Poemas e Poesias – Ana Paula Ribeiro Tavares

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A Mãe e a irmã

A Manga

Abóbora menina

Alphabeto

Amargos como frutos

Canto de nascimento

 

A Mãe e a irmã

A mãe não trouxe a irmã pela mão
viajou toda a noite sobre os seus próprios passos
toda a noite, esta noite, muitas noites
A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado
a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas
[vermelhas
A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites
[todas as noites
com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste
e só trazia a lua em fase pequena por companhia
e as vozes altas dos mabecos.
A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção
no pano mal amarrado
nas mãos abertas de dor
estava escrito:
meu filho, meu filho único
não toma banho no rio
meu filho único foi sem bois
para as pastagens do céu
que são vastas
mas onde não cresce o capim.
A mãe sentou-se
fez um fogo novo com os paus antigos
preparou uma nova boneca de casamento.
Nem era trabalho dela
mas a mãe não descurou o fogo
enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.
As tias do lado do leão choraram duas vezes
e os homens do lado do boi
afiaram as lanças.
A mãe preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
não tinha sentido.
A mãe olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.

A Manga

Fruta do paraíso
companheira dos deuses
as mãos
tiram-lhe a pele
dúctil
como, se de mantos
se tratasse
surge a carne chegadinha
fio a fio
ao coração
leve
morno
mastigável
o cheiro permanece
para que a encontrem
os meninos
pelo faro

Abóbora menina

Tão gentil de distante, tão macia aos olhos
vacuda, gordinha,
de segredos bem escondidos
estende-se à distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre:
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela deságuam todos os rapazes.

Alphabeto

Dactilas-me o corpo
de A a Z
e reconstróis
asas
seda
puro espanto
por debaixo das mãos
enquanto abertas
aparecem, pequenas
as cicatrizes

Amargos como frutos

“Dizes-me coisas tão amargas como os frutos…”
Kwanyama

Amado, porque voltas
com a morte nos olhos
e sem sandálias
como se um outro te habitasse
num tempo
para além
do tempo todo

Amado, onde perdeste tua língua de metal
a dos sinais e do provérbio
com o meu nome inscrito

onde deixaste a tua voz
macia de capim e veludo
semeada de estrelas

Amado, meu amado
o que regressou de ti
é tua sombra
dividida ao meio
é um antes de ti
as falas amargas
como os frutos

(Dizes-me coisas amargas como os frutos)

Canto de nascimento

Aceso está o fogo
prontas as mãos

o dia parou a sua lenta marcha
de mergulhar na noite.

As mãos criam na água
uma pele nova

panos brancos
uma panela a ferver
mais a faca de cortar

Uma dor fina
a marcar os intervalos de tempo
vinte cabaças deleite
que o vento trabalha manteiga

a lua pousada na pedra de afiar

Uma mulher oferece à noite
o silêncio aberto
de um grito
sem som nem gesto
apenas o silêncio aberto assim ao grito
solto ao intervalo das lágrimas

As velhas desfiam uma lenta memória
que acende a noite de palavras
depois aquecem as mãos de semear fogueiras

Uma mulher arde
no fogo de uma dor fria
igual a todas as dores
maior que todas as dores.
Esta mulher arde
no meio da noite perdida
colhendo o rio

enquanto as crianças dormem
seus pequenos sonhos de leite.

Cerimônia de passagem

“a zebra feriu-se na pedra
a pedra produziu lume”

a rapariga provou o sangue
o sangue deu fruto

a mulher semeou o campo
o campo amadureceu o vinho

o homem bebeu o vinho
o vinho cresceu o canto

o velho começou o círculo
o círculo fechou o princípio

“a zebra feriu-se na pedra
a pedra produziu lume”

Entre os lagos

Esperei-te do nascer ao pôr do sol
e não vinhas, amado.
Mudaram de cor as tranças do meu cabelo
e não vinhas, amado.
limpei a casa, o cercado
fui enchendo de milho o silo maior do terreiro
balancei ao vento a cabaça da manteiga
e não vinhas, amado.
Chamei os bois pelo nome
todos me responderam, amado.
Só tua voz se perdeu, amado,
para lá da curva do rio
depois da montanha sagrada
entre os lagos.

História de amor da princesa ozoro e do hungaro ladislau
magyar

Primeiro momento

Meu pai chamou e disse:
mulher, chegou a hora, eis o senhor da tua vida
aquele que te fará árvore

Apressa-te Ozoro,
parte as pulseiras e acende o fogo.
Acende o fogo principal, o fogo do fogo, aquele que arde
noite e sal.
Prepara as panelas e a esteira
e o frasco dos perfumes mais secretos
Este homem pagou mais bois, tecidos e enxadas do que
aqueles que eu pedi
este homem atravessou o mar
não ouvi falar do clã a que pertence
o homem atravessou o mar e é da cor do espírito

Nossa vida é a chama do lugar
Que se consome enquanto ilumina a noite

Voz de Ozoro:

Tate tate
meus todos parentes de sangue
os do lado do arco
os do lado do cesto
tate tate
porque me acordas para um homem para a vida
se ainda estou possessa de um espírito único
aquele que não se deu a conhecer
meu bracelete entrançado
não se quebrou e é feito das fibras da minha própria
essência
cordão umbilical
a parte da mãe
meu bracelete entrançado ainda não se quebrou
Tate tate
ouve a voz de meu pequeno arco esticado
as canções de rapariga
minha dança que curva a noite
ainda não chegou meu tempo de mulher
o tempo que chegou
é lento como um sangue
que regula agora as luas
para mim
de vinte oito em vinte e oito dias

Segundo momento

Voz de Magyar:

Senhor:
Atravessei o mar de dentro e numa pequena barcaça
desci de Vardar para Salônica, durante a batalha das
sombras. De todas as montanhas, a que conheço expõe um
ventre de neve permanente e uma pele gretada pelo frio.
Nasci perto do Tisza Negro, junto à nascente.
Naveguei um oceano inteiro no interior de um navio
habitado de fantasmas e outros seres de todas as cores com
as mesmas grilhetas. Como eles mastiguei devagarinho a
condição humana e provei o sangue o suor e as lágrimas
do
desespero. São amargos, senhor, são amargos e nem sempre
servem a condição maior da nossa sede. Vivi durante
muitos meses o sono gelado da solidão.
Senhor
Eu trago um pouco de vinho sonolento do interior da
terra e a estratégia de uma partida húngara, levo o bispo por
um caminho direto até à casa do rei, senhor. Por isso aqui
estou e me apresento, meu nome igual ao nome de meu
povo, Magyar, os das viagens, Magyar, o dos ciganos.
Senhor
Eu trouxe meus cavalos e vos ofereço minha ciência de
trigo, em troca peço guias dos caminhos novos, alimento
para as caravanas, licença para o Ochilombo e a mão de
Ozoro a mais-que-perfeita.
Senhor, deixai que ela me cure da febre e da dor que trago
da montanha para lá dos Cárpatos.
Senhor, deixai que ela me ensine a ser da terra.

Terceiro momento

Coro das mais velhas:

Fomos nós que preparamos Ozoro, na casa redonda
muitos dias, muitas noites na casa redonda
Fomos nós que lhe untamos, de mel, os seios
na casa redonda
Com perfumes, tacula e fumo velho esculpimos um corpo
na casa redonda
Nosso foi o primeiro grito perante tanta beleza:
Oh, rapariga na palhoça, sentada, ergue-te para que
possamos contemplar-te!

Quarto momento

Vozes das meninas:

Meu nome é terra e por isso me movo lentamente meia
volta, uma volta, volta e meia, para que o tempo me
encontre e se componha.
Sou a companheira favorita de Ozoro do tempo da casa
redonda.

Meu nome é pássaro, como o nome do clã a que
pertenço. Com Ozoro descobri o lago e as quatro faces da
lua, e vi primeiro que todos a cintura de salalé que se
contrai à volta das nossas terras.

Meu nome é flor e sou especialmente preparada para
cuidar do lugar onde a alma repousa. Com Ozoro eu tenho
o cheiro, guardado no frasco de perfumes mais pequeno – o
do mistério.

Meu nome é princípio e eu tenho as mãos do lugar e
a
ciência dos tecidos como as mais velhas. Para Ozoro, a princesa,
eu já teci o cinto de pedras apertadas, o mais belo cinto,
de contas vindas do outro lado do tempo da própria casa de
Suku. Para o tecer preparei todos os dias as mãos com preciosos
cremes da montanha. Apertei cada conta no nó fechado
igual ao que fecha a vida em cada recém-nascido. Para Ozoro
eu teci o cinto mais apertado das terras altas.

Meu nome é memória e com as velhas treinei cada fala
– a do caçador nas suas caçadas
– a dos homens no seu trabalho
– o canto das mulheres nas suas lavras
– a das raparigas no seu andar
– o canto da rainha na sua realeza
– o som das nuvens na sua chuva
Na lavra da fala faço meu trabalho, como a casa sem
porta e sem mobília, não tão perfeita como a casa onde
o
rei medita, tão redonda como a casa onde Ozoro e as
meninas aprenderam a condição de mulheres.

Coro das meninas:

A casa das mulheres
A casa da meditação
A casa da chuva
A casa das colheitas
A casa das meninas: Terra, Flor, Pássaro, Princípio, Memória

Fala do fazedor de chuva:

Eu que amarrei as nuvens, deixei chover dentro de mim.
Deixei uma nuvem solta, grande e
gorda de chuva rebentar dentro de mim.
Sangro em utima meu pranto de nuvens, choro em
Osande a princesa perfeita, a minha favorita.

Coro dos rapazes:

Desde ontem ouvimos o rugir do leão atrás da paliçada
E as palavras mansas do velho sábio dentro da paliçada
Desde ontem que o leão não se afasta detrás da paliçada
E se ouve o velho que fala com o leão atrás da paliçada
Desde ontem o feiticeiro acende o fogo novo dentro da
paliçada
E se espalham as cinzas do fogo antigo atrás da paliçada
Diante de ti, Ozoro, depositamos a cesta dos frutos e
a nossa esperança

Fala da mãe de Ozoro:

Fui a favorita, antes do tempo me ter comido por
dentro. Semeei de filhos este chão do Bié.
Para ti, Ozoro, encomendei os panos e fiz, eu mesma,
os cestos, as esteiras. Percorri os caminhos da missão.
Encontrei as palavras para perceber a tua nova língua e os
costumes. Com as caravanas aprendi os segredos do mar e
as histórias. Deixo-te a mais antiga
História do pássaro Epanda e do ganso Ondjava

Há muito muito tempo estas duas aves decidiram juntar forças
e fazer
o ninho em conjunto. Ondjava era um animal muito limpo e lavava e cuidava
dos seus ovos e da sua parte do ninho. Quando nasceram os filhos,
os pequenos de Epanda estavam sempre muito sujos e feios, enquanto
os de Ondjava deixavam que o sol multiplicasse de brilho as suas penas.
Um dia, Epanda raptou e escondeu os filhos de Ondjava quando esta
se afastara em busca de comida. Ondjava chorou muito e, enquanto recorria
ao juiz para resolver o caso, cuidou dos outros filhos, lavou o ninho todo
e armazenou comida para o cacimbo. Um dia os filhos limpos de Ondjava
voltaram e o juiz determinou pertencerem a esta ave, ninho, filhos e ovos,
porque só merece o lugar quem dele cuida, quem o sabe trabalhar.

Coro:

Só merece o lugar que o sabe trabalhar
Só é dono do lugar aquele que o pode limpar

Fala de Ladislau Magyar, o estrangeiro:

Amada, deixa que prepare o melhor vinho e os
tecidos
e que, por casamento, me inicie
nas falas de uma terra que não conheço
no gosto de um corpo
que principio
Amada, há em mim um fogo limpo
para ofertar
e o que espero é a partilha
para podermos limpar os dois o ninho
para podermos criar os dois o ninho.

Fala dos feiticeiros:

Podemos ver daqui a lua
e dentro da lua a tua sorte, Ozoro
aprenderás a caminhar de novo com as caravanas
e estás condenada às viagens, Ozoro
teus filhos nascerão nos caminhos
serão eles próprios caminhos
da Lunda
do Rio Grande
se o cágado não sobe às árvores, Ozoro
alguém o faz subir!

Última fala de Ozoro antes da viagem:

Amar é como a vida
Amar é como a chama do lugar

que se consome enquanto se ilumina
por dentro da noite.

Mukai

1

Corpo já lavrado
eqüidistante da semente
é trigo
é joio
milho híbrido
massambala

resiste ao tempo
dobrado
exausto
sob o sol
que lhe espiga
a cabeleira.

2

O ventre semeado
deságua cada ano
os frutos tenros
das mãos
(é feitiço)
nasce
a manteiga
a casa
o penteado
o gesto
acorda a alma
a voz
olha p’ra dentro do silêncio milenar.

3

(Mulher à noite)

Um soluço quieto
desce
a lentíssima garganta
(rói-lhe as entranhas
um novo pedaço de vida)
os cordões do tempo
atravessam-lhe as pernas
e fazem a ligação terra.

Estranha árvore de filhos
uns mortos e tantos por morrer
que de corpo ao alto
navega de tristeza
as horas.

4

O risco na pele
acende a noite
enquanto a lua
(por ironia)
ilumina o esgoto
anuncia o canto dos gatos
De quantos partos se vive
para quantos partos se morre.

Um grito espeta-se faca
na garganta da noite

recortada sobre o tempo
pintada de cicatrizes
olhos secos de lágrimas
Dominga, organiza a cerveja
de sobreviver os dias.

* Mukai: – mulher

Não conheço nada do país do meu amado

Não conheço nada do país do meu amado
Não sei se chove, nem sinto o cheiro das
laranjas.

Abri-lhe as portas do meu país sem perguntar nada
Não sei que tempo era
O meu coração é grande e tinha pressa
Não lhe falei do país, das colheitas, nem da seca
Deixei que ele bebesse do meu país o vinho o mel a carícia
Povoei-lhe os sonhos de asas, plantas e desejo
O meu amado não me disse nada do seu país

Deve ser um estranho país
o país do meu amado
pois não conheço ninguém que não saiba
a hora da colheita
o canto dos pássaros
o sabor da sua terra de manhã cedo

Nada me disse o meu amado
Chegou
Mora no meu país não sei por quanto tempo
É estranho que se sinta bem
e parta.
Volta com um cheiro de país diferente
Volta com os passos de quem não conhece a pressa.

November without water

Olha-me p’ra estas crianças de vidro
cheias de água até às lágrimas
enchendo a cidade de estilhaços
procurando a vida
nos caixotes do lixo.

Olha-me estas crianças
transporte
animais de carga sobre os dias
percorrendo a cidade até aos bordos
carregam a morte sobre os ombros
despejam-se sobre o espaço
enchendo a cidade de estilhaços.

O cercado

De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p’ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p’ra lá do cercado

O mirangolo

Testículo adolescente
purpurino
corta os lábios ávidos
com sabor ácido
da vida
encandesce de maduro
e cai

submetido às trezentas e oitenta e duas
feitiçarias do fogo
transforma-se em geleia real:

ilumina a gente.

Rapariga

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa

Filha de Tembo
organizo o milho

Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram…

Sou do clã do boi –
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo de deserto.
A falta de limite…
Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranqüilidade
a proximidade
do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.

Tratem-me com a massa

“Amparai-me com perfumes, confortai-me com maçãs
que estou ferida de amor…”

Cântico dos Cânticos

Tratem-me com a massa
de que são feitos os óleos
p’ra que descanse, oh mães

Tragam as vossas mãos, oh mães,
untadas de esquecimento

E deixem que elas deslizem
pelo corpo, devagar

Dói muito, oh mães

É de mim que vem o grito.

Aspirei o cheiro da canela
e não morri, oh mães.

Escorreu-me pelos lábios o sangue do mirangolo
e não morri, oh mães.
De lábios gretados não morri

Encostei à casca rugosa do baobabe
a fina pele do meu peito
dessas feridas fundas não morri, oh mães.

Venham, oh mães, amparar-me nesta hora
Morro porque estou ferida de amor.

Vieram muitos

“A massambala cresce a olhos nus”

Vieram muitos
à procura de pasto
traziam olhos rasos da poeira e da sede
e o gado perdido.

Vieram muitos
à promessa de pasto
de capim gordo
das tranqüilas águas do lago.
Vieram de mãos vazias
mas olhos de sede
e sandálias gastas
da procura de pasto.

Ficaram pouco tempo
mas todo o pasto se gastou na sede
enquanto a massambala crescia
a olhos nus.

Partiram com olhos rasos de pasto
limpos de poeira
levaram o gado gordo e as raparigas.

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