente parou—vibrou a lira
Co’as mãos iradas, trêmulas… e as cordas
Uma per uma rebentou cantando…
Tinha fogo no crânio, e sufocava.
Passou a fria mão nas fontes úmidas,
Abriu a medo os lábios convulsivos,
Sorriu de desespero—e sempre rindo
Quebrou as jóias as lançou no abismo.
VI
No outro dia, na borda do caminho
Deitado ao pé de um fosso aberto apenas,
Viu-se um mancebo loiro que morria. . .
Semblante feminil, e formas débeis,
Mas nos palores da espaçosa fronte
Uma sombria dor cavara sulcos.
Corria sobre os lábios alvacentos
Uma leve umidez, um ló d’escuma,
E seus dentes a raiva constringira…
Tinha os punhos cerrados. . . Sobre o peito
Acharam letras de uma língua estranha. . .
E um vidro sem licor. . . fora veneno!. . .
Ninguém o conheceu; mas conta o povo
Que, ao lançá-lo no túmulo, o coveiro
Quis roubar-lhe o gibão—despiu o moço. . .
E viu. . . talvez é falso. . . níveos seios. . .
Um corpo de mulher de formas puras. . .
Na tumba dormem os mistérios de ambos;
Da morte o negro véu não há erguê-lo!
Romance obscuro de paixões ignotas
Poema d’esperança e desventura,
Quando a aurora mais bela os encantava,
Talvez rompeu-se no sepulcro deles!
Não pode o bardo revelar segredos
Que levaram ao céu as ternas sombras;
Desfolha apenas nessas frontes puras
Da extrema inspiração as flores murchas. . .
Idéias íntimas
(Fragmento)
La chaise ou je m’assieds, la natte ou je me couche, La table ou je t’écris,…………………………….
Mes gros souliers ferrés, mon bâton,, mon chapeau. Mes livres
pêle-mêle entassés sur leur planche………
De cet espace étroit sont tout l’ameublement.
Lamartine, Jocelyn
I
Ossian o bardo é triste como a sombra
Que seus cantos povoa. O Lamartine
É monótono e belo como a noite,
Como a lua no mar e o som das ondas
Mas pranteia uma eterna monodia,
Tem na lira do gênio uma só corda,
Fibra de amor e Deus que um sopro agita:
Se desmaia de amor a Deus se volta,
Se pranteia por Deus de amor suspira.
Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
Fantástico alemão, poeta ardente
Que ilumina o clarão das gotas pálidas
Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
Meu coração deleita-se. . . Contudo
Parece-me que vou perdendo o gosto,
Vou ficando blasé, passeio os dias
Pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler, nem poetar. Vivo fumando.
Minha casa não tem menores névoas
Que as deste céu d’inverno. . . Solitário
Passo as noites aqui e os dias longos;
Dei-me agora ao charuto em corpo e alma;
Debalde ali de um canto um beijo implora,
Como a beleza que o Sultão despreza,
Meu cachimbo alemão abandonado!
Não passeio a cavalo e não namoro;
Odeio o lansquenê. . . Palavra d’honra:
Se assim me continuam por dois meses
Os diabos azuis nos frouxos membros,
Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso.
II
Enchi o meu salão de mil figuras.
Aqui voa um cavalo no galope,
Um roxo dominó as costas volta
A um cavaleiro de alemães bigodes,
Um preto beberrão sobre uma pipa,
Aos grossos beiços a garrafa aperta. . .
Ao longo das paredes se derramam
Extintas inscrições de versos mortos,
E mortos ao nascer. . . Ali na alcova
Em águas negras se levanta a ilha
Romântica, sombria à flor das ondas
De um rio que se perde na floresta. . .
Um sonho de mancebo e de poeta,
El-Dorado de amor que a mente cria
Como um Éden de noites deleitosas….
Era ali que eu podia no silêncio
Junto de um anjo. . . Além o romantismo!
Borra adiante folgaz caricatura
Com tinta de escrever e pó vermelho
A gorda face, o volumoso abdômen,
E a grossa penca do nariz purpúreo
Do alegre vendilhão entre botelhas
Metido num tonel… Na minha cômoda
Meio encerado o copo inda verbera
As águas d’oiro do Cognac fogoso.
Negreja ao pé narcótica botelha
Que da essência de flores de laranja
Guarda o licor que nectariza os nervos.
Ali mistura-se o charuto Havano
Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo.
A mesa escura cambaleia ao peso
Do titânio Digesto, e ao lado dele
Childe Harold entreaberto ou Lamartine.
Mostra que o romanismo se descuida
E que a poesia sobrenada sempre
Ao pesadelo clássico do estudo.
III
Reina a desordem pela sala antiga,
Desce a teia de aranha as bambinelas
À estante pulvurenta. A roupa, os livros
Sobre as cadeiras poucas se confundem.
Marca a folha do Faust um colarinho
E Alfredo de Musset encobre às vezes
De Guerreiro ou Valasco um texto obscuro.
Como outrora do mundo os elementos
Pela treva jogando cambalhotas,
Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!
IV
Na minha sala três retratos pendem.
Ali Victor Hugo. Na larga fronte
Erguidos luzem os cabelos loiros
Como c’roa soberba. Homem sublime,
O poeta de Deus e amores puros
Que sonhou Triboulet, Marion Delorme
E Esmeralda a Cigana e diz a crônica
Que foi aos tribunais parar um dia
Por amar as mulheres dos amigos
E adúlteros fazer romances vivos.
V
Aquele é Lamennais—o bardo santo,
Cabeça de profeta, ungido crente,
Alma de fogo na mundana argila
Que as harpas de Sion vibrou na sombra,
Pela noite do século chamando
A Deus e à liberdade as loucas turbas.
Por ele a George Sand morreu de amores,
E dizem que. . . Defronte, aquele moço
Pálido, pensativo, a fronte erguida,
Olhar de Bonaparte em face Austríaca,
Foi do homem secular as esperanças.
No berço imperial um céu de Agosto
Nos cantos de triunfo despertou-o. . .
As águias de Wagram e de Marengo
Abriam flamejando as longas asas
Impregnadas do fumo dos combates,
Na púrpura dos Césares, guardando-o.
E o gênio do futuro parecia
Predestiná-lo à glória. A história dele?
Resta um crânio nas urnas do estrangeiro. . .
Um loureiro sem flores nem sementes. ..
E um passado de lágrimas. . . A terra
Tremeu ao sepultar-se o Rei de Roma.
Pode o mundo chorar sua agonia
E os louros de seu pai na fronte dele
Infecundos depor… Estrela morta,
Só pode o menestrel sagrar-te prantos!
VI
Junto a meu leito, com as mãos unidas,
Olhos fitos no céu, cabelos soltos,
Pálida sombra de mulher formosa
Entre nuvens azuis pranteia orando.
É um retrato talvez. Naquele seio
Porventura sonhei doiradas noites:
Talvez sonhando desatei sorrindo
Alguma vez nos ombros perfumados
Esses cabelos negros, e em delíquio
Nos lábios dela suspirei tremendo.
Foi-se minha visão. E resta agora
Aquela vaga sombra na parede
—Fantasma de carvão e pó cerúleo,
Tão vaga, tão extinta e fumarenta
Como de um sonho o recordar incerto.
VII
Em frente do meu leito, em negro quadro
A minha amante dorme. É uma estampa
De bela adormecida. A rósea face
Parece em visos de um amor lascivo
De fogos vagabundos acender-se. . .
E com a nívea mão recata o seio. . .
Oh! quantas vezes, ideal mimoso,
Não encheste minh’alma de ventura,
Quando louco, sedento e arquejante,
Meus tristes lábios imprimi ardentes
No poento vidro que te guarda o sono!
VIII
O pobre leito meu desfeito ainda
A febre aponta da noturna insônia.
Aqui lânguido a noite debati-me
Em vãos delírios anelando um beijo…
E a donzela ideal nos róseos lábios,
No doce berço do moreno seio
Minha vida embalou estremecendo. . .
Foram sonhos contudo. A minha vida
Se esgota em ilusões. E quando a fada
Que diviniza meu pensar ardente
Um instante em seus braços me descansa
E roça a medo em meus ardentes lábios
Um beijo que de amor me turva os olhos.
Me ateia o sangue, me enlanguesce a fronte,
Um espírito negro me desperta,
O encanto do meu sonho se evapora
E das nuvens de nácar da ventura
Rolo tremendo à solidão da vida!
IX
Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvas se fechar de gozo!
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre meu peito!
Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher . . e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida
Passar delicioso. . . Que delírios!
Acordo palpitante . . inda a procuro;
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo. . .
Imploro uma ilusão. . . tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos?
X
Meu pobre leito! eu amo-te contudo!
Aqui levei sonhando noite belas
As longas horas olvidei libando
Ardentes gotas de licor doirado,
Esqueci-as no fumo, na leitura
Das páginas lascivas do romance. .
Meu leito juvenil, da minha vida
És a página d’oiro. Em teu asilo
Eu sonho-me poeta, e sou ditoso,
E a mente errante devaneia em mundos
Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes
Do levante no sol entre odaliscas
Momentos não passei que valem vidas!
Quanta música ouvi que me encantava!
Quantas virgens amei! que Margaridas,
Que Elviras saudosas e Clarissas
Mais trêmulo que Faust eu não beijava,
Mais feliz que Don Juan e Lovelace
Não apertei ao peito desmaiando!
Ó meus sonhos de amor e mocidade,
Por que ser tão formosos, se devíeis
Me abandonar tão cedo… e eu acordava
Arquejando a beijar meu travesseiro?
XI
Junto do leito meus poetas dormem
—O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron –
Na mesa confundidos. Junto deles
Meu velho candeeiro se espreguiça
E parece pedir a formatura.
Ó meu amigo, ó velador noturno,
Tu não me abandonaste nas vigílias,
Quer eu perdesse a noite sobre os livros,
Quer, sentado no leito, pensativo
Relesse as minhas cartas de namoro!
Quero-te muito bem, ó meu comparsa
Nas doudas cenas de meu drama obscuro!
E num dia de spleen, vindo a pachorra,
Hei de evocar-te num poema heróico
Na rima de Camões e de Ariosto
Como padrão às lâmpadas futuras!
XII
Aqui sobre esta mesa junto ao leito
Em caixa negra dous retratos guardo.
Não os profanem indiscretas vistas.
Eu beijo-os cada noite: neste exílio
Venero-os juntos e os prefiro unidos
—Meu pai e minha mãe.—Se acaso um dia
Na minha solidão me acharem morto,
Não os abra ninguém. Sobre meu peito
Lancem-os em meu túmulo. Mais doce
Será certo o dormir da noite negra
Tendo no peito essas imagens puras.
XIII
Havia uma outra imagem que eu sonhava
No meu peito na vida e no sepulcro.
Mas ela não o quis rompeu a tela
Onde eu pintara meus doirados sonhos.
Se posso no viver sonhar com ela,
Essa trança beijar de seus cabelos
E essas violetas inodoras, murchas,
Nos lábios frios comprimir chorando,
Não poderei na sepultura, ao menos,
Sua imagem divina ter no peito.
XIV
Parece que chorei . Sinto na face
Uma perdida lágrima rolando. . .
Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,
Derrama no meu copo as gotas últimas
Dessa garrafa negra…
Eia! bebamos!
És o sangue do gênio, o puro néctar
Que as almas de poeta diviniza,
O condão que abre o mundo das magias!
Vem, fogoso Cognac! É só contigo
Que sinto-me viver. Inda palpito,
Quando os eflúvios dessas gotas áureas
Filtram no sangue meu correndo a vida,
Vibram-me os nervos e as artérias queimam
Os meus olhos ardentes se escurecem
E no cérebro passam delirosos
Assomos de poesia. . . Dentre a sombra
Vejo num leito d’oiro a imagem dela
Palpitante, que dorme e que suspira,
Que seus braços me estende. . .
Eu me esquecia:
Faz-se noite, traz fogo e dous charutos
E na mesa do estudo acende a lâmpada…
Boêmios
(Ato de uma comédia não escrita)
Totus mundus agit histrionem (proverbio do tempo de Shakespeare)
Prólogo
Levanta-se o pano até o meio. Passa por debaixo e vem até
a rampa um velho de cabeça calva, camisola branca, carapuça
frígia coroada de louros. Tem um ramo de oliveira na mão.
Faz as cortesias do estilo e fala:
Dom Quixote! Sublime criatura!
Tu sim foste leal e cavaleiro,
O último herói, o paladim extremo
De Castela e do mundo. Se teu cérebro
Toldou-se na loucura, a tua insânia
Vale mais do que o siso destes séculos
Em que a Infâmia, Dagon cheio de lodo,
Recebe as orações, mirras e flores,
E a louca multidão renega o Cristo!
Tua loucura revelava brio.
No triste livro do imortal Cervantes
Não posso crer um insolente escárnio
Do Cavaleiro andante aos nobres sonhos,
Ao fidalgo da Mancha—cuja nódoa
Foi só ter crido em Deus e amado os homens,
E votado seu braço aos oprimidos.
Aquelas folhas não me causam riso,
Mas desgosto profundo e tédio à vida.
Soldado e trovador, era impossível
Que Cervantes manchasse um valeroso
Em vil caricatura, e desse à turba,
Como presa de escárnio e de vergonha,
Esse homem que à virtude, amor e cantos
Abria o coração!
Estas idéias
Servem para desculpa do poeta.
Apesar de bom moço, o autor da peca
Tem uns laivos talvez de Dom Quixote.
E nestes tempos de verdade e prosa —
Sem Gigantes, sem Mágicos medonhos
Que velavam nas torres encantadas
As donzelas dormidas por cem anos—
Do seu imaginar esgrime as sombras
E dá botes de lança nos moinhos.
Mas não escreve sátiras: apenas
Na idade das visões—dá corpo aos sonhos.
Faz trovas, e não talha carapuças.
Nem rebuça no véu do mundo antigo,
P’ra realce maior, presentes vícios.
Não segue a Juvenal, e não embebe
Em venenoso fel a pena escura
Para nódoas pintar no manto alheio.
O tempo em que se passa agora a cena
É o século dos Bórgias. O Ariosto
Depôs na fronte a Rafael gelado
Sua c’roa divina, e o segue ao túmulo.
Ticiano inda vive. O rei da turba
É um gênio maldito—o Aretino.
Que vende a alma e prostitui as crenças.
Aretino! essa incrível criatura,
Poeta sem pudor’ onda de lodo
Em que do gênio profanou-se a pérola
Vaso d’oiro que um óxido sem cura
Azinhavrou de morte homem terrível
Que tudo profanou co’as mãos imundas,
Que latiu como um cão mordendo um século,
E, como diz um epitáfio antigo,
Só em Deus não mordeu, porque o não vira.
Como ele, foi devasso todo o século.
Os contos de Boccaccio e de Brantôme
São mais puros que a história desses tempos.
Tasso enlouquece. O Rei que se diverte
—O herói de Marignan e de Pavia
Que num vidro escrevera do palácio
Femme sovem varie, mas leviano
Com mais amantes que um Sultão vivia,
Mandava ao Aretino amáveis letras,
Um colar d’oiro com sangrentas línguas,
E dava-lhe pensões. O Vaticano
Viu o Papa beijando aquela fronte.
Carlos V o nomeia cavaleiro,
Abraça-o e—inda mais—lhe manda escudos.
O Duque João Médicis o adora,
Dorme com ele a par no mesmo leito.
É um tempo de agonias. A arte pálida,
Suarenta, moribunda, desespera
E aguarda o funeral de Miguel Angelo
Para com ele abandonar o mundo
E angélica voltar ao céu dos Anjos.
Agora basta. Revelei minh’alma.
A cena descrevi onde correra
Inteira uma comédia em vez de um ato,
Se o poeta mais forte se atrevesse
A erguer nos versos a medonha sombra
Da loucura fatal do mundo inteiro.
Boas-noites, platéia e camarotes;
O ponto já me diz que deixe o campo.
O primeiro galã todo empoado,
Cheio de vermelhão, já dentro fala:
Estão cheios de luz os bastidores.
Uma última palavra: o autor da peca,
Puxando-me da túnica romana,
Diz-me da cena que eu avise às Damas
Que desta feita os sais não são precisos;
Não há de sarrabulho haver no palco.
É uma peça clássica. O perigo
Que pode ter lugar é vir o sono;
Mas dormir é tão bom, que certamente
Ninguém por esse dom fará barulho.
O assunto da Comédia e do Poema
Era digno sem dúvida, Senhores,
De uma pena melhor; mas desta feita
Não fala Shakespeare nem Gil Vicente.
O poeta é novato, mas promete.
Posto que seja um homem barrigudo
E tenha por Talia o seu cachimbo,
Merece aplausos e merece glória.
Ato único
A cena passa-se na Itália no século XVI. Uma rua escura e
deserta. Alta noite. Numa esquina uma imagem de Madona em seu nicho alumiado
por uma lâmpada.
Puff dorme no chão abraçando uma garrafa. Níni entra
tocando guitarra. Dão 3 horas.
Níni: Olá! que fazes, Puff? dormes na rua?
PUFF, acordando. Não durmo… Penso.
Níni: Estás enamorado?
E deitado na pedra acaso esperas
O abrir de uma janela? Estás cioso
E co’a botelha em vez de durindana
Aguardas o rival?
Puff: Ceei à farta
Na taverna do Sapo e das Três-Cobras.
Faço o quilo; ao repouso me abandono.
Como o Papa Alexandre ou como um Turco,
Me entrego ao farniente e bem a gosto
Descanso na calcada imaginando.
Níni: Embalde quis dormir. Na minha mente
Fermenta um mundo novo que desperta.
Escuta, Puff: eu sinto no meu crânio
Como em seio de mãe um feto vivo.
Na minha insônia vela o pensamento.
Os poetas passados e futuros
Vou todos ofuscar… Aqui no cérebro
Tenho um grande poema.
Hei de escrevê-lo,
É certa a glória minha!
Puff: A idéia é boa:
Toma dez bebedeiras—são dez cantos.
Quanto a mim tenho fé que a poesia
Dorme dentro do vinho. Os bons poetas
Para ser imortais beberam muito.
Níni: Não rias. Minha idéia é nova e bela.
A Musa me votou a eterna glória.
Não me engano, meu Puff, enquanto sonho:
Se aos poetas divinos Deus concede
Um céu mais glorioso, ali com Tasso,
Com Dante e Ariosto eu hei de ver-me.
Se eu fizer um poema, certamente
No Panteon da fama cem estátuas
Cantarão aos vindouros o meu gênio!
Puff: Em estátua, meu Níni! Estás zombando!
É impossível que saias parecido.
Que mármore daria a cor vermelha
Deste imenso nariz’ destas melenas?
Níni: Estás bêbado, Puff. Tresandas vinho.
Puff: O vinho! És uma besta; só um parvo
Pode a beleza desmentir do vinho.
Tu nunca leste o Cântico dos Cânticos
Onde o rei Salomão, como elogio,
Dizia à noiva—Pulchriora sunt
Ubera tua vino!
Níni: É sempre um bobo
Puff: E tu és sempre esse nariz vermelho
Que ainda aqui na treva desta rua
Flameja ao pé de mim. Quando te vejo,
Penso que estou na Igreja ouvindo
Missa Dita por Cardeal.
Níni: És um devasso.
Puff: Respondo-te somente o que dizia
Sir John Falstaff, da noite o cavaleiro:
"Se Adão pecou no estado de inocência,
Que muito é que nos dias da impureza
Peque o mísero Puff?" Tu bem o sabes:
Toda a fragilidade vem da carne,
E na carne se eu tanto excedo os outros,
Vícios não devem meus causar espanto.
Minha alma dorme em treva completíssima
Pela minha descrença… E tu, maldito,
Por que sempre não vens esclarecer-me
Com esse teu farol aceso sempre,
Cavaleiro da lâmpada vermelha
As trevas de minh’alma?
Níni: Que leproso!
Puff: Sou um homem de peso. Entendo a vida;
Tenho muito miolo, e a prova disto
É que não sou poeta nem filósofo,
E gosto de beber, como Panúrgio.
Se tu fosses tonel, como pareces,
Eu te bebera agora de um só trago.
Níni: Quero-te bem contudo. Amigos velhos
Deixemo-nos de histórias. Meu poema…
Puff: Se falas em poema, eu logo durmo.
Níni: Uma vez era um rei…
Puff: Não vês? eu ronco.
Níni: Quero a ti dedicar minha obra-prima;
Irás junto comigo à eternidade.
Teu retrato porei no frontispício.
Meu poema será uma coroa
Que as nossas frontes engrinalde juntas.
Puff: Pensei-te menos doudo. O teu poema
Seria uma sublime carapuça.
Mas, já que sonhas tanto, olha, meu Níni,
Tu precisas de um saco.
Níni: Impertinente!
Puff: Dá-me aqui tua mão. Sabes, amigo?
Passei ontem o dia de namoro;
Minhas paixões voltei à nova esposa
Do velho Conde que ali mora em frente.
Estou adiantado nos amores.
A cozinheira, outrora minha amante,
Meus passos guia, meus suspiros leva.
Mas preciso, com pressa, de um soneto.
Prometes-me fazê-lo?
Níni: Se me ouvires
Recitar meu poema…
Puff: Eu me resigno.
Declama teu sermão, como um vigário.
Mas o sono ao rebanho se permite?
(Entra um criado correndo.)
Roa-me o diabo as tripas, se não vejo
Ali correr com pernas de cabrita
O criado do cônego Tansoni.
Níni: Onde vais, Gambioletto?
Gambioletto: Vou à pressa
Ao doutor Fossuário.
Puff: Acaso agora
O carrasco fugiu?
Níni: Quem agoniza?
Gambioletto: O Reverendo e Santo Sr. Cônego,
Deitando-se a dormir depois da ceia
No colo de Madona la Zaffeta,
Umas dores sentiu pela barriga,
Caiu estrebuchando sobre a sala…
Morre de apoplexia.
Níni: O diabo o leve!
Gambioletto: E o médico, Srs.!
(Sai correndo.)
Puff: Venturoso!
Sempre é Cônego… Níni, dulce et decus
Pro patria mori É doce e glorioso
Morrer de apoplexia! Quem me dera
Morrer depois da ceia, de repente!
Não vem o confessor contar novelas,
Não soam cantos fúnebres em torno,
Nem se forca o medroso moribundo
A rezar, quando só dormir quisera!
Venturosos os Cônegos e os Bispos,
E os papudos Abades dos conventos!
Eles podem morrer de apoplexia!
E se morre pensando—coisa nova!
Quem nunca no viver cansou-se nisso;
Se eles morrerem pensando, ante seus olhos,
No momento final sem ter pavores,
Inda corre a visão da bela mesa!
A não morrer-se como o velho Píndaro,
Cantando, sobre o seio amorenado
De sua amante Grega, oh! quem me dera
Cair morto no chão, beijando ainda
A botelha divina!
Níni: Que maluco!
A estas horas da noite, assim no escuro
Não temes de lembrar-te de defuntos?
Beijarias até uma caveira,
Se espumante o Madeira ali corresse!
Puff: Os cálices doirados são mais belos;
Inda porém mais doce é nos beicinhos
Da bela moca que sorrindo bebe
Libar mais terno o saibo dos licores…
Eu prefiro beijar a tua amante.
Níni: Tens medo de defuntos?
Puff: Um bocado
Sinto que não nasci para coveiro.
Contudo, no domingo, à meia-noite. . .
Pela forca passei, vi nas alturas,
Do luar sem vapor à luz formosa,
Um vilão pendurado. Era tão feio!
A língua um palmo fora, sobre o peito,
Os olhos espantados, boca lívida,
Sobre a cabeça dele estava um corvo…
O morto estava nu, pois o carrasco
Despindo os mortos dá vestido aos filhos,
E deixa à noite o padecente à fresca.
Eu senti pelo corpo uns arrepios. . .
Mas depois veio o animo… trepei-me
Pela escada da forca, fui acima,
E pintei uns bigodes no enforcado.
Níni: Bravo como um Vampiro!
Puff: Oh! antes d’ontem
Passei pelos telhados sem ter medo,
Para evitar um pátio onde velava
Um cão—que enorme cão! —subindo ao quarto
Onde dorme Rosina Belvidera.
Níni: Ousaste ao Cardeal depor na fronte
Tão pesada coroa?
Puff: A mitra cobre.
Dizem que a santidade lava tudo;
Depois. . . o Cardeal estava bêbado…
A propósito, sabes dos amores
Do capitão Tybald? O tal maroto
Não sei de que milagres tem segredo
Que deu volta à cabeça da rainha.
Níni: Por isso o pobre Rei anda tão triste!
Puff: Spadaro, o fidalgote barba-ruiva,
Contou-me que espiando p’la janela
Do quarto da rainha os viu Caluda!
Níni: E o Rei que faz? Não tem lá na cozinha
Algum pau de vassoura ou um chicote?
Puff: El-Rei Nosso Senhor então ceava.
Níni: Santo Rei!
Puff: E demais é bem sabido
Que El-Rei só reina à mesa e nas caçadas.
Níni: Nunca perde um veado quando atira.
Puff: Ele caça veados! Má fortuna!
Não o cacem também pela ramagem!
Níni: Com língua tão comprida e viperina
Irás parar na forca.
Puff: Níni, escuta.
Assisti esta noite a um pagode
Na taverna do Sapo e das Três-Cobras.
Era já lusco-fusco e eu entrando
Dou com Frei São José e Frei Gregório,
O Prior do convento dos Bernardos
E mais uns dous ou três que só conheço
De ver pelas esquinas se encostando,
Ou dormidos na rua a sono solto. . .
Que soberbo painel! Faze uma idéia!
Um banquete! fartura! que presuntos!
Que tostados leitões que recendiam!
Numa enorme caldeira enormes peixes,
Recheados capões fervendo ainda,
Peus, olhas-podridas, costeletas
Esgotara o talento a cozinheira!
Abertos garrafões; garrafas cheias;
Vinho em copos imensos transbordando;
Na toalha, já suja, debruçados
Aqueles religiosos cachaçudos
De boca aberta e de embotados olhos.
Gastrônomos! ali é que se via
Que é ciência comer, e como um frade
Goza pelo nariz e pelos olhos,
Pelas mãos, pela boca, e faz focinho
E bate a língua ao paladar gostoso
Ao celeste sabor de um bom pedaço!
Depois! era bonito! Frei Gregório
Co’a boca de gordura reluzente,
Farto de vinho, esquece o reumatismo,
Esquece a erisipela já sem cura,
Canta rondós e dança a tarantela.
Arrasta-se caindo e se babando
Aos pés da taverneira De joelhos
Faz-lhe a corte cantando o Miserere
Principia sermões, engrola textos,
E a gorda mão estende ao nédio seio
Da bela mocetona. . . a mão lhe beija,
A mão que o cetro cinge de vassoura. . .
Chora, soluça e cai, estende os braços,
Ainda a chama, e cantochão entoa
Era de rir! os velhos amorosos,
Uns de joelhos no chão, outros cantando
Estendidos na mesa entre os despojos,
Outros beijando a moça, outros dormindo.
Ela no meio deslambida e fresca
Excita-os mutuamente e os rivaliza,
Passa-lhes pelo queixo a mão gorducha…
Corre o Prior a soco um Barbadinho,
Atracam-se, blasfemam, esconjuram,
Um agarra na barba do contrário,
Outro tenta apertar o papo alheio…
Abraçam-se na luta os dous volumes
E rolam como pipas. No oceano
Assim duas baleias ciumentas
Atracam-se na luta… Que risadas!
Que risadas, meu Deus! arrebentando
Soltou o pobre Puff vendo a comédia!
Níni: Ouve agora o poema…
Puff: Espera um pouco,
A taverna do canto não se fecha,
Está aberta. Compra uma garrafa …
Bom vinho tu bem sabes! Tenho a goela
Fidalga como um rei. Não tenho dúvida
Mentiu a minha mãe quando contou-me
Que nasci de um prosaico matrimônio
Eu filho de escrivão!. . . Para criar-me
Era—senão um Rei—preciso um Bispo!
Níni (Vai à taverna e volta): Eis aqui uma bela empada fria,
Uma garrafa e copo.
Puff (quebrando o copo): O Demo o leve!
Eu sou como Diógenes. Só quero
Aquilo sem o que viver não posso.
Deitado nesta laje, preguiçoso,
Olhando a lua, beijo esta garrafa,
E o mundo para mim é como um sonho.
Creio até que teu ventre desmedido
Como escura caverna vai abrir-se,
Mostrando-me no seio iluminado
Panoramas de harém, Sultanas lindas
E longas prateleiras de bom vinho!
Níni: Dou começo ao poema. Escuta um pouco:
I
Havia um rei numa ilha solitária,
Um rei valente, cavaleiro e belo.
O rei tinha um irmão.—Era um mancebo
Pálido, pensativo. A sua vida
Era nas serras divagar cismando,
Sentar-se junto ao mar, dormir no bosque
Ou vibrar no alaúde os seus gemidos.
VII
—Que tens? desmaias?
Que tens, mancebo?
—Nada. É cedo ainda.
Não é ela ainda não. Chamei por ela. . .
Foi em vão. . . delirei. . .
—Por quem?
—A morte.
—Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!
—Se a morte é sofrimento, eu sofro tanto,
Que a mudança do mal será consolo;
Se a morte é sono, meu cansado corpo
No descanso eternal deixai que durma.
—Eu também sofro. . . mas a morte assusta.
Eu mísera mulher nas amarguras
Descorei e perdi a formosura.
No amor impuro profanei minha’alma. ..
E nesta vida não amei contudo!
Não sou a virgem melindrosa e casta
Que nos sonhos da infância os anjos beijam
E entre as rosas da noite adormecera
Tão pura como a noite e como as flores;
Mas na minha’alma dorme amor ainda.
Levanta-me, poeta, dos abismos
Até ao puro sol do amor dos anjos!
Ó minha vida, minha vida pura,
Por que foram tão breves da inocência
Das crenças virginais os belos dias?
Chamei por Deus em vão. Sobre meu leito
Em vez do anjo do céu senti gelada
Sombra desconhecida vir sentar-se
Em beijos frios roxear meus lábios,
Em abraços de morte unir-me ao seio.
Douda! chamei por Deus! a meu reclamo
Veio o torvo Satã… Oh! não maldigas
A mísera que os seios inocentes
Entregou sem pudor a mãos impuras:
Eram taças de Deus… eu bem sabia!
Mas todo o pesadelo do passado
Foi uma horrenda sina… tudo aquilo
Escrevera Satã
VIII
—Fatalidade!
É pois a voz unânime dos mundos.
Das longas gerações que se agonizam
Que sobe aos pés do Eterno como incenso?
Serás tu como os bonzos te fingiram?
Sublime Criador, por que enjeitaste
A pobre criação? Por que a fizeste
Da argila mais impura e negro lado,
E a lançaste nas trevas errabunda
Co’a palidez na fronte como anátema,
Qual lança a borboleta a asas d’oiro
No pântano e no sangue?
Tudo é sina:
O crime é um destino—o gênio, a glória
São palavras mentidas—a virtude
É a máscara vil que o vício cobre.
O egoísmo! eis a voz da humanidade.
Foste sublime, Criador dos mundos!
IX
Tudo morre, meu Deus! No mundo exausto
Bastardas gerações vagam descridas.
E a arte se vendeu, essa arte santa
Que orava de joelhos e vertia
O seu raio de luz e amor no povo,
E o gênio soluçando e moribundo
Olvidou-se da vida e do futuro
E blasfema lutando na agonia.
Agonia de morte! Só em torno
No leito do morrer as almas gemem.
E o fantasma da morte gela tudo.
Por que um ardente amor não mais suspira
Notas do coração pelo silêncio
Da noite enamorada? A chama pura
Por que das almas se apagou nas cinzas
E a lira do poeta. se murmura
As ilusões de um mundo visionário,
Por que estala tão cedo? Vagabundo
Adormeci das árvores na sombra
E nos campos em flor errei sonhando,
Coroando-me dos lírios da alvorada.
Arvore prateada da esperança.
Sombra das ilusões, ó vida bela
E sempre bela, e no morrer ainda,
Por que pousei a fronte sobre a relva
A sombra vossa, delirante um dia?
Oh! que morro também! na noite d’alma
Sinto-o no peito que um ardor consome,
No meu gênio que apaga nas orgias,
Que foge o mundo, e o sepulcro teme . .
Exilei-me dos homens blasfemando,
Concentrei-me no fundo desespero,
E exausto de esperança e zombarias
Como um corpo no túmulo lancei-me,
Suicida da fé, no vício impuro.
X
E o mundo? não me entende. Para as turbas
Eu sou um doudo que se aponta ao dedo.
A glória é essa. P’ra viver um dia
Troquei o manto de cantor divino
Pelas roupas do insano.—Os sons profundos
Ninguém os aplaudia sobre a terra.
Para um pouco de pão ganhar da turba,
Como teu corpo no bordel profanas.
—Fiz mais ainda! prostituí meu gênio.
Oh! ditoso Filinto! ele sim pôde
Na miséria guardar seu gênio puro!
Nunca infame beijou a mão dos grandes!
Morreu como Camões, morreu sem nódoa!
Mas eu! A voz do vício arrebatou-me,
Fascinou-me da infâmia o revérbero .
Maldições sobre mim! Abre-te, ó campa!
Ali obscuro dormirei na treva
XI
O santa inspiração! fada noturna,
Por que a fronte não beijas do poeta?
Por que não lhe descansas nos cabelos
A coroa dos sonhos, e rebentam-lhe
Entre as lívidas mãos uma por uma
As cordas do alaúde no vibrá-las?
Ó santa inspiração! por que nas sombras
Não escuta o poeta à meia-noite
Os sons perdidos da harmonia santa
Que o pobre coração de amor lhe enchiam?
Eu fui à noite da taverna à mesa
Bater meu copo à taça do bandido.
Na louca saturnal beber com ele,
Ouvir-lhe os cantos da sangrenta vida
E as lendas de punhal e morticínio.
De vinho e febre pálido, deitei-me
Sobre o leito venal de uma perdida. . .
Comprimi-a no meu exausto peito.
Falei-lhe em meu amor, contei-lhe sonhos,
Do meu passado a dor, as glórias murchas
E os longos beijos da primeira amante…
Amor! amor! meu sonho de mancebo!
Minha sede! meu canto de saudade!
Amor! Meu coração, lábios e vida
A ti, sol do viver, erguem-se ainda,
E a ti, sol do viver, erguem-se embalde!
Ouvi, ouvi no leito da miséria
A pálida mulher junto a meu peito
Contar-me seus amores que passaram,
Falar-me de purezas, d’esperanças….
E soluçava a triste, e ardentes longas,
As lágrimas em fio deslizando
Eu vi caindo sobre o seio dela. . .
Oh! suas emoções, úmidos beijos,
Dos seios o tremor, aqueles prantos,
E os ofegantes ais eram mentira!
XII
Ah! vem, alma sombria que pranteias.
Por quem choras? Por mim?
Em vez de prantos
Deixa-me suspirar a teus joelhos.
Tu sim és pura. Os anjos da inocência
Poderiam amar sobre teu seio.
Aperta minha mão! Senta-te um pouco
Bem unida a minha alma em meus joelhos,
Assim parece que um abraço aperta
Nossas almas que sofrem. Revivamos!
O passado é um sonho—o mundo é largo,
Fugiremos à pátria. Iremos longe
Habitar num deserto. No meu peito
Eu tenho amores para encher de encantos
Uma alma de mulher Por que sorriste?
Sou um louco. Maldita a folha negra
Em que Deus escreveu a minha sina .
Maldita minha mãe, que entre os joelhos
Não soubeste apertar, quando eu nascia,
O meu corpo infantil! Maldita!
XIII
Escuta:
Sinto uma voz no peito que suspira.
É a alma do poeta que desperta
E canta como as aves acordando
Oh! cantemos! até que a morte fria
Gele nos lábios meus o último canto!
Um cântico de amor, ó minha lira!
Anália! Armia! aparições formosas!
Eu amei sobre a terra as vossas sombras,
O ideal que vos anima e eu buscava,
Vive apenas no céu! vou entre os anjos,
Entre os braços da morte amar com eles!—
XIV
O poeta a tremer caiu no lodo.
A perdida tomou-lhe a fronte branca,
Pô-la ao colo—era lívida—inda o fogo
Lá dentro vacilava agonizando,
Como flutua a claridão da lâmpada
Apagando-se ao vento.
E quando a aurora
Nos céus de nácar acordava o dia,
E nas nuvens azuis o sol purpúreo
Se embalava no eflúvio de ventura
Das flores que se abriam, dos perfumes,
Da brisa morna que tremia as folhas,
Macilenta a mulher no chão da rua
Sentada, a fronte curva sobre os seios
Embalava cantando aquele morto.
Na manta o encobriu. Medrosa a furto
A infeliz o beijou—o pobre amante
Que uma só noite pernoitou com ela
Para aos pés lhe morrer—e sem ao menos
Nas faces dela estremecer um beijo.
Alguém que ali passou, vendo-a tão pálida
Sentada sobre a laje, e tão ardente,
Chegou ao pé—ergueu ao malfadado
A manta.
Como súbito acordando
Disse a moça a tremer:
—Deixa-o agora.
Ele penou de febre toda a noite,
Deitou-se descansando sobre o leito…
Oh! deixa-o dormir.
—Mulher no peito
Sabes quem te dormiu?
—"Que importa o nome?"
Assim falava-me…
—Ai de ti, misérrima!
Um poeta morreu. Fronte divina,
Alma cheia de sol, fronte sublime
Que de um anjo devera no regaço
Amorosa viver. . . Morreu Bocage!
O Poema do Frade
(Fragmentos interligados)
Meu herói é um moço preguiçoso
Que viveu e bebia porventura
Como vós, meu leitor… se era formoso
Ao certo não o sei. Em mesa impura
Esgotara com lábio fervoroso
Como vós e como eu a taça escura.
Era pálido sim. . . mas não d’estudo:
No mais . . era um devasso e disse tudo!
Dizer que era poeta—é cousa velha!
No século da luz assim é todo
O que herói de novelas assemelha.
Vemos agora a poesia a rodo!
Nem há nos botequins face vermelha,
Amarelo caixeiro, alma de lado,
Nem Bocage d’esquina, vate imundo,
Que não se creia um Dante vagabundo!
O meu não era assim: não se imprimia,
Nem versos no teatro declamava!
Só quando o fogo do licor corria
Da fronte no palor que avermelhava,
Com as convulsas mãos a taça enchia.
Então a inspiração lhe afervorava
E do vinho no! eflúvio e nos ressábios
Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios!
Se era nobre ou plebeu, ou rico ou pobre
Não vos direi também: que importa o manto
Se é belo o cavaleiro que ele cobre?
E que importa o passado, um nome santo
De pútridos avós? plebeu ou nobre
Somente a raiva lhe acordava o pranto.
Embuçada no orgulho a fronte erguia
E do povo e dos reis escarnecia!
Não se lançara nas plebéias lutas,
Nem nas falanges do passado herdeiras,
No turbilhão das multidões hirsutas,
Não se enlaivou da pátria nas sangueiras,
Nem da praça no pó das vis disputas!
Sonhava sim em tradições guerreiras,
Nos cânticos de bardo sublimado…
Mas nas épicas sombras do passado.
O presente julgava um mar de lama
Onde vis ambições se debatiam,
Ruína imunda que lambera a chama,
Cadáver que aves fétidas roíam!
Tudo sentiu venal! e ingrata a fama!
Como torrentes trépidas corriam
As glórias, tradições, coroas soltas
De um mar de infâmias às marés revoltas!
Não quisera mirar a face bela
Nesse espelho de lodo ensangüentado!
A embriaguez preferia: em meio dela
Não viriam cuspir-lhe o seu passado!
Como em nevoento mar perdida vela
Nos vapores do vinho assombreado
Preferia das noites na demência
Boiar (como um cadáver!) na existência!
Uma vez o escutei: todos dormiam—
Junto à mesa deserta e quase escura:
Lembranças do passado lhe volviam;
Não podia dormir! Na festa impura
Fora afogar escárnios que doíam. . .
Não o pode: dos lábios na amargura
Ouvi-lhe um murmurar. . Eram sentidas
Agonias das noites consumidas!
Olvidei a canção: só lembro dela
Que d’alma a languidez a estremecia:
Como um anjo num sonho de donzela
Sobre o peito a guitarra lhe gemia!
E quando à frouxa lua, da janela,
Cheia a face de lágrimas erguia,
Como as brisas do amor lhe palpitavam
Os lábios no palor que bafejavam!
Amar, beber, dormir, eis o que amava:
Perfumava de amor a vida inteira,
Como o cantor de Don Juan pensava
Que é da vida o melhor a bebedeira. . .
E a sua filosofia executava. . .
Como Alfred Musset, a tanta asneira
Acrescento porém… juro o que digo!
Não se parece Jônatas comigo.
Prometi um poema, e nesse dia
Em que a tanto obriguei a minha idéia
Não prometi por certo a biografia
Do sublime cantor desta Epopéia.
Consagro a outro fim minha harmonia
Por favor cantarei nesta Odisséia
De Jônatas a glória não sabida
Mas não quero contar a minha vida.
Basta! foi longo o prólogo confesso!
Mas é preciso à casa uma fachada,
A fronte da mulher um adereço,
No muro um lampião à torta escada!
E agora desse canto me despeço
Com a face de lágrimas banhada,
Qual o moço Don Juan no enjôo rola
Chorando sobre a carta da Espanhola.1
Mas eu sei: que senti o amor ardente
Convulsivo bater num peito exausto!
Sei: que senti a lágrima tremente
Como na insana palidez o Fausto!
Quando o sono fugia às noites minhas
Como às nuvens do inverno as andorinhas.
Bebi-a essa tristeza, essa doença
Que nos escalda lágrimas sombrias,
Que nos revolve sós na vaga imensa
Do Oceano das internas agonias!
Que empalidece a face e morte lenta
Nos estampa na fronte macilenta.
Ah! virgem das canções, entre vapores
És pura e bela sim, porém teus lábios
Me fazem delirar como licores
Que afervoram-nos tépidos ressábios!
Quando em teu colo vou deitar-me agora
Teu palpitar as faces me descora!
E cedo morrerei: sinto-o, nas veias
O meu sangue se escoa vagaroso
Como um rio que seca nas areias,
Como donzela, que desmaia em gozo!
Teus lábios, fada minha, me queimaram,
E as lânguidas artérias me esgotaram!
Mas que importa nas sombras da existência
Se mentiu-me o sonhar quando eu sentia
Um dos pálidos anjos de inocência
Pousar-me a face ao peito que gemia,
Se num sonho de amor, em noite bela
Nos suspiros do mar amei com ela!
Era uma lua pálida e sombria
Que seu leito nas ondas embalava
Na mão de neve a face lhe pendia;
E nos sonhos a virgem se enlevava!
E, que estrelas no céu! e que ardentia!
Que perfume seu véu estremecia!
E que sonhos, meu Deus! e que ventura!
E que vento de amores palpitava
Na escuma do batel a vaga pura
E lascivos suspiros lhe arrulhava!. . .
E em torno mar e céu—a noite bela,
Nos meus braços a inânida donzela!
Ah! virgem das canções, aos brancos lírios
Por que tão cedo me chover na infância
O mágico sereno dos delírios
Que adormece, embalsama na fragrância?
E do amor entre os lânguidos conselhos
Minha fronte embalar nos teus joelhos?
Por que tão cedo o vinho da harmonia
Nos beiços infantis correu-me aos sonhos,
Entornou-me essa nuvem que inebria,
Que gela o riso aos lábios meus risonhos?
Tão quedo o sono meu, por que turvá-lo,
E de ilusões esplêndidas povoá-lo?
E tão cedo! por que encher meu leito
Destas sombras suaves, delirantes?
E na harpa adormecida de meu peito
Suspirarem-me sons tão ofegantes?
E por que não deixar o meu sentir
Da infância d’oiro nos frouxéis dormir?
E assim eu morrerei: co’a sede ainda
Amargosa no lábio ressicado!
Cansando os olhos na extensão infinda,
Perguntando se a crença do passado
Também verei no lodo revolvida. . .
E como tu sufocarei a vida!…
É sombrio, confesso-vos, meu canto:
E obscuro demais, o que é defeito!
Mas é um sonho apenas que recanto,
Que em noite longa me gelou no leito—
Sonho de febre, insano pesadelo
Que à fronte me deixou pálido selo!
Não teve o Dante mágoa mais profunda
Quando na sombra ergueu o condenado,
De um crânio carcomido a boca imunda
E enxugou-a em cabelo ensangüentado:
E contou sua lívida vingança
Na mansão da eternal desesperança!
Nem mais estremeceu quando o passado
Do túmulo na sânie revivia. . .
Quando o velho rugindo sufocado
De fome e raiva ainda se torcia. . .
Como quando as crianças se mordiam,
E ardentes, moribundas, pão! pediam!
Quando contou as noites regeladas
E o ar da podridão. . . e a fome impura
Saciando nas carnes desnervadas
De seus filhos. . . de sua criatura!
Como a pantera emagrecida come
Os filhos mortos p’ra cevar a fome!
Acordei ao tremer de calafrios
Com o peito de mágoas transbordando;
Enxuguei com a mão suores frios
Que sentia na face porejando!
E um dia o pesadelo que eu sentira
Mesclou-se aos moles sons de minha lira.
Mesclou-se como ao vinho um ditirambo,
Ao farfalhar de Pança 3 um velho adágio,
Às alvas flores se mistura o jambo
E um ósculo de amor em um naufrágio.
—Creio que vou dizer alguma asneira. . .
Como o nome de Deus à bebedeira!
Escrevi o meu sonho. Nas estâncias
Há lágrimas e beijos e ironias,
Como de noite muda nas fragrâncias
Perde-se um ai de ignotas agonias!
Tudo é assim—no sonho o pesadelo,
—Em almas de Madona quanto gelo!
É assim o viver. Por noite bela
Não durmas ao relento na janela
Contemplando o luar e o mar dormente.
Poderá apanha-te de repente
Fria constipação, febre amarela,
Ou alguma prosaica dor num dente!
Vai, c’oa mão sobre o peito macilento
Curvado como um velho peregrino,
Vai, tu que sofres, implorar—sedento
Um remédio de amor a teu destino!. . .
Um doutor sanará o teu tormento
Com três xícaras d’óleo de rícino
Eu vi, eu vi um tipo de Madona
Que os ares perfumava de beleza:
Que suave mulher! ah! não ressona
Uma virgem de Deus com tal pureza!
Era um lago a dormir… na flor sereno!
Porém sua água azul tinha veneno!
E agora—boa-noite! eu me despeço
Desta vez para sempre do poema:
Como soberbo sou, perdões não peço.
Mas como sou chorão, deixai que gema,
Que dê largas a est’alma intumescida
Na dor de tão solene despedida!
Que prantos! que suspiros sufocados!
Se eu gostasse dos versos eloqüentes,
Como eu descreveria bem rimados
Do meu peito os anélitos frementes!
Porém nos seios eu sufoco tudo,
Porque da mágoa o serafim é mudo.
Silêncio, coração que a dor inflama!
Além do escárnio, sons! quero o meu leito
Das lágrimas banhar que a dor derrama!
Quero chorar! quero chorar! meu peito!
Dizer adeus ao sonho que eu sentira,
Sem profanar as ilusões na lira!
Eu não as profanei! guardo-as sentidas
Nas longas noites do cismar aéreo,
Guardo-as na esperança, nas doridas
Horas que amor perfuma de mistério!
Sem remorso, nem dor, aos sonhos meus
Eu posso ainda murmurar—adeus!!
Ah! que na lira se arrebente a corda
Quando profana mão os sons lhe acorda!
E o pobre sonhador a fantasia,
O sonho que ama e beija noite e dia
Não saiba traduzir, quando transborda
Seu peito dos alentos da harmonia!
Que não possa gemer a voz saudosa
Como o sopro dos ventos avendiços,
Como a noite que exala-se amorosa!
Como o gemer dos ramos dobradiços!
Para exprimir os pensamentos meus
Nos cantos melancólicos do adeus!
Adeus! . . é renunciar numa agonia
A esperança que ainda nos palpita;
Sentir que os olhos cegam-se, que esfria
O coração na lágrima maldita!
Que inteiriçam as mãos, e a alma aflita
Como Ágar no deserto ora sombria!
Sentir que tudo em nós se gela e chora,
E o coração de lágrimas se vela!
E a natureza além revive agora,
E a existência por viver, mais bela
Novas delícias, novo amor revela
Do luzente porvir na roxa aurora!
Sentir que se era poeta… à brisa errante
Bebendo eflúvio que ninguém respira,
Pressentindo à donzela palpitante
Os enlevos, os ais, e o sonho amante
Que nos beija no berço sussurrante,
E o perfume que a música transpira!
Adeus! é uma gota de mistério
Que Deus nos orvalhou como sereno!
É a dor volutuosa—o bafo aéreo
Que derrama perfumes e veneno!
E a cisma que rola, que resvala,
Que os pensamentos no desejo embala!
Saibo do céu que aviva na lembrança
Que é um filho de Deus o moribundo
A quem se fana a tímida esperança!
Que é dos anjos irmão e que é no fundo
Do Oceano do viver, que o vagabundo
A pérola do amor talvez alcança.
E as crenças sentir uma por uma
Que se adormecem e o batel da vida
No Oceano escuro cobre-se d’escuma
E se afunda no mar e dolorida
A alma do marinheiro empalecida
Ao arrebol da morte se perfuma!
Adeus! tudo que amei! o vento frio
Sobre as ondas revoltas me arrebata,
Além a terra perde-se o navio
Trilha nos mares sobre um chão de prata!
Adeus! tudo que amei, que me retrata
Inda a saudade ao terno desvario!
Meu céu! minhas montanhas verdejantes!
Cetim azul da lânguida baía!
Manhas cheias de brisas sussurrantes,
Noites cheias de estrelas e ardentia!
Oh! noite de luar! oh! melodias
Que nas folhas gemeis,; ventos errantes!
Vales cheirosos onde a infância minha
Virgem peregrinou entre mil sonhos!
Noites, luas, estrelas da noitinha
Que os lábios entrebristes-me risonhos,
E orvalháveis de morno sentimento
A aberta flor do coração sedento!
Silêncio que eu amei, que eu procurava
Na varanda romântica e sombria,
Sorvendo dentro em mim ar que sentia
Na fresca viração que se acordava!
Suspirando a cismar nessa atonia
Que de amor minhas pálpebras banhava!
Sobre as colunas o luar batendo
E nas palmeiras úmidas tremendo
Filtrava-me sossego, e o mole engano
Em que se abisma o pensamento insano,
Que empalece da noite os sons bebendo
E harmonias escuta no Oceano!
E vós, águas do mar, que me embalava
Ao som dos remos da gentil falua!
Onde a fronte de escumas se banhava,
E à morta luz da vagabunda lua
Cismava como a nuvem que flutua
Do escravo à nênia estranha que soava!
Oh! minha terra! oh! tarde recendente
Que embalsamando vens com teus cabelos
Derramados à luz! O sol ardente
Como os lábios do amor! luares belos
Como das flores de laranja o cheiro
Que perfumam da noiva o travesseiro!
E adeus, vós que eu amei, que inda sentidas
As ilusões me acordam na tristeza!
Que inda choro nas minhas despedidas!
Belas dos sonhos! anjos de beleza!
Morenas a quem banha a morbidezza!
Como as rosas da noiva empalecidas
Ai todos vos sonhei cândidos seios
Onde amor pranteara delirante!
Onde gemera em derretido enleio
Como em seios de mãe sedento infante!
Águas místicas aonde estrelas santas
Deixaram trilhos das argênteas plantas!
Como o triste Alcion vagueia errante
Nas frias primaveras do Oceano
E ama as alvas, a noite sussurrante,
Tardes, ondas e sol e leviano
Na leviana afeição embriaga insano
A existência nos seios o inconstante!
Eu todos vos amei! cri no mistério
Que o libertino Don Juan levava,
Nas noites profanadas do adultério,
Quando a alma sedenta evaporava!
E a vida como um alaúde aéreo
A todos os alentos entregava!
Terra do amor! ó minha mãe! na vida
Se o fado me levar em mágoa lenta—
Sempre nesta saudade esmorecida
Que de tristes lembranças se alimenta!—
Na morte a minha fronte macilenta,
Inda a ti volverei qual flor à vida!
Viverei do que foi—dos sonhos meus!—
Da seiva do passado hei de essa flor
Regar das quentes lágrimas do amor!
E quando a luz apague-se nos céus
E o frio coração à dor sucumba
Inda murmurarei—adeus!—da tumba,
O Poema de um louco
(Fragmento de "O Conde Lopo")
There is something which I dread It is a dark, a fearful thing.
. . . . . . . . .
That thought comes o’er me in the hour Of grief, of sickness, of sadness
‘Tis not the dread of death! ‘tis more —It is the dread of madness.
Lucretia Davidson
I
Foi poeta: cantou, e o estro em fogo
Crestou-lhe o peito, devorou seus dias
E a febre ardente desbotou-lhe a fronte
Em dores sós, em delirar insano.
Foi poeta: cantou, sonhou: a vida
Canto e sonhos lhe foi. Amor e glória
Com asas brancas viu sorrindo em vôos.
Foi-lhe vida sonhar: e ardentes sonhos
A fronte lhe acenderam, lhe estrelaram
Mágico da existência o firmamento.
Cantou, sonhou—amou:: cantos e sonhos
Em amor converteu-os. De joelhos
Em fundo enlevo ele esperou baixasse
Alguma luz do céu, que amor dissesse—
Anjo ou mulher! embora que ele a amara
C’o fogo queimador que o consumia
Com o amor de poeta que o matava!
Anjo ou mulher—embora! e em longas preces
Noite e dia o esperou—Mísero! Embalde!
Sonhou—amou—cantou: em loucos versos
Evaporou a vida absorta em sonhos—
E debalde! ninguém chorou-lhe os prantos
Que sobre as mortas ilusões já findas
Pálido derramara—
Amou! E um peito
Junto ao seu não ouviu bater consoante
C’os amores do seu! Ninguém amou-o
E nem as mágoas lhe afogou num beijo! —
E morreu sem amor.—Bateu-lhe embalde
O pobre coração em loucas ânsias.
Passou ignoto, solitário e triste
Entre os anjos do amor, só viu-lhe risos
Em braços doutros—e invejosa mágoa
Essa alheia ventura só lhe trouxe.
Nunca a mão dele de uma fronte branca
A alva coroa fez cair da virgem—
Jovem, solteiro, sem consórcio d’alma
Entre as rosas da vida—mas nenhuma
Nem deu-lhe um riso—nem do moço pálido
No imo d’alma guardou uma saudade!
Mas se à terra saudades não deixara
Não levou-as também—do peito o orgulho
Que ninguém quis amar, ninguém amou.
—Foi-lhe quimera o amor, não mais lembrou-o,
Tentou-o ao menos. —E que importa um morto?
— Doido é quem geme em lagrimar estéril—
Quando o luto findou e alegre o baile
Corre entre flores no valsar, quem lembra
O defunto que é podre no jazigo?
—Morrera-lhe o sonhar—por que chorá-lo?
E morreu sem amor! E ele contudo
Tinha no peito tanto amor e vida!
Alma de sonhos, tão ardentes, cheia!
E anelante do amor do peito—em outro
Em horas ternas efundir em beijos!
E às vezes quando a fronte pela febre
Pesada e quente sobre as m&aatilde;os firmava,
Quando esse delirar febril da insônia
Em vertigens travava de sua alma,
Um negro pensamento lhe passava
Como um fuzil no cérebro fervente,
E pensava dos loucos no delírio,
Na escura treva da vertigem tonta!
Temia—a morte não—mas—a loucura.
Invocação
Variações em todas as cordas
I
Alma de fogo, coração de lavas,
Misterioso Bretão de ardentes sonhos
Minha musa serás—poeta altivo
Das brumas de Albion, fronte acendida
Em túrbido ferver!—a ti portanto,
Errante trovador d’alma sombria,
Do meu poema os delirantes versos!
II
Foste poeta, Byron! a onda uivando
Embalou-te o cismar—e ao som dos ventos
Das selváticas fibras de tua harpa
Exalou-se o rugir entre lamentos!
III
De infrene inspiração a voz ardente
Como o galope do corcel da Ucrânia
Em corrente febril que alaga o peito
A quem não rouba o coração—ao ler-te?
Foste Ariosto no correr dos versos,
Foste Dante no canto tenebroso,
Camões no amor e Tasso na doçura,
Foste poeta, Byron!
Foi-te a imaginação rápida nuvem
Que arrasta o vento no rugir medonho—
Foi-te a alma uma caudal a despenhar-se
Das rochas negras em mugido imenso.
Leste no seio, ao coração, o inferno,
Como teu Manfred desfraldando à noite
O escurecido véu.—E riste, Byron,
Que do mundo o fingir merece apenas
Negro sarcasmo em lábios de poeta.
Foste poeta, Byron!
IV
A ti meu canto pois—cantor das mágoas
De profunda agonia! —a ti meus hinos,
Poeta da tormenta—alma dormida
Ao som do uivar das feras do oceano,
Bardo sublime das Britânias brumas!
1
Foi-te férreo o viver—enigma a todos
Foi o teu coração!
Da fronte no palor fervente em lavas
Um gênio ardente e fundo:
O mundo não te amou e riste dele
—Poeta—o que era-te o mundo?
Foste, Manfred, sonhar nas serras ermas
Entre os tufões da noite—
E em teu Jungfrau—a mão da realidade
As ilusões quebrou-te!
Como um gênio perdido—em rochas negras
Paraste à beira-mar.
Do escuro céu falando às nuvens—solto
O negro manto ao ar!
O mar bramiu-te o hino da borrasca
E em pé—no peito os braços—
O riso irônico—vinha o azul relâmpago
T’esclarecer a espaços.
A fonte nua o rorejar da noite
Frio—te umedecia
E acima o céu—e além o mar te olhava
C’os olhos da ardentia!
2
As volúpias da noite descoraram-te
A fronte enfebrecida
Em vinho e beijos—afogaste em gozo
Os teus sonhos da vida.
E sempre sem amor, vagaste sempre
Pálido Dom João!
Sem alma que entendesse a dor que o peito
Te fizera em vulcão!
3
Da absorta mente os sonhos te quebrava
Do mundo o sussurrar.
E foste livre refazer teu peito
Ao ar livre do mar.
E quando o barco d’alta noite aos ventos
Entre as vagas corria
E d’astro incerto o alvor te prateava
A palidez sombria,
Era-te amor o pleitear das águas
Nos rochedos cavados—
E amargo te franzia um rir de gozo
Os lábios descorados!
E amaste o vendaval, que as folhas trêmulas
Das florestas varria—
E o mar—alto a rugir—que a ouvi-lo, a fronte
Altiva se te erguia!
E amaste negro o céu—o mar—a noite
E entre a noite—o trovão!
Num crânio zombador brindaste aos mortos.
Cantor da destruição
4
E um dia as faces desbotou-te a morte
De alvor, frio e letal
Deram-te em presa aos vermes—Mas que importa
Se é teu nome imortal?
Se foste sobranceiro na peleja
Como o foras nos cantos—
Se o grego litoral e o mar que o banha
Por ti beberam prantos?
Se do levante as virações correndo
Nos mares orientais
Deram-te nênias no sussurro trêmulo,
Byron, se o nome teu lembra um espírito
Das glórias decaído
E fez-te o coração os teus poemas
De coração perdido,
Se co’a dor de teus hinos simpatizam
Duma alma os turvos imos
E o teu sarcasmo queimador consola
E contigo sorrimos?
5
Vem, pois, poeta amargo da descrença
Meu Lara vagabundo—
E co’a taça na mão e o fel nos lábios
Zombaremos do mundo!
O Livro de Fra. Gondicário
(Fragmentos em ritmo de poesia em prosa)
I
Era em Veneza. O sol descaía, no manto rubro do crepúsculo,
como um rajá da Índia fulgente de jóias nos estofos de
damasco do seu divã—e o mar ao longe cintilava numa esteira de
rubis e lantejoulas como o fagulhar da queimada a estorcer-se pelos verdumes
crepitantes da montanha.
E o céu sorria vermelho como os lábios de uma rosa aberta,
e as nuvens passavam lentas como galeotas desertas nas praias de Stambul a
Soberana, e as brisas roçavam pelas águas suspirosas como os
beijos a furto dos lábios vermelhos da Odalisca pela fronte escura
do Califa adormecido à sombra dos romaes de Granada a Mourisca, e como
o correr da pátena d’oiro nos festins Romanos pelos lábios das
Bacantes coroadas das eras de saturnal—e as falas da mulher no devassar
da orgia, pelos ouvidos indiferentes do ébrio de vinho e volúpias.
E a tarde era louçã como o amanhecer de fadas e um anoitecer
de lua quando o corpo de Febe a nua desmaia no lençol azul dos mares.
E a tarde era louçã como esses beijos a furto nos carnavais
Italianos no lacre de uns lábios risonhos dentre as rendas bordadas
da máscara de veludo—era louçã e bela com seu dossel
carmesim e seus lírios roxos, com seu horizonte de fogos furta-cores—e
suas nuvens de púrpura e crisólito—de neves e sangue—e
seu mar cintilante como o manto de veludos estrelados da rainha do Adria,
se alvoroçando ao desflorar das aragens da tarde, que aí se
perdia no além azulado das montanhas.
Era numa dessas belas ruas de Veneza, onde por entre as casarias vermelhas
espelha-se o ondular das águas, como a lamina de um montante de Damasco
. .. Não lhe sei o nome. Entrevia-a apenas no deslumbre de um devaneio,
sonhei-a, criei-a pelo meu sonho com suas visões de mulheres, seus
suspiros de alaúde e de mandara, seus hálitos embalsamados.
Era numa rua de Veneza.—À porta de um palácio estava
sentado um vulto embuçado num manto branco.
Era uma dessas feições soberbas do mar além do Me"
diterrâneo desses Almogávares denegridos que nas horas do Combate
ao reluzir da folha curva do Iatagã aos raios do meio-dia, aos brados
guerreiros pelo Alá dos Bárbaros, se acardumam soberbos em torno
dos Adaís do deserto.
Um daqueles bustos altivos que o mancebo poeta talvez entreviu no sonho de
Otelo, o negro.
Era uma fronte larga e abassanada avultando sob as pregas do Caftã
branco, uns olhos vivos como os dos chacais nas noites sem estrelas, uivando
ao redor das tendas da caravana,—o bigode basto e negro—e a barba
longa ondando sobre o embuço do albornoz selvagem.
O que aí fazia o Árabe nem o sei talvez—o sonho não
m’o preveniu.
Parecia-me apenas que uma nuvem negra lhe corria pela fronte como uma sombra
na face cor de aço de um lago em noites pardacentas—e seus olhos
inquietos se perdiam nos longes do Canal.
Sonhava? E entrevia nos aléns as paragens do oásis, com seu
manto de relvas e seus quiosques de sombrios palmares onde o Bulbul Z da Arábia
gorjeia os amores das rosas? e entre os verdumes o branquear das tendas da
tribo, o reluzir das lanças dos Spahis Cavaleiros, o relinchar das
éguas reluzidas esquias dos Agas valentes
Sonhava? E entrevia no fresco de algum arvoredo, na margem sombria da cisterna
do deserto, o roupão branco e o turbante caído, e o manto acetinado
de cabelos pelos seios nus,—alguma Gulnare ou Rachyma,
Iantha ou Juana a Espanhola—flor de romã aberta mais viva no
transplantar do harém, pérola colhida nas praias floridas da
Espanha, Grécia ou Itália?
Sonhava? E entrevia nuns olhos úmidos de mulher lágrimas por
eles, nos seios torneados e altivos onde um suspiro flutua e morre, algum
anseio de volúpia, algum rever lânguido das ebriedades no aperto
do seio do amante?
Mas não.—Não era talvez o colo envolto de pérolas
da escrava, e os olhares longos da Espanhola, e o cravo dos lábios
da Grega na sesta do palmar—Não era talvez o amor da filha das
barracas nômadas do Islamita, nem saudades bélicas da terra dos
tamareiras
A noite caía—e o céu faiscava de aljôfares—e
a lua se erguia atrás dos desenhos fantásticos, e das cúpulas
brancas da catedral de S. Marcos—como a noiva ao través do seu
véu de virgem—fitando seus longos olhares sobre a cidade dormida
num leito de pedra.
II
A lua se erguera, pálida como a Febe antiga, a ninfa desmaiada de
Delos, depois das longas noites em que ao fresco dos arvoredos ela contemplava
o sossegado dormir de Céfalo — e seus raios brancos escorriam
pela frente dos palácios como a melena das algas gotejantes nos penhais
Um vulto apareceu numa das sacadas do palácio. Dava-lhe o luar em
cheio no rosto pálido.—A fronte alta e descarada sombreavam-lha
os longos cabelos negros e reluzentes.—Um manto de veludo o embucava—Havia
aí nessa figura escura um não sei que de belo; havia ai nessa
descor desfeita, no desalinho dos cabelos, umas sombras misteriosas, que travavam
de vencida o olhar.— Disséreis Childe Harold… a unidade convergente
de todos os sonhos do poeta—a sombra de Byron que lhe corria em todas
as idéias—como a imagem pensativa e melancólica de Karl
Moor em todas as criações de Schiller.
Ao Luar
Esperaba, desperado.
III
Era—a do vulto da janela—uma dessas feições que
os Sóis do meio-dia parecem ter avivado com o primor de seus lumes—e
o fogo de seus verdes.—Ler-se-lhe-ia em cada traço, nos cabelos
corridos e ondados, no bigode negro, nos olhos acesos e até nessa morena
descor, que pelas válvulas das veias desse homem borbulhavam os fervores
de Sarraceno, fundidos na branquidão, de fleugma das raças loiras
do Norte—e nos vestígios dos bustos varonis dos soberbos Romanos.—Não
havia engranar-se: era um Espanhol ou um Siciliano.
Ao certo contudo ninguém sabia quem era o Conde Tancredo.—Donde
vinha, onde ia, como vivia—calava-o ele.—Sua vida era um mistério—para
uns era um doidejar de mancebo leviano, rebuçado nas orgias’ dormindo
nos haréns venais do lupanar, embriagado nos seios torneados na fluidez
de cores de um corpo que freme nos abraços seminus das cinturas acetinadas
no fresco dos cabelos das Frinés belas.
Para outros essa vida louca e perdulária—o isolado de seu palácio
fechado durante o dia, o frenesi dos banquetes, o tumultuar das ceias fascinantes
pelo quedar das horas mortas—a figura desse palácio mudo, como
um fantasma de pedra, durante o dia—e refletindo de noite nas águas
esverdeadas seus vinte olhos de luz—parecia acobertar algum crime: era
um tapete de felpos séricos e flores turcas sobre uma nódoa
ainda úmida de sangue.
Era contudo de nobre raça, uma dessas feições onde logo
se adivinha a nobreza de herança—frontes soberbas onde melhor
que nos brasões heráldicos se lê o senho do orgulho dinástico.
O Conde Tancredo era assim.
Era um homem de estranhas usanças.—Muitos o viram passar do
riso mais alegre à spleenalgia mais sombrosa, do volver mais doce de
olhos ao cintilar injetado de sangue de um olhar de cólera muda.
E quando dormia—muitas vezes a amante das noites se erguera de seu
lado, fria e pávida,—ao ouvir os gemidos cavernosos de seu peito,
e os gritos de raiva rangendo entre seus dentes cerrados—no volver da
mão negra de um pesadelo.
Isso que uns chamavam sonambulismo acordava em outros idéias de que
a palidez desse homem podia ser um crime, e seus pesadelos um remorso.
IV
O mancebo desaparecia às vezes do balcão da sacada —
e suas passadas ressoavam pelo salão escuro—outras reaparecia
na janela, estendendo olhares ávidos aos aléns do Canal.
O Árabe sentado no mármore da escadaria, parecia também
esperar.
Disséreis contudo que a pessoa que ele esperava parecia não
ser a mesma que inquietava tanto o Conde. A direção de seus
olhares era oposta inteiramente.
Cada vez, contudo, que o rosto do mancebo embranquecido pela chuva de luzes
lívidas da lua aparecia na sombra de seu manto negro, como no fundo
escuro de um painel de Téniers ou Van-Dyck—a fronte escura do
escravo se erguia—seu olhar brilhava mais ardente —e ele parecia
dizer:
—Ele espera também!
V
A noite ia límpida e bela—as virações corriam
medo no deslizar das ondas. Fazia-se tarde—só se ouvia às
vezes o estalar das águas no cair dos remos reluzentes de umidez, dalguma
gôndola solitária, passando muda e negra nas águas.
A noite ia-se límpida e bela.—O ar respirava a bafagem dos laranjais
em flor. Entre o ramalhar das folhas, ao sussurrar das ondas, exalava-se às
vezes a cantilena monótona do barqueiro—ou o descante ao longe
de alguma barca iluminada.
VI
O céu se escurecia sob o crepe das nuvens que avultavam no horizonte,
em ondas negras. A lua sumira seu fantasma ebúrneo sob as cortinas
da escuridão.
Gotas mornas de chuva começavam a cair…
Davam nesse instante 10 horas em S. Marcos.
Os dois vultos—o da janela e o da escadaria
permaneciam ansiosos.
Uma gôndola escura dobrou o canal—e aproximava-se lenta como
uma ave negra aquática, com a cabeça sob a asa, resvalando em
seu dormir pelo vidro das águas.
A gôndola vinha sempre—o mancebo permanecia imóvel na
escada.
A gôndola parou no cais defronte do palácio
—Aí—aí—disse uma voz argentina de mulher.
.
O conde ficou imóvel como bebendo a doçura daquela voz—o
Árabe como despertado por ela foi até o cais…
Nesse momento uma forma peregrina de mulher saltava em terra com seus pés
mimosos nuns mágicos e curtos sapatos de cetim, envolta numa manta
de seda, cujas franjas lhe cobriam o rosto como uma máscara, mas não
tanto que algumas doiradas mechas de cabelo lhe não sobressaíssem
entre elas…
—É ela—disse o moço pálido, desaparecendo
da janela.
—Não é ela—murmurou em sua língua bárbara
o selvagem filho do deserto, voltando a embuçar-se no albornoz e a
recostar a fronte escura no frio das pilastras de pedra.
—Ide—disse ela ao gondoleiro, atirando-lhe uma moeda de oiro.
. .
A gôndola partia quando ela passava o peristilo do palácio.
—Adeus, Ali—disse ela, batendo-lhe com o leque. —Não
falas, estátua?
A face queimada do estrangeiro não se moveu.
Sonhava? Esperava?
Talvez ambas as coisas.
FIM
Poeta, O
Un souvenir heureux est peut-être sur terre
Plus vrai que le bonheur.
A. DE MUSSET
Era uma noite: — eu dormia…
E nos meus sonhos revia
As ilusões que sonhei!
E no meu lado senti…
Meu Deus! por que não morri?
Por que no sono acordei?
No meu leito adormecida,
Palpitante e abatida,
A amante de meu amor,
Os cabelos recendendo
Nas minhas faces correndo,
Como o luar numa flor!
Senti-lhe o colo cheiroso
Arquejando sequioso
E nos lábios, que entreabria
Lânguida respiração,
Um sonho do coração
Que suspirando morria!
Não era um sonho mentido:
Meu coração iludido
O sentiu e não sonhou…
E sentiu que se perdia
Numa dor que não sabia…
Nem ao menos a beijou!
Soluçou o peito ardente,
Sentiu que a alma demente
Lhe desmaiava a tremer,
Embriagou-se de enleio,
No sono daquele seio
Pensou que ele ia morrer!
Que divino pensamento,
Que vida num só momento
Dentro do peito sentiu…
Não sei!… Dorme no passado
Meu pobre sonho doirado…
Esperança que mentiu…
Sabem as noites do céu
E as luas brancas sem véu
Os prantos que derramei!
Contem do vale as florinhas
Esse amor das noite minhas!
Elas sim… que eu não direi!
E se eu tremendo, senhora,
Viesse pálido agora
Lembrar-vos o sonho meu,
Com a fronte descorada
E com a voz sufocada
Dizer-vos baixo: — Sou eu!
Sou eu! que não esqueci
A noite que não dormi,
Que não foi uma ilusão!
Sou eu que sinto morrer
A esperança de viver…
Que o sinto no coração!
Riríeis das esperanças,
Das minhas loucas lembranças,
Que me desmaiam assim?
Ou então, de noite, a medo
Choraríeis em segredo
Uma lágrima por mim!
Por mim?
Teus negros olhos uma vez fitando
Senti que luz mais branda os acendia,
Pálida de langor, eu vi, te olhando,
Mulher do meu amor, meu serafim,
Esse amor que em teus olhos refletia…
Talvez! — era por mim?
Pendeste, suspirando, a face pura,
Morreu nos lábios teus um ai perdido…
Tão ébrio de paixão e de ventura!
Mulher de meu amor, meu serafim,
Por quem era o suspiro amortecido?
Suspiravas por mim?…
Mas… eu sei!… ai de mim? Eu vi na dança
Um olhar que em teus olhos se fitava…
Ouvi outro suspiro… d’esperança!
Mulher do meu amor, meu serafim,
Teu olhar, teu suspiro que matava…
Oh! não eram por mim.
Por que mentias?
Por que mentias, leviana e bela,
Se minha face pálida sentias
Queimada pela febre?… e minha vida
Tu vias desmaiar… por que mentias?
Acordei da ilusão! a sós morrendo
Sinto na mocidade as agonias.
Por tua causa desespero e morro…
Leviana sem dó, por que mentias?
Sabe Deus se te amei! sabem as noites
Essa dor que alentei, que tu nutrias!
Sabe este pobre coração que treme
Que a esperança perdeu porque mentias!
Vê minha palidez: a febre lenta…
Este fogo das pálpebras sombrias…
Pousa a mão no meu peito… Eu morro! eu morro!
Leviana sem dó, por que mentias?
Seio de virgem
Quand on te voit, il vient à maints
Une envie dedans tes mains
De te tâter, de te tenir…
CLÉMENT MAROT
O que sonho noite e dia,
E à alma traz-me poesia
E me torna a vida bela…
O que num brando roçar
Faz meu peito se agitar,
É o teu seio, donzela!
Oh! quem pintara o cetim
Desses limões de marfim,
Os leves cerúleos veios
Na brancura deslumbrante
E o tremido de teus seios?
Quando os vejo… de paixão
Sinto pruridos na mão
De os apalpar e conter…
Sorriste do meu desejo?
Loucura! bastava um beijo
Para neles se morrer!
Minhas ternuras, donzela,
Voltei-as à forma bela
Daqueles frutos de neve…
Ai!… duas cândidas flores
Que o pressentir dos amores
Faz palpitarem de leve.
Mimosos seios, mimosos,
Que dizem voluptuosos:
"Amai, poetas, amai!
Que misteriosas venturas
Dormem nessas rosas puras
E se acordarão num ai!"
Que lírio, que nívea rosa,
Ou camélia cetinosa
Tem uma brancura assim?
Que flor da terra ou do céu,
Que valha do seio teu
Esse morango ou rubim?
Quantos encantos sonhados
Sinto estremecer velados
Por teu cândido vestido!
Sem ver teu seio, donzela,
Suas delícias revela
O poeta embevecido!
Donzela, feliz do amante
que teu seio palpitante
Seio d’esposa fizer!
Que dessa forma tão pura
Fizer com mais formosura
Seio de bela mulher!
Feliz de mim… porém não!…
Repouse teu coração
Da pureza no rosal!
Tenho no peito um aroma
Que valha a rosa que assoma
No teu seio virginal?…
Só um olhar por compaixão de peço
Só um olhar por compaixão te peço,
Um olhar…. mas bem lânguido, bem terno…
…………………………………………………………………
Quero um olhar que me arrebate o siso,
Me queime o sangue, m’escureça os olhos,
Me torne delirante!
ALMEIDA FREITAS
Sur votre main jamais votre front ne se pose,
Brûlant, chargé d’ennuis, ne pouvant soutenir
Le poids d’un douloureux et cruel souvenir;
Votre coeur virginal en lui-même repose.
Th. Gautier
Ricorditi di me……………
DANTE, Purgatório
Quando falo contigo, no meu peito
Esquece-me esta dor que me consome:
Talvez corre o prazer nas fibras d’alma:
E eu ouso ainda murmurar teu nome!
Que existência, mulher! se tu souberas
A dor de coração do teu amante,
E os ais que pela noite, no silêncio,
Arquejam no seu peito delirante!
E quando sofre e padeceu… e a febre
Como seus lábios desbotou na vida…
E sua alma cansou na dor convulsa
E adormeceu na cinza consumida!
Talvez terias dó da mágoa insana
Que minh’alma votou ao desalento…
E consentirás, ó virgem dos amores,
Descansar-me no seio um só momento!
Sou um doudo talvez de assim amar-te,
De murchar minha vida no delírio…
Se nos sonhos de amor nunca tremeste,
Sonhando meu amor e meu martírio…
E não pude, febril e de joelhos,
Com a mente abrasada e consumida,
Contar-te as esperanças do meu peito
E as doces ilusões de minha vida!
Oh! quando eu te fitei, sedento e louco,
Teu olhar que meus sonhos alumia,
Eu não sei se era vida o que minh’alma
Enlevava de amor e adormecia!
Oh! nunca em fogo teu ardente seio
A meu peito juntei que amor definha!
A furto apenas eu senti medrosa
Tua gélida mão tremer na minha!…
Tem pena, anjo de Deus! deixa que eu sinta
Num beijo esta minh’alma enlouquecer
E que eu viva de amor nos teus joelhos
E morra no teu seio o meu viver!
Sou um doudo, meu Deus! mas no meu peito
Tu sabes se uma dor, se uma lembrança
Não queria calar-se a um beijo dela,
Nos seios dessa pálida criança!
Se num lânguido olhar no véu de gozo
Os olhos de Espanhola a furto abrindo
Eu não tremia… o coração ardente
No peito exausto remoçar sentindo!
Se no momento efêmero e divino
Em que a virgem pranteia desmaiando
E a c’roa virginal a noiva esfolha,
Eu queria a seus pés morrer chorando!
Adeus! Rasgou-se a página saudosa
Que teu porvir de amor no meu fundia,
Gelou-se no meu sangue moribundo
Essa gota final de que eu vivia!
Adeus, anjo de amor! tu não mentiste!
Foi minha essa ilusão e o sonho ardente:
Sinto que morrerei… tu, dorme e sonha
No amor dos anjos, pálido inocente!
Mas um dia… se a nódoa da existência
Murchar teu cálix orvalhoso e cheio,
Flor que respirei, que amei sonhando,
Tem saudade de mim, que eu te pranteio!
Solfieri
…Yet one kiss on your pale clay
And those lips once so warm – my heart! My heart.
Byron, Cain..
Sabeis-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição:
na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia; no leito da vendida
se pendura o crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo
que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo
lascivo à embriaguez da crença
Era em Roma. Uma noite, a lua ia bela como vai ela no verão por aquele
céu morno. O fresco das águas se exalava como um suspiro do
leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de ***.
As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se faziam ermas
e a lua de sonolenta, se escondia no leito das nuvens. Uma sombra de mulher
apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca. – A
face daquela mulher era como de uma estátua pálida à
lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam
fios de lágrimas.
Eu me encostei à aresta de um palácio. A visão desapareceu
no escuro da janela… e daí um canto se derramava. Não era
só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi,
um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento à
noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte.
Depois, o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se
havia alguém nas ruas. Não viu ninguém: saiu. Eu segui-a.
A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu e a chuva caía
às gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces caírem grossas
lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos do órfão.
Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim, ela parou; estávamos
num campo.
Aqui, ali, além, eram cruzes que se erguiam entre o ervaçal.
Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da
noite.
Não sei se adormeci: sei, apenas, que quando amanheceu achei-me a
sós no cemitério. Contudo, a criatura pálida não
fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas
junto a uma cruz.
O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre.
No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam
aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo…
Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres, nada me saciava; no
sono da saciedade me vinha aquela visão…
Uma noite e após uma orgia, eu deixara dormida no leito a bela condessa
Barbora. Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com
a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo
ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não
sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça
me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa:
aos lábios daquela criatura eu bebera até à última
gota do vinho do deleite…
Quando dei acordo de mim, estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus
raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios
batiam num caixão entreaberto. Abri-o. Era o de uma moça. Aquele
branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida
e embaçada, o vidrento dos olhos mal-apertados… Era uma defunta!
E aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida… Era
o anjo do cemitério! Cerrei as portas da igreja que, ignoro porque,
eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora
do caixão. Pesava como chumbo…
Sabeis a história de Maria Stuart degolada e do algoz, "do cadáver
sem cabeça e do homem sem coração", como a conta
Brantôme? – Foi uma idéia singular, a que eu tive. Tomei-a no
colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim. Rasguei-lhe
o sudário, despi-lhe o véu e a capela, como o noivo os despe
à noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. A
luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores
antigos. O gozo foi fervoroso – cevei-lhe em perdição aquela
vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele
calor de meu peito, à febre de meus lábios, à convulsão
de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito, abriu
os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa,
apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços
azulados… Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele
abraço havia, contudo, alguma coisa de horrível. O leito de
lajes, onde eu passara uma hora de embriaguez, me resfriava. Pude, a custo,
soltar-me naquele aperto do peito dela… Nesse instante, ela acordou…
Nunca ouvistes falar de catalepsia? É um pesadelo horrível
aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que
sentem-se os membros tolhidos e as faces banhadas de lágrimas alheias,
sem poder revelar a vida!
A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar, desmaiara. Embucei-me
na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário, como uma
criança. Ao aproximar-me da porta, topei num corpo. Abaixei-me e olhei:
era algum coveiro do cemitério da igreja, que aí dormira de
ébrio, esquecido de fechar a porta…
Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha.
– Que levas aí?
A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrão.
– É minha mulher, que vai desmaiada…
– Uma mulher? Mas, essa roupa branca e longa? Serás, acaso, roubador
de cadáveres?
Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.
– É uma defunta
Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. – Era a vida,
ainda.
– Vede – disse eu.
O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram
pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um beijo… o punhal já
estava nu em minhas mãos frias…
– Boa-noite, moço. Podes seguir – disse ele.
Caminhei. – Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo e eu sentia que
a moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem,
corri com mais esforço…
Quando eu passei a porta, ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca
foi um grito de medo…
Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos, meus companheiros,
que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse.
Fechei a moça no meu quarto e abri.
Meia hora depois eu os deixava na sala, bebendo ainda. A turvação
da embriaguez fez que não notassem a minha ausência.
Quando entrei no quarto da moça, vi-a erguida. Ria de um rir convulso,
como a insânia, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor
ouvi-la.
Dois dias e duas noites levou ela de febre, assim.
Não houve sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu
depois de duas noites e dois dias de delírio.
À noite, saí. Fui ter com um estatuário que trabalhava
perfeitamente em cera e paguei-lhe uma estátua dessa virgem.
Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto
e, com as mãos, cavei aí um túmulo. Tomei-a, então,
pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito, muda e fria,
beijei-a e cobri-a, adormecida no sono eterno, com o lençol de seu
leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele,
Um ano, – noite a noite – dormi sobre as lajes que a cobriam… Um dia, o
estatuário me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo…
– Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste
pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te disse que
era uma virgem que dormia?
– E quem era essa mulher, Solfieri?
– Quem era? Seu nome?
– Quem se importa com uma palavra quando sente
que o vinho queima assaz os lábios? Quem pergunta o nome da prostituta
com quem dormiu e sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele mister
por escrever-lho na lousa?
Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa, quando um
dos convivas tomou-o pelo braço.
– Solfieri, não é um conto, isso tudo?
– Pelo inferno, que não! Por meu pai, que era conde e bandido! Por
minha mãe que era a bela Messalina das ruas! Pela perdição
que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus
pés na sua cova de terra, eu vo-lo juro! – guardei-lhe como amuleto
a capela de defunta. Ei-la!
Abriu a camisa e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.
– Vedes-la? Murcha e seca, como o crânio dela.
Fonte:
O Conto Fantástico
Panorama do Conto Brasileiro vol. 8
Editora Civilização Brasileira S. A.
1959
Sombra de D. Juan
A dream that was not at all a dream.
LORD BYRON, Darkness
I
Cerraste enfim as pálpebras sombrias!…
E a fronte esverdeou da morte à sombra,
Como lâmpada exausta!
E agora?… no silêncio do sepulcro
Sonhas o amor… os seios de alabastro
Das lânguidas amantes?
E Haidéia, a virgem, pela praia errando,
Aos murmúrios do mar que lhe suspira
Com incógnito desejo
Te sussurra delícias vaporosas…
E o formosoestrangeiro adormecido
Entrebeija tremendo?
Ou a pálida fronte libertina
Relembra a tez, o talhe voluptuoso
Da oriental seminua?
Ou o vento da noite em teus cabelos
Sussurra e lembra do passado as nódoas
No túmulo sem letras?
Ergue-te, libertino! eu não te acordo
Para que a orgia te avermelhe a face
Que a morte amarelou…
Nem para jogo e noites delirantes,
E do ouro a febre e da perdida os lábios
E a convulsão noturna!
Não, ó belo Espanhol! Venho sentar-me
À borda do teu leito, porque a febre
Minha insônia devora…
Porque não durmo quando o sonho passa
E do passado o manto profanado
Me roça pela face!
Quero na sombra conversar contigo,
Quero me digas tuas noites breves,
As febres e as donzelas
Que no fogo do viver murchaste ao peito!
Ergue-te um pouco da mortalha branca,
Acorda, Don Juan!
Contigo velarei: do teu sudário
Nas dobras negras deporei a fronte,
Como um colo de mãe…
E como leviano peregrino
Da vida as águas saudarei sorrindo
Na extrema do infinito!
E quando a ironia regelar-se
E a morte me azular os lábios frios
E o peito emudecer…
No vinho queimador, no golo extremo,
Num riso… à vida brindarei zombando
E dormirei contigo!
II
Mas não: não veio na mortalha envolto
Don Juan, seminu, com rir descrido,
Zombando do passado,
Só além… onde as folhas alvejavam
Ao luar que banhava o cemitério,
Vi um vulto na sombra.
Cantava: ao peito o bandolim saudoso
Apertava, qual nu e perfumado
A Madona seu filho;
E a voz do bandolim se repassava…
Mais languidez bebia ressoando
No cavernoso peito.
Do sombrero despiu a fronte pálida,
Ergueu à lua a palidez do rosto
Que lágrimas enchiam…
Cantava: eu o escutei… amei-lhe o canto,
Com ele suspirei, chorei com ele:
— O vulto era Don Juan!
III
A CANÇÃO DE DON JUAN
"Ó faces morenas! ó lábios de flor!
Ouvi-me a guitarra que trina louçã,
Vos tragou meu peito, meus beijos de amor
Ó lábios de flor,
Eu sou Don Juan!
"Nas brisas da noite, no frouxo luar,
Nos beijos do vento, na fresca manhã
Dizei-me: não vistes, num sonho passar,
Ao frouxo luar,
Febril Don Juan?
"Acordem, acordem, ó minhas donzelas,
A brisa nas águas lateja de afã!
Meus lábios têm fogo e as noites são belas
Ó minhas donzelas,
Eu sou Don Juan!
"Ai! nunca sentistes o amor d’espanhol!
Nos lábios mimosos de flor de romã
Os beijos que queimam no fogo do sol!
Eu sou o espanhol:
Eu sou Don Juan!
"Que amor, que sonhos no febril passado!
Que tantas ilusões no amor ardente!
E que pálidas faces de donzela
Que por mim desmaiaram docemente!
"Eu era o vendaval que às flores puras
Do amor nas manhãs o lábio abria!
Se murchei-as depois… é que espedaça
As flores da montanha a ventania!
"E tão belas, meu Deus! as níveas pérolas
Mergulhei-as no lodo uma por uma,
De meus sonhos de amor nada me resta!
Em negras ondas só vermelha escuma!
"Anjos que desflorei! que desmaiados
Na torrente lancei do lupanar!
Crianças que dormiam no meu peito
E acordaram da mágoa ao soluçar!
"E não tremem as folhas no sussurro,
E as almas não palpitam-se de afã,
Quando entre a chuva rebuçado passa
Saciado de beijos Don Juan?"
IV
Como virgem que sente esmorecer
Num hálito de amor a vida bela,
Que desmaia, que treme…
Como virgem nas lentas agonias
Os seus olhos azuis aos céus erguendo
Co’as mãos níveas no seio…
Pressentindo que o sangue lhe resfria
E que nas faces pálidas a beija
O anjo da agonia…
Exala ainda o canto harmonioso…
Casuarina pendida onde sussurra
O anoitecer da vida…
Assim nos lábios e nas cordas meigas
Do palpitante bandolim a mágoa
Gemia como o vento…
Como o cisne que bóia, que se perde…
Na lagoa da morte geme ainda
O cântico saudoso!
Mas depois no silêncio uma risada
Convulsiva arquejou… rompeu as cordas
Das ternas assonias,
Rompeu-as e sem dó… e noutras fibras
Corria os dedos descuidoso e frio
Salpicando-as d’escárnio…
V
"Os homens semelham as modas de um dia,
E velha e passada
A roupa manchada…
Porém quem diria
Que é moda de um dia,
Que é velho Don Juan?!
"Os anos que passem nos negros cabelos
Branqueiem de neve
As c’roas que teve!
Dizei, anjos belos
De negros cabelos,
Se é velho Don Juan!
"E quando no seio das trêmulas belas
De noite suspira
E nuta e delira…
Que digam pois elas
As trêmulas belas
Se é velho Don Juan!
"Que o diga a sultana, a violenta espanhola,
A loira alemã
E grega louçã…
Que o diga a espanhola
Que a noite consola…
Se é velho Don Juan!
"…………………………………………………..
……………………………………………………."
VI
Era longa a canção… Cantou; e o vento
Nos ciprestes com ele esmorecia!
Pendeu a fronte, os lábios
Emudeceram… como cala o vento
Do trópico na podre calmaria…
Cismava Don Juan.
Soneto do Anjo
Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!
Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!
Era mais bela! o seio palpitando…
Negros olhos as pálpebras abrindo…
Formas nuas no leito resvalando…
Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti — as noites eu velei chorando,
Por ti — nos sonhos morrerei sorrindo!
Soneto dos Moços Perdidos
Um mancebo no jogo se descora,
Outro bêbedo passa noite e dia,
Um tolo pela valsa viveria,
Um passeia a cavalo, outro namora.
Um outro que uma sina má devora
Faz das vidas alheias zombaria,
Outro toma rapé, um outro espia…
Quantos moços perdidos vejo agora!
Oh! não proíbam pois ao meu retiro
Do pensamento ao merencório luto
A fumaça gentil por que suspiro.
Numa fumaça o canto d’alma escuto…
Um aroma balsâmico respiro,
Oh! deixai-me fumar o meu charuto!
Soneto da Preguiça
Ao sol do meio-dia eu vi dormindo
Na calçada da rua um marinheiro,
Roncava a todo o pano o tal brejeiro
Do vinho nos vapores se expandindo!
Além um Espanhol eu vi sorrindo,
Saboreando um cigarro feiticeiro,
Enchia de fumaça o quarto inteiro…
Parecia de gosto se esvaindo!
Mais longe estava um pobretão careca
De uma esquina lodosa no retiro
Enlevado tocando uma rabeca!
Venturosa indolência! não deliro
Se morro de preguiça… o mais é seca!
Desta vida o que mais vale um suspiro?
Soneto da Armida
Os quinze anos de uma alma transparente,
O cabelo castanho, a face pura,
Uns olhos onde pinta-se a candura
De um coração que dorme, inda inocente.
Um seio que estremece de repente
Do mimoso vestido na brancura,
A linda mão na mágica cintura,
E uma voz que inebria docemente.
Um sorriso tão angélico! tão santo
E nos olhos azuis cheios de vida
Lânguido véu de involuntário pranto!
É esse o talismã, é essa a Armida,
O condão de meus últimos encantos,
A visão de minh’alma distraída!
Soneto da Morte
Já da morte o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!
Do leito embalde no macio encosto
Tento o sono reter!… já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece…
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!
O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.
Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!
Soneto da Virgem
Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós — e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela…
Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!
Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!
Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando…
Cheio de amores! e dormir solteiro!
Soneto da Dor
Perdoa-me, visão dos meus amores,
Se a ti ergui meus olhos suspirando!…
Se eu pensava num beijo desmaiando
Gozar contigo uma estação de flores!
De minhas faces os mortais palores,
Minha febre noturna delirando,
Meus ais, meus tristes ais vão revelando
Que peno e morro de amorosas dores…
Morro, morro por ti! na minha aurora
A dor do coração, a dor mais forte,
A dor de um desengano me devora…
Sem que última esperança me conforte,
Eu — que outrora vivia! — eu sinto agora
Morte no coração, nos olhos morte!
Soneto da Mãe
Ó páginas da vida que eu amava,
Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado!…
Ardei, lembranças doces do passado!
Quero rir-me de tudo que eu amava!
E que doido que eu fui! como eu pensava
Em mãe, amor de irmã! em sossegado
Adormecer na vida acalentado
Pelos lábios que eu tímido beijava!
Embora — é meu destino. Em treva densa
Dentro do peito a existência finda…
Pressinto a morte na fatal doença!…
A mim a solidão da noite infinda!
Possa dormir o trovador sem crença…
Perdoa, minha mãe — eu te amo ainda!
Soneto do Beijo
Um beijo ainda! os lábios teus, donzela,
Nos meus se pousem — junto de teu seio
Que treme-te e palpita em doce enleio
Beba eu o amor que teu olhar revela. —
Vem ainda uma vez! és pura e bela,
Arfa-te o seio, amor, n’olhos te leio…
Que importa o mais? vem, anjo, sem receio!
Um beijo em tua face! ind’outro nela!
Aperta-me ao teu colo — assim — um beijo
Desses em que ao céu um’alma se transporta!…
— E o mundo?… — Um louco. — E o crime? — Só
te vejo.
— Mas quando a vida em nós gelou-se morta
— E o inferno? — Contigo eu o desejo.
— E Deus? — Meu Deus és tu. — E o céu? —
Que importa!
Soneto do Amigo
Perdoa se hoje em verso rude não cadente
Ledos os sentimentos de minha alma exprimo:
Tu verás que na arte de poeta eu não primo
Porém verás que só digo o que meu peito sente.
Mas os teus anos que me alegram a mente,
Triste pensamento me faz vir de imo
De meu peito alegre. De ti que eu tanto estimo
Para o ano, em igual dia hei de estar ausente!
Mas se de ti separar-me a extensão tão imensa,
A grande distância que entre nós estiver
Lembrança de ti não me fará perder.
Faz que tua alma a distância também vença,
Neste dia entre os amigos não te esquece
Daquele em quem tua lembrança não fenece.
Sonhando
Hier, la nuit d’été, que nous prêtait ses voiles,
Était digne de toi, tant elle avait d’étoiles!
VICTOR HUGO
Na praia deserta que a lua branqueia,
Que mimo! que rosa! que filha de Deus!
Tão pálida… ao vê-la meu ser devaneia,
Sufoco nos lábios os hálitos meus!
Não corras na areia,
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
A praia é tão longa! e a onda bravia
As roupas de gaza te molha de escuma…
De noite, aos serenos, a areia é tão fria…
Tão úmido o vento que os ares perfuma!
És tão doentia…
Não corras assim…
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
A brisa teus negros cabelos soltou,
O orvalho da face te esfria o suor,
Teus seios palpitam — a brisa os roçou,
Beijou-os, suspira, desmaia de amor!
Teu pé tropeçou…
Não corras assim…
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
E o pálido mimo da minha paixão
Num longo soluço tremeu e parou,
Sentou-se na praia, sozinha no chão,
A mão regelada no colo pousou!
Que tens, coração
Que tremes assim?
Cansaste, donzela?
Tem pena de mim!
Deitou-se na areia que a vaga molhou.
Imóvel e branca na praia dormia;
Mas nem os seus olhos o sono fechou
E nem o seu colo de neve tremia…
O seio gelou?…
Não durmas assim!
O pálida fria,
Tem pena de mim!
Dormia: — na fronte que níveo suar…
Que mão regelada no lânguido peito…
Não era mais alvo seu leito do mar,
Não era mais frio seu gélido leito!
Nem um ressonar…
Não durmas assim…
O pálida fria,
Tem pena de mim!
Aqui no meu peito vem antes sonhar
Nos longos suspiros do meu coração:
Eu quero em meus lábios teu seio aquentar,
Teu colo, essas faces, e a gélida mão…
Não durmas no mar!
Não durmas assim.
Estátua sem vida,
Tem pena de mim!
E a vaga crescia seu corpo banhando,
As cândidas formas movendo de leve!
E eu vi-a suave nas águas boiando
Com soltos cabelos nas roupas de neve!
Nas vagas sonhando
Não durmas assim…
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
E a imagem da virgem nas águas do mar
Brilhava tão branca no límpido véu…
Nem mais transparente luzia o luar
No ambiente sem nuvens da noite do céu!
Nas águas do mar
Não durmas assim…
Não morras, donzela,
Espera por mim!
Spleen e "charutos"
I
Solidão
Nas nuvens cor de cinza do horizonte
A lua amarelada a face embuça;
Parece que tem frio e, no seu leito,
Deitou, para dormir, a carapuça.
Ergueu-se… vem da noite a vagabunda
Sem xale, sem camisa e sem mantilha,
Vem nua e bela procurar amantes…
— É doida por amor da noite a filha.
As nuvens são uns frades de joelhos,
Rezam adormecendo no oratório…
Todos têm o capuz e bons narizes
E parecem sonhar o refeitório.
As árvores prateiam-se na praia,
Qual de uma fada os mágicos retiros…
Ó lua, as doces brisas que sussurram
Coam dos lábios teus como suspiros!
Falando ao coração… que nota aérea
Deste céu, destas águas se desata?
Canta assim algum gênio adormecido
Das ondas mortas no lençol de prata?
Minh’alma tenebrosa se entristece,
É muda como sala mortuária…
Deito-me só e triste sem ter fome
Vendo na mesa a ceia solitária.
Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo,
Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem ceiar comigo!
II
Meu Anjo
Meu anjo tem o encanto, a maravilha,
Da espontânea canção dos passarinhos…
Tem os seios tão alvos, tão macios
Como o pêlo sedoso dos arminhos.
Triste de noite na janela a vejo
E de seus lábios o gemido escuto.,,
É leve a criatura vaporosa
Como a frouxa fumaça de um charuto.
Parece até que sobre a fronte angélica
Um anjo lhe depôs coroa e nimbo…
Formosa a vejo assim entre meus sonhos
Mais bela no vapor do meu cachimbo.
Como o vinho espanhol, um beijo dela
Entorna ao sangue a luz do paraíso…
Dá morte num desdém, num beijo vida
E celestes desmaios num sorriso!
Mas quis a minha sina que seu peito
Não batesse por mim nem um minuto,…
E que ela fosse leviana e bela
Como a leve fumaça de um charuto!
III
Vagabundo
Eat, drink, and love; what can the rest avail us?
BYRON, DON JUAN.
Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso,
Nas noites de verão namoro estrelas,
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso…
Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas…
E quem vive de amor não tem pobreza.
Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando, à noite, na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.
Namoro e sou feliz nos meus amores,
Sou garboso e rapaz… Uma criada
Abrasada de amor por um soneto,
Já um beijo me deu subindo a escada…
Oito dias lá vão que ando cismando
Na donzela que ali defronte mora…
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora…
Tenho por meu palácio as longas ruas,
Passeio a gosto e durmo sem temores…
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.
O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta
E a preguiça a mulher por quem suspiro.
Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua…
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.
Sinto-me um coração de lazzaroni,
Sou filho do calor, odeio o frio,
Não creio no diabo nem nos santos…
Rezo a Nossa Senhora e sou vadio!
Ora, se por aí alguma bela
Bem dourada e amante da preguiça,
Quiser a nívea mão unir à minha
Há de achar-me na Sé, domingo, à missa.
IV
A Lagartixa
A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida,
Tu és o sol e eu sou a lagartixa.
Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito…
Mas teu néctar de amor jamais se esgota,
Travesseiro não há como teu peito.
Posso agora viver: para coroas
Não preciso no prado colher flores,
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis de teus amores.
Vale todo um harém a minha bela,
Em fazer-me ditoso ela capricha…
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa.
V
Luar de Verão
O que vês, trovador? — Eu vejo a lua
Que sem lavor a face ali passeia…
No azul do firmamento inda é mais pálida
Que em cinzas do fogão uma candeia.
O que vês, trovador? — No esguio tronco
Vejo erguer-se o chinó de uma nogueira…
Além se entorna a luz sobre um rochedo,
Tão liso como um pau de cabeleira.
Nas praias lisas a maré enchente
S’espraia cintilante d’ardentia…
Em vez de aromas as douradas ondas
Respiram efluviosa maresia!
O que vês, trovador? — No céu formoso
Ao sopro dos favônios feiticeiros
Eu vejo — e treino de paixão ao vê-las —
As nuvens a dormir, como carneiros.
E vejo além, na sombra do horizonte,
Como viúva moça envolta em luto,
Brilhando em nuvem negra estrela viva
Como na treva a ponta de um charuto.
Teu romantismo bebo, ó minha lua,
A teus raios divinos me abandono,
Torno-me vaporoso… e só de ver-te
Eu sinto os lábios meus se abrir de sono.
VI
O poeta moribundo
Poetas! amanhã ao meu cadáver
Minha tripa cortai mais sonorosa!…
Façam dela uma corda e cantem nela
Os amores da vida esperançosa!
Cantem esse verão que me alentava…
O aroma dos currais, o bezerrinho
As aves que na sombra suspiravam
E os sapos que cantavam no caminho!
Coração, por que tremes? Se esta lira
Nas minhas mãos sem força desafina,
Enquanto ao cemitério não te levam,
Casa no marimbau a alma divina!
Eu morro qual nas mãos da cozinheira
O marreco piando na agonia…
Como o cisne de outrora… que gemendo
Entre os hinos de amor se enternecia.
Coração, por que tremes? Vejo a morte,
Ali vem lazarenta e desdentada…
Que noiva!… E devo então dormir com ela?
Se ela ao menos dormisse mascarada!
Que ruínas! que amor petrificado!
Tão antediluviano e gigantesco!
Ora, façam idéia que ternuras
Terá essa lagarta posta ao fresco!
Antes mil vezes que dormir com ela,
Que dessa fúria o gozo, amor eterno
Se ali não há também amor de velha
Dêem-me as caldeiras do terceiro Inferno!
No inferno estão suavíssimas belezas,
Cleópatras, Helenas, Eleonoras…
Lá se namora em boa companhia,
Não pode haver inferno com Senhoras!
Se é verdade que os homens gozadores,
Amigos de no vinho ter consolos,
Foram com Satanás fazer colônia,
Antes lá que do Céu sofrer os tolos!
Ora! e forcem um’alma qual a minha,
Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça,
A cantar ladainha eternamente
E por mil anos ajudar a missa!
Tarde de outono
Un souvenir heureux est peut-être sur terre
Plus vrai que le bonheur.
ALFRED DE MUSSET
O POETA
Ó musa, por que vieste
E contigo me trouxeste
A vagar na solidão?
Tu não sabes que a lembrança
De meus anos de esperança
Aqui fala ao coração?
A SAUDADE
De um puro amor a lânguida saudade
É doce como a lágrima perdida,
Que banha no cismar um rosto virgem:
Volta o rosto ao passado e chora a vida.
O POETA
Não sabes o quanto dói
Uma lembrança que rói
A fibra que adormeceu?…
Foi neste vale que amei,
Que a primavera sonhei,
Aqui minh’alma viveu.
A SAUDADE
Pálidos sonhos do passado morto
É doce reviver mesmo chorando:
A alma refaz-se pura. Um vento aéreo
Parece que do amor nos vai roubando.
O POETA
Eu vejo ainda a janela
Onde, à tarde, junto dela
Eu lia versos de amor…
Como eu vivia d’enleio
No bater daquele seio,
Naquele aroma de flor!
Creio vê-la inda formosa,
Nos cabelos uma rosa,
De leve a janela abrir…
Tão bela, meu Deus, tão bela!
Por que amei tanto, donzela,
Se devias me trair?
A SAUDADE
A casa está deserta. A parasita
Nas paredes estampa negra cor,
Os aposentos o ervaçal povoa,
A porta é franca… Entremos, trovador!
O POETA
Derramai-vos, prantos meus!
Dai-me mais prantos, meu Deus!
Eu quero chorar aqui…
Em que sonhos de ebriedade
No arrebol da mocidade
Eu nesta sombra dormi!
Passado, por que murchaste?
Ventura, por que passaste
Degenerando em saudade?
Do estio secou-se a fonte,
Só ficou na minha fronte
A febre da mocidade.
A SAUDADE
Sonha, poeta, sonha! Ali sentado
No tosco assento da janela antiga,
Apóia sobre a mão a face pálida,
Sorrindo — dos amores à cantiga.
O POETA
Minh’alma triste se enluta,
Quando a voz interna escuta
Que blasfema da esperança…
Aqui tudo se perdeu,
Minha pureza morreu
Com o enlevo de criança!
Ali, amante ditoso,
Delirante, suspiroso,
Eflúvios dela sorvi,
No seu colo eu me deitava…
E ela tão doce cantava!
De amor e canto vivi!
Na sombra deste arvoredo
Oh! quantas vezes a medo
Nossos lábios se tocaram!
E os seios, onde gemia
Uma voz que amor dizia,
Desmaiando me apertaram!
Foi doce nos braços teus,
Meu anjo belo de Deus,
Um instante do viver…
Tão doce, que em mim sentia
Que minh’alma se esvaía…
E eu pensava ali morrer!
A SAUDADE
É berço de mistério e d’harmonia
Seio mimoso de adorada amante:
A alma bebe nos sons que amor suspira
A voz, a doce voz de uma alma errante.
Tingem-se os olhos de amorosa sombra,
Os lábios convulsivos estremecem;
E a vida foge ao peito… apenas tinge
As faces que de amor empalidecem.
Parece então que o agitar do gozo
Nossos lábios atrai a um bem divino:
Da amante o beijo é puro como as flores
E dela a voz é doce como um hino.
Dizei-o vós, dizei, ternos amantes,
Almas ardentes que a paixão palpita,
Dizei essa emoção que o peito gela
E os frios nervos num espasmo agita.
Vinte anos! como tens doirados sonhos!
E como a névoa de falaz ventura
Que se estende nos olhos do poeta
Doira a amante de nova formosura!
O POETA
Que gemer! não me enganava!
Era o anjo que velava
Minha casta solidão?
São minhas noites gozadas
E as venturas choradas
Que vibram meu coração?
É tarde, amores, é tarde:
Uma centelha não arde
Na cinza dos seios meus…
Por ela tanto chorei,
Que mancebo morrerei…
Adeus, amores, adeus!
Tarde de verão
Viens!…
Que l’arbre pénétré de parfums et de chants,
……………………………………………………………
Et l’o,bre et le soleil, et l’onde et la verdure,
Et le rayonnement de toute la nature
Fassent épanouir comme une double fleur
La beauté sur ton front, et l’amour dans ton coeur!
V. HUGO
Como cheirosa e doce a tarde expira!
De amor e luz inunda a praia bela…
E o sol já roxo e trêmulo desdobra
Um íris furta-cor na fronte dela.
Deixai que eu morra só! enquanto o fogo
Da última febre dentro em mim vacila,
Não venham ilusões chamar-me à vida,
De saudades banhar a hora tranqüila!
Meu Deus! que eu morra em paz! não me coroem
De flores infecundas a agonia!
Oh! não doire o sonhar do moribundo
Lisonjeiro pincel da fantasia!
Exaurido de dor e d’esperança
Posso aqui respirar mais livremente,
Sentir ao vento dilatar-se a vida,
Como a flor da lagoa transparente!
Se ela estivesse aqui! no vale agora
Cai doce a brisa morna desmaiando:
Nos murmúrios do mar fora tão doce
Da tarde no palor viver amando!
Uni-la ao peito meu — nos lábios dela
Respirar uma vez, cobrando alento;
A divina visão de seus amores
Acordar o meu peito inda um momento!
Fulgura a minha amante entre meus sonhos,
Como a estrela do mar nas águas brilha,
Bebe à noite o favônio em seus cabelos
Aroma mais suave que a baunilha.
Se ela estivesse aqui! jamais tão doce
O crepúsculo o céu embelecera…
E a tarde de verão fora mais bela,
Brilhando sobre a sua primavera!
Da lânguida pupila de seus olhos
Num olhar de desdém entorna amores,
Como à brisa vernal na relva mole
O pessegueiro em flor derrama flores.
Árvore florescente desta vida,
Que amor, beleza e mocidade encantam,
Derrama no meu seio as tuas flores
Onde as aves do céu à noite cantam!
Vem! a areia do mar cobri de flores,
Perfumei de jasmins teu doce leito;
Podes suave, ó noiva do poeta,
Suspirosa dormir sobre meu peito!
Não tardes, minha vida! no crepúsculo
Ave da noite me acompanha a lira…
É um canto de amor… Meu Deus! que sonhos!
Era ainda ilusão — era mentira!
Terza rima
É belo dentre a cinza ver ardendo
Nas mãos do fumador um bom cigarro,
Sentir o fumo em névoas recendendo…
Do cachimbo alemão no louro barro
Ver a chama vermelha estremecendo
E até… perdoem… respirar-lhe o sarro!
Porém o que há mais doce nesta vida,
O que das mágoas desvanece o luto
E dá som a uma alma empobrecida,
Palavra d’honra, és tu, Ó meu charuto!
Toda aquela mulher tem a pureza
É belo dentre a cinza ver ardendo
Nas mãos do fumador um bom cigarro,
Sentir o fumo em névoas recendendo…
Do cachimbo alemão no louro barro
Ver a chama vermelha estremecendo
E até… perdoem… respirar-lhe o sarro!
Porém o que há mais doce nesta vida,
O que das mágoas desvanece o luto
E dá som a uma alma empobrecida,
Palavra d’honra, és tu, Ó meu charuto!
Trindade
A vida é uma planta misteriosa
Cheia d’espinhos, negra de amarguras,
Onde só abrem duas flores puras
Poesia e amor…
E a mulher… é a nota suspirosa
Que treme d’alma a corda estremecida,
É fada que nos leva além da vida
Pálidos de langor!
A poesia é a luz da mocidade,
O amor é o poema dos sentidos,
A febre dos momentos não dormidos
E o sonhar da ventura…
Voltai, sonhos de amor e de saudade!
Quero ainda sentir arder-me o sangue,
Os olhos turvos, o meu peito langue…
E morrer de ternura!
Um Cadáver de Poeta
Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver!
Tu não pesaste sobre a terra: a terra te seja leve!
L. UHLAND
I
De tanta inspiração e tanta vida,
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto…
O que resta? — uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava…
— Resta um poeta morto!
Morrer! E resvalar na sepultura,
Frias na fronte as ilusões! no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome… sem um leito!
Em treva e solidão!
Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita…
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!
Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou…
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!…
II
Morreu um trovador! morreu de fome…
Acharam-no deitado no caminho:
Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
Flutuava-lhe um riso esperançoso;
E o morto parecia adormecido.
Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas da agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele… No seu peito
Não havia colar nem bolsa d’oiro:
Tinha até seu punhal um férreo punho…
Pobretão! não valia a sepultura…
Todos o viram e passavam todos.
Contudo era bem morto desde a aurora.
Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
Um ceitil para a cova!… nem sudário!
O mundo tem razão, sisudo pensa…
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta?… um pobre louco
Que leva os dias a sonhar?… insano
Amante de utopias e virtudes
E, num templo sem Deus, ainda crente?
A poesia é decerto uma loucura:
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro… Que doUdos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes — bravo! à inspiração divina…
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos…
Quando é gelada a fronte sonhadora
Por que há de o vivo, que despreza rimas,
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvaziar por um misérrimo,
Quando a emprega melhor em lodo e vício? …
E que venham aí falar-me em Tasso!
Culpar Afonso d’Est — um soberano,
Por não lhe dar a mão da irmã fidalga!
Um poeta é um poeta: apenas isso…
Procure para amar as poetisas.
Se na França a princesa Margarida,
De Francisco primeiro irmã formosa,
Ao poeta Alain Chartier adormecido
Deu nos lábios um beijo… é que esta moça,
Apesar de princesa, era uma douda…
E a prova é que também rondós fazia.
Se Riccio, o trovador, teve os amores
— Novela até bastante duvidosa —
Dessa Maria Stuart formosíssima,
É que ela — sabe-o Deus! — fez tanta asneira…
Que não admira que a um poeta amasse!
Por isso adoro o libertino Horácio:
Namorou algum dia uma parenta
Do patrono Mecenas? Parasita…
Só pedia dinheiro, no triclínio
Bebia vinho bom… e não vivia
Fazendo versos às irmãs de Augusto.
E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
Às esmolas valeu. Mas quanto ao resto,
Por fazer umas trovas de vadio,
Deveriam lhe dar, além de glória,
— E essa deram-lhe à farta! — algum bispado?
Alguma dessas gordas sinecuras
Que se davam a idiotas fidalguias?
Deixem-se de visões, queimem-se os versos:
O mundo não avança por cantigas.
Creiam do poviléu os trovadores
Que um poema não val meia princesa.
Um poema, contudo, bem escrito,
Bem limado e bem cheio de tetéias,
Nas horas do café lido, fumando…
Ou no campo, na sombra do arvoredo,
Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.
Mas não passe dali do vate a mente.
Tudo o mais são orgulhos, são loucuras…
Faublas tem mais leitores do que Homero.
Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola…
É prazer de um momento, é mero luxo.
Contente-se em traçar nas folhas brancas
De algum Álbum da moda umas quadrinhas:
Nem faça apelações para o futuro.
O homem é sempre o homem. Tem juízo.
Desde que o mundo é mundo assim cogita.
Nem há negá-lo: não há doce lira,
Nem sangue de poeta ou alma virgem
Que valha o talismã que no oiro vibra!
Nem músicas nem santas harmonias
Igualam o condão, esse eletrismo,
A ardente vibração do som metálico…
……………………………………………………………
Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?
Ó poeta, silêncio! — é este o homem?
A feitura de Deus! a imagem dele!
O rei da criação!…
Que verme infame!
Não Deus, porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te — o egoísmo!
Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!
III
Passou El-Rei ali com seus fidalgos:
Iam a degolar uns insolentes
Que ousaram murmurar da infâmia régia,
Das nódoas de uma vida libertina!
Iam em grande gala. O Rei cismava
Na glória de espetar no pelourinho
A cabeça de um pobre degolado.
Era um Rei bon-vivant e Rei devoto;
E, como Luís XI, ao lado tinha
O bobo, o capelão… e seu carrasco.
O cavalo do Rei, sentindo o morto,
Tremente de terror parou nitrindo,
Deu d’esporas leviano o cavaleiro
E disse ao capelão:
"E não enterram
Esse homem que apodrece, e no caminho
Assusta-me o corcel?"
Depois voltou-se
E disse ao camarista de semana:
"Conheces o defunto? Era inda moço,
Daria certamente um bom soldado.
A figura é esbelta! Forte pena!
Podia bem servir para um lacaio."
Descoberto, o faceiro fidalgote
Responde-lhe fazendo a cortesia:
"Pelas tripas do Papa! eu não me engano,
Leve-me Satanás se este defunto
Ontem não era o trovador Tancredo!"
"Tancredo!" murmurou erguendo os óculos
Um anfíbio, um barbaças truanesco,
Alma de Triboulet, que além de bobo
Era o vate da corte! bem nutrido,
Farto de sangue, mas de veia pobre,
Caidos beiços, volumoso abdoômen,
Grisalha cabeleira esparramada,
Tremendo narigão, mas testa curta,
Em suma um glosador de sobremesas.
"Tancredo! — repetiu imaginando —
Um asno! só cantava para o povo!
Uma língua de fel, um insolente!
Orgulho desmedido… e quanto aos versos
Morava como um sapo n’água doce!
Não sabia fazer um trocadilho…"
O rei passou — com ele a companhia!
Só ficou ressupino e macilento
Da estrada em meio o trovador defunto!
IV
Ia caindo o sol. Bem reclinado
No vagaroso coche madornado
Depois de bem jantar fazendo a sesta,
Roncava um nédio, um barrigudo frade…
Bochechas e nariz, em cima uns óculos
Vermelho solidéu… enfim um bispo,
E um bispo, senhor Deus! da idade média,
Em que os bispos — como hoje e mais ainda —
Sob o peso da cruz bem rubicundos,
Dormindo bem, e a regalar bebendo,
Sabiam engordar na sinecura!
Papudos santarrões, depois da missa,
Lançando ao povo a bênção — por dinheiro!
O cocheiro ia bêbado por certo:
Os cavalos tocou p’lo bom caminho
Mesmo em cima das pernas do cadáver…
Refugou a parelha, mas o sota
— Que ao sol da glória episcopal enchia
De orgulho e de insolência o couro inerte,
Cuspindo o poviléu, como um fidalgo
Que em falta de miolo tinha vinho
Na cabeça devassa — deu de esporas…
Como passara sobre a vil carniça
Raléu de corvos negros, foi por cima…
Mas desgraça! maldito aquele morto!
Desgraça!… não porque pisasse o coche
Aqueles magros ossos, mas a roda
Na humana resistência abalroando…
E acorda o fradalhão…
"O que sucede?
— Pergunta bocejando, é algum bêbado?
Em que bicho pisaram?"
"Senhor bispo,
— Triunfante responde o bom cocheiro
Ao vigário de Cristo, ao santo Apóstolom
Rebento da fidalga raça nova
Que não anda de pé como S. Pedro,
Nem estafa os corcéis de S. Francisco —
"Perdoe Vossa Excelência Eminentíssima,
É um pobre diabo de poeta…
Um homem sem miolo e sem barriga
Que lembrou-se de vir morrer na estrada!"
"Abrenúncio! rouqueja o santo bispo,
Leve o Diabo essa tribo de boêmios!
Não há tanto lugar onde se morra?
Maldita gente! inda persegue os Santos
Depois que o Diabo a leva!…"
E foi caminho.
Leve-te Deus! Apóstolo da crença,
Da esperança e da santa caridade!
Tu, sim, és religioso e nos altares
Vem cada sacristão, e cada monge
Agita a teus pés o seu turíbulo!
E o sangue do Senhor no cálix d’oiro
Da turba na oração te banha os lábios…
Leve-te Deus, Apóstolo da crença!
Sem padres como tu que fora o mundo?
É por ti que o altar apóia o trono!
É teu olhar que fertiliza os vales,
Fecunda a vinha santa do Messias!
Leve-te Deus… ou leve-te o Demônio!
V
Caiu a noite do azulado manto,
Como gotas de orvalho, sacudindo
Estrelas cintilantes. Veio a lua,
Banhando de tristeza o céu profundo,
Trazer aos corações melancolia,
E no éter cheiroso derramar
Cerúlea chama! — Dia incerto e pálido
Que ao lado da floresta as sombras junta
E golfa pelas águas das campinas
Alvacentos clarões que as flores bebem!
A galope, de volta do noivado,
Passa o Conde Solfier e a noiva Elfrida:
Seguem fidalgos que o sarau reclama.
Elfrida
— Não vês, Solfier, ali da estrada em meio
Um defunto estendido?
Solfier
— Ó minha Elfrida,
Voltemos desse lado: outro caminho
Se dirige ao castelo. É mau agouro
Por um morto passar em noites destas.
Mas Elfrida aproxima o seu cavalo.
Elfrida
"Tancredo!… Vede!?… é o trovador Tancredo!
Coitado! assim morrer! um pobre moço…
Sem mãe e sem irmã! E não o enterram?
Neste mundo não teve um só amigo!
"Ninguém, senhora! respondeu da sombra
Uma dorida voz. Eu vim, há pouco,
Ao saber que do povo no abandono
Jazia como um cão, eu vim… e eu mesmo
Cavei junto do lago a cova dele."
Elfrida
"Tendes um coração: tomai, mancebo,
Tomai essa pulseira… Em ouro e jóias
Tem bastante pra erguer-lhe um monumento
E para longas missas lhe dizerem
Pelo repouso d’alma…"
O moço riu-se.
O Desconhecido
"Obrigado: guardai as vossas jóias.
Tancredo o trovador morreu de fome!
Passaram-lhe no corpo frio e morto,
Salpicaram de lodo a face dele,
Talvez cuspissem nesta fronte santa,
Cheia outrora de eternas fantasias,
De idéias a valer um mundo inteiro!…
Por que lançar esmolas ao cadáver?
Leva-as, fidalga, tuas jóias belas:
O orgulho do plebeu as vê sorrindo…
Missas?… bem sabe Deus se neste mundo
Gemeu alma tão pura como a dele!
Foi um anjo! e murchou-se como as flores
Morreu sorrindo, como as virgens morrem…
Alma doce que os homens enjeitaram,
Lírio, que a turba imunda profanou
Oh! não te mancharei, nem a lembrança
Com o óbolo dos ricos! Pobre corpo,
És o templo deserto, onde habitava
O Deus que em ti sofreu por um momento!
Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços:
Na cova negra dormirás tranqüilo…
Tu repousas ao menos!"………………………………………..
………………………………………………………………………….
No entanto sofreando a custo a raiva,
Mordendo os lábios de soberba e fúria,
Solfier da bainha arranca a espada,
Avança ao moço e brada-lhe:
"Insolente!,
Cala-te, doudo! Cala-te, mendigo!
Não vês quem te falou? Curva o joelho,
Tira o gorro, vilão…"
O Desconhecido
"Tu vês: não tremo!
Tu não vales o vento que salpica
Tua fronte de pó. Porque és fidalgo,
Não sabes que um punhal vale uma espada
Dentro do coração?"
Mas logo Elfrida:
"Acalma-te, Solfier! O triste moço
Desespera, blasfema e não me insulta.
Perdoa-me também, mancebo triste!
Não pensei ofender tamanho orgulho:
Tua mágoa respeito. Só te imploro
Que sobre a fronte ao trovador desfolhes
Essas flores, as flores do noivado
De uma triste mulher… E quanto às jóias,
Lança-as no lago… Mas quem és? teu nome?"
O Desconhecido
"Quem sou? um doudo, uma alma de insensato
Que Deus maldisse e que Satã devora!
Um corpo moribundo em que se nutre
Uma centelha de pungente fogo!
Um raio divinal que dói e mata,
Que doira as nuvens e amortalha a terra!…
Uma alma como o pó em que se pisa!
Um bastardo de Deus! um vagabundo
A que o gênio gravou na fronte — anátema!
Desses que a turba com o seu dedo aponta…
Mas não; não hei de sê-lo! eu juro n’alma,
Pela caveira, pelas negras cinzas
De minha mãe o juro!… Agora há pouco,
Junto de um morto reneguei do gênio,
Quebrei a lira à pedra de um sepulcro…
— Eu era um trovador, sou um mendigo…"
Ergueu do chão a dádiva d’Elfrida,
Roçou as flores aos trementes lábios,
Beijou-as. Sobre o peito de Tancredo
Pousou-as lentamente…
"Em nome dele,
Agradeço estas flores do teu seio,
Anjo que sobre um túmulo desfolhas
Tuas últimas flores de donzela!"
Depois vibrou na lira estranhas mágoas,
Carpiu à longa noite escuras nênias,
Cantou: banhou de lágrimas o morto.
De repente parou: vibrou a lira
Co’as mãos iradas, trêmulas… e as cordas
Uma por uma rebentou cantando…
Tinha fogo no crânio, e sufocava:
Passou a fria mão nas fontes úmidas,
Abriu a medo os lábios convulsivos,
Sorriu de desespero; e sempre rindo
Quebrou as jóias e as lançou no abismo…
VI
No outro dia na borda do caminho,
Deitado ao pé de um fosso aberto apenas,
Viu-se um mancebo loiro que morria…
Semblante feminil, e formas débeis,
Mas nos palores da espaçosa fronte
Uma sombria dor cavara sulcos.
Corria sobre os lábios alvacentos
Uma leve umidez, um ló d’escuma,
E seus dentes a raiva constringira…
Tinha os punhos cerrados… Sobre o peito
Acharam letras de uma língua estranha…
E um vidro sem licor — fora veneno!…
Ninguém o conheceu: mas conta o povo
Que, ao lançá-lo no túmulo, o coveiro
Quis roubar-lhe o gibão, despiu o moço…
E viu… talvez é falso… níveos seios…
Um corpo de mulher de formas puras…
VII
Na tumba dormem os mistérios d’ambos:
Da morte o negro véu não há erguê-lo!
Romance obscuro de paixões ignotas,
Poema d’esperança e desventura,
Quando a aurora mais bela os encantava,
Talvez rompeu-se no sepulcro deles!
Não pode o bardo revelar segredos
Que levaram ao céu as ternas sombras:
— Desfolha apenas nessas frontes puras
Da extrema inspiração as flores murchas…
Virgem Morta
Oh! make her a grave where the sun-beams rest,
When they promise a glorious morrow!
They’ll shine o’er sleep, like a smile from the West,
From her own lov’d island of sorrow.
TH. MOORE
Lá bem na extrema da floresta virgem,
Onde na praia em flor o mar suspira…
Lá onde geme a brisa do crepúsculo
E mais poesia o arrebol transpira…
Nas horas em que a tarde moribunda
As nuvens roxas desmaiando corta,
No leito mole da molhada areia
Deitem o corpo da beleza morta.
Irmã chorosa a suspirar desfolhe
No seu dormir da laranjeira as flores,
Vistam-na de cetim, e o véu de noiva
Lhe desdobrem da face nos palores.
Vagueie em torno, de saudosas virgens
Errando à noite, a lamentosa turma…
E, entre cânticos de amor e de saudade,
Junto às ondas do mar a virgem durma.
Às brisas da saudade soluçantes
Aí, em tarde misteriosa e bela,
Entregarei as cordas do alaúde
E irei meus sonhos prantear por ela!
Quero eu mesmo de rosa o leito encher-lhe
E de amorosos prantos perfumá-la…
E a essência dos cânticos divinos
No túmulo da virgem derramá-la.
Que importa que ela durma descorada
E velasse o palor a cor do pejo?
Quero a delícia que o amor sonhava
Nos lábios dela pressentir num beijo.
Desbotada coroa do poeta!
Foi ela mesma quem prendeu-te flores!
Ungiu-as no sacrário de seu peito
Inda virgem do alento dos amores!…
Na minha fronte riu de ti, passando,
Dos sepulcros o vento peregrino…
Irei eu mesmo desfolhar-te agora
Da fronte dela no palor divino!…
E contudo eu sonhava! e pressuroso
Da esperança o licor sorvi sedento!
Ai! que tudo passou!… só resta agora
O sorriso de um anjo macilento!
………………………………………………………………..
Ó minha amante, minha doce virgem,
Eu não te profanei, tu dormes pura:
No sono do mistério, qual na vida,
Podes sonhar ainda na ventura.
Bem cedo, ao menos, eu serei contigo
— Na dor do coração a morte leio…
Poderei amanhã, talvez, meus lábios
Da irmã dos anjos encostar no seio…
E tu, vida que amei! pelos teus vales
Com ela sonharei eternamente…
Nas noites junto ao mar e no silêncio,
Que das notas enchi da lira ardente!…
Dorme ali minha paz, minha esperança,
Minha sina de amor morreu com ela,
E o gênio do poeta, lira eólia
Que tremia ao alento da donzela!
Qu’esperanças, meu Deus! E o mundo agora
Se inunda em tanto sol no céu da tarde!
Acorda, coração!… Mas no meu peito
Lábio de morte murmurou: — É tarde!
É tarde! e quando o peito estremecia
Sentir-me abandonado e moribundo!?…
É tarde! é tarde! ó ilusões da vida,
Morreu com ela da esperança o mundo!…
No leito virginal de minha noiva
Quero, nas sombras do verão da vida,
Prantear os meus únicos amores,
Das minhas noites a visão perdida…
Quero ali, ao luar, sentir passando
Por alta noite a viração marinha,
E ouvir, bem junto às flores do sepulcro,
Os sonhos de su’alma inocentinha.
E quando a mágoa devorar meu peito…
E quando eu morra de esperar por ela…
Deixai que eu durma ali e que descanse,
Na morte ao menos, sobre o seio dela!
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