Poemas – Cruz e Souza

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5 dez 1882
24 dez 1880
28 nov 1882
Abelhas
A borboleta azul
Abrigo celeste
Acima de tudo
Acrobata da dor
Adalziza
A dor
A espada
Afra
A grande sede
A harpa
A idéia do infinito
A imprensa
Alda
Alma fatiada
Alma fatigada
Alma ferida
Alma Mater
Almas indencisas
Alma solitaria
Alucinação
Amor
A moreira vasConcelos
A morte
Anda me a alma
Angelus
Anima mea
Anjo gabriel
Ansiedade
Antífonia
Ao decênio de castro alves
Aos relâmpagos sulfúreos
Aparição
A perfeição
A Poesia interminável
A poesia interminável 2
A poesia interminável 3
A poesia interminável 4
A poesia interminável 5
A poesia interminável 6
Após o noivado
A revolta
Arte
Asas abertas
Asas perdidas
As devotas
As estrelas
Á sombra espessa de um álamo
Aspiração suprema
Assim seja
Assombro de assombros
Auréola equatorial
Ausência MIsteriosa
Away
Beijos
Beleza morta
Benditas cadeias
Besouros
Boca
Bondade
Braços
Brumosa
Cabelos
Caçador do infinito
Caminho da glória
Campesinas
Campesinas ao ar livre
Canção da formosura
Canção do bêbado
Canção negra
Cárcere das almas
Carnal e místico
Castela
Caveira
Clamando
Clamor supremo
Clarões apagados
Cogitação
Colar de pérolas
Como fortes gargalhadas
Como um assombro de assombros
Como um cisne est’alma frisa
Conciliação
Condenação fatal
Consolo amargo
Coração confiante
Corpo
Crê
Crianças negras
Cristais
Cristo de bronze
Cruzada nova
Da bruma pelos países
Da idéia nos mares jonios
Da lua aos raios prateados
Dança do ventre
Da senzala
De alma em alma
Decadentes
De claque casaca e luva
Deixai que minh’alma escassa
Demônios
Desmoronamento
Deusa serena
Deus do mal
Diante do mar
Diatribe
Dilacerações
Dilema
Dispersas
avante

Divina
Doente
Domus aurea
Dormindo
Ebrios e cegos
E estala a estrófe de fogo
Embora eu não tenha louros
Em sonhos
Encarnação
Enclausurada
Enlevo
Enquanto este sangue ferve
Entre luz e sombra
Envelhecer
Escarnio perfumado
Escravocratas
Espasmos
Espirito imortal
Espirito mortal
Esquecimento
Estoure como champagne
Eternidade retrospectiva
Eternos atalaias
Evocação
Exortação
Êxtase búdico
Feliz!
Filetes
Flôr-do-Mar
Floresce
Flores-da-lua
Flores nirvanizadas
Flor perigosa
Foederis arca
Fogos fatuos
Fonte de amor
Fremintos
Fruto envelhecido
Glória
Grande amor
Grandeza oculta
Grito de guerra
Guilieta dionesi
Gusla de sadudade
Humildade secreta
Idade mãe
Imortal atitude
Imortal falerno
Incensos
Inefável!
Inês
Inexoerável
Invulnerável
Ironia de lágrimas
Ironia dos vermes
Joaquim gomes d’oliveira paiva
Judia
Julieta dos santos
Lésbia
Levantem esta bandeira
Lírio astral
Lírio lutuoso
Litânia dos pobres
Livre
Luar de lágrimas
Lubricidade
Luz da natureza
Luz dolorosa
Madona da tristeza
Mãe e filho
Majestade caída
Maõs
Marche aux flambeaux
Mealheiro de almas
Mendigos
Merece o bom do vidal
Metamorfose
Metempsicose
Meu filho
Meus esplêndidos desejos
Minha vida e um montão de ruínas em arido deserto um
abismo de ais e de suspiros

Missal
Missal 2
Missal 3
Missal 4
Monja
Monja negra
Morena dos olhos pretos
Mudez perversa
Múmia
Mundo inaccecível
Música de morte
Música misteriosa
Na luz
Na mazurka
Nas explosões de bons risos
Naufrágios
Na vila
Nerah
Noiva de agonia
Noiva e triste
Nos campos
No seio da terra
Nunca se cala o calado
Ó adalziza dos sonhos
Ó alzira, alzira, alzira
O assinalado
O botão de rosa
Ó cintilante quiquia
O coração
Ódio sagrado
O duque

O final do guaranai
Ó flora, ó ninfa das rosas
O grande momento
O grande sonho
Oiseaux de passage
Olhares
Olhos
Olhos dos sonhos
Olhos pretos sonhadores
O órgão
O seu boné
Os monges
O sol e o coração
O soneto
Os risonhos
Outros sonetos
Pacto de almas
Pandemonium
Papoula
Paranaguadas
Parece um céu estrelado
Perante a morte
Pés
Piedade
Piedosa
Pinto, pinta – ponta à ponta
Piruetas
Poesia
Post mortem
Presa do ódio
Preso ao trapézio da rima
Pressago
Primeira comunhão
Pródigo
Quando ela está de colete
Quando estás de laçarotes
Quando eu partir
Quando será
Questão brocardo
Rebelado
Recolta das estrelas
Recorda
Regenerada
Regina coeli
Requiém
Requiém do sol
Ressureição
Rosa
Santos óleos
Sapo humano
Satanismo
Saudação
Se estala e a strofe de fogo
Seios
Sem esperança
Sempre
Sempre e sempre
Sempre o sonho
Sentimento esquisito
Sentimentos carnais
Ser dos seres
Ser pássaro
Serpente de cabelos
Sete de setembro
Sexta-feira santa
Sganarelo
Siderações
Silêncios
Sinfonias do acaso
Somrzando
Só !
Sonata
Soneto
Sonetos
Sonhador
Sonho branco
Sorriso interior
Spleen de deuses
Sr. M. Bernardino a. Varela
Supremo anseio
Supremo desejo
Supremo verbo
Tédio
Teus olhos belos olhos por dentro
Teus olhos – esses carinhos
Torre de ouro
Tortura eterna
Três Pensamentos
Triste
Tristeza do infinito
Truinfo supremo
Tuberculosa
Tulipa real
Um ser
Único remédio
Vão arrebatamento
Velhas tristezas
Velho
Velho vento
Versos
Versos à Infância
Vesperal
Vida obscura
Vinho negro
Violões que choram
Visão
Visão da morte
Visão guiadora
Visionários
Voz fugutiva
Zulmira dos meus amores

 

5 dez 1882

Embeberam-me a pena em fel! Antônio (Mendes Leal)

Deixai que deste álbum na folha delicada
Eu venha difundir meus rudes pensamentos
Deixai que as pobres rimas, uns nadas poeirentos
Eu possa transudar da mente entrenublada!…

Deixai que de minh’alma na fibra espedaçada
Eu busque inda vibrar uns cantos tardos, lentos!…
Bem cedo os vendavais, aspérrimos, cruentos
Ai! Tudo arrojarão à campa amargurada!

Porém qu’importa isso! dos mares desta vida
Nos pávidos, estranhos, enormes escarcéus
Se alguma coisa val, és tu, ó luz querida!…

Rasguemos do porvir os áditos, os véus!…
Riamos sem cessar, embora em dor sentida!…
Também as nuvens negras conglobam-se nos céus!

24 dez 1880

Dieu a fait la mer, les oiseaux,
les cieux, Toute la nature enfin;
mais les hommes ont découvert les sciences,
les arts et les lettres qui les élèvent jusqu’à même
Dieu.

De Mayseder gentil o vulto ingente
De Corelli, de Spohr e de Nardini,
De Ole Bull supernal, de Veracini
Inspirados por Deus c’o plectro ardente;

Dessa lira febril, áurea, potente
Do artista sem par, de Paganini;
De Viotti dinal, do herói Tardini,
De Lafont, de Baillot, Eck e Laurenti:

Sois rival feliz! e nesse crânio
Há em jorros, oh céus! extravasando
O ardor musical, o ardor titâneo…

Já bem cedo, veloz, ides galgando
Lá da glória os degraus, o supedâneo
Sobre um trono de luz rindo e cantando.

28 nov 1882

A mocidade é a alavanca do templo da ciência, no futuro; só
ela tem o direito de ser a força motriz dos fenômenos intelectuais
das
grandes revoluções do pensamento.
(Do Autor)

Alçando o livro colossal ardente
Traças no crânio um sulco luminoso,
E vais seguindo o remontar garboso
Do sol fagueiro lá no espaço ingente!

Ergues a fronte juvenil potente
Já como herói ou lutador famoso
E c’uma forma de pensar honroso
Fazes-te esperança da brasílea gente!

Seis vezes astro de maior grandeza
Enfim lá surges nos exames belos
Enfim triunfas na brilhante empresa!

Seis vezes quebras da ignorância os elos,
Seis vezes vives com mais sã firmeza,
Gemem seis vezes a louvar-te os prelos!…

Abelhas

Gotas de luz e perfume,
Leves, tênues, delicadas,
Acesas no doce lume
De purpúreas alvoradas.

Pingos de ouro cristalinos
Alados na esfera, ondeando,
Dispersos por entre os hinos,
Da natureza vibrando.

Sorrisos aéreos, soltos,
Flavas asas radiantes,
Que levam consigo envoltos
Da aurora os sóis fecundantes.

Da aurora que a primavera
Faz cantar, brota no peito
E floresce em folhas de hera
O coração satisfeito.

Essa aurora produtiva
Do amor soberano e eterno,
Que é nas almas força viva
E nas abelhas falerno.

Nas doudejantes abelhas
Que dentre flores volitam
E do sol entre as centelhas
Resplendem, fulgem, palpitam.

Zumbem, fervem nas colméias
E rumorejam no enxame
Pelas flóridas aléias
Onde um prado se derrame.

Assim mesmo pequeninas
E quase invisíveis, quase,
Com as suas asitas finas,
De etérea de fluida gaze.

Ah! quanto são adoráveis
Os favos que elas fabricam!
Com que graças inefáveis
Se geram, se multiplicam.

Nos afãs industriosos
Que enlevo, que encanto vê-las
Com seus corpos luminosos
D’iriante brilho d’estrelas.

E nas ondas murmurosas
Dos peregrinos adejos
Vão dar ao lábio das rosas
O mel doirado dos beijos.

A borboleta azul

No alegre sol de então
De uma manhã de amor,
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.
Ia e vinha e a voar
Gentil e trêfega, azul,
Sonoramente a percorrer pelo ar,
Como um silfo tenuíssimo e taful.

Sobre os frescos rosais
Pousava débil, sutil,
Doirando tudo de um risonho abril
Feito de beijos e de madrigais.

Que doce embriaguez
O vôo assim seguir
Da borboleta azul, correndo, a vir
Do espaço pela Etérea candidez!

Fazendo, tal e qual,
O mesmo giro assim,
O mesmo vôo límpido, sem fim,
Nos mundos virgens de qualquer ideal.

Ir como ela também
Em busca das loucas
E tropicais e fulgidas manhãs
Cheias de colibris e sol, além…

Ir com ela na luz
De mundos através,
Sem abrolhos nas mãos, cardos nos pés,
Ó alma, minha, que alegria a flux!…

No alegre sol de então
De uma manhã de amor
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.

Abrigo celeste

Estrela triste a refletir na lama,
Raio de luz a cintilar na poeira,
Tens a graça sutil e feiticeira,
A doçura das curvas e da chama.

Do teu olhar um fluido se derrama
De tão suave, cândida maneira
Que és a sagrada pomba alvissareira
Que para o Amor toda aminh’alma chama.

Meu ser anseia por teu doce apoio,
Nos outros seres só encontra joio
Mas só no teu todo o divino trigo.
Sou como um cego sem bordão de arrimo
Que do teu ser, tateando, me aproximo
Como de um céu de carinhoso abrigo.

Acima de tudo

Da gota d’água de um carinho agreste
Geram-se os oceanos da Bondade.
O coração que é livre e bom reveste
Tudo d’encanto e simples majestade.

Ascender para a Luz é ser celeste,
Novos astros sentir na imensidade
Da alma e ficar nessa inconsútil veste
Da divina e serena claridade.

O que é consolador e o que é supremo
Cada alma encontra no caminho extremo,
Quando atinge às estrelas da pureza.

É apenas trazer o Ser liberto
De tudo e transformar cada deserto
Num sonho virginal da Natureza!

Acrobata da dor

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta…

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d’aço…

E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.

Adalziza

Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa,
Tens um pisar fascinante,
Tens um olhar cintilante
Cheio de raios, faiscante
Ó criatura formosa,
Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa!…

A dor

Torva Babel das lágrimas, dos gritos,
Dos soluços, dos ais, dos longos brados,
A Dor galgou os mundos ignorados,
Os mais remotos, vagos infinitos.

Lembrando as religiões, lembrando os ritos,
Avassalara os povos condenados,
Pela treva, no horror, desesperados,
Na convulsão de Tântalos aflitos.

Por buzinas e trompas assoprando
As gerações vão todas proclamando
A grande Dor aos frígidos espaços…

E assim parecem, pelos tempos mudos,
Raças de Prometeus titânios, rudos,
Brutos e colossais, torcendo os braços!

A espada

I

Cavalheiros, os tempos já passados, De pajens, de canzéis,
de fidalguia, De castelos, de reinos brasonados.

Ar cortesão de graça e fantasia
Através dos olhares e dos beijos
— No silêncio de cada galeria…

Foi nesse bravo tempo dos lampejos
De espadas, de punhais e de couraças
Por combater frementes de desejos.

No tempo dos floreios e das caças
Dos assaltos alegres e bizarros
Como as sonoras vibrações das ta&ccediccedil;as.

Em que as almas airosas como jarros, Cheios de vinho espumejante e ardente
Eram de glória vencedores carros!

Foi no tempo fidalgo e refulgente, Quando o heroísmo fantasioso amava
A linha e a chama de luzida gente,

Que esta cena galharda se passava, Quando um donzel partia para guerra Como
a nobreza do solar mandava.

O pai, um tronco transudando a terra, Forte e viril, presença de profeta
Que no seu flanco a valentia encerra.

Barbas serenas de bondoso asceta
Em cuja alvura doce e veneranda
Vê-se a vontade e a intrepidez completa.

Fronte banhada de meiguice branda
A que o dever e os ríspidos conselhos
Dão sempre a austeridade que age e manda.

Lembra um ocaso de clarões vermelhos,
Musgoso, triste, desolado muro,
Por onde o luar abre fulgor d’espelhos.

E esse semblante que parece duro, Áspero e torvo, trouxe-o dos combates,
Do torvelinho do nevoeiro escuro.

Dos pelouros sanguíneos escarlates,
De fogo aberto em turbilhões, vorazes, Dos impulsivos, bélicos
rebates.

Mas, bem olhadas, as feições audazes
Desse velho patriarca destemido
Tinha a suavidade dos lilazes.

Nos olhos, um passado consumido Entre aventuras e colóquios belos
Como que faz um verdadeiro ruído…

Sente-se neles noites de castelos
Gozadas em amores dadivosos,
Em madrigais, em íntimos desvelos.

Cavalgadas, torneios donairosos, Sonho feliz de rica mocidade, Requintes
ideais, cavalheirosos.

Tudo se sente na tranqüilidade Desse deus varonil da força antiga
Feito com o rijo bloco da Verdade.

Tudo se sente nessa paz amiga
Que as crenças do passado às outras crenças
Vagas, futuras, para sempre liga.

Tudo se sente vir das névoas densas
E da ridente e cândida meiguice
Das suas barbas límpidas e imensas.

Sim! tudo da quase criancice
Que dão aos homens esses tons nevoentos
Da enregelada e trêmula velhice.

Porém, reatando aéreos pensamentos… Comecemos na cena detalhada
Que já das eras se espalhou nos ventos.

É nada mais que a história duma espada, História curta,
mas interessante
Duma espelhante lâmina timbrada.

Não é pelo aço ou lâmina espelhante
Que irei contar, pois são comuns os aços, Mas pelo nobre e original
rompante.

Pelo ardimento que os primeiros braços
Que a manejaram com pujança e brio
Nela gravaram, com profundos traços.
II

O velho, em pé, atlético e sombrio
Diante do filho armado cavaleiro,
No aspecto dum leão ruivo e bravio.

Fala-lhe claro, d’alto e sobranceiro, Numa solene e enérgica
atitude
De quem nos prélios sempre foi primeiro.

O filho, grave o escuta e atende a rude
Lhanez estóica de palavra augusta
Que dos lábios lhe sai, com tal saúde.

Calmo, sem se mover, firme a robusta
Figura solarenga do estoicismo, O velho disse esta nobreza justa:

“Aqui tens esta espada que o heroísmo Dos teus avós honrou
nessas campanhas, Com o mais ousado, intrépido civismo.

Freme ainda hoje em convulsões estranhas, Palpita e anseia dentro
da bainha
Sonhando a luta, as implacáveis sanhas.

Tu, para a teres, como eu sempre a tinha, Num triunfo imortal, quase divino,
De gládio que o valor maior continha;

É necessário um grande ardor leonino, Que sejas bem idólatra
do nome
Que fez de mim o extremo paladino.

A ferrugem, tu vês, o aço consome… Porém, neste aço
que ainda aqui fulgura, Se houver ferrugem, tira-a com o renome.

Aqui tens, pois, a lâmina segura, Alma e brasão da nossa velha
casa Coberta de ovações, famosa e pura”.

Calou-se um instante, como a ave que a asa Fechou no voar, já quase
que abatida, Caindo exausta junto a moita rasa.

O filho, mudo e respeitoso, erguida A valente cabeça leal de moço,
Formoso estava, porejando vida.

E enquanto o velho, impávido colosso, Calara-se num momento, emocionado
Ficara o filho em íntimo alvoroço.
Mas de repente, como iluminado
Por um clarão de glórias já extintas,
Tornou o velho, aos poucos transformado:

“Podes partir! Porém nunca desmintas
Nas pelejas o dom da nossa fama,
Por menos força que no peito sintas.

Como um clarim, por toda a parte aclama
O vigor deste ferro e do teu pulso
No combate que ruja, ulule e brama,’.

E cada vez mais pálido e convulso, Mais nervoso e febril e mais altivo
Bradou ainda, num tremendo impulso:

“Se tu, que és da minh’alma o exemplo vivo, Meu filho, tens de
ser como um cobarde, Como um vilão abjeto e repulsivo;

Não faças mais de fidalguia alarde, Pega esta espada, meu Afonso,
pega
E quebra-a de uma vez, que não é tarde.

Pois em lugar de fazer dela entrega
Aos sequiosos, feros inimigos
Antes a quebre a cólera mais cega.

Ei-la, aqui tens, a leoa dos perigos,
Que como outrora em minha mão lampeja
Da bravura e da fama nos abrigos.

Se não a tens de honrar nessa peleja
Escuta bem, ó meu amado filho,
Quebra-a, e o teu nome nem manchado seja.

Como eu faria noutra idade e brilho, Com outras energias musculares, Segue-me
tu no denodado trilho,,.

E assim falando, em gestos singulares, E agigantado corpo retesando
E um tom sinistro esparso nos olhares;

A cabeça nos ares agitando
Numa alucinação, — enorme ereto, Como heróica visão,
deblaterando…

Fitando bem o filho predileto, Como se de repente lhe brotasse
A força hercúlea dum poder secreto.

O velho, qual um templo que abalasse, A mão crispada, lívida
e nervosa,
Com todo o esforço a lhe afluir na face, Partiu no joelho a espada
vitoriosa.

Afra

Ressurges dos mistérios da luxúria,
Afra, tentada pelos verdes pomos,
Entre os silfos magnéticos e os gnomos
Maravilhosos da paixão purpúrea.

Carne explosiva em pólvoras e fúria
De desejos pagãos, por entre assomos
Da virgindade–casquinantes momos
Rindo da carne já votada a incúria.

Votada cedo ao lânguido abandono,
Aos mórbidos delíquios como ao sono,
Do gozo haurindo os venenosos sucos.

Sonho-te a deusa das lascivas pompas,
A proclamar, impávida, por trompas,
Amores mais estéreis que os eunucos!

A grande sede

Se tens sede de Paz e d’Esperança,
se estás cego de Dor e de Pecado,
valha-te o Amor, ó grande abandonado,
sacia a sede com amor, descansa.

Ah! volta-te a esta zona fresca e mansa
do Amor e ficarás desafogado,
hás de ver tudo claro, iluminado
da luz que uma alma que tem fé alcança.

O coração que é puro e que é contrito,
se sabe ter doçura e ter dolência,
revive nas estrelas do Infinito.

Revive, sim, fica imortal, na essência
dos Anjos paira, não desprende um grito
e fica, como os Anjos, na Existência.

A harpa

Prende, arrebata, enleva, atrai, consola
A harpa tangida por convulsos dedos,
Vivem nela mistérios e segredos,
É berceuse, é balada, é barcarola.

Harmonia nervosa que desola,
Vento noturno dentre os arvoredos
A erguer fantasmas e secretos medos,
Nas suas cordas um soluço rola…

Tu’alma é como esta harpa peregrina
Que tem sabor de música divina
E só pelos eleitos é tangida.
Harpa dos céus que pelos céus murmura
E que enche os céus da música mais pura,
como de uma saudade indefinida.

A idéia do infinito

À distinta e laureada atrizinha
Julieta dos Santos

“…A fama de teu nome,
a inveja não consome, o tempo não destrói!…
(Dr. Symphronio)

Era uma coluna de artistas!… Ao lado Tasso
Medindo as múltiplas conquistas Co’as amplidões do espaço!…
Seguia-se João Caetano
Embuçado da glória no divinal arcano!…
Depois Joaquim Augusto
Altivo, sobranceiro, erguido o nobre busto. Depois Rachel, Favart,
Fargueil, a espadanar
Nas crispações homéricas da arte, Constelações
azuis por toda a parte! E em suave ondulação os astros
Vão de rastros
Roubar mais luz às rúbidas auroras!… Quais precursoras
Do mais ingente e mago dos assombros, Do orbe imenso nos calcáreos
ombros,
Rola um dilúvio, um grande mar de estrelas
Que lançam chispas cambiantes, belas!… Há um estranho amalgamar
de cousas Como os segredos funerais das lousas
Ou o rebentar de artérias
— Ou o esgarçar de brumas, Negras, cinérias
— Ou o referver de espumas, Nas longas praias
Alvinitentes, mádidas, sem raias.
Do brônzeo espaço, Das fibras d’aço
Como que desloca-se um pedaço
Que vai ruir com trépido sarcasmo
Nas obumbradas regiões do pasmo…
— O Invisível
Geme uma música, lânguida, saudosa, Que vai sumir-se na entranha
silenciosa Do impassível!
— O Imutável
— O Insondável
La vão cair no seio do incriado. E o bosque irado
A soletrar uns cânticos titânios
Lança nos crânios
Aluvião de auras epopéias
Tétricas idéias!…
E o pensamento embrenha-se nos mares
E vê colares
De níveas pérolas, límpidas, nitentes
E vê luzentes
Conchas e búzios e corais, — ondinas
Que peregrinas
Aspásias são de lúcida beleza,
De moles formas, desnudadas, brancas
Sendo a primesa
Dessas paragens hiemais e francas!…
— Ou quais Phrynés
A quem aos pés
O mundo em ânsias, reverente adora
E chore e chora!!…
…………………………………………………………. Mas a
idéia o pensamento insano
As asas bate em busca de outro arcano, E o manto rasga do horizonte eterno
Vai ao superno
Ao Criador, ao Menestrel dos mundos! E n’uns arroubos, rábidos, profundos
Em luta infinda
— Oh! quer ainda
Quer escalar o templo do impossível,
Bem como um raio abrasador, terrível!…
Quer se fartar de maravilhas loucas, Quer ver as bocas
Dos colossais Antheus da eternidade!… Quer se fartar de luz e divindade
E de saber,
Depois jazer
Nas invisíveis cobras do insondável,
Bem como um verme, mísero, imprestável!…
— Ou quer ousado
Descortinar os crimes do passado E apalpar as gerações dos Gracos
Dos Espartanos
E dos Troianos E dos Romanos, Dos Sarracenos E dos Helenos,

E esbarrar nesse montão de ossos
Por esses fossos
Tredos, medonhos, sepulcrais e frios
Onde sombrios
Andam espíritos de pavor, errantes
E vacilantes
Como a luzinha das argênteas lampas,
Lentos e lentos através das campas!…
………………………………………………………… Mas a idéia,
o pensamento audaz
Quer ainda mais!…
Quer do ribombo do trovão pujante Já n’um esforço
adamastório, tredo Embora a medo,
— O atroz segredo
Com que ele faz a terra palpitante!… E quer dos ventos
Dos elementos
Quer do mistério a solução! — Nas trevas
Hórridas, sevas, A gargalhada
Ríspida, negra irônica, pesada, Estruge enfim, da morte legendária,
E a idéia vária
Ainda n’isso ousando penetrar, Tenta sondar!…
E em vão, em vão
A mergulhar-se em tanta confusão
Não mais compreende
— O que saber pretende!… Assim, oh! gênio,
Na ofuscadora auréola do proscênio
Não sei se és astro, se és Esfinge ou mito, Se do infinito
Possuis o encanto, os esplendores grandes, Ou se dos Andes
Águia tu és, ou és condor divino,
— Ou és cometa de cuja cauda enorme
É multiforme
Só lágrimas de prata
Ou mesmo se desata
Um vagalhão de palmas, diamantino!!… Minh’alma oscila e até
na fronte sinto Medonho labirinto,
Estúpida babel, E vou cair, revel
No pélago sem fim dos nadas materiais!… E como os racionais
Eu fico a ruminar ainda umas idéias
De erguer-te, o novo Talma
Um trono singular, mas feito de — Odisséias
De brancas alvoradas, Olímpicas, nevadas,
Dos êxtases magnéticos, nervosos de minh’alma!

A imprensa

(Desterro, 21 nov. 1880)
A Imprensa e brilhante como o meteoro, sublime como os arrebóis do
cerúleo infinito!
(Do Autor)

A lâmpada gigantesca
Das glórias do porvir,
Turíbulo majestoso
No mundo a irradir,
É a imprensa tesouro
E c’roa de verde louro
A fronte do escritor!
E centelha sublimada
Que vem do céu arrojada
A treva dando fulgor!

— O homem nasceu pequeno
Mas com as letras cresceu
Foi como o vulto de Rodes
Que lá tão alto s’ergueu!
Foi preciso — estudando
Co’a própria idéia lutando
Mergulhar-se na luz!
Foi preciso ter glória,
Brilhante, leda memória,
Colher renomes a flux!

Foi preciso mil lutas
Mil labores insanos
P’ra descobrir nesses mundos
Da diva luz os arcanos!
Foi preciso que um bravo
Não mostrando-se ignavo
Mas inspirado por Deus!
A pedra bruta talhasse
E a luz então derramasse
Qual seiva santa dos Céus!

Foi preciso os séculos
Ainda um pouco nas trevas
Erguessem as frontes bem alto
E devastassem mil selvas!
Foi preciso que o mundo
Sentisse abalo profundo
Ao desvendar- se o saber!
Foi preciso que os entes
Ou se erguessem potentes
Ou tombassem a morrer!

Mas não! — o homem ergueu-se,
Quase, quase com Deus
Tirou a fronte da treva
E só pregou-a nos
Céus! Viu o futuro de louros
E quis colher os tesouros
Que dão renome sem fim!
Sonhou, sonhou co’a vitória
E o gládio teve da glória
Qual o grão Bernardim!

O homem, gênio sublime,
Caminha, com seu bordão
Até achar o brilhante
A luz, a luz da razão!
Tropeça um pouco, se tomba
Ergue-se, voa qual pomba
E indo a luz descobrir,
Busca ouvir no infinito
Do eco ao longe este grito:
Trabalha para o porvir!

Quando os povos modernos,
Sentirem no coração
Uma ardente centelha
Que caia lá d’amplidão!
Deixarão esses vícios,
Insanos, negros, fictícios
Que dão só noite ao viver!
E irão curvados a ela
Depor-lhe verde capela
Farão então por crescer!

Camões, Milton, Abreu,
Já da vida sem lampas,
Erguei-vos crânios altivos
Espedaçai essas campas!
Dizei — se o homem caminha
Se na treva definha
A quem se deve louvar?!…
S’as letras seguem ovantes
Dizei ó nobres gigantes
A quem se ergue alcaçar?!!…

E Guttemberg esse herói,
Essa vergôntea dinal,
Que co’escopro na destra!
Foi das letras fanal!
Ao descobrir a imprensa
Essa epopéia imensa
Para toda a nação,
Com glória ingente sonhava
Na luz por certo nadava
Já tinha os louros na mão!

Alda

Alva, do alvor das límpidas geleiras,
Desta ressumbra candidez de aromas…
Parece andar em nichos e redomas
De Virgens medievais que foram freiras.

Alta, feita no talhe das palmeiras,
A coma de ouro, com o cetim das comas,
Branco esplendor de faces e de pomas
Lembra ter asas e asas condoreiras.

Pássaros, astros, cânticos, incensos
Formam-lhe aureoles, sóis, nimbos imensos
Em torno a carne virginal e rara.

Alda fez meditar nas monjas alvas,
Salvas do Vicio e do Pecado salvas,
Amortalhadas na pureza clara.

Alma fatiada

Vê como a Dor te transcendentaliza!
Mas no fundo da Dor crê nobremente.
Transfigura o teu ser na força crente
Que tudo torna belo e diviniza.

Que seja a Crença uma celeste brisa
Inflando as velas dos batéis do Oriente
Do teu Sonho supremo, onipotente,
Que nos astros do céu se cristaliza.

Tua alma e coração fiquem mais graves,
Iluminados por carinhos suaves,
Na doçura imortal sorrindo e crendo…

Oh! Crê! Toda a alma humana necessita
De uma Esfera de cânticos, bendita,
Para andar crendo e para andar gemendo!

Alma fatigada

Nem dormir nem morrer na fria Eternidade!
mas repousar um pouco e repousar um tanto,
os olhos enxugar das convulsões do pranto,
enxugar e sentir a ideal serenidade.

A graça do consolo e da tranqüilidade
de um céu de carinhoso e perfumado encanto,
mas sem nenhum carnal e mórbido quebranto,
sem o tédio senil da vã perpetuidade.

Um sonho lirial d’estrelas desoladas,
onde as almas febris, exaustas, fatigadas,
possam se recordar e repousar tranqüilas!

Um descanso de Amor, de celestes miragens,
onde eu goze outra luz de místicas paisagens
e nunca mais pressinta o remexer de argilas!

Alma ferida

Alma ferida pelas negras lanças
da Desgraça, ferida do Destino,
Alma, de que a amargura tece o hino
sombrio das cruéis desesperanças;

Não desças, Alma feita das heranças
da Dor, não desças do teu céu divino.
Cintila como o espelho cristalino
das sagradas, serenas esperanças.

Mesmo na Dor espera com clemência e
sobe à sideral resplandecência,
longe de um mundo que só tem peçonha.

Das ruínas de tudo ergue-te pura
e eternamente, na suprema Altura,
suspira, sofre, cisma, sente, sonha!

Alma mater

Alma da Dor, do Amor e da Bondade,
alma purificada do Infinito,
Perdão Santo de tudo o que é maldito,
harpa consoladora da Saudade!

Das estrelas serena virgindade,
caminho dos rosais do Azul bendito,
alma sem um soluço e sem um grito,
da alta Resignação, da alta Piedade!

Tu, que as profundas lágrimas estancas e
sabes levantar Imagens brancas
no silêncio e na sombra mais velada…

Derrama os lírios, os teus lírios castos,
em Jordões imortais, vastos e vastos,
no fundo da minh’alma lacerada!

Almas indencisas

Almas ansiosas, trêmulas, inquietas,
fugitivas abelhas delicadas
das colméias de luz das alvoradas,
almas de melancólicos poetas.

Que dor fatal e que emoções secretas
vos tornam sempre assim desconsoladas,
na pungência de todas as espadas,
na dolência de todos os ascetas?!

Nessa esfera em que andais, sempre indecisa,
que tormento cruel vos nirvaniza,
que agonias titânicas são essas?!

Por que não vindes, Almas imprevistas,
para a missão das límpidas Conquistas
e das augustas, imortais Promessas?!

Alma solitaria

Ó Alma doce e triste e palpitante!
que cítaras soluçam solitárias
pelas Regiões longínquas, visionárias
do teu Sonho secreto e fascinante!

Quantas zonas de luz purificante,
quantos silêncios, quantas sombras várias
de esferas imortais, imaginárias,
falam contigo, ó Alma cativante!

que chama acende os teus faróis noturnos
e veste os teus mistérios taciturnos
dos esplendores do arco de aliança?

Por que és assim, melancolicamente,
como um arcanjo infante, adolescente,
esquecido nos vales da Esperança?!

Alucinação

Ó solidão do Mar, ó amargor das vagas,
Ondas em convulsões, ondas em rebeldia,
Desespero do Mar, furiosa ventania,
Boca em fel dos tritões engasgada de pragas.

Velhas chagas do sol, ensangüentadas chagas
De ocasos purpurais de atroz melancolia,
Luas tristes, fatais, da atra mudez sombria
Da trágica ruína em vastidões pressagas.

Para onde tudo vai, para onde tudo voa,
Sumido, confundido, esboroado, à-toa,
No caos tremendo e nu dos tempo a rolar?

Que Nirvana genial há de engolir tudo isto –
– Mundos de Inferno e Céu, de Judas e de cristo,
Luas, chagas do sol e turbilhões do Mar?!

Amor

Nas largas mutações perpétuas do universo
O amor é sempre o vinho enérgico, irritante…
Um lago de luar nervoso e palpitante…
Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,
Nem mesmo as convenções as mais superiores;
E vamos pela vida assim como os noctâmbulos
à fresca exalação salúbrica das flores…

E somos uns completos, célebres artistas
Na obra racional do amor — na heroicidade,
Com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige
E amamos com vigor e com vitalidade,
A cor, os tons, a luz que a natureza exige!…

A moreira vasconcelos

(Na luta dos impossíveis, do espirito e da matéria, tu és
a águia sidérea
dos pensamentos terríveis!
(Do Autor)
Desterro, 13 jan. 1883)

É um pensar flamejador, dardânico
Uma explosão de rápidas idéias,
Que como um mar de estranhas odisséias
Saem-lhe do crânio escultural, titânico!…

Parece haver um cataclismo enorme
Lá dentro, em ânsia, a rebentar, fremente!…
Parece haver a convulsão potente,
Dos rubros astros num fragor disforme!…

Hão de ruir na transfusão dos mundos
Os monumentos colossais profundos,
As cousas vãs da brasileira história!

Mas o seu vulto, sobre a luz alçado,
Oh! há de erguer-se de arrebóis c’roado,
Como Atalaia nos umbrais da glória!!…

A morte

Oh! que doce tristeza e que ternura
no olhar ansioso, aflito dos que morrem…
De que âncoras profundas se socorrem
os que penetram nessa noite escura!

Da vida aos frios véus da sepultura
vagos momentos trêmulos decorrem…
E dos olhos as lágrimas escorrem
como faróis da humana Desventura.

Descem então aos golfos congelados
os que na terra vagam suspirando,
com os velhos corações tantalizados.

Tudo negro e sinistro vai rolando
báratro abaixo, aos ecos soluçados
do vendaval da Morte ondeando, uivando…

Anda me a alma

Anda-me a alma inteira de tal sorte,
Meus gozos, meu pesar, nos dela unidos
Que os dela são também os meus sentidos,
Que o meu é também dela o mesmo norte.

Unidos corpo a corpo — um elo forte
Nos prende eternamente — e nos ouvidos
Sentimos sons iguais. Vemos floridos
Os sons do porvir, em azul coorte…

O mesmo diapasão musicaliza
Os seres de nos dois — um sol irisa
Os nossos corações — dá luz, constela…

Anda esta vida, espiritualizada
Por este amor — anda-me assim — ligada
A minha sombra com a sombra dela.

Angelus

Ah! lilazes de Ângelus harmoniosos,
Neblinas vesperais, crepusculares,
Guslas gementes, bandolins saudosos,
Plangências magoadíssimas dos ares…

Serenidades etereais d’incensos,
De salmos evangélicos, sagrados,
Saltérios, harpas dos Azuis imensos,
Névoas de céus espiritualizados.

Ângelus fluidos, de luar dormente,
Diafaneidades e melancolias…
Silêncio vago, bíblico, pungente
De todas as profundas liturgias.

É nas horas dos Ângelus, nas horas
Do claro-escuro emocional aéreo,
Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras
Ondulações e brumas do Mistério.

Surges, talvez, do fundo de umas eras
De doloroso e turvo labirinto,
Quando se esgota o vinho das Quimeras
E os venenos românticos do absinto.

Apareces por sonhos neblinantes
Com requintes de graça e nervosismos,
Fulgores flavos de festins flamantes,
Como a Estrela Polar dos Simbolismos.

Num enlevo supremo eu sinto, absorto,
Os teus maravilhosos e esquisitos
Tons siderais de um astro rubro e morto,
Apagado nos brilhos infinitos.

O teu perfil todo o meu ser esmalta
Numa auréola imortal de formosuras
E parece que rútilo ressalta
De góticos missais de iluminuras.

Ressalta com a dolência das Imagens,
Sem a forma vital, a forma viva,
Com os segredos da Lua nas paisagens
E a mesma palidez meditativa.

Nos êxtases dos místicos os braços
Abro, tentado de carnal beleza…
E cuido ver, na bruma dos espaços,
De mãos postas, a orar, Santa Teresa!…

Anima mea

Ó minh’alma, ó minh’alma, ó meu Abrigo,
meu sol e minha sombra peregrina,
luz imortal que os mudos ilumina
do velho Sonho, meu fiel Amigo;

Estrada ideal de São Tiago, antigo
templo da minha Fé, casta e divina,
de onde é que vem toda esta mágoa fina
que é, no entanto, consolo e que eu bendigo?

De onde é que vem tanta esperança vaga,
de onde vem tanto anseio que me alaga,
tanta diluída e sempiterna mágoa?

Ah! de onde vem toda essa estranha essência
de tanta misteriosa Transcendência,
que estes olhos me deixam rasos de água?!

Anjo gabriel

Na calma irradiação das noites estreladas Alto e claro aparece,
alto, aparece, claro, Alvo, claro, no luar das estrelas prateadas, No triunfal
esplendor celestemente raro.

O seu busto de Excelso, a sua graça fina,
A linha de harpa ideal do seu perfil augusto, Estremecem de luz, de uma luz
peregrina,
Do secreto fulgor de um sentimento justo.

Serenidade e glória e paz do Paraíso Flutuam-lhe na face alvorecida
e doce E quando ele sorri é como se o sorriso
Claros astros semear por todo o espaço fosse.

Leve, loura, .radial, a soberba cabeça
Eleva-se da flor do níveo colo louro
E não há outro sol que tanto resplandeça
Como o sol virginal dessa cabeça de ouro.

As mãos esculturais, de ebúrnea transparência,
De divina feitura e de divino encanto,
Lembram flores sutis de sonhadora essência
Da etérea languidez e de etéreo quebranto.

Das madeixas reais largo deslumbramento
Num flavo jorro cai, com sagrado abandono…
E sai do Anjo o quer que é de vago e de nevoento
Que lembra o despertar sonâmbulo de um sono…

De alto a baixo, do Azul, desfilando das brumas, Abre todo ele em flor como
nevado lírio,
Belo, branco, eteral, do candor das espumas, Banhado nos clarões e
cânticos do Empíreo.

Maravilhoso e nobre ergue no braço ovante Um gládio singular
que rútilo cintila… Enquanto o seu olhar de mágico diamante
Aflora em plenilúnio através da pupila.

Que o seu olhar, então, esse, recorda tudo
O quanto há de tranqüilo e luminoso e casto. Maio de ouro a florir
meigos céus de veludo E a neve a cintilar sobre o monte mais vasto.

Do puro albor astral das asas majestosas Desprendem-se no Azul mistérios
de harmonia… Entre as angelicais suavidades radiosas
Parece o Anjo Gabriel o alto Enviado do Dia!

Na chama virginal de tão rara beleza
Brilha a força de um Deus e a mística doçura… E sai
das seduções de tamanha pureza
Toda a melancolia errante da ternura.

Do suntuoso agitar das delicadas vestes Tecidas de jasmins, de rosas, de
açucenas, Vem o aroma cristão dos aromas celestes Todas as imortais
emanações serenas…

Transfigurado, excelso, agigantado, imenso, Na candidez hostial das formas
impecáveis, Fica parado no ar, levemente suspenso
De raios siderais, de fluidos inefáveis.

Mas quando o seu perfil nas amplidões floresce
E das asas se lhe ouve a música sonora
Quando ele agita o gládio e as madeixas, parece
Que vai noctambular pelo Infinito afora.

E alto, branco, de pé, destacado no Espaço, Eleito das Regiões
de estranhas Primaveras, Traça, com o gládio no ar, alevantando
o braco, Uma cruz de Perdão na mudez das Esferas!

Ansiedade

Esta ansiedade que nos enche o peito,
enche o céu, enche o mar, fecunda a terra,
ela os germens puríssimos encerra
do Sentimento límpido, perfeito.

Em jorros cristalinos o direito,
a paz vencendo as convulsões da guerra, a
liberdade que abre as asas e erra
pelos caminhos do Infinito eleito.

Tudo na mesma ansiedade gira,
rola no Espaço, dentre a luz suspira
e chora, chora, amargamente chora…

Tudo nos turbilhões da Imensidade
se confunde na trágica ansiedade
que almas, estrelas, amplidões devora.

Antífonia

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!…
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas…
Incensos dos turíbulos das aras…

Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas…
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas…

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume…
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume…

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes…
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes…

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, sodas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rime clara e ardente…
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas…
Todo esse eflúvio que por ondas passe
Do Éter nas róseas e áureas correntezas…

Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos,
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos…

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios…
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios…..

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte…

Ao decênio de castro alves

Quem sempre vence e o porvir!

No espadanar das espumas
Que vão à praia saltar! Nos ecos das tempestades Da bela aurora
ao raiar,
Um brado enorme, profundo, Que faz tremer todo o mundo Se deixa logo sentir!
E como o brado solene, Ingente, celso, perene,
É como o brado: — Porvir!

Pergunta a onda: — Quem é?… Responde o brado: — Sou eu! Eu sou
a Fama, que venho C’roar o vate, o Criseu!
Dormi, meu Deus, por dez anos
E da natura os arcanos
Não posso todos saber!
Mas como ouvisse louvores
De glória, gritos, clamores,
Também vim louros trazer.

Fatalidade! — Desgraça! Fatalidade, meu Deus!
Passou-se um gênio tão cedo, Sumiu-se um astro nos céus!
As catadupas d’idéias,
De pensamento epopéias
Rolaram todas no chão! Saindo a alma pra glória Bradou pra pátria
— vitória! Já sou de vultos irmão!

Foi Deus que disse: — Poeta, Vem decantar a meus pés.
Na eternidade há mais luz, Dão mais valor ao que és.
Se lá na terra tens louros, Receberás cá tesouros
De muitas glórias até! Terás a lira adorada
C’o divo plectro afinado
De Dante, Tasso e Garret!

Então na terra sentiu-se Um grande acorde final! O belo vate brasíleo
Pendeu a fronte imortal!
O negro espaço rasgou-se
E aquele gênio internou-se
Na sempiterna mansão. A sua fronte brilhava
E o áureo livro apertava
Sereno e ledo na mão…

E o mundo então sobre os eixos
Ouviu-se logo rodar!
É que ele mesmo estremece
A ver um vulto tombar.
É que na queda dos entes Que são na vida potentes, Que têm
nas veias ardor,
Há cataclismos medonhos
Que só sentimos em sonhos
Mas que nos causam terror!…

E o coração s’estortega
E s’entibia a razão!
No peito o sangue enregela
E logo a história diz: — Não! Não chore a pátria
esse filho, Se procurou outro trilho Também mais glórias me
deu! E quando os séculos passarem Se hão de tristes curvarem
Enquanto alegre só eu?…

Oh! Basta! Basta! Silêncio! Repousa, vate, nos Céus! Que muito
além dos espaços Os cantos subam dos teus!
Se nesta vida d’enganos
Não são bastante os humanos
Pra te render ovações! Perdoa os fracos, ó gênio,
Que pra cantar teu decênio
Somente Elmano ou Camões!

Aos relâmpagos sulfúreos

Aos relâmpagos sulfúreos
Na esfera zigue-zagando
Como esses pobres tugúrios,
Aos relâmpagos sulfúreos
Se douram, brilham purpúreos
Fulguram de quando em quando,
Aos relâmpagos sulfúreos
Na esfera zigue-zagando.

Aparição

Por uma estrada de astros e perfumes
A Santa Virgem veio ter comigo:
Doiravam-lhe o cabelo claros lumes
Do sacrossanto resplendor amigo.

Dos olhos divinais no doce abrigo
Não tinha laivos de Paixões e ciúmes:
Domadora do Mal e do perigo
Da montanha da Fe galgara os cumes.

Vestida na alva excelsa dos Profetas
Falou na ideal resignação de Ascetas,
Que a febre dos desejos aquebranta.

No entanto os olhos dela vacilavam,
Pelo mistério, pela dor flutuavam,
Vagos e tristes, apesar de Santa!

A perfeição

A Perfeição é a celeste ciência
Da cristalização de almos encantos,
De abandonar os mórbidos quebrantos
E viver de uma oculta florescência.

Noss’alma fica da clarividência
Dos astros e dos anjos e dos santos,
Fica lavada na lustral dos prantos,
É dos prantos divina e pura essência.

Noss’alma fica como o ser que às lutas
As mãos conserva limpas, impolutas,
Sem as manchas do sangue mau da guerra.

A Perfeição é a alma estar sonhando
Em soluços, soluços, soluçando
As agonias que encontrou na Terra.!

A poesia interminável

A IDÉIA AO INFINITO

À distinta e laureada atrizinha Julieta dos Santos
“…A fama de teu nome, a inveja
não consome, o tempo não destrói!…

fDr. Symphronio

Era uma coluna de artistas!…

Ao lado Tasso
Medindo as múltiplas conquistas
Co’as amplidões do espaço!…

Seguia-se João Caetano
Embuçado da glória no divinal arcano!…

Depois Joaquim Augusto
Altivo, sobranceiro, erguido o nobre busto.

Depois Rachel, Favart,
Fargueil, a espadanar
Nas crispações homéricas da arte,
Constelações azuis por toda a parte!
E em suave ondulação os astros
Iam de rastros
Roubar mais luz às rúbidas auroras!…

Quais precursoras
Do mais ingente e mago dos assombros,
Do orbe imenso nos calcáreos ombros,
Rola um dilúvio, um grande mar de estrelas
Que lançam chispas cambiantes, belas!…

Há um estranho amalgamar de cousas
Como os segredos funerais das lousas
Ou o rebentar de artérias
— Ou o esgarçar de brumas,
Negras, cinéreas
— Ou o referver de espumas,
Nas longas praias
Alvinitentes, mádidas, sem raias.

Do brônzeo espaço,
Das fibras d’aço
Como que desloca-se um pedaço
Que vai ruir com trépido sarcasmo
Nas obumbradas regiões do pasmo…

— O Invisível
Geme uma música, lânguida, saudosa,
Que vai sumir-se na entranha silenciosa
Do impassível!
— O Imutável
— O Insondável
La vão cair no seio do incriado.

E o bosque irado
A soletrar uns cânticos titânios
Lança nos crânios
Aluvião de auras epopéias
Tétricas idéias!…

E o pensamento embrenha-se nos mares
E vê colares
De níveas pérolas, límpidas, nitentes
E vê luzentes
Conchas e búzios e corais, — ondinas
Que peregrinas
Aspásias são de lúcida beleza,
De moles formas, desnudadas, brancas
Sendo a primesa
Dessas paragens hiemais e francas!…

— Ou quais Frinés
A quem aos pés
O mundo em ânsias, reverente adora
E chore e chora!!…

Mas a idéia o pensamento insano
As asas bate em busca de outro arcano,
E o manto rasga do horizonte eterno
Vai ao superno
Ao Criador, ao Menestrel dos mundos!
E n’uns arroubos, rábidos, profundos
Em luta infinda
— Oh! quer ainda
Quer escalar o templo do impossível,
Bem como um raio abrasador, terrível!…

Quer se fartar de maravilhas loucas,
Quer ver as bocas
Dos colossais Anteus da eternidade!…

Quer se fartar de luz e divindade
E de saber,
Depois jazer
Nas invisíveis dobras do insondável,
Bem como um verme, mísero, imprestável!…

— Ou quer ousado
Descortinar os crimes do passado
E apalpar as gerações dos Gracos
Dos Espartanos
E dos Troianos
E dos Romanos,
Dos Sarracenos
E dos Helenos,
E esbarrar nesse montão de ossos
Por esses fossos
Tredos, medonhos, sepulcrais e frios
Onde sombrios
Andam espíritos de pavor, errantes
E vacilantes
Como a luzinha das argênteas lampas,
Lentos e lentos através das campas!…

Mas a idéia, o pensamento audaz
Quer ainda mais!…

Quer do ribombo do trovão pujante
Já n’um esforço adamastório, tredo
Embora a medo,
— O atroz segredo
Com que ele faz a terra palpitante!…

E quer dos ventos
Dos elementos
Quer do mistério a solução! — Nas trevas
Hórridas, sevas,
A gargalhada
Ríspida, negra irônica, pesada,
Estruge enfim, da morte legendária,
E a idéia vária
Ainda n’isso ousando penetrar,
Tenta sondar!…

E em vão, em vão
A mergulhar-se em tanta confusão
Não mais compreende
— O que saber pretende!…

Assim, oh! gênio,
Na ofuscadora auréola do proscênio
Não sei se és astro, se és Esfinge ou mito,
Se do infinito
Possuis o encanto, os esplendores grandes,
Ou se dos Andes
Águia tu és, ou és condor divino,
— Ou és cometa de cuja cauda enorme
É multiforme
Só lágrimas de prata
Ou mesmo se desata
Um vagalhão de palmas, diamantino!!…

Minh’alma oscila e até na fronte sinto
Medonho labirinto,
Estúpida babel,
E vou cair, revel
No pélago sem fim dos nadas materiais!…

E como os racionais
Eu fico a ruminar ainda umas idéias
De erguer-te, o novo Talma
Um trono singular, mas feito de — Odisséias
De brancas alvoradas,
Olímpicas, nevadas,
Dos êxtases magnéticos, nervosos de minh’alma!
SONETO

— Os Trópicos pulando as palmas batem…

Em pé nas ondas — O Equador dá vivas!…

Ao estrídulo solene dos bravos! das platéias,
Prossegues altaneira, oh! ídolo da arte!…

— O sol pára o curso p’ra bem de admirar-te
— O sol, o grande sol, o misto das idéias!…

A velha natureza escreve-te odisséias…

A estrela, a nívea concha, o arbusto… em toda a parte

Retumba a doce orquestra que ousa proclamar-te
Assombro do ideal, em duplas melopéias!
Perpassam vagos sons na harpa do mistério

Lá, quando no proscênio te ergues imperando
— Oh! Íbis magistral do mundo azul — sidéreo!
Então da imensidade, audaz vem reboando
De palmas o tufão, veloz, febril, aéreo
Que cai dentro das almas e as vai arrebatando!…
SONETO
À Julieta dos Santos

Dizem que a arte é a clâmide de idéia
A peregrina irradiação celeste,
E d’isso a prova singular já deste
Sorvendo d’ela a divinal sabéia!.

Da “Georgeta” na feliz estréia,
Asseverar-nos ainda mais vieste
Que és um gênio, que te vais de preste
Tornando o assombro de qualquer platéia!…

Sinto uns transportes fervorosos, ledos
Quando nas cenas de sutis enredos
Fulgem-te os olhos co’a expressão dos astros!…

E as turbas mudas, impassíveis, calmas
Sentem mil mundos lhes crescer nas almas…

Vão-te seguindo os luminosos rastros!…
SONETO
À Julieta dos Santos

Um dia Guttemberg c’o a alma aos céus suspensa,
Pegou do escopro ingente e pôs-se a trabalhar!
E fez do velho mundo um rútilo alcançar
Ao mágico clangor de sua idéia imensa!

Rolou por todo o globo a luz da sacra imprensa!
Ruiu o despotismo no pó, a esbravejar…

Uniram-se n’um lago, o céu, a terra, o mar…

Rasgou-se o manto atroz da horrível treva densa!…

Ergueram-se mil povos ao som das melopéias,
Das grandes cavatinas olímpicas da arte!
Raiou o novo sol das fúlgidas idéias!…

Porém, quem lança luz maior por toda a parte
És tu, sublime atriz, ó misto de epopéias
Que sabes no tablado subir, endeusar-te!…
SONETO
À Julieta dos Santos

É delicada, suave, vaporosa,
A grande atriz, a singular feitura…

É linda e alva como a neve pura,
Débil, franzina, divinal, nervosa!…

E d’entre os lábios cetinais, de rosa
Libram-se pérolas de nitente alvura…

E doce aroma de sutil frescura
Sai-lhe da leve compleição mimosa!…

Quando aparece no febril proscênio
Bem como os mitos do passado, ingentes,
Bem como um astro majestoso, helênio…

Sente-se n’alma as atrações potentes
Que só se operam ao fulgor do gênio,
Às rubras chispas ideais, ferventes!…
SONETO
À Julieta dos Santos

Imaginai um misto de alvoradas
Assim com uns vagos longes de falena,
Ou mesmo uns quês suaves de açucena
C’os magos prantos bons das madrugadas!…

Imaginai mil cousas encantadas…

O tímido dulçor da tarde amena,
As esquisitas graças de uma Helena,
As vaporosas noites estreladas…

Que encontrareis então em JULIETA
O tipo são, fiel da Georgeta
Nos dois brilhantes, primorosos atos!…

E sentireis um fluido magnético
Trêmulo, nervoso, mórbido, patético,
Bem como a voz dos langues psicattos!…
SONETO
À Julieta dos Santos

Parece que nasceste, oh! pálida divina,
Para seres o farol, a luz das puras almas!…

Parece que ao estridor, ao frêmito das palmas
Exalças-te feliz à plaga cristalina!…

Parece que se partem, angélica Bambina,
Às campas glaciais dos Tassos e dos Talmas,
Lá quando no tablado as turbas sempre calmas
Transmutas em vulcão, em raio que fulmina!…

E quando majestosa, em lance sublimado
Dardejas do olhar, olímpico, sagrado
Mil chispas ideais, titânicas, ardentes!…

Então sente-se n’alma o trêmulo nervoso
Que deve ter o mar, fantástico, espumoso
Nos grossos vagalhões, indômitos, frementes!!…
SONETO
À Julieta dos Santos

Quando apareces, fica-se impassível
E mudo e quedo, trêmulo, gelado!…

Quer-se ficar com atenção, calado,
Quer-se falar sem mesmo ser possível!.

Anda-se c’o a alma n’um estado horrível
O coração completamente ervado!…

Quer-se dar palmas, mas sem ser notado,
Quer-se gritar, n’uma explosão temível!…

Sobe-se e desce-se ao país das fadas,
Vaga-se co’as nuvens das mansões doiradas
Sob um esforço colossal, titânio!…

E as idéias galopando voam…

Então lá dentro sem parar, ressoam
As indomáveis convulsões do crânio!!…
SONETO
À Julieta dos Santos

Lágrimas da aurora, poemas cristalinos
Que rebentais das cobras do mistério!
Aves azuis do manto auri-sidéreo…

Raios de luz, fantásticos, divinos!…

Astros diáfanos, brandos, opalinos,
Brancas cecéns do Paraíso etéreo,
Canto da tarde, límpido, aéreo,
Harpa ideal, dos encantados hinos!…

Brisas suaves, virações amenas,
Lírios do vale, roseirais do lago,
Bandos errantes de sutis falenas!…

Vinde do arcano n’um potente afago
Louvar o Gênio das mansões serenas,
Esse Prodígio singular e mago!!…
JULIETA DOS SANTOS

Tu passas rutilante em toda a parte
Oh! sol de nossa pátria, oh! sol da arte!…

Virgílio Várzea
Quando eu te vi pela primeira vez no palco
Avassalando as almas,
N’um referver de palmas,
Cheia de vida e cândido lirismo!
Senti na mente uns divinais tremores…

E louco e louco,
A pouco e pouco
Vi rebentar o inferno cataclismo!…

Mil pensamentos galoparam, céleres
Por minha fronte
E do horizonte
Quis arrancar os astros diamantinos,
Para arrojá-los a teus pés mimosos
E arrebatado,
Fanatizado
Por entre um mar de cintilantes hinos!…

Esse teu busto, a genial cabeça
Tão bem talhada
E burilada
Com o escopro límpido da arte,
Tem umas puras fulgurações suaves
E a tu’alma
Ardente ou calma
Os corações arrasta por toda a parte!…

A encarnação tu és das maravilhas,
A doce aurora,
Branda e sonora
Das teatrais e lúcidas idéias!…

Tens no olhar o filtro que arrebata
E és profética
E magnética,
Possuis na voz o som das melopéias!…

És a escolhida para as grandes lutas
Esplendorosas
E majestosas!…

E sobre os débeis, delicados ombros,
Bem como Homero a sua lira d’ouro,
Resplandecente,
Trazes pendente
O Infinito enorme dos assombros!…

Quando apareces tudo ri e chora,
Se endeusa, agita,
Como que palpita
N’uma explosão de férvidos louvores!.

E o potentado mais febril da terra
Gagueja um bravo,
E faz-se escravo
O mais severo e nobre dos senhores!…

A Dejaset, uma Favart, Rachel,
O João Caetano
Como um arcano
Imperscrutável, hórrido, terrível!…

Quebram as louças sepulcrais e frias
E te louvando
Vão recuando…

Dizem que é sonho, é mito, é impossível!
Oh! tu nasceste para suplantar, JULIETA
Os grandes mundos,
Os mais profundos
D’ess’arte bela, magistral, divina!…

E esse olhar tão expressivo e terno
Já eletriza
E cauteriza…

É como um raio que a corações fulmina!…

Que sol é este, vão bradando os pólos,
Tão sobranceiro,
Que o brasileiro
O vasto império confundindo está?!…

Venham teólogos, venham sábios… todos
Venham troianos,
Venham germanos,
Venham os vultos da Caldéia, lá!…

Oh! resolvei o mais atroz problema,
Fundo mistério,
Alto, sidéreo
Do gênio altivo na criança, ali!…

Vamos, natura, rasga o véu dos medos,
Dizei ó mares,
Falai luares,
Sombras dos bosques, respondei-me aqui!…

Astros da noite, tempestades, ventos
Erguei as vozes,
Falai velozes
N’um som estranho, n’um clangor audaz!…

E respondei-me e explicai ao orbe
Se essa menina,
Que nos fascina
É um fenômeno ou outro tanto mais!…

Tudo emudece na natura imensa
E desde os Andes,
Dos cedros grandes
Ao verme, à pedra, às amplidões do mar!…

Tudo se oculta na invisível raia
No espaço a bruma,
No mar a espuma
Vão-se esgarçando também, a se ocultar!…

Tudo emudece na natura imensa
Quando na cena
Surges serena
Como a visão das noites infantis!
Dos olhos vivos dos que são-te adeptos

Bem como prata
Eis se desata
A aluvião de lágrimas febris!…

É que tu tens esse poder superno
Real, sublime
Que até ao crime
Faz arrastar o mísero mortal!
É que tu és a embrionária horrível,
Mística, ingente
Que de repente
Fazes de um ser estúpido animal!…

Tudo emudece na natura imensa
Desde nos campos
Os pirilampos
Até as grimpas colossais do céu!…

Tudo emudece e até eu JULIETA,
Já delirante
Vou vacilante
Cair-te aos pés como um servil, um réu!!…
MUSAS DE TODOS OS TEMPOS
SONETO
O desembarque de Julieta dos Santos

Chegou enfim, e o desembarque dela
Causou-me logo uma impressão divina!
É meiga, pura como sã bonina,
Nos olhos vivos doce luz revela!

É graciosa, sacudida e bela,
Não tem os gestos de qualquer menina:
Parece um gênio que seduz, fascina,
Tão atraente, singular é ela!

Chegou, enfim! eu murmurei contente!
Fez-se em minh’alma purpurina aurora,
O entusiasmo me brotou fervente!

Vimos-lhe apenas a construção sonora,
Vimos a larva, nada mais, somente
Falta-nos ver a borboleta agora!
NA MAZURKA

Morava num palácio — estranha Babilônia
De arcadas colossais, de impávidos zimbórios,
Alcovas de damasco e torreões marmóreos,
Volutas primorais de arquitetura jônia.

Assim, quando surgia em meio aos peristilos
Descendo, qual mulher de Séfora, vaidosa,
Envolta em ouropéis, em sedas, luxuosa,
Cercavam-na do belo os místicos sigilos!

E quando nos saraus, assim como um rainúnculo,
O lábio lhe tremia e o olhar, vivo carbúnculo,
Vibrava nos salões, como uma adaga turca,

Ou como o sol em cheio e rubro sobre o Bósforo,
— Nos crânios os Homens sentiam ter mais fósforo…

Ao vê-la escultural no passo da Mazurka…
APÓS O NOIVADO

Em flácido divã ela resvala
Na alcova — bem feliz, alegremente,
E o fresco penteador alvinitente,
De nardo e benjoim o aroma exala.

E o noivo todo amor, assim lhe fala,
Por entre vibrações do olhar ardente:
Pertences-me afinal, pomba dormente,
Parece que a razão de gozo, estala.

Mas eis — corre-se então nívea cortina;
E a plácida, a ideal, a branca lua
Derrama nos vergéis a luz divina…

Depois… Oh! Musa audaz, ousada, e nua,
Não rompas esse véu de gaze fina
Que encerra um madrigal — Vamos… recua!…
DORMINDO…

Pálida, bela, escultural, clorótica
Sobre o divã suavíssimo deitada,
Ela lembrava — a pálpebra cerrada —
Uma ilusão esplêndida de ótica.

A peregrina carnação das formas,
— O sensual e límpido contorno,
Tinham esse quê de avérnico e de morno,
Davam a Zola as mais corretas normas!…

Ela dormia como a Vênus casta
E a negra coma aveludada e basta
Lhe resvalava sobre o doce flanco…

Enquanto o luar — pela janela aberta —
— Como uma vaga exclamação — incerta
Entrava a flux — cascateado — branco!!…
CRENÇA

Filha do céu, a pura crença é isto
Que eu vejo em ti, na vastidão das cousas,
Nessa mudez castíssima das lousas,
No belo rosto sonhador do Cristo.

A crença é tudo quanto tenho visto
Nos olhos teus, quando a cabeça pousas
Sobre o meu colo e que dizer não ousas
Todo esse amor que eu venço e que conquisto.

A crença é ter os peregrinos olhos
Abertos sempre aos ríspidos escolhos;
Tê-los à frente de qualquer farol

E conservá-los, simplesmente acesos
Como dois fachos — engastados, presos
Nas radiações prismáticas do sol!
ETERNO SONHO

Quelle est donc cette femme?
Je ne comprendra pas.

Félix Arvers

Talvez alguém estes meus versos lendo
Não entenda que amor neles palpita,
Nem que saudade trágica, infinita
Por dentro deles sempre está vivendo.

Talvez que ela não fique percebendo
A paixão que me enleva e que me agita,
Como de uma alma dolorosa, aflita
Que um sentimento vai desfalecendo.

E talvez que ela ao ler-me, com piedade,
Diga, a sorrir, num pouco de amizade,
Boa, gentil e carinhosa e franca:

— Ah! bem conheço o teu afeto triste…

E se em minha alma o mesmo não existe,
É que tens essa cor e é que eu sou branca!
LIRIAL

Vens com uns tons de searas,
De prados enflorescidos
E trazes os coloridos
Das frescas auroras claras.

E tens as nuances raras
Dos bons prazeres servidos
Nos rostos enlourecidos
Das parisienses preclaras.

Chapéu das finas elites,
De rosas e clematites,
Chapéu Pierrette — entre o sol

Passando, esbelta e rosada,
Pareces uma encantada
Canção azul do Tirol.
VANDA

Vanda! Vanda do amor, formosa Vanda,
Macuama gentil, de aspecto triste,
Deixa que o coração que tu poluíste
Um dia, se abra e revivesça e expanda.

Nesse teu lábio sem calor onde anda
A sombra vã de amores que sentiste
Outrora, acende risos que não viste
Nunca e as tristezas para longe manda.

squece a dor, a lúbrica serpente
Que, embora esmaguem-lhe a cabeça ardente,
Agita sempre a cauda venenosa.

Deixa pousar na seara dos teus dias
A caravana irial das alegrias
Como as abelhas pousam numa rosa.
ÊXTASE

Quando vens para mim, abrindo os braços
Numa carícia lânguida e quebrada,
Sinto o esplendor de cantos de alvorada
Na amorosa fremência dos teus passos.

Partindo os duros e terrestres laços,
A alma tonta, em delírio, alvoroçada,
Sobe dos astros a radiosa escada
Atravessando a curva dos espaços.

Vens, enquanto que eu, perplexo d’espanto,
Mal te posso abraçar, gozar-te o encanto
Dos seios, dentre esses rendados folhos.

Nem um beijo te dou! abstrato e mudo
Diante de ti, sinto-te, absorto em tudo,
Uns rumores de pássaros nos olhos.
CELESTE

Vi-te crescer! tu eras a criança
Mais linda, mais gentil, mais delicada:
Tinhas no rosto as cores da alvorada
E o sol disperso pela loira trança.

Asas tinhas também, as da esperança…

E de tal sorte eras sutil e alada
Que parecias ave arrebatada
Na luz do Espaço onde a razão descansa!

Depois, então, fizeste-te menina,
Visão de amor, puríssima, divina,
Perante a qual ainda hoje me ajoelho.

Cresceste mais! És bela e moça agora…

Mas eu, que acompanhei toda essa aurora,
Sinto bem quanto estou ficando velho.
AMOR!!…

Oferecido à Ilma. Sra. D. Pêdra como prova de imensa
amizade e profundo amor que lhe consagra
Amor, meu anjo, é sagrada chama
Que o peito inflama na voraz paixão,
Amo-te muito eu t’o juro ainda
Deidade linda que não tem senão!
Virgem formosa, d’encantos bela,
Gentil donzela, meu amor é teu.

Vou consagrar-te mil afetos tantos
Puros e santos qual também Romeu!
Flor entre as flores, a mais linda, altiva
Qual sensitiva, só tu és, ó sim.

Esses teus olhos sedutores, belos
De mil anelos, me pedirão a mim.

Anjo, meu anjo, eu te adoro e amo.

Por ti eu chamo nas horas de dor.

Sem ti eu sofro; um sequer instante
De ti perante só me dás valor.

Meu peito em ânsias só por ti suspira
Como da lira a vibrante voz!
Te vendo eu rio e senão gemendo
Vou padecendo saudade atroz!
Amor ardente de meu coração
Santa paixão em todo peito forte
Eu hei de amar-te até mesmo a vida
Deixar, querida, e abraçar a morte!
ROSA

A Moreira de Vasconcelos
Et, rose, elle a vécu ce que vivent les roses,
l’espace d’un matin.

Malherbe
Rosa — chamava-se a estrela
Daquelas flóreas paragens;
Era escutá-la e era vê-la
Metida em brancas roupagens
Todas de pregas e tufos,
De laçarotes e rendas,
Ou mesmo ouvir-lhe os arrufos
Ou surpreender-lhe as contendas
Nas lindas tardes radiadas
Por cores de silforamas
E sentir logo, inspiradas
Do amor, as férvidas chamas.

Ela era um beijo fundido
Ao cintilar de uma aurora,
Um sonho eterno espargido
Nos belos sonhos de Flora.

E tinha uns longes sublimes
De grande força lasciva,
A transudar, como uns crimes
Do sangue, da carne altiva.

Contava tudo… mas tanto,
Em turbilhões, em cascata,
Que recordava esse canto
Uma garganta de prata.

E quando os poetas, rapazes,
A viam passar, vibrante,
Mostrando as curvas audazes,
Do corpo todo radiante,
Diziam de entre os primores
De estrofes mais dulçurosas:
— Tu és a gêmea das flores,
Das rosas, perfeitas rosas.

Convulsionado e sem regra
O coração nos palpita;
Andas alegre e se alegra
A gente quando te fita.

Tens umas coisas estranhas
Nas refrações da pureza…

Umas finuras tamanhas…

Uma sutil gentileza…

Ficas rosada se um tico
Alguém te diz, de mais franco…

Mas como fica tão rico,
Tão belo o rubro no branco,
Nesse grácil e tão claro,
Sereno e cândido rosto
Que é mesmo um céu puro e raro
Das alvoradas de agosto.

Depressa cobre-te o pejo
A face nova e adorada,
De sorte que sem desejo
És — Rosa e ficas rosada.

Dos risos colhes a messe
E és doce como o conforto,
És casta como uma prece
Gemida ao lado de um morto.

Para que a dor não te obumbre
A glória de flores junca
Tua vida e, por isso, nunca
Nas mágoas terás vislumbre.

Permita o bom sol que inunda
De luz os bosques — permita
Que sejas sempre fecunda
De gozo e sempre bonita.

Agora, quando alguém passa
Por onde a estrela morava,
Olhando pela vidraça
Bem junto da qual bordava,
Repara um silêncio triste
Na sala — em crepes envolta,
Onde parece que existe
Profunda lágrima solta.

E sente por dentro d’alma
Aquela angústia que esmaga
Bem como em noites sem calma
A vaga esmaga outra vaga.

Apenas as flores lindas
Que vendo Rosa morriam
Com brejeirices infindas
De invejas que renasciam,
Sem mais inúteis ciúmes,
Abrem os frescos pistilos,
Jogando aos céus, em perfumes,
Os seus melhores sigilos.

No entanto à luz soberana
Do amor desfilam as rimas
Dos poetas — como um hosana
A quem já goza outros climas.

Rosa — chama-se a estrela
Daquelas flóreas paragens;
Era escutá-la e era vê-la
Metida em brancas roupagens,
Para exclamar: — Dentro dela
Existe a fibra gloriosa…

Ninguém viu coisa mais bela
Nem Rosa… tão bela rosa!…
FRÊMITOS
I

Ó pombas luminosas
Que passais neste mundo eternamente
Só a cantar os madrigais de rosas,
Atravessados de um luar veemente,
Inundados de estrelas e esplendores,
De carinhos, de bênçãos e de amores.
II

Ó virgens peregrinas,
De meigo olhar banhado de esperanças,
Que perfumais com lírios e boninas
A aurora de cristal das louras tranças,
Que atravessais constantemente a vida
Do sol eterno, da visão florida.
III

Amadas e felizes
Gêmeas da luz das frescas alvoradas,
Vós que trazeis nas almas as raízes
Do que é são, do que é puro — ó vós
amadas
Prendas gentis do paternal tesouro,
Iriados corações de fluidos de ouro.
IV

É para vós que eu quero
Engrinaldar de tropos e de rimas,
Num doce verso artístico e sincero,
Esgrimir com belíssimas esgrimas
A estrofe e dar-lhe os golpes mais seguros
Para que brilhe como uns astros puros.
V

É só a vós, apenas,
Que eu me dirijo, límpidas auroras,
Que pelas tardes plácidas, serenas,
Passais, galantes como ingênuas Floras,
Coroadas de flor de laranjeira,
Noivas, sorrindo à mocidade inteira.
VI

Porque é de vós que deve,
De vós que o sonho eterno dulcifica,
Partir o lume quando cai a neve,
Surgir a crença poderosa e rica.

Porque afinal, o que se chama crença,
Senão o amor e a caridade imensa?
VII

Os tristes e os pequenos
Em quem descansam brandamente os olhos,
Esses humildes, rotos Nazarenos
Que vivem, morrem suportando abrolhos,
Senão nos grandes entes piedosos
Que dão-lhes força aos transes dolorosos?
VIII

Oh, sim que a força eterna
Parte dos corpos rijos da saúde,
Perante a lei da vida que governa,
O nobre, o rei, o proletário rude;
Parte dos seres fartos de carinhos
Como de paz e de alegria os ninhos.
IX

Eu peço para todos
E peço a vós que sois as fortalezas
Da esperança, da fé — a vós que os lodos
Da miséria, do vício, das baixezas,
Não denegriram essas consciências
Castas e brancas como as inocências.
X

Nem se esperar devia
Que eu tentasse bater a outras portas,
Quando vós sois o exemplo de Maria;
Não andais mudas, regeladas, mortas
Pela noite voraz da sepultura
E escutareis os dramas da amargura.
XI

Não julgueis que eu vos peça,
Uma alvorada feita de um sorriso;
A minh’alma garante e vos confessa
Que se crê nas mansões do Paraíso,
É porque vós reinais por sobre a terra
E o Paraíso dentro em vós se encerra.
XII

A vós, a vós compete
A glória do dever — porque assim como
A luz do sol na lua se reflete,
Também das aflições no duro assomo,
Da pobreza refletem-se nas almas,
Vossas imagens, como auroras calmas.
XIII

Portanto, a mocidade
Vossa, terá de ser de hoje em diante,
Enquanto a esmagadora atrocidade
Da peste — nos vorar d’instante a instante,
Quem se há de encarregar desta manobra
Do galeão da vida que sossobra.
XIV

E para isso, ó rainhas
Da juventude — tendes as quermesses
Que dão bons frutos assim como as vinhas;
As matinées de cânticos e preces,
Os cintilantes, pródigos bazares
Onde a luz salta extravasando em mares.
XV

Enquanto a mim, na arena
Da heroicidade humana que consola,
Oh, faz-me bem a vibração da pena,
Pelo amor, pelo afago, pela esmola,
Como um radiante e fúlgido estilhaço
De sol febril no mármore do Espaço!
ADALZIZA

Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa,
Tens um pisar fascinante,
Tens um olhar cintilante
Cheio de raios, faiscante
Ó criatura formosa,
Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa!…
O BOTÃO DE ROSA

A uma atriz
O campo abrira o seio às expansões frementes
Das árvores senis, dos galhos viridentes.

Caía a tarde fresca
Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.

A iluminada esfera
Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem,
Dava um brilho-cetim às verdes folhas d’hera.

No ar uma harmonia avigorada e casta,
No crânio uma vertigem
Duma idéia viril, duma eloqüência vasta.

Tardes formosíssimas,
Ó grande livro aberto aos geniais artistas,
Como tanto alargais as crenças panteístas,
Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.

Quanta vitalidade indefinida, quanta,
Na pequenina planta,
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos,
Que misticismo, justos,
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano
Das árvores titãs, das árvores fecundas
Que tinham, como o oceano,
Febris palpitações intérminas, profundas.

Esplêndidas paisagens,
Opunhas o largo campo às vistas deslumbradas.

As múrmuras ramagens,
À luz serena e terna, à luz do sol — que espadas
De fogo arremessava, em frêmitos nervosos,
Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,
Tinham falas de amor, segredos vacilantes
Finos como os brilhantes.

A música das aves
Cortava o éter calmo, em notas multiformes,
Límpidas e graves
Que estouravam no ar em convulsões enormes.

Aqui e além um rio
Serpejava na sombra, em meio de um rochedo
Áspero e sombrio.

O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo
E o espírito mudo,
Como um herói gigante avassalavam tudo…

Nuns madrigais risonhos
Abria-se o país fantástico dos sonhos.

Alavam-se os aromas
Leais, inexauríveis
Das largas e invisíveis
Selváticas redomas.

A seiva rebentava
Em ondas — irrompia
Na doce e maviosa e plácida alegria
De uma ave que cantava,
Dos belos roseirais
Que ostentavam a flux as rosas virginais.

E as jubilosas franças
Dos arvoredos altos,
Rígidos, atléticos,
Derramavam no campo uns fluidos magnéticos
Dumas vontades mansas.

A doce alacridade ia explosindo aos saltos.

E toda a natureza
Robusta de saúde e estrênua de grandeza
Libérrima e vital,
Erguia-se pujante, audaz e redentora,
No gérmen material da força criadora,
Dentre a vida selvagem mística, animal…

Dos roseirais preciosos
Nos renques primorosos,
Numa linda roseira abria castamente,
Como um sonho de luz numa cabeça ardente,
O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.

Tinha essa cor formosa,
Tinha essa cor da aurora,
Quando ensangüenta em rubro a vastidão sonora
Era um botão feliz
Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.

Tinha o leve quebranto e a maciez etérea
Que uma estrofe não diz.

Das pétalas macias,
Das pétalas sangüíneas,
Doces como harmonias
Brandas e velutíneas
Uns perfumes sutis se espiralavam, raros,
Pela mansão do Bem, pelos espaços claros.

Perfumes excelentes,
Perfumes dos melhores,
Perfumes bons de incógnitos Orientes.

Matéria, não deplores
O viver natural dos vegetais alegres;
Eles são mais ditosos
Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;
E por mais que tu regres
Ó matéria fatal, a tua vida inteira,
No rigor da higiene;
E por mais que a maneira
Do teu grande existir, desse existir — perene
De ironias e pasmos,
Explosões de sarcasmos
Tu completes, matéria — ó humanidade ousada —
Com a ciência altanada;
E por mais que no século,
Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo,
Será sempre maior e exuberante e forte,
Ó matéria fatal,
Essa vida tão rica
Que se corporifica
Na valente coorte
Do poder vegetal.

Era um botão feliz,
Cuja roseira, impávida,
Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos — ávida
De completa fragrância,
Palpitava com ânsia
Desde a própria raiz.

E entanto o sol tombara e triunfantemente
Como um supremo Rubens,
Jorrando à curvidade etérea do poente,
O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens,
Numa distribuição simpática de cores,
De tintas e de luzes
De galas e fulgores
Rubros como o estourar dos férvidos obuses.

O cérebro em nevrose,
No pasmo que precede a augusta apoteose
De uma excelsa visão perfeitamente bela,
De uma excelsa visão em límpidos dosséis,
Exaltava o acabado artístico da Tela
E o gosto dos pincéis.

Caíam da amplidão em névoas singulares
Os pálidos crepúsculos.

Os fúlgidos altares
Do homem primitivo — a relva, o prado, o campo
Onde ele ia buscar a força de uma crença
Que então lhe iluminasse a alma escura e densa
Morriam de clarões — os poderosos músculos
Da fértil mãe de tudo — a natureza ingente —
Deixavam de bater. — O olhar do pirilampo
Oscilava, tremia — azul, fosforescente.

As sombras vinham, vinham
Lembrando um batalhão d’espectros que caminham
E a casta nitidez sintética das cousas
Tomava a proporção das funerárias lousas.

Completara-se então o mais extraordinário,
O mais extravagante
Dos fenômenos todos:
A noite. — Enfim descera a treva do Calvário,
A treva que envolveu o Cristo agonizante.

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.

A abóbada espaçosa, a física amplitude,
Mostrava a profundez da angústia de ataúde
De um operário pobre,
Quando se escuta o dobre
Amplíssimo e funéreo,
Sinistro e compassado,
Rolar pela mansão gloriosa do mistério,
Assim com um soluço aflito, estrangulado.

Devia ser, devia
Por uma noite assim,
Como esta noite igual,
Que derramou Maria
A lágrima da dor, — que o célebre Caim
Sentiu do crânio as convulsões do Mal.

Mas o botão de rosa,
Traído pelo estranho zéfiro da sorte,
Rolou como uma cisma
Intensa e luminosa
Ardente e jovial em que a razão se abisma
E foi cair, cair no pélago da morte,
Em um dos mais raivosos,
Em um dos mais atrozes
Rios impetuosos,
Cheios de surdas vozes,
Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito,
Em meio à placidez
Dos astros no infinito
E à mesma irracional e fúnebre mudez.

Depois e além de tudo,
Além do grave aspecto inteiramente mudo,
Ao tempo que morria
O cândido botão — em um dos tantos galhos
Virentes da roseira — alegre no ar se abria
Um outro que ostentava as pétalas sedosas,
As pétalas gracis de cores deliciosas,
De cores ideais.

As auras musicais
Passavam-lhe de leve,
Nos tímidos rumores,
De um ósculo mais breve
E dentre a exposição das delicadas flores,
Das rosas — o botão
Aberto ultimamente às cúpulas austeras,
Às plagas da esperança, a irmã das primaveras,
Pendido um quase nada, esbelto na roseira,
Mostrava aquela unção,
A ínclita maneira
De quem se glorifica
Subindo ao céu azul da majestade pura,
Da eterna exuberância,
Da fonte sempre rica,
Da esplêndida fartura
Da luz imaculada — a egrégia substância
Que faz das almas claras
Pela fecundidade olímpica do amor,
Magníficas searas,
De onde se difunde à vida sempiterna,
À vida essencial, à lei que nos governa,
À idéia varonil do poeta sonhador.

A arte especialmente, esse prodígio, atriz,
Como o botão de rosa
Tão meigo e tão feliz,
Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego,
Na treva silenciosa,
Onde o espírito vai, atordoado e cego,
Cair, entre soluços,
Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços,
Ou pode equilibrar-se em admirável base
Estética e profunda,
Assim, bem como o outro, a mais radiosa altura.

Deves sondá-la bem nesta segunda fase.

Precisas para isso uma alma mais fecunda.

Precisas de sentir a artística loucura…

A poesia interminável 2

Ó ADALZIZA DOS SONHOS

Ó Adalziza dos sonhos;
Estrela dos firmamentos
Dos meus cantares risonhos,
Ó Adalziza dos sonhos,
Rasga esses véus enfadonhos
Dos teus louros pensamentos,
Ó Adalziza dos sonhos,
Estrela dos firmamentos.
ZULMIRA DOS MEUS AMORES

Zulmira dos meus amores,
Zulmira das minhas cismas,
Resplandece como as flores,
Zulmira dos meus amores
Abre os olhos sedutores
Nos quais a minh’alma abismas,
Zulmira dos meus amores,
Zulmira das minhas cismas.
DEIXAI QUE A MINH’ALMA ESCASSA

Deixai que a minh’alma escassa
De luz — aos astros emigre
Como gaivota que passa
Deixai que a minh’alma escassa
De amor — na plúmbea desgraça
De atrozes garras de tigre,
Deixai que a minh’alma escassa
De luz — aos astros emigre.
Ó CINTILANTE QUIQUIA

Ó cintilante Quiquia,
Menina dos meus olhares,
Flor azul da simpatia,
Ó cintilante Quiquia,
Rasga este céu da alegria
Dos meus risonhos cantares,
Ó cintilante Quiquia,
Menina dos meus olhares.
OLHOS PRETOS, SONHADORES

Olhos pretos, sonhadores
Ó celeste Carolina,
Como são esmagadores
Olhos pretos sonhadores,
Como vibram dos amores
A noss’alma cristalina,
Olhos pretos, sonhadores,
Ó celeste Carolina.
Ó FLORA, Ó NINFA DAS ROSAS

Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Ó frescura dos morangos,
Abre as pupilas radiosas,
Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Dá-me as estrelas formosas
Do olhar repleto de tangos,
Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Ó frescura dos morangos.
MORENA DOS OLHOS PRETOS

Morena dos olhos pretos
Dos olhos pretos, morena,
Escuta os vagos duetos
Morena dos olhos pretos,
Faremos ambos, tercetos,
Com esta esfera serena,
Morena dos olhos pretos,
Dos olhos pretos, morena.
ALZIRA, ALZIRA, ALZIRA

Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente,
Resplandecente safira,
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Às vibrações desta lira,
Acorda do sono ardente,
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente.
COMO UM CISNE, EST’ALMA FRISA

Como um cisne, est’alma frisa
O mar de luz de teus olhos,
Ó simpática Adalziza
Como um cisne, est’alma frisa,
Vagueia, paira, desliza
Sem naufragar nos escolhos
Como um cisne, est’alma frisa
O mar de luz de teus olhos.
FLORIPES

Fazes lembrar as mouras dos castelos,
As errantes visões abandonadas
Que pelo alto das torres encantadas
Suspiravam de trêmulos anelos.

Traços ligeiros, tímidos, singelos
Acordam-te nas formas delicadas
Saudades mortas de regiões sagradas,
Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.

Um requinte de graça e fantasia
Dá-te segredos de melancolia,
Da Lua todo o lânguido abandono…

Desejos vagos, olvidadas queixas
Vão morrer no calor dessas madeixas,
Nas virgens florescências do teu sono.
CAMPESINAS E OUTROS VERSOS
CAMPESINAS
I

Camponesa, camponesa,
Ah! quem contigo vivesse
Dia e noite e amanhecesse
Ao sol da tua beleza.

Quem livre, na natureza,
Pelos campos se perdesse
E apenas em ti só cresse
E em nada mais, camponesa.

Quem contigo andasse à toa
Nas margens duma lagoa,
Por vergéis e por desertos,
Beijando-te o corpo airoso,
Tão fresco e tão perfumoso,
Cheirando a figos abertos.
II

De cabelos desmanchados,
Tu, teus olhos luminosos
Recordam-me uns saborosos
E raros frutos de prados.

Assim negros e quebrados,
Profundos, grandes, formosos,
Contêm fluidos vaporosos
São como campos mondados.

Quando soltas os cabelos
Repletos de pesadelos
E de perfumes de ervagens;
Teus olhos, flor das violetas,
Lembram certas uvas pretas
Metidas entre folhagens.
III

As papoulas da saúde
Trouxeram-te um ar mais novo,
Ó bela filha do povo,
Rosa aberta de virtude.

Do campo viçoso e rude
Regressas, como um renovo,
E eu ao ver-te, os olhos movo
De um modo que nunca pude.

Bravo ao campo e bravo à seara
Que deram-te a pele clara
Sãos rubores de alvorada.

Que esses teus beijos agora
Tenham sabores de amora
E de romã estalada.
IV

Através das romãzeiras
E dos pomares floridos
Ouvem-se às vezes ruídos
E bater d’asas ligeiras.

São as aves forasteiras
Que dos seus ninhos queridos
Vêm dar ali os gemidos
Das ilusões passageiras.

Vêm sonhar leves quimeras,
Idílios de primaveras,
Contar os risos e os males.

Vêm chorar um seio de ave
Perdida pela suave
Carícia verde dos vales.
V

De manhã tu vais ao gado
A cantar entre as giestas,
Com tuas graças modestas,
Correndo e saltando o prado.

E a veiga e o rio e o valado
Que todos dormem às sestas
Acordam-se ante as honestas
Canções desse peito amado.

As aves nos ares gozam,
Entre abraços se desposam,
No mais amoroso enlace.

E as abelhas matutinas
Que regressam das boninas
Voam-te em torno da face.
VI

As uvas pretas em cachos
Dão agora nas latadas…

Que lindo tom de alvoradas1
Na vinha, junto aos riachos.

Este ano arados e sachos
Deixaram terras lavradas,
À espera das inflamadas
Ondas do sol, como fachos.

Veio o sol e fecundou-as,
Deu-lhes vigor, enseivou-as,
Tornou-as férteis de amor.

Eis que as vinhas rebentaram
E as uvas amaduraram,
Sanguíneas, com sol na cor.

1 Na coleção de manuscritos existente na Fundação
Biblioteca Nacional, encontramos uma variação deste verso:
“Que linda cor de alvoradas”.
VII

Engrinaldada de rosas,
Surge a manhã pitoresca…

Que linda aquarela fresca
Nas veigas deliciosas!
Que bom gosto e perfumosas
Frutas traz, madrigalesca
A rapariga tudesca
Que vem das searas cheirosas!
Como os rios vão cantando,
Em sons de prata, ondulando,
Abaixo pelos marnéis!
Que carícia nas verduras,
Que vigor pelas culturas,
Que de ouro pelos vergéis!
VIII

Orgulho das raparigas,
Encanto ideal dos rapazes,
Acendes crenças vivazes
Com tuas belas cantigas.

No louro ondear das espigas,
Boca cheirosa a lilases,
Carne em polpa de ananases
Lembras baladas antigas.

Tens uns tons enevoados
De castelos apagados
Nas eras medievais.

Falta-te o pajem na ameia
Dedilhando, à lua cheia,
O bandolim dos seus ais!
IX
NO CAMPO SANTO

Morreste no campo um dia,
Como uma flor desprezada.

Clareava a madrugada
Azul, vaporosa e fria.

Sobre a agreste serrania,
Numa ermida branqueada1
Por uma manhã doirada
Um sino repercutia.

Teu caixão, de camponesas
E camponeses seguido,
Desceu abaixo às devesas.

Ganhou o atalho comprido
De casas em correntezas
E entrou num campo florido.

1 Na coleção de manuscritos da Fundação Biblioteca
Nacional, este verso está: “Numa ermida branqueada.” (Campesinas:
variações e acréscimos recolhidos nos manuscritos da
Fundação Biblioteca Nacional)
VIII

Pelos vales e colinas
Os bandos das pombas voam…

E as latadas das boninas
As rentes cercas coroam.

Entre o rumor das campinas
Os carros de bois ressoam…

E nas névoas matutinas
Já os raios de sol coam.

Que aurora flor das auroras!
Nas frescas águas sonoras
Bóiam ilhas de verdura.

E na fita dos caminhos
Onde trinam os passarinhos
Vens vindo a rir, formosura.
IX

Foste à fonte buscar água
E tinha secado a fonte…

Pobre flor azul do monte
Tiveste a primeira mágoa.

Porém se uma alma na frágua
Das dores, sem horizonte,
Queres ver, sentir defronte
Dos olhos, manda, que eu trago-a.

Vou t’a levar à presença
Para que vejas a imensa
Mágoa atroz que a devorou.

E saibas, ó sol das flores,
Que a fonte dos seus amores
Eternamente secou.
XII

A pomba o vôo descerra
Para além dos infinitos,
Deixando todos os ritos
Das religiões cá da terra.

Ganha o mar e ganha a serra
Em busca de novos mitos
Desses bíblicos Egitos
Da Fé, que vagueia e que erra…

Quem tem sede de carinhos
Faz como pomba, procura
Corações que sejam ninhos.

Vai em busca ventura,
Da paz dispersa em caminhos
Que vão dar à sepultura.
XIII

Fui aos morangos do prado
E nunca os vi tão formosos…

Que perfume delicado,
Que cores, que tons preciosos.

Cor de sangue atravessado
De acesos sóis radiosos
Num rubro ocaso doirado,
Por horizontes calmosos;
Através da luz da aurora
Vivaz e fresca e sonora,
Num resplendor nunca visto;
Pareceram-me umas gotas
De sangue das carnes rotas
Das mãos e dos pés de Cristo.
XVI

Acordo de manhã cedo,
Da luz aos doces carinhos…

Que rosas pelos caminhos,
Que rumor pelo arvoredo.

Para o azul radioso e ledo
Sobe, de dentro dos ninhos,
O canto dos passarinhos,
Cheio de amor e segredo…

Dentre as moitas de verdura
Voam as pombas nevadas,
Imaculadas de alvura.

Pela margem das estradas
Que penetrante frescura,
Que femininas risadas!
XV

Os olhos das adoradas
São como os campos festivos
Cheios dos brilhos mais vivos
Das alegres madrugadas.

Como as frescas alvoradas
Há pelos campos estivos
Lindos cantos expressivos
De camponesas medradas;
Nos olhos das que adoramos
Há aves cantando e ramos
Noivados do nosso amor.

Perspectivas radiantes
Só vistas pelos amantes
De almas abertas em flor!
XVI

De manhã cedo os rebanhos
Saltam, galgam montanhosos
Alcantis esplendorosos,
Cheios de brilhos estranhos.

E quando após os amanhos
Dos terrenos vigorosos
Os lavradores sequiosos
Regressam de afãs tamanhos;
Quando o sol no ocaso em chamas
Veste as árvores de lhamas
E luminosos veludos;
Entre as trêmulas guitarras
Das nostálgicas cigarras
Quedam-se os gados lanzudos.
XVII

São tantas as sementeiras
Como as estrelas são tantas…

Ah! que virgens bebedeiras
Vêm dos aromas das plantas.

Nas terras alvissareiras
De novas colheitas santas,
Que brotos de trepadeiras,
Que vinhas quantas e quantas.

Como a seiva e o viço estoura
Pelos campos da lavoura,
Num frenesi de novilho…

Só tu, infecunda e triste,
De gelo, nunca sentiste
Os vivos germens de um filho!
XVIII

Por estas manhãs sonoras
Em tudo a luz vibra e salta
E arroios, várzeas esmalta
De deslumbrantes auroras.

São mais alegres as horas,
Nem o humor às almas falta
E de uma força mais alta
Fecundam-se as virgens floras.

Os aspectos de verdura
Recebem formas serenas
D’encantos e de frescura.

Ah! que ruflados de penas
Na luz que canta na altura,
Nas folhagens de açucenas!
1889 Outros versos
AO AR LIVRE
A Virgílio Várzea

Tu trazes agora o peito
Como essas urnas sagradas,
Repleto de gargalhadas,
Sonoro, bom, satisfeito.

Por dentro cantam assombros
E causas esplendorosas
Como latadas de rosas
Dos muros entre os escombros.

Quando o ideal nos alaga,
Embora as lutas do mundo,
Levanta-se um sol fecundo
Do peito em cada uma chaga.

Voltou-se a seiva de outrora,
De outro, mais forte e destro,
Iluminado maestro,
Das harmonias da aurora.

Fulgurem por isso as musas,
As belas musas, por isso…

Voltou-te o passado viço,
Foram-se as mágoas, confusas.

Agora, quando eu dirijo
Meus passos, à tua porta,
Sinto-te um bem que conforta,
Vejo-te alegre e mais rijo.

Porque afinal pela vida
Nem tudo se desmorona
Quando se vaga na zona
Da mocidade florida.

Gostas de ver pelos ramos
Das verdes árvores novas,
A chocalhar umas trovas,
Coleiros e gaturamos.

Já podes bem comer frutas,
Os teus simpáticos jambos,
E ouvir alguns ditirambos
Da natureza nas grutas.

Podes olhar as esferas,
Com ar direito e seguro,
De frente para o futuro,
De lado para as quimeras.

Não tenhas cofres avaros
De santos — na luz te afoga,
E a alma arremessa e joga
Por esses páramos claros.

Reúne os sonhos dispersos
Como andorinhas vivaces
E o colorido das faces
Ao coberto dos versos.

Como uns lábaros vermelhos,
Contente como os lilases,
As crenças dos bons rapazes
Tem prismas como os espelhos.
NATUREZA
Aos poetas

Tudo por ti resplende e se constela,
Tudo por ti, suavíssimo, flameja;
És o pulmão da racional peleja,
Sempre viril, consoladora e bela.

Teu coração de pérolas se estrela,
E o bom falerno dás a quem deseja
Vigor, saúde à crença que floreja,
Que as expansões do cérebro revela.

Toda essa luz que bebe-se de um hausto
Nos livros sãos, todo esse enorme fausto
Vem das verduras brandas que reluzem!
Esse da idéia esplêndido eletrismo,
O forte, o grande, audaz psicologismo,
Os organismos naturais produzem…
NOS CAMPOS

Por entre campos de seara loura
De alegre sol puríssimo batidos,
Passam carros chiantes de lavoura
E raparigas sãs, de coloridos
Que a luz solar que as ilumina e doura
Lembram pomares e jardins floridos,
Por entre campos de seara loura.

A Natureza inteira reverdece
Pelos montes e vales e colinas;
E o luar que freme, anseia e resplandece,
Movido por aragens vespertinas,
Parece a alma dos tempos que floresce…

Enquanto que por prados e campinas
A Natureza inteira reverdece.

A paz das coisas desce sobre tudo!
E no verde sereno d’espessuras,
No doce e meigo e cândido veludo,
Tremem cintilações como armaduras
Ou como o aço brunido dum escudo;
Enquanto que das límpidas alturas
A paz das coisas desce sobre tudo!
A casa, a rude tenda construída,
Onde habitam as mães e as crianças
Promiscuamente, nessa mesma vida
De perfume lirial das esperanças,
Como é feliz, dos astros aquecida!
Aquecida do Amor nas asas mansas
A casa, a rude tenda construída.

As bocas impolutas e cheirosas
Das raparigas, pródigas belezas
De finos lábios púrpuros de rosas,
Abrem, cheias de angélicas purezas,
As cristalinas fontes murmurosas
De risos, refrescando em correntezas
As bocas impolutas e cheirosas.

Da vida aurora rica do seu sangue
Flameja a carne em báquicas vertigens!
E quem tiver uma epiderme exangue
Para ficar com essas faces virgens,
Para não ser mais pálida nem langue,
Tem de beber das cálidas origens
Da viva aurora rica do seu sangue.

Lindas ceifeiras percorrendo. searas
Nos campos, ó bizarras raparigas,
Pelas manhãs e pelas tardes claras
Vós desfolhais sorrisos e cantigas
Que deixam ver as pérolas mais raras
Dos dentes brancos, frescos como estrigas…

Lindas ceifeiras percorrendo searas!
A BORBOLETA AZUL

No alegre sol de então
De uma manhã de amor,
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.

Ia e vinha e a voar
Gentil e trêfega, azul,
Sonoramente a percorrer pelo ar,
Como um silfo tenuíssimo e taful.

Sobre os frescos rosais
Pousava débil, sutil,
Doirando tudo de um risonho abril
Feito de beijos e de madrigais.

Que doce embriaguez
O vôo assim seguir
Da borboleta azul, correndo, a vir
Do espaço pela Etérea candidez!
Fazendo, tal e qual,
O mesmo giro assim,
O mesmo vôo límpido, sem fim,
Nos mundos virgens de qualquer ideal.

Ir como ela também
Em busca das loucas
E tropicais e fúlgidas manhãs
Cheias de colibris e sol, além…

Ir com ela na luz
De mundos através,
Sem abrolhos nas mãos, cardos nos pés,
Ó alma minha, que alegria a flux!…

No alegre sol de então
De uma manhã de amor
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.
RENASCIMENTO

Canta ao sol como as cigarras
A tua nova alegria.

No Azul ressoam fanfarras
Da grande vida sadia.

Alerta, um clarim de alerta
Àquela antiga saúde:
— À clara janela aberta
Para o mar salgado e rude.

Que volte, ruidosa, agora,
Como um pássaro marinho,
A tua saúde, a aurora
Do teu sangue, estranho vinho.

E como espiga madura
Floresce outra vez à vida,
Resplandece à formosura,
Ó torre de ouro florida!
Quero-te em rosas festivas
A polpa das carnes brancas.

E rindo-te às forças vivas
Com rubras risadas francas.

Formosa, soberba e nua,
Nesse olhar que tudo abrange,
Na fronte um diadema, em lua
Num talhe curvo de alfanje;
Vem! o sol é teu amante!
Ah! vem mergulhar nos braços
Do flavo sultão radiante
Do harém azul dos espaços.
ABELHAS

Gotas de luz e perfume,
Leves, tênues, delicadas,
Acesas no doce lume
De purpúreas alvoradas.

Pingos de ouro cristalinos
Alados na esfera, ondeando,
Dispersos por entre os hinos
Da natureza vibrando.

Sorrisos aéreos, soltos,
Flavas asas radiantes,
Que levam consigo envoltos
Da aurora os sóis fecundantes.

Da aurora que a primavera
Faz cantar, brota no peito
E floresce em folhas de hera
O coração satisfeito.

Essa aurora produtiva
Do amor soberano e eterno,
Que é nas almas força viva
E nas abelhas falerno.

Nas doudejantes abelhas
Que dentre flores volitam
E do sol entre as centelhas
Resplendem, fulgem, palpitam.

Zumbem, fervem nas colméias
E rumorejam no enxame
Pelas flóridas aléias
Onde um prado se derrame.

Assim mesmo pequeninas
E quase invisíveis, quase,
Com as suas asitas finas,
De etérea de fluida gaze.

Ah! quanto são adoráveis
Os favos que elas fabricam!
Com que graças inefáveis
Se geram, se multiplicam.

Nos afãs industriosos
Que enlevo, que encanto vê-las
Com seus corpos luminosos
D’iriante brilho d’estrelas.

E nas ondas murmurosas
Dos peregrinos adejos
Vão dar ao lábio das rosas
O mel doirado dos beijos.
BESOUROS…

Marche, marche, marche a verve!
Bandeiras, clarins, tambores,
Marchar!
A poncheira ideal, que ferve,
Sons, aromas, chamas, cores!
Cantar!
Que este diabo vem, saudoso,
Das profundezas do arcano,
Viver!
O vinho maravilhoso
Da forma raro e renano,
Beber!
Vem beber o vinho iriado,
O Falerno, claro e quente,
Haurir!
Num paladar requintado,
Todo inflamado e fremente
Sentir!
Que o sangue da verve vibre
Raja, raja, raja, raja,
Taful!
E a alma do sol se equilibre
Para que mais sonhos haja
No azul!…

Mas este diabo tão fino,
Que de tudo dá o acorde
Genial!
Este capróide genuíno,
Verde, verde, morde, morde,
Fatal.
PAPOULA
A Oscar Rosas

Assim loura és mais formosa
Do que se fosses trigueira:
Corpo de eflúvios de rosa
Com esbeltez de palmeira.

Vestida de cor da aurora
Leve dos fluidos da graça,
És uma estrela sonora
Que, em sonhos, pelo éter passa.

Resplandece em teu cabelo
Um fulgor de sol dourado,
Que só de senti-lo e vê-lo
Fica tudo iluminado.

Do teu branco leque aberto
Que lembra uma asa de garça,1
Aspiro um perfume incerto,
Talvez a tua alma esparsa.

Num resplendor de madona
E altivez de corça arisca2
Surges da luz entre a zona
Com quebrantos de odalisca.

Que venha o duque normando
De castelos escoceses
Com seu ar bizarro e brando
Amar-te os olhos ingleses.

E entre aromas e frescores
E revoadas de abelhas,
Como num campo de flores
Que esse olhar vibre centelhas.

Que cantem na tua boca
As alegrias radiadas,
Numa ideal rajada louca
De vôos de passaradas.

Que como os astros no espaço,
Teu encanto resplandeça…

Com pelúcias no regaço
E asas de ave na cabeça.

E que os teus dois seios puros
Que o amor fecundando beija
Fiquem cheios e maduros
Com dois bicos de cereja.

1 Nos manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional este verso
termina em “graça” ao invés de “garça”.
2 Idem “a risca” ao invés de “arisca”.
NA VILA

Nos ervaçais vibrou o sol agora,
Nas fitas verdes dos canaviais…

Como rompesse loura e fresca a aurora
Agora o sol vibrou nos ervaçais.

Murmurejam de alegres os caminhos
Que até parecem, límpidos, cantar
Na música melódica dos ninhos
Que vai nos ares se cristalizar.

Floresce tudo, em toda parte flores
Neste maio feliz, e tão feliz
Que as plantas exuberam de vigores
Desde a profunda, pródiga raiz.

Noivam as aves junto dos riachos
No seu alado alvorecer de amor;
E o coqueiral, com os amarelos cachos,
Pompéia de riquíssimo verdor.

Fluem na sombra meigas fontes claras1
Sob o frondente e vasto laranjal
E para além magníficas searas
Se estendem como um leito virginal.

Na serena paz vegetativa
Faz docemente tudo adormecer
Mas num sono de luz doirada e viva,
Quase a dormência de quem vai morrer…

Ah! que o silêncio, a solidão dos ermos,
Das agrestes paragens do sertão
Se dão saúdes a espíritos enfermos
Também supremas nostalgias dão!
A volúpia letal do meio-dia,
Nas horas encalmadas, sob a luz,
Dá duma campa a atroz melancolia
Assinalada numa simples cruz.

Depois o campo na mudez da vila,
Aquela eterna e soberana paz
Da imensa vastidão sempre tranqüila
Como que punge e que entristece mais!

1 Nos manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional este verso
está grafado: “Fluem na sombra as meigas fontes claras”.
PLANGÊNCIA DA TARDE

Quando do campo as prófugas ovelhas
Voltam a tarde, lépidas, balando,
Com elas o pastor volta cantando
E fulge o ocaso em convulsões vermelhas.

Nos beirados das casas, sobre as telhas,
Das andorinhas esvoaça o bando…

E o mar, tranqüilo, fica cintilando
Do sol que morre às últimas centelhas.

O azul dos montes vago na distância…

No bosque, no ar, a cândida fragrância
Dos aromas vitais que a tarde exala.

Às vezes, longe, solta, na esplanada,
A ovelha errante, tonta e desgarrada,
Perdida e triste pelos ermos bala …
FRUTAS E FLORES1

Laranjas e morangos — quanto às frutas,
Quanto às flores, porém, ah! quanto às flores,
Trago-te dálias rubras, d’essas cores
Das brilhantes auroras impolutas.

Venho de ouvir as misteriosas lutas
Do mar chorando lágrimas de amores;
Isto é, venho de estar entre os verdores
De um sítio cheio de asperezas brutas,
Mas onde as almas — pássaros que voam —
Vivem sorrindo às músicas que ecoam
Dos campos livres na rural pobreza.

Trago-te frutas, flores, só apenas,
Porque não pude, irmã das açucenas,
Trazer-te o mar e toda a natureza!

1 Nos manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional encontramos
uma variação para o primeiro verso deste soneto no qual “goiabas”
substitui “morangos”.
NO CAMPO

Acordo de manhã cedo
Da luz aos doces carinhos:
Que rosas pelos caminhos!
Que rumor pelo arvoredo!
Para o azul radioso e ledo
Sobe, de dentro dos ninhos,
O canto dos passarinhos
Cheio de amor e segredo.

Dentre moitas de verdura
Voam as pombas nevadas,
Imaculadas de alvura.

Pelas margens das estradas
Que penetrante frescura
Que femininas risadas!
LUAR

Ao longo das louríssimas searas
Caiu a noite taciturna e fria…

Cessou no espaço a límpida harmonia
Das infinitas perspectivas claras.

As estrelas no céu, puras e raras,
Como um cristal que nítido radia,
Abrem da noite na mudez sombria
O cofre ideal de pedrarias caras.

Mas uma luz aos poucos vai subindo
Como do largo mar ao firmamento — abrindo
Largo clarão em flocos d’escumilha.

Vai subindo, subindo o firmamento!
E branca e doce e nívea, lento e lento,
A lua cheia pelos campos brilha…
ESTAS RISADAS LÍMPIDAS E FRESCAS

Estas risadas límpidas e frescas
Que Pan trauteia em cálamos maviosos
Nesta amplidão dos campos verdurosos,
Nestas paisagens flóreas, pitorescas;
Toda esta pompa e gala principescas
Destas searas, destes altanosos
Montes e várzeas, prados vigorosos,
Louros — talvez como as visões tudescas;
Este luxuoso e rico paramento,
Feito de luz e de deslumbramento
— Do grande altar da natureza imensa.

Aguarda o poeta sacerdote augusto,
Para cantar no seu missal robusto,
A nova Missa da razão que pensa…
OS RISONHOS

Pastores e camponesas
De rudes almas esquivas
Passam entre as candidezas
Das estrelas fugitivas.

Parece que nada os punge,
Nada os punge e sobressalta.

A lua que os campos unge
No firmamento vai alta.

E eles passam sob a lua,
De queixas desafogados,
A cabeça livre e nua,
Na florescência dos prados.

Seres meigos e singelos,
Mulheres de lindo rosto,
Lábios cálidos e belos,
Do quente sabor do mosto.

Pastores de tez morena,
Queimados ao sol adusto:
Claridade bem serena
No fundo do olhar bem justo.

Neles tudo é riso e festa,
Neles tudo é festa e riso,
Frescuras brandas de giesta
E graças de Paraíso.

Simples, toscas e felizes,
Sem ter um laivo de mágoa:
Almas das verdes raízes,
Limpidez de gota d’água.

Neles tudo é paz de aldeia
E ri com os risos mais frescos…

O céu inteiro gorjeia
Idílios madrigalescos.

Seduzido por miragens
Caminha o bando risonho
Dessas virentes paragens,
Levado na asa de um sonho.

Nele tudo ri sem ânsia
E com doçura secreta;
E como uma nova infância
Cantantemente irrequieta.

Encantos de mocidade,
Saúde, fulgor, vigores,
Dão-lhe a doce suavidade
Maravilhosa das flores.

Os corações, florescentes,
Vão nesses peitos cantando
E rindo em festins ardentes
E dentre os risos sonhando.

Ri na boca, ri nos olhos,
Nas faces o bando, rindo
O bom riso sem abrolhos,
Que lembra um campo florindo.

Rindo em sonoras risadas,
Rindo em frêmitos vivazes,
Rindo em risos de alvoradas,
Rindo em risos de lilases.

Os campos entontecidos
Nos vinhos da lua clara
Ficam bizarros, garridos,
De vitalidade rara.

As águas claras das fontes
Vibram lânguidas sonatas
E as nuvens vestem os montes
Das visões mais timoratas.

Na copa dos arvoredos,
Nas orvalhadas verduras
Há sonâmbulos segredos
E murmuradas ternuras.

E o bando festivo passa
Rindo, alegre, casto e suave,
Iluminado de graça,
Mais leve que um vôo de ave.

Podeis rir, almas ditosas,
Almas novas como frutos
De vinhas miraculosas
De pomares impolutos.

Podeis rir, almas eleitas
Que os anjos percebem tanto
Lá das esferas perfeitas
Nas harmonias do Encanto.

Almas brancas, Páscoas leves,
Alvos pães de áureos altares,
De mais candidez que as neves
E a madrugada nos mares.

Almas sem sombras ferozes
Nem espasmos delirantes.

Eco das bíblicas vozes,
Caminhos reverdejantes.

O vosso riso é bendito,
Os vossos sonhos são castos,
O estrelamento infinito
De mundos claros e vastos.

Podeis rir, peitos ufanos,
Belas almas feiticeiras,
Vós tendes nos risos lhanos
O trigo das vossas eiras.

A vossa vida é planície,
Não tem declives funestos:
Sois torres que a superfície
Assenta nos dons modestos.

A vossa vida é bem rasa,
Preso à terra o vosso esforço;
Nem mesmo um frêmito de asa
Vos faz agitar o dorso…

Sois como plantas vencidas,
Conquistadas pela terra,
Dando à terra muitas vidas
E tudo que a Vida encerra.

É do vosso sangue moço
Que na terra se derrama,
Que sobe o rubro alvoroço
De ocasos de sóis em chama.

Manchas, ao certo, não tendes
E nem trágico flagício,
Almas isentas de duendes,
Lavadas no Sacrifício.

Das pedras, nos vossos ombros,
A rigidez não carrega.

Em jardins tornam-se escombros
E em luz a crença que é cega.

Desses perfis adoráveis,
Na curva casta dos flancos
Brotam viços inefáveis
Dos florescimentos brancos.

Podeis rir! ó benfazeja
Bondade de nobre essência.

Deus vos chama e vos deseja
Na estrelada florescência.

Um anjo vos acompanha
Nessa estrada matutina
E convosco a ideal montanha
Sobe da graça divina.

O flagelo deste mundo,
Nesses corações não pesa.

Enquanto o Horror vai profundo
Vossa alma tranqüila reza.

Contritos e de mãos postas,
Humildemente de joelhos,
O Demônio, pelas costas,
Não vem vos dar maus conselhos.

Vós sois as sagradas reses
Votadas ao azul Sacrário.

Deus vos olha muitas vezes
Com o seu olhar visionário.

Mas quando, como as estrelas,
Adormecerdes um dia,
Voando mais perto a vê-las
Na Paragem fugidia.

Quando na excelsa Bonança
Afinal adormecerdes,
Nos olhos toda a esperança
Levando dos prados verdes.

Quando lá fordes, subindo
Para as límpidas Alturas,
Profundamente dormindo,
Em busca das almas puras.

Praza aos céus que nos caminhos
Da eterna Glória, das palmas,
Mais brancas que os claros linhos
Possais encontrar as almas!
IDEAL COMUM
Soneto escrito a quatro mãos.
Escrito em colaboração com Oscar Rosas

Dos cheirosos, silvestres ananases
De casca rubra e polpa acidulosa,
Tens na carne fremente, volutuosa,
Os aromas recônditos, vivazes.

Lembras lírios, papoulas e lilases;
A tua boca exala a trevo e a rosa,
Resplande essa cabeça primorosa
E o dia e a noite nos teus olhos trazes.

Astros, jardins, relâmpagos e luares
Inundam-te os fantásticos cismares,
Cheios de amor e estranhos calafrios;
E teus seios, olímpicos, morenos,
Propinando-me trágicos venenos,
São como em brumas, solitários rios.
PÁSSARO MARINHO

Manhã de maio, rosas pelo prado,
Gorjeios, pelas matas verdurosas
E a luz cantando o idílio de um noivado
Por entre as matas e por entre as rosas.

Uma toilette matinal que o alado
Corpo te enflora em graças vaporosas,
Mergulhas, como um pássaro rosado,
Nas cristalinas águas murmurosas.

Dás o bom dia ao Mar nesse mergulho
E das águas salgadas ao marulho
Sais, no esplendor dos límpidos espaços.

Trazes na carne um reflorir de vinhas,
Auroras, virgens músicas marinhas,
Acres aromas de algas e sargaços!

A poesia interminável 3

SENHOR DE NOBRE ALMA, TÃO

Oferecido e dedicado ao llmo. Sr.

M. Bernardino A. Varela pelo autor
Vir bonus dicendi peritus laudandum est.

Senhor de nobre alma, tão
D’entre os sábios conhecido,
De pais excelsos nascido,
Aceitai a minha canção.

Probo pai, bom cidadão,
Sois dos seres melhor ser
Por saber tão profundo ter,
Sois ilustre qual Catão.

Recebei esta prova mesquinha
De penhor e de oração,
Produto da pena minha.

Perdoai, mui digno varão,
Se na mente eu pobre tinha
Cometer-vos indiscrição.
DA MUNDANA LIDA, EIS QUE CANSADO

Minha vida é um montão de ruínas
em árido deserto um abismo de
ais e de suspiros.

Da mundana lida, eis que cansado,
Co’a lira toda espedaçada,
A alma de suspiros retalhada,
Cumpre o infeliz seu triste fado.

Ai! que viver mais desgraçado!…

Que sorte tão crua e desazada!…

Quem assim tem a vida amargurada
Antes já morrer, ser sepultado.

Só eu triste padeço feras dores,
Imensas e de fel, sem terem fim,
Envolto no véu dos dissabores.

Oh! Cristo eu não sei se só a mim
Deste essa vida d’amargores,
Pois que é demais sofrer-se assim!
DE MAYSEDER GENTIL O VULTO INGENTE

Dieu a fait la mer, les oiseaux, les cieux, toute la nature
enfin; mais
les hommes ont découvert les sciences,
les arts et les lettres qui les élèvent
jusqu’à même Dieu.

De Mayseder gentil o vulto ingente
De Corelli, de Spohr e de Nardini,
De Ole Bull supernal, de Veracini
Inspirados por Deus c’o plectro ardente;

Dessa lira febril, áurea, potente
Do artista sem par, de Paganini;
De Viotti dinal, do herói Tardini,
De Lafont, de Baillot, Eck e Laurenti:
Sois rival feliz! e nesse crânio
Há em jorros, oh céus! extravasando
O ardor musical, o ardor titâneo…

Já bem cedo, veloz, ides galgando
Lá da glória os degraus, o supedâneo
Sobre um trono de luz rindo e cantando.
(24 dez. 1880)
MINH’ALMA ESTÁ AGORA PENETRANDO

Por ocasião dos festejos em homenagem ao sexagésimo primeiro
aniversário natalício do eloqüentíssimo tribuno
sagrado,
Joaquim Gomes d’Oliveira Paiva
Há vultos tamanhos que não
Cabendo no globo, vão quedos
Mas solenes, refugiar-se na campa.

D’aí embuçam-se n’um manto infinito
De glórias?…

Minh’alma está agora penetrando
Lá na etérea plaga, cristalina!
Que música meu Deus febril, divina
Nos páramos azuis vai retumbando!
Além, d’áureo dossel se está rasgando
Custosa, de primor, esmeraldina
Diáfana, sutil, longa cortina
Enquanto céus se vão duplando!
Em grande pedestal marmorizado
De Paiva se divisa o busto enorme
Soberbo como o sol, de luz c’roado
De um lado o porvir — Antheu disforme
Dos lábios faz soltar pujante brado
Hosanas! não morreu! apenas dorme.
ROMPEU-SE O DENSO VÉU DO ATROZ MARASMO

Por ocasião da comemoração do sexagésimo primeiro
aniversario natalício do ilustre pregador catarinense
Joaquim Gomes d’Oliveira Paiva
Rompeu-se o denso véu do atroz marasmo
E como por fatal, negro hebetismo
De antro sepulcral, de fundo abismo
O povo ressurgiu com entusiasmo!
O Zoilo mazorral se queda pasmo
Supõe quimera ser, ser cataclismo
Roga, já por dobrez, por ceticismo
De néscio, vil truão solta o sarcasmo.

Perdão, Filho da Luz, minh’alma exora,
Porém, a pátria diz, somente agora
Os grilhões biparti de atroz moleza!
E ele, o nosso herói já redivivo
De pé, sem se curvar, sereno, altivo
Co’as raias do porvir mede a grandeza!
DEIXAI QUE DESTE ÁLBUM NA FOLHA DELICADA

Embeberam-me a pena em fel!
Antônio (Mendes Leal)
Deixai que deste álbum na folha delicada
Eu venha difundir meus rudes pensamentos
Deixai que as pobres rimas, uns nadas poeirentos
Eu possa transudar da mente entrenublada!…

Deixai que de minh’alma na fibra espedaçada
Eu busque inda vibrar uns cantos tardos, lentos!…

Bem cedo os vendavais, aspérrimos, cruentos
Ai! Tudo arrojarão à campa amargurada!
Porém qu’importa isso! dos mares desta vida
Nos pávidos, estranhos, enormes escarcéus
Se alguma coisa val, és tu, ó luz querida!…

Rasguemos do porvir os áditos, os véus!…

Riamos sem cessar, embora em dor sentida!…

Também as nuvens negras conglobam-se nos céus!
(5 dez. 1882)
ALÇANDO O LIVRO COLOSSAL, ARDENTE

A mocidade é a alavanca do
templo da ciência, no futuro; só ela tem o direito de ser a força
motriz dos fenômenos intelectuais
das grandes revoluções do pensamento.

Do Autor
Alçando o livro colossal, ardente
Traças no crânio um sulco luminoso,
E vais seguindo o remontar garboso
Do sol fagueiro lá no espaço ingente!
Ergues a fronte juvenil potente
Já como herói ou lutador famoso
E c’uma forma de pensar honroso
Fazes-te esperança da brasílea gente!
Seis vezes astro de maior grandeza
Enfim lá surges nos exames belos,
Enfim triunfas na brilhante empresa!
Seis vezes quebras da ignorância os elos,
Seis vezes vives com mais sã firmeza,
Gemem seis vezes a louvar-te os prelos!…

(28 nov. 1882)
O FINAL DO GUARANI

Ceci — é a virgem loira das brancas harmonias,
A doce-flor-azul dos sonhos cor-de-rosa,
Peri — o índio ousado das bruscas fantasias,
O tigre dos sertões — de alma luminosa.

Amam-se com o amor indômito e latente
Que nunca foi traçado nem pode ser descrito.

Com esse amor selvagem que anda no infinito.

E brinca nos juncais, — ao lado da serpente.

Porém… no lance extremo, o lance pavoroso,
Assim por entre a morte e os tons de um puro gozo,
Dos leques da palmeira à nota musical…

Vão ambos a sorrir, às águas arrojados,
Mansos como a luz, tranqüilos, enlaçados
E perdem-se na noite serena do ideal!…

(Santos, 15 jul. 1883)
IDÉIA-MÃE

Laborare dignus est
operarius mercede sua.

Aforismo latino
Ergueis ousadamente o templo das idéias
Assim como uns heróis, por sobre os vossos ombros
E ides através de um negro mar d’escombros,
Traçando pelo ar as loiras epopéias.

A luz tem para vós os filtros magnéticos
Que andam pela flor e brincam pela estrela.

E vós amais a luz, gostais sempre de vê-la
Em amplo cintilar — nuns êxtases patéticos.

É esse o aspirar do séc’lo que deslumbra,
Que rasga da ciência a tétrica penumbra
E gera Vítor Hugo, Haeckel e Littré.

É esse o grande — Fiat — que rola no infinito!…

É esse o palpitar, homérico e bendito,
De todo o ser que vive, estuda, pensa e lê!!…
O SEU BONÉ
À atriz Adelina Castro

É um boné ideal, de feltros e de plumas,
Que ela usa agora, assim como um turbante
Turco, aveludado, doce como algumas
Nuvens matinais que rolam no levante.

Lembro quando ao vê-lo a rubra Marselhesa,
Lembro sensações e cousas de prodígio
E penso que ele tem a máscula grandeza
Desse sedutor, vital barrete frígio!…

Às vezes meu olhar medindo-lhe o contorno
E a flácida plumagem que serve-lhe d’adorno,
— Satânico, voraz, esplêndido de fé!
Exclama num idílio cândido e singelo,
Por entre as convulsões artísticas do Belo; —
Oh! tem coração e alma, esse boné!…

(Corte, out. 1883)
É UM PENSAR FLAMEJADOR, DARDÂNICO
A Moreira de Vasconcelos

Na luta dos impossíveis,
do espírito e da matéria,
tu és a águia sidérea
dos pensamentos terríveis!
Do Autor
É um pensar flamejador, dardânico
Uma explosão de rápidas idéias,
Que como um mar de estranhas odisséias
Saem-lhe do crânio escultural, titânico!…

Parece haver um cataclismo enorme
Lá dentro, em ânsia, a rebentar, fremente!…

Parece haver a convulsão potente,
Dos rubros astros num fragor disforme!…

Hão de ruir na transfusão dos mundos
Os monumentos colossais, profundos,
As cousas vãs da brasileira história!
Mas o seu vulto, sobre a luz alçado,
Oh! há de erguer-se de arrebóis c’roado,
Como Atalaia nos umbrais da glória!!…

(Desterro, 13 jan. 1883)
OISEAUX DE PASSAGE

Les rêves, les grands rêves que moi toujours adore,
Les rêves couleur rose, les rêves éclatants;
Ainsi que les colombes un autre ciel cherchants
J’ai vu les ailes ouvertes, si belles que l’aurore.

Autour de la nature, autour de la profonde
Et merveilleuse mère des fleurs, des harmonies,
Les rêves éblouissants, remplis d’amour et vie,
Trouvaient de l’espoir le plus doré des mondes.

Hélas!… — mais maintenant, par des chagrins, secrets,
L’amour, les étoiles et tout ce qu’il nous est
Chéri — le beau soleil, la lune et les nuages;
Tout fut plongé d’abord’ plongé dans le mystère,
Avec de mon coeur la douce lumière,
Les rêves de mon âme — uns oiseaux de passage!…
COLAR DE PÉROLAS

Ao feliz consórcio dos estimáveis colegas,
D. Jesuína Leal e Francisco de Castro
A F’licidade é um colar de pérolas,
Pérolas caras, de valor pujante,
Belas estrofes de Petrarca e Dante,
Mais cintilantes que as manhãs mais cérulas.

Para que enfim esse colar bendito,
Perdure sempre, inteiramente egrégio,
Como uma tela do pintor Correggio,
Sem resvalar no lodaçal maldito;
Faz-se preciso umas paixões bem retas,
Cheias de uns tons de muito sol — completas…

Faz-se preciso que do amor na febre,
Nos grandes lances de vigor preclaro,
Desse colar esplendoroso e raro,
Nem uma pérola, uma só se quebre!…
SATANISMO

Não me olhes assim, branca Arethusa,
Peregrina inspiração dos meus cantares;
Não me deixes a razão vagar confusa
Ao relâmpago ideal de teus olhares.

Não me olhes, oh! não, porquanto eu penso
Envolvido no luar das minhas cismas,
Que o olhar que me dardejas — doido, imenso
Tem a rápida explosão dos aneurismas.

Não me olhes. Oh! não, que o próprio inferno
Problemático, fatal, cálido, eterno,
Nos teus olhos, mulher, se foi cravar!…

Não me olhes, oh! não, que m’entolece
Tanta luz, tanto sol — e até parece
Que tens músicas cruéis dentro do olhar!…
METAMORFOSE
A Carlos Ferreira

O sol em fogo pelo ocaso explode
Nesse estertor, que os crânios assoberba.

Vivo, o clarão, nuns frocos exacerba
Dos ideais a original nevrose.

Da natureza os anafis mouriscos
Ante o cariz da atmosfera muda,
Soam queixosos, numa nota aguda,
Da luz que esvai-se aos derradeiros discos.

O pensamento que flameja e luta
Nos ares rasga aprofundado sulco…

A sombra desce nos lisins da gruta;
E a lua nova — a peregrina Onfale,
Como em um plaustro luminoso, hiulco,
Surge através dos pinheirais do vale.
AURÉOLA EQUATORIAL
A Teodoreto Souto

Fundi em bronze a estrofe augusta dos prodígios,
Poetas do Equador, artísticos Barnaves;
Que o facho — Abolição — rasgando as nuvens graves
De raios e bulcões — triunfa nos litígios!
— O rei Mamoud, o Sol, vibrou p’raquelas bandas
Do Norte — a grande luz — elétrico, explodindo,
Assim como quem vai, intrépido, subindo
À luz da idade nova — em claras propagandas.

— Os pássaros titãs nos seus conciliábulos,
— Chilreiam, vão cantando em místicos vocábulos,
Alargam-se os pulmões nevrálgicos das zonas;
Abri alas, abri! — Que em túnica de assombros,
Irá passar por vós, com a Liberdade aos ombros,
Como um colosso enorme o impávido Amazonas!
ANDA-ME A ALMA INTEIRA DE TAL SORTE

Anda-me a alma inteira de tal sorte,
Meus gozos, meu pesar, nos dela unidos
Que os dela são também os meus sentidos,
Que o meu é também dela o mesmo norte.

Unidos corpo a corpo — um elo forte
Nos prende eternamente — e nos ouvidos
Sentimos sons iguais. Vemos floridos
Os sons do porvir, em azul coorte…

O mesmo diapasão musicaliza
Os seres de nós dois — um sol irisa
Os nossos corações — dá luz, constela…

Anda esta vida, espiritualizada
Por este amor — anda-me assim — ligada
A minha sombra com a sombra dela.
NOIVA E TRISTE

Rola da luz do céu, solta e desfralda
Sobre ti mesma o pavilhão das crenças,
Constele o teu olhar essas imensas
Vagas do amor que no teu peito escalda.

A primorosa e límpida grinalda
Há de enflorar-te as amplidões extensas
Do teu pesar — há de rasgar-te as densas
Sombras — o véu sobre a luzente espalda…

Inda não ri esse teu lábio rubro
Hoje — inda n’alma, nesse azul delubro
Não fulge o brilho que as paixões enastra;
Mas, amanhã, no sorridor noivado,
A vida triste por que tens passado,
De madressilvas e jasmins se alastra.
MÃE E FILHO
Às mães desamparadas

Jesus, meu filho, o encanto das crianças,
Quando na cruz, de angústia espedaçado,
Em sangue casto e límpido banhado,
Manso, tão manso como as pombas mansas;
Embora as duras e afiadas lanças
Com que os judeus, tinham, de lado a lado,
Seu coração puríssimo varado,
Inda no olhar raiavam-lhe esperanças.

Por isso, ó filho, ó meu amor — se a esmola
De algum conforto essencial não rola
Por nós — é forca conduzir a cruz!…

Mas, volta ó filho, pesaroso e triste.

Se a nossa vida só na dor consiste,
Ah! minha mãe, por que morreu Jesus?…
SURDINAS
Às raparigas tristes

Vais partir, vais partir que eu bem te vejo
Na branca face os gélidos suores,
Vais procurar as musicas melhores
Do sol, da glória e do celeste beijo.

Dentro de ti as harpas do desejo
Não vibram mais — embora que tu chores —
Nem pelas tuas aflições maiores
Se escuta um vago e enfraquecido arpejo…

Bem! vais partir, vais demandar esferas
Amplas de luz, feitas de primaveras,
Paisagens novas e amplidão florida…

Mas ao chegar-te a lágrima infinita,
Lembra-te ainda, ó pálida bonita
De que houve alguém que te adorou na vida.
IRRADIAÇÕES
Às crianças

Qual da amplidão fantástica e serena
À luz vermelha e rútila da aurora
Cai, gota a gota, o orvalho que avigora
A imaculada e cândida açucena.

Como na cruz, da triste Madalena
Aos pés de Cristo, a lágrima sonora
Caia, rolou, qual bálsamo que irrora
A negra mágoa, a indefinida pena…

Caia por vós, esplêndidas crianças
Bando feliz de castas esperanças,
Sonhos da estrela no infinito imersos;
Caia por vós, as músicas formosas,
Como um dilúvio matinal de rosas,
Todo o luar benéfico dos versos!
AMBOS

Vão pela estrada, à margem dos caminhos
Arenosos, compridos, salutares,
Por onde, à noite, os límpidos luares
Dão às verduras leves tons de arminhos.

Nuvens alegres como os alvos linhos
Cortam a doce compridão dos ares,
Dentre as canções e os tropos singulares
Dos inefáveis, meigos passarinhos.

Do céu feliz na branda curvidade,
A luz expande a inteira alacridade,
O mais supremo e encantador afago.

E com o olhar vibrante de desejos
Vão decifrando os trêmulos arpejos,
E as reticências que produz o vago.
OS DOIS
Aos pobres

— Minha mãe, minha mãe, quanta grandeza
Nesses palácios, quanta majestade;
Como essa gente há de viver, como há de
Ser grande sempre na feliz riqueza.

Nem uma lágrima sequer — e à mesa
Dentre as baixelas, dentre a imensidade
Da prata e do ouro — a azul felicidade
Dos bons manjares de ótima surpresa.

Nem um instante os olhos rasos d’água,
Nem a ligeira oscilação da mágoa
Na vida farta de prazer, sonora.

— Como o teu louco pensamento expandes
Filho — a ventura não é só dos grandes
Porque, olha, o mar também é grande e… chora!
TRISTE

Vai-se extinguindo a viva labareda
Que te abrasava o coração ridente…

Passas magoada pela rua e a gente
Umas conversas funerais segreda.

Não tens no olhar o sangue qu’embebeda,
Foram-se as rosas do viver contente…

Segues, agora, pobre flor — somente
Da sepultura a essencial vereda.

E vem chegando o tenebroso inverno…

Mas nesse mal devorador e eterno,
Teu organismo já não mais resiste
Às punhaladas da estação de gelo…

E acabará como eu nem sei dizê-lo,
Triste, bem triste, pesarosa, triste!
AOS MORTOS

Oh! não é bom rir-se de um morto — brusca
Pois deve ser a sensação que aumenta
Desoladora, vagarosa, lenta
Da negra morte tétrica velhusca…

Tudo que em vida, como um sol, corusca,
Que nos aquece, que nos acalenta,
Tudo que a dor e a lágrima afugenta,
O olhar da morte nos apaga e ofusca…

Nunca se deve desprezar os mortos…

Nos regelados e sombrios portos,
Onde a matéria se transforma e urge
Exuberar na planturosa leiva,
Vivem os mortos no vigor da seiva,
Porque dão vida ao que da vida surge!…
LUAR

Pelas esferas, nuvens peregrinas,
Brandas de toques, encaracoladas,
Passam de longe, tímidas, nevadas,
Cruzando o azul sereno das colinas.

Sombras da tarde, sombras vespertinas
Como escumilhas leves, delicadas,
Caem da serra oblonga nas quebradas,
Vão penumbrando as coisas cristalinas.

Rasga o silêncio a nota chã, plangente,
Da Ave-Maria, — e então, nervosamente,
Nuns inefáveis, espontâneos jorros
Esbate o luar, de forma admirável,
Claro, bondoso, elétrico, saudável,
Na curvilínea compridão dos mortos.
MOCIDADE

Ah! esta mocidade! — Quem é moço
Sente vibrar a febre enlouquecida
Das ilusões, da crença mais florida
Na muscular artéria de Colosso…

Das incertezas nunca mede o poço…

Asas abertas — na amplidão da vida,
Páramo a dentro — de cabeça erguida,
Vê do futuro o mais alegre esboço…

Chega a velhice, a neve das idades
E quem foi moço, volve, com saudades,
Do azul passado, o fúlgido compêndio…

Ai! esta mocidade palpitante,
Lembra um inseto de ouro, rutilante,
Em derredor das chamas de um incêndio!
SONETO

Vão-se de todo os pardacentos nimbos…

Chovem da luz as nítidas faíscas
E no esplendor de irradiações mouriscas,
Abrem-se as flores em gentis corimbos.

Muito mais lestas do que amigos fimbos,
Do Azul cortando as bordaduras priscas,
Pombas do mato esvoaçando, ariscas,
Do céu se perdem nos profundos limbos.

A natureza pulsa como a forja…

Pássaros vibram no clarim da gorja,
As retumbantes, fortes clarinadas.

A grande artéria dos assombros pula…

E do oxigênio, a força que regula
Enche os pulmões a largas baforadas.
CEGA

Parece-me que a luz imaculada
Que vem do teu olhar, todo doçuras,
Não verte no meu ser aquelas puras
Delícias de outra era já passada.

Eu creio que essa pálpebra adorada
Não mais um flóreo empíreo de venturas
Descobre-me — na noite de amarguras,
De dúvidas intérminas cortada.

Não olhas como olhavas, rindo, outrora,
Não abres a pupila, como a aurora
Nascendo, abre, feliz, radiosa e calma.

A sombra, nos teus olhos, funda, existe!…

Tu’alma deve ser bem negra e triste
Se os olhos são, decerto, o espelho d’alma.
(A) ERMIDA

Lá onde a calma e a placidez existe,
Sobre as colinas que o vergel encobre,
Aquela ermida como está tão pobre,
Aquela ermida como está tão triste.

A minha musa, sem falar, assiste,
Do meio-dia ante o aspecto nobre,
O vago, estranho e murmurante dobre
Daquela ermida que aos trovões resiste
E às gargalhadas funéreas, sombrias
Dos crus invernos e das ventanias,
Do temporal desolador e forte.

Daquela triste esbranquiçada ermida,
Que me recorda, me parece a vida
Jogada às magoas e ilusões da sorte.
ÁGUA-FORTE

Do firmamento azul e curvilíneo
Cai, fecundando as trêmulas raízes
Dos laranjais, dos pâmpanos, das lises,
A luz do sol procriador, sanguíneo.

Pelo caminho agreste e retilíneo,
Da tarde aos brandos, triunfais matizes,
A criançada, a chusma dos felizes,
Esse de auroras perfumado escrínio,
Volta da escola, rindo muito, aos saltos,
Trepando, em bulha, aos árvoredos altos
Enquanto o sol desce os outeiros longos…

Vai dentre alados madrigais risonhos,
Do abecedário juvenil dos sonhos,
A soletrar os principais ditongos.
ALMA QUE CHORA
A João Saldanha

Em vão do Cristo os olhos dulçurosos
Onde há o sol do bem e da verdade,
Cheios da luz eterna de saudade,
Como dois mansos corações piedosos,
Em vão do Cristo os olhos lacrimosos
E aquela doce e pura suavidade
Do seu semblante, casto, de bondade,
Cor do luar dos sonhos venturosos,
Servem de exemplo à dor escruciante
Que te apunhala e fere a cada instante,
A punhaladas ríspidas, austeras!
Viste partir a tua irmã, ai, viste,
Como num céu enevoado e triste
O bando azul das fúlgidas quimeras…
CHUVA DE OURO

A Rainha desceu do Capitólio
Agora mesmo — vede-lhe o regaço…

Como tem flores, como traz o braço
Farto de jóias, como pisa o sólio
Triunfantemente, numa unção, num óleo
Mais santo e doce que essa luz do espaço…

E como desce com bravura de aço…

Pois se a Rainha, como um rico espólio,
O seu brioso coração foi dando
Aos pobrezinhos, que inda estão gozando
Bênçãos mais puras qu’os clarões diurnos,
Por certo que há de vir descendo a escada
Do Capitólio da virtude — olhada
Pelos albergues infantis, noturnos!
PRIMAVERA A FORA

Escute, excelentíssima: — Que aragens
Traz do arvoredo a fresca romaria;
Como este sol é rubro de alegria,
Que tons de luz nas límpidas paisagens.

Pois beba este ar e goze estas viagens
Das brancas aves, sinta esta harmonia
Da natureza e deste alegre dia
Que resplandece e ri-se nas ervagens.

Deixe lá fora estrangular-se o mundo…

Encare o céu e veja este fecundo
Chão que produz e que germina as flores.

Vamos, senhora, o braço à primavera,
E numa doce música sincera,
Cante a balada eterna dos amores…
25 DE MARÇO

Em Pernambuco para o Ceará
A província do Ceará, sendo berço de Alencar e
Francisco Nascimento — o dragão do mar — é
consequentemente a mãe da literatura e a mãe da
humanidade.

Bem como uma cabeça inteiramente nua
De sonhos e pensar, de arroubos e de luzes,
O sol de surpreso esconde-se, recua,
Na órbita traçada — de fogo dos obuses.

Da enérgica batalha estóica do Direito
Desaba a escravatura — a lei cujos fossos
Se ergue a consciência — e a onda em mil destroços
Resvala e tomba e cai o branco preconceito.

E o Novo Continente, ao largo e grande esforço
De gerações de heróis — presentes pelo dorso
À rubra luz da glória — enquanto voa e zumbe
O inseto do terror, a treva que amortalha,
As lágrimas do Rei e os bravos da canalha,
O velho escravagismo estéril que sucumbe.

(Recife, 1885)
NINHO ABANDONADO

À distinta família Simas, pela morte de seu chefe,
o Ilmo. Sr. João da Silva Simas
O vosso lar harmônico e tranqüilo
Era um ninho de luz e de esperanças
Que como abelhas iriadas, mansas,
Nos vossos corações tinham asilo.

Havia lá por dentro tanta crença
E tanto amor puríssimo, cantando,
Que parecia um largo sol faiscando
Por majestosa catedral imensa.

Agora o ninho está desamparado!
Sumiu-se dele o pássaro adorado,
O mais ideal dos pássaros do ninho.

Não se ouve mais a música sonora
Da sua voz — dentro do ninho, agora,
Paira a saudade como um bom carinho.
CRENÇA

Filha do céu, a pura crença é isto
Que eu vejo em ti, na vastidão das cousas,
Nessa mudez castíssima das lousas,
No belo rosto sonhador do Cristo.

A crença é tudo quanto tenho visto
Nos olhos teus, quando a cabeça pousas
Sobre o meu colo e que dizer não ousas
Todo esse amor que eu venço e que conquisto.

A crença é ter os peregrinos olhos
Abertos sempre aos ríspidos escolhos;
Tê-los à frente de qualquer farol
E conservá-los, simplesmente acesos
Como dois fachos — engastados, presos
Nas radiações prismáticas do sol!
CRISTO E A ADÚLTERA

Grupo de Bernardelli
Sente-se a extrema comoção do artista
No grupo ideal de plácida candura,
Nesse esplendor tão fino da escultura
Para onde a luz de todo o olhar enrista.

Que campo, ali, de rútila conquista
Deve rasgar, do mármore na alvura,
O estatuário — que amplidão segura
Tem — de alma e braço, de razão e vista!
Vê-se a mulher que implora, ajoelhada,
A mais serena compaixão sagrada
De um Cristo feito a largos tons gloriosos.

De um Nazareno compassivo e terno,
D’olhos que lembram, cheios de falerno,
Dois inefáveis corações piedosos!
ÊXTASE DE MÁRMORE
À grande atriz Apolônia

O mármore profundo e cinzelado
De uma estátua viril, deliciosa;
Essa pedra que geme, anseia e goza
Num misticismo altíssimo e calado;
Essa pedra imortal — campo rasgado
A comoção mais íntima e nervosa
Da alma do artista, de um frescor de rosa,
Feita do azul de um céu muito azulado;
Se te visse o clarão que pelos ombros
Teus, rola, cai, nos múltiplos assombros
Da Arte sonora, plena de harmonia;
O mármore feliz que é muito artista
Também — como tu és — à tua vista
De humildade e ciúme, coraria!
INVERNO

Amanheceu — no topo da colina
Um céu de madrepérola se arqueia
Limpo, lavado, reluzindo — ondeia
O perfume da selva esmeraldina.

Uma luz virginal e cristalina,
Como de um rio a transbordante cheia,
Alaga as terras culturais e arreia
De pingos d’ouro os verdes da campina.

Um sol pagão, de um louro gema d’ovo,
Já tão antigo e quase sempre novo,
Surge na frígida estação do inverno.

— Chilreiam muito em árvores frondosas
Pássaros — fulge o orvalho pelas rosas
Como o vigor no espírito moderno.
FALANDO AO CÉU

Falas ao Céu, Amor! Em vão tu falas!
Mas o Céu, esse é velho, esse é velhinho,
Todo ele é branco, faz lembrar o linho
Dos leitos alvos onde tu te embalas.

A alma do Céu é como velhas salas
Sem ar, sem luz, como lares sem vinho,
Sem água e pão, sem fogo e sem carinho,
Sem as mais toscas, as mais simples galas.

Sempre surdo, hoje o céu é mudo, é cego…

Jamais o coração ao céu entrego,
Eu que tão cego vou por entre abrolhos.

Mas se o queres tornar jovem e louro
Dá-lhe o bordão do teu amor um pouco,
Fala e vista, com a vida dos teus olhos…
GLORIOSA
A Araújo Figueredo

Pomba! dos céus me dizes que vieste,
Toda c’roada de astros e de rosas,
Mas há regiões mais que essas luminosas.

Não, tu não vens da região celeste
Há um outro esplendor em tua veste,
Uma outra luz nas tranças primorosas,
Outra harmonia em teu olhar — maviosas
Cousas em ti que tu nunca tiveste.

Não, tu não vens das célicas planuras,
Do Éden que ri e canta nas alturas
Como essa voz que dos teus lábios tomba.

Vens de mais longe, vens doutras paragens,
Vens doutros céus de místicas celagens,
Sim, vens de sóis e das auroras, pomba.
O CHALÉ

É um chalé luzido e aristocrático,
De fulgurantes, ricos arabescos,
Janelas livres para os ares frescos,
Galante, raro, encantador, simpático.

O sol que vibra em rubro tom prismático,
No resplendor dos luxos principescos,
Dá-lhe uns alegres tiques romanescos,
Um colorido ideal silforimático.

Há um jardim de rosas singulares,
Lírios joviais e rosas não vulgares,
Brancas e azuis e roxas purpúreas.

E a luz do luar caindo em brilhos vagos,
Na placidez de adormecidos lagos
Abre esquisitas radiações sulfúreas.
DELÍRIO DO SOM

O Boabdil mais doce que um carinho,
O teu piano ebúrneo soluçava,
E cada nota, amor, que ele vibrava,
Era-me n’alma um sol desfeito em vinho.

Me parecia a música do arminho,
O perfume do lírio que cantava,
A estrela-d’alva que nos céus entoava
Uma canção dulcíssima baixinho.

Incomparável, teu piano — e eu cria
Ver-te no espaço, em fluidos de harmonia,
Bela, serena, vaporosa e nua;
Como as visões olímpicas do Reno,
Cantando ao ar um delicioso treno
Vago e dolente, com uns tons de lua.
ILUSÕES MORTAS
A Virgílio Várzea

Os meus amores vão-se mar em fora,
E vão-se mar em fora os meus amores,
A murchar, a murchar, como essas flores
Sem mais orvalho e a doce luz da aurora.

E os meus amores não virão agora,
Não baterão as asas multicores,
Como aves mansas — dentre os esplendores
Do meu prazer, do meu prazer de outrora.

Tudo emigrou, rasgando a esfera branca
Das ilusões, — tudo em revoada franca
Partiu — deixando um bem-estar saudoso
No fundo ideal de toda a minha vida,
Qual numa taça a gota indefinida
De um bom licor antigo e saboroso.
O SONHO DO ASTRÓLOGO

As fulgurosas, rútilas estrelas
Como mundos de mundos seculares,
Formando uns arquipélagos, uns mares
De luz — como eu deslumbro o olhar ao vê-las.

Ah! se como eu sei compreendê-las,
Sentir-lhes os seus filtros salutares,
Pudesse, da amplidão fria dos ares
Arrancá-las, na mão sempre trazê-las;
Que vagalhões de assombros palpitantes
Não me viriam perpassar, faiscantes,
Dentro do ser, nuns doutros murmúrios.

Eu saberia muito mais a causa
Da evolução que nunca teve pausa,
Que é uma audácia transbordando em rios.
CRISTO

Cristo morreu, ó tristes criaturas,
Era matéria como vós, morreu;
E quando à noite sepulcral desceu
Gelou com ele o oceano das ternuras.

Nunca outro sol de irradiações mais puras
Subiu tão alto e tanto resplendeu,
Nunca ninguém tão firme combateu
Da humanidade todas as torturas.

Morreu, que se ele, o Deus, ressuscitasse,
Limpa de sangue e lágrimas a face,
Os seus olhos tranqüilos, virginais,
Dons inefáveis, corações piedosos,
Tinham de abrir-se muito dolorosos,
Também chorando quando vós chorais!
FRUTAS DE MAIO

Maio chegou — alegre e transparente,
Cheio de brilho e música nos ares,
De cristalinos risos salutares,
Frio, porém, ó gota alvinitente.

Corre um fluido suave e odorescente
Das laranjeiras, como dos altares
O incenso — e, como a gaze azul dos mares,
Leve — há por tudo um beijo, docemente.

Isto bem cedo, de manhã — adiante
Pela tarde um sol calmo, agonizante,
Põe no horizonte resplendentes franjas.

Há carinhos, da luz em cada raio,
Filha — e eu que adoro este frescor de maio
Muito, mas muito — trago-te laranjas.
ETERNO SONHO

Quelle est donc cette femme?
Je ne comprendra pas.

Félix Arvers

Talvez alguém estes meus versos lendo
Não entenda que amor neles palpita,
Nem que saudade trágica, infinita
Por dentro deles sempre está vivendo.

Talvez que ela não fique percebendo
A paixão que me enleva e que me agita,
Como de uma alma dolorosa, aflita
Que um sentimento vai desfalecendo.

E talvez que ela ao ler-me, com piedade,
Diga, a sorrir, num pouco de amizade,
Boa, gentil e carinhosa e franca:
— Ah! bem conheço o teu afeto triste…

E se em minha alma o mesmo não existe,
É que tens essa cor e é que eu sou branca!
IMPASSÍVEL

Teu coração de mármore não ama
Nem um dia sequer, nem um só dia.

Essa inclemente natureza fria
Jamais na luz dos astros se derrama.

Mares e céus, a imensidade clama
Por esse olhar d’estrelas e harmonia,
Sem uma névoa de melancolia,
Do amor nas pompas e na viva chama.

A Imensidade nunca mais quer vê-lo,
Indiferente às comoções, de gelo
Ao mar, ao sol, aos roseirais de aromas.

Ama com o teu olhar, que a tudo encantas,
Ou sê antes de pedra, como as santas,
Mudas e tristes dentro das redomas.
SONETOS

Do som, da luz entre os joviais duetos,
Como uma chusma alada de gaivotas,
Vindos das largas amplidões remotas,
Batem as asas todos os sonetos.

Vão — por estradas, por difíceis rotas,
Quatorze versos — entre dois quartetos
E duas belas e luzidas frotas
Rijas, seguras, de mais dois tercetos.

Com a brunida lâmina da rima,
Vão céus radiosos, horizontes acima,
Pelas paragens límpidas, gentis,
Atravessando o campo das quimeras,
Aberto ao sol das flóreas primaveras,
Todo estrelado de áureos colibris.
TO SLEEP, TO DREAM

Dormir, sonhar — o poeta inglês o disse…

Ah! Mas se a gente nunca mais sonhasse
Ah! Mas se a gente nunca mais dormisse
E as ilusões não mais acalentasse?
E o que importava que o futuro risse
De um visionário que tal cousa ideasse;
Se não seria o único que abrisse
Uma exceção da vida humana à face?…

Se os imortais filósofos modernos
Que derrubaram todos os infernos,
Que destruíram toda a teogonia.

Orientando a triste humanidade,
Deixaram, mais e mais, a piedade
Inteiramente desolada e fria?
VISÃO MEDIEVA

Quando em outras remotas primaveras,
Na Idade Média, sob fuscos tetos,
Dois amantes passavam, mil aspectos
Tinham aquelas medievais quimeras.

Nas armaduras rígidas e austeras,
Na aérea perspectiva dos objetos
Andavam sonhos e visões, diletos
Segredos mortos nas extintas eras.

O fantasma do amor pelos castelos
Mudo vagava entre os luares belos,
Dos corredores nas paredes frias.

Não raro se escutava um som de passos,
Rumor de beijos, frêmito de abraços
Pelas caladas, fundas galerias.
RECORDAÇÃO

Foi por aqui, sob estes arvoredos,
Sob este doce e plácido horizonte,
Perto da clara e pequenina fonte
Que murmura lá baixo os seus segredos…

Recordo bem todos os cantos ledos
Da passarada — e lembro-me da ponte
Por sobre a qual via-se além, defronte,
O mar azul batendo nos penedos.

Sinto a impressão ainda da paisagem,
Do trêmulo […] da folhagem,
Das culturas rurais, do sítio agreste.

A luz do dia vinha então morrendo…

Foi por aqui que eu pude ficar crendo
O quanto pode o teu olhar celeste.
ROMA PAGÃ

Na antiga Roma, quando a saturnal fremente
Exerceu sobre tudo o báquico domínio,
Não era raro ver nos gozos do triclínio
A nudez feminina imperiosa e quente.

O corpo de alabastro, olímpico e fulgente,
Lascivamente nu, correto e retilíneo,
Num doce tom de cor, esplêndido e sangüíneo,
Tinha o assombro da carne e a forma da serpente.

A luz atravessava em frocos d’oiro e rosa
Pela fresca epiderme, ebúrnea e cetinosa,
Macia, da maciez dulcíssima de arminhos.

Menos raro, porém, do que a nudez romana
Era ver borbulhar, em férvida espadana
A púrpura do sangue e a púrpura dos vinhos.
ESPIRITUALISMO

Ontem, à tarde, alguns trabalhadores,
Habitantes de além, de sobre a serra,
Cavavam, revolviam toda a terra,
Do sol entre os metálicos fulgores.

Cada um deles ali tinha os ardores
De febre de lutar, a luz que encerra
Toda a nobreza do trabalho e — que erra
Só na cabeça dos conspiradores,
Desses obscuros revolucionários
Do bem fecundo e cultural das leivas
Que são da Vida os maternais sacrários.

E pareceu-me que do chão estuante
Vi porejar um bálsamo de seivas
Geradoras de um mundo mais pensante.
ALMA ANTIGA

Põe a tua alma francamente aberta
Ao sol que pelos páramos faísca,
Que o sol para a tua alma velha e prisca
Deve de ser como um clarim de alerta.

Desperta, pois, por entre o sol, desperta
Como de um ninho a pomba quente e arisca
À luz da aurora que dos altos risca
De listrões d’ouro a vastidão deserta.

Vai por abril em flores gorjeando
Como pássaro êxul as canções leves
Que os ventos vão nas árvores deixando.

E tira da tua alma, ó doce amiga,
Almas serenas, puras como a neve,
Almas mais novas que a tua alma antiga!
A PARTIDA

Partimos muito cedo — A madrugada
Clara, serena, vaporosa e fresca,
Tinha as nuances de mulher tudesca
De fina carne esplêndida e rosada.

Seguimos sempre afora pela estrada
Franca, poeirenta, alegre e pitoresca,
Dentre o frescor e a luz madrigalesca
Da natureza aos poucos acordada.

Depois, no fim, lá de algum tempo — quando
Chegamos nós ao termo da viagem,
Ambos joviais, a rir, cantarolando,
Da mesma parte do levante, de onde
Saímos, pois, faiscava na paisagem
O sol, radioso e altivo como um conde.
CANÇÃO DE ABRIL

Vejo-te, enfim, alegre e satisfeita.

Ora bem, ora bem! — Vamos embora
Por estes campos e rosais afora
De onde a tribo das aves nos espreita.

Deixa que eu faça a matinal colheita
Dos teus sonhos azuis em cada aurora,
Agora que este abril nos canta, agora,
A florida canção que nos deleita.

Solta essa fulva cabeleira de ouro
E vem, subjuga com teu busto louro
O sol que os mundos vai radiando e abrindo.

E verás, ao raiar dessa beleza,
Nesse esplendor da virgem natureza,
Astros e flores palpitando e rindo.
O MAR

Que nostalgia vem das tuas vagas,
Ó velho mar, ó lutador Oceano!
Tu de saudades íntimas alagas
O mais profundo coração humano.

Sim! Do teu choro enorme e soberano,
Do teu gemer nas desoladas plagas
Sai o […] que é, rude sultão ufano,
Que abre nos peitos verdadeiras chagas.

Ó mar! ó mar! embora esse eletrismo,
Tu tens em ti o gérmen do lirismo,
És um poeta lírico demais.

E eu para rir com humor das tuas
Nevroses colossais, bastam-me as luas
Quando fazem luzir os seus metais…
BRANCAS APARIÇÕES, VISÕES RENANAS

Brancas Aparições, Visões renanas,
Imagens dos Ascetas peregrinos,
Hinos nevoentos, neblinosos hinos
Das brumosas igrejas luteranas.

Vago mistério das regiões indianas,
Sonhos do Azul dos astros cristalinos,
Coros de Arcanjos, claros sons divinos
Dos Arcanjos, nas tiorbas soberanas.

Tudo ressurge na minh’alma e vaga
Num fluido ideal que me arrebata e alaga,
No abandono mais lânguido mais lasso…

Quando lá nos sacrários do Cruzeiro
A lua rasga o trêmulo nevoeiro,
Magoada de vigílias e cansaço…
GUERRA JUNQUEIRO

Quando ele do Universo o largo supedâneo
Galgou como os clarões — quebrando o que não serve,
Fazendo que explodissem os astros de seu crânio,
As gemas da razão e os músculos da verve;
Quando ele esfuziou nos páramos as trompas,
As trompas marciais — as liras do estupendo,
Pejadas de prodígios, assombros e de pompas,
Crescendo em projeções, crescendo e recrescendo;
Quando ele retesou os nervos e as artérias
Do verso orbicular — rasgando das misérias
O ventre do Ideal na forte hematêmese.

Clamando — é minha a luz, que o século propague-a,
Quando ele avassalou os píncaros da águia
E o sol do Equador vibrou-lhe aquelas teses!
(DIVERSAS MÉTRICAS)

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A poesia interminável 4

AWAY!

A meu distinto amigo e talentoso jovem
José Arthur Boiteux
O livro, esse audaz guerreiro,
Que conquista o mundo inteiro,
Sem nunca ter Waterloo!…

Castro Alves
Avante, sempre, nessa luz serena,
Empunha a pena, sem temor, com fé!…

Eleva às turbas as idéias d’ouro,
Que um tesouro tua fronte é!…

Eia, caminha nessa senda nobre,
Na pátria pobre, no teu berço aqui!…

Prossegue altivo, sem parar, constante,
Faz-te gigante, diz depois — Venci!…

Ala-te à glória num voar titânio,
Burila o crânio de fulgor sem fim!…

E entre o livro d’imortais perfumes
Calca os ciúmes d’imbecil Caim!
Imita os grandes, incansáveis vultos
Que lá sepultos no pó negro estão!…

Anda, romeiro dos vergéis divinos,
Mergulha em hinos a gentil razão!
Estás na quadra radiante e linda,
É cedo ainda para enfim descrer!

És jovem… pensas… és portanto um bravo
Ser ignavo… é sucumbir… morrer!
Vamos, caminha, mesmo embora exangue
Da fronte o sangue vá rolar-te aos pés!

Agita a alma qual febris as vagas,
Que dessas chagas brotarão lauréis!
Além do livro, colossal, enorme,
Que nunca dorme perscrutando os céus!.

Acima dele supernal, potente
Está somente, tão-somente Deus!
Vai! … vai rasgando, percorrendo os ares,
Novos palmares, meu gentil condor!
Depois de teres pedestal seguro
Lá do futuro te erguerás senhor!…

Qual Ney ousado que, ao vibrar da lança,
Nutre esperança de ganhar, vencer,
Assim co’a idéia vai lutar, trabalha,
Vence a batalha do dinal saber.

Eia que sempre na brasília história
De alta glória colherás o jus!…

O livro augusto do porvir descerra,
Sê desta terra precursor da luz!!!
POESIA

C’est la musique la poesie de l’âme;
et la gloire est Dieu, ce sont les
deux choses les plus charmantes, les
plus belles, les plus grandes de la vie!

Do Autor
Da música escutando preclaras harmonias
Vendo em cada lábio brilhar ledo sorriso
Vendo luz e flores e tanto entusiasmo
Julguei-me transportado ao célico Paraíso!
Foi sonho na verdade — mas hoje realizado
Vos dá, distintos sócios, venturas mais de mil,
A vós que à frente tendo Penedo, grande, forte,

Subis, alistridente, qual ave mais gazil!
E quando executais as vossas belas peças
As notas quais gemidos vagam n’amplidão
Parece que o infinito derrama sobre vós
Centelhas sublimadas só d’inspiração!

Da arte de Mozart vós sois grandes romeiros
Lutais como nas vagas o triste palinuro,
Os olhos tendes fitos na glória que dá brilho
No livro tricolor e ovante do futuro!

Hoje que os sorrisos assomam em vossos lábios
Que da “Guarani” alçais áureo pendão,
Eu humilde e fraco — com flores inodoras
Somente aqui vos venho fazer uma ovação!

Quando há só coragem, força, intrepidez
Quando se alimenta no peito divo ardor,
O homem não recua, caminha p’ro progresso
Co’a fronte sempre erguida, sem ter menor temor,
Sem ter algum trabalho jamais s’alcança trono
Sem ter valor e força jamais se tem lauréis
P’ra vossa grande glória, além do grã futuro
Deus já tem erectos milhares de dosséis!

Mas dentre vós vulto sereno se destaca
Qual Rodes portentoso, imenso, verdadeiro
Que nunca recuou sequer um só momento
Que sempre em trabalhar foi pronto companheiro!

É este vosso sócio, digno diretor
Que forte não pensou jamais em recuar!

É José Gonçalves — águia valorosa
A quem, altivamente, eu ouso aqui louvar!

Vencendo mil tropeços, altiva os derribando
A bela “Guarani” se mostra triunfante,
Foi como esses heróis — na mão sustenta o gládio
— O gládio da vitória serena e radiante!
Portanto erguei ridente a fronte ao infinito!

Erguei ó grandes bravos a fronte toda luz!
Eia, a senda é bela, sublime, é grandiosa
Avante pois ness’arte, avante, avante, sus!

E agora concluindo palavras pobrezinhas
Que eu pronunciar humilde vim aqui,
Saúdo fervoroso — do imo de minh’alma
A essa tão gentil, simpática “Guarani”!
SAUDAÇÃO

Qual o que não exulta ao ler uma epopéia!
Qual o que a ver dor não lhe estremece o crânio,
Em confusões cruéis?!

Qual o que tem fresca, sublime, pronta a idéia,
E do altar da caridade no supedâneo,
Não deixa alguns lauréis?!

Do Autor
Ontem, grande desgraça
Que o povo se abraça
D’Itajaí em geral!
Ontem, o cetro divino
Que se tornando ferino
Tudo esmaga afinal!
Ontem, prantos e dor. . .

Grandes gritos d’horror…

A fatal confusão!
Ontem, lampas perdidas
De centenas de vidas,
Que nas águas lá vão!
Ontem, negras as vagas,
Os belos céus, essas plagas,
— Onde existe o Senhor!
Ontem, — fatalidade!
A pobrezinha cidade
Toda envolta em negror!
Hoje, oh! Deus sempiterno!
— O teu gládio superno
De bonança a irradir,
Veio ao povo esmagado
Ao tredo peso do fado
Fazer do caos ressurgir!
Hoje, o íris brilhante
Lá nos céus, radiante,
Já se faz divulgar!
E todo o povo prostrado
Te agradece arroubado
Mas ainda a chorar!

E corações caridosos
Farão a dar pressurosos
Os seus globos gentis!
Dai! é doce a esmola!
Ela aos pobres consola,
Torna-os ledos, gazis!
A miséria chorava
Em delírio bradava
Por um pouco de pão!
E eles foram dizendo
— Ide, pois vos mantendo,
Aqui tendes a mão!

E vós — lá no tablado,
O mor rasgo, elevado,
De fazer acabais!
É um rasgo de glória
De brilhante memória
Pros vindouros anais!
Vós fazeis do cenário
Um dinal santuário
Trabalhando p’ra pobres!
Mostrais bem que nas almas
Possuís celsas palmas
De ações muito nobres!
P’ra louvar amadores,
Tantas lutas, labores,
Tanta excelsa virtude!
Ah! me falta uma lira
Que um poema desfira…

Ai! me falta alaúde!
Só Deus pode dar louros
De mil glórias, tesouros,
Como vós mereceis!
Pois que feitos tão divos,
Tão imensos, altivos
Só d’heróis ou de reis!
Amadores briosos!
Vós sois tão valorosos
Qual os bravos na guerra!
Sois os nautas valentes
Socorrendo ridentes
Quem cá gema na terra!
Amor, Deus, Caridade
— É a sublime trindade
Radiante de Luz!
Donde vós, amadores,
Lá colheis os fulgores,
De mil graças a flux!
(Desterro, 14 nov. 1880)
A IMPRENSA

A Imprensa é brilhante como
o meteoro, sublime como os
arrebóis do cerúleo infinito!
Do Autor
A lâmpada gigantesca
Das glórias do porvir,
Turíbulo majestoso
No mundo a irradir,
É a imprensa tesouro
E c’roa de verde louro
À fronte do escritor!
É centelha sublimada
Que vem do céu arrojada
À treva dando fulgor!
— O homem nasceu pequeno
Mas com as letras cresceu
Foi como o vulto de Rodes
Que lá tão alto s’ergueu!
Foi preciso — estudando
Co’a própria idéia lutando
Mergulhar-se na luz!
Foi preciso ter glória,
Brilhante, leda memória,
Colher renomes a flux!
Foi preciso mil lutas
Mil labores insanos
P’ra descobrir nesses mundos
Da diva luz os arcanos!
Foi preciso que um bravo
Não mostrando-se ignavo
Mas inspirado por Deus!
A pedra bruta talhasse
E a luz então derramasse
Qual seiva santa dos Céus!
Foi preciso os séculos
Ainda um pouco nas trevas
Erguessem as frontes bem alto
E devastassem mil selvas!
Foi preciso que o mundo
Sentisse abalo profundo
Ao desvendar- se o saber!
Foi preciso que os entes
Ou se erguessem potentes
Ou tombassem a morrer!
Mas não! — o homem ergueu-se,
Quase, quase com Deus
Tirou a fronte da treva
E só pregou-a nos Céus!
Viu o futuro de louros
E quis colher os tesouros
Que dão renome sem fim!
Sonhou, sonhou co’a vitória
E o gládio teve da glória
Qual o grão Bernardim!
O homem, gênio sublime,
Caminha, com seu bordão
Até achar o brilhante
A luz, a luz da razão!
Tropeça um pouco, se tomba
Ergue-se, voa qual pomba
E indo a luz descobrir,
Busca ouvir no infinito
Do eco ao longe este grito:
Trabalha para o porvir!
Quando os povos modernos,
Sentirem no coração
Uma ardente centelha
Que caia lá d’amplidão!
Deixarão esses vícios,
Insanos, negros, fictícios
Que dão só noite ao viver!
E irão curvados a ela
Depor-lhe verde capela
Farão então por crescer!
Camões, Milton, Abreu,
Já da vida sem lampas,
Erguei-vos crânios altivos
Espedaçai essas campas!
Dizei — se o homem caminha
Se na treva definha
A quem se deve louvar?!…

S’as letras seguem ovantes
Dizei ó nobres gigantes
A quem se ergue alcaçar?!!…

E Guttemberg esse herói,
Essa vergôntea dinal,
Que co’escopro na destra!
Foi das letras fanal!
Ao descobrir a imprensa
Essa epopéia imensa
Para toda a nação,
Com glória ingente sonhava
Na luz por certo nadava
Já tinha os louros na mão!
(Desterro, 21 nov. 1880)
VERSOS

Admirai Carrara, Canova, Rafael,
Murillo, Mozart e Verdi e tereis
as sublimes, mais que sublimes,
as divinas encarnações da arte!
Do Autor
Bravo, prole bendita
Pois à glória infinita
O lutar vos conduz!
É assim — trabalhando
Sempre e sempre estudando
Que se alcança mais luz!
Contemplai estas flores
Estes tantos lavores
Contemplai o painel!
Repetindo orgulhosos
Estes feitos briosos
São dum belo pincel!
Eia, jovens, avante!
Ser artista é brilhante,
Trabalhar é uma lei!
Não são só os c’roados
Que merecem em brados
Ter as honras de rei!
O artista qu’é pobre
É tão rico, é tão nobre
Qual potente césar!
E a glória bem cedo
Lhe murmura o segredo
— És artista — és sem par!
Não temais os pampeiros
Sois gentis brasileiros
Deveis pois progredir!
Quem vos traça na história
Vossa augusta memória
É um deus — o Porvir!
Levantai-vos potentes
Altanados, ingentes
E fazei-vos Criseus!
Só quem pode vergar-vos
E pensar obumbrar-vos
Mais ninguém — é só Deus!
Não fiqueis ignavos
Que o futuro dá bravos
Vos dizendo — estudai!
Sois humanos — portanto
Se há de trevas um manto
Apressai-vos, rasgai!
Nossa pátria querida
Necessita mais vida,
Necessita crescer!
É preciso contudo
Que tenhais como escudo
Quem vos mostra o saber!
E de obreiros altivos,
Que sereis redivivos
Que sereis imortais,
Achareis vossos nomes
Vossos grandes renomes
Nas mansões divinais!
Perdoai-me estas flores
Que tão murchas, sem cores
Nada podem valer!
São ofertas sinceras
Arrancadas deveras
Para vir vos trazer!
Palinuros — à frente
Esse trilho é ridente
Dás-vos honra, louvor!
Quem o braço vos guia
Nunca, nunca entibia —
— É artista… e pintor!
É a vós a quem falo
E se hoje eu não calo
Estas vãs expressões!
É que a louca alegria
Em minh’alma irradia
Com fulgentes clarões!
O trabalho enobrece
Glorifica, engrandece
Aos artistas quais vós!
Que zombando da sorte
Têm a tela por norte
Os pincéis por faróis!
Eia! nessa carreira

Qual a nau sobranceira
Indo o mar a fender!

Quando há negros abrolhos,
Mil cachopos, escolhos
É mais belo o vencer!
Se o lutar é dos grandes
Que são gêmeos dos Andes
Que não sabem tombar!
Colhereis uma glória
Mais suprema memória,
Trabalhando, a lutar!

Deus, o Deus sublimado
Disse ao homem num brado,
Da sidérea mansão!
— Vai depressa arrimar-te
Aos arcanos da arte,
Que terás um bordão!

Onde há braços d’artista
É seu ponto de vista
Decepar escarcéus!
E seu gládio seguro
Vai cavar o futuro
Vai rasgar negros véus!
E lá quando os vindouros
Vos c’roarem de louros
Vos erguerem dossel!
Bradarão altaneiros:
— Exultai brasileiros,
Ressurgiu Rafael!
Não temais os insanos,
Insensatos humanos
Bajulantes e maus!
Trabalhai muito embora!
Há de vir uma aurora
P’ra arrancá-los do caos!

Away, estudantes
Sois vergônteas pujantes
A lauréis tendes jus!
Caminhai com coragem,
Qu’esta é a romagem
Dos apóstolos da luz!!!…
AO DECÊNIO DE CASTRO ALVES

Quem sempre vence é o porvir!
No espadanar das espumas
Que vão à praia saltar!
Nos ecos das tempestades
Da bela aurora ao raiar,
Um brado enorme, profundo,
Que faz tremer todo o mundo
Se deixa logo sentir!
É como o brado solene,
Ingente, celso, perene,
É como o brado: — Porvir!
Pergunta a onda: — Quem é?…

Responde o brado: — Sou eu!
Eu sou a Fama, que venho
C’roar o vate, o Criseu!
Dormi, meu Deus, por dez anos
E da natura os arcanos
Não posso todos saber!
Mas como ouvisse louvores
De glória, gritos, clamores,
Também vim louros trazer.

Fatalidade! — Desgraça!
Fatalidade, meu Deus!
Passou-se um gênio tão cedo,
Sumiu-se um astro nos céus!
As catadupas d’idéias,
De pensamento epopéias
Rolaram todas no chão!
Saindo a alma pra glória
Bradou pra pátria — vitória!
Já sou de vultos irmão!
Foi Deus que disse: — Poeta,
Vem decantar a meus pés.

Na eternidade há mais luz,
Dão mais valor ao que és.

Se lá na terra tens louros,
Receberás cá tesouros
De muitas glórias até!
Terás a lira adorada
C’o divo plectro afinado
De Dante, Tasso e Garret!
Então na terra sentiu-se
Um grande acorde final!
O belo vate brasílio
Pendeu a fronte imortal!
O negro espaço rasgou-se
E aquele gênio internou-se
Na sempiterna mansão.

A sua fronte brilhava
E o áureo livro apertava
Sereno e ledo na mão…

E o mundo então sobre os eixos
Ouviu-se logo rodar!
É que ele mesmo estremece
A ver um vulto tombar.

É que na queda dos entes
Que são na vida potentes,
Que têm nas veias ardor,
Há cataclismos medonhos
Que só sentimos em sonhos
Mas que nos causam terror!…

E o coração s’estortega
E s’entibia a razão!
No peito o sangue enregela
E logo a história diz: — Não!
Não chore a pátria esse filho,
Se procurou outro trilho
Também mais glórias me deu!
E quando os séculos passarem
Se hão de tristes curvarem
Enquanto alegre só eu?…

Oh! Basta! Basta! Silêncio!
Repousa, vate, nos Céus!
Que muito além dos espaços
Os cantos subam dos teus!
Se nesta vida d’enganos
Não são bastante os humanos
Pra te render ovações!
Perdoa os fracos, ó gênio,
Que pra cantar teu decênio
Somente Elmano ou Camões!

ENTRE LUZ E SOMBRA
Ao dia 7 de Setembro
Libertas Lux Dei!!…

Surge enfim o grande astro
Que se chama Liberdade!…

Dos sec’los na imensidade
Eterno perdurará!…

Como as dúlias matutinas
Que reboam nas colinas,
Nas selvas esmeraldinas
Em honra ao celso Tupá!…

Eram só cinéreas nuvens
Os brasílios horizontes!
Curvadas todas as frontes
Caminhavam no descrer! —
As brisas nem murmuravam…

Os bosques nem soluçavam…

Os peitos nem se arroubavam…

— Estava tudo a morrer!…

De repente, o sol formoso
Vai as nuvens esgarçando.

As almas vão palpitando,
Cintilam magos clarões!…

E o Índio fraco, indolente
Fazendo esforço potente
Dos pulsos quebra a corrente,
Biparte os acres grilhões!…

Por terra tomba gemendo
O vão, atroz servilismo…

Rui a dobrez no abismo…

Eis a verdade de pé!…

Enfim!… exclama o silvedo
Enfim!… lá diz quase a medo
Selvagem, nu Aimoré!…

Assim, brasília coorte,
Falange excelsa de obreiros,
Soberbos, almos luzeiros
De nossa gleba gentil,
Quebrai os elos d’escravos
Que vivem tristes, ignavos,
Formando delas uns bravos
— P’ra glória mais do Brasil!…

Lançai a luz nesses crânios
Que vão nas trevas tombando
E ide assim preparando
Uns homens mais p’ro porvir!
Fazei dos pobres aflitos
Sem crenças, lares, proscritos,
Uns entes puros, benditos
Que saibam ver e sentir!…

Do carro azul do progresso
Fazei girar essa mola!
Prendei-os sim, — mas à escola
Matai-os sim, — mas na luz!
E então tereis trabalhado
O negro abismo sondado
E em nossos ombros levado
Ao seu destino essa cruz!!…

Fazei do gládio alavanca
E tudo ireis derribando;
Dormi, co’a pátria sonhando
E tudo a flux se erguerá!
E a funda treva cobarde
Sentindo homérico alarde,
Embora mesmo que tarde
Curvada assim fugirá!…

Enfim!… os vales soluçam
Enfim!… os mares rebramam
Enfim!… os prados exclamam
Já somos livre nação!!…

Quebrou-se a estátua de gesso…

Enfim!… — mas não… estremeço,
Vacilo… caio, emudeço…

Enfim de tudo inda não!!…
SETE DE SETEMBRO

Liberdade! Independência!…

Eis os brados grandiosos
Que quais raios luminosos
Fulguraram lá nos céus!…

Eis a mágica — Odisséia
Que duns lábios rebentando,
Foi o povo transformando,
Foi rompendo os negros véus!…

As colinas, prados, montes,
As florestas seculares
— Os sertões, os próprios mares
Exultaram com fervor!
E os brados retumbaram
Pela lúcida devesa,
Pela virgem natureza
Com homérico clangor!…

Qual artista consumado,
Qual um velho estatuário
Do Brasil no azul sacrário,
Essa data vos traçou,
— O triunfo mais pujante,
A eleita das idéias,
A maior das epopéias
— Q’inda igual não se gerou!…

Mas embora, meus senhores
Se festeje a Liberdade,
A gentil Fraternidade
Não raiou de todo, não!…

E a pátria dos Andradas
Dos — Abreu, Gonçalves Dias
Inda vê nuvens sombrias,
Vê no céu fatal bulcão!…

Muito embora Rio Branco,
Esse cérebro profundo
Que passou por entre o mundo,
Do Brasil como um Tupá!…

Muito embora em catadupas
Derramasse o verbo augusto,
Da nação no enorme busto
Inda a mancha existe, há!…

É preciso com esforço,
Colossal, estranho, ingente,
Ir o cancro, de repente
Esmagar que nos corrói!…

É preciso que essa Deusa,
A excelsa Liberdade,
Raie enfim na Imensidade
Mais altiva como sói!…

Sai da larva a borboleta
Com as asas auriazuis
E um disco vai — de luz
A deixar onde passou!
No entanto o grande berço
Das façanhas de Cabrito
Inda espera um novo grito
Como o — Basta — de Waterloo!…

Eu bem sei que Guttemberg
Que esse Fulton primoroso
Faust, Kepler grandioso
Trabalharam té vencer!
Mas embora tropeçassem
Acurando os seus eventos,
Tinham sempre tais portentos
A vontade por poder!…

Eia! sim! — p’ra Liberdade
Irrompei qual verbo eterno,
Como o — Fiat — superno
Pelos ares a rolar!
Eia! sim! — que nossa pátria
Só precisa — mas de bravos…

E em prol desses escravos
Seu dever é trabalhar!!…

Somos filhos dessa gleba
Majestosa aonde o gênio
Como o astro do proscênio
Solta as asas, mui febril!
Dos selvagens Tiaraiús
E dos brônzeos Guaicurus…

Somos filhos do Brasil!…

Esperemos, tudo embora!…

Pois que a sã locomotiva,
Do progresso imagem viva
Não se fez a um sopro vão!.

Aguardemos o momento
Das mais altas epopéias,
Quando o gládio das idéias
Empunhar toda a nação!…

Esperemos mais um pouco
Q’inda há almas brasileiras
Que se lembrarão, sobranceiras,
Que é preciso progredir!…

Inda há peitos valerosos
Que combatem descobertos
Por florestas, por desertos,
Mas c’os olhos no porvir!…

Inda há lúcidas falanges
Lutadores denodados
Que se erguem transportados
Burilando a sã razão!…

Inda há quem se recorde
Do Egrégio Tiradentes
Que do sangue as gotas quentes
Derramou pela nação!!…

Já nas margens do Ipiranga
Patrióticos acentos
Vão alados como os ventos
Pelos páramos azuis!!…

Vamos! Vamos! — eia! exulta,
Jovem pátria dos renomes…

— Vibra a lira, Carlos Gomes!
Bocaiúva, espalha luz!!…
TRÊS PENSAMENTOS

Nasceste no Brasil — filha d’América,
Tu sabes conservar nas débeis veias
No lúcido pulmão
O sangue efervescente e purpurino
A força de subir ao céu da história.

Às lutas da razão!…

Nasceste no Brasil — em meio às plagas
Da grande natureza mais pujante
E cheia de arrebol!…

E sabes obumbrar os astros fulvos
E lanças raios mil por toda a parte,
Soberba como o sol!…

Nasceste no Brasil e o eco ovante
Das glórias sublimadas que tu colhes
Por este céu azul,
Vem férvido, viril e acentuado
Assaz repercutir com mais verdade
Aqui… aqui no sul!…
SEMPRE

Se é certo que o amor é um bem profundo
Se é certo que o amor é um sol ardente,
Eu hei de amar-te sempre neste mundo
E sempre, sempre, sempre — eternamente.
BEIJOS

Nesta Tebaida infinita
Da vida, na sombra oculto,
Eu gosto de olhar o vulto
De uma criança bonita.

Porque afinal as crianças,
Como eu deslumbro-me ao vê-las,
Cintilam como as estrelas,
Florescem como esperanças.

Dentro de mim se projeta
A luz cambiante dos prismas
E batem asas as cismas
Qual passarada irrequieta.

E batem asas e ruflam,
Pelas artísticas plagas,
As auras que as grandes vagas
Dos fundos mares insuflam.

E digo, ó mães, se uma aurora
Fosse a minh’alma sincera,
Os clarões todos eu dera
A uma criança que chora.

Porque se a luz fortalece
Arbustos e as andorinhas,
Também por certo às criancinhas
Conforta, avigora, aquece.

E eu que aplaudo e que rimo
Tudo isso que à luz se regre,
Na vibração mais alegre
As criancinhas estimo.

Portanto, assim, sem refolhos
Beijando a Olga, beijando
Meus sonhos vão, irradiando,
Se derramar em seus olhos!
SER PÁSSARO

Ah! Ser pássaro! ter toda a amplidão dos ares
Para as asas abrir, ruflantes e nervosas,
Dos parques através e dos moitais de rosas,
Nos floridos jardins, nas hortas e pomares.

Ser pássaro, cantar, subir, voar na altura,
Pelos bosques sem fim, perder-se nas florestas,
Das folhagens do campo em meio da espessura,
Das auroras de abril nas cristalinas festas.

Tecer no tronco seco ou no tronco viçoso
O quente lar do amor, o carinhoso ninho,
De onde sairá mais tarde o pipilar mavioso
De um outro mais gentil e meigo passarinho.

Não temer o verão e não temer o inverno
Para tudo alcançar na leve subsistência,
No contínuo lidar, no labutar eterno,
Que é talvez da alegria a mais feliz essência.

Viver, enfim, de luz e aromas delicados,
Nascido dentre a luz, gerado dentre aromas,
Sonorizando o azul, sonorizando os prados
E dormindo da flor sob as cheirosas comas.

Voar, voar, voar, voar eternamente,
Extinguir-se a voar, no matinal gorjeio,
É ser pássaro, é ter em cada asa fremente
Um sol para aquecer o frio de algum seio.
SAUDAÇÃO

Ao Liceu de Artes e Ofícios
Como esta luz é serena,
Como esta luz é sincera;
Como eu vejo a primavera
Num lápis e numa pena.

Que prismas de luz ardente,
Que prismas de luz suave;
Como eu sinto um canto de ave
Em cada boca inocente.

Sim! Que o estudo é como a aurora
Que nos entra pela casa,
Num vivo fulgor de brasa,
Vibrante, alegre, sonora.

Ele rasga a treva espessa,
Num só momento — cantando;
Vai estrelas semeando
Em cada tenra cabeça.

Tira os crânios do letargo
Da ignorância — pois entra
Como um sol e se concentra
Num esplendor muito largo.

Quem, ó Arte imaculada,
Medisse o ser da criança,
Pela alma de uma esperança
Pela alma de uma alvorada.

Quem aos páramos subindo,
Eternamente pudesse,
Dos astros a loura messe
Arrancar — depois abrindo
Os peitos das criancinhas
Jogá-los dentro e beijá-las
Cheias de pompa e das galas
Que a luz concede às rainhas!…

Pois que a treva entre fulgores,
É como, dentre ataúdes,
Rebentar como virtudes,
As mais simpáticas flores.

Ah! Ninguém sabe, por certo,
Quanto é bom, quanto é saudável,
Sentir a crença adorável
Como um clarão sempre aberto.

Ver os germens do futuro
No campo eterno da escola,
Brilhando como a corola
De um lírio cândido e puro.

Ver morrer — como uns invernos
Da vida, os velhos colossos
E ver erguerem-se os moços
Como verões sempiternos.

Mães, ó mães tão extremosas,
Dos vossos ventres fecundos
Saem todos esses mundos
Das idéias fulgurosas.

Tudo isso quanto há escrito
De pensamento e crenças
Saiu das fontes imensas
De um grande amor infinito.

E desde a escrita à leitura
E desde um livro a uma carta,
A bondade sempre farta
Das mães — esplende e fulgura.

Bom dia ao mestre que é guia
Das belas crianças louras!
Bom dia às mães porvindouras,
À mocidade — Bom dia!
GUSLA DA SAUDADE

A Santos Lostada pela morte do seu velho pai
Nunca mais, nunca mais esses teus olhos
Palpitarão nos olhos seus honestos
Nem hão de vê-lo em ânsias por escolhos.

Ele morreu, morreu — e os mais funestos
Lutos da dor feriram como abrolhos
Teu lar e os teus — serenos e modestos.

Que incalculável explosão de prantos
Não inundou as almas preciosas
Dos teus irmãos, da tua mãe — uns santos
Que peregrinam nestas lacrimosas
Sendas da vida, em mágoas, sem encantos
Como sem luz e sem orvalho as rosas.

Ah! formidável lei cruel da vida,
Lei da matéria, da mudez das lousas,
Da eterna noite atroz, indefinida;
Tens o segredo intérmino das cousas,
E nessa dura e tenebrosa lida,
Oh! nem sequer um dia só repousas.

Quem sabe, ó morte, ó lúgubre, quem sabe
O teu poder fatal, desapiedado
Onde se oculta e se resume e cabe.

Pois nem que o céu puríssimo, azulado
Cair aos pedaços, tombe e se desabe
Na profundez do abismo ilimitado
E a crença humana espavorida, em gritos,
Palpando o nada, esquálida, gemendo,
Rasgue a amplidão de estranhos infinitos,
Nunca da morte saberão o horrendo
Mistério rijo e surdo dos granitos
Os corações que vivem combatendo?!…

Não! A Ciência penetrou, o estudo
Do pensador, abriu mais horizontes
Nesse problema silencioso e mudo.

O pensamento constelou as frontes,
Deu à razão o mais brunido escudo
E construiu as luminosas pontes
De onde se vai, com grande olhar, seguro,
Atravessar as regiões sonoras
Dos Ideais que irrompem do Futuro;
E sem contar dos séculos as horas,
E sem temer as mil visões do Escuro,
Alegremente ao fresco das auroras.

Mas entretanto, ó meu amigo, escuta,
Toda a saudade, a grande nostalgia
Nos deixa frios, mortos para a luta.

Porque, olha, a morte é sempre uma agonia!
SMORZANDO

O véu da tarde cai pelas quebradas
Das serras altaneiras;
As aves condoreiras
Rompem da mata em místicas risadas
O largo espaço intérmino cindindo.

A livre natureza,
Humildemente, pura, vai caindo,
Caindo de joelhos
Como esse denso véu
Cai na viril e rútila grandeza
Do sol que desce em borbotões vermelhos
Como uma mancha tropical no céu.

E vibra a Ave-Maria
Como um soluço, estranho, indefinido;
Talvez como um gemido
Dentre a escalvada e agreste serrania.

E desce e desce e desce
De toda a imensidade
A salutar carícia de uma prece,
O eflúvio da saudade
Que alaga o nosso peito heroicamente
Como o luar de um treno
Mavioso e emoliente,
Mais doce que o sorrir do Nazareno.
VERSOS À INFÂNCIA

Nos roseirais, ao vir da madrugada,
Desabrocham no val todas as rosas,
Nos galhos cheios de uma luz doirada,
Meigas e frescas, rubras, perfumosas,
Nos roseirais, ao vir da madrugada.

Como em bocas cheirosas e vermelhas
Pousam beijos de amor e de ventura,
O mel lhe sugam todas as abelhas
Pousando em cima da corola pura
Como em bocas cheirosas e vermelhas.

Desde os campos, o bosque, até aos montes
Tudo renasce num jardim de flores;
E pelo azul do céu, nos horizontes,
Há os mais vivos, raros esplendores,
Desde os campos, o bosque, até aos montes.

Pelos ninhos sonoros, delicados,
Cantam e trinam muitos passarinhos
Nos altos arvoredos enflorados,
À margem verdejante dos caminhos,
Pelos ninhos sonoros, delicados.

As borboletas brancas e amarelas,
Azuis, cor de ouro, cor de prata e brasa,
Leves, ligeiras, tênues e singelas,
Abrem a fina talagarça da asa,
As borboletas brancas e amarelas.

Tudo no val acorda de desejos
À musica dos cantos mais risonhos;
E as aves soltas, peregrinos beijos,
Dizem, cantando, que através de sonhos
Tudo no val acorda de desejos.
II

Na alma da infância, tal e qual roseiras,
Abrem festões de límpida fragrância
Os sonhos e as quimeras passageiras
Que são mais próprias do vergel da infância,
Na alma da infância, tal e qual roseiras.

O pequenino coração ditoso
Canta canções de uma ave pequenina;
E é um encanto ver assim radioso
No peito de uma cândida menina
O pequenino coração ditoso.

A existência de sol das criancinhas
Lembra um pomar de frutas bem serenas,
Por onde os colibris e as andorinhas
Gozam amores sacudindo as penas,
A existência de sol das criancinhas.

Não sei dizer se adore mais crianças
Ou mais também as flores de um arbusto;
Nessas tão puras, castas semelhanças
Eu, para ser bem carinhoso e justo,
Não sei dizer se adore mais crianças.
(Desterro)
TRISTE

Em junho, que é mês do frio,
Perdes todo o colorido,
Tens um tom vago e sombrio
De dor, de mágoa e gemido.

Não sei que tristeza é essa
De tão doloroso cunho
Que perdes a cor depressa
Assim que vem vindo junho.

Ficas branca e desmaiada,
Lembrando a lua serena,
Fraca, pálida e gelada,
Como frágil açucena.

Vão-se-te as rosas da face
Emurchecendo e sumindo
Num crepúsculo vivace
De tudo o que estás sentindo.

Ai! no entanto pelos prados
Onde os dias resplandecem
Risonhas como noivados
Em junho as rosas florescem…
(Desterro)
FONTE DE AMOR

Trago-a à tua presença
Para que vejas a imensa
Mágoa atroz que a devorou.

E saibas, ó flor das flores,
Que a fonte dos seus amores
Eternamente secou.

Foste à fonte buscar água
E tinha secado a fonte.

Aí, flor azul do monte,
Tiveste a primeira mágoa.

Porém se uma alma na frágua
Das dores sem horizonte
Queres ver, sentir defronte
Dos olhos, manda que eu trago-a.
CASTELÃ

Bela e mais encantadora
Do que todas as belezas,
Graça leve de pastora
Que canta pelas devesas.

Enleios de passarinho
E brilhos de primavera,
Com magnetismos de vinho
No olhar azul de quimera.

Feita de um jorro sadio
De auroras purpureadas
Carne mais fresca que um rio
De frescas águas prateadas.

Tudo é frio e tudo é raso
Para dizer-te a capricho
Que és magnólia para um vaso,
Que és arcanjo para um nicho.

És um mito da Alemanha
Vivendo em montanha alpestre,
No castelo da montanha,
Como ardente flor silvestre.

E tens as pomas à farta
Polposas, cheias de aromas.

És assim a loura Marta
Com abundância de pomas.

Esse príncipe que te ama,
Cismando, trágico e grave,
Quando o luar se derrama
Cuida ouvir-te os vôos de ave.

Ele vive, airoso e belo,
Como se vive num sonho,
No seu nevoento castelo
Junto de um lago tristonho.

E através do pó flutuante
Do luar saudoso e vago
Julga que és a garça errante
Das águas verdes do lago.
O SOL E O CORAÇÃO

Sol, coração do Espaço que flamejas,
O coração é qual tu, sol de utopias…

Mas, coração, dize-me: — Que desejas?…

Foram-se já todas as alegrias,
Ó Sol! E tu, coração, que ainda adejas,
Que fazes sobre as mortas fantasias?!…

Podes brilhar, ó Sol, vivo e fulgente!
E tu, coração, que me iludiste,
Também podes bater, inutilmente.

Crença, Ilusão, Amor, já nada existe,
Não mais levarás sobre a corrente
Da tenebrosa dúvida mais triste.

Longe, mui longe, em regiões caladas,
Emudecidos pelo Esquecimento,
Estão hoje esses sonhos de alvoradas.

Foram-se, há muito, soltos pelo vento
Entre as grandes ruínas derrocadas
Do meu amargo e pobre pensamento,
Entre as profundas, tétricas ruínas
Em que o doce fantasma desses sonhos
Atravessou em lágrimas divinas.

Fantasma ideal, de cânticos risonhos
Que da vida encontrei pelas colinas
E hoje vaga entre bulcões medonhos!
Fantasma que eu amei, visão errante
Que sempre junto a mim vivia perto,
Por mais longe que eu fosse e mais distante.

Visão que era como a água do deserto
Para o meu coração sempre anelante,
Sequioso de amor e sempre aberto…

Ó pobre coração, em vão te agitas,
Em vão tu bates, coração estreito,
Tal qual tu, Sol, nos páramos crepitas.

Nada mais, para mim, de satisfeito
Brilha com o Sol nas plagas infinitas,
Como não canta o coração no peito…

Podes, enfim, sumir-te nos Espaços
Sol! E tu, coração, sempre batendo,
Quebrar da terra os “Transitórios Laços”
Eternamente desaparecendo!…
CAMBIANTES
SONETOS E OUTROS VERSOs
RISADAS
Às criaturas alegres

Fantasia, ó fantasia, tropo ardente
Da aurora alegre undiflavando as bandas
Do adamascado e rúbido oriente,
Ó fantasia, águia das asas pandas.

Tu que os clarins do sonho mais fulgente
Das Julietas, feres, nas varandas,
Ó fantasia dos Romeus, ó crente,
Por que países meridionais tu andas?!
Vem das esferas, entre os sons que vibras.

Vem, que desejo emocionar as fibras,
Quero sentir como este sangue impulsas.

Noiva do sol que os sóis preclaros gozas
Para rimar umas canções de rosas,
Como risadas de cristal, avulsas…
AVE! MARIA…

Ave! Maria das Estrelas, Ave!
Cheia de graça do luar, Maria!
Harmonia de cântico suave,
Das harpas celestiais branda harmonia…

Nuvem d’incensos através da nave
Quando o templo de pompas irradia
E em prantos o órgão vai plangendo grave
A profunda e gemente litania…

Seja bendito o fruto do teu ventre,
Jesus, mais belo dentre os astros e entre
As mulheres judaicas mais amado…

Ó Luz! Eucaristia da beleza,
Chama sagrada no Evangelho acesa,
Maravilha do Amor e do Pecado!
RIR!

Rir! Não parece ao século presente
Que o rir traduza, sempre, uma alegria…

Rir! Mas não rir como essa pobre gente
Que ri sem arte e sem filosofia.

Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente,
Com que André Gil eternamente ria.

Rir! Mas com o rir demolidor e quente
Duma profunda e trágica ironia.

Antes chorar! Mais fácil nos parece.

Porque o chorar nos ilumina e nos aquece
Nesta noite gelada do existir.

Antes chorar que rir de modo triste…

Pois que o difícil do rir bem consiste
Só em saber como Henri Heine rir!…
ASPIRAÇÃO

Quisera ser a serpe astuciosa
Que te dá medo e faz-te pesadelos
Para esconder-me, ó flor luxuriosa,
Na floresta ideal dos teus cabelos.

Quisera ser a serpe venenosa
Para enroscar-me em múltiplos novelos,
Para saltar-te aos seios cor-de-rosa.

E bajulá-los e depois mordê-los.

Talvez que o sangue impuro e rutilante
Do teu divino corpo de bacante,
Sangue febril como um licor do Reno
Completamente se purificasse
Pois que um veneno orgânico e vorace
Para ser morto é bom outro veneno.
SENSIBILIDADE

Como os audazes, ruivos argonautas,
Intrépidos, viris e corajosos
Que voltam dos orientes fantasiosos,
Dos países de Núbios e Aranautas.

Como esses bravos, que por naus incautas,
Regressam dos oceanos borrascosos,
Indo encontrar nos lares harmoniosos
De luz, vinho e alegria as mesas lautas.

Tal o meu coração, quando aparece
A tua imagem, canta e resplandece,
Sem lutas, sem paixões, livre de abrolhos.

A meu pesar, louco de ver-te, louco,
As lágrimas me correm pouco a pouco,
Como o champanhe virginal dos olhos…
GLÓRIAS ANTIGAS

Rubras como gauleses arruivados,
Voltam da guerra as hostes triunfantes,
Trazem nas lanças d’aço lampejantes,
Os louros das batalhas pendurados.

Os escudos e arneses dos soldados
Rutilam como lascas de diamantes
E na armadura os músculos vibrantes,
Rijos, palpitam, batem nervurados.

Dentre estandartes, flâmulas de cores,
Trazem dos olhos rufos de tambores,
Ruídos de alegria estranha e louca.

Chegam por fim, à pátria vitoriosa…

E então, da ardente glória belicosa,
Há um grito vermelho em cada boca!
MAGNÓLIA DOS TRÓPICOS
A Araújo Figueredo

Com as rosas e o luar, os sonhos e as neblinas,
Ó magnólia de luz, cotovia dos mares,
Formaram-te talvez os brancos nenúfares
Da tua carne ideal, de correções felinas.

O teu colo pagão de virgens curvas finas
É o mais imaculado e flóreo dos altares,
Donde eu vejo elevar-se eternamente aos ares
Viáticos de amor e preces diamantinas.

Abre, pois, para mim os teus braços de seda
E do verso através a límpida alameda
Onde há frescura e sombra e sol e murmurejo;
Vem! com a asa de um beijo a boca palpitando,
No alvoroço febril de um pássaro cantando,
Vem dar-me a extrema-unção do teu amor num beijo.
SUPREMO ANSEIO

Esta profunda e intérmina esperança
Na qual eu tenho o espírito seguro,
A tão profunda imensidade avança
Como é profunda a idéia do futuro.

Abre-se em mim esse clarão, mais puro
Que o céu preclaro em matinal bonança;
Esse clarão, em que eu melhor fulguro,
Em que esta vida uma outra vida alcança.

Sim! Inda espero que no fim da estrada
Desta existência de ilusões cravada
Eu veja sempre refulgir bem perto
Esse clarão esplendoroso e louro
Do amor de mãe — que é como um fruto de ouro,
Da alma de um filho no eternal deserto.
NERAH

Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea
A Vítor Lobato

Nerah não brinca mais, não dança mais. — E agora
Que vão-se apropinquando os tempos invernosos,
Nerah traz uns receios tímidos, nervosos,
De quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.

Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos
Se vão embora, embora à vinda dos invernos,
Seguindo em debandada os úmidos galernos —
— Lembrando um roto bando informe de mendigos.

Não canta o sabiá que triste na gaiola,
Parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola
De um riso — aquela flor que esvai-se, branca e fria.

Em tudo a fina seta aguda de aflições!
Na própria atmosfera um caos de interjeições!
Em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.
AMOR

Nas largas mutações perpétuas do universo
O amor é sempre o vinho enérgico, irritante…

Um lago de luar nervoso e palpitante…

Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,
Nem mesmo as convenções as mais superiores;
E vamos pela vida assim como os noctâmbulos
À fresca exalação salúbrica das flores.

E somos uns completos, célebres artistas
Na obra racional do amor — na heroicidade,
Com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige
E amamos com vigor e com vitalidade,
A cor, os tons, a luz que a natureza exige!…

A poesia interminável 5

FILETES
A J. L.

De cravos, de rosas,
De lírios, perfumes,
De beijos, ciúmes,
De coisas formosas;
De cantos suaves
De músicas, vinhos
De aromas, arminhos
Dos trinos das aves;
Das cismas radiadas,
De esperanças aladas
Por vagos escombros,
São feitos, são feitos
Teus olhos perfeitos,
Repletos de assombros.
FILETES
I

Ó pérola nitente,
Ó pérola do amor,
Ó imã redolente
Das pétalas da flor;
Ó lágrima sutil,
Ó lágrima ideal,
Do côncavo de anil
Caída no cristal
Do lago transparente,
Harmoniosamente,
Aos flocos do luar…

Tu és como as essências,
Conheces as ciências
Ocultas… de matar!
II

Cintila a estrela-d’alva
Bem como o olhar do crente!
Perpassa no ambiente
O fresco olor da malva.

Um tic de lirismo,
Simpático e harmônico,
Derrama no sinfônico
Riacho — um misticismo.

Há músicas supremas,
Um mundo de problemas
Nos montes seculares.

E como um lírio roxo,
A alma em canto frouxo
Emigra para os ares.
(Desterro)
ARTE

Como eu vibro este verso, esgrimo e torço,
Tu, Artista sereno, esgrime e torce;
Emprega apenas um pequeno esforço

Mas sem que a Estrofe a pura idéia force.

Para que surja claramente o verso,
Livre organismo que palpita e vibra,
É mister um sistema altivo e terso
De nervos, sangue e músculos, e fibra.

Que o verso parta e gire — como a flecha
Que d’alto do ar, aves, além, derruba;
E como os leões, ruja feroz na brecha
Da Estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.

Para que tenhas toda a envergadura
De asa e o teu verso, de ampla cimitarra
Turca, apresente a lâmina segura,
Poeta, é mister, como os leões, ter garra.

Essa bravura atlética e leonina
Só podem ter artistas deslumbrados:
Que souberam sorver pela retina
A luz eterna dos glorificados.

Busca palavras límpidas e castas,
Novas e raras, de clarões radiosos,
Dentre as ondas mais pródigas, mais vastas
Dos sentimentos mais maravilhosos.

Busca também palavras velhas, busca,
Limpa-as, dá-lhes o brilho necessário
E então verás que cada qual corusca
Com dobrado fulgor extraordinário.

Que as frases velhas são como as espadas
Cheias de nódoa, de ferrugem, velhas
Mas que assim mesmo estando enferrujadas
Tu, grande Artista, as brunes e as espelhas.

Faz dos teus pensamentos argonautas
Rasgando as largas amplidões marinhas,
Soprando, à lua, peregrinas flautas,
Louros pagãos sob o dossel das vinhas.

Assim, pois, saberás tudo o que sabe
Quem anda por alturas mais serenas
E aprenderás então como é que cabe
A Natureza numa estrofe apenas.

Assim terás o culto pela Forma,
Culto que prende os belos gregos da Arte
E levará no teu ginete, a norma
Dessa transformação, por toda a parte.

Enche de estranhas vibrações sonoras
A tua Estrofe, majestosamente…

Põe nela todo o incêndio das auroras
Para torná-la emocional e ardente.

Derrama luz e cânticos e poemas
No verso e torna-o musical e doce
Como se o coração, nessas supremas
Estrofes, puro e diluído fosse.

Que as águias nobres do teu verve esvoacem
Alto, no Azul, por entre os sóis e as galas,
Cantem sonoras e cantando passem
Dos Anjos brancos através das alas…

E canta o amor, o sol, o mar e as rosas,
E da mulher a graça diamantina
E das altas colheitas luminosas
A lua, Juno branca e peregrine.

Vibra toda essa luz que do ar transborda
Toda essa luz nos versos vai vibrando
E na harpa do teu Sonho, corda a corda,
Deixa que as Ilusões passem cantando.

Na alma do artista, alma que trina e arrulha
Que adora e anseia, que deseja e que ama
Gera-se muita vez uma fagulha
Que se transforma numa grande chama.

Faz estrofes assim! E após na chama
Do amor, de fecundá-las e acendê-las,
Derrama em cima lágrimas, derrama,
Como as eflorescências das Estrelas…
ARTE
[variação]

Como eu vibro este verso, esgrimo e torço,
Tu, ó poeta moderno, esgrime e torce;
Emprega apenas um pequeno esforço
Mas sem que nada a pura idéia force.

Para que saia vigoroso o verso,
Como organismo que palpita e vibra,
É mister um sistema altivo e terso
De nervos, sangue e músculos e fibra.

Que o verso parta e gire como a flecha
Que do alto do ar, aves, além, derruba
E como um leão ruja feroz na brecha
Da estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.

Para que tenhas toda a envergadura
De asa, o teu verso, como a cimitarra
Turca apresente a lâmina segura,
Poeta, é mister como um leão, ter garra.

Essa bravura atlética e leonina
Só podem ter artistas deslumbrados
Que sorvem com lábios e retina
A luz do amor que os fez iluminados.

Nem é preciso, poeta, que te esbofes
Para ferir um verso que fuzile;
Põe a alma e muitas almas nas estrofes
E deixa, enfim, que o verso tamborile.

Busca palavras límpidas e novas,
Resplandecentes como sóis radiosos
E sentirás como te surgem trovas
Belas de madrigais deliciosos.

Busca também palavras velhas, busca,
Limpa-as, dá-lhes o brilho necessário
E então verás que cada qual corusca,
Com dobrado fulgor extraordinário.

Que as frases velhas são como as espadas
Cheias de nódoas de ferrugem, velhas,
Mas que assim mesmo estando enferrujadas
Tu, grande artista, as brunes e as espelhas.

Que toda a vida e sensação de estilo
Está na frase, quando se coloca,
Antiga ou nova, mas trazendo aquilo
Que soa como um tímpano que toca.

Como o escultor que apenas faz de um bloco
A estátua — com supremo e nobre afinco
Estuda a natureza num só foco:
A prata, o bronze, o cobre, o ferro, o zinco.

Estuda dos rubis, estuda do ouro
E dos corais, da pérola e safira,
Todo esse íris febril radiante e louro
Que é a centelha de sol em toda a lira.

Estuda todos os metais, estuda,
Desce à matéria prodigiosa e vasta,
Estuda nela a natureza muda,
Os veios de cristal da origem casta.

Estuda toda a intensa natureza
Feita de aromas, de canções e de asas
E sente a luz da cor e da beleza
Rir, flamejar e arder, iriar em brasas.

Faz dos teus pensamentos argonautas
Rasgando as largas amplidões marinhas,
Soprando, à lua, peregrinas flautas,
Como os pagãos sob o dossel das vinhas.

Assim, pois, saberás tudo o que sabe
Quem anda por alturas mais serenas
E aprenderás então como é que cabe
A natureza numa estrofe apenas.

Assim terás o culto pela forma,
Culto que prende os belos gregos da arte
E levarás no teu ginete, a norma
Dessa transformação por toda a parte.

Enche de alegres vibrações sonoras
A tua idéia pródiga e valente,
Põe nela todo o incêndio das auroras
Para torná-la emocional e ardente.

Derrama luz e cânticos e poemas
No verso e fá-lo musical e doce
Como se o coração, nessas supremas
Estrofes, puro e diluído fosse.

Que a abelha de ouro do teu verso esvoace,
Fulja como um fuzil numa borrasca;
Que o verso quando é bom por qualquer face
Lembra um fruto saudável desde a casca.

Com arte, forma, cor, tudo isso em jogo,
Engrinaldado e rútilo de crenças,
O sonho cresce — o pássaro de fogo
Que habita as altas regiões imensas.

E canta o amor, o sol, o mar e o vinho,
As esperanças e o luar e os beijos
E o corpo da mulher — esse carinho —
Canta melhor, vibra com mais desejo.

Canta-lhe a sinfonia dos olhares
A cálida magnólia austral das pomas,
E quando então tudo isso enfim cantares
Em tudo põe a fluidez de aromas.

Vibra toda essa luz que do ar transborda
Como todo o ar nos seres vai vibrando
E da harpa do teu sonho, corda a corda,
Deixa que as ilusões passem cantando.

Na alma do artista, alma que trina e arrulha,
Que adora e anseia, que deseja e ama,
Gera-se muita vez uma fagulha
Que explose e se abre numa grande chama.

Pois essa chama que a fagulha gera,
Que enche e que acende o espírito de força,
Sobe pela alma como primavera
De rosas sobe por coluna torsa.

Faz estrofes assim, de asas de rima,
Depois de fecundá-las e acendê-las
De amor, de luz — põe lágrimas em cima,
Como as eflorescências das estrelas.
O DUQUE

Quando o duque voltava da caçada
Alegre, num clarim d’aço vibrante
De alacridade moça e evigorada
Dum ruidoso e trêfego estudante.

Quando ele vinha com seu ar bizarro
De atravessar os vales e as colinas,
Sadio aspecto fresco como um jarro
Cheio de leite às horas matutinas.

Em toda a aristocrática varanda
Alta e vistosa, ampla, aberta em janelas,
Ele vibrava, de uma e outra banda,
Canções de amor, nostálgicas e belas.

Do salão nobre entre tapeçarias
De Gobelins, riquíssimas e raras,
Iam vibrando aladas harmonias
Da sua voz, esplêndidas e claras.

Todas as fluidas, leves, calmas, frescas
Manhãs azuis, serenas e formosas,
Loura mulher das regiões tudescas
O seu bom dia era mandar-lhe rosas.

Floria, é certo, em grande amor, floria
Gerado pelo eflúvio dessas flores,
Pois quando o duque não as recebia
Era o mais infeliz dos caçadores.

Tão doce amor lembrava aquelas lendas
Dos medievais castelos esquecidos,
Quando visões de nuvens e de rendas
Apareciam nos balcões floridos.

A caça, a caça, eternamente a caça!
Quanto melhor, mais fácil não lhe fora
A conquista das aves do que a graça
De conquistar essa beleza loura!
Para possuí-la como noiva amada,
Aceso há muito nas paixões insanas,
Arrostaria a caça mais ousada
Dos javalis nas selvas africanas.

E sempre as lindas rosas matutinas
Vinham-no perfumar todos os dias,
Quando saltava aos vales e às colinas,
Bizarro e são, dentre as tapeçarias.

Tempos passaram sobre tais amores!
Mas depois de casado fez surpresa
Saber que o duque, o rei dos caçadores,
Não tinha o mesmo amor pela duquesa.
A ESPADA
I

Cavalheiros, os tempos já passados,
De pajens, de canzéis, de fidalguia,
De castelos, de reinos brasonados.

Ar cortesão de graça e fantasia
Através dos olhares e dos beijos
— No silêncio de cada galeria…

Foi nesse bravo tempo dos lampejos
De espadas, de punhais e de couraças
Por combater frementes de desejos.

No tempo dos floreios e das caças
Dos assaltos alegres e bizarros
Como as sonoras vibrações das taças.

Em que as almas airosas como jarros,
Cheios de vinho espumejante e ardente
Eram de glória vencedores carros!
Foi no tempo fidalgo e refulgente,
Quando o heroísmo fantasioso amava
A linha e a chama de luzida gente,
Que esta cena galharda se passava,
Quando um donzel partia para guerra
Como a nobreza do solar mandava.

O pai, um tronco transudando a terra,
Forte e viril, presença de profeta
Que no seu flanco a valentia encerra.

Barbas serenas de bondoso asceta
Em cuja alvura doce e veneranda
Vê-se a vontade e a intrepidez completa.

Fronte banhada de meiguice branda
A que o dever e os ríspidos conselhos
Dão sempre a austeridade que age e manda.

Lembra um ocaso de clarões vermelhos,
Musgoso, triste, desolado muro,
Por onde o luar abre fulgor d’espelhos.

E esse semblante que parece duro,
Áspero e torvo, trouxe-o dos combates,
Do torvelinho do nevoeiro escuro.

Dos pelouros sangüíneos escarlates,
De fogo aberto em turbilhões, vorazes,
Dos impulsivos, bélicos rebates.

Mas, bem olhadas, as feições audazes
Desse velho patriarca destemido
Tinha a suavidade dos lilases.

Nos olhos, um passado consumido
Entre aventuras e colóquios belos
Como que faz um verdadeiro ruído…

Sente-se neles noites de castelos
Gozadas em amores dadivosos,
Em madrigais, em íntimos desvelos.

Cavalgadas, torneios donairosos,
Sonho feliz de rica mocidade,
Requintes ideais, cavalheirosos.

Tudo se sente na tranqüilidade
Desse deus varonil da força antiga
Feito com o rijo bloco da Verdade.

Tudo se sente nessa paz amiga
Que as crenças do passado às outras crenças
Vagas, futuras, para sempre liga.

Tudo se sente vir das névoas densas
E da ridente e cândida meiguice
Das suas barbas límpidas e imensas.

Sim! tudo da quase criancice
Que dão aos homens esses tons nevoentos
Da enregelada e trêmula velhice.

Porém, reatando aéreos pensamentos…

Comecemos na cena detalhada
Que já das eras se espalhou nos ventos.

É nada mais que a história duma espada,
História curta, mas interessante
Duma espelhante lâmina timbrada.

Não é pelo aço ou lâmina espelhante
Que irei contar, pois são comuns os aços,
Mas pelo nobre e original rompante.

Pelo ardimento que os primeiros braços
Que a manejaram com pujança e brio
Nela gravaram, com profundos traços.
II

O velho, em pé, atlético e sombrio
Diante do filho armado cavaleiro,
No aspecto dum leão ruivo e bravio.

Fala-lhe claro, d’alto e sobranceiro,
Numa solene e enérgica atitude
De quem nos prélios sempre foi primeiro.

O filho, grave o escuta e atende a rude
Lhanez estóica de palavra augusta
Que dos lábios lhe sai, com tal saúde.

Calmo, sem se mover, firme a robusta
Figura solarenga do estoicismo,
O velho disse esta nobreza justa:
“Aqui tens esta espada que o heroísmo
Dos teus avós honrou nessas campanhas,
Com o mais ousado, intrépido civismo.

Freme ainda hoje em convulsões estranhas,
Palpita e anseia dentro da bainha
Sonhando a luta, as implacáveis sanhas.

Tu, para a teres, como eu sempre a tinha,
Num triunfo imortal, quase divino,
De gládio que o valor maior continha;
É necessário um grande ardor leonino,
Que sejas bem idólatra do nome
Que fez de mim o extremo paladino.

A ferrugem, tu vês, o aço consome…

Porém, neste aço que ainda aqui fulgura,
Se houver ferrugem, tira-a com o renome.

Aqui tens, pois, a lâmina segura,
Alma e brasão da nossa velha casa
Coberta de ovações, famosa e pura”.

Calou-se um instante, como a ave que a asa
Fechou no voar, já quase que abatida,
Caindo exausta junto à moita rasa.

O filho, mudo e respeitoso, erguida
A valente cabeça leal de moço,
Formoso estava, porejando vida.

E enquanto o velho, impávido colosso,
Calara-se num momento, emocionado
Ficara o filho em íntimo alvoroço.

Mas de repente, como iluminado
Por um clarão de glórias já extintas,
Tornou o velho, aos poucos transformado:
“Podes partir! Porém nunca desmintas
Nas pelejas o dom da nossa fama,
Por menos força que no peito sintas.

Como um clarim, por toda a parte aclama
O vigor deste ferro e do teu pulso
No combate que ruja, ulule e brama.”
E cada vez mais pálido e convulso,
Mais nervoso e febril e mais altivo
Bradou ainda, num tremendo impulso:
“Se tu, que és da minh’alma o exemplo vivo,
Meu filho, tens de ser como um cobarde,
Como um vilão abjeto e repulsivo;
Não faças mais de fidalguia alarde,
Pega esta espada, meu Afonso, pega
E quebra-a de uma vez, que não é tarde.

Pois em lugar de fazer dela entrega
Aos sequiosos, feros inimigos
Antes a quebre a cólera mais cega.

Ei-la, aqui tens, a leoa dos perigos,
Que como outrora em minha mão lampeja
Da bravura e da fama nos abrigos.

Se não a tens de honrar nessa peleja
Escuta bem, ó meu amado filho,
Quebra-a, e o teu nome nem manchado seja.

Como eu faria noutra idade e brilho,
Com outras energias musculares,
Segue-me tu no denodado trilho.”
E assim falando, em gestos singulares,
E agigantado corpo retesando
E um tom sinistro esparso nos olhares;
A cabeça nos ares agitando
Numa alucinação, — enorme ereto,
Como heróica visão, deblaterando…

Fitando bem o filho predileto,
Como se de repente lhe brotasse
A força hercúlea dum poder secreto.

O velho, qual um templo que abalasse,
A mão crispada, lívida e nervosa,
Com todo o esforço a lhe afluir na face,
Partiu no joelho a espada vitoriosa.
DESMORONAMENTO

Dentro do coração, no côncavo do peito
Choro a grande ilusão do amor, desfalecida,
Dentre o gozo feliz, nostálgico da vida;
Já exangue, afinal, já morto, já desfeito.

Por visões que adorei num vago tempo incerto
Não sei por que razão avivo agora as mágoas,
Num pranto doloroso e triste, como as águas
Do mar grosso a bater sobre o costão deserto.

Tu, ó doce visão de perfumosas tranças,
Todo o meu puro e terno sentimento invades
E eu não sei o que fiz das minhas esperanças
Que de longe que vão parecem mais saudades.

Tudo o que houve em meu ser de compaixão e crença
Para sempre secou, secou já como um rio;
Para sempre também subi ao escombro frio
Da dúvida mortal, avassalante, imensa.

Para sempre me achei sem bússola e sem rumo
No fundo de regiões estranhas e afastadas…

As almas que eu amei, vi mudas e apagadas,
Vi tudo se sumir numa espiral de fumo.

Bem depressa fiquei como um ermo remoto
Como torvo areal sem plantas e sem fontes,
Donde apenas se vê rasgar a terra o broto
Do cardo retorcido e áspero dos montes.

Muitas vezes, porém, como entre os arvoredos
Onde juntas, no val, todas as aves cantam
No meio do rumor, de sombras e segredos,
Sinto dentro de mim que uns sonhos se levantam.

Borboleteio, a rir, por entre os sons e as flores,
Como um pássaro azul de uma plumagem linda
E canto alegremente a canção dos amores,
Que este peito viril sabe cantar ainda.

Lembro então corações que já me abandonaram,
Que eu senti palpitar, por sobre o meu pulsando,
Que vão hoje através das afeições chorando,
Que sofreram comigo e que comigo amaram.

Entretanto a minh’alma em vôo largo e ufano,
De repente triunfal, de súbito gloriosa,
Tem a pompa de sol, vermelha e luminosa,
Da púrpura esvoaçante e aberta de um romano.

E esse fulgor, que vem dos meus sonhos dispersos
Na névoa do passado, errantes e dolentes;
Dá-me ardidos corcéis fogosos e frementes
Para atrelar, jungir ao carro destes versos.

Claramente recordo e penso nas estradas
Que percorri, que andei às ilusões, sozinho,
Vendo que todo o amor das virginais amadas,
Tinha a mesma fatal embriaguez do vinho.

Quantos entes febris, que o amor embriaga e ofusca
Assim, durante a vida, ansiosamente exaustos,
Não encontram, talvez, dessas visões em busca,
As Margaridas vãs dos ilusórios Faustos!
CLARÕES APAGADOS

Flor de planta aromática, sinistra,
Nascida nas inóspitas geleiras,
Célebre flor que o meu Ideal registra,
Trepadeira das raras trepadeiras.

Serpe nervosa entre as nervosas serpes,
Carnívora bromélia da luxúria
De gozo tetaniza como as herpes
Da tua boca a polpa atra e purpúrea.

O teu amor, que lembra vinhos de Hebe
E essa áspera feição do abeto fusco,
Como um réptil que salta numa sebe,
Saltou-me ao peito, impetuoso e brusco.

Eu ia por estranhos descampados,
Por extensos desertos impassíveis,
Na trágica visão dos naufragados
Perdidos entre os temporais terríveis.

Sem rumo certo, num sombrio inferno,
Sozinho, sobre a desolada areia
Arrastando a existência, de onde, eterno
Um sapo coaxa e um rouxinol gorjeia.

Quando tu de repente, então surgiste
Beleza das belezas redentoras,
Tendo essa meiga formosura triste
Das formosas e flébeis pecadoras.

Fosse talvez uma tremenda insânia
Tão alta erguer o meu amor, tão alto;
Mas este coração frio, da Ucrânia,
Anelava galgar o céu de um salto.

E fui, galguei, subi, voei na altura,
Além dos verdes píncaros do monte,
Donde resplende a tua formosura
No clarão das estrelas do horizonte.

Foi o mesmo que se eu num templo entrasse
E aí num formidável sacrilégio,
As angélicas vestes arrancasse
Das santas de áureo diadema régio.

Como um leão sem juba e garra, preso,
Na indiferença, já morreu comigo
Todo esse amor profundamente aceso
Na ideal constelação de um sonho antigo.

Apenas pelo Saara imorredouro
Do longínquo passado, ergue, altaneira,
Majestosa folhagem no sol d’ouro,
Dessas recordações a alta palmeira…
ASAS PERDIDAS
A Carlos Jansen Júnior

Afora, pelo azul indefinido e largo,
Passam asas sutis, pelo éter, longe, afora,
Como que a demandar outra mais doce aurora
Que a desta vida atroz, toda veneno amargo.

Não as asas assim, bem longe, pela curva,
No Vago, na Amplidão, perdidas pelos ares
Até virem caindo os véus crepusculares,
Toda a angústia do Ocaso, emocional e turva.

E diante dessa dor das tardes que esmaecem
As asas, pelo Azul, em vôos desgarrados
Como a oração final dos tristes naufragados,
Longinquamente, além, tênues desaparecem
Cai então de uma vez a sombra dos Segredos…

E na serena paz das noites adormidas,
Entre o fundo chorar dos calmos arvoredos,
Ninguém verá jamais essas asas perdidas.

E as asas o que são no firmamento errantes,
Perdidas pelo Tempo, esparsas pelas Eras,
Senão os sonhos vãos, Mundos alucinantes
Cheios do resplendor das flóreas primaveras?!
Por isso, eu quando o Azul repleto de asas vejo,
Muito alto, céu acima, os páramos rasgando,
Toda a minh’alma oscila e treme num desejo
Em busca das regiões da Dúvida, chorando!
ANJO GABRIEL

Na calma irradiação das noites estreladas
Alto e claro aparece, alto, aparece, claro,
Alvo, claro, no luar das estrelas prateadas,
No triunfal esplendor celestemente raro.

O seu busto de Excelso, a sua graça fina,
A linha de harpa ideal do seu perfil augusto,
Estremecem de luz, de uma luz peregrina,
Do secreto fulgor de um sentimento justo.

Serenidade e glória e paz do Paraíso
Flutuam-lhe na face alvorecida e doce
E quando ele sorri é como se o sorriso
Claros astros semear por todo o espaço fosse.

Leve, loura, .radial, a soberba cabeça
Eleva-se da flor do níveo colo louro
E não há outro sol que tanto resplandeça
Como o sol virginal dessa cabeça de ouro.

As mãos esculturais, de ebúrnea transparência,
De divina feitura e de divino encanto,
Lembram flores sutis de sonhadora essência
Da etérea languidez e de etéreo quebranto.

Das madeixas reais largo deslumbramento
Num flavo jorro cai, com sagrado abandono…

E sai do Anjo o quer que é de vago e de nevoento
Que lembra o despertar sonâmbulo de um sono…

De alto a baixo, do Azul, desfilando das brumas,
Abre todo ele em flor como nevado lírio,
Belo, branco, eteral, do candor das espumas,
Banhado nos clarões e cânticos do Empíreo.

Maravilhoso e nobre ergue no braço ovante
Um gládio singular que rútilo cintila…

Enquanto o seu olhar de mágico diamante
Aflora em plenilúnio através da pupila.

Que o seu olhar, então, esse, recorda tudo
O quanto há de tranqüilo e luminoso e casto.

Maio de ouro a florir meigos céus de veludo
E a neve a cintilar sobre o monte mais vasto.

Do puro albor astral das asas majestosas,
Desprendem-se no Azul mistérios de harmonia…

Entre as angelicais suavidades radiosas
Parece o Anjo Gabriel o alto Enviado do Dia!
Na chama virginal de tão rara beleza
Brilha a força de um Deus e a mística doçura…

E sai das seduções de tamanha pureza
Toda a melancolia errante da ternura.

Do suntuoso agitar das delicadas vestes
Tecidas de jasmins, de rosas, de açucenas,
Vem o aroma cristão dos aromas celestes,
Todas as imortais emanações serenas…

Transfigurado, excelso, agigantado, imenso,
Na candidez hostial das formas impecáveis,
Fica parado no ar, levemente suspenso
De raios siderais, de fluidos inefáveis.

Mas quando o seu perfil nas amplidões floresce
E das asas se lhe ouve a música sonora
Quando ele agita o gládio e as madeixas, parece
Que vai noctambular pelo Infinito afora.

E alto, branco, de pé, destacado no Espaço,
Eleito das Regiões de estranhas Primaveras,
Traça, com o gládio no ar, alevantando o braço,
Uma cruz de Perdão na mudez das Esferas!
O CEGO DO HARMONIUM

Esse cego do harmonium me atormenta
E atormentando me seduz, fascina.

A minh’alma para ele vai sedenta
Por falar com a sua alma peregrina.

O seu cantar nostálgico adormenta
Como um luar de mórbida neblina.

O harmonium geme certa queixa lenta,
Certa esquisita e lânguida surdina.

Os seus olhos parecem dois desejos
Mortos em flor, dois luminosos beijos
Fanados, apagados, esquecidos…

Ah! eu não sei o sentimento vário
Que prende-me a esse cego solitário,
De olhos aflitos como vãos gemidos!
OCASOS

Morrem no Azul saudades infinitas,
Mistérios e segredos inefáveis…

Ah! Vagas ilusões imponderáveis,
Esperanças acerbas e benditas.

Ânsias das horas místicas e aflitas,
De horas amargas das intermináveis
Cogitações e agruras insondáveis
De febres tredas, trágicas, malditas.

Cogitações de horas de assombro e espanto
Quando das almas num relevo santo
Fulgem de outrora os sonhos apagados.

E os bracos brancos e tentaculosos
Da Morte, frios, álgidos, nervosos,
Abrem-se pare mim torporizados.
NAUFRÁGIOS
I

O mar! O mar! Quem nunca viajasse…

Quem nunca dentre dúvidas sentisse
O coração e ai, nunca embarcasse.

Oh! quem do mar as cóleras punisse!
Ora o mar é sereno, é calmo, é manso,
As vagas são melódicos arpejos
Dando à embarcação leve balanço,
Como um afago maternal de beijos.

Ora o mar franco, livre e transparente,
Tão tranqüilo que está, tão brando, rindo,
Que até parece, que até cuida a gente
Que os corações podem boiar, dormindo.

Ora ferve, rebenta, estoura, estala,
Rude, feroz, em convulsões, profundo,
Abrindo a corpos pavorosa vala
E mundos de agonia num só mundo!
II

Filho! Filho! Adeus, querido,
Vou viajar para além,
Sejas de Deus protegido…

Que sempre me queiras bem.

Vou deixar-te nesta terra,
Entregue aos destinos teus;
Filho, o que este adeus encerra
Só o pode saber Deus.

Levo as crenças em pedaços,
Como pedaços de céus.

Vou ver mar, vou ver espaços
Ver temporais, escarcéus.

Filho amado, vou deixar-te
Cá na terra, pelo mar;
Porem, crê, de qualquer parte,
Crê, meu filho, hei de voltar.
III

Adeus, noiva, vou-me embora,
Vou-me com Deus, é preciso.

Que colhas em cada aurora
Muita messe de sorriso.

Sou soldado, o meu destino
É viver bem longe, é certo,
Longe do canto divino
Da tua voz, sol aberto.

Custa bem esta partida
A mim que entanto sou forte.

Ninguém sabe o que é a vida
Para quem vive da morte.

Da morte, sim, pomba amada;
Que as minhas crenças já mortas
Tu, com essa alma estrelada
Sem tu sequer me confortas.

Perdi pai, perdi carinhos
De mãe, de irmãos e de todos.

Eu sou como a flor de espinhos
Nascida por entre lodos.

Tu vieste, ó noiva, apenas,
Como um íris de esperanças,
Dar-me alvoradas serenas,
Encher-me de confianças.

Só em ti confio, espero
Com ardor, com fé veemente,
Pomba de luz que eu venero,
Doce vésper do oriente.

Adeus, pois chegou a hora,
Vou-me com Deus, minha filha;
Não chores, que o mar não chora:
— Olha, vê que canta e brilha.
IV

Adeus, esposa extremosa,
Vou-me, não sei para quando
Voltar — minh’alma saudosa
Por meus filhos vai chorando.

Ficam-te eles no entretanto
Pra tirarem-te os pesares,
Para enxugarem-te o pranto
Que há de ser maior que os mares.

Maior que os mares, não minto,
Não exagero tão pouco,
Porque ai, só tu e só eu sinto
O nosso amor como é louco.

Vou-me às viagens, aos dias
Passados entre horizontes
E mares e ventanias
Sem arvoredos, sem montes.

Os dias de céus eternos
E de mar ilimitado,
Com tempo de atroz infernos
Com tempo de sol doirado.

Adeus! Cá dentro do peito
Há dois corações unidos;
Sobre um — o mar tem direito,
Sobre outro — os filhos queridos.
V

Eis as canções e adeuses de saudade
Que as desgraçadas almas palpitantes
Soluçam na sombria imensidade
Desta vida de angústias lacerantes.

Ao mar! Ao mar! Frescas aragens puras
Aflam nas ondas maviosamente.

Que balada de plácidas venturas,
Que sinfonias, que gemer dolente!
Os céus abertos, claros, luminosos
Lembram a candidez branda das virgens.

Vítreos ares, magníficos, radiosos
Onde o sol arde em férvidas vertigens.

Lindíssimos painéis, bela paisagem
Abre na vista do viajante o ouro
Da luz que salta como uma homenagem
De oriental, esplêndido tesouro.

Vai bem, vai muito bem, mesmo, o navio.

As vagas desenrolam-se de leve.

Parece um berço por de sobre um rio
Manso, prateado, espúmeo, cor de neve.

Vive-se a bordo como em terra. — As vagas
Nunca foram tão doces e tão meigas,
Como em desertas, viridentes plagas
É doce e meigo o mole chão das veigas.

Viver assim, na realidade, é gozo
Que até parece não haver na terra!
Tão belo é o mar, tão calmo e bonançoso,
Tal confiança nos semblantes erra!
Vogando assim a embarcação, quem pensa
Ir acordado afora pela Vida?!
Tudo é um sonho de esperança imensa
Um bom sonho de aurora indefinida.
VI

Súbito os ares enchem-se de noite
E grita e zune, zargunchando o vento
Que esbraveja, morde com rijo açoite
O mar que espuma e empola num momento.

Não estrugem os raios pela treva
Não há trovões bravios rebentando
Como canhões que estouram, — mas se eleva
Do oceano um vendaval que vai urrando
Com fúrias e com cóleras enormes
Como potros sanhudos relinchando
Em pinotes e berros desconformes.

Caiu talvez no mar o etéreo espaço,
Toda a cúpula azul tombou, quem sabe?
Céus! há lutas ali, de braço a braço.

Horror! Crível será que o mundo acabe?
Ninguém calcula o que será tudo isso…

Mas os ventos elétricos, largados
Nas amplidões do mar antes submisso,
Rugindo vão como desesperados.

Deus, ó meu Deus, todas as bocas gritam,
E se afervora mais e mais a crença.

Mas, onde os astros muita vez palpitam
No céu, há noite cada vez mais densa.

Ah! que mudez de túmulo nos ares.

Nada responde, oh! nada então responde;
Mas onde está o grande Deus dos mares
E da terra, onde está, aonde, aonde?
Tudo está mudo — a natureza inteira,
Tudo emudece e não responde nada;
E só os vendavais têm a maneira
De responder dando uma gargalhada.

Gargalhada de lágrimas atrozes,
De lágrimas de morte e de agonia
Que abafa e extingue na garganta as vozes,
Gera a coragem que é a luz do dia.

O valentes e rudes marinheiros
Vindos da pátria para pátria nova,
Que sepultais amores verdadeiros
Do tão profundo coração na cova;
Ó viajantes de longe, de países
Onde a vida cintila e canta alerta
Como um turbilhão de aves felizes
Numa campina de rosais, deserta;
Ó vós todos que vindes lá do oceano,
Entre as mais bruscas e hórridas tormentas.

Lá do mar alto, à vela, a todo o pano,
Com as almas ansiosas e sedentas
De chegar cedo ao porto desejado,
Calculai, calculai o quanto é triste
Ver dar à praia um pobre desgraçado
Em cuja carne a podridão existe!
À praia! À praia! Dai à praia, morto,
Rejeitado por ondas convulsivas,
Indo encontrar na sepultura o porto,
Deixando ao mundo as ilusões mais vivas.

O eterno amor de mãe, de filho, esposa,
Tanta fé, tanto riso de alegria,
Tanta coisa dourada, ai tanta coisa
Que ao recordar toda a nossa alma esfria.

Morrer no mar, os nervos contraídos,
Numa asfixia atroz, cerrando os dentes,
Num abismo de dores e gemidos,
De maldições e de uivos de descrentes;
Morrer no mar, sem o farol amigo,
Esse farol que os náufragos anima,
Fora de proteção, fora de abrigo,
Sem sequer uma luz no espaço, em cima;
Morrer no mar, sem astros no infinito,
Na solidão das águas, fria, imensa,
Enquanto a treva dura de granito,
Ri-se de tudo, com indiferença;
Morrer no mar, só e desamparado
E num terror que não acaba nunca,
Vendo rasgar o corpo enregelado
O desespero como garra adunca.

É horrível! Bem sei! Mas ai daqueles
Que morrem mesmo assim lá no mar fundo
Sem ter alguém que ao menos neste mundo
Derrame uma só lágrima por eles!
(Desterro)
POESIAS PARA UM LIVRO DERRADEIRO
VIOLINOS

Pelas bizarras, góticas janelas
De um templo medieval o sol ondula:
Nunca os vitrais viram visões mais belas
Quando, no ocaso, o sol os doura e oscula…

Doces, multicores aquarelas
Sobre um saudoso céu que além se azula…

Calma, serena, divinal, entre elas,
A pomba ideal dos Ângelus arrula…

Rezam de joelhos anjos de mãos postas
Através dos vitrais, e nas encostas
Dos montes sobe a claridade ondeando…

É a lua de Deus, que as curvas meigas
Foi ondular pelos vergéis e veigas
Magnólias e lírios desfolhando…
NA FONTE

Bem ao lado da gruta a fonte corre
Trepidamente, as águas encrespando,
Em murmúrios crebros, levantando
Uns chamalotes prateados — morre
No monte o sol que a luz no oceano escorre
E ainda eu vejo, as sombras afrontando,
Uma mulher que lava, mesmo quando
O sol mais rubro, mais vermelho jorre.

— É num sítio afastado, um sítio ermo…

Pássaros cortam vastidões sem termo,
Borboletas azuis roçam nas águas.

— E a mulher lava, enrubescida a face;
Lava, cantando, como se lavasse
As suas tristes e profundas mágoas.
A FONTE DE ÁGUAS CRISTALINA CORRE

A fonte de águas cristalinas corre
Chamalotes de prata levantando,
E através de arvoredos murmurando,
Entre arvoredos murmurando morre…

No ocaso, o sol, a luz no oceano escorre
E sempre vejo, as sombras afrontando,
Uma mulher que canta e ri, lavando,
Mesmo que o sol muito abrasado jorre.

É verde o campo, deleitável e ermo.

Pássaros cortam vastidões sem termo,
Borboletas azuis roçam nas águas.

E cantando, a mulher, a rir a face,
Lava cantando como se lavasse
As suas grandes e profundas mágoas.
PLENILÚNIO

Vês este céu tão límpido e constelado
E este luar que em fúlgida cascata,
Cai, rola, cai, nuns borbotões de prata…

Vês este céu de mármore azulado…

Vês este campo intérmino, encharcado
Da luz que a lua aos páramos desata…

Vês este véu que branco se dilata
Pelo verdor do campo iluminado…

Vês estes rios, tão fosforescentes,
Cheios duns tons, duns prismas reluzentes,
Vês estes rios cheios de ardentias…

Vês esta mole e transparente gaze…

Pois é, como isso me parecem quase
Iguais, assim, às nossas alegrias!
MANHÃ

Alta alvorada. — Os últimos nevoeiros
A luz que nasce levemente espalha;
Move-se o bosque, a selva que farfalha
Cheia da vida dos clarões primeiros.

Da passarada os vôos condoreiros,
Os cantos e o ar que as árvores ramalha
Lembram combate, estrídula batalha
De elementos contrários e altaneiros.

Vozes, trinados, vibrações, rumores
Crescem, vão se fundindo aos esplendores
Da luz que jorra de invisível taça.

E como um rei num galeão do Oriente
O sol põe-se a tocar bizarramente
Fanfarras marciais, trompas de caça.
HÓSTIAS
A Emílio de Menezes

Nos arminhos das nuvens do infinito
Vamos noivar por entre os esplendores,
Como aves soltas em vergéis de flores,
Ou penitentes de um estranho rito.

Que seja nosso amor — sidério mito! —
O límpido turíbulo das dores,
Derramando o incenso dos amores
Por sobre o humano coração aflito.

Como num templo, numa clara igreja,
Que o sonho nupcial gozado seja,
Que eu durma e sonhe nos teus níveos flancos.

Contigo aos astros fúlgidos alado,
Que sejam hóstias para o meu noivado
As flores virgens dos teus seios brancos!
BOCA IMORTAL

Abre a boca mordaz num riso convulsivo
Ó fera sensual, luxuriosa fera!
Que essa boca nervosa, em riso de pantera,
Quando ri para mim lembra um capro lascivo.

Teu olhar dá-me febre e dá-me um brusco e vivo
Tremor às carnes, que eu, se ele em mim reverbera,
Fico aceso no horror da paixão que ele gera,
Inflamada, fatal, dum sangue rubro e ativo.

Mas a boca produz tais sensações de morte,
O teu riso, afinal, é tão profundo e forte
E tem de tanta dor tantas negras raízes;
Rigolboche do tom, ó flor pompadouresca!
Que és, para mim, no mundo, a trágica e dantesca
Imperatriz da Dor, entre as imperatrizes!
PSICOLOGIA HUMANA
A Santos Lostada

Por trás de uns vidros d’óculos opacos
Muita vez um leão e um tigre rugem,
E como um surdo temporal estrugem
Os ódios dos covardes e dos fracos.

Partir pudesses, ó poeta, em cacos,
Vidros que ocultam almas de ferrugem,
Que espumam de ira, tenebrosas mugem,
Mugem como de dentro de uns buracos.

Que essas sombrias, dúbias almas foscas
Que parecem, no entanto, como moscas,
Inofensivas, babam como as lesmas.

Mas tu, em vão, tais vidros partirias,
Pois que no mundo, eternamente, as frias
Almas humanas serão sempre as mesmas!
OS MORTOS

Ao menos junto dos mortos pode a gente
Crer e esperar n’alguma suavidade:
Crer no doce consolo da saudade
E esperar do descanso eternamente.

Junto aos mortos, por certo, a fé ardente
Não perde a sua viva claridade;
Cantam as aves do céu na intimidade
Do coração o mais indiferente.

Os mortos dão-nos paz imensa à vida,
Dão a lembrança vaga, indefinida
Dos seus feitos gentis, nobres, altivos.

Nas lutas vãs do tenebroso mundo
Os mortos são ainda o bem profundo
Que nos faz esquecer o horror dos vivos.
VERÔNICA

Não a face do Cristo, a macilenta
Face do Cristo, a dolorosa face…

O martírio da Cruz passou fugace
E este Martírio, esta Paixão é lenta.

Um vivo sangue a face te ensangüenta,
Mais vivo que se o Deus o derramasse;
Porque esta vã paixão, para que passe,
É mister dos Titãs a luta incruenta.

Se tu, Visão da Luz, Visão sagrada
Queres ser a Verônica sonhada,
Consoladora dessa dor sombria
Impressa ficará no teu sudário
Não a face do Cristo do Calvário
Mas a face convulsa da Agonia!
SÍMILES

Pedro traiu a fé do Apostolado.

Madalena chorou de arrependida;
E nessa mágoa triste e indefinida
Havia ainda uns laivos de pecado.

Tudo que a Bíblia tinha decretado,
Tudo o que a lenda humilde e dolorida
De Jesus Cristo apregoou na vida,
Cumpriu-se à risca, foi executado.

O filho-Deus da cândida Maria,
Da flor de Jericó, na cruz sombria
Os seus dias amáveis terminou.

Pedro traiu a fé dos companheiros.

Madalena chorou sob os olmeiros
Jesus Cristo sofreu e… perdoou.
(Desterro)
EXILADA

Bela viajante dos países frios
Não te seduzam nunca estes aspectos
Destas paisagens tropicais. Secretos,
Os teus receios devem ser sombrios.

És branca e és loura e tens os amavios
Os incógnitos filtros prediletos
Que podem produzir ondas de afetos
Nos mais sensíveis corações doentios.

Loura Visão, Ofélia desmaiada,
Deixa esta febre de ouro, a febre ansiada
Que nos venenos deste sol consiste.

Emigra destes cálidos países,
Foge de amargas, fundas cicatrizes,
Das alucinações de um vinho triste…

A poesia interminável 6

A FREIRA MORTA

Muda, espectral, entrando as arcarias
Da cripta onde ela jaz eternamente
No austero claustro silencioso — a gente
Desce com as impressões das cinzas frias…

Pelas negras abóbadas sombrias
Donde pende uma lâmpada fulgente,
Por entre a frouxa luz triste e dormente
Sobem do claustro as sacras sinfonias.

Uma paz de sepulcro após se estende…

E no luar da lâmpada que pende
Brilham clarões de amores condenados…

Como que vem do túmulo da morta
Um gemido de dor que os ares corta,
Atravessando os mármores sagrados!
(Desterro)
CLARO E ESCURO

Dentro — os cristais dos tempos fulgurantes,
Músicas, pompas, fartos esplendores,
Luzes, radiando em prismas multicores,
Jarras formosas, lustres coruscantes,
Púrpuras ricas, galas flamejantes,
Cintilações e cânticos e flores;
Promiscuamente férvidos odores,
Mórbidos, quentes, finos, penetrantes,
Por entre o incenso, em límpida cascata,
Dos siderais turíbulos de prata,
Das sedas raras das mulheres nobres;
Clara explosão fantástica de aurora,
Deslumbramentos, nos altares! — Fora,
Uma falange intérmina de pobres.
HORAS DE SOMBRA

Horas de sombra, de silêncio amigo
Quando há em tudo o encanto da humildade
E que o anjo branco e belo da saudade
Roga por nós o seu perfil antigo.

Horas que o coração não vê perigo
De gozar, de sentir com liberdade…

Horas da asa imortal da Eternidade
Aberta sobre tumular jazigo.

Horas da compaixão e da clemência,
Dos segredos sagrados da existência,
De sombras de perdão sempre benditas.

Horas fecundas, de mistério casto,
Quando dos céus desce, profundo e vasto,
O repouso das almas infinitas.
ALELUIA! ALELUIA!

Dentre um cortejo de harpas e alaúdes
Ó Arcanjo sereno, Arcanjo níveo,
Baixas-te à terra, ao mundanal convívio…

Pois que a terra te ajude, e tu me ajudes.

Que tu me alentes nas batalhas rudes,
Que me tragas a flor de um doce alívio
Aos báratros, às brenhas, ao declívio
Deste caminho de ânsias e ataúdes…

Já que desceste das regiões celestes,
Nesse clarão flamívomo das vestes,
Através dos troféus da Eternidade,
Traz-me a Luz, traz-me a Paz, traz-me a Esperança
Para a minh’alma que de angústias cansa,
Errando pelos claustros da Saudade!
ROSA NEGRA

Nervosa Flor, carnívora, suprema,
Flor dos sonhos da Morte, Flor sombria,
Nos labirintos da tu’alma fria
Deixa que eu sofra, me debata e gema.

Do Dante o atroz, o tenebroso lema
Do Inferno à porta em trágica ironia,
Eu vejo, com terrível agonia,
Sobre o teu coração, torvo problema.

Flor do delírio, flor do sangue estuoso
Que explode, porejando, caudaloso,
Das volúpias da carne nos gemidos.

Rosa negra da treva, Flor do nada,
Dá-me essa boca acídula, rasgada,
Que vale mais que os corações proibidos!
VOZINHA

Velha, velhinha, da doçura boa
De uma pomba nevada, etérea, mansa.

Alma que se ilumina e se balança
Dentre as redes da Fé que nos perdoa.

Cabeça branca de serena leoa,
Carinho, amor, meiguice que não cansa,
Coração nobre sempre como a lança
Que não vergue, não fira e que não doa.

Olhos e voz de castidades vivas,
Pão ázimo das Páscoas afetivas,
Simples, tranqüila, dadivosa, franca.

Morreu tal qual vivera, mansamente,
Na alvura doce de uma luz algente,
Como que morta de uma morte branca.
NO EGITO

Sob os ardentes sóis do fulvo Egito
De areia estuosa, de candente argila,
Dos sonhos da alma o turbilhão desfila,
Abre as asas no páramo infinito.

O Egito é sempre o antigo, o velho rito
Onde um mistério singular se asila
E onde, talvez mais calma, mais tranqüila
A alma descansa do sofrer prescrito.

Sobre as ruínas d’ouro do passado,
No céu cavo, remoto, ermo e sagrado,
Torva morte espectral pairou ufana…

E no aspecto de tudo em torno, em tudo,
Árido, pétreo, silencioso, mudo,
Parece morta a própria dor humana!
REPOUSO

A cabeça pendida docemente
Em sonhos, sonha o sonhador inquieto,
Repousa e nesse repousar discreto
É sempre o sonho o seu bordão clemente.

Cego desta Prisão impenitente
Da Terra e cego do profundo Afeto,
O sonho é sempre o seu bordão secreto,
O seu guia divino e refulgente.

Nem no repouso encontra a paz que espera,
Para lhe adormecer toda a quimera,
Os círculos fatais do seu Inferno.

Entre a calma aparente, a estranha calma,
O seu repouso é sempre a febre d’alma,
O seu repouso é sonho, e sonho eterno.
REQUIESCAT…

Grande, grande Ilusão morta no espaço,
Perdida nos abismos da memória,
Dorme tranqüila no esplendor da glória,
Longe das amarguras do cansaço…

Ilusão, Flor do sol, do morno e lasso
Sonho da noite tropical e flórea,
Quando as visões da névoa transitória
Penetram na alma, num lascivo abraço…

Ó Ilusão! Estranha caravana
De águias, soberbas, de cabeça ufana,
De asas abertas no clarão do Oriente.

Não me persiga o teu mistério enorme!
Pelas saudades que me aterram, dorme,
Dorme nos astros infinitamente…
DOCE ABISMO

Coração, coração! a suavidade,
Toda a doçura do teu nome santo
É como um cálix de falerno e pranto,
De sangue, de luar e de saudade.

Como um beijo de mágoa e de ansiedade,
Como um terno crepúsculo d’encanto,
Como uma sombra de celeste manto,
Um soluço subindo à Eternidade.

Como um sudário de Jesus magoado,
Lividamente morto, desolado,
Nas auréolas das flores da amargura.

Coração, coração! onda chorosa,
Sinfonia gemente, dolorosa,
Acerba e melancólica doçura.
HARPAS ETERNAS

Hordas de Anjos titânicos e altivos,
Serenos, colossais, flamipotentes,
De grandes asas vívidas, frementes,
De formas e de aspectos expressivos.

Passam, nos sóis da Glória redivivos,
Vibrando as de ouro e de Marfim dolentes,
Finas harpas celestes, refulgentes,
Da luz nos altos resplendores vivos.

E as harpas enchem todo o imenso espaço
De um cântico pagão, lascivo, lasso,
Original, pecaminoso e brando…

E fica no ar, eterna, perpetuada
A lânguida harmonia delicada
Das harpas, todo o espaço avassalando.
DUPLA VIA-LÁCTEA

Sonhei! Sempre sonhar! No ar ondulavam
Os vultos vagos, vaporosos, lentos,
As formas alvas, os perfis nevoentos
Dos Anjos que no Espaço desfilavam.

E alas voavam de Anjos brancos, voavam
Por entre hosanas e chamejamentos…

Claros sussurros de celestes ventos
Dos Anjos longas vestes agitavam.

E tu, já livre dos terrestres lodos,
Vestida do esplendor dos astros todos,
Nas auréolas dos céus engrinaldada
Dentre as zonas de luz flamo-radiante,
Na cruz da Via-Láctea palpitante
Apareceste então crucificada!
TITÃS NEGROS

Hirtas de Dor, nos áridos desertos,
Formidáveis fantasmas das Legendas,
Marcham além, sinistras e tremendas,
As caravanas, dentre os céus abertos…

Negros e nus, negros Titãs, cobertos
Das bocas vis, das chagas vis e horrendas,
Marcham, caminham por estranhas sendas,
Passos vagos, sonâmbulos, incertos…

Passos incertos e os olhares tredos,
Na convulsão de trágicos segredos,
De agonias mortais, febres vorazes…

Têm o aspecto fatal das feras bravas
E o rir pungente das legiões escravas,
De dantescos e torvos Satanases!…
ENTRE CHAMAS…

Sonhei que de astros no Infinito presa
Vagavas, brandamente adormecida,
Nas chamas siderais resplandecida,
A carne, em chamas, no Infinito, acesa…

E eu pasmava de encanto e de surpresa
Vendo a constelação indefinida
Da tua carne flamejando vida,
Dentre os íris radiantes da beleza…

E o teu corpo, nas chamas palpitando,
Os astros em redor maravilhando,
Por entre a auréola dos clarões cantava…

Então, de sonho em sonho, absorto, mudo,
Eu senti alastrar, vibrar por tudo
Toda a infinita sensação da lava!…
O ANJO DA REDENÇÃO

Soberbo, branco, etereamente puro,
Na mão de neve um grande facho aceso,
Nas nevroses astrais dos sóis surpreso,
Das trevas deslumbrando o caos escuro.

Portas de bronze e pedra, o horrendo muro
Da masmorra mortal onde estás preso
Desce, penetra o Arcanjo branco, ileso
Do ódio bifronte, torto, torvo e duro.

Maravilhas nos olhos e prodígios
Nos olhos, chega dos azuis litígios,
Desce à tua caverna de bandido.

E sereno, agitando o estranho facho,
Põe-te aos pés e à cabeça, de alto a baixo,
Auréolas imortais de Redimido!
SALVE! RAINHA!…

Ó sempre virgem Maria,
concebida sem pecado original,
desde o primeiro instante do teu ser…

Mãe de Misericórdia, sem pecado
Original, desde o primeiro instante!
Salve! Rainha da Mansão radiante,
Virgem do Firmamento constelado…

Teu coração de espadas lacerado,
Sangrando sangue e fel martirizante,
Escute a minha Dor, a torturante,
A Dor do meu soluço eternizado.

A minha Dor, a minha Dor suprema,
A Dor estranha que me prende, algema
Neste Vale de lágrimas profundo…

Salve! Rainha! por quem brado e clamo
E brado e brado e com angústia chamo,
Chamo, através das convulsões do mundo!…
MENDIGOS

Mendigos! Ah! são mendigos
Que voltam de vãos caminhos,
Que atravessaram perigos,
Urzes, pântanos, espinhos.

Que chegam desiludidos
Das portas a que bateram:
Humanos, grandes gemidos
Que nos tempos se perderam.

Que voltam como partiram,
Com mais amargor na volta
E mais sonhos que se abriram
Das estrelas na recolta.

Mendigos ricos no entanto,
Das pompas da natureza
E das auréolas do Encanto,
Os vinhos da sua mesa.

Mendigos que o sol, apenas,
Torna nababos felizes,
Torna um pouco mais serenas
As convulsas cicatrizes.

Mendigos que acham requinte
Na fumaça de um cachimbo,
Deixando que labirinte
O sonho em tão leve nimbo.

Mendigos da luz da aurora
Cantando celestemente,
Fresca, límpida, sonora,
Pelas fanfarras do Oriente.

Mendigos de áureas estradas,
De sonâmbulas veredas,
De riquezas encantadas,
Sem pedrarias e sedas.

Mendigos d’estranho aspecto
E sempiterna vigília,
Filhos nômades, sem teto,
De milenária Família.

Mendigos que erram eternos
Sem fadigas e sem sono,
Sob o augúrio dos Infernos,
Das Ilusões sobre o trono.

Mendigos de plaga nova,
De novas terras e mares,
Divinizados na cova
Como as hóstias nos altares.

Mendigos da grande esmola
Da luz das estrelas nobres,
Que fulge e dos altos rola,
Entre as suas mãos tão pobres!
Mendigos de céus remotos,
De sóis dos mais velhos ouros;
Com a sua fé e os seus votos
E os seus secretos tesouros.

Mendigos de olhar severo,
Boca murcha, meio amarga…

Tendo um vago reverbero
De sonhos na fronte larga.

Mendigos de ínvias florestas
E de bosques fabulosos,
De melancólicas sestas
Nos crepúsculos brumosos.

Mendigos da Eternidade,
Tremendo dos sóis, dos frios,
Nas mortalhas da Saudade
Amortalhados sombrios.

Mendigos dos Infinitos,
Das Esferas inefáveis,
Noctambulando malditos
Nos rumos imponderáveis.

Mendigos de fome e sede
De água e pão de outros mundos,
Embalados pela rede
Dos Idealismos profundos.

Mendigos do azul Mistério,
Cuja alma — nívea sereia —
Fica saciada no aéreo
Pão branco da lua cheia!
QUANDO EU PARTIR ou ESFUMINHAMENTO

Quando eu partir, que eterna e que infinita
Há de crescer-me a dor de tu ficares;
Quanto pesar e mesmo que pesares,
Que comoção dentro desta alma aflita.

Por nossa vida toda sol, bonita,
Que sentimento, grande como os mares,
Que sombra e luto pelos teus olhares
Onde o carinho mais feliz palpita…

Nesse teu rosto da maior bondade
Quanta saudade mais, que atroz saudade…

Quanta tristeza por nós ambos, quanta,
Quando eu tiver já de uma vez partido,
Ó meu amor, ó meu muito querido
Amor, meu bem, meu tudo, ó minha santa!
SEMPRE E… SEMPRE
A M. B. Augusto Varela

Sempre se amando, sempre se querendo. Oliveira
Paiva
De longe ou perto, juntas, separadas,
Olhando sempre os mesmos horizontes,
Presas, unidas nossas duas fontes
Gêmeas, ardentes, novas, inspiradas;
Vendo cair as lágrimas prateadas,
Sentindo o coro harmônico das fontes,
Sempre fitando a cúspide dos montes
E o rosicler das frescas alvoradas;
Sempre embebendo os límpidos olhares
Na claridão dos humildes luares,
No loiro sol das crenças se embebendo,
Vão nossas almas brancas e floridas
Pelo futuro azul das nossas vidas,
Sempre se amando, sempre se querendo.
O ÓRGÃO

Um largo e lento vento dormente
Taciturnas lágrimas sonâmbulas, sinfônicas
Um esquecimento amargo
Uma sombria clausura de almas
Suspirando e gemendo solitárias harmonias
Vago luar de esquecimento e prece,
Dessa melancolia que anda errando
No mar e nas estrelas ondulando,
Pela minh’alma etereamente desce.

Na minh’alma, dos Sonhos anoitece
O Sentimento que ando transformando
Em hóstia de ouro
Sombra e silêncio

Após o noivado

Em flácido divã ela resvala
Na alcova — bem feliz, alegremente,
E o fresco penteador alvinitente,
De nardo e benjoim o aroma exala.

E o noivo todo amor, assim lhe fala,
Por entre vibrações do olhar ardente:
Pertences-me afinal, pomba dormente
Parece que a razão de gozo, estala.

Mas eis — corre-se então nívea cortina:
E a plácida, a ideal, a branca lua
Derrama nos vergéis a luz divina…

Depois… Oh! Musa audaz, ousada, e nua,
Não rompas esse véu de gaze fina
Que encerra um madrigal — Vamos… recua!…

A revolta

O século é de revolta — do alto transformismo,
De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite —
Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo
Que traz como divisa a bala-dinamite!…

Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho,
Mais reto, que instrua — estético — mais novo
Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho
E lance-se outro sangue aos músculos do povo!…

O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos,
É pô-los ao olhar dos sérios analíticos,
Na ampla, social e esplêndida vitrine!…

À frente!… — Trabalhar à luz da idéia nova!…
— Pois bem! Seja a idéia, quem lance o vício à
cova,
— Pois bem! — Seja a idéia, quem gere e quem fulmine!…

Arte

Como eu vibro este verso, esgrimo e torço, Tu, Artista sereno, esgrime
e torce; Emprega apenas um pequeno esforço
Mas sem que a Estrofe a pura idéia force.

Para que surja claramente o verso, Livre organismo que palpita e vibra, É
mister um sistema altivo e terso
De nervos, sangue e músculos, e fibra.

Que o verso parta e gire — como a flecha
Que d’alto do ar, aves, além, derruba; E como os leões,
ruja feroz na brecha
Da Estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.

Para que tenhas toda a envergadura
De asa e o teu verso, de ampla cimitarra
Turca, apresente a lâmina segura,
Poeta, é mister, como os leões, ter garra.

Essa bravura atlética e leonina
Só podem ter artistas deslumbrado: Que souberam sorver pela retina
A luz eterna dos glorificados.

Busca palavras límpidas e castas, Novas e raras, de clarões
radiosos,
Dentre as ondas mais pródigas, mais vastas
Dos sentimentos mais maravilhosos.

Busca também palavras velhas, busca, Limpa-as, dá-lhes o brilho
necessário
E então verás que cada qual corusca
Com dobrado fulgor extraordinário.nódoa

Que as frases velhas são como as espadas
Cheias de nódoa, de ferrugem, velhas
Mas que assim mesmo estando enferrujadas
Tu, grande Artista, as brunes e as espelhas.

Faz dos teus pensamentos argonautas Rasgando as largas amplidões marinhas,
Soprando, à lua, peregrinas flautas, Louros pagãos sob o dossel
das vinhas.

Assim, pois, saberás tudo o que sabe Quem anda por alturas mais serenas
E aprenderás então como é que cabe
A Natureza numa estrofe apenas.

Assim terás o culto pela Forma,
Culto que prende os belos gregos da Arte
E levará no teu ginete, a norma
Dessa transformação, por toda a parse.

Enche de estranhas vibrações sonoras
A tua Estrofe, majestosamente…
Põe nela todo o incêndio das auroras
Para torná-la emocional e ardente.

Derrama luz e cânticos e poemas
No verso e torna-o musical e doce Como se o coração, nessas
supremas Estrofes, puro e diluído fosse.

Que as águias nobres do teu verve esvoacem Alto, no Azul, por entre
os sóis e as galas, Cantem sonoras e cantando passem
Dos Anjos brancos através das alas…

E canta o amor, o sol, o mar e as rosas, E da mulher a graça diamantina
E das altas colheitas luminosas
A lua, Juno branca e peregrine.

Vibra toda essa luz que do ar transborda
Toda essa luz nos versos vai vibrando
E na harpa do teu Sonho, corda a corda, Deixa que as Ilusões passem
cantando.

Na alma do artista, alma que trina e arrulha Que adora e anseia, que deseja
e que ama Gera-se muita vez uma fagulha
Que se transforma numa grande chama.

Faz estrofes assim! E após na chama Do amor, de fecundá-las
e acendê-las, Derrama em cima lágrimas, derrama, Como as eflorescências
das Estrelas…

Asas abertas

As asas da minh’alma estão abertas!
Podes te agasalhar no meu Carinho,
Abrigar-te de frios no meu Ninho
Com as tuas asas trêmulas, incertas.

Tu’alma lembra vastidões desertas
Onde tudo é gelado e é só espinho.
Mas na minh’alma encontrarás o Vinho
e as graças todas do Conforto certas.

Vem! Há em mim o eterno Amor imenso
Que vai tudo florindo e fecundando
E sobe aos céus como sagrado incenso.

Eis a minh’alma, as asas palpitando
Com a saudade de agitado lenço
o segredo dos longes procurando…

Asas perdidas

Afora, pelo azul indefinido e largo, Passam asas sutis, pelo éter,
longe, afora,
Como que a demandar outra mais doce aurora
Que a desta vida atroz, toda veneno amargo.

Não as asas assim, bem longe, pela curva, No vago, na amplidão,
perdidas pelos ares Até virem caindo os véus crepusculares,
Toda a anústia do acaso, emocional e turva.

E diante dessa dor das tardes que esmaecem As asas, pelo espaço, em
vôos desgarrados Como a oração final dos tristes naufragados,
Longinquamente, além, tênues desaparecem

Cai então de uma vez a sombra dos segredos.
E na serena paz das noites adormidas,
Entre o fundo chorar dos calmos arvoredos, Ninguém verá jamais
essas asas perdidas.

E as asas o que são no firmamento errantes, Perdidas pelos tempos,
esparsas pelas eras Senão os sonhos vãos, mundos alucinantes
Cheios do resplendor das flóreas primaveras?!

Por isso, eu quando o Azul repleto de asas vejo Muito alto, céu acima,
os páramos rasgando, Toda a minh’alma oscila e treme num desejo
Em busca das regiões da dúvida, chorando!

As devotas

I

Enquanto o sino bimbalha,
Bimbalha, bimbalha e tine,
Lançai do olhar a migalha
— Enquanto o sino bimbalha —
À raça que se amortalha
No horror que não se define…
Enquanto o sino bimbalha
Bimbalha, bimbalha e tine.
II

Perto da Igreja a senzala,
O Cristo junto aos escravos
E, pois, deveis visitá-la,
Perto da Igreja, a senzala
E procurar transformá-la
Da luz às palmas, aos bravos!…
Perto da Igreja a senzala,
O Cristo junto aos escravos.
III

E tão-somente por isto
Enquanto o sino bimbalha,
Bem antes de terdes visto
— E tão-somente por isto —
Todo o martírio do Cristo,
O vosso amor que lhes valha,
E tão-somente por isto,
Enquanto o sino bimbalha.

As estrelas

Lá, nas celestes regiões distantes,
No fundo melancólico da Esfera,
Nos caminhos da eterna Primavera
Do amor, eis as estrelas palpitantes.

Quantos mistérios andarão errantes,
Quantas almas em busca da Quimera,
Lá, das estrelas nessa paz austera
Soluçarão, nos altos céus radiantes.

Finas flores de pérolas e prata,
Das estrelas serenas se desata
Toda a caudal das ilusões insanas.

Quem sabe, pelos tempos esquecidos,
Se as estrelas não são os ais perdidos
Das primitivas legiões humanas?!

Á sombra espessa de um álamo

Ah! Plangentes violões dormentes, mornos,
soluços ao luar, choros ao vento…
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
bocas murmurejantes de lamento,
Noites de além, remotas, que eu recordo.
Noites de solidão, noites remotas
que nos azuis da Fantasia bordo,
vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações à luz da lua,
anseio dos momentos mais saudosos,
quando lá choram na deserta rua
as cordas dos violões chorosos.

Aspiração suprema

Como os cegos e os nus pede um abrigo a
alma que vive a tiritar de frio.
Lembra um arbusto frágil e sombrio
que necessita do bom sol amigo.

Tem ais de dor de trêmulo mendigo
oscilante, sonâmbulo, erradio.
É como um tênue, cristalino fio
d’estrelas, como etéreo e louro trigo.

E a alma aspira o celestial orvalho,
aspira o céu, o límpido agasalho,
sonha, deseja e anseia a luz do Oriente…

Tudo ela inflama de um estranho beijo.
E este Anseio, este Sonho, este Desejo
enche as Esferas soluçantemente.

Assim seja

Fecha os olhos e morre calmamente!
Morre sereno do Dever cumprido!
Nem o mais leve, nem um só gemido
traia, sequer, o teu Sentir latente.

Morre com alma leal, clarividente,
da Crença errando no Vergel florido e
o Pensamento pelos céus brandido
como um gládio soberbo e refulgente.

Vai abrindo sacrário por sacrário
do teu Sonho no templo imaginário,
na hora glacial da negra Morte imensa…

Morre com o teu Dever! Na alta
confiança de quem triunfou e sabe quem descansa
desdenhando de toda a Recompensa!

Assombro de assombros

Como Um Assombro De Assombros
A Rapariga — Um Rainúnculo,
Da Serra Pelos Escombros
Como Um Assombro De Assombros,
Quando Vê De Enxada Aos Ombros
O Noivo — Lembra Um Carbúnculo,
Como Um Assombro De Assombros
A Rapariga — Um Rainúnculo.

Auréola equatorial

Fundi em bronze a estrofe augusta dos prodígios,
Poetas do Equador, artísticos Barnaves;
Que o facho — Abolição — rasgando as nuvens graves
De raios e bulcões — triunfa nos litígios!

— O rei Mamoud, o Sol, vibrou p’raquelas bandas do Norte —
a grande luz — elétrico, explodindo,
Assim como quem vai, intrépido, subindo
À luz da idade nova — em claras propagandas.

— Os pássaros titãs nos seus conciliábulos,
— Chilreiam, vão cantando em místicos vocábulos, Alargam-se
os pulmões nevrálgicos das zonas;

Abri alas, abri! — Que em túnica de assombros, Irá passar
por vós, com a Liberdade aos ombros,
Como um colosso enorme o impávido Amazonas!

Ausência misteriosa

Uma hora só que o teu perfil se afasta,
Um instante sequer, um só minuto
Desta casa que amo — vago luto
Envolve logo esta morada casta.

Tua presença delicada basta
Para tudo tornar claro e impoluto…
Na tua ausência, da Saudade escuto
O pranto que me prende e que me arrasta…

Secretas e sutis melancolias
Recuadas na Noite dos meus dias
Vêm para mim, lentas, se aproximando.

E em toda casa, nos objetos, erra
Um sentimento que não é da Terra
E que eu mudo e sozinho vou sonhando…

Away

17 set. 1880
A meu distinto amigo e talentoso
jovem José Arthur Boiteux

O livro, esse audaz guerreiro,
Que conquista o mundo inteiro,
Sem nunca ter Waterloo!…
(Castro Alves)

Avante, sempre, nessa luz serena,
Empunha a pena, sem temor, com fé!…
Eleva as turbas as idéias d’ouro,
Que um tesouro tua fronte é!…

Eia, caminha nessa senda nobre,
Na pátria pobre, no teu berço aqui!…
Prossegue altivo, sem parar, constante,
Faz-te gigante, diz depois — Venci!…

Ala-te à glória num voar titâneo,
Burila o crânio de fulgor sem fim!…
E entre o livro d’imortais perfumes
Calca os ciúmes d’imbecil Caim!

Imita os grandes, incansáveis vultos
Que lá sepultos no pó negro estão!…
Anda, romeiro dos vergéis divinos,
Mergulha em hinos a gentil razão!

Estás na quadra radiante e linda,
É cedo ainda para enfim descrer!
És jovem… pensas… és portanto um bravo
Ser ignavo… é sucumbir… morrer!

Vamos, caminha, mesmo embora exangue
Da fronte o sangue vá rolar-te aos pés!
Agita a alma qual febris as vagas,
Que dessas chagas brotarão lauréis!

Além do livro, colossal, enorme,
Que nunca dorme perscrutando os céus!.
Acima dele supernal, potente
Está somente, tão-somente Deus!

Vai! … vai rasgando, percorrendo os ares,
Novos palmares, meu gentil condor!
Depois de teres pedestal seguro
Lá do futuro te erguerás senhor!…

Qual Ney ousado que, ao vibrar da lança,
Nutre esperança de ganhar, vencer,
Assim co’a idéia vai lutar, trabalha,
Vence a batalha do dinal saber.

Eia que sempre na brasílea história
De alta glória colherás o jus!…
O livro augusto do porvir descerra,
Sê desta terra precursor da luz!!!

Beijos

Nesta Tebaida infinita
Da vida, na sombra oculto, Eu gosto de olhar o vulto De uma criança
bonita.

Porque afinal as crianças, Como eu deslumbro-me ao vê-las,
Cintilam como as estrelas, Florescem como esperanças.

Dentro de mim se projeta
A luz cambiante dos prismas E batem asas as cismas Qual passarada irrequieta.

E batem asas e ruflam, Pelas artísticas plagas,
As auras que as grandes vagas
Dos fundos mares insuflam.

E digo, ó mães, se uma aurora Fosse a minh’alma sincera,
Os clarões todos eu dera
A uma criança que chora.

Porque se a luz fortalece
Arbustos e as andorinhas, Também por certo às criancinhas Conforta,
avigora, aquece.

E eu que aplaudo e que rimo Tudo isso que à luz se regre, Na vibração
mais alegre
As criancinhas estimo.

Portanto, assim, sem refolhos Beijando a Olga, beijando Meus sonhos vão,
irradiando, Se derramar em seus olhos!

Beleza morta

De leve, louro e enlanguescido helianto
Tens a flórea dolência contristada…
Há no teu riso amargo um certo encanto
De antiga formosura destronada.

No corpo, de um letárgico quebranto,
Corpo de essência fina, delicada,
Sente-se ainda o harmonioso canto
Da carne virginal, clara e rosada.

Sente-se o canto errante, as harmonias
Quase apagadas, vagas, fugidias
E uns restos de clarão de Estrela acesa…

Como que ainda os derradeiros haustos
De opulências, de pompas e de faustos,
As relíquias saudosas da beleza.

Benditas cadeias

Quando vou pela Luz arrebatado,
Escravo dos mais puros sentimentos
Levo secretos estremecimentos
Como quem entra em mágico Noivado.

Cerca-me o mundo mais transfigurado
Nesses sutis e cândidos momentos…
Meus olhos, minha boca vão sedentos
De luz, todo o meu ser iluminado.

Fico feliz por me sentir escravo
De um Encanto maior entre os Encantos,
Livre, na culpa, do mais leve travo.
De ver minh’alma com tais sonhos, tantos,
E que por fim me purifico e lavo
Na água do mais consolador dos prantos

Besouros

Marche, marche, marche a verve!
Bandeiras, clarins, tambores, Marchar!

A poncheira ideal, que ferve,
Sons, aromas, chamas, cores! Cantar!

Que este diabo vem, saudoso,
Das profundezas do arcano, Viver!

O vinho maravilhoso
Da forma raro e renano, Beber!

Vem beber o vinho iriado,
O Falerno, claro e quente, Haurir!

Num paladar requintado,
Todo inflamado e fremente Sentir!

Que o sangue da verve vibre
Raja, raja, raja, raja, Taful!

E a alma do sol se equilibre
Para que mais sonhos haja No azul!…

Mas este diabo tão fino,
Que de tudo dá o acorde Genial!

Este capróide genuíno,
Verde, verde, morde, morde, Fatal.

Boca

III

Boca viçosa, de perfume a lírio,
Da límpida frescura da nevada,
Boca de pompa grega, purpureada,
Da majestade de um damasco assírio.

Boca para deleites e delírio
Da volúpia carnal e alucinada,
Boca de Arcanjo, tentadora e arqueada,
Tentando Arcanjos na amplidão do Empírio,

Boca de Ofélia morta sobre o lago,
Dentre a auréola de luz do sonho vago
E os faunos leves do luar inquietos…

Estranha boca virginal, cheirosa,
Boca de mirra e incensos, milagrosa
Nos filtros e nos tóxicos secretos…

Bondade

É a bondade que te faz formosa,
que a alma te diviniza e transfigura;
é a bondade, a rosa da ternura,
que te perfuma com perfume à rosa.

Teu ser angelical de luz bondosa,
verte em meu ser a mais sutil doçura,
uma celeste, límpida frescura,
um encanto, uma paz maravilhosa.

Eu afronto contigo os vampirismos,
os corruptos e mórbidos abismos
que em vão busquem tentar-me no Caminho.

Na suave, na doce claridade,
no consolo de amor dessa bondade
bebo a tu’alma como etéreo vinho.

Braços

Braços nervosos, brancas opulências,
Brumais brancuras, fulgidas brancuras,
Alvuras castas, virginais alvuras,
Lactescências das raras lactescências.

As fascinantes, mórbidas dormências
Dos teus abraços de letais flexuras,
Produzem sensações de agres torturas,
Dos desejos as mornas florescências.

Braços nervosos, tentadoras serpes
Que prendem, tetanizam como os herpes,
Dos delírios na trêmula coorte…

Pompa de carnes tépidas e flóreas,
Braços de estranhas correções marmóreas,
Abertos para o Amor e para a Morte!

Brumosa

Inglesa! Por toda a parte
Onde vás, chamam-te inglesa E cobrem de pompas de arte A pompa dessa
beleza.

Mas tu, num soberbo encanto
De nevada e fria rosa,
Ó meu pálido amaranto!
Não és inglesa, és brumosa.

A tua carne alvorece
Em lactescências de opala, Brilha, fulge e resplandece E um fino aroma
trescala.

És a límpida camélia
Nos jardins reais plantada
Ou essa lânguida Ofélia
Melancólica e nevada.

O teu corpo imaculado, Flor de místicas origens, Parece um luar velado
E lembra florestas virgens.

Com o teu amor ilumina
A minh’alma envolta em crepe,
Ó vaporosa neblina,
Ó branca e gelada estepe!

Cabelos

I

Cabelos! Quantas sensações ao vê-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
Por onde corre o fluido vago e frio
Dos brumosos e longos pesadelos…

Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
Tudo que lembra as convulsões de um rio
Passa na noite cálida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos.

Passa através dos teus cabelos quentes,
Pela chama dos beijos inclementes,
Das dolências fatais, da nostalgia…

Auréola negra, majestosa, ondeada,
Alma da treva, densa e perfumada,
Lânguida Noite da melancolia!

Caçador do infinito

Com a lâmpada do Sonho desce aflito
e sobe aos mundos mais imponderáveis,
vai abafando as queixas implacáveis,
da alma o profundo e soluçado grito.

Ânsias, Desejos, tudo a fogo escrito
sente, em redor, nos astros inefáveis.
Cava nas fundas eras insondáveis
o cavador do trágico Infinito.

E quanto mais pelo Infinito cava
mais o Infinito se transforma em lava
e o cavador se perde nas distâncias…

Alto levanta a lâmpada do Sonho,
e com seu vulto pálido e tristonho
cava os abismos das eternas ânsias!

Caminho da glória

Este caminho é cor de rosa e é de ouro,
Estranhos roseirais nele florescem,
Folhas augustas, nobres reverdecem
De acanto, mirto e sempiterno louro.

Neste caminho encontra-se o tesouro
Pelo qual tantas almas estremecem;
É por aqui que tantas almas descem
Ao divino e fremente sorvedouro.

É por aqui que passam meditando,
Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando,
Neste celeste, límpido caminh

Os seres virginais que vêm da Terra,
Ensangüentados da tremenda guerra,
Embebedados do sinistro vinho.

Campesinas

I

Camponesa, camponesa,
Ah! quem contigo vivesse
Dia e noite e amanhecesse
Ao sol da tua beleza.

Quem livre, na natureza,
Pelos campos se perdesse
E apenas em ti só cresse
E em nada mais, camponesa.

Quem contigo andasse à toa
Nas margens duma lagoa,
Por vergéis e por desertos,

Beijando-te o corpo airoso,
Tão fresco e tão perfumoso,
Cheirando a figos abertos.
II

De cabelos desmanchados,
Tu, teus olhos luminosos
Recordam-me uns saborosos
E raros frutos de prados.

Assim negros e quebrados,
Profundos, grandes, formosos,
Contêm fluidos vaporosos
São como campos mondados.

Quando soltas os cabelos
Repletos de pesadelos
E de perfumes de ervagens;

Teus olhos, flor das violetas,
Lembram certas uvas pretas
Metidas entre folhagens.
III

As papoulas da saúde
Trouxeram-te um ar mais novo,
Ó bela filha do povo,
Rosa aberta de virtude.

Do campo viçoso e rude
Regressas, como um renovo,
E eu ao ver-te, os olhos movo
De um modo que nunca pude.

Bravo ao campo e bravo a seara
Que deram-te a pele clara
São rubores de alvorada.

Que esses teus beijos agora
Tenham sabores de amora
E de romã estalada. IV
Através das romãzeiras
E dos pomares floridos
Ouvem-se as vezes ruídos
E bater d’asas ligeiras.

São as aves forasteiras
Que dos seus ninhos queridos
Vêm dar ali os gemidos
Das ilusões passageiras.

Vêm sonhar leves quimeras,
Idílios de primaveras,
Contar os risos e os males.

Vêm chorar um seio de ave
Perdida pela suave
Carícia verde dos vales.
V

De manhã tu vais ao gado
A cantar entre as giestas,
Com tuas graças modestas,
Correndo e saltando o prado.

E a veiga e o rio e o valado
Que todos dormem as sestas
Acordam-se ante as honestas
Canções desse peito amado.

As aves nos ares gozam,
Entre abraços se desposam,
No mais amoroso enlace.

E as abelhas matutinas
Que regressam das boninas
Voam, te em torno da face.
VI

As uvas pretas em- cachos
Dão agora nas latadas…
Que lindo tom de alvoradas
Na vinha, junto aos riachos.

Este ano arados e sachos
Deixaram terras lavradas,
À espera das inflamadas
Ondas do sol, como fachos.

Veio o sol e fecundou-as,
Deu-lhes vigor, enseivou-as,
Tornou-as férteis de amor.

Eis que as vinhas rebentaram
E as uvas amaduraram,
Sanguíneas, com sol na cor.
VII

Engrinaldada de rosas,
Surge a manhã pitoresca…
Que linda aquarela fresca
Nas veigas deliciosas!

Que bom gosto e perfumosas
Frutas traz, madrigalesca
A rapariga tudesca
Que vem das searas cheirosas!

Como os rios vão cantando,
Em sons de prata, ondulando,
Abaixo pelos marnéis!

Que carícia nas verduras,
Que vigor pelas culturas,
Que de ouro pelos vergéis!
VIII

Orgulho das raparigas,
Encanto ideal dos rapazes,
Acendes crenças vivazes
Com tuas belas cantigas.

No louro ondear das espigas,
Boca cheirosa a lilazes,
Carne em polpa de ananases
Lembras baladas antigas.

Tens uns tons enevoados
De castelos apagados
Nas eras medievais.

Falta-te o pajem na ameia
Dedilhando, a lua cheia,
O bandolim dos seus ais!
IX NO CAMPO SANTO

Morreste no campo um dia,
Como uma flor desprezada.
Clareava a madrugada
Azul, vaporosa e fria.

Sobre a agreste serrania,
Numa ermida branqueada
Por uma manhã doirada Um sino repercutia.

Teu caixão, de camponesas
E camponeses seguido,
Desceu abaixo às devesas.

Ganhou o atalho comprido
De casas em correntezas
E entrou num campo florido.

Campesinas ao ar livre

Tu trazes agora o peito
Como essas urnas sagradas,
Repleto de gargalhadas,
Sonoro, bom, satisfeito.

Por dentro cantam assombros
E causAs esplendorosas
Como latadas de rosas
Dos muros entre os escombros.

Quando o ideal nos alaga,
Embora as lutas do mundo,
Levanta-se um sol fecundo
Do peito em cada uma chaga.

Voltou-se a seiva de outrora,
De outro, mais forte e destro,
Iluminado maestro,
Das harmonias da aurora.

Fulgurem por isso as musas,
As belas musas, por isso…
Voltou-te o passado viço,
Foram-se as mágoas, confusas.

Agora, quando eu dirijo
Meus passos, à tua porta,
Sinto-te um bem que conforta,
Vejo-te alegre e mais rijo.
Porque afinal pela vida
Nem tudo se desmorona
Quando se vaga na zona
Da mocidade florida.

Gostas de ver pelos ramos
Das verdes árvores novas,
A chocalhar umas trovas,
Coleiros e gaturamos.

Já podes bem comer frutas,
Os teus simpáticos jambos,
E ouvir alguns ditirambos
Da natureza nas grutas.

Podes olhar as esferas,
Com ar direito e seguro,
De frente para o futuro,
De lado para as quimeras.

Não tenhas cofres avaros
De santos — na luz te afoga,
E a alma arremessa e joga
Por esses páramos claros.

Reúne os sonhos dispersos
Como andorinhas vivaces
E o colorido das faces
Ao coberto dos versos.

Como uns lábaros vermelhos,
Contente como os lilazes,
As crenças dos bons rapazes
Tem prismas como os espelhos.

Canção da formosura

Vinho de sol ideal canta e cintila
Nos teus olhos, cintila e aos lábios desce,
Desce a boca cheirosa e a empurpurece,
Cintila e canta após dentre a pupila.

Sobe, cantando, a limpidez tranqüila
Da tu’alma estrelada e resplandece,
Canta de novo e na doirada messe
Do teu amor, se perpetua e trila…

Canta e te alaga e se derrama e alaga…
Num rio de ouro, iriante, se propaga
Na tua carne alabastrina e pura.

Cintila e canta na canção das cores,
Na harmonia dos astros sonhadores,
A Canção imortal da Formosura!

Canção do bêbado

Na lama e na noite triste
Aquele bêbado ri!
Tu’alma velha onde existe?
Quem se recorda de ti?

Por onde andam teus gemidos,
Os teus noctâmbulos ais?
Entre os bêbados perdidos
Quem sabe do teu — jamais?

Por que é que ficas à lua
Contemplativo, a vagar?
Onde a tua noiva nua
Foi tão depressa a enterrar?

Que flores de graça doente
Tua fronte vem florir
Que ficas amargamente
Bêbado, bêbado a rir?

Que vês tu nessas jornadas?
Onde está o teu jardim
E o teu palácio de fadas,
Meu sonâmbulo arlequim?

De onde trazes essa bruma,
Toda essa névoa glacial
De flor de lânguida espuma,
Regada de óleo mortal?

Que soluço extravagante,
Que negro, soturno fel
Põe no teu ser doudejante
A confusão da Babel?

Ah! das lágrimas insanas
Que ao vinho misturas bem,
Que de visões sobre-humanas
Tu’alma e teus olhos tem!

Boca abismada de vinho,
Olhos de pranto a correr,
Bendito seja o carinho
Que já te faça morrer!

Sim! Bendita a cova estreita
Mais larga que o mundo vão,
Que possa conter direita
A noite do teu caixão!

Canção negra

Ó boca em tromba retorcida
Cuspindo injúrias para o Céu,
Aberta e pútrida ferida
Em tudo pondo igual labéu.

Ó boca em chamas, boca em chamas,
Da mais sinistra e negra voz,
Que clamas, clamas, clamas, clamas,
Num cataclismo estranho, atroz.

Ó boca em chagas, boca em chagas,
Somente anátemas a rir,
De tantas pragas, tantas pragas
Em catadupas a rugir.

Ó bocas de uivos e pedradas,
Visão histérica do Mal,
Cortando como mil facadas
Dum golpe só, transcendental.

Sublime boca sem pecado,
Cuspindo embora a lama e o pus,
Tudo a deixar transfigurado,
O lodo a transformar em luz.

Boca de ventos inclemente
De universais revoluções,
Alevantando as hostes quentes,
Os sanguinários batalhões.

Abençoada a canção velha
Que os lábios teus cantam assim
Na tua face que se engelha,
Da cor de lívido marfim.
Parece a furna do Castigo
Jorrando pragas na canção,
A tua boca de mendigo,
Tão tosco como o teu bordão.

Boca fatal de torvos trenos!
Da onipotência do bom Deus,
Louvados sejam tais venenos,
Purificantes como os teus!
Tudo precisa um ferro em brasa
Para este mundo transformar…

Nos teus Anátemas põe asa
E vai no mundo praguejar!
Ó boca ideal de rudes trovas,
Do mais sangrento resplendor,
Vai reflorir todas as covas,
O facho a erguer da luz do Amor.

Nas vãs misérias deste mundo
Dos exorcismos cospe o fel…
Que as tuas pragas rasguem fundo
O coração desta Babel.

Mendigo estranho! Em toda a parte
Vai com teus gritos, com teus ais,
Como o simbólico estandarte
Das tredas convulsões mortais!
Resume todos esses travos
Que a terra fazem languescer.

Das mãos e pés arranca os cravos
Das cruzes mil de cada Ser.

A terra é mãe! — mas ébria e louca
Tem germens bons e germens vis…
Bendita seja a negra boca
Que tão malditas coisas diz!

Cárcere das almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!
Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!

Carnal e místico

Pelas regiões tenuíssimas da bruma
Vagam as Virgens e as Estrelas raras…
Como que o leve aroma das searas
Todo o horizonte em derredor perfume.

N’uma evaporação de branca espuma
Vão diluindo as perspectives claras…
Com brilhos crus e fúlgidos de tiaras
As Estrelas apagam-se uma a uma.

E então, na treva, em místicas dormências
Desfila, com sidéreas lactescências,
Das Virgens o sonâmbulo cortejo…

Ó Formas vagas, nebulosidades!
Essência das eternas virgindades!
Ó intensas quimeras do Desejo…

Castela

Bela e mais encantadora Do que todas as belezas, Graça leve de pastora
Que canta pelas devesas.

Enleios de passarinho
E brilhos de primavera,
Com magnetismos de vinho
No olhar azul de quimera.

Feita de um jorro sadio
De auroras purpureadas
Carne mais fresca que um rio
De frescas águas prateadas.

Tudo é frio e tudo é raso
Para dizer-te a capricho
Que és magnólia para um vaso, Que és arcanjo para um
nicho.

És um mito da Alemanha Vivendo em montanha alpestre, No castelo da
montanha,
Como ardente flor silvestre.

E tens as pomas à farta Polposas, cheias de aromas. És assim
a loura Marta
Com abundância de pomas.

Esse príncipe que te ama, Cismando, trágico e grave, quando
o luar se derrama Cuida ouvir-te os vôos de ave.

Ele vive, airoso e belo, Como se vive num sonho, No seu nevoento castelo
Junto de um lago tristonho.

E através do pó flutuante
Do luar saudoso e vago Julga que és a garça errante Das águas
verdes do lago.

Caveira

I

Olhos que foram olhos, dois buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira…
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Caveira!
II

Nariz de linhas, correções audazes,
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!
III

Boca de dentes límpidos e finos,
De curve leve, original, ligeira,
Que é feito dos teus risos cristalinos?!
Caveira! Caveira!! Caveira!!!

Clamando

Bárbaros vãos, dementes e terríveis
Bonzos tremendos de ferrenho aspeto,
Ah! deste ser todo o clarão secreto
Jamais pôde inflamar-vos, Impassíveis!

Tantas guerras bizarras e incoercíveis
No tempo e tanto, tanto imenso afeto,
São para vós menos que um verme e inseto
Na corrente vital pouco sensíveis.

No entanto nessas guerras mais bizarras
De sol, clarins e rútilas fanfarras,
Nessas radiantes e profundas guerras…

As minhas carnes se dilaceraram
E vão, das llusões que flamejaram,
Com o próprio sangue fecundando as terras…

Clamor supremo

Vem comigo por estas cordilheiras!
põe teu manto e bordão e vem comigo,
atravessa as montanhas sobranceiras
e nada temas do mortal Perigo!

Sigamos para as guerras condoreiras!
Vem, resoluto, que eu irei contigo. Dentre
as águias e as chamas feiticeiras,
só tendo a Natureza por abrigo.

Rasga florestas, bebe o sangue todo
da Terra e transfigura em astros lodo, o
próprio lodo torna mais fecundo.

Basta trazer um coração perfeito,
alma de eleito, Sentimento eleito
para abalar de lado a lado o mundo!

Clarões apagados

Flor de planta aromática, sinistra, Nascida nas inóspitas geleiras,
Célebre flor que o meu Ideal registra, Trepadeira das raras trepadeiras.
Serpe nervosa entre as nervosas serpes, Carnívora bromélia da
luxúria
De gozo tetaniza como as herpes
Da tua boca a polpa atra e purpúrea.

O teu amor, que lembra vinhos de Hebe E essa áspera feição
do abeto fusco, Como um réptil que salta numa sebe, Saltou-me ao peito,
impetuoso e brusco.

Eu ia por estranhos descampados, Por extensos desertos impassíveis,
Na trágica visão dos naufragados
Perdidos entre os temporais terríveis.

Sem rumo certo, num sombrio inferno, Sozinho, sobre a desolada areia Arrastando
a existência, de onde, eterno Um sapo coaxa e um rouxinol gorjeia.

Quando tu de repente, então surgiste
Beleza das belezas redentoras, Tendo essa meiga formosura triste Das formosas
e flébeis pecadoras.

Fosse talvez uma tremenda insânia Tão alta erguer o meu amor,
tão alto; Mas este coração frio, da Ucrânia, Anelava
galgar o céu de um salto.

E fui, galguei, subi, voei na altura, Além dos verdes píncaros
do monte, Donde resplende a tua formosura
No clarão das estrelas do horizonte.

Foi o mesmo que se eu num templo entrasse
E aí num formidável sacrilégio, As angélicas vestes
arrancasse
Das santas de áureo diadema régio.

Como um leão sem juba e garra, preso, Na indiferença, já
morreu comigo
Todo esse amor profundamente aceso
Na ideal constelação de um sonho antigo.

Apenas pelo saara imorredouro
Do longínquo passado, ergue, altaneira, Majestosa folhagem no sol d’ouro,
Dessas recordações a alta palmeira…

Cogitação

Ah! mas então tudo será baldado?!
Tudo desfeito e tudo consumido?!
No Ergástulo d’ergástulos perdido
Tanto desejo e sonho soluçado?!

Tudo se abismará desesperado,
Do desespero do Viver batido,
Na convulsão de um único Gemido
Nas entranhas da Terra concentrado?!

nas espirais tremendas dos suspiros
A alma congelará nos grandes giros,
Ratejará e rugirá rolando?!

Ou entre estranhas sensações sombrias,
Melancolias e melancolias,
No eixo da alma de Hamlet irá girando?!

Colar de pérolas

Ao feliz consórcio dos estimáveis colegas, D. Jesuína
Leal e Francisco de Castro.

A F’licidade é um colar de pérolas,
Pérolas caras, de valor pujante,
Belas estrofes de Petrarca e Dante
Mais cintilantes que as manhãs mais cérulas.

Para que enfim esse colar bendito,
Perdure sempre, inteiramente egrégio,
Como uma tela do pintor Correggio,
Sem resvalar no lodaçal maldito:

Faz-se preciso umas paixões bem retas,
Cheias de uns tons de muito sol — completas…
Faz-se preciso que do amor na febre,

Nos grandes lances de vigor preclaro,
Desse colar esplendoroso e raro,
Nem uma pérola, uma só se quebre!…

Como fortes gargalhadas

Como Fortes Gargalhadas
Por Um Templo De Cristal,
Sonoramente Vibradas,
Como Fortes Gargalhadas,
Sinto Idéias Baralhadas
N’um Frágil Descomunal
Como Fortes Gargalhadas
Por Um Templo De Cristal.

Como um assombro de assombros

— Como um assombro de assombros
A rapariga — um rainúnculo,
Da serra pelos escombros
Como um assombro de assombros, Quando vê de enxada aos ombros O noivo
— lembra um carbúnculo, Como um assombro de assombros
A rapariga — um rainúnculo.

Como um cisne est’alma frisa

Como um cisne, est’alma frisa
O mar de luz de teus olhos, Ó simpática Adalziza
Como um cisne, est’alma frisa, Vagueia, paira, desliza
Sem naufragar nos escolhos
Como um cisne, est’alma frisa
O mar de luz de teus olhos.

Conciliação

Se essa angústia de amar te crucifica,
Não és da dor um simples fugitivo:
Ela marcou-te com o sinete vivo
Da sua estranha majestade rica.

És sempre o Assinalado ideal que fica
Sorrindo e contemplando o céu altivo;
Dos Compassivos és o compassivo,
Na Transfiguração que glorifica.

Nunca mais de tremer terás direito…
Da Natureza todo o Amor perfeito
Adorarás, venerarás contrito.

Ah! Basta encher, eternamente basta
Encher, encher toda esta Esfera vasta
Da convulsão do teu soluço aflito!

Condenação fatal

Ó mundo, que és o exílio dos exílios,
um monturo de fezes putrefato,
onde o ser mais gentil, mais timorato
dos seres vis circula nos concílios;

Onde de almas em pálidos idílios
o lânguido perfume mais ingrato
magoa tudo e é triste como o tato
de um cego embalde levantando os cílios;

Mundo de peste, de sangrenta fúria
e de flores leprosas da luxúria,
de flores negras, infernais, medonhas;

Oh! como são sinistramente feios
teus aspectos de fera, os teus meneios
pantéricos, ó Mundo, que não sonhas!

Consolo amargo

Mortos e mortos, tudo vai passando,
Tudo pelos abismos se sumindo…
Enquanto sobre a Terra ficam rindo
Uns, e já outros, pálidos, chorando…

Todos vão trêmulos finalizando,
Para os gelados túmulos partindo,
Descendo ao tremedal eterno, infindo,
Mortos e mortos, num sinistro bando.

Tudo passa espectral e doloroso,
Pulverulentamente nebuloso
Como num sonho, num fatal letargo…

Mas, de quem chora os mortos, entretanto,
O Esquecimento vem e enxuga o pranto,
E é esse apenas o consolo amargo!

Coração confiante

O coração que sente vai sozinho,
Arrebatado, sem pavor, sem medo…
Leva dentro de si raro segredo
Que lhe serve de guia no Caminho.

Vai no alvoroço, no celeste vinho
Da luz os bosques acordando cedo,
Quando de cada trêmulo arvoredo
Parte o sonoro e matinal carinho.

E o Coração vai nobre e vai confiante,
Festivo como a flâmula radiante
Agitada bizarra pelos ventos…

Vai palpitando, ardente, emocionado
O velho Coração arrebatado,
Prerso por loucos arrebatamentos!

Corpo

VII

Pompas e pompas, pompas soberanas
Majestade serene da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulência das púrpuras romanas.

As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplendem na arcangélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.

Cantam as infinitas nostalgias,
Os mistérios do Amor, melancolias,
Todo o perfume de eras apagadas…

E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas!

Crê

Vê como a Dor te transcendentaliza!
Mas no fundo da Dor crê nobremente.
Transfigura o teu ser na força crente
Que tudo torna belo e diviniza.

Que seja a Crença uma celeste brisa
Inflando as velas dos batéis do Oriente
Do teu Sonho supremo, onipotente,
Que nos astros do céu se cristaliza.

Tua alma e coração fiquem mais graves,
Iluminados por carinhos suaves,
Na doçura imortal sorrindo e crendo…

Oh! Crê! Toda a alma humana necessita
De uma Esfera de cânticos, bendita,
Para andar crendo e para andar gemendo!

Crianças negras

Em cada verso um coração pulsando,
Sóis flamejando em cada verso, e a rima
Cheia de pássaros azuis cantando,
Desenrolada como um céu por cima.

Trompas sonoras de tritões marinhos
Das ondas glaucas na amplidão sopradas
E a rumorosa música dos ninhos
Nos damascos reais das alvoradas.

Fulvos leões do altivo pensamento
Galgando da era a soberana rocha,
No espaço o outro leão do sol sangrento
Que como um cardo em fogo desabrocha.

A canção de cristal dos grandes rios
Sonorizando os florestais profundos,
A terra com seus cânticos sombrios,
O firmamento gerador de mundos.

Tudo, como panóplia sempre cheia
Das espadas dos aços rutilantes,
Eu quisera trazer preso à cadeia
De serenas estrofes triunfantes.

Preso à cadeia das estrofes que amam,
Que choram lágrimas de amor por tudo,
Que, como estrelas, vagas se derramam
Num sentimento doloroso e mudo.

Preso à cadeia das estrofes quentes
Como uma forja em labareda acesa,
Para cantar as épicas, frementes
Tragédias colossais da Natureza.

Para cantar a angústia das crianças!
Não das crianças de cor de oiro e rosa,
Mas dessas que o vergel das esperanças
Viram secar, na idade luminosa.

Das crianças que vêm da negra noite,
Dum leite de venenos e de treva,
Dentre os dantescos círculos do açoite,
Filhas malditas da desgraça de Eva.

E que ouvem pelos séculos afora
O carrilhão da morte que regela,
A ironia das aves rindo a aurora
E a boca aberta em uivos da procela.

Das crianças vergônteas dos escravos
Desamparadas, sobre o caos, à toa
E a cujo pranto, de mil peitos bravos,
A harpa das emoções palpita e soa.

Ó bronze feito carne e nervos, dentro
Do peito, como em jaulas soberanas,
Ó coração! és o supremo centro
Das avalanches das paixões humanas.

Como um clarim a gargalhada vibras,
Vibras também eternamente o pranto
E dentre o riso e o pranto te equilibras
De forma tal que a tudo dás encanto.
És tu que à piedade vens descendo.

Como quem desce do alto das estrelas
E a púrpura do amor vais estendendo
Sobre as crianças, para protegê-las.

És tu que cresces como o oceano, e cresces
Até encher a curva dos espaços
E que lá, coração, lá resplandeces
E todo te abres em maternos braços.

Te abres em largos braços protetores,
Em braços de carinho que as amparam,
A elas, crianças, tenebrosas flores,
Tórridas urzes que petrificaram.

As pequeninas, tristes criaturas
Ei-las, caminham por desertos vagos,
Sob o aguilhão de todas as torturas,
Na sede atroz de todos os afagos.

Vai, coração! na imensa cordilheira
Da Dor, florindo como um loiro fruto
Partindo toda a horrível gargalheira
Da chorosa falange cor do luto.

As crianças negras, vermes da matéria,
Colhidas do suplício a estranha rede,
Arranca-as do presídio da miséria
E com teu sangue mata-lhes a sede!

Cristais

Mais claro e fino do que as finas pratas
O som da tua voz deliciava…
Na dolência velada das sonatas
Como um perfume a tudo perfumava.

Era um som feito luz, eram volatas
Em lânguida espiral que iluminava,
Brancas sonoridades de cascatas…
Tanta harmonia melancolizava.

Filtros sutis de melodias, de ondas
De cantos volutuosos como rondas
De silfos leves, sensuais, lascivos…

Como que anseios invisíveis, mudos,
Da brancura das sedas e veludos,
Das virgindades, dos pudores vivos.

Cristo de bronze

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensangüentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.

Ó Cristos de altivez intemerata,
Ó Cristos de metais estrepitosos
Que gritam como os tigres venenosos
Do desejo carnal que enerva e mata.

Cristos de pedra, de madeira e barro…
Ó Cristo humano, estético, bizarro,
Amortalhado nas fatais injurias…

Na rija cruz aspérrima pregado
Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxúrias!…

Cruzada nova

Vamos saber das almas os segredos,
Os círculos patéticos da Vida,
Dar-lhes a luz do Amor compadecida
E defendê-las dos secretos medos.

Vamos fazer dos áridos rochedos
Manar a água lustral e apetecida,
Pelos ansiosos corações bebida
No silêncio e na sombra d’arvoredos.

Essas irmãs furtivas das estrelas,
Se não formos depressa defendê-las,
Morrerão sem encanto e sem carinho.

Paladinos da límpida Cruzada!
Conquistemos, sem lança e sem espada,
As almas que encontrarmos no Caminho.

Da bruma pelos países

Da bruma pelos países
Pelos países da bruma, Longe dos astros felizes, Da bruma pelos países,
Tu vais perdendo os matizes
Da luz e da glória em suma,
Da bruma pelos países,
Pelos países da bruma.

Da idéia nos mares jonios

Da Idéia Nos Mares Jônios
A Barca Das Tuas Cismas
Soprada Por Bons Favônios
Da Idéia Nos Mares Jônios,
Vai Livre Dos Maus Demônios,
Batida Da Luz Dos Prismas,
Da Idéia Nos Mares Jônios
A Barca Das Tuas Cismas.

Da lua aos raios prateados

Da Lua aos raios prateados
Que no horizonte se espargem,
Como fulguram os prados
Da lua aos raios prateados,
Há vagos silfos alados
Do rio azul pela margem
Da lua aos raios prateados
Que no horizonte se espargem.

Dança do ventre

Torva, febril, torcicolosamente,
Numa espiral de elétricos volteios,
Na cabeça, nos olhos e nos seios
Fluíam-lhe os venenos da serpente.

Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
Que convulsões, que lúbricos anseios,
Quanta volúpia e quantos bamboleios,
Que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
Como reptil abjecto sobre o lodo,
Espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
De um verme estranho, colossal, enorme,
Do demônio sangrento da luxúria!

Da senzala

De dentro da senzala escura e lamacenta
Aonde o infeliz
De lágrimas em fel, de ódio se alimenta
Tornando meretriz

A alma que ele tinha, ovante, imaculada
Alegre e sem rancor;
Porém que foi aos poucos sendo transformada
Aos vivos do estertor…

De dentro da senzala
Aonde o crime é rei, e a dor — crânios abala
Em ímpeto ferino;

Não pode sair, não,
Um homem de trabalho, um senso, uma razão…
e sim, um assassino!

De alma em alma

Tu andas de alma em alma errando, errando,
como de santuário em santuário.
És o secreto e místico templário
As almas, em silêncio, contemplando.

Não sei que de harpas há em ti vibrando,
que sons de peregrino estradivário
Que lembras reverências de sacrário
E de vozes celestes murmurando.

Mas sei que de alma em alma andas perdido
Atrás de um belo mundo indefinido
De silêncio, de Amor, de Maravilha.

Vai! Sonhador das nobres reverências!
A alma da Fé tem dessas florescências,
Mesmo da Morte ressuscita e brilha!

Decadentes

Richepin, Rollinat! gritos sangrentos
Da carne alvoroçada de desejos,
Mosto de risos, lágrimas e beijos,
Estertores de abutres famulentos.

Desesperado frêmito dos ventos,
De harpas, sutis, fantásticos harpejos,
Clarins de guerra, e cânticos e adejos
De aves — todos os vivos elementos.

Tudo flameja e nas estrofes canta,
Estruge, zune, em borbotões levanta
Noites, luares, fulgurantes dias.

Mas nessa ideal temperatura forte
Tudo isso é triste como a flor da morte
Que brota dentro das caveiras frias…

De claque casaca e luva

De claque, casaca e luva,
De luva, casaca e claque
Ao rendezvous da viúva,
De claque, casaca e luva,
Tu vais — arrostas a chuva
No macadam — plaque, plaque…
De claque, casaca e luva,
De luva, casaca e claque.

Deixai que minh’alma escassa

Deixai que a minh’alma escassa
De luz — aos astros emigre
Como gaivota que passa
Deixai que a minh’alma escassa
De amor — na plúmbea desgraça
De atrozes garras de tigre,
Deixai que a minh’alma escassa
De luz — aos astros emigre.

Demônios

A língua vil, ignívoma, purpúrea
dos pecados mortais bava e braveja,
com os seres impoluídos mercadeja,
mordendo-os fundo, injúria sobre injúria.

É um grito infernal de atroz luxúria,
dor de danados, dor de Caos que almeja.
A toda alma serena que viceja,
só fúria, fúria, fúria, fúria, fúria!

São pecados mortais feitos hirsutos
demônios maus que os venenosos frutos
morderam com volúpia de quem ama…

Vermes da Inveja, a lesma verde e oleosa,
anões da Dor torcida e cancerosa,
abortos de almas a sangrar na lama!

Desmoronamento

Dentro do coração, no côncavo do peito Choro a grande
ilusão do amor, desfalecida, Dentre o gozo feliz, nostálgico
da vida;
Já exangue, afinal, já morto, já desfeito.

Por visões que adorei num vago tempo incerto
Não sei por que razão avivo agora as mágoas,
Num pranto doloroso e triste, como as águas
Do mar grosso a bater sobre o costão deserto.

Tu, ó doce visão de perfumosas tranças,
Todo o meu puro e terno sentimento invades
E eu não sei o que fiz das minhas esperanças
Que de longe que vão parecem mais saudades.

Tudo o que houve em meu ser de compaixão e crença
Para sempre secou, secou já como um rio; Para sempre também
subi ao escombro frio Da dúvida mortal, avassalante, imensa.

Para sempre me achei sem bússola e sem rumo
No fundo de regiões estranhas e afastadas… As almas que eu amei,
vi mudas e apagadas,
Vi tudo se sumir numa espiral de fumo.

Bem depressa fiquei como um ermo remoto Como torvo areal sem plantas e sem
fontes, Donde apenas se vê rasgar a terra o broto
Do cardo retorcido e áspero dos montes.

Muitas vezes, porém, como entre os arvoredos
Onde juntas, no val, todas as aves cantam
No meio do rumor, de sombras e segredos,
Sinto dentro de mim que uns sonhos se levantam.

Borboleteio, a rir, por entre os sons e as flores, Como um pássaro
azul de uma plumagem linda E canto alegremente a canção dos
amores,
Que este peito viril sabe cantar ainda.

Lembro então corações que já me abandonaram,
Que eu senti palpitar, por sobre o meu pulsando, Que vão hoje através
das afeições chorando,
Que sofreram comigo e que comigo amaram.

Entretanto a minh’alma em vôo largo e ufano, De repente triunfal,
de súbito gloriosa,
Tem a pompa de sol, vermelha e luminosa,
Da púrpura esvoaçante e aberta de um romano.

E esse fulgor, que vem dos meus sonhos dispersos
Na névoa do passado, errantes e dolentes; Dá-me árdidos
corcéis fogosos e frementes Para atrelar, jungir ao carro destes versos.

Claramente recordo e penso nas estradas
Que percorri, que andei às ilusões, sozinho, Vendo que todo
o amor das virginais amadas, Tinha a mesma fatal embriaguez do vinho.

Quantos entes febris, que o amor embriaga e ofusca
Assim, durante a vida, ansiosamente exaustos, Não encontram, talvez,
dessas visões em busca, As Margaridas vãs dos ilusórios
Faustos!

Deusa serena

Espiritualizante Formosura
Gerada nas Estrelas impassíveis,
Deusa de formas bíblicas, flexíveis,
Dos eflúvios da graça e da ternura.

Açucena dos vales da Escritura,
Da alvura das magnólias marcessíveis,
Branca Via-Láctea das indefiníveis
Brancuras, fonte da imortal brancura.

Não veio, é certo, dos pauis da terra
Tanta beleza que o teu corpo encerra,
Tanta luz de luar e paz saudosa…

Vem das constelações, do Azul do Oriente,
Para triunfar maravilhosamente
Da beleza mortal e dolorosa!

Deus do mal

Espírito do Mal, ó deus perverso
Que tantas almas dúbias acalentas,
Veneno tentador na luz disperso
Que a própria luz e a própria sombra tentas.

Símbolo atroz das culpas do Universo,
Espelho fiel das convulsões violentas
Do gasto coração no lodo imerso
Das tormentas vulcânicas, sangrentas.

Toda a tua sinistra trajetória
Tem um brilho de lágrima ilusória,
As melodias mórbidas do Inferno…
És Mal, mas sendo Mal és soluçante,
Sem a graça divina e consolante,
Réprobo estranho do Perdão eterno!

Diante do mar

Para matar o letargo
Da vida, e o profundo tédio, Fui, em busca de remédio, Ao cais
arejado e largo.

E vi o mar formidando, Cheio de mastros e velas,
Ocultos clarins vibrando
Pela boca das procelas.

Vi tropéis e tropéis bruscos
De ondas revoltas e crespas
Com rijos ferrões de vespas
Ferreteando os ares fuscos.

Vi os límpidos navios
Jogados do mar incerto
Como seres erradios
Por inóspito deserto.

Vi tudo nublado, tudo, Céus e mares e horizontes; E sobre a linha
dos montes Cair o silêncio mudo.

E eu lembrei-me quando a aurora
Sobre aquelas esverdeadas
Águas jorrava sonora
A luz em puras golfadas.
Lembrei-me desses supremos
Dias acres de alegria
Na vaga loura e macia
As leves palmas dos remos.

Do resplendor das viagens
Num encanto matutino
A doçura das aragens,
Por sobre o mar cristalino.

A bicar as doces ilhas
De pedra, musgos e flores, Cheias de ervas e frescores E naturais maravilhas.

Que ela a tudo perfumasse
Como um rosal que floresce
Que tudo que nela houvesse
Resplandecesse e cantasse.

Ou ver na frente das casas, Dos vales e das colinas
Os pombos batendo as asas, Entre festões de boninas.

Ir a pesca alegre e fresca Por suavíssimos luares, Numa lua pitoresca,
Em cima dos salsos mares.

Quando flexível canoa
Vai deixando um vivo rastro, Fundo, aberto, feito de astro, Na vaga que brilha
e soa.

Quando na margem campestre
De rios indefinidos
Sente-se o aroma silvestre
Dos aloendros floridos.

Lembrei-me até das regatas
Numa hora deliciosa
De manhã cheirando a rosa, Toda de fúlgidas pratas.

D’embarcar, como um fidalgo, Para aventuras de caça,
Em companhia do galgo
Que é das caçadas a graça.

Ir d’espingarda e d’estilo,
Por madrugadas serenas,
Sem males, sem dor, sem penas,
Peito bizarro e tranqüilo.

Bater as aves no mato
Por entre arvoredos graves, Ou da beira de um regato
Ver saltar em bando as aves.

E da ventura nos jorros
Voltar da caça repleto
Vendo ao longe o rubro teto
Da casa e o verde dos morros.

Ou então ir como um duque
Nas praias de mais beleza Gozar na choça de estuque Uns olhos de camponesa.

Sentir do equóreo elemento, Sobre as serras verdejantes, Ruflantes
e sussurrantes
As ventarolas do vento.

Deixar o espírito, avaro De vida, saúde e força Disparar
— alada corça — Pelo azul radioso, claro.

Assim, talvez que o Nirvana Do tédio e letargo imenso Não fosse
uma dor humana,
Dentre um nevoeiro tão denso.

Diatribe

Dois Zoilos Mui Completos Deste Mundo,
Dois Zoilos Há Terríveis E Zelosos,
Que Estando Sem Fazer, Mui Ociosos
Só Tratam Dum Falar Nauseabundo.

Eu Sei Mui Bem Seus Nomes — Não Confundo
Com Esses Bem Sensatos, Talentosos,
Com Esses Lidadores Mui Briosos
Que Têm Estudo Imenso E Bem Profundo!
Mas Ah! Pra Que Tempo Hei-De Gastar
Com Quem Só Vive Imerso Na Caligem
D’inveja Torpe E Vil A Esbravejar!
Isto, Meus Amigos, É Impigem
Que Quanto Se Procura Mais Coçar
Tanto E Tanto Mais Só Dá Prurigem!

Dilacerações

Ó carnes que eu amei sangrentamente,
Ó volúpias letais e dolorosas,
Essências de heliotropos e de rosas
De essência morna, tropical, dolente…

Carnes virgens e tépidas do Oriente
Do Sonho e das Estrelas fabulosas,
Carnes acerbas e maravilhosas,
Tentadoras do sol intensamente…

Passai, dilaceradas pelos zeros,
Através dos profundos pesadelos
Que me apunhalam de mortais horrores…

Passai, passai, desfeitas em tormentos,
Em lágrimas, em prantos, em lamentos,
Em ais, em luto, em convulsões, em cores…

Dilema

Ao cons. Luís Alvares dos Santos
Vai-se acentuando,
Senhores da justiça — heróis da humanidade,
O verbo tricolor da confraternidade…

E quando, em breve, quando
Raiar o grande dia
Dos largos arrebóis — batendo o preconceito…
O dia da razão, da luz e do direito

— Solene trilogia —
Quando a escravatura
Surgir da negra treva — em ondas singulares
De luz serena e pura;

Quando um poder novo
Nas almas derramar os místicos luares,
Então seremos povo!

Dispersas avante

17 set. 1880
Ao distinto e talentoso jovem
José Arthur Boiteux

Avante, sempre nessa luz serena,
Empunha a pena, sem temor, com fé!…
Eleva as turbas as idéias d’oiro,
Que um tesouro tua fronte é!…

Eia, caminha nessa senda nobre
Na pátria pobre, no teu berço aqui!…
Prossegue altivo, sem parar, constante,
Faz-te gigante, diz depois: Venci!…

Imita os grandes, incansáveis vultos
Que lá sepultos no pó negro estão!…
Anda, romeiro dos vergéis divinos,
Mergulha em hinos a gentil razão!…

Eia, que sempre na brasílea história
De alta glória colherás o jus!…
O livro augusto do Porvir descerra,
Sê desta terra o precursor da luz!…

Divina

Eu não busco saber o inevitável
Das espirais da tua vi matéria.
Não quero cogitar da paz funérea
Que envolve todo o ser inconsolável.

Bem sei que no teu circulo maleável
De vida transitória e mágoa seria
Há manchas dessa orgânica miséria
Do mundo contingente , imponderável.

Mas o que eu amo no teu ser obscuro
E o evangélico mistério puro
Do sacrifício que te torna heroína.

São certos raios da tu’alma ansiosa
E certa luz misericordiosa,
E certa auréola que te fez divina!

Doente

As unhas perigosas da bronquite
Nas tuas carnes sensuais e moles
Não deixarão que o teu amor palpite
Nem que os olhares pelos astros roles.

É fatal a moléstia. Só permite
Que te acabes por fim e que te estioles,
Sem que em teu peito o coração se agite,
Sem que te animes, sem que te consoles.

Vai se extinguindo a polpa dessas faces…
Mas se ainda hoje em mim acreditasses,
Como no tempo virginal de outrora,

Tu curar-te-ias com pequeno esforço
Das serranias através do dorso,
Pela saúde dos vergéis afora.

Domus aurea

De bom amor e de bom fogo claro
uma casa feliz se acaricia…
basta-lhe luz e basta-lhe harmonia
para ela não ficar ao desamparo.

O Sentimento, quando é nobre e raro,
veste tudo de cândida poesia…
um bem celestial dele irradia,
um doce bem, que não é parco e avaro.

Um doce bem que se derrama em tudo,
um segredo imortal, risonho e mudo,
que nos leva debaixo da sua asa.

E os nossos olhos ficam rasos d’água
quando, rebentos de uma oculta mágoa,
são nossos filhos todo o céu da casa.

Dormindo

Pálida, bela, escultural, clorótica
Sobre o divã suavíssimo deitada,
Ela lembrava — a pálpebra cerrada —
Uma ilusão esplendida de ótica.

A peregrina carnação das formas,
— o sensual e límpido contorno,
Tinham esse quê de avérnico e de morno,
Davam a Zola as mais corretas normas!…

Ela dormia como a Vênus casta
E a negra coma aveludada e basta
Lhe resvalava sobre o doce flanco…

Enquanto o luar — pela janela aberta —
— como uma vaga exclamação — incerta
Entrava a flux — cascateado — branco!!…

Ebrios e cegos

Fim de tarde sombria.

Torvo e pressago todo o céu nevoento.

Densamente chovia.

Na estrada o lodo e pelo espaço o vento.

Monótonos gemidos
Do vento, mornos, lânguidos, sensíveis:
Plangentes ais perdidos
De solitários seres invisíveis…

Dois secretos mendigos
Vinham, bambos, os dois, de braço dado,
Como estranhos amigos
Que se houvessem nos tempos encontrado.

Parecia que a bruma
Crepuscular os envolvia, absortos
Numa visão, nalguma
Visão fatal de vivos ou de mortos.

E de ambos o andar lasso
Tinha talvez algum sonambulismo,
Como através do espaço
Duas sombras volteando num abismo.

Era tateante, vago
De ambos o andar, aquele andar tateante
De ondulação de lago,
Tardo, arrastado, trêmulo, oscilante.

E tardo, lento, tardo,
Mais tardo cada vez, mais vagaroso,
No torvo aspecto pardo
Da tarde, mais o andar era brumoso.

Bamboleando no lodo,
Como que juntos resvalando aéreos,
Todo o mistério, todo
Se desvendava desses dois mistérios:
Ambos ébrios e cegos,
No caos da embriaguez e da cegueira,
Vinham cruzando pegos
De braço dado, a sua vida inteira.

Ninguém diria, entanto,
O sentimento trágico, tremendo,
A convulsão de pranto
Que aquelas almas iam turvescendo.

Ninguém sabia, certos,
Quantos os desesperos mais agudos
Dos mendigos desertos,
Ébrios e cegos, caminhando mudos.

Ninguém lembrava as ânsias
Daqueles dois estados meio gêmeos,
Presos nas inconstâncias
De sofrimentos quase que boêmios.

Ninguém diria nunca,
Ébrios e cegos, todos dois tateando,
A que atroz espelunca
Tinham, sem vista, ido beber, bambeando.

Que negro álcool profundo
Turvou-lhes a cabeça e que sudário
Mais pesado que o mundo
Pôs-lhes nos olhos tal horror mortuário.

E em tudo, em tudo aquilo,
Naqueles sentimentos tão estranhos.

De tamanho sigilo,
Como esses entes vis eram tamanhos!
Que tão fundas cavernas,
Aquelas duas dores enjaularam,
Miseráveis e eternas
Nos horríveis destinos que as geraram.

Que medonho mar largo,
Sem lei, sem rumo, sem visão, sem norte,
Que absurdo tédio amargo
De almas que apostam duelar com a morte!
Nas suas naturezas,
Entre si tão opostas, tão diversas,
Monstruosas grandezas
Medravam, já unidas, já dispersas.

Onde a noite acabava
Da cegueira feral de atros espasmos,
A embriaguez começava
Rasgada de ridículos sarcasmos.

E bêbadas, sem vista,
Na mais que trovejante tempestade,
Caminhando a conquista
Do desdém das esmolas sem piedade,
Lá iam, juntas, bambas,
— acorrentadas convulsões atrozes –,
Ambas as vidas, ambas
Já meio alucinadas e ferozes.

E entre a chuva e entre a lama
E soluços e lágrimas secretas,
Presas na mesma trama,
Turvas, flutuavam, trêmulas, inquietas.

Mas ah! torpe matéria!
Se as atritassem, como pedras brutas,
Que chispas de miséria
Romperiam de tais almas corruptas!
Tão grande, tanta treva,
Tão terrível, tão trágica, tão triste,
Os sentidos subleva,
Cava outro horror, fora do horror que existe.

Pois do sinistro sonho
Da embriaguez e da cegueira enorme,
Erguia-se, medonho,
Da loucura o fantasma desconforme.

E estala a estrófe de fogo

Se estala a estrofe de fogo,
Se explose a estrofe do Bem,
Como o verbo demagogo
Se estala a estrofe de fogo,
Não ceda o espírito ao rogo
Do Mal que os erros contêm,
Se estala a estrofe de fogo,
Se explose a estrofe do Bem!

Embora eu não tenha louros

Embora eu não tenha louros
Como esses grandes heróis
E nem da idéia os tesouros,
Embora eu não tenha louros,
Talvez nos tempos vindouros
Traduza o poema dos sóis,
Embora eu não tenha louros
Como esses grandes heróis.

Em sonhos

Nos Santos óleos do luar, floria
Teu corpo ideal, com o resplendor da Helade…
E em toda a etérea, branda claridade
Como que erravam fluidos de harmonia…

As Águias imortais da Fantasia
Deram-te as asas e a serenidade
Para galgar, subir a Imensidade
Onde o clarão de tantos sóis radia.

Do espaço pelos límpidos velinos
Os Astros vieram claros, cristalinos,
Com chamas, vibrações, do alto, cantando…

Nos santos óleos do luar envolto
Teu corpo era o Astro nas esferas solto,
Mais Sóis e mais Estrelas fecundando!

Encarnação

Carnais, sejam carnais tantos desejos,
Carnais, sejam carnais tantos anseios,
Palpitações e frêmitos e enleios,
Das harpas da emoção tantos arpejos…

Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
A noite, ao luar, intumescer os seios
Lácteos, de finos e azulados veios
De virgindade, de pudor, de pejos…

Sejam carnais todos os sonhos brumos
De estranhos, vagos, estrelados rumos
Onde as Visões do amor dormem geladas…

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
Formem, com claridades e fragrâncias,
A encarnação das lívidas Amadas!

Enclausurada

Ó Monja dos estranhos sacrifícios,
Meu amor imortal, Ave de garras
E asas gloriosas, triunfais, bizarras,
Alquebradas ao peso dos cilícios.

Reclusa flor que os mais revéis flagícios
Abalaram com as trágicas fanfarras,
Quando em formas exóticas de jarras
Teu corpo tinha a embriaguez dos vícios.

Para onde foste, ó graça das mulheres,
Graça viçosa dos vergéis de Ceres
Sem que o meu pensamento te persiga?!

Por onde eternamente enclausuraste
Aquela ideal delicadeza de haste,
De esbelta e fina ateniense antiga?!

Enlevo

Da doçura da Noite, da doçura
De um tenro coração que vem sorrindo,
Seus segredos recônditos abrindo
Pela primeira vez, a luz mais pura.

Da doçura celeste, da ternura
De um Bem consolador que vai fugindo
Pelos extremos do horizonte infindo,
Deixando-nos somente a Desventura.

Da doçura inocente, imaculada
De uma carícia virginal da Infância,
Nessa de rosas fresca madrugada.

Era assim tua cândida fragrância,
Arcanjo ideal de auréola delicada,
Visão consoladora da Distância…

Enquanto este sangue ferve

Enquanto este sangue ferve
Com força, com toda a força,
Palpite a fibra da verve
Enquanto este sangue ferve
Esmague-se o que não serve
Na treva o Mal se contorça,
Enquanto este sangue ferve,
Com força, com toda a força.

Entre luz e sombra

Ao dia 7 de Setembro Libertas Lux Dei!!…

Surge enfim o grande astro Que se chama Liberdade!… Dos sec’los na imensidade
Eterno perdurará!…
Como as dulias matutinas Que reboam nas colinas, Nas selvas esmeraldinas
Em honra ao celso Tupá!…

Eram só cinéreas nuvens Os brasíleos horizontes! Curvadas
todas as frontes
Caminhavam no descrer! —
As brisas nem murmuravam… Os bosques nem soluçavam… Os peitos nem
se arroubavam…
— Estava tudo a morrer!…

De repente, o sol formoso Vai as nuvens esgarçando. As almas vão
palpitando, Cintilam magos clarões!… E o Índio fraco, indolente
Fazendo esforço potente
Dos pulsos quebra a corrente, Biparte os acres grilhões!…

Por terra tomba gemendo O vão, atroz servilismo… Rui a dobrez no
abismo… Eis a verdade de pé!…
Enfim!… exclama o silvedo
Enfim!… lá diz quase a medo
Selvagem, nu Aimoré!…

Assim, brasílea coorte, Falange excelsa de obreiros, Soberbos,.almos
luzeiros
De nossa gleba gentil, Quebrai os elos d’escravos Que vivem tristes,
ignavos, Formando delas uns bravos
— P’ra glória mais do Brasil!…

Lançai a luz nesses crânios Que vão nas trevas tombando
E ide assim preparando
Uns homens mais p’ro porvir! Fazei dos pobres aflitos
Sem crenças, lares, proscritos, Uns entes puros, benditos
Que saibam ver e sentir!…

Do carro azul do progresso
Fazei girar essa mola!
Prendei-os sim, — mas à escola
Matai-os sim, — mas na luz! E então tereis trabalhado
O negro abismo sondado
E em nossos ombros levado
Ao seu destino essa cruz!!…

Fazei do gládio alavanca
E tudo ireis derribando; Dormi, co’a pátria sonhando E tudo a
flux se erguerá!
E a funda treva cobarde
Sentindo homérico alarde, Embora mesmo que tarde Curvada assim fugirá!…

Enfim!… os vales soluçam Enfim!… os mares rebramam Enfim!… os
prados exclamam Já somos livre nação!!…
Quebrou-se a estátua de gesso… Enfim!… — mas não… estremeço,
Vacilo… caio, emudeço…
Enfim de tudo inda não!!…

Envelhecer

Flor de indolência, fina e melindrosa,
Cativante sereia da esperança,
Cedo tiveste a crença dolorosa
De quanto a vida é velha e como cansa…

Na lânguida, na morna morbideza
Do teu amargo e triste celibato,
Tu te fechaste para a Natureza
Como a lua no célico recato.

No fundo delicado dos teus seios
Foste esconder os sentimentos vagos,
E todos os dolentes devaneios
Das estrelas sonhando a flor dos lagos.

Todas as altas celas de ouro e prata
De teu claustro de Virgem sem afeto
Fecharam sobre tu’alma timorata
Austeras portas, com fragor secreto.

No entanto, havia no teu corpo ondeante
As delícias sutis de um céu fugace…

E era talvez o encanto mais picante
A graça aldeã do teu nariz rapace.

Teus olhos tinham certa magoa nobre
E certo fundo de doirado abismo
E a malícia que logo se descobre
Em olhos de felino narcotismo.

Mas na boca trazias todo o oculto
Toque sombrio de ironia grave…

E como que as belezas do teu vulto
Abriam asas peregrinas de ave.

Tinhas na boca esse elixir ardente
Da volúpia mortal dos gozos e essa
Chama de boca, feita unicamente
Para no gozo envelhecer depressa.

E envelheceste tanto, muito cedo,
Sumiu-se tão depressa o teu encanto,
Foi tão falaz o sedutor segredo
Do teu carnal e lânguido quebranto!
Envelheceste para os vãos idílios,
Para os estranhos estremecimentos,
Para os brilhos iriantes dos teus cílios
E para os sepulcrais esquecimentos.

Envelheceste para os vãos amores,
E para os olhos, para as mãos que abrias
Como dois talismãs de brancas flores
E de leves e doces harmonias…

Presa, sem ar, sem sol, crepusculada
No celibato que não tem perfume
De todo envelheceste abandonada,
Já como um ser que não provoca ciúme.

Envelhecer é reduzir a vida
A sentimentos de tristeza austera,
Enclausurá-la numa grave ermida
De luto e de silêncio sem quimera.

E envelhecer na juventude flórea,
Do celibato emurchecido lírio
E ficar sob os pálios da ilusória
Melancolia, como a luz de um círio…

Envelhecer assim, virgem e forte,
E cerrar contra o mundo a rósea porta
Do Amor e apenas esperar a Morte,
A alma já muda, há muito tempo morta.

Envelheces de tédio, de cansaço,
D’ilusões e de cismas e de penes,
Como envelhece no celeste espaço
O turbilhão das estrelas serenas.

O Amor os corações fez interditos
Ao teu magoado coração cativo
E apagou-te os sublimes infinitos
Do seu clarão fecundador e vivo.

Hoje envelheces na clausura imensa,
Dentro de um sonho pálido feneces.

Tua beleza veste névoa densa,
Em surdinas e sombras envelheces.

De pranto e luar, num desolado misto,
Cai a noite na tua puberdade
E como a Rediviva do Imprevisto,
Erras e sonhas pela Eternidade!

Escarnio perfumado

Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D’uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas — isso dói, me aflige…

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme…

Escravocratas

Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados — bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar — formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha — enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário —
Da branca consciência — o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido — audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!

Espasmos

Alma das gerações, alma lendária
que tens tanto de Hamlet, tanto de Ofélia, a
candidez da rórida camélia
e as lágrimas da Sede hereditária;

Alma dormente, tumultuosa, vária,
acorde de harpa misteriosa e célia,
virgindade selvagem de bromélia,
alma do Eleito, do Plebeu, do Pária;

És a chama do Amor, negro-vermelha,
de onde rompeu a fúlgida centelha
que a Flor de fogo fez gerar no Dante.

Com teus espasmos e delicadezas,
nervosas e secretas sutilezas,
enches todo este Abismo soluçante!

Espirito imortal

Espírito imortal que me fecundas
com a chama dos viris entusiasmos,
que transformas em gládios os sarcasmos
para punir as multidões profundas!

Ó alma que transbordas, que me inundas
de brilhos, de ecos, de emoções, de pasmos,
e fazes acordar de atros marasmos
minh’ alma, em tédios por charnecas fundas.

Força genial e sacrossanta e augusta,
divino Alerta para o Esquecimento,
voz companheira, carinhosa e justa.

Tens minha Mão, num doce movimento,
sobre essa Mão angélica e robusta,
espírito imortal do Sentimento!

Espirito mortal

Vê como a Dor te transcendentaliza!
Mas no fundo da Dor crê nobremente.
Transfigura o teu ser na força crente
Que tudo torna belo e diviniza.

Que seja a Crença uma celeste brisa
Inflando as velas dos batéis do Oriente
Do teu Sonho supremo, onipotente,
Que nos astros do céu se cristaliza.

Tua alma e coração fiquem mais graves,
Iluminados por carinhos suaves,
Na doçura imortal sorrindo e crendo…

Oh! Crê! Toda a alma humana necessita
De uma Esfera de cânticos, bendita,
Para andar crendo e para andar gemendo!

Esquecimento

Ó Estrelas tranqüilas, esquecidas
No seio das Esferas,
Velhos bilhões de lágrimas, de vidas,
Refulgentes Quimeras.

Astros que recordais infâncias de ouro,
Castidades serenas,
Irradiações de mágico tesouro,
Aromas de açucenas.

Rosas de luz do céu resplandecente
Ó Estrelas divinas,
Sereias brancas da região do Oriente
Ó Visões peregrinas!
Aves de ninhos de frouxéis de prata
Que cantais no Infinito
As Letras da Canção intemerata
Do Mistério bendito.

Turíbulos de graça e encantamento
Das sidérias umbelas,
Desvendai-me as Mansões do Esquecimento
Radiantes sentinelas.

Dizei que palidez de mortos lírios
Há por estas estradas
E se terminam todos os martírios
Nas brumas encantadas.

Se nessas brumas encantadas choram
Os anseios da Terra,
Se os lírios mortos que há por lá se auroram
De púrpuras de guerra.

Se as que há por cá titânicas cegueiras,
Atordoadas vitórias
Embebedam os seres nas poncheiras
E no gozo das glórias!
O céu é o berço das estrelas brancas
Que dormem de cansaço…

E das almas olímpicas e francas
O ridente regaço…

Só ele sabe, o claro céu tranqüilo
Dos grandes resplendores,
Qual é das almas o eternal sigilo,
Qual o cunho das cores.

Só ele sabe, o céu das quint’essências,
O Esquecimento ignoto
Que tudo envolve nas letais diluências
De um ocaso remoto…

O Esquecimento é flor, sutil, celeste,
De palidez risonha.

A alma das coisas languemente veste
De um véu, como quem sonha.

Tudo no esquecimento se adelgaça…

E nas zonas de tudo
Na candura de tudo, extremo, passa
Certo mistério mudo.

Como que o coração fica cantando
Porque, trêmulo, esquece,
Vivendo a vida de quem vai sonhando
E no sonho estremece…

Como que o coração fica sorrindo
De um modo grave e triste,
Languidamente a meditar, sentindo
Que o esquecimento existe.

Sentindo que um encanto etéreo e mago,
Mas um lívido encanto,
Põe nos semblantes um luar mais vago,
Enche tudo de pranto.

Que um concerto de suplicas de magoa,
De martírios secretos,
Vai os olhos tornando rasos d’água
E turvando os objetos…

Que um soluço cruel, desesperado
Na garganta rebenta…

Enquanto o Esquecimento alucinado
Move a sombra nevoenta!
O rio roxo e triste, Ó rio morto,
O rio roxo, amargo…

Rio de vãs melancolias de Horto
Caídas do céu largo!
Rio do esquecimento tenebroso,
Amargamente frio,
Amargamente sepulcral, lutuoso,
Amargamente rio!
Quanta dor nessas ondas que tu levas,
Nessas ondas que arrastas,
Quanto suplício nessas tuas trevas,
Quantas lágrimas castas!
Ó meu verso, ó meu verso, ó meu orgulho,
Meu tormento e meu vinho,
Minha sagrada embriaguez e arrulho
De aves formando ninho.

Verso que me acompanhas no Perigo
Como lança preclara,
Que este peito defende do inimigo
Por estrada tão rara!
O meu verso, ó meu verso soluçante,
Meu segredo e meu guia,
Tem dó de mim lá no supremo instante
Da suprema agonia.

Não te esqueças de mim, meu verso insano,
Meu verso solitário,
Minha terra, meu céu, meu vasto oceano,
Meu templo, meu sacrário.

Embora o esquecimento vão dissolva
Tudo, sempre, no mundo,
Verso! que ao menos o meu ser se envolva
No teu amor profundo!
Esquecer e andar entre destroços
Que além se multiplicam,
Sem reparar na lividez dos ossos
Nem nas cinzas que ficam…

É caminhar por entre pesadelos,
Sonâmbulo perfeito,
Coberto de nevoeiros e de gelos,
Com certa ânsia no peito.

Esquecer é não ter lágrimas puras,
Nem asas para beijos
Que voem procurando sepulturas
E queixas e desejos!
Esquecimento! eclipse de horas mortas.

Relógio mudo, incerto,
Casa vazia… de cerradas portas,
Grande vácuo, deserto.

Cinza que cai nas almas, que as consome,
Que apaga toda a flama,
Infinito crepúsculo sem nome,
Voz morta a voz que a chama.

Harpa da noite, irmã do Imponderável,
De sons langues e enfermos,
Que Deus com o seu mistério formidável
Faz calar pelos ermos.

Solidão de uma plaga extrema e nua,
Onde trágica e densa
Chora seus lírios virginais a lua
Lividamente imensa.

Silêncio dos silêncios sugestivos,
Grito sem eco, eterno
Sudário dos Azuis contemplativos,
Florescência do Inferno.

Esquecimento! Fluido estranho, de ânsias,
De negra majestade,
Soluço nebuloso das Distancias
Enchendo a Eternidade!

Estoure como champagne

Estoure como o champagne
O triolé — pule e salte
E como os gatos arranhe,
Estoure como o champagne
E a cara dos erros lanhe
E como o sol nunca falte…
Estoure como o champagne
O triolé — pule e salte.

Eternidade retrospectiva

Eu me recordo de já ter vivido,
mudo e só por olímpicas Esferas,
onde era tudo velhas primaveras
e tudo um vago aroma indefinido.

Fundas regiões do Pranto e do Gemido
onde as almas mais graves, mais austeras
erravam como trêmulas quimeras
num sentimento estranho e comovido.

As estrelas, longínquas e veladas,
recordavam violáceas madrugadas,
um clarão muito leve de saudade.

Eu me recordo d’imaginativos
luares liriais, contemplativos
por onde eu já vivi na Eternidade!

Eternos atalaias

Os sentimentos servem de atalaias
Para guiar as multidões errantes
Que caminham tremendo, vacilantes
Pelas desertas, infinitas praias…

Abrangendo da Terra as fundas raias,
Atingindo as esferas mais distantes,
São como incensos, mirras odorantes,
Miraculosas, fúlgidas alfaias.

Tudo em que logo transfiguram,
Encantam tudo,tudo em torno apuram,
Penetram, sem cessar, por toda parte.

Alma por alma em toda a parte enflamam.
E grandes, largos, imortais, derramam
As melancólicas estrelas d’Arte!

Evocação

Oh lua voluptuosa e tentadora,
ao mesmo tempo trágica e funesta,
Lua em fundo revolto de floresta
e de sonho de vaga embaladora;

Langue visão mortal e sedutora,
dos Vergéis siderais pálida giesta,
divindade sutil da morna sesta,
da lasciva paixão fascinadora;

Flor fria, flor algente, flor gelada
do desconsolo e dos esquecimentos
e do anseio, da febre atormentada;

Tu que soluças pelos céus nevoentos
longo soluço mágico de fada,
dá-me os teus doces acalentamentos!

Exortação

Corpo crivado de sangrentas chagas,
que atravessas o mundo soluçando,
que as carnes vais ferindo e vais rasgando
do fundo d’Ilusões velhas e vagas;

Grande isolado das terrestres plagas,
que vives as Esferas contemplando,
braços erguidos, olhar no ar, olhando
a etérea chama das Conquistas magas;

Se é de silêncio e sombra passageira,
de cinza, desengano e de poeira
este mundo feroz que te condena;

Embora ansiosamente, amargamente
revela tudo o que tu’alma sente,
para ela então poder ficar serena!

Êxtase búdico

Abre-me os braços, Solidão profunda,
reverência do céu, solenidade
dos astros, tenebrosa majestade,
ó planetária comunhão fecunda!

Óleo da noite, sacrossanto, inunda
todo o meu ser, dá-me essa castidade,
as azuis florescências da saudade,
Graças das Graças imortais oriunda!

As estrelas cativas no teu seio
dão-me um tocante e fugitivo enleio,
embalam-me na luz consoladora!

Abre-me os braços, Solidão radiante,
funda, fenomenal e soluçante,
larga e búdica Noite Redentora!

Feliz!

Ser de beleza, de melamcolia,
Espírito de graça e de quebranto,
Deus te bendiga o doloroso pranto,
Enxugue as tuas lágrimas um dia.

Se a tu’alma é d’estrela e d’harmonia,
Se o que vem dela tem divino encanto,
Deus a proteja no sagrado manto,
No céu, que é o vale azul da Nostalgia.

Deus a proteja na felicidade
Do sonho, do mistério, da saudade,
De cânticos, de aroma e luz ardente.

E sê feliz e sê feliz subindo,
Subindo, a Perfeição na alma sentindo
Florir e alvorecer libertamente!

Filetes

A J. L.

De cravos, de rosas,
De lírios, perfumes,
De beijos, ciúmes,
De coisas formosas;

De cantos suaves
De músicas, vinhos
De aromas, arminhos
Dos trinos das aves;

Das cismas radiadas,
De esperanças aladas
Por vagos escombros,

São feitos, são feitos
Teus olhos perfeitos,
Repletos de assombros.

Flôr-do-mar

És da origem do mar, vens do secreto,
Do estranho mar espumaroso e frio
Que põe rede de sonhos ao navio,
E o deixa balouçar, na vaga, inquieto.

Possuis do mar o deslumbrante afeto,
As dormências nervosas e o sombrio
E torvo aspecto aterrador, bravio
Das ondas no atro e proceloso aspecto.

Num fundo ideal de púrpuras e rosas
Surges das águas mucilaginosas
Como a lua entre a névoa dos espaços…

Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
Auroras, virgens musicas marinhas,
Acres aromas de algas e sargaços…

Floresce

Floresce, vive para a Natureza,
Para o Amor imortal, largo e profundo.
O Bem supremo de esquecer o mundo
Reside nessa límpida grandeza.
Floresce para a Fé, para a Beleza
Da Luz que é como um vasto mar sem fundo,
Amplo, inflamado, mágico, fecundo,
De ondas de resplendor e de pureza.

Andas em vão na Terra, apodrecendo
À toa pelas trevas, esquecendo
A Natureza e os seus aspectos calmos.
Diante da luz que a Natureza encerra
Andas a apodrecer por sobre a Terra,
Antes de apodrecer nos sete palmos!

Flores-da-lua

Brancuras imortais da Lua Nova
Frios de nostalgia e sonolência…
Sonhos brancos da Lua e viva essência
Dos fantasmas noctívagos da Cova.

Da noite a tarda e taciturna trova
Soluça, numa tremula dormência…
Na mais branda, mais leve florescência
Tudo em Visões e Imagens se renova.

Mistérios virginais dormem no Espaço,
Dormem o sono das profundas seivas,
Monótono, infinito, estranho e lasso…

E das Origens na luxúria forte
Abrem nos astros, nas sidéreas leivas
Flores amargas do palor da Morte.

Flores nirvanizadas

Ó cegos corações, surdos ouvidos,
Bocas inúteis, sem clamor, fechadas,
Almas para os mistérios apagadas,
Sem segredos, sem eco e sem gemidos.

Consciências hirsutas de bandidos,
Vesgas, nefandas e desmanteladas,
Portas de ferro, com furor trancadas,
Dos ócios maus histéricos Vencidos.

Desenterrai-vos das sangrentas furnas
Sinistras, cabalísticas, noturnas
Onde ruge o Pecado caudaloso…

Fazei da Dor, do triste Gozo humano,
A Flor do Sentimento soberano,
A Flor nirvanizada de outro Gozo!

Flor perigosa

Ah! quem, trêmulo e pálido, medita
No teu perfil de áspide triste, triste,
Não sabe em quanto abismo essa infinita
Tristeza amarga singular consiste.

Tens todo o encanto de uma flor, o encanto
Secreto de uma flor de vago aroma…

Mas não sei que de morno e de quebranto
Vem, lasso e langue, dessa negra coma.

És das origens mais desconhecidas,
De uma longínqua e nebulosa infância.

A visão das visões indefinidas,
De atra, sinistra mórbida elegância.

Como flor, entretanto, és bem amarga!
Pólens celestes o teu ser inundam,
Mas ninguém sabe a onda nervosa e larga
Dos insetos mortais que te circundam.

Quem teu aroma de mulher aspira
Fica entre ânsias de túmulo fechado…

Sente vertigens de vulcão, delira
E morre, sutilmente envenenado.

Teu olhar de fulgências e de treva,
Onde as volúpias a pecar se ajustam,
Guarda um mistério que envilece e eleva,
Causa delíquios e emoções que assustam.

És flor, mas como flor és perigosa,
Do mais sombrio e tétrico perigo…

Fenômenos fatais de luz ansiosa
Vão pelas noites segredar contigo.

Vão segredar que és feia e que és estranha
Sendo feia, mas sendo extravagante,
De enorme, de esquisita, de tamanha
Influência de eclipse radiante…

Sei! não nasceste sob a luz que ondeia
Na beleza e nos astros da saúde;
Mas sendo assim, morbidamente feia,
O teu ser feia torna-se virtude.

És feia e doente, surges desse misto,
Da exótica, da insana, da funesta
Auréola ideal dos martírios de Cristo
Naquela Dor absurdamente mesta.

Vens de lá, vens de 1á — fundos remotos
Adelgaçando como os véus de um rio…

Abrindo do magoado e velho lótus
Do sentimento, todo o sol doentio…

Mas quem quiser saber o quanto encerra
Teu ser, de mais profundo e mais nevoento,
Venha aspirar-te no teu vaso — a Terra —
Ó perigosa flor do esquecimento!

Foederis arca

Visão que a luz dos Astros louros trazes,
Papoula real tecida de neblinas
Leves, etéreas, vaporosas, finas,
Com aromas de lírios e lilazes.

Brancura virgem do cristal das frases,
Neve serene das regiões alpinas,
Willis juncal de mãos alabastrinas,
De fugitivas correções vivazes.

Floresces no meu Verso como o trigo,
O trigo de ouro dentre o sol floresce
E és a suprema Religião que eu sigo…

O Missal dos Missais, que resplandece,
A igreja soberana que eu bendigo
E onde murmuro a solitária prece!…

Fogos fatuos

Há certas almas vãs, galvanizadas
De emoção, de pureza, de bondade,
Que como toda a azul imensidade
Chegam a ser de súbito estreladas.

E ficam como que transfiguradas
Por momentos, na vaga suavidade
De quem se eleva com serenidade
Às risonhas, celestes madrugadas.

Mas nada às vezes nelas corresponde
Ao sonho e ninguém sabe mais por onde
Anda essa falsa e fugitiva chama…

É que no fundo, na secreta essência,
Essas almas de triste decadência
São lama sempre e sempre serão lama.

Fonte de amor

Trago-a à tua presença
Para que vejas a imensa
Mágoa atroz que a devorou.

E saibas, ó flor das flores, Que a fonte dos seus amores Eternamente
secou.

Foste à fonte buscar água
E tinha secado a fonte. Aí, flor azul do monte,
Tiveste a primeira mágoa.

Porém se uma alma na frágua Das dores sem horizonte Queres
ver, sentir defronte
Dos olhos, manda que eu trago-a.

Fremintos

I

Ó pombas luminosas
Que passais neste mundo eternamente Só a cantar os madrigais de rosas,
Atravessados de um luar veemente,
Inundados de estrelas e esplendores,
De carinhos, de bênçãos e de amores.
II

Ó virgens peregrinas,
De meigo olhar banhado de esperanças, Que perfumais com lírios
e boninas
A aurora de cristal das louras tranças,
Que atravessais constantemente a vida
Do sol eterno, da visão florida.
III

Amadas e felizes
Gêmeas da luz das frescas alvoradas, Vós que trazeis nas almas
as raízes
Do que é são, do que é puro — ó vós amadas
Prendas gentis do paternal tesouro, Iriados corações de fluidos
de ouro.
IV

É para vós que eu quero
Engrinaldar de tropos e de rimas, Num doce verso artístico e sincero,
Esgrimir com belíssimas esgrimas
A estrofe e dar-lhe os golpes mais seguros
Para que brilhe como uns astros puros.
V

É só a vós, apenas,
Que eu me dirijo, límpidas auroras, Que pelas tardes plácidas,
serenas,
Passais, galantes como ingênuas Floras,
Coroadas de flor de laranjeira,
Noivas, sorrindo à mocidade inteira.
VI

Porque é de vós que deve,
De vós que o sonho eterno dulcifica,
Partir o lume quando cai a neve, Surgir a crença poderosa e rica.
Porque afinal, o que se chama crença, Senão o amor e a caridade
imensa?
VII

Os tristes e os pequenos
Em quem descansam brandamente os olhos, Esses humildes, rotos Nazarenos
Que vivem, morrem suportando abrolhos,
Senão nos grandes entes piedosos
Que dão-lhes força aos transes dolorosos?
VIII

Oh, sim que a força eterna
Parte dos corpos rijos da saúde, Perante a lei da vida que governa,
O nobre, o rei, o proletário rude;
Parte dos seres fartos de carinhos
Como de paz e de alegria os ninhos.
IX

Eu peço para todos
E peço a vós que sois as fortalezas
Da esperança, da fé — a vós que os lodos
Da miséria, do vício, das baixezas, Não denegriram essas
consciências
Castas e brancas como as inocências.
X

Nem se esperar devia
Que eu tentasse bater a outras portas, Quando vós sois o exemplo de
Maria; Não andais mudas, regeladas, mortas
Pela noite voraz da sepultura
E escutareis os dramas da amargura.
XI

Não julgueis que eu vos peça,
Uma alvorada feita de um sorriso;
A minh’alma garante e vos confessa
Que se crê nas mansões do Paraíso,
É porque vós reinais por sobre a terra
E o Paraíso dentro em vós se encerra.
XII

A vós, a vós compete
A glória do dever — porque assim como
A luz do sol na lua se reflete,
Também das aflições no duro assomo, Da pobreza refletem-se
nas almas, Vossas imagens, como auroras calmas.
XIII

Portanto, a mocidade
Vossa, terá de ser de hoje em diante, Enquanto a esmagadora atrocidade
Da peste — nos vorar d’instante a instante, Quem se há-de encarregar
desta manobra Do galeão da vida que sossobra.
XIV

E para isso, ó rainhas
Da juventude — tendes as quermesses
Que dão bons frutos assim como as vinhas; As matinées de cânticos
e preces,
Os cintilantes, pródigos bazares
Onde a luz salta extravasando em mares.
XV

Enquanto a mim, na arena
Da heroicidade humana que consola, Oh, faz-me bem a vibração
da pena, Pelo amor, pelo afago, pela esmola,
Como um radiante e fulgido estilhaço
De sol febril no mármore do Espaço!

Fruto envelhecido

Do coração no envelhecido fruto é
só desolação e é só tortura. O
frio soluçante da amargura
envolve o coração num fundo luto.

O fantasma da Dor pérfido e astuto
caminha junto a toda a criatura.
A alma por mais feliz e por mais pura
tem de sofrer o esmagamento bruto.

É preciso humildade, é necessário
fazer do coração branco sacrário
e a hóstia elevar do Sentimento eterno.

Em tudo derramar o amor profundo,
derramar o perdão no caos do mundo,
sorrir ao céu e bendizer o Inferno!

Glória

Florescimentos e florescimentos!
Glória às estrelas, glória às aves, glória
À natureza! Que a minh’alma flórea
Em mais flores flori de sentimentos.

Glória ao Deus invisível dos nevoentos
Espaços! glória à lua merencória,
Glória à esfera dos sonhos, à ilusória
Esfera dos profundos pensamentos.

Glória ao céu, glória à terra, glória
ao mundo!
Todo o meu ser é roseiral fecundo
De grandes rosas de divino brilho.

Almas que floresceis no Amor eterno!
Vinde gozar comigo este falerno,
Esta emoção de ver nascer um filho!

Grande amor

Grande amor, grande amor, grande mistério
que as nossas almas trêmulas enlaça…
Céu que nos beija, céu que nos abraça
num abismo de luz profundo e sério.

Eterno espasmo de um desejo etéreo
e bálsamo dos bálsamos da graça,
chama secreta que nas almas passa
e deixa nelas um clarão sidéreo.

Cântico de anjos e de arcanjos vagos
junto às águas sonâmbulas de lagos,
sob as claras estrelas desprendido…

Selo perpétuo, puro e peregrino
que prende as almas num igual destino,
num beijo fecundado num gemido.

Grandeza oculta

Estes vão para as guerras inclementes,
Os absurdos heróiis sanguinolentos,
Alvoroçados, tontos e sedentos
Do clamor e dos ecos estridentes.

Aqueles para os frívolos e ardentes
Prazeres de acres inebriamentos:
Vinhos, mulheres, arrebatamentos
De luxúrias carnais, impenitentes.

Mas Tu, que na alma a imensidade fechas,
Que abriste com teu Gênio fundas brechas
no mundo vil onde a maldade exulta,

Ó delicado espírito de Lendas!
Fica nas tuas Graças estupendas,
No sentimento da grandeza oculta!

Grito de guerra

Aos senhores que libertam escravos
Bem! A palavra dentro em vós escrita
Em colossais e rubros caracteres,
É valorosa, pródiga, infinita,
Tem proporções de claros rosicleres.

Como uma chuva olímpica de estrelas
Todas as vidas livres, fulgurosas,
Resplandecendo, — vós tereis de vê-las
Rolar, rolar nas vastidões gloriosas.

Basta do escravo, ao suplicante rogo,
Subindo acima das etéreas gazas,
Do sol da idéia no escaldante fogo,
Queimar, queimar as rutilantes asas.

Queimar nas chamas luminosas, francas
Embora o grito da matéria apague-as;
Porque afinal as consciências brancas
São imponentes como as grandes águias.

Basta na forja, no arsenal da idéia,
Fundir a idéia que mais bela achardes,
Como uma enorme e fúlgida Odisséia
Da humanidade aos imortais alardes.

Quem como vós principiou na festa
Da liberdade vitoriosa e grande,
Há de sentir no coração a orquestra
Do amor que como um bom luar se expande.

Vamos! São horas de rasgar das frontes
Os véus sangrentos das fatais desgraças
E encher da luz dos vastos horizontes
Todos os tristes corações das raças…

A mocidade é uma falena de ouro,
Dela é que irrompe o sol do bem mais puro:
Vamos! Erguei vosso ideal tão louro
Para remir o universal futuro…

O pensamento é como o mar — rebenta,
Ferve, combate — herculeamente enorme
E como o mar na maior febre aumenta,
Trabalha, luta com furor — não dorme.

Abri portanto a agigantada leiva,
Quebrando a fundo os espectrais embargos,
Pois que entrareis, numa explosão de seiva,
Muito melhor nos panteões mais largos.

Vão desfilando como azuis coortes
De aves alegres nas esferas calmas,
Na atmosfera espiritual dos fortes,
Os aguerridos batalhões das almas.

Quem vai da sombra para a luz partindo
Quanta amargura foi talvez deixando
Pelas estradas da existência — rindo
Fora — mas dentro, que ilusões chorando.

Da treva o escuro e aprofundado abismo
Enchei, fartai de essenciais auroras,
E o americano e fértil organismo
De retumbantes vibrações sonoras.

Fecundos germens racionais produzam
Nessas cabeças, claridões de maios…

Cruzem-se em vós — como também se cruzam
Raios e raios na amplidão dos raios.

Os britadores sociais e rudes
Da luz vital às bélicas trombetas,
Hão de formar de todas as virtudes
As seculares, brônzeas picaretas.

Para que o mal nos antros se contorça
Ante o pensar que o sangue vos abala,
Para subir — é necessário — é força
Descer primeiro a noite da senzala.

Guilieta dionesi

(Desterro)
Ao seu violino

Ah! Giulietta! Os sons do teu violino
Choram, suspiram, rugem como o leão
Lembram sonoro rio cristalino
E tem soluços como um coração.

Ó da harmonia divinal sereia!
Rosas e estrelas e canções de ninhos Nas cordas do violino que
gorjeia Passam cantando como os passarinhos.

Não sei que estranho espírito sereno Para a harmonia essa alma
te inspirou Que dentro dum violino tão pequeno
A música do espaço concentrou!

Ah! peregrina do país do sonho Flor luminosa de região sonora,
No teu suave coração risonho
Vibram triunfantes os clarins da aurora.

Tudo dentro de ti gorjeia e trina, Como trina e gorjeia o rouxinol
Nas paisagens silvestres da campina, Aos esplendores siderais do sol.

Quem não há de chorar e rir não há de
De amor, de saudade e de esperança,
De assombro, vendo que na tenra idade
Já és tão grande, sendo uma criança?!

Os astros do cerúleo firmamento, As meigas flores, o infinito mar
Que digam como tu nesse instrumento
Sabes sorrir e sabes soluçar…

Domadora feliz do som profundo, Deusa imortal de ignotas harmonias, Vai triunfar
nas vastidões do mundo, Da glória nas eternas sinfonias.

Gusla de sadudade

A Santos Lostada
pela morte do seu velho pai.

Nunca mais, nunca mais esses teus olhos
Palpitarão nos olhos seus honestos
Nem hão de vê-lo em ânsias por escolhos.

Ele morreu, morreu — e os mais funestos
Lutos da dor feriram como abrolhos
Teu lar e os teus — serenos e modestos.

Que incalculável explosão de prantos
Não inundou as almas preciosas
Dos teus irmãos, da tua mãe — uns santos

Que peregrinam nestas lacrimosas
Sendas da vida, em mágoas, sem encantos
Como sem luz e sem orvalho as rosas.

Ah! formidável lei cruel da vida,
Lei da matéria, da mudez das lousas, Da eterna noite atroz, indefinida;

Tens o segredo intérmino das cousas, E nessa dura e tenebrosa lida,
Oh! nem sequer um dia só repousas.

Quem sabe, ó morte, ó lúgubre, quem sabe
O teu poder fatal, desapiedado
Onde se oculta e se resume e cabe.

Pois nem que o céu puríssimo, azulado
Cair aos pedaços, tombe e se desabe
Na profundez do abismo ilimitado

E a crença humana espavorida, em gritos, Palpando o nada, esquálida,
gemendo Rasgue a amplidão de estranhos infinitos,

Nunca da morte saberão o horrendo
Mistério rijo e surdo dos granitos
Os corações que vivem combatendo?!…

Não! A Ciência penetrou, o estudo Do pensador, abriu mais horizontes
Nesse problema silencioso e mudo.

O pensamento constelou as frontes, Deu a razão o mais brunido escudo
E construiu as luminosas pontes

De onde se vai, com grande olhar, seguro, Atravessar as regiões sonoras
Dos Ideais que irrompem do Futuro;

E sem contar dos séculos as horas,
E sem temer as mil visões do Escuro, Alegremente ao fresco das auroras.

Mas entretanto, ó meu amigo, escuta, Toda a saudade, a grande nostalgia
Nos deixa frios, mortos para a luta.
Porque, olha, a morte é sempre uma agonia!

Humildade secreta

Fico parado, em êxtase suspenso,
Às vezes, quando vou considerando
Na humildade simpática, no brando
Mistério simples do teu ser imenso.

Tudo o que aspiro, tudo quanto penso
D’estrelas que andam dentro em mim cantando,
Ah! tudo ao teu fenômeno vai dando
Um céu de azul mais carregado e denso.

De onde não sei tanta simplicidade,
Tanta secreta e límpida humildade
Vem ao teu ser como os encantos raros.

Nos teus olhos tu alma transparece…
E de tal sorte que o bom Deus parece
Viver sonhando nos teus olhos claros.

Idade mãe

Laborare
Dignus est operarius mercede sua.
(Af. Lat.)

Ergueis ousadamente o templo das idéias
Assim como uns heróis, por sobre os vossos ombros
E ides através de um negro mar d’escombros,
Traçando pelo ar as loiras epopéias.

A luz tem para vós os filtros magnéticos
Que andam pela flor e brincam pela estrela.
E vós amais a luz, gostais sempre de vê-la
Em amplo cintilar — nuns êxtases patéticos.

É esse o aspirar do séc’lo que deslumbra,
Que rasga da ciência a tétrica penumbra
E gera Vítor Hugo, Haeckel e Littré.

É esse o grande — Fiat — que rola no infinito!…
É esse o palpitar, homérico e bendito,
De todo o ser que vive, estuda, pensa e lê!!…

Imortal atitude

Abre os olhos à Vida e fica mudo!
Oh! Basta crer indefinidamente
Para ficar iluminado tudo
De uma luz imortal e transcendente.

Crer é sentir, como secreto escudo,
A alma risonha, lúcida, vidente…
E abandonar o sujo deus cornudo,
O sátiro da Carne impenitente.

Abandonar os lânguidos rugidos,
O infinito gemido dos gemidos
Que vai no lodo a carne chafurdando.

Erguer os olhos, levantar os braços
Para o eterno Silêncio dos Espaços
E no Silêncio emudecer olhando…

Imortal falerno

Quando as Esferas da Ilusão transponho
Vejo sempre tu’alma – essa galera
Feita das rosas brancas da Quimera,
Sempre a vagar no estranho mar do Sonho.

Nem aspecto nublado nem tristonho!
Sempre uma doce e constelada Esfera,
Sempre uma voz clamando: – espera, espera,
Lá do fundo de um céu sempre risonho.

Sempre uma voz dos Ermos, das Distâncias!
Sempre as longínquas, mágicas fragrâncias
De uma voz imortal, divina,pura…

E tua boca, Sonhador eterno,
Sempre sequiosa desse azul falerno
Da Esperança do céu que te procura!

Incensos

Dentre o chorar dos trêmulos violinos,
Por entre os sons dos órgãos soluçantes
Sobem nas catedrais os neblinantes
Incensos vagos, que recordam hinos…

Rolos d’incensos alvadios, finos
E transparentes, fulgidos, radiantes,
Que elevam-se aos espaços, ondulantes,
Em Quimeras e Sonhos diamantinos.

Relembrando turíbulos de prata
Incensos aromáticos desata
Teu corpo ebúrneo, de sedosos flancos.

Claros incensos imortais que exalam,
Que lânguidas e límpidas trescalam
As luas virgens dos teus seios brancos.

Inefável!

Nada há que me domine e que me vença
quando a minh’alma mudamente acorda…
Ela rebenta em flor, ela transborda
nos alvoroços da emoção imensa.

Sou como um Réu de celestial Sentença,
condenado do Amor, que se recorda
do Amor e sempre no Silêncio borda
d’estrelas todo o céu em que erra e pensa.

Claros, meus olhos tornam-se mais claros
e tudo vejo dos encantos raros
e de outras mais serenas madrugadas!

Todas as vozes que procuro e chamo
ouço-as dentro de mim, porque eu as amo
na minh’alma volteando arrebatadas!

Inês

Tem teu nome a estranha graça
De uma galga verde, estranha.

Certo langor te adelgaça,
Certo encanto te acompanha.

És velada, quebradiça
Como teu nome é velado.

Certa flor curiosa viça
No teu corpo edenizado.

Chamam-te a Inês dos quebrantos,
A galga verde, a felina,
Amaranto de amarantos,
Das franzinas a franzina.

Teus olhos, langues aquários
Adormentados de cisma,
Vivem mudos, solitários
Como uma treva que abisma.

Tua boca, vivo cravo
Sangüíneo, púrpuro, ardente,
De certa forma tem travo
Embora veladamente.

És lírio de velho outono,
Meiga Inês, e de tal sorte
Que já vives no abandono,
Meio enevoada da morte.

Teu beijo, do rosmaninho
Tem o sainete amargoso…
Lembra a saudade de um vinho
Secreto, mas venenoso.

Por um mistério indizível
Não te é dado amar na terra.

Vem de longe o Indefinível
Que os teus silêncios encerra!
Deus fechou-te a sete chaves
O coração lá no fundo…

Mas deu-te as asas das aves
Para irradiares no mundo.

Inexorável

Ó meu Amor, que já morreste,
Ó meu Amor, que morta estas!
Lá nessa cova a que desceste,
Ó meu Amor, que já morreste,
Ah! nunca mais floresceras?!

Ao teu esquálido esqueleto,
Que tinha outrora de uma flor
A graça e o encanto do amuleto;
Ao teu esquálido esqueleto
Não voltará novo esplendor?!

E ah! o teu crânio sem cabelos,
Sinistro, seco, estéril, nu…
(Belas madeixas dos meus zelos!)
E ah! o teu crânio sem cabelos
Há de ficar como estás tu?!

O teu nariz de asa redonda,
De linhas límpidas, sutis
Oh! há de ser na lama hedionda
O teu nariz de asa redonda
Comido pelos vermes vis?!

Os teus dois olhos — dois encantos —
De tudo, enfim, maravilhar,
Sacrário augusto dos teus prantos,
Os teus dois olhos — dois encantos —
Em dois buracos vão ficar?!

A tua boca perfumosa
O céu do néctar sensual
Tão casta, fresca e luminosa,
A tua boca perfumosa
Vai ter o cancro sepulcral?!

As tuas mãos de nívea seda,
De veias cândidas e azuis
Vão se extinguir na noite treda
As tuas mãos de nívea seda,
Lá nesses lúgubres pauis?!

As tuas tentadoras pomas
Cheias de um magnífico elixir
De quentes, cálidos aromas
As tuas tentadoras pomas
Ah! nunca mais hão de florir?!

A essência virgem da beleza,
O gesto, o andar, o sol da voz
Que Iluminava de pureza,
A essência virgem da beleza
Tudo acabou no horror atroz?!

Na funda treva dessa cova,
Na inexorável podridão
Já te apagaste, Estrela nova,
Na funda treva dessa cova
Na negra Transfiguração!

Invulnerável

Quando dos carnavais da raça humana
forem caindo as máscaras grotescas
e as atitudes mais funambulescas
se desfizerem no feroz Nirvana;

Quando tudo ruir na febre insana,
nas vertigens bizarras, pitorescas
de um mundo de emoções carnavalescas
que ri da Fé profunda e soberana;

Vendo passar a lúgubre, funérea
galeria sinistra da Miséria,
com as máscaras do rosto descolocadas,

Tu que és o deus, o deus invulnerável,
resiste a tudo e fica formidável,
no Silêncio das noites estreladas!

Ironia de lágrimas

Junto da Morte é que floresce a Vida!
Andamos rindo junto à sepultura.
A boca aberta, escancarada, escura
Da cova é como flor apodrecida.

A Morte lembra a estranha Margarida
Do nosso corpo, Fausto sem ventura…
Ela anda em torno a toda a criatura
Numa dança macabra indefinida.

Vem revestida em suas negras sedas
E a marteladas lúgubrees e tredas
Das ilusões o eterno esquife prega.

E adeus caminhos vãos, mundos risonhos,
Lá vem a loba que devora os sonhos,
Faminta, absconsa, imponderada, cega!

Ironia dos vermes

Eu imagino que és uma princesa
Morta na flor da castidade branca…
Que teu cortejo sepulcral arranca
Por tanta pompa espasmos de surpresa.

Que tu vais por um coche conduzida,
Por esquadrões flamívomos guardada,
Como carnal e virgem madrugada,
Bela das belas, sem mais sol, sem vida.

Que da Corte os luzidos Dignitários
Com seus aspectos marciais, bizarros,
Seguem-te após nos fagulhantes, carros
E a excelsa cauda dos cortejos vários.

Que a tropa toda forma nos caminhos
Por onde irás passar indiferente;
Que há no semblante vão de toda a gente
Curiosidades que parecem vinhos.

Que os potentes canhões roucos atroam
O espaço claro de uma tarde suave,
E que tu vais, Lírio dos lírios e ave
Do Amor, por entre os sons que te coroam.

Que nas flores, nas sedas, nos veludos,
E nos cristais do féretro radiante
Nos damascos do Oriente, na faiscante
Onda de tudo há longos prantos mudos.

Que do silêncio azul da imensidade,
Do perdão infinito dos Espaços
Tudo te dá os beijos e os abraços
Do seu adeus a tua Majestade.

Que de todas as coisas como Verbo
De saudades sem termo e de amargura,
Sai um adeus a tua formosura,
Num desolado sentimento acerbo.

Que o teu corpo de luz, teu corpo amado,
Envolto em finas e cheirosas vestes,
Sob o carinho das Mansões celestes
Ficará pela Morte encarcerado.

Que o teu séquito é tal, tal a coorte,
Tal o sol dos brasões, por toda a parte,
Que em vez da horrenda Morte suplantar-te
Crê-se que és tu que suplantaste a Morte.

Mas dos faustos mortais a regia trompa,
Os grandes ouropéis, a real Quermesse,
Ah! tudo, tudo proclamar parece
Que hás de afinal apodrecer com pompa.

Como que foram feitos de luxúria
E gozo ideal teus funerais luxuosos
Para que os vermes, pouco escrupulosos,
Não te devorem com plebéia fúria.

Para que eles ao menos vendo as belas
Magnificências do teu corpo exausto
Mordam-te com cuidados e cautelas
Para o teu corpo apodrecer com fausto.

Para que possa apodrecer nas frias
Geleiras sepulcrais d’esquecimentos,
Nos mais augustos apodrecimentos,
Entre constelações e pedrarias.

Mas ah! quanta ironia atroz, funérea,
Imaginária e cândida Princesa:
És igual a uma simples camponesa
Nos apodrecimentos da Matéria!

Joaquim gomes d’oliveira paiva

Por ocasião dos festejos em homenagem ao sexagésimo primeiro
aniversario natalício do eloqüentíssimo tribuno sagrado,
Joaquim
Gomes d’Oliveira Paiva.

Há vultos tamanhos que não
Cabendo no globo, vão quedos
Mas solenes, refugiar-se na campa.
D’aí embuçam-se n’um manto infinito De glórias?…

Minh’alma está agora penetrando
Lá na etérea plaga, cristalina!
Que música meu Deus febril, divina
Nos páramos azuis vai retumbando!

Além, d’áureo dossel se está rasgando Custosa,
de primor, esmeraldina Diáfana, sutil, longa cortina
Enquanto céus se vão duplando!

Em grande pedestal marmorizado
De Paiva se divisa o busto enorme
Soberbo como o sol, de luz croado

De um lado o porvir — Antheu disforme
Dos lábios faz soltar pujante brado
Hosanas! não morreu! apenas dorme.

Por ocasião da comemoração do sexagésimo primeiro
aniversario natalício do ilustre pregador catarinense
Joaquim Comes d’Oliveira
Paiva.

Rompeu-se o denso véu do atroz marasmo
E como por fatal, negro hebetismo
De antro sepulcral, de fundo abismo
O povo ressurgiu com entusiasmo!

O Zoilo mazorral se queda pasmo
Supõe quimera ser, ser cataclismo
Roga, já por dobrez, por ceticismo
De néscio, vil truão solta o sarcasmo.

Perdão, Filho da Luz, minh’alma exora,
Porém, a pátria diz, somente agora
Os grilhões biparti de atroz moleza!

E ele, o nosso herói já redivivo
De pé, sem se curvar, sereno, altivo
Co’as raias do porvir mede a grandeza!

Judia

Ah! Judia! Judia impenitente!
De erma e de turva região sombria
De areia fulva, bárbara, inclemente,
Numa desolação, chegaste um dia…

Través o céu mais tórrido, mais quente,
Onde a luz mais flamívoma radia,
A voz dos teus, nostálgica, plangente,
Vibrou, chorou, clamou por ti, Judia!

Ave de melancólicos mistérios,
Ruflaste as asas por Azuis sidérios,
Ébria dos vícios célebres que salvam…

Para alguns corações que ainda te buscam
És como os sóis que rútilos coruscam
E a torva terra do deserto escalvam!

Julieta dos santos

Tu passas rutilante em toda a parse
Oh! sol de nossa pátria, oh! sol da arte!…
(Virgílio Várzea)

Quando eu te vi pela primeira vez no palco
Avassalando as almas, N’um referver de palmas,
Cheia de vida e cândido lirismo!
Senti na mente uns divinais tremores… E louco e louco,
A pouco e pouco
Vi rebentar o inferno cataclismo!…

Mil pensamentos galoparam, céleres
Por minha fronte
E do horizonte
Quis arrancar os astros diamantinos, Para arrojá-los a teus pés
mimosos
E arrebatado, Fanatizado
Por entre um mar de cintilantes hinos!…

Esse teu busto, a genial cabeça
Tão bem talhada
E burilada
Com o escopro límpido da arte,
Tem umas puras fulgurações suaves
E a tu’alma
Ardente ou calma
Os corações arrasta por toda a parte!…

A encarnação tu és das maravilhas, A doce aurora,
Branda e sonora
Das teatrais e lucidas idéias!… Tens no olhar o filtro que arrebata
E és profética
E magnética,
Possuis na voz o som das melopéias!…

És a escolhida pare as grandes lutes
Esplendorosas
E majestosas!…
E sobre os débeis, delicados ombros, Bem como Homero a sua lira d’ouro,
Resplandecente,
Trazes pendente
O Infinito enorme dos assombros!…

Quando apareces tudo ri e chore,
Se endeusa, agita, Como que palpita
N’uma explosão de férvidos louvores!. E o potentado mais febril
da terra
Gagueja um bravo,
E faz-se escravo
O mais severo e nobre dos senhores!…

A Dejaset, uma Favart, Rachel,
O João Caetano
Como um arcano
Imperscrutável, hórrido, terrível!… Quebram as louças
sepulcrais e frias E te louvando
Vão reinando…
Dizem que é sonho, é mito, é impossível!

Oh! tu nasceste para suplantar, JULIETA Os grandes mundos,
Os mais profundos
D’ess’arte bela, magistral, divina!… E esse olhar tão expressivo
e terno Já eletriza
E cauteriza…
É como um raio que a corações fulmina!…

Que sol é este, vão bradando os pólos, Tão sobranceiro,
Que o brasileiro
O vasto império confundindo está?!… Venham teólogos,
venham sábios… todos Venham troianos,
Venham germanos,
Venham os vultos da Caldéia, lá!…

Oh! resolvei o mais atroz problema, Fundo mistério,
Alto, sidério
Do gênio altivo na criança, ali!… Vamos, natura, rasga o véu
dos medos, Dizei ó mares,
Falai luares,
Sombras dos bosques, respondei-me aqui!…
Astros da noite, tempestades, ventos
Erguei as vozes, Falai velozes
N’um som estranho, n’um clangor audaz!… E respondei-me e explicai
ao orbe
Se essa menina, Que nos fascina
É um fenômeno ou outro tanto mais!…

Tudo emudece na natura imensa
E desde os Andes, Dos cedros grandes
Ao verme, à pedra, às amplidões do mar!… Tudo se oculta
na invisível raia
No espaço a bruma, No mar a espuma
Vão-se esgarçando também, a se ocultar!…

Tudo emudece na natura imensa
Quando na cena
Surges serena
Como a visão das noites infantis!
Dos olhos vivos dos que são teus adeptos
Bem como prata
Eis se desata
A aluvião de lágrimas febris!…

É que tu tens esse poder superno
Real, sublime
Que até ao crime
Faz arrastar o mísero mortal!
É que tu és a embrionária horrível, Mística,
ingente
Que de repente
Fazes de um ser estúpido animal!…

Tudo emudece na natura imensa
Desde nos campos
Os pirilampos
Até as grimpas colossais do céu!… Tudo emudece e até
eu JULIETA, Já delirante
Vou vacilante
Cair-te aos pés como um servil, um réu!!…

Lésbia

Cróton selvagem, tinhorão lascivo,
Planta mortal, carnívora, sangrenta,
Da tua carne báquica rebenta
A vermelha explosão de um sangue vivo.

Nesse lábio mordente e convulsivo,
Ri, ri risadas de expressão violenta
O Amor, trágico e triste, e passe, lenta,
A morte, o espasmo gélido, aflitivo…

Lésbia nervosa, fascinante e doente,
Cruel e demoníaca serpente
Das flamejantes atracões do gozo.

Dos teus seios acídulos, amargos,
Fluem capros aromas e os letargos,
Os ópios de um luar tuberculoso…

Levantem esta bandeira

Levantem esta bandeira
Da posição de farrapo;
Da terra azul brasileira
Levantem esta bandeira
Que sente o horror da esterqueira
Da escravidão — negro sapo.
Levantem esta bandeira
Da posição de farrapo.

Lírio astral

Lírio astral, ó lírio branco
Ó lírio astral,
No meu derradeiro arranco
Sê cordial!

Perfuma de graça leve
O meu final
Com o doce perfume breve,
Ó lírio astral!

Dá-me esse óleo sacrossanto
Toda a caudal
Do óleo casto do teu pranto,
Ó lírio astral!

Traz-me o alivio dos alívios,
Ó virginal,
Ó lírio dos lírios níveos,
Ó Lírio astral!

Dentre as sonatas da lua
Celestial,
Lírio, vem, Lírio, flutua,
Ó Lírio astral!
Dos raios das noites de ouro,
Do Roseiral,
Do constelado tesouro,
Ó lírio astral!

Desprende o fino perfume
Etereal
E vem do celeste fume,
Ó lírio astral!

Da maviosa suavidade
Do céu floral
Traz a meiga claridade,
Ó lírio astral!

Que bendita e sempre pura
E divinal
Seja-me a tua frescura,
Ó lírio astral!

Que ela, enfim, me transfigure,
Na hora fatal
E os meus sentidos apure,
Ó lírio astral!

Que tudo que me é avaro
De luz vital,
Nessa hora se tome claro,
Ó lírio astral!

Que portas de astros, rasgadas
Num céu lirial,
Eu veja desassombradas,
Ó lírio astral!

Que eu possa, tranqüilo, vê-las,
Limpo do mal,
Essas mil portas de estrelas
Ó lírio astral!
E penetrar nelas, calmo,
Na paz mortal,
Como um davídico salmo,
O lírio astral!

Vento velho que soluça
Meu Sonho ideal,
No Infinito se debruça,
Ó lírio astral!

Por isso, lá, no Momento,
Na hora fetal,
Perfuma esse velho vento
Ó lírio astral!
Traz a graça do Infinito,
Graça imortal,
Ao velho Sonho proscrito,
Ó lírio astral!

Adoça-me o derradeiro
Sonho feral
O lírio do astral Cruzeiro
Ó lírio astral!
Se, o Lírio, ó doce Lírio
De luz boreal
Na morte o meu claro círio,
Ó lírio astral!

Perfuma, Lírio, perfume,
Na hora glacial,
Meu Sonho de Sol, de Bruma,
Ó lírio astral!
Que eu suba na tua essência
Sacramental
Para a excelsa Transcendência,
Ó lírio astral!

E lá, nas Messes divinas,
Paire, eternal,
Nas Esferas cristalinas,
Ó lírio astral!

Lírio lutuoso

Essência das essências delicadas,
meu perfumoso e tenebroso lírio,
oh! dá-me a glória de celeste Empíreo
da tu’alma nas sombras encantadas.

Subindo lento escadas por escadas,
nas espirais nervosas do Martírio,
das Ânsias, da Vertigem, do Delírio,
vou em busca de mágicas estradas.

Acompanha-me sempre o teu perfume,
lírio da Dor, que o Mal e o Bem resume,
estrela negra, tenebroso fruto.

Oh! dá-me a glória do teu ser nevoento
para que eu possa haurir o sentimento
das lágrimas acerbas do teu luto!

Litânia dos pobres

Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos.

São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.

São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.

São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.

As sombras das sombras mortas,
Cegos, a tatear nas portas.

Procurando o céu, aflitos
E varando o céu de gritos.

Faróis a noite apagados
Por ventos desesperados.

Inúteis, cansados braços
Pedindo amor aos Espaços.

Mãos inquietas, estendidas
Ao vão deserto das vidas.

Figuras que o Santo Ofício
Condena a feroz suplício.

Arcas soltas ao nevoento
Dilúvio do Esquecimento.

Perdidas na correnteza
Das culpas da Natureza.

Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!
Arrancadas amarguras
Do fundo das sepulturas.

Imagens dos deletérios,
Imponderáveis mistérios.

Bandeiras rotas, sem nome,
Das barricadas da fome.

Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.

Fantasmas vãos, sibilinos
Da caverna dos Destinos!
O pobres! o vosso bando
É tremendo, é formidando!
Ele já marcha crescendo,
O vosso bando tremendo…

Ele marcha por colinas,
Por montes e por campinas.

Nos areiais e nas serras
Em hostes como as de guerras.

Cerradas legiões estranhas
A subir, descer montanhas.

Como avalanches terríveis
Enchendo plagas incríveis.

Atravessa já os mares,
Com aspectos singulares.

Perde-se além nas distâncias
A caravana das ânsias.

Perde-se além na poeira,
Das Esferas na cegueira.

Vai enchendo o estranho mundo
Com o seu soluçar profundo.

Como torres formidandas
De torturas miserandas.

E de tal forma no imenso
Mundo ele se torna denso.

E de tal forma se arrasta
Por toda a região mais vasta.

E de tal forma um encanto
Secreto vos veste tanto.

E de tal forma já cresce
O bando, que em vós parece.

Ó Pobres de ocultas chagas
Lá das mais longínquas plagas!
Parece que em vós há sonho
E o vosso bando é risonho.

Que através das rotas vestes
Trazeis delícias celestes.

Que as vossas bocas, de um vinho
Prelibam todo o carinho…

Que os vossos olhos sombrios
Trazem raros amavios.

Que as vossas almas trevosas
Vêm cheias de odor das rosas.

De torpores, d’indolências
E graças e quint’essências.

Que já livres de martírios
Vêm festonadas de lírios.

Vem nimbadas de magia,
De morna melancolia!
Que essas flageladas almas
Reverdecem como palmas.

Balanceadas no letargo
Dos sopros que vem do largo…

Radiantes d’ilusionismos,
Segredos, orientalismos.

Que como em águas de lagos
Bóiam nelas cisnes vagos…

Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.

E a languidez fugitiva
De alguma esperança viva.

Que trazeis magos aspeitos
E o vosso bando é de eleitos.

Que vestes a pompa ardente
Do velho Sonho dolente.

Que por entre os estertores
Sois uns belos sonhadores.

Livre

Livre! Ser livre da materia escrava,
Arrancar os grilhões que nos flagelam
E livre, penetrar nos Dons que selam
A alma e lhe emprestam toda a etérea lava.

Livre da humana, da terrestre bava
Dos corações daninhos que regelam
Quando os nossos sentidos se rebelam
Contra a Infâmia bifronte que deprava.

Livre! bem livre para andar mais puro,
Mais junto à Natureza e mais seguro
Do seu amor, de todas as justiças.

Livre! para sentir a Natureza,
Para gozar, na universal Grandeza,
Fecundas e arcangélicas preguiças.

Luar de lágrimas

I

Nos estrelados, límpidos caminhos
Dos Céus, que um luar criva de prata e de ouro,
Abrem-se róseos e cheirosos ninhos,
E há muitas messes do bom trigo louro.

Os astros cantam meigas cavatinas,
E na frescura as almas claras gozam
Alvoradas eternal, cristalinas,
E os Dons supremos, divinais esposam.

Lá, a florescência dos Desejos
Tem sempre um novo e original perfume,
Tudo rejuvenesce dentre harpejos
E dentre palmas verdes se resume.

As próprias mocidades e as infâncias
Das coisas tem um esplendor infindo
E as imortalidades e as distancias
Estão sempre florindo e reflorindo.

Tudo aÍ se consola e transfigura
Num Relicário de viver perfeito,
E em cada uma alma peregrina e pura
Alvora o sentimento mais eleito.

Tudo aí vive e sonha o imaculado
Sonho esquisito e azul das quint’essências,
Tudo é sutil e cândido, estrelado,
Embalsamado de eternais essências.

Lá as Horas são águias, voam, voam
Com grandes asas resplandecedoras…

E harpas augustas finamente soam
As Aleluias glorificadoras.

Forasteiros de todos os matizes
Sentem ali felicidades castas
E os que essas libações gozam felizes
Deixam da terra as vastidões nefastas.

Anjos excelsos e contemplativos,
Soberbos e solenes, soberanos,
Com aspectos grandíloquos, altivos,
Sonham sorrindo, angelicais e ufanos.

Lá não existe a convulsão da Vida
Nem os tremendos, trágicos abrolhos.

Há por tudo a doçura indefinida
Dos azuis melancólicos de uns olhos.

Véus brancos de Visões resplandecentes
Miraculosamente se adelgaçam…

E recordando essas Visões diluentes
Dolências beethovínicas perpassam.

Há magos e arcangélicos poderes
Para que as existências se transformem…

E os mais egrégios e completos seres
Sonos sagrados, impolutos dormem…

E lá que vagam, que plangentes erram,
Lá que devem vagar, decerto, flóreas,
Puras, as Almas que eu perdi, que encerram
O meu Amor nas Urnas ilusórias.

Hosanas de perdão e de bondade
De celestial misericórdia santa
Abençoam toda essa claridade
Que na harmonia das Esferas canta.

Preces ardentes como ardentes sarças
Sobem no meio das divinas messes.

Lembra o vôo das pombas e das garças
A leve ondulação de tantas preces.

E quem penetra nesse ideal Domínio,
Por entre os raios das estrelas belas,
Todo o celeste e singular escrínio,
Todo o escrínio das lágrimas vê nelas.

E absorto, penetrando os Céus tão calmos,
Céus de constelações que maravilham,
Não sabe, acaso, se com os brilhos almos,
São estrelas ou lágrimas que brilham.

Mas ah! das Almas esse azul letargo,
Esse eterno, imortal Isolamento,
Tudo se envolve num luar amargo
De Saudade, de Dor, de Esquecimento!
Tudo se envolve nas neblinas densas
De outras recordações, de outras lembranças,
No doce luar das lágrimas imensas
Das mais inconsoláveis esperanças.
II

Ó mortos meus, ó desabados mortos!
Chego de viajar todos os portos.

Volto de ver inóspitas paragens,
As mais profundas regiões selvagens.

Andei errando por funestas tendas
Onde das almas escutei as lendas.

E tornei a voltar por uma estrada
Erma, na solidão, abandonada.

Caminhos maus, atalhos infinitos
Por onde só ouvi ânsias e gritos.

por toda a parte a rir o incêndio e a peste
Debaixo da Ilusão do Azul celeste.

Era também luar, luar lutuoso
Pelas estradas onde errei saudoso…

Era também luar, o luar das penas,
Brando luar das Ilusões terrenas.

Era um luar de triste morbideza
Amortalhando toda a natureza.

E eu em vão busquei, Mortos queridos,
Por entre os meus tristíssimos gemidos.

Em vão pedi os filtros dos segredos
Da vossa morte, a voz dos arvoredos.

Em vão fui perguntar ao Mar que e cego
A lei do Mar do Sonho onde navego.

Ao Mar que e cego, que não vê quem morre
Nas suas ondas, onde o sol escorre…

Em vão fui perguntar ao Mar antigo
Qual era o vosso desolado abrigo.

Em vão vos procurei cheio de chagas,
Por estradas insólitas e vagas.

Em vão andei mil noites por desertos,
Com passos, espectrais, dúbios, incertos.

Em vão clamei pelo luar a fora,
Pelos ocasos, pelo albor da aurora.

Em vão corri nos areiais terríveis
E por curvas de montes impassíveis.

Só um luar, só um luar de morte
Vagava igual a mim, com a mesma sorte.

Só um luar sempre calado e dútil,
Para a minha aflição, acerbo e inútil.

Um luar de silêncio formidável
Sempre me acompanhando, impenetrável.

Só um luar de mortos e de mortas
Para sempre a fechar-me as vossas portas.

E eu, já purgado dos terrestres
Crimes, Sem achar nunca essas portas sublimes.

Sempre fechado a chave de mistério
O vosso exílio pelo Azul sidéreo.

Só um luar de trêmulos martírios
A iluminar-me com clarões de círios.

Só um luar de desespero horrendo
Ah! sempre me pungindo e me vencendo.

Só um luar de lágrimas sem termos
Sempre me perseguindo pelos ermos.

E eu caminhando cheio de abandono
Sem atingir o vosso claro trono.

Sozinho para longe caminhando
Sem o vosso carinho venerando.

Percorrendo o deserto mais sombrio
E de abandono a tiritar de frio…

Ó Sombras meigas, ó Refúgios ternos
Ah! como penetrei tantos Infernos!
Como eu desci sem vós negras escarpas,
A Almas do meu ser, Ó Almas de harpas!
Como senti todo esse abismo ignaro
Sem nenhuma de vós por meu amparo.

Sem a benção gozar, serena e doce,
Que o vosso Ser aos meus cuidados trouxe.

Sem ter ao pe de mim o astral cruzeiro
Do vosso grande amor alvissareiro.

Por isso, ó sombras, sombras impolutas,
Eu ando a perguntar as formas brutas.

E ao vento e ao mar e aos temporais que ululam
Onde é que esses perfis se crepusculam.

Caminho, a perguntar, em vão, a tudo,
E só vejo um luar soturno e mudo.

Só contemplo um luar de sacrifícios,
De angústias, de tormentas, de cilícios.

E sem ninguém, ninguém que me responda
Tudo a minh’alma nos abismos sonda.

Tudo, sedenta, quer saber, sedenta
Na febre da Ilusão que mais aumenta.

Tudo, mas tudo quer saber, não cessa
De perscrutar e a perscrutar começa.

De novo sobe e desce escadarias
D’estrelas, de mistérios, de harmonias.

Sobe e não cansa, sobe sempre, austera,
Pelas escadarias da Quimera.

Volta, circula, abrindo as asas volta
E os vôos de águia nas Estrelas solta.

Cada vez mais os vôos no alto apruma
Para as etéreas amplidões da Bruma.

E tanta forca na ascensão desprende
Da envergadura, a proporção que ascende…

Tamanho impulso, colossal, tamanho
Ganha na Altura, no Esplendor estranho.

Tanto os esforços em subir concentra,
Em tantas zonas de Prodígios entra.

Nas duas asas tal vigor supremo
Leva, através de todo o Azul extremo,
Que parece cem águias de atras garras
Com asas gigantescas e bizarras.

Cem águias soberanas, poderosas
Levantando as cabeças fabulosas.

E voa, voa, voa, voa imersa
Na grande luz dos Paramos dispersa.

E voa, voa, voa, voa, voa
Nas Esferas sem fim perdida a toa.

Ate que exausta da fadiga e sonho
Nessa vertigem, nesse errar medonho.

Ate que tonta de abranger Espaços,
Da Luz nos fulgidíssimos abraços.

Depois de voar a tão sutis Encantos,
Vendo que as Ilusões a abandonaram,
Chora o luar das lágrimas, os prantos
Que pelos Astros se cristalizaram!

Lubricidade

Quisera ser a serpe venenosa
Que dá-te medo e dá-te pesadelos
Para envolverem, ó Flor maravilhosa,
Nos flavos turbilhões dos teus cabelos.

Quisera ser a serpe veludosa
Para, enroscada em múltiplos novelos,
Saltar-te aos seios de fluidez cheirosa
E babujá-los e depois mordê-los…

Talvez que o sangue impuro e flamejante
Do teu lânguido corpo de bacante,
Da langue ondulação de águas do Reno

Estranhamente se purificasse…
Pois que um veneno de áspide vorace
Deve ser morto com igual veneno…

Luz da natureza

Luz que eu adoro, grande Luz que eu amo,
Movimento vital da Natureza,
Ensina-me os segredos da Beleza
E de todas as vozes por quem chamo.

Mostra-me a Raça, o peregrino Ramo
Dos Fortes e dos Justos da Grandeza,
Ilumina e suaviza esta rudeza
Da vida humana, onde combato e clamo.

Desta minh’alma a solidão de prantos
Cerca com os teus leões de brava crença,
Defende com so teus gládios sacrossantos.

Dá-me enlevos, deslumbra-me, da imensa
Porta esferal, dos constelados mantos
Onde a Fé do meu Sonho se condensa!

Luz dolorosa

Fulgem da Luz os Viáticos serenos,
Brancas Extrema-Unções dos hostiários:
As Estrelas dos límpidos Sacrários
A nívea Lua sobre a paz dos fenos.

Há prelúdios e cânticos e trenos
Tristes, nos ares ermos, solitários…
E nos brilhos da Luz, vagos e vários,
Há dor, há luto, há convulsões, venenos…

Estranhas sensações maravilhosas
Percorrem pelos cálices das rosas,
Sensações sepulcrais de larvas frias…

Como que ocultas áspides flexíveis
Mordem da Luz os germens invisíveis
Com o tóxico das cóleras sombrias…

Madona da tristeza

Quando te escuto e te olho reverente
E sinto a tua graça triste e bela
De ave medrosa, tímida, singela,
Fico a cismar enternecidamente.

Tua voz, teu olhar, teu ar dolente
Toda a delicadeza ideal revela
E de sonhos e lágrimas estrela
O meu ser comovido e penitente.

Com que mágoa te adoro e te contemplo,
Ó da Piedade soberano exemplo,
Flor divina e secreta da Beleza.

Os meus soluços enchem os espaços
Quando te aperto nos estreitos braços,
solitária madona da Tristeza!

Mãe e filho

Às mães desamparadas

Jesus, meu filho, o encanto das crianças,
Quando na cruz, de angustia espedaçado,
Em sangue casto e límpido banhado,
Manso, tão manso como as pombas mansas;

Embora as duras e afiadas lanças
Com que os judeus, tinham, de lado a lado,
Seu coração puríssimo varado,
Inda no olhar raiavam-lhe esperanças.

Por isso, ó filho, ó meu amor — se a esmola
De algum conforto essencial não rola
Por nós — é forca conduzir a cruz!…

Mas, volta ó filho, pesaroso e triste.
Se a nossa vida só na dor consiste,
Ah! minha mãe, por que morreu Jesus?…

Majestade caída

Esse cornóide deus funambulesco
Em torno ao qual as Potestades rugem,
Lembra os trovões, que tétricos estrugem,
No riso alvar de truão carnavalesco.

De ironias o momo picaresco
Abre-lhe a boca e uns dentes de ferrugem,
Verdes gengivas de ácida salsugem
Mostra e parece um Sátiro dantesco.

Mas ninguém nota as cóleras horríveis,
Os chascos, os sarcasmos impassíveis
Dessa estranha e tremenda Majestade.

Do torvo deus hediondo, atroz, nefando,
Senil, que embora, rindo, está chorando
Os Noivados em flor da Mocidade!

Maõs

V

Ó Mãos ebúrneas, Mãos de claros veios,
Esquisitas tulipas delicadas,
Lânguidas Mãos sutis e abandonadas,
Finas e brancas, no esplendor dos seios.

Mãos etéricas, diáfanas, de enleios,
De eflúvios e de graças perfumadas,
Relíquias imortais de eras sagradas
De amigos templos de relíquias cheios.

Mãos onde vagam todos os segredos,
Onde dos ciúmes tenebrosos, tredos,
Circula o sangue apaixonado e forte.

Mãos que eu amei, no féretro medonho
Frias, já murchas, na fluidez do Sonho,
Nos mistérios simbólicos da Morte!

Marche aux flambeaux

I

Rompe na aurora o sol que a terra esbofeteia
Com látegos de chama, iriando o pó e a areia,
Iriando os vegetais de ricas pedrarias,
Dos rubis e cristais das ourivesarias;
Aurora acesa em cor de púrpura de cravos
Opulentos, febris, ensanguinados, bravos;
De ritmos leves de harpa e frêmitos e beijos
Que são da natureza os trêmulos arpejos;
Aurora que sorri, que traz pomposamente
Todo o raro esplendor da luz resplandecente,
Das paisagens louçãs no fúlgido matiz
O aroma a derramar da meiga flor de lis.

Na alegria dos tons os pássaros cantando
Vão as asas abrindo, entre os clarões ruflando,
Asas emocionais, que assim dentre clarões
Palpitam num fervor de alados corações.

E no luxo oriental de etéreo Grão-Mogol
Como um Baco feliz rubro flameja o sol.
II

Filósofos titãs, filósofos insanos
Que destes turbilhões, que destes oceanos
De lutas e paixões, de sonho e pensamentos
Espalhastes no mundo aos clamorosos ventos
A Ciência fatal, talvez como um veneno,
Que os tempos abalou no caminhar sereno;
Filósofos titãs, que os séculos austeros
No flanco da Matéria abris, graves, severos,
Sobre o escombro da fé, da crença e da esperança,
Da civilização o trilho que hoje alcança
No seu aço viril as regiões supremas,
Traçado em novas leis, doutrinas e problemas;
Vós que sois no Saber os monges da existência
E só acreditais na força da Ciência,
Que da morte sabeis os filtros invisíveis,
Narcóticos, sutis, incógnitos, terríveis,
Não sabeis, entretanto, apóstolos sombrios,
Como à luz da Ciência os homens estão frios,
Como tudo ficou num doloroso caos
E os seres que eram bons, rudes, egoístas, maus.

Em vão! em vão! em vão! os vossos largos crânios
Lutaram pelo Bem dos Bens contemporâneos!
Tudo está corrompido e até mais imperfeito…

Não há um lírio são a florescer num peito,
De piedade, de amor e de misericórdia…

Se brota uma virtude o ascoso vício morde-a,
Envilece, corrompe e abate essa virtude
Com o cinismo revel dum epigrama rude…

E até muita alma vil, feroz, patibular,
Impunemente sobe ao mais sagrado altar.

Por isso vão passar perante a turbamulta
Como abrupta avalanche, enorme catapulta,
Numa marche aux flambeaux, os famulentos vícios
Que cavaram no globo horrendos precipícios,
Os vícios imortais, que infestam tribos, greis,
Povos e gerações, seitas, templos e reis
E que são como a lava obscura da cratera
Que subterraneamente em tudo se invetera.

Com toda intrepidez hercúlea de acrobata
Vou sobre eles soltar, gloriosa, intemerata,
A sátira que tem esporas de galhardo
Cavaleiro ideal que joga a lança e o dardo.

Vou com esse altanado e muscular esforço
De quem galga triunfal o soberano dorso,
A crista vigorosa, altiva, sobranceira,
Da mais agigantada e vasta cordilheira.
III

Lobos, tigres, chacais, camelos, elefantes,
Hipopótamos, ursos e rinocerontes,
Leopardos e leões, panteras acirrantes,
Hienas do furor, membrudos mastodontes,
Tredas feras do mal, soturnos dromedários,
Serpentes colossais que rastejais na treva,
Monstros, monstros cruéis, medonhos, sangüinários,
Cuja pata esmagante a presa aos antros leva;
Ó ventrudos judeus, opíparos, obesos,
De consciência obtusa, ignóbil e caolha
Que no mundo passais grotescamente tesos
Com honras de entremez e grandezas de rolha;
Gafentos histriões, ridículos da moda,
Que fingis entender Berlim, Londres, Paris,
Mas nos altos salões, por entre a fina roda,
Meteis sordidamente o dedo no nariz;
Brasonados truões, inúteis como eunuco,
Que as pompas ostentais de aurífero nababo
Mas apenas valeis como um limão sem suco,
Tendes rabo no corpo e dentro d’alma rabo;
Nobres de papelão, milionários vândalos
De ventre confortado e rosto rubicundo,
Que no torvo cancã, no cancã dos escândalos
Sois o horrendo espantalho, a ignomínia do mundo;
Ó deuses do milhão, ó deuses da barriga,
Que sentindo a aguilhada intensa da luxúria
Buscais a mais em flor e linda rapariga
Para então vos fartar na luxuriante fúria;
Gamenhos de toilette e convicções de lama
Onde tudo afinal se atola e se chafurda,
Que do clube e do sport sintetizais a fama
Mas tendes para o Bem a fibra sempre surda;
Palhaços, clowns senis, hediondos borrachos
Que aos trambolhões urrais afora no universo,
Desdenhando de tudo e até rindo dos fachos,
Do clarão do saber em toda a parte imerso;
Almas negras, servis, d’ergástulos caóticos,
Gerado no paul das lúgubres voragens,
Do crime nos bulcões, nos vícios mais despóticos
Aos quais tanto rendeis eternas homenagens,
Manequins, charlatães, devassos do bom-tom,
Que viveis nas Babéis das grandes capitais
Apodrecendo sempre infamemente com
O cancro do dinheiro as forças virginais;
Mascarados tafuis de gordos ventres de ouro,
Ó bonzos do deboche e cínicos esgares,
Que sois o único sol esterlinado e louro
Das parvas multidões, das multidões alvares;
Fidalgos de barril, sicofantas, malandros
Do templo e do bordel, da crápula de harém
Que ao puro mar do Ideal, com torpes escafandros,
Arrancais, p’ra vender, a pérola do Bem;
Ó trânsfugas, ladrões que difamais a terra,
Que tudo poluís, do próprio lodo à flor,
À serena humildade, intrepidez da guerra.

Aos beijos maternais, ao nupcial amor;
Espíritos de treva, espíritos de barro
Que enegreceis de horror o sangue das papoulas
E das ostentações vos aclamais no carro,
Cobertos de cetins, arminho e lantejoulas;
Que se vem de repente o Nada sepulcral
Nunca deixais, sequer, no tétrico leilão,
No leilão da memória, estranho, universal,
Nem um som a vibrar do estéril coração!
Dentre feras brutais de ríspidos penhascos
E a torrente caudal de rijos versos francos
E a zombaria e o riso e as sátiras e os chascos,
Nesta marche aux flambeaux ides passar, aos trancos!
Do mundo os naturais, zoológicos museus
Despejem para fora as pavorosas massas,
Para virem reunir-se aos tábidos judeus
Irromper e seguir e desfilar nas praças.

Que a cada mata, a entranha, o seio virgem se abra
Jorrando tigres, leões, panteras do seu centro
E na dança infernal, estrupida, macabra,
Siga a marche aux flambeaux pelo universo a dentro.

Gargalhadas abri a rubra flor sangrenta
Da humanidade vã na amargurada boca,
Vai agora passar a marcha truculenta
Sob o espingardear duma ironia louca.

E desfila e desfila em becos e vielas
E torna a desfilar por vielas e por becos,
Às risadas da turba, estultas e amarelas
Que têm o áspero som de gonzos perros, secos…

E desfila e desfila, estrídula e execranda,
Das praças na amplidão, rugindo em mar desfila,
Enquanto além dardeja, heróica e formidanda,
A metralha do sol que rútilo fuzila…

E mastodontes vão de braço dado a sérios
Burgueses que já são bem bons comendadores
E marqueses de truz, com ares de mistérios,
De lunetas gentis e aspectos sonhadores
Dão o braço fidalgo e airoso das nobrezas
Aos ursos boreais, enquanto os conselheiros,
Os condes, os barões, os duques e as altezas
Lá vão de braço dado aos lobos carniceiros.

E nessa singular, atroz promiscuidade,
Animais e truões de catadura suína,
Gordalhudos heróis da infâmia e da maldade,
Vendidos da honradez, velhacos de batina
Bobos, cães, imbecis, humanos crocodilos
E déspotas, jograis, todos os miseráveis
De todas as feições e todos os estilos,
Uns aos outros lá vão jungidos, formidáveis!…

Mas a marche aux flambeaux derrama um pesadelo,
A agonia dum tigre, em sonhos, sobre um ventre,
Agonia mortal que envolve tudo em gelo…

E desfila e desfila entre sarcasmos e entre
As sátiras-fuzis, relampejando açoite,
Por essa imensa aurora, estranhamente imensa
Por um sol que angustia e que não tem da noite
Para a Miséria a sombra atenuante e densa.

Os vícios, as paixões, os crimes, ódios e erros,
Na marcha, de roldão, caminham fraternais
Com bandidos, vilões, burgueses rombos, perros
E focas e mastins, macacos e chacais.

Aos sobressaltos vão como visões, fantasmas
Bichos de toda a casta, anões de chapéu alto,
Deixando em convulsão todas as almas pasmas
E o globo num tremendo e fundo sobressalto.

E nas praças, ao sol, confundem-se os bramidos,
Os uivos com a expressão humana misturados,
Através do sussurro e bruscos alaridos
Das chacotas bestiais, dos risos trovejados.

E segue e segue e segue, afora, légua a légua
Essa marche aux flambeaux, ciclópica, estupenda
Caminha atravessando um longo sol sem trégua,
Um dia secular, um dia de legenda;
Caminha atravessando um sol de foco aberto,
Por um dia fatal, interminável, mudo,
O dia do remorso, aterrador, incerto
Que em todo o coração crava um punhal agudo.

Mas eu quero assim mesmo, eu quero-vos assim,
Em marcha tropical, à crua e ardente luz
Que vos seja uma febre indômita, sem fim,
Um cautério de fogo a vos queimar o pus
Venéreo da Moral, carbonizando-o até
Para que nunca mais se sinta dele a origem
Nem volte, como sempre, então, a ser o que é,
Deixando-vos no mundo inteiramente virgem;
Eu quero-vos assim, de fachos apagados,
Apagados, ao alto, os joviais flambeaux,
Que os tereis de acender nos campos ignorados
Que de sóis de Vingança a Eternidade arou.

E depois de vagar às sátiras de todos,
Na evidência da luz, numa perpétua aurora;
De caminhar ao sol, por tremedais, por lodos,
No tédio do sarcasmo, o tédio que a devora,
Essa Marcha afinal penetrará aos urros,
Titânica, sinistra e bêbada, irrisória,
Num caos de pontapés, coices, vaias e murros,
Na eterna bacanal ridícula da História.

Mealheiro de almas

Lá das colheitas do celeste trigo
Deus ainda escolhe a mais louçã colheita:
é a alma mais serena e mais perfeita
que ele destina conservar consigo.

Fica lá, livre, isenta de perigo,
tranqüila, pura, límpida, direita
a alma sagrada que resume a seita
dos que fazem do Amor eterno Abrigo.

Ele quer essas almas, os pães alvos
das aras celestiais, claros e salvos
da Terra, em busca das Esferas calmas.

Ele quer delas todo o amor primeiro
Para formar o cândido mealheiro
Que há de estrelar todo o Infinito de almas.

Mendigos

Mendigos! Ah! são mendigos Que voltam de vãos caminhos, Que
atravessaram perigos, Urzes, pântanos, espinhos.

Que chegam desiludidos Das portas a que bateram; Humanos, grandes gemidos
Que nos tempos se perderam.

Que voltam como partiram, Com mais amargor na volta
E mais sonhos que se abriram
Das estrelas na recolta.

Mendigos ricas no entanto, Das pompas da natureza
E das auréolas do Encanto,
Os vinhos da sua mesa.

Mendigos que o sol, apenas, Torna nababos felizes,
Torna um pouco mais serenas
As convulsas cicatrizes.

Mendigos que acham requinte Na fumaça de um cachimbo, Deixando que
labirinte
O sonho em tão leve nimbo.

Mendigos da luz da aurora Cantando celestemente, Fresca, límpida,
sonora, Pelas fanfarras do Oriente.

Mendigos de áureas estradas, De sonâmbulas veredas,
De riquezas encantadas,
Sem pedrarias e sedas.

Mendigos d’estranho aspecto
E sempiterna vigília,
Filhos nômades, sem teto,
De milenária Família.

Mendigos que erram eternos
Sem fadigas e sem sono,
Sob o augúrio dos Infernos,
Das Ilusões sobre o trono.

Mendigos de plaga nova,
De novas terras e mares, Divinizados na cova
Como as hóstias nos altares.

Mendigos da grande esmola Da luz das estrelas nobres, Que fulge e dos altos
rola,
Entre as suas mãos tão pobres!

Mendigos de céus remotos,
De sóis dos mais velhos ouros; Com a sua fé e os seus votos
E os seus secretos tesouros.

Mendigos de olhar severo, Boca murcha, meio amarga… Tendo um vago reverbero
De sonhos na fronte larga.

Mendigos de ínvias florestas
E de bosques fabulosos, De melancólicas sestas
Nos crepúsculos brumosos.

Mendigos da Eternidade, Tremendo dos sóis, dos frios, Nas mortalhas
da Saudade Amortalhados sombrios.

Mendigos dos Infinitos, Das Esferas inefáveis, Noctambulando malditos
Nos rumos imponderáveis.

Mendigos de fome e sede
De água e pão de outros mundos, Embalados pela rede
Dos Idealismos profundos.

Mendigos do azul Mistério, Cuja alma — nívea sereia — Fica
saciada no aéreo
Pão branco da lua cheia!

Merece o bom do vidal

Merece o bom do Vidal
Que é mesmo um Joca de truz,
Ter também com o seu Fiscal,
Merece o bom do Vidal
Um banquete bambual,
De cem milhões de bambus
Merece o bom do Vidal
Que é mesmo um Joca de truz!

Metamorfose

A Carlos Ferreira

O sol em fogo pelo ocaso explode
Nesse estertor, que os crânios assoberba.
Vivo, o clarão, nuns frocos exacerba
Dos ideais a original nevrose.

Da natureza os anafis mouriscos
Ante o cariz da atmosfera muda,
Soam queixosos, numa nota aguda,
Da luz que esvai-se aos derradeiros discos.

O pensamento que flameja e luta
Nos ares rasga aprofundado sulco…
A sombra desce nos lisins da gruta;

E a lua nova — a peregrina Onfale,
Como em um plaustro luminoso, hiulco,
Surge através dos pinheirais do vale.

Metempsicose

Agora, já que apodreceu a argila
Do teu corpo divino e sacrossanto;
Que embalsamaram de magoado pranto
A tua carne, na mudez tranqüila,

Agora, que nos Céus, talvez, se asila
Aquela graça e luminoso encanto
De virginal e pálido amaranto
Entre a Harmonia que nos Céus desfila.

Que da morte o estupor macabro e feio
Congelou as magnólias do teu seio,
Por entre catalépticas visões…

Surge, Bela das Belas, na Beleza
Do transcendentalismo da Pureza,
Nas brancas, imortais Ressurreições!

Meu filho

Ah! quanto sentimento! ah! quanto sentimento!
Sob a guarda piedosa e muda das Esferas
Dorme, calmo, embalado pela voz do vento,
Frágil e pequenino e tenro como as heras.

Ao mesmo tempo suave e ao mesmo tempo estranho
O aspecto do meu fiIho assim meigo dormindo…

Vem dele tal frescura e tal sonho tamanho
Que eu nem mesmo já sei tudo que vou sentindo.

Minh’alma fica presa e se debate ansiosa,
Em vão soluça e clama, eternamente presa
No segredo fatal dessa flor caprichosa,
Do meu filho, a dormir, na paz da Natureza.

Minh’alma se debate e vai gemendo aflita
No fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:
Que esse tão pobre ser, de ternura infinita,
Mais tarde irá tragar os venenos de Judas!

Dar-lhe eu beijos, apenas, dar-lhe, apenas, beijos,
Carinhos dar-lhe sempre, efêmeros, aéreos,
O que vale tudo isso para outros desejos,
O que vale tudo isso para outros mistérios?!

De sua doce mãe que em prantos o abençoa
Com o mais profundo amor, arcangelicamente,
De sua doce mãe, tão límpida, tão boa,
O que vale esse amor, todo esse amor veemente?!

O longo sacrifício extremo que ela faça,
As vigílias sem nome, as orações sem termo,
Quando as garras cruéis e horríveis da Desgraça
De sadio que ele é, fazem-no fraco e enfermo?!

Tudo isso, ah! Tudo isso, ah! quanto vale tudo isso
Se outras preocupações mais fundas me laceram,
Se a graça de seu riso e a graça do seu viço
São as flores mortais que meu tormento geram?!

Por que tantas prisões, por que tantas cadeias
Quando a alma quer voar nos paramos liberta?
Ah! Céus! Quem me revela essas Origens cheias

De tanto desespero e tanta luz incerta!
Quem me revela, pois, todo o tesouro imenso
Desse imenso Aspirar tio entranhado, extremo!
Quem descobre, afinal, as causas do que eu penso,
As causas do que eu sofro, as causas do que eu gemo!

Pois então hei de ter um afeto profundo,
Um grande sentimento, um sentimento insano
E hei de vê-lo rolar, nos turbilhões do mundo,
Para a vala comum do eterno Desengano?!

Pois esse filho meu que ali no berço dorme,
Ele mesmo tão casto e tão sereno e doce
Vem para ser na Vida o vão fantasma enorme
Das dilacerações que eu na minh’alma trouxe?!

Ah! Vida! Vida! Vida! Incendiada tragédia,
Transfigurado Horror, Sonho transfigurado,
Macabras contorções de lúgubre comédia

Que um cérebro de louco houvesse imaginado!
Meu filho que eu adoro e cubro de carinhos,
Que do mundo vilão ternamente defendo,
Há de mais tarde errar por tremedais e espinhos
Sem que o possa acudir no suplicio tremendo.

Que eu vagarei por fim nos mundos invisíveis,
Nas diluentes visões dos largos Infinitos,
Sem nunca mais ouvir os clamores horríveis,
A mágoa dos seus ais e os ecos dos seus gritos.

Vendo-o no berço assim, sinto muda agonia,
Um misto de ansiedade, um misto de tortura.

Subo e pairo dos céus na estrelada harmonia
E desço e entro do Inferno a furna hórrida, escura.

E sinto sede intensa e intensa febre, tanto,
Tanto Azul, tanto abismo atroz que me deslumbra.

Velha saudade ideal, monja de amargo Encanto,
Desce por sobre mim sua estranha penumbra.

Tu não sabes, jamais, tu nada sabes, filho,
Do tormentoso Horror, tu nada sabes, nada…

O teu caminho e claro, é matinal de brilho,
Não conheces a sombra e os golpes da emboscada.

Nesse ambiente de amor onde dormes teu sono
Não sentes nem sequer o mais ligeiro espectro…

Mas, ah! eu vejo bem, sinistra, sobre o trono,
A Dor, a eterna Dor, agitando o seu cetro!

Meus esplêndidos desejos

Meus esplêndidos desejos
Emigram, como beijos,
Pelo azul espaço, em curvas,
Rasgando essas brumas turvas;
Pelo sol das primaveras,
Batendo as asas brancas,
Como, batem, quimeras…
Voai, andorinhas francas!

Minha vida e um montão de ruínas em arido deserto um abismo de ais e de suspiros

Da mundana lida, eis que cansado,
Co’a lira toda espedaçada,
A alma de suspiros retalhada,
Cumpre o infeliz seu triste fado.

Ai! que viver mais desgraçado!…
Que sorte tão crua e desazada!…
Quem assim tem a vida amargurada
Antes já morrer, ser sepultado.

Só eu triste padeço feras dores,
Imensas e de fel, sem terem fim,
Envolto no véu dos dissabores.

Oh! Cristo eu não sei se só a mim
Deste essa vida d’amargores,
Pois que é demais sofrer-se assim!

Missal

ol, rei astral, deus dos sidérios Azues, que fazes cantar de luz os
prados verdes, cantar as águas! Sol imortal, pagão, que simbolizas
a Vida, a Fecundidade! Luminoso sangue original que alimentas o pulmão
da Terra, o seio virgem da Natureza! Lá do alto zimbório catedralesco
de onde refulges e triunfas, ouve esta Oração que te consagro
neste branco Missal da excelsa Religião da Arte, esmaltado no marfim
ebúrneo das iluminuras do Pensamento.

Permite-me que um instante repouse na calma das Idéias, concentre
cultualmente o Espírito, como no recolhido silêncio das igrejas
góticas, e deixe lá fora, no rumor do mundo, o tropel infernal
dos homens ferozmente rugindo e bramando sob a cerrada metralha acesa das
formidandas paixões sangrentas.

Concede, Sol, que os manipanços não possam grotescamente, chatos
e rombos, com grimaces e gestos ignóbeis, imperar sobre mim; e que
nem mesmo os Papas, que têm à cabeça as veneráveis
orelhas e os chavelhos da Infalibilidade, para aqui não venham com
solene aspecto abençoador babar sobre estas páginas os clássicos
latins pulverulentos, as teorias abstrusas, as regras fósseis, os princípios
batráquios, as leis de Crítica-megatério.

E faz igualmente, Sultão dos espaços, com que os argumentos
duros, broncos, tortos, não sejam arremessados à larga contra
o meu cérebro como incisivas pedradas fortes.

Livra-me tu, Luz eterna, desses argumentos coléricos, atrabiliários,
como que feitos à maneira das armas bárbaras, terríveis,
para matar javalis e leões nas selvas africanas.

Dá que eu não ouça jamais, nunca mais! A miraculosa
caixa de música dos discursos formidáveis! E que eu ria, ria
– ria simbolicamente, infinitamente, até o riso alastrar, derramar-se,
dispersar-se enfim pelo Universo e subir, aos fluidos do ar, para lá
no foco enorme onde vives, Astro, onde ardes, Sol, dando então assim
mais brilho à tua chama, mais intensidade ao teu clarão.

Pelo cintilar de teus raios pelas ondas fulvas, flavas, ó Espírito
da Irradiação! Pelos empurpuramentos das auroras, pela clorose
virgem das estepes da Lua, pela clara serenidade das Estrelas, brancas e castas
noviças geradas do teu fulgor, faculta-se a Graça real, o magnificente
poder de rir – rir e amar, perpetuamente rir… perpetuamente amar…
Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo artista grego das formas
indeléveis e prefulgentes da Luz! pelo exotismo asiático desses
deslumbramentos, pelos majestosos cerimoniais da basílica celeste a
que tu presides, que esta Oração vá, suba e penetre os
etéreos passos esplendorosos e lá para sempre viver, se eternize
através das forças firmes, num álacre, cantante, de clarim
proclamador e guerreiro.

Missal 2

GLORIA IN EXCELSIS

Num recolhimento sugestivo, como se o meu espírito estivesse longinquamente
a orar n’alguma velha abadia, penetrei na catedral em festa.

Não sei que de nevoento, vago, dolente e nostálgico me invadira
de repente e por tal forma, que eu fui, como que sonambulamente, à
solenidade.

Todo o templo, ornamentado, resplandecia, numa imponência, numa augusta
suntuosidade, a que o grande esplendor das luzes dava majestades romanas.

A onda humana, compacta, densa, murmurejava, numa compunção.

Alvuras e incenso envolviam, como que em brumas imaculadas, em flocos matinais
de neblina, o vasto recinto da igreja.

Lustres imensos pendiam pomposamente da abóbada branca, numa infinidade
de pingentes que tiniam e cintilavam, como polidas, facetadas lâminas
metálicas, num brilho molhado.

Do coro, para o alto, os instrumentos de corda choravam, salmodiavam, num
crescendo de notas, através do vivos metais sonoros.

Eram excelsos, eram egrégios aqueles sons sacros, religiosos, que
subiam pelas naves, à maneira que os incensos subiam.

No peito, como numa urna de cristal, o coração batia-me, anelante,
na ânsia, na vertigem de vê-la por entre todo aquele confuso e
amplo borboletar de cabeças.

E, quando houve um alegre e diamantino tilintar de campas e o sacerdote elevou
no cálix o Vinho Sagrado, o coração, como estranho pássaro
de sol, fugiu-me do peito, num alvoroço arrebatado, maravilhado na
grande luz do templo, em busca dos olhos dela, que, de repente, me fitaram,
longos, negros e veludosos, quando, por entre níveas névoas
d’incenso, o Gloria in Excelsis, exalçando os Evangelhos, triunfava
nas vozes e levantava um festivo rumor no templo.

E foi, para meu coração lancinado de amor, como se Ela, naquele
instante, me trouxesse toda essa Glória luminosa nos olhos.
A GATA

De neve, de uma maciez de arminho e lactescência de neve, de uma nervosidade
frenética, era luxuosa, principesca, de certo, essa orgulhosa gata.

As esmeraldas de seus olhos claros fosforeavam sensualmente, eletricamente,
quando alguém, no conforto da casa, lhe acarinhava de manso o dorso,
o focinho tenro, polposo, espiguilhado de prateados fios sutis; e, no seu
lindo pêlo cetinoso e alvo, como numa fresca e virginal epiderme de
mulher aristocrática, perpassava um frisson de ternura, um estremecimento,
como se em toda ela vibrasse alguma brisa de espiritual e amoroso.

E era então fidalga nas sensações, no ronronar apaixonado,
ao luar, sob o cintilante cristal das estrelas, pelas caladas vastidões
da noite, ou, nas horas de sesta, nos quentes, enlanguescedores mormaços,
preguiçosa e fatigada, anelando o repouso, numa onda de gozo e volúpia,
enroscada, serpenteada, torcicolosa e convulsa, como um organismo suave e
débil que um vivo azougue eletriza e agita.

Talvez fosse a alma de uma vaporosa rainha que ali vivesse nesse precioso
animal, alguma misteriosa visão polar dentro daquele feltro branco,
daquela pelúcia rica, daqueles focos eslavos; algum sonho, enfim, errante,
vago, perdido nesse nobre exemplar felino de formas lascivas, flexuosas e
delicadas.

Às vezes, mesmo, ela errava, como a nômade que perde a rota
da caravana pelos desertos escaldados de sol, em busca de alimento; e os seus
olhos, penetrantes no verde úmido e agudo das luminosas pupilas, mais
até fantasiosa a tornavam e mais nevoeiro davam à sua lenda
de fadas.

E assim, arminho girante, que as quatro veludosas patas faziam fidalgamente
caminhar, miando histérica, era como uma sonâmbula idealizada
e amante que soluçava e gemia implorativamente a sua dor, através
dos aposentos, na indiferença de quase todos.

Um dia, porém, uma doce mão feminina e perfumada quis tê-la
junto de si e elevou-a consigo para a tepidez e a pompa das alcovas cheirosas,
vivendo com ela ao colo, passando-lhe os íntimos alvoroços de
seu sangue de Virgem – como se a gata fosse um profundo seio de afagos
a que ela confiasse todos os seus mistérios e segredos de Noiva ainda
presa no claustro cerrado, como as monjas normandas, da carne inquietante
e alucinadora.

Agora, com a formosa seda do pêlo vibrando à carícia,
alta e feliz a cabeça artística, vive nesse colo impoluto, em
sonhos deliciosos e gozos infinitos de orientalista, o belo exemplar felino,
voluptuoso e dolente como a lua embalada e cismando, imaculadamente, no seio
azul das esferas.
DIAS TRISTES

Apesar do sol, que imensa tristeza para certos seres, que dias tristes, esses,
de uma melancolia e dolorosa névoa…

Os ruídos todos, o esplendor da luz, convergindo em foco para o coração,
deslumbram, fascinam de modo tal e tão e tão profundamente,
que o abatem, infiltrando-lhe essa tristeza infinita que não se define
e que está, como um fundo de morbidez, nas almas contemplativas e nômades,
que vão armar a sua tenda nas desconhecidas e longínquas paragens
abstratas do Pensamento.

Dias triste, muita vez, os dias de sol.

Mergulhado o espírito na onda profunda de desejos irresistíveis,
como numa intensa e luxuriosa paixão, os aspectos que se lhe manifestam
na Natureza são amargos, atravessados dessa pungência aflitiva,
dessa magoante desolação e atormentadora ironia que há
na essência de todas as coisas e idéias.

E, como o pensar dá uma grande tristeza, põe no cérebro
uma incomparável tortura, o Pensamento, à evidência da
luz, da alegria do sol, deixa-se possuir de um nervosismo triste, de um meio
luar turvo e trágico de impressões agudas, dilacerantes.

Os dias tristes, para raras naturezas intelectuais, são quase sempre
os dias triunfantemente alegres, sonorizados de pássaros, quando há
uma alta irradiação no ar, um repouso, uma paz feliz em toda
a vegetação e que o sol, numa vitória astral, vai, como
um deus pagão, em festins de luz…
Como que filtros de dolorimento partem de todas essas luminosidades, todo
esse fulgor solar verte uma nostalgia cruciante, que fere e fende o peito,
incisivamente, como as flechas letalmente envenenadas dos hindus.

Quanto a mim, amargamente sinto esses dias tristes.

À larga luz de um templo vasto, na suntuosidade de uma festa católica,
quando pela infinidade de rutilantes lustres acesos há facetas de estrelas,
íris fulgurantes e pelos doiramentos dos altares borboleteiam faíscas,
acendem-se chamas nas velas amareladas, e vozes flébeis, numa compunção
religiosa, sobem para as naves com a vaporosidade dos brancos incensos, dentre
músicas festivas, – um angustioso anseio me insufla, me enche
infinitamente o peito.

E, batido de uma pungência, vibrado de uma recordação,
alanceado por uma idéia, subitamente para logo, toda a aparente radiação
de alegria foge e eu me vejo então dentro dos meus dias tristes em
que alguém, dos longos do Passado, acena-me, ou com um lenço
amoroso, para as recônditas e virgens emoções do coração,
ou com uma bandeira de combate, para as impulsivas faculdades do cérebro.

Se um riso me aflora aos lábios, nervosamente, se uma verve satânica
os inflama; se uma esfuziante sátira os eletriza, é ainda assim
uma maneira de ser triste, apunhalante sarcasmo às tempestades mentais
que se dão por dentro, – humorismo doente, que para se convencer
de que é alegre e de que é são, flori em rosas de riso,
abre em Via Láctea de riso.

O esplendor das salas iluminadas, na abundância de cristais e flores,
entre auroras de mulheres e luxuosas roupagens, dá-me também,
a pouco e pouco, um abatimento, um afrouxamento aos nervos e daí nasce-me
logo, como uma tentaculosa planta negra e de morte, essa indescritível
tristeza, que é a feição ingênita de tudo, que
cobre tudo como que de uma neblina crepuscular sensibilizante…

Assim também, ao almoço, pelas claras manhãs, quando
a toalha branca da mesa, as flores das jarras, o pão, o vinho, atitude
correta das pessoas, a limpidez simpática da hora, fazem lembrar resplandecências,
alvuras claras, paramentações de altar para a evangélica
celebração da Missa, um sentimento de inexplicável tristeza
me invade, nascido de toda essa disposição harmoniosa de objetos
e de pessoas. E, abstratamente, como num nebuloso sonho, durante toda a alimentação
desenrola-se lenta, vagarosa e fluida no meu ser, uma surdina oceânica
que parece estar, na plangência de sons abafados, lembrando todas as
abundantes fontes de afeto que para mim já para sempre secaram, todos
os astros prodigiosos de enternecedor carinho que para mim já eternamente
se apagaram.

Mas esses dias tristes, as horas, os momentos desses nevoeiros d’alma,
tão densos, tão cerrados, nascem apenas de uma Visão
que se adora, que nos abre inefavelmente os braços, que o espírito
ama no seu recolhimento, na sua cela sombria e muda! essa Visão seráfica,
nervosa histérica, ideal – a Santa Teresa mística da Arte.
PAISAGEM DE LUAR

Na nitidez do ar frio, de finas vibrações de cristal, as estrelas
crepitam…
Há um rendilhamento, uma lavoragem de pedrarias claras, em fios sutis
de cintilações palpitantes, na alva estrada esmaltada da Via-Láctea.

Uma serenidade de maio adormecido entre frouxéis de verdura cai do
veludo do firmamento, torna a noite mais solitária e profunda.

O Mar, pontilhado dos astros, faísca, fosforesce e rutila, agitando
o dorso Glauco.

E, de leve, de manso, um clarão branco, lânguido, lívido
vem subindo dos montes, escorrendo fluido nas folhagens, que prateiam-se logo,
como se fabuloso artista invisível as prateasse e as polisse.

A lua cheia transborda em rio de neve na paisagem, e, no mar, há pouco
apenas fagulhante da iriação das estrelas, a lua jorra do alto.

Por ele afora, pelo vasto mar espelhado, pequenas embarcações
se destacam agora, alígeras, lépidas, à pesca da noite,
velas brancas serenas, sob a constelação dos espaços.

A água repercute, na amorosa solidão do luar, a barcarola sonora
dos pescadores, que, de entre a glacial amplidão da água, mais
fresca e sonora, vibra.

Um aspecto de natureza, verde, virgem, que repousa, estende-se nos longes,
desce aos prados, sobe às montanhas e infinitamente espalha-se nas
mudas praias alvejantes.

E, à proporção que a lua mais vai subindo o páramo,
à proporção que ela mais galga a altura, mais as pequenas
embarcações de pesca avançam nas vagas resplandecentes,
com as asas das velas abertas à salitrosa emanação marinha.

Com o brilho fúlgido, aceso, d’esmeralda facetada, uma estrela
parece peregrinamente acompanhar de perto a lua, num ritmo harmonioso…
Perfumes salutares, tonificantes eflúvios exalam-se da frescura nova,
imaculada dos campos, como dum viçoso e casto florir de magnólias,
na volúpia da natureza adormecida numa alvura de linhos, dentre opulências
de Noivados.
ARTISTA SACRO

Na catedral, com toda pompa e liturgia, celebras-se a Semana Santa.

Pela Ressurreição, às quatro horas da manhã,
há na igreja um ar vago de alvorada, em amarelo cidrento, trazida da
rua pela larga e polida vidraçaria que se conserva alerta – ar
menos vago, contudo, do que a névoa que turva fora os aspectos, em
virtude dos lustres acesos, da variada profusão de luzes e da gala
sagrada que enche de resplandecências e solenidades toda a extensa Nave
onde os devotados católicos murmurejam num crescendo de mar tormentoso
e cavado…

O Altar-Mor está vistosamente ornado, deslumbrante, viçando
de flores colocadas em jarras azues e doiradas, numa frescura e colorido cromático
de jardim, rodeado de grandes tocheiros arabescados que faíscam, flamejam
com chamas ensangüentadas e amarelas.

Em cima, até onde os olhos sobem mais, num trono de luzes, entre uma
pesada cortina de damasco vermelho, de tons profundos, caída para os
lados em pregas longas e largas, vê-se o Cristo, na alegoria de Redivivo,
com a chaga simbólica no flanco direito, tendo numa das mãos
um ramo verde.

Nos altares laterais os Santos, como que ainda mostram possuir a auréola
triunfal da Aleluia, sorrindo seraficamente, quer os mártires, quer
os gloriosos.

Pelo teto abobadado, dentre as melífluas harmonias, as melancólicas
sonoridades dos violinos, das flautas, dos violoncelos e do órgão
pianíssimo, ecoam majestosas as vozes que irrompem do coro, beatíficas
no Kirie Eleison.

Os sacerdotes, festivamente paramentados, com as suas casulas custosas, relampejantes,
bordadas a flores de ouro, em alto relevo; de estolas rutilantes e franjadas
pendidas no braço ou com as sobrepelizes alvas e rendadas destacando
forte na batina preta, curvam-se genuflexos diante do Altar-Mor, erguendo-se
após com mesuras graves e medidas, enquanto os acólitos, ao
fundo, em linha e reverentes, fazem balançar, cadenciada e ritmamente,
turíbulos lavorados, de onde se exalam espiralados incensos…

E o Cerimonial prossegue, na minudência exata, escrupulosa, do Rito
romano.

Mas, nas suntuosidades da festa, ressalta de magnificências, esmaltadamente,
um esbelto sacerdote novo e formoso talhado em estátua branca, e que
ergue no meio das outras vozes, a sua clara voz sonora cheia de unção
religiosa como de um sentimento, amoroso e carnal.

Chagado há pouco de Roma é essa a primeira cerimônia
de mais estilo em que toma parte com o seu tipo amável, doce e misericordioso,
amantíssimo, de São Luiz Gonzaga.

A sua linda cabeça suave, direita, correta, através da vaporosidade
incensal, domina pela saúde e pela mocidade, que resplende no rosto
liso, escanhoado, onde os olhos brilham com raios místicos…

O seu porte ornamental, que aprece afirmar o poder de uma força divina,
conserva-se aprumado, erecto; e, quando a voz se lhe desprende untuosa dos
lábios, como que ele paira num esplendor espiritual, vaga num nimbo
etéreo, cercado por alas de querubins inefáveis e de arcanjos
de asas fulgentes…

De toda essa pessoa clerical como que vêm fluidos magnéticos,
que fascinam e prendem certos olhares juvenis femininos, que a seguem, que
a buscam em todas as direções, em todos os movimentos, sofregamente,
deliciados da sua prodigiosa figura que ali naquele recinto sagrado tão
imperiosamente e tão alto se destaca, como que revestida de poderes
celestes.

E o sacerdote instintivamente percebe os êxtases, os enlevos que desperta
nas mulheres belas, porque então dá mais nitidez às mesuras,
requinta nas curvaturas solenes, fica mais excelso e egrégio ainda,
deixando escapar com brandura um sorriso paradisíaco, que é
talvez a promessa sacrossanta dos dons maravilhosos, das graças, do
Perdão infinito que a sua onipotência consegue.

Nas suas mãos aristocráticas, delicadas e níveas como
hóstia, sente-se quando ele as eleva no ritmo do Cerimonial, um ligeiro
estremecimento amoroso que o embaraça, fazendo com que logo, para apagar
essa impressão pecadora, exagere o Rito, afetadamente.

Os olhares femininos, deslumbrados pelo êxito daquelas maneiras evangélicas,
não deixam jamais de seguir o airoso sacerdote, as linhas harmoniosas
da sua figura, o seu másculo vigor de deus viril e vitorioso, como
seguem, no circo, os movimentos ágeis, dúcteis, e a plástica,
firme e forte, dos corpos cinzelados acrobatas célebres e atraentes…
Realmente, na sua carne, que os incensos perfumam, circula o sangue em labaredas
de instintos sexuais e a sua cabeça primaveril, que a Arte da religião
abençoou em Roma, tem o encanto, a fascinação diabólica,
satânica, da venenosa Serpe bíblica.

Mas, o decorativo apóstolo, resplandecendo nas vestes talares, imponente,
magistral, faz simbolicamente lembrar, assim venerado pelas mulheres, com
fervor beatífico, um Sultão em palácio, no Bosforó,
como Abdul-Azid, amado por odaliscas e sultanas.

De vez em quanto, no templo, passam fios etéreos de harmonias de instrumentos
e cânticos, que ondulam, que flutuam no ar…
E o Eclesiástico, numa volúpia sacra, com toda essa Arte ritual
de símbolos, de missais, de eucaristias, de pálios, de pedras
de ara, de corporais, de âmbulas de santos óleos, de chamalotes,
lavrados e damascos, íris, lhamas de prata e ouro, recebe a opulência,
o brilho feérico, o luminoso esplendor de um astro.

De lá, do seu sólio real de aparatosos efeitos, entre sedas,
chamas e pedrarias, ele rege, com renomes episcopais, solene e sereno, a sinfonia
das eternas Dúlias.

É o ateniense das formas católica-romanas, triunfando no idealismo
de um gótico, de um medieval, através de cinzeluras de templos,
com refulgências siderais de constelado…
Casto cenobita, recluso nas celas do Cristianismo, ficará, talvez,
para sempre com enlanguescimento histérico, na muda contemplação
das cismadoras imagens liriais dos hagiológios.

Ou, batido da realidades carnais, sentindo a avidez das paixões terrestres,
verá passar, ante os olhos mortificados na marmórea veneração
de Jesus, à luz de círios ou de lâmpadas, violentamente,
a visão cor-de-rosa das virgens vitais – fina, transparente epiderme
da gaze auroral das papoulas.

Então, dirá decerto ao mundo, extasiado por essas vivas expressões
carnais que o transfiguram e humanizam, todos os mistérios, todos os
inauditos clarões da Eternidade, que Ele, Artista Sacro, transcedentalmente
conhece, lendo sempre, para dar mais abstração ao Miraculoso,
os arcaicos latins apocalípticos e antifônicos…
VISÕES

Num brilho cintilante de tiara persa a Via-Láctea encurva-se do alto
por sobre mim, nas alvas flores cristalinas das suas estrelas.

Encurvas-se sobre mim na pompa negra da noite densa, vagamente lembrando
o luminoso esplendor de uns olhos dentre a pompa negra de aromados cabelos.

Como em arejados pátios claros de castelos renanos por que desfilassem
visões germânicas, wills enamoradas e vaporosas, sílfides
serenas e encantadoras, ao luar das baladas, década estrela frígida,
branca, desfila, vai desfilando nas rutilantes esferas uma Ilusão,
um Sonho e cada Sonho e cada Ilusão se corporifica, toma consistência
dos nervos e cinzelada escultura de linhas, e eis então aí fascinadoras,
deslumbrantes mulheres avassalando o firmamento como ampla Via-Láctea
de corpos ondulantes e níveos…

Ah! mulher que eu procuro e deseja da tenda nômade da Arte, peregrina
e fugidia sereia! que as harmonias deliciosas da tua carne não sejam
misteriosas para mim como a Via-Láctea, a cujas estrelas, que representam
cada uma Ilusão e um Sonho, está infinitamente presa, num amoroso
eletrismo, esta alma ardente, alanceada e nervosa…
PÁGINA FLAGRANTE

Inflamados de sol, como pássaros no esplendor da aurora, partiam Ambos
a digressões singulares, por manhãs alegres, da alegria impulsiva
e bizarra das Hallalis de caça.

Uma virginal exalação de leite, um aroma finíssimo de
lilás e rosa errava pelos prados sãos e férteis, na grande
luz alastrante e germinadora da primavera.

Na franqueza heróica da força que a expansão vigorescente
da Natureza lhes infiltrava, experimentavam Ambos uma sensação
aguda de espiritualidade, um eletrismo de idéias, que os agitava, dava-lhes
intensa vibratilidade, uma embriaguez fascinante de acre aticismo mental,
por entre os radiantes orientalismos de luz.

E eles partiam nervosamente, alvoroçados, finos, fulgurantes, como
sobre a impressão da alta e convulsionante música wagneriana.

De uma abundante e luxuriosa vegetação psíquica, enclausurados
na Arte, como numa cela, lá iam sempre nessas continuadas batidas,
nesses verdadeiros assaltos ao Ideal, num fausto de Império romano,
arrebatados pela grande borboleta iriante, fugidia e fascinadora da Arte.

Vinham, então, os livres exames, os amplos golpes de Crítica,
ao fundo e ao largo, através dos turbilhões luminosos do sol.

Quase feroz, cheio de bárbaros venenos e ao mesmo tempo untuoso como
os inquisidores, um deles fazia vagamente lembrar a urze das montanhas áridas,
sobre a qual, entretanto, O Azul canta de dia os hinos claros do sol e à
noite a luminosa barcarola da lua e das estrelas.

O outro, recordava, também, por sua exótica natureza, perpetuamente
envolta numa bruma de mistério, um Cristo célebre de Gabriel
Max, corpulento, viril, de aspecto igualmente aterrador e piedoso, que vi
uma vez numa galeria…

Organizações dúbias, obscuras, de acridão agreste,
que representam, na ordem animal, o que representa, para as camélias
e para as rosas, o cróton.

E aquelas duas almas, intelectualmente impulsionadas, abriam-se em chamas
altas, aos deslumbramentos de sua estesia.

As idéias fugiam, cabriolavam, penetravam todo o arcabouço
do assunto, tomavam formas, aspectos estranhos, macabros; e era tal a intensidade,
a veemência com que brotavam do cérebro, que pareciam viver,
radiar, ter cor, vibrar.

A verve esfusiava, mentalizada pela Análise, pela Abstração
e pela Síntese; sátiras frias, cortantes como rijos e aguçados
cutelos, espetavam capras a carne tenra, viçosa, próspera, de
S. Majestade Imbecil; e, para supremamente assinalar todas as surpresas e
elevação do Entendimento, uma psicologia rubra, flamante, sangrava,
sangrava em jorro, torrencialmente sangrava.

E eram boutades maravilhosas, a charge leve, pitoresca, ferreteando, zumbindo
sobre os homens circunspectos, que passavam, o andar solene, ritmado, em cadência,
como na marcha das procissões.

E Ambos riram, riram, numa risada sonora e forte, como se festins cintilantes,
bacanais, triclínios, todas as vermelhas orgias do Espírito,
lhes cristalinamente no riso.

De repente, como uma pausa repousadora nesse crepitante incêndio de
verve, penetravam sutilmente com delicadezas extremas, nos pensamentos mais
curiosos, mais sugestivos, nos amargos dolorimentos e pungências latentes
da Arte.

Diziam coisas aladas, quase fluídas, que determinavam a abstração
do ser que os animava e floria; tinham essa percepção, esse
entendimento profundo, tanto luar como o sol, que explica, mais ainda do que
o que se perpetua em flagrância num livro, a poderosa força criadora,
a ductilidade, a emoção e a contensão nervosa de raras
naturezas artísticas.

Refletiam que certo modo de colocar, de por as mãos, de certas mulheres,
lhes fazia longamente considerar, meditar nas monjas…
Pensavam que no mundo há naturezas tão excêntricas e nebulosas
que, pelas condições complexas em que se encontravam na vida,
precisariam de uma filosofia nova, original, para determiná-las. Eram
como que existências eriçadas de abetos alpestres, carnes que
se rasgavam, se despedaçavam…

As rosa, pareciam-lhes belezas opulentes, pomposas, da Inglaterra…

E todo o universo estava agora tão atrozmente perseguido por tédios
mortais, que os homens já naturalmente falavam em morrer, como quem
fala em viajar ou em rir…

Quanto à Arte, queriam que a expressão, que a frase vivesse,
brilhasse, sonora e colorida, como um órgão perfeito. Que tudo
o que disseram ficasse imperecível, eterno, perpetuado no Espaço
e no Tempo, com os sons que os circundavam, a cor, a luz, o aroma que os atraía.

As palavras deveriam ser, para se eternizarem, cravadas no ar límpido,
como num forte cristal de rocha.

Era a ânsia dos requintes supremos, a exigência das formas castas,
que os fascinava, que os seduzia, tentava, como nudez formosa de mulher virginal.
Tudo, enfim, na Arte, deveria ficar luminoso e harmonioso, como um cantar
d’astros.

E lá caminhavam, inquietos, vertiginosos, no esplendor matinal, que
os alagava e fecundava, como um prodigioso rio de ouro e diamantes, terras
maravilhosas e produtivas.

Iam à conquista das Origens verdes, das puras águas brancas
da Originalidade, dentre o vibrante alarido de cristal dos seus temperamentos
austrais, ardentes e sangrentos.

Como orquestrações largas, sinfonias vivas de emoções
e idéias, rompiam dia a dia nessas batidas frementes, numa transcendência
de princípios e sentimentalidades – talvez no íntimo dolorosos,
lancinados pelo Miserere das Ilusões elevadas.

E, muitas vezes, já alta madrugada, sob o sereno e suave adormecer
das estrelas alvorais, não era sem uma derradeira Apóstrofe
à soberana Chatice que essas duas existências chamejantes se
separavam, num grande clarão espiritual de afetos.

Então, um deles, numa aclamação, num gesto singular
e profético, arrojava, além, para os séculos, esta charge
infernal, suprema:
– A divina Estupidez, a onipresente Imbecilidade ficaria eterna, ao alto,
junto às nuvens, sobre uma estranha Babel de milhões de degraus
de bronze, como num trono colossal, bufando e roncando, a dominar as imensidades,
fantasticamente, onipotentemente, guardada por cem mil esquadrões ferozes,
monstruosos e formidáveis, de hipopótamos e búfalos!…
TINTAS MARINHAS

Mar manso, pelo fim da tarde.

O ouro fulvo dos horizontes no ocaso a pouco e pouco esmaece.

Pela manhã chovera, mas antes do pôr do sol o dia levantara
e as perspectivas úmidas e frescas embebem-se agora no eflúvio
salutar das marés.

No espaço há uma grande acumulação de nuvens
áureas e róseas de um forte colorido de silforama.

Para além, da outra banda do mar, a faixa larga e prateada da praia,
em curvas, coleando, está de uma extrema doçura e nitidez inefável.
A retina mal pode apanhá-la.

Os olhos pestanejam, nas infinitas vertigens e nos prismas visuais sutis
e cambiantes de míope, diante do encanto dos tons de luz leve, rarefeita,
espiritualizante e fina, como um tecido tenuíssimo.

Há em toda a marinha um aspecto amável, uma suavidade de aquarela
d’après nature, quase êxtase.

Dá um esplêndido efeito à visão ótica e
um revigoramento humorado às faculdades artísticas, este belo
trecho sadio e agradável de vagas, em cuja superfície a luz
frouxa da tarde se encarrega, com as suas pinceladas de fantasista, de fazer
as mais extravagantes e rendilhadas decorações.

O mar, aquietado, sereno, está de um verde glauco ativo e salgado,
convidando a viajar, e, sobre ele, navios balouçantes, embarcações,
soltas como aves, de delicadas formas artísticas, com afinidades abstratas
de certas linhas fugidias de um perfil de mulher, conservam, então,
como lenços de adeuses, as suas velas brancas estendidas, os seus panos
a secar da chuva da manhã.

Balançam-se um pouco, numa cadência harmônica, num ritmo
musical, com os altos mastros erguidos para o céu em posição
de vigia.

E, assim, com os mastros e as velas, na aglomeração das adriças
e dos cabos, os navios fazem vagamente lembrar, na calma da tarde, enormes
e estranhas plantas de ornamentação.

Ao fundo, na recortada e esfuminhada linha das montanhas, uma queimada faz
evolar para os ares o seu azulado penacho de fumo.

E, no meio da pitoresca delícia da marinha alegre e lavada, de um
acre sabor de azote, uma ou outra gaivota esvoaça, além num
vôo incisivo, rápido, ou pousa junto aos liquens ou junto às
algas, mergulhando e roçando na vítrea vaga a nevada plumagem
de arminho.

Então, de toda a paisagem, larga, aberta, revigorativa e cheia de
uma grande ar primitivo de virilidade, vem um sopro intenso, confortador e
pagão de Heroísmo e de Mocidade, fazendo inflar o peito, e um
sentimento anelante e virgem de pesca, no bravo Mar Alto, entre tropicalismos
primaverais de sóis sangrentos e de dias azuis, sobre as rasgadas ondas
mormurejosas.
ESMERALDA

No fundo verde da tela avulta em claro uma Cabeça macilenta, dolorosa,
como que envolta num albornoz branco.

Toques da mesma cor garça põe-lhe leves nuances nos cabelos,
nos olhos cismativos, anelantes, que têm a expressão de um desejo
nômade.

Desse cromatismo de tons verdes, idealizou o artista o nome de sua viva cabeça
imaginária – que parece uma dessas fisionomias raras que só
naturezas especiais sabem distinguir e amar, uma dessas cabeças de
mulheres singulares que a dolência da paixão enervante calcinou
e turvou de dores.

Do golpe rubro da boca escapa-lhe um sentimento de amargor, que a travoriza
e acidula, como se um acre veneno ardente lhe estivesse sangrando os lábios.

E essa boca, assim em golpe rubro, purpurejada por um vinho secreto de ilusão
antiga, destacando álacre no palor do rosto frio, como que excita aos
beijos, turbilhões de beijos como de chamas…

E descendo da boca aos seios alvos de lua, a imaginação vai
fantasiosamente compondo todo o corpo de Esmeralda e despindo-o, à
proporção que o vai compondo, despindo-o e gozando a carne cor
de papoula.

E, as tintas, na tela, vivendo de impressionabilidade artística que
um pincel de mão original e nervosa lhes infiltrou, como que exprimem,
no colorido e no ideal da contemplativa Cabeça, a emoção
vaga, aérea, de alguma formosa e amada Esmeralda virgem, perdida e
morta dentre as verdes pedrarias do Mar solene…
FIDALGO

Pé esguio, fino, à Metistófele, para galgar, não
já a Roma pomposa e purpúrea, enflorada em glória; nem
mesmo já a Grécia estóica, de ouro e de mármore;
mas para supremamente galgar as regiões infinitas e virgens da deslumbrante
Originalidade.

Colorido de graça, madrigalesco e maravilhoso, a luva negra vestindo
a mão real de loiro e fantasioso Excentrista, a face meditadora e branca
voltada para as Estrelas, donde surgiriam as leis transcendentes da Arte,
penetrarias os pórticos suntuosos de palácios d’esmeralda
e safira, subindo por escadarias de prata e pérola.

E, prodigiosamente, em sedas e ouros de luz, aí te perpetuarias nos
Azues imortais da Eternidade, onde o Espírito deve ter, não
a claridade coruscante e clarinetante do Sol, mas o brilho de paz, de incomparável
repouso são da Lua solene e sonolenta.

A tua Obra, vasta e fecundadora, seria então singularmente traçada
em panos mais largos que os de tendas do deserto e mais alvos ainda do que
as neves imaculadas.

Com um fio d’astro cinzelarias, darias esmaltes indeléveis e
marchetarias idéias, como um tecido d’estrelas, liriais e siderais.

E, para que a correção inteira, a harmonia perfeita irradiasse
na Obra, em luz mais clara, um pássaro estranho, cor de brasa, branco,
azul, conforme o tom do teu Ideal, cantaria, gorjearia em ruflagens d’asa
ao alto de tua nobre cabeça fidalga, como que para te ritmar as idéias.

E tu, como um deus mítico, afinarias pelo ritmo inefável do
canto os pensamentos delicados da grande Obra, até produzires nela
a harmonia, a cor, o aroma.

Músicas excelsas e tristes, como uma combinação de roxo
e azul profundo, dariam frêmitos, vibrações às
tuas páginas, que ficariam vivendo com o Som, perpetuamente.

Bonzos, Manitus, não gralhariam e grasnariam jamais em torno de teu
ser abstrato e tranqüilo, feito para florir, cantar e resplandecer.

Como as pérolas guardadas em cofres do Oriente, envoltas em areia
do Mar Vermelho, para não perderem o raro esplendor, a tua Obra, coroada
pelas rosas triunfais da Originalidade, ficaria afinal, ó Fidalgo da
Arte! envolta nos mistérios do Sol, egregiamente cantando e chamejando,
na helênica resplandecência da Forma.
ANGELUS

O sol em sangue alastra, mancha prodigiosamente o luxuoso e largo damasco
do Firmamento.

Opulentos, riquíssimos esplendores de púrpuras luminosas dão
uma glória sideral à tarde.

E, pela sugestão cultual, quase religiosa da hora, os deslumbrantes
efeitos escarlates do grande astro que desce, d’envolta com doiramentos
faustosos, fazem lembrar a magnificência romana, a ritual majestade
dos Papas, um festivo desfilar católico de bispos e cardeais, através
dos resplandecentes vitrais do Vaticano, com os báculos e as mitras
altas, sob os pálios auri-lavrados.

Embalsamam a tarde aromas frescos, sãos, purificadores, como que emanados
da saúde, das virgindades eternas.

Um ar olímpico, talvez o sopro vital dos mares verdes e gregos, eterifica
harmoniosamente a curva das montanhas, ao longe, contorna-as, recorta-as,
dá-lhes a nitidez, o esmalte do aço.

Como a Natureza, neste esmaecer do dia, tem mocidades imortais e como que
as forças, as origens fecundas da terra, desabrochem em rosas.

O rubente esplendor solar gradativamente smorza numa cor de rosa leve, de
veludosa suavidade.

Serenamente, lentamente, uma pulverização neblinosa desce das
amplidões infinitas…
Névoas crepusculares envolvem afinal a imensidade, no recolhimento,
na paz dos ascetérios.

Os campos, as terras da lavoura, a vegetação dos vales e das
colinas adormecem além, repousam num fluido notambulismo…
Por estradas agrestes pacificadas na bruma, uma voz de mulher, dispersa no
silêncio, clara e sonora, canta amorosamente para as estrelas que afloram
rútilas e mudas.

Canta para as estrelas! e parece que a sua voz, errante na vastidão
infinita, vai inundando do mesmo perfume original que a alma viçosa
e branda os vegetais exala na Noite…
NÚBIA

Amar essa núbia – vê-la entre véus translúcidos
e florentes grinaldas, Noiva exitante, ansiosa, trêmula, tê-la
nos braços como num tálamo puro, por entre epitalâmios:
sentir-lhe a chama dos beijos, boca contra boca, nervosamente – certo
que é, para um sentimento d’Arte, amar espiritualmente e carnalmente
amar.

Beleza prodigiosa de olhos como pérolas negras refulgindo no tenebroso
cetim do rosto fino; lábios mádidos, tintos e solferinos; dentes
de esmalte claro; busto delicado, airoso, talhado em relevo de bronze florentino,
a Núbia lembra, esquisita e rara, esse lindo âmbar negro, azeviche
da Islândia.

O seu sangue quente, aceso em púrpuras de luxúria, através
da pele sombria e veludosa, recorda avermelhamentos de aurora dentre uma penumbra
de noite, como o deslumbramento boreal das regiões polares…

No entanto, amar essa carne deliciosa de Núbia, ansiar por possuí-la,
não constitue jamais sensação exótica, excentricidade,
fetichismo, aspiração de um ideal abstruso e triste, gozo efêmero,
afinal, das naturezas amorfas e doentias.

Senti-la, como um desejo que domina e arrasta, querê-la no afeto, para
fecundá-lo e flori-lo, como uma semente d’ouro germinando em
terreno fértil, é querer possui-la para a Arte, tê-la
como uma página viva, veemente, de paixão humana, vibrando e
cantando o amor impulsivo e franco, natural, espontâneo, como a obra
d’arte deve vibrar e cantar espontaneamente.

Crescida, desenvolta aos poucos no meio culto, entre relações
de simpatia inteligente e harmônica, sob um sol saudável de cuidados,
de apuro de tratos e de maneiras, que tornou mais leve e penetrante, iluminando,
o seu cérebro simples, de ignorância ingênua, a Núbia
abriu em flor de carícia, alvorou com a doce meiguice dos tipos galantes
e preclaros de mulher e recebeu também, em linhas de conjunto, do mesmo
meio onde desabrochou, essa suavidade e graça núbil que é
todo o encanto vaporoso, aéreo, do ser feminino.

No seu rosto oval, de uma penugem sedosa de fruto sazonado, há, por
vezes, certa expressão de melancolia, de cisma dolorosa, que punge
e contrista; o tênue, já quase apagado raio errante de uma lembrança
vaga, – como se Ela de repente parasse na existência e se sentisse
no vácuo, perdida, e só nos caminhos desolados, desertos, de
onde veio outrora, sem leito, e em lágrimas a caravana gemente de sua
raça…

Então, nesses momentos em que um dolorimento secreto, misterioso,
a conturba e magoa, Ela parece serena divindade aureolada de martírios,
macerada de prantos; e é talvez bem pequeno, bem frágil todo
o amor do mundo para proteger, para amparar, como numa redoma sagrada de Misericórdia,
essa humilde criatura que o fatalismo das forças fenomenais da Natureza
condenou à indiferença gelada e à desdenhosa ironia das
castas poderosas e cultas.

Assim, adorá-la em compunção afetiva, trazê-la
no coração como relíquia rara num relicário estranho,
claro é que não significa banal emoção transitória,
que o rude desdém da análise fria pode, apenas com um golpe
brusco, extinguir para sempre.

Essa emoção, esse amor cada vez mais profundo e espiritualizante,
penetra impetuoso no sangue como a luz e o ar, deliciando e ao mesmo tempo
afligindo como a Idéia e Forma igualmente deliciam e afligem…
E, nem mesmo, no fundo íntimo de qualquer ser tocado de uma intuição
maravilhosa da origem terrestre da felicidade, podem resplandecer, mais do
que na Núbia, as belezas de neve da Escócia e da Irlanda ou
as formosuras originais da Armênia e da Circássia.

Tudo ela possue de luminoso e perfeito, como a noite possue as Estrelas e
a Lua, visto e sentido tudo através da harmonia espiritual, da alta
compreensão requintada e subjetiva de quem a ama e deseja.

A sua alma, de forma singela e branca de hóstia, tem ritmos de bondade
infinita, meigas, claridades brandas e consoladoras de piedade e enternecimento,
e a sua voz sonorizada, com a vivacidade nervosa e o alado timbre argentino,
claro e fresco, de um gorgeante cristal de pássaro, derrama por toda
a aparte a música emocionante, sugestiva e curiosa, de violino afinado…
E nenhum peito dedicado de nobre dama medieval nobiliárquica será
mais gentil e delicado que o seu peito, donde jorra, com firmeza e força,
em onda original, talvez manado dessa simpleza de obscuridade, um inefável
sentimento verdadeiro e virgem como o tenro broto verde dos arbustos.

Ela é a Núbia-Noiva, singular e formosa, amada com religioso
fervor artístico, com a fé suprema, a unção ritual
dos evangeliários do Pensamento; e todo esse feminino ser preciosos
brota agora em exuberâncias de afeto, em pompa germinal de extremos
lascivos, floresce em rosas juvenis e polínicas de puberdade, abertas
sexualmente nos seios pundonorosos e pulcros…
SOM

Trago todas as vibrações da rua, por um dia de sol, quando
uma elétrica corrente de movimento circula no ar…
Mas, de todas as vibrações recolhidas, só me ficou, vivendo
a música do som no ouvido deliciado, a canção da tua
voz, que eu no ouvido guardo, para sempre conservo, como um diamante dentro
de um relicário de ouro.

Cá está, cá a sinto harmonizar, alastrar em som o meu
corpo, todo, como flexuosa serpente ideal, a tua clara voz de filtro luminoso,
magnética, dormente como um ópio…
Muitas vezes, por noite em que as estrelas marchetam o céu, tenho pulsado
à sensação de notas errantes, de vagos sons que as aragens
trazem.

As fundas melancolias que as estrelas e a noite fazem descer pelo meu ser,
da amplidão silenciosa do firmamento, dão-me à alma abstratas
suavidades, vaporosos fluidos, sinfonias solenes, misticismos, ondas imensas
de inaudita sonoridade.

E, calado, na majestade sombria da Natureza, como num religioso recolhimento
de cela, vou ouvindo, esparsos na vastidão, smorzando nos longes, entre
redondos tufos escuros de folhagem, onde se oculta alguma luxuosa existência
de mulher, inebriantes sons de peregrinas vozes ou de invisíveis instrumentos.

E os sons chegam, vêm até mim, na estrelada tranqüilidade
da noite, frescos e finos, como através de rios claros que nevassem
ou de vagas embaladoras que o frio luar prateasse.

E eu penso, então, nessas simpáticas, corretas atitudes e expressões
da música.

Vejo, na nitidez de cristal do pensamento, a harpa, sonora asa de ouro, com
as cordas tensas, dedilhadas por brancas mãos aristocráticas
que arrancam dela frêmitos, soluçantes dolências, plangências
incomparáveis.

Escuto a pompa, a imponência sonorizante de um órgão
de catedral, quando, pelas altas naves, sobem rolos alvos de incenso, e, o
sol, fora, com as flechas dos raios constela de astros microscópicos
as polidas e góticas vidraçarias.

Ou, pressinto ainda, num fidalgo salão do tom, onde os perfis ostentam
valorosidades de linhas ducais e a luva impera galantemente, a assinalada
elegância dos concertos da graça, quando os violinos, zurzinando
notas que esvoaçam do arco resinado às cordas retesadas, zumbindo
e ruflamente prendendo-se à voz que resplende, triunfa na sala, sonorizando-a
e iluminando-a mais que os fúlgidos lustres e os candelabros facetados,
como se, da garganta de quem cantasse, a aurora alvorecesse e vibrasse.

E cuido logo ver uma mulher – alta, beleza grega, formas esculturais
primorosamente cinzeladas.

A cabeça, de uma discreta severidade de deusa, pousa-lhe no rico,
abundante torso inteiriço do corpo forte.

Há uns meigos tons loiros no aveludado cabelo que, por entre a luz,
mais loiro e aveludado brilha.

De pé, erecta, o perfil nitidamente marcado, no meio da cauda astral
da veste de seda rara, ela desprende, evola a voz da garganta de aço
novo e esta espiral de voz revoluteia no salão, fica algum tempo aquecendo
e sonorizando o ar.

Como um astro, essa voz flameja, palpita e gira na iluminada órbita
da sala cheia da multidão que a escuta, e, como um astro, cai, fulgurando,
semelhante a exalações meteóricas, no fundo do meu ser
como num golfo…
Nobremente, pela cadência do canto, o corpo da imaginária mulher
tem certas flexões delicadas e eletrismos de gata voluptuosa, e o seio,
fremente da melodia que o emociona, se afervora e pulsa.

E a voz ala-se, ala-se, gorjeada, arrulhante, trinada, ave de luz harmoniosa
que ela enfim solta do aviário do peito.

Todos esses dulçurosíssimos efeitos musicais me impressionam
singularmente, distribuindo por mim a mais aguda vitalidade mental, que me
tensibiliza os nervos da atenção, como se todo eu me achasse
sob uma atmosfera salutar e tonificante.

Ou, então, cobrem-me também de opulências de gloriosas
soberanias, as vivas forças orquestrais, onde perpassam ruídos
largos de floresta, clarins, inefáveis misteriosas melodias de pássaros.

Mas, do som, da música, não me exalça, não me
enleva só o ritmo leve, educado, que deixa uma suavidade acariciando,
bafejando o ouvido como um perfume bafeja, acaricia, o olfato.

Ficam nos sentidos, nos nervos, calafrios sutis, ligeiros narcotismos, pequeninas
vibrações que, não sei de que rútila chama, parecem
faiscar…
E começo, após um engolfamento de sons profundos, a ter penetrabilidades
intensas, estranhas emoções que me despertam infinita série
de fatos já gelados no tempo, como passadas fases de lua.

Evideciam-se-me idéias, impressões, sugestões curiosas,
certos obscuros estados mórbidos da alma, que em vão a espiritualidade
humana tenta transplantar para os livros, mas que só o ritmo aviventa,
levanta aos poucos da nebulosa das existências, como um sol sempre amado,
mas já antigo, já velho, remotamente apagado nos sentimentos…

Missal 3

A JANELA

Dava para o mar a larga janela verde, em frente às águas também
verdes e turbilhonante às vezes, outras limpidamente quietas, num remanso
de golfo sereno.

Velas saudosas de navios, enfunadas ao impulso das correntes aéreas;
mastreações caprichosas e confusas, misteriosamente interrogando
o céu; os montes ao fundo, formando panoramas álacres com seus
cabeços azulados e colossais, e a grandeza olímpica das ondas
fechadas pela natureza numa extensa área do terreno: tudo gozava e
sentia além viver a janela; e, ao longo de indefinida barra dos horizontes
esfuminhados, a linha vaga, melancolizada, das imensas distâncias intermináveis.

Dum lado e doutro da janela, subindo-a, galopando-a festivamente em caracóis
negligentes, a expansão, a nevrose de folhagens trepidantes que busca
em ânsias o ar…

Rosas vermelhas e rosas jaldes alastravam numa primaveril e casta alegria
radiosa de Via-Láctea, o quadrado verde da janela, enquanto amorosamente
um jasmineiro florido, entrelaçado às rosas, com flores alvas
e cheirosas desabrochadas em forma de pequeninas estrelas, punha um encanto
romântico e noival de janela de Julieta na larga janela verde que dava
para o mar.

E as embarcações, os iates, os navios, os paquetes paravam
no mar dormente, lá iam todos afora, – ambulância marinha,
dorsos de tritões ferozes e soturnos, vogando na superfície
das ondas…

Iam talvez perto: a países meridionais, sob céus elegantes
e azues, ou – mundo adentro – às eternas neves glaciais
das geleiras do pólo: às regiões setentrionais das flamejantes
auroras boreais: a Islândia, a Lapônia, a Noruega, Poe entre as
frias e brancas estalactites fulgurantes da lua…

Em frente à janela, eram terrenos desapropriados e planos, que um
rente folhedo luxuriante cobria.

Depois era o mar, sempre o mar, todos os dias, a toda hora, a todo instante,
cortando, no entanto, com a monotonia do seu aspecto, a agreste monotonia
daqueles sítios suaves.

Mas, contudo isso, o mar nenhuma monotonia parecia inspirar, porque dava
à janela, àquele original recanto, àquele desconhecido
retiro isolado, aberto na parede como o nicho de uma Santa, à recordação
de todo o vasto ruído atordoante e culto da vida de longe:os rumorosos
cais frementes, as movimentadas cidades alegres, os grandes portos febris
da efervescente efusão cosmopolita de mil exemplares de povos.

Pela manhã, aparecia à janela, como um lindo sol feminino,
uma bela mulher, forte, alta, loira, de flavos cabelos talhados dum golpe
numa quente e perfumosa massa de luz e de sangue, clara da epiderme macia
e clara nos rendados vestidos em fofos e folhos que lhe afogavam soberbamente
a garanta bourbônica, arrematados por fitas de azul leve e doce, graciosamente
enlaçarotadas sobre o sedoso colo oválico.

E logo seus olhos azues como as fitas, da mesma meiga frescura e candidez
de hóstia transparente, pareciam adejar, voar, como dois pássaros
inquietos e deslumbrados, pela amplidão das vagas verdes e vivas, como
se ambos quisessem nelas colher alguma certeza ou derramar alguma esperança.

E o seu perfil, sob o sol, alvorecido na janela, lavado nas frescas essências
salitrosas que emanavam do mar, tinha florescimentos, resplandecências,
um vivo fulgor d’ouro novo, derramando no ambiente eflúvios de
magnólia.

Às vezes ela deixava-se ficar por mais tempo à janela –
e era então ali uma deliciosa e cristalina ária de trinados,
de matutinos gorjeios de pequenas aves que por entre a viçosa verdura
da janela esvoaçavam em ruflos e contentamentos d’asa, em palpitações
elétricas de plumagem, cantando para o espaço todo esse sonoro
amor infinito dos pássaros que a sua estreita laringe metálica
tão maravilhosamente sabe desfolhar em notas, como se essa mulher loira
fosse a corporificação da própria aurora que raiasse
doirada no acanhado horizonte enquadrado na florida janela verde.

E ficava ali constantemente a olhar, a ver o mar, talvez na esperança
de algum sonho de afeto que de repente lhe surgisse e cuja enamorada lembrança
lhe vibrasse o coração anelante, fazendo dolentemente o seu
colo arfar, agitar-se numa onda nervosa de convulsão e alvoroço,
inflado desse tormentoso e vago desejo irresistível do amor, que um
dia vertiginou o mundo, e que, quanto mais afastado se está de quem
se adora, mais fundo, mais entranhado fere e martiriza.

Pelas noites, quando o hostiário das estrelas abria a sua rendilhada
cintilação de prata nos sidérios espaços calmos,
ou as finíssimas gazes lácteas da lua flutuavam, velando tudo,
ela, virgem noiva, branca e muda como a lua, por lá ficava ainda a
viajar na gôndola da imaginação e fantasiosa saudade que
a emocionava, através do mar, ao encontro sonhado do seu afeto querido.

E, tonta, magnetizada, narcotizada na emoliente volúpia da lua, na
quente exalação dos aspectos, lá adormecidamente ficava
a amar, presa na fluida teia luminosa das estrelas e da lua…

Agora um muro enriquecido e alto que o musgo e o limo maciamente vestem de
um veludoso verde escuro de tapeçaria, veio para sempre obstar a ampla
vista azotada e alegre do edificante panorama do Mar.

Para além, como um gigantesco protesto que a pedra opusesse às
jubilosas, triunfantes, águas marinhas, o vai, longo e impenetrável,
estendido em pano ríspido de parede socavada e cerrada, que tudo do
mar avaramente encobre – levantado da terra como um brusco e bronco
biombo de terra à livre expansão da luz.

Austeros homens egoístas, no intuito de edificar, apropriaram-se dos
terrenos e para ali ergueram, dividindo-os, semelhante à rija muralha
d’imperecível fortaleza, esse imenso muro empedernido, rochoso,
como que feito de um só bloco inteiriço de calcárea matéria
rude.

Então, sem a perspectiva da alacridade vitoriosa e bizarra das ondas,
sem aquela vastidão consoladora, salutar, das águas salgadas,
e sem a visão branca dessa mulher, vive agora quase sempre fechada,
triste e fria a reluzente vidraça clara eternamente descida, na meia
sombra crepuscular da persiana, a idealizada janela verde – a florejante
janela que abria, como um desejo vago, para o Mar infinito…
UMBRA

Volto da rua.

Noite glacial e melancólica.

Não há nem a mais leve nitidez de aspectos, porque nem a lua,
nem as estrelas, ao menos fulgem no firmamento.

Há apenas uma noite escura, cerrada, que lembra o mistério.

Faz frio…

Cai uma chuva miúda e persistente, como fina prata fosca moída
e esfarelada do alto…

À turva luz oscilante dos lampiões de petróleo, em linha,
dando à noite lúgubres pavores de enterros, vêem-se fundas
e extensas valas cavadas de fresco, onde alguns homens ásperos, rudes,
com o tom soturno dos mineiros, andam colocando largos tubos de barro para
o encanamento das águas da cidade.

A terra, em torno dos formidáveis ventres abertos, revolta e calcárea,
com imensa quantidade de pedras brutas sobrepostas, dá idéia
da derrocada de terrenos abalados por bruscas convulsões subterrâneas.

Instintivamente, diante dessas enormes bocas escancaradas na treva, ali,
na rigidez do solo, sentindo na espinha dorsal, como uma tecla elétrica
onde se calca de repente a mão, um desconhecido tremor nervoso, que
impressiona e gela, pensa-se fatalmente na morte…
MODOS DE SER

Com uma nobre emoção da Arte dizia Balzac que faltariam sempre
cordas à lira de uma alma que nunca tivesse visto o Mar.

Na verdade, sem o mar, sem esse organismo vivo, movimentado, vibrante, as
perspectivas como que são indecisas, vagas, a retina pouco se desenvolve
e educa sem essa larga vastidão das ondas, de onde parece subir, nascer
para o alto, como uma luz original, todo o sentimento indutivo das coisas.

Diante do Mar, à sua influência vital, que é a influência
da força, do vigor do pensamento, as faculdades de cada um recebem
impressões estéticas muito consideráveis, ampliando o
seu modo de ser, dando-lhe a sugestão das latitudes geográficas,
correspondentes também, para um espírito de indução
e dedução fina e atilada, à amplidão das idéias.

Gozar o Mar é viver, sentir a eflorescência da carne, crer n’algum
poder forte e épico que nos encoraje, dê ao pulso e ao cérebro
essa poderosa segurança de existir que levanta sobre rijos alicerces
os princípios e crenças de cada homem.

Do mar vem essa emanação virginal, salutar, que traz o impulso
às ações, o vigor nobre à vontade, dando a todo
o organismo uma função especial, uma atividade própria,
uma determinação expressivista da Natureza.

Os efeitos maravilhosos que a visão recebe do mar , como uma máquina
fotográfica recebe nitidamente as fisionomias, desenvolvem-se nos temperamentos
artísticos em impressões, em nuances, em colorações,
em estilo, em linhas, em sutilezas de percepção, em ductilidade,
em fiorituras de imagens, em abundantes floras de imaginação,
tão múltiplas e luminosas quantas são as infinidades
de ilhas verdes de algas e de sargaços que o Mar contém em seu
seio.

Ele infiltra nos órgãos emocionais e pensantes todo um exuberante
eletrismo nervoso, todo um fluido de luz e originalidade, uma essência,
um germe rico e novo de graça e fantasia alada.

Fica numa saudável impressão e frescura radiante de caça
e pesca, numa alegria de sol undiflavando rouparias brancas e finas.

Serenidade de Campo e Mar é esta em que estou agora.

Campo fértil, verde, como se agora mesmo brotasse, em flor, da terra.

Nas manhãs claras, de grande majestade de sol, pelos domingos, a missa
da capela branca convida a digressar entre árvores, sob o festivo e
claro repique do sino.

E, por estar no campo, numa extensão de relva, de verdurosas alfombras,
lembro-me vivamente dos campos das paradas, ao sol, num espelhar faiscante
de baionetas, rutilar de fardas e triunfal desfraldamento de bandeiras, quando,
imensas, pesadas massas marciais, na evolução de um corpo disciplinar,
agitam-se, num tinir e cintilar de metais, como enorme serpente de coruscantes
escamas.

Com o espírito livre, em asa aberta, eu procuro arrancar das vozes
mudas, inexprimíveis da Natureza, significações.

Campo e Mar estendem-se até longe, ao infinito horizonte, fulgurando
às luxuosíssimas sedas do sol.

Elevados cômoros de areias alvas, ao longo das praias, conservam a
aparência de grandes dorsos de elefantes brancos deitados.

Então, um ritmo me sobe da alma ao cérebro para me afinar os
pensamentos em aspectos felizes, luminosos, como quando os alemães,
fumando cachimbo e bebendo cerveja, por entre uma leve névoa ideal
de fumo e álcool, mentalmente produzem filosofias…

Como essas raças finas e loiras a que nada mareia a pureza clara da
carne civilizada, a idéia da Arte surge-me, alvoresce-me no espírito,
diante das ondas, sideral, imaculada, como uma doce monja vestida de linho
branco e virgem.

Estranhos, misteriosos, na magia dos feiticeiros caldeus, com o pensamento
cristalizado na Forma, sinto que me ferem o cérebro, pesando fundo
sobre ele, os nevropatas de agudez psíquica, mórbida, doentia,
os psicólogos tenebrosos que como Huysmans, vibram num eletrismo histérico,
numa dança macabra, satânica, num delirium tremens de sensações.

Ninfomaníacos mentais, como que sob a impressão de um sono
de morfina ou de ópio, numa alucinação ou fascinação
de hipnotizados, a alma deles flutua, desce sombriamente lá abaixo,
ao antro negro da Terra, ou sobe lá acima, à infinita mudez
do céu, como que em busca, sinistros e luminosos, revoltados Moisés
de uma Bíblia nova, em busca de saber qual a doença que dá
a morte…

Sentem-se-lhes isso na tortura da prosa, no funambulesco cabriolar do estilo,
na acre violência das palavras, abertas umas em chagas e escorrendo
sangue, outras brancas como Noivas amadas derramando lágrimas astrais…

E, dentre esse exalar de vida espiritual dolorosa, rompem coros de catedrais
entoados por veladas, místicas vozes freiráticas; ouvem-se Missas
negras e abrem-se, num ritual cristão, para a contemplação
dos augures e dos símbolos, os medievos Hagiológios.
NO FAÉTON

Na manhã fria, fresca de maio, por uma rua arreada, um noble esplendor
de mulher iluminou-me e surpreendeu-me os olhos.

Numa elegância de pelúcias claras, o seu perfil delicado, um
biscuit d’arte, surgiu em flor no faéton, alta a estatura, com
a graça educada de amazona espiègle.

Nos amplos claros de aspecto arejado de gare, sob o espaço vibrante,
sonoro como uma grande cúpula de cristal, o faéton girava, de
manso, na doce flexão das rodas leves, como se girasse sobre macias
relvas de veludo.

Os cavalos normandos, lustrosos no cetim do pêlo, davam a correção,
o tom das carruagens de molas flexíveis, suaves, das envernizadas caleches
aristocráticas de luxo, cujos claros e polidos metais dos eixos cintilam.

Com uma linha fidalga ela manobrava as rédeas, nuns volteios audazes
e galantes, a mão fremente, agitada, convulsa pelo ferir matinal do
frio no sangue novo de gazela, com a orgulhosa atitude das ecuyères.

Algumas atenções paravam diante desse feminil deslumbramento
desabrochado ao sol em aromas e formosuras.

No ar nítido, azul, fino do dia, duma limpidez deliciosa, o seu esbelto
porte nervoso vinha erecto, num alto-relevo, destacando forte no fundo luminoso,
transparente da manhã, como que cortado, talhado numa lâmina
de vidro.
RITOS

A luz lirial da Lua abre tu’alma, artista, como um solar antigo.

Sob a neve luminosa do grande astro noctâmbulo, as visões que
um dia amaste aparecerão agora.

Ah! A tu’alma é um antigo solar, onde mulheres prodigiosas,
enfloradas de beleza, peles finas, transparentes, de delicadeza de porcelana,
passaram.

És um solar antigo…

Tens o ar enevoado do crepúsculo de melancolia que há nos velhos
solares.

Alguma coisa de nostálgico, de evocativo, como vagos sons plangentes,
à noite, ou à hora do Ângelus, na solidão dos campos
levanta e acorda a tu’alma.

Teu coração é o Sagrado Viático, mais puro e
branco que as claras hóstias.

De que fundo de civilização, de que ramo de raça, de
que região viestes assim, numa original sensação de nervos,
palpitante, convulso como o mar e como o mar sereno e também como o
mar profundo e grande?!

Pelas tuas idéias, pelos teus olhos fatigados de ver e perceber de
perto o incoercível mundo, passam as alegrias, as lágrimas,
o intenso viver de muitas gerações.

Tu representas bem todas elas, és a essência espiritual de infinitas
camadas humanas, o luminoso requinte dessas gerações que findaram
e que não foram mais do que simples moléculas para formar o
teu estranho, poderoso organismo de artista.

Sofreram, gozaram e pensaram – para que tu sobre elas fizesses nascer,
surgir o mundo virgem das tuas impressões e idéias. E é
por isso, artista, que abres tu’alma, como um solar antigo, à
luz lirial da Lua – apaixonada sultana que vaga à noite, que
vigia e vela pela Religiões incomparáveis do Pensamento, seguida
do fulgurante cortejo das estrelas odaliscas…
MULHERES

Magnólias de aroma lépido, finos astros, que elas sejam, olhos
faiscantes, como águas dormentes de delicioso Danúbio que a
luz sonoriza e doira, humildes e imperiosas, ninguém jamais saberá
o mistério que as envolve…

Amar e gozar as nebulosas mulheres, mergulhar, engolfar a alma infinitamente,
inefavelmente, em repouso, como num harmonioso luar, sem sobressaltos e ansiedades,
na alma enevoada que elas ocultam sempre, só é dados às
naturezas vulgares, que amam com a carne, que amam com o sangue apenas, no
ímpeto brutal de todos os instintos, com a luxúria viva da carne,
que fazia, desde os romanos, a carne viçosa e rica.

Os que a amam e gozam sensualmente, à lei da sexualidade, não
lhes ouvem a vaporosa música embriagante do vinho dos encantos da voz
e do sorriso; não lhes sentem o perfume delicado de úmidas bocas
purpúreas, de níveos colos cor de camélia, de volumosos
seios macios como a alava plumagem fresca de um pássaro real; não
lhes percebem o amoroso ansiar de etéreas cintilações
d’estrela nos olhos indagadores, que atravessam, costumam passar em
visão, pesados de luz, com um brilho aceso e fagulhante de preciosas
e raras pedrarias, as geladas noites brumosas do ciúme…

Para esses, que só as possuem sexualmente, elas trazem um deleite,
um atrativo, como no Oriente o fumo, que dá prazeres insubstituíveis,
voluptuosas graças de viver, atila e acende a imaginação,
faz abrir e flamejar, incomparavelmente, de todos os pontos do mundo, os mais
inauditos sóis do Espírito…

Esses, ainda outros ou todos, poderão decerto inundar-se no esplendor
da beleza das mulheres, fruir delas toda a fremente carícia, possui-las,
dominá-las sem hesitação e embaraços estranhos.

Para todos elas não terão sombrias torcicolosidades de serpentes,
anseios, anelos indecifráveis, enigmas tremendos, que nos deixam deslumbrados,
extáticos, na mais intricada rede de perplexidade.

Elas serão para todos o eterno feminino, leve, simples, fácil
a conquista, fácil a vitória, tendo para os homens os arrastamentos
prontos de um animal que se abandona à lubricidade.

Ninguém saberá ver nas mulheres esse complicado segredo de
nervos, que ora se patenteia claro penetrável e que ora mais se condensa,
se intensifica de obscuridade, torturando, afligindo, vago, abstrato como
a dor e por isso ainda mais terrível, mais esmagador e frio…

Só um ser, consubstanciado de todas as angústias, de todas
as incertezas e dilaceramentos do espírito, um ser contemplativo, amargurado
pelas análises, ferido sempre pela observação, pelas
idéias que sangram e vivem perpetuamente a martirizá-lo, para
seu gosto excêntrico e único, só esse ser as compreenderá,
mudo e solene, encerrado na solidão dos seus pensamentos, como um missionário,
alheio às exterioridades dos corpos delas, às linhas, ou só
as amando por sentimento estético e analisando continuamente, sondando,
perscrutando o feminino organismo dúbio.

Só a psicologia desse ser, que é o artista, saberá ver
fundo o delicado ser das mulheres e penetrar nas sutilezas, nas direções
variadíssimas e múltiplas que toma o seu espírito, à
maneira das aves que voam alto, sem rumo, além, indefinidas na distância…

Esse poderá querê-las muito, adorá-las com outra chama
sagrada; mas nunca as poderá amar carnalmente, friamente com os nervos
– porque aparecerá sempre o analista sufocando o afeto espontâneo
que não se delimita nem regulariza, o entendimento artístico,
que ama a Forma, destruindo o fator humano que fecunda a carne, que perpetua
a Espécie.

Quanto mais elas forem complexas, segredantes, tanto mais a análise
se manifestará mais arguta, mais penetrante, de um modo experimental,
nu, amplo; e as mulheres, afinal, ficarão diante do artista, como documentos
palpitantes de uma dada natureza, provas flagrantes de paixões veementes,
de desejos, de vontades, de uma infinidade de atributos e qualidades radicalizadas
na alma feminina e que o pensamento do artista investiga, conhece, põe
para fora, à toda a luz, como se expusesse, na presença do mundo,
explicando a função de cada um, os milhares de glóbulos
de sangue que circulam no organismo humano.

A dor de tudo isso, porém, a pungitiva dor de tudo, é que o
artista não pode, assim como todos, espontaneamente amar.

Ele ama um golpe de luz, um olhar, a fascinação de uns cabelos
quentes, a polpa virgem de uns seios, a graça idealizante e alada de
um sorriso, o talho vermelho de uns talhos frescos, o tom das elegâncias
fidalgas dessas Flores escarlates das Babéis de ouro, que passam na
corrente das civilizações e na febre, no delírio dos
luxos fortes.

Vendo para dentro de si, como para o fundo de um mar prodigioso, ele domina
com o olhar perscrutante, inquieto, que apanha de pronto as situações,
a maravilhosa ductilidade das mulheres, vendo também perfeita e singularmente
o que se dá dentro delas, as suas inquietudes, as suas paciências,
os seus receios, os seus caprichos inesperados, as suas volubilidades doentes
e curiosas, as suas resoluções bruscas, os seus ímpetos
de leoa, os seus enternecimentos ingênuos e monocórdios, os seus
momentos horríveis de crises hiper-histéricas, sem causa determinada,
sem assinalamentos de origem, mas assoberbantes, convulsos e que de repente
cessam como vieram, para tornarem ainda, mais desabridos e persistentes.

As mulheres, para o artista, para e estesia exigente, requintada, são
apenas um elemento de sugestão estética amoldável às
necessidades artísticas do sugestionado. Elas falam, abrem-se mesmo
ao amor em rosas fecundas de sinceridade, dizem os ardores apaixonados, as
recônditas sensações, a vida íntima dos eu afeto;
mas o artista as ouvirá, como artista que é, a frio, simulando
interesse, formando já, mentalmente, com as palavras delas, com essa
confissão franca, pura e sentida, embora, verdadeiras páginas
de emoção e estilo.

E, no entanto, ele as quererá amar muito, eternamente e sem reservas,
abrir-lhes os braços ao amor, com todas as forças másculas,
vigorosas e livres de homem, com a firmeza mais casta dos carinhos e das ternuras,
estremecendo-as, idolatrando-as.

Mas, um ligeiro contato apenas, um leve roçar de lábios, um
abraço desfalecido, murcho, algumas frases balbuciadas materialmente,
ao acaso – e aí estará de novo o mentalizado, o espiritual,
descendo a investigações, medindo cada gesto e cada olhar, inquieto,
aflito com a expressão de um toque de luz numa trança de cabelos,
que ele quer levar para a sua Obra ou preocupado com o fino Sèvres
que fulgurou uma noite em certo boudoir, faiscando centelhas d’astro.

Contudo, quando esse luminoso torturado as vê descendo ou subindo os
átrios claros de palácios festivos, altas Walquírias
de neve nas pompas orgulhosas das sedas que roçagam, como que fica
preso, magnetizado por aqueles aromas fluidos, vivendo na auréola majestosa
do clarão que elas de si desprendem; e então, como na cauda
constelada e rojante, os fulgores sedosos levam aspirações,
sonhos que ficam errantes e que quereriam talvez subir ou descer, opulentamente,
como as deusas resplandecentes, os mesmos festivos palácio de átrios
claros.

Entretanto, não é aí o amor, o sentimento que se manifesta
ainda na alma artística; não é uma expansão afetiva
– mas uma verdadeira expressão d’arte, um desejo de posse,
que logo invade as naturezas dominadoras, altivas, onde as idéias predominam,
atuando, fatais e intensas, nos fenômenos da Vida, os mais elementares
ainda.

O que excita o artista, seja nos átrios claros de palácios
ou em toda a parte, é simplesmente a Forma, é toda essa roupagem
deslumbrante que faz as mulheres parecerem auroras boreais; o que lhe incita
a pensar nelas, a desejá-las, é a plástica olímpica,
o onipresente esplendor das curvas cinzeladas, os mármores coríntios,
o alabastro dos corpos flóreos. . O que o surpreende, deixa atraído
e fascinado é o ar gelado da carne alva das loiras, que deliciam, o
ardente sol tropical da carne tentadora das morenas, que cheiram a sândalo
e matas.

Amar as mulheres, profundamente, com simplicidade, com singeleza, sem cuidados
latentes de observá-las a toda hora, com os mínimos detalhes,
linha por linha, traço por traço, sem essa preocupação
doente que as exigências provocam, não é para a concentração,
para a contenção nervosa dos falangiários da Arte, que,
de todas as coisas, querem arrancar o germe de que necessitam, o pólen
que lhes é mister para a fecundação de sua Obra.

A linguagem feminina, algumas fiorituras das frases passageiras constituem,
de certo modo, um tecido primoroso, os fios delicadíssimos com que
a Arte contextura, urde a tecelagem da Forma.

Mas o desolado psicologista do Pensamento não as pode amar com intensidade
e desprendimento espirituais, sem as querer observar sempre, desataviá-las
das plumagens garridas e ver-lhes, à luz , o que elas sentem e pensam
de nebuloso…

Por isso é que muito naturalmente, por intuição própria,
elas percebem que não poderão jamais amar os artistas, tendo
até para eles uma repulsão como que instintiva e sendo mesmo
indiferentes às suas solicitações mais veementes e calorosas.

Vendo-se a cada instante o objeto das interpretações deles,
reveladas através de seus pensamentos tão recatados como os
seus seios, os pudores dos seus corpos angélicos, em tantas páginas
dilacerantes e impiedosas, as mulheres não buscam sistematicamente
os artistas para amar, feridas nos seus orgulhos melindrosos, nas suas vaidades
excessivas e principescas, nas suas finas susceptibilidades de formosos seres
triunfantes e inaccessíveis.

Só raramente, por singularidade, uma ou outra mulher ama o artista,
quando já acaso existe nela qualquer corrente de simpatia mental, qualquer
relação de afinidade que estabeleça entre ambos uma claridade
e harmonia de sentimentos mais ou menos congêneres, equilibrados.
PERSPECTIVAS

Naquela alvejante planura de areias salitrosas, onde o mar espumeja; naquela
fulgurante extensão de praias brancas, indizíveis de pitoresco,
felizes os olhos que se demoram, com o carinho, o afeto das coisas, a gozar
as riquezas, o encanto, a imponência imortal dos aspectos.

Nas manhãs, céus louçãos, de um leve ar azul,
azotado, fresco, pacificam o porto, adoçam os horizontes, inefavelmente.

Ocasos opulentos, feéricos, imprimem às tardes a mais suntuosa
e serena majestade.

No mar, ao largo, entram e saem navios de alto bordo, numa infinita beleza
de excêntricas formas requintadas, em caprichosos estilos diversos,
mastreações aparatosas, parecendo enormes aparelhos estranhos
para maravilhosamente arrancarem do fundo das ondas o misterioso deus das
algas, da lenda secular e virgem dos hirsutos tritões verdes.

Marinheiros terrosos e fuscos, como que sujos a betume; outros loiros, flamejantes
do sol, do ouro cantante da pele, dão à paisagem sã,
revigoradora e larga, tons álacres e acres.

Das vagas, como exóticos monstros marinhos, as rubras e arredondadas
cabeças das bóias, aqui e além, emergem.

Os mastros avultam, enchem prodigiosamente o mar supremo, sob a flava cintilação
do dia; e, assim firmes, aprumados ao alto, ao firmamento, parecem tochas
imensas para a celebração do Te Deum sideral dos astros, nos
templos pagãos dos navios.

À noite, peregrinadoras estrelas, em claras chamas sagradas, no espaço
ardem.

Uma lua virginal, aureolada de branco, irrompe fria e magoada, com um ar
antigo e desolante de histerismo atormentado, como as freiras que envelhecem
nos claustros.;

Hálitos, vivos estremecimentos elétricos, passam, perpassam
no dorso Glauco das ondas que o luar então alastra…

Mas, o que mais enternecidamente enleva e perturba até as lágrimas,
num sentimento intenso, de recôndita vibração, é
um simples lenço, um adeus febril vertiginoso, em ânsia, que
ali fica às vezes a palpitar ao sol, infinitamente, na emoção
de uma alma, para a vela que vai já além confusa na distância,
desaparecendo, perdida nos longes esfuminhados, infinitamente, infinitamente…
CAMPAGNARDE

O dia abriu um explosão d’oiro, dum oiro inflamado de forja,
trescalando perfumes, cheirando acremente à terra.

Tu, gárrula vivandeira dos prados, que ao primeiro rumor sonoro do
teu coração amoroso, como ao alegre rufo bizarro dum tambor
de guerra ou à esfuziante vibração matinal de uma trompa
de caça, toda estremeces e fremes, voltas agora púrpura dos
campos onde te fecundaste, desabrochaste e floriste logo em papoula.

E voltas mais púbere, mais virtual, mais mulher, porque sorveste o
leite o leite virginal e sadio aos abundantes seios da Natureza.

Quando para lá foste, o teu corpo frágil, tênue, traspassado
do azulado enraizamento arterial das veias, era quase diáfano, transparente,
vitrescível quase, através do qual bem facilmente a aurora coaria
os seus flavos raios rútilos, como através de um delicado e
aromático filó finíssimo, cor-de-rosa e translúcido.

Além disso, quando para lá foste, eras infantil ainda, ainda
a ave implume, e entrarias daí por diante, como por uma zona de sol,
nesse luxurioso período genesíaco da mulher, quando suas formas
se ampliam, se completam e perdem essa volatilidade aérea, o borboletismo,
essa tonalidade vaporosa da primitiva graça, para irem aos poucos adquirindo
opulências, exuberante vigor germinativo no sangue que as alimenta,
enlabareda e fecunda, arredonda e turgesce triunfais e alucinantes no colo
as duas polposas saliência carnudas, das quais, em busca da instintiva
subsistência, pende, mais tarde, como astros no firmamento, o encanto
virgem dos filhos.

Mas, agora que de lá chegas, vens florescente como a vinha verde,
dum sabor de uva branca, inundada do palpitante pólen doirado da antera
dos vegetais, das emanações revigorativas da planturosa paisagem.
Trazes a

carne emadurecida, sazonada em fruto, exalando essências de campos,
sutilíssimos eflúvios de vergéis, alastrada de brilhos
quentes, de elétricas faíscas narcotizantes, como se o teu imaculado
torso inteiriço irrompesse, brotasse do noivado da Natureza no mesmo
veemente e original impulso das árvores e dos rios.

Perfeito, soberbamente rico e raro, Campagnarde! esse humor campestre, esse
alagamento e deslumbramento de luz com que regressas da Vida, do seio livre
da grande amplidão da saúde, onde tudo, afinal, são concentradas
forças, pujanças novas para o sangue, renascimento para a carne.

Ninguém, por certo, calcula, a ninguém sugere, por certo, a
alta realidade do quanto é salutar e é nobre e supremo bem que
lá se goza nos campos e como o corpo abalado pelos inevitáveis
golpes da matéria falível, resiste o espírito, o fluido
nervoso, dando à existência o equilíbrio sereno.

Nenhum pincel colorista, nenhuma entranhada emoção ou visão
impressionista d’arte, nenhuma perciptibilidade acústica de músico,
poderá bem com exatidão apanhar a cor, o sentimento, a errante,
dispersa harmonia que se eterifica na liberdade dos campos e que assim te
penetrou pelo coração e pelos olhos, primorosamente enflorescendo
e viçando no teu corpo de graça, lirial e formoso.

Abres a veludosa e cerejada boca e os teus esmaltados dentes rutilam –
lisos e claros – enrijados nos ares puros, nas frescas águas
correntes, nos frutos castos e doces. Falas, e atua voz, em músicas,
desfolha notas de canção feliz da tu’alma; e a tua voz
pelo espaço voa, voa, voa de eco em eco, infinitamente, inefavelmente,
parecendo então reproduzir o teu nome, Campagnarde! Campagnarde! e
eternamente desdobrá-lo, arremessá-lo ao longe, por colinas
e vales derramá-lo, Campagnarde! Campagnarde!
RITMOS DA NOITE

Lá fora a noite é estrelada e quente.

Chego da rua. A vida ferve ainda nos cafés com intensidade. No Londres,
uns imbecis doirados de popularidade fácil saudaram-me, e, nessa saudação,
senti o ar episcopal das proteções baratas que os conselheiros
costumam dar aos jovens esperançosos.

Eu percebi o conselherismo e tive uma careta, uma grimace diabólica
de ironia…

Oh! Oh! infinitamente incomparáveis os caríssimos imbecis doirados
de popularidade fácil…

No meu quarto, entro, enfim, agitado, da rua, com mil idéias, com
mil impressões e dúvidas e fundamente considero, tenho tão
estranhos monólogos mentais, que quase que me alucinam.

A luz da vela, em torno à sombra do quarto, põe uma claridade
velada, penumbrada, quase morta.

Um retrato de Daudet, pendurado à parede, parece ter para mim uma
piedade no seu fino perfil de Cristo alemão.

Ah! por que será que na hora dos estrangulamentos supremos, quando
a Dor nos alanceia e torna velhos, os objetos têm todos, para nós,
uma feição singularmente diversa da que têm sempre –
ou sinistra, ou agressiva, ou piedosa?

Por que será que nas longas noites desolação, quando
uma ventania de desespero sopra por trompas de bronze do nosso peito, todas
as coisas desfalecem aos nossos olhos, as perspectivas se anulam, os astros
loiros se apagam e a própria luz de uma lamparina ou de uma vela projeta
claridade dúbia, que antes punge, que antes apunhala e dói,
do que alumina!?

O coração cerra-se-nos de uma névoa triste, e, como
um solitário monge, põe-se a balbuciar não sei para que
mundos distantes, orações indefinidas, kiries eternos e nostálgicos,
de um nebuloso sentimentalismo, que estão no fundo de todos os seres
espirituais.

São fluidos íntimos, virginais, da alma, que sobem para o desconhecido;
são incensos inefáveis de que está cheio o turíbulo
do nosso amor e que, nos lancinantes momentos em que se desmorona para nós
alguma força nobre, alguma força edificante, partem candidamente
para as regiões do Ideal, país jamais descoberto e que só
o pensamento logrou conhecer…

Vão lá saber qual é a tecla sombria que vibra o nosso
organismo em certas horas, qual é a corda que pulsa, quais os nervos
que se agitam!

Por uma impressionabilidade indizível, por um toque no orgulho, por
uma mancha no cetim branco da Arte, lá fica uma nobre cabeça
doente, sob a febre das nevroses, sentindo eboluir o sangue em chama e sentindo
até que o cronômetro regular do pulso alterou a marcha das vibrações…

Tudo o que nos vem às idéias são princípios de
demolição, de destruição, armados das rijas couraças
e das agudas lanças da sua inevitabilidade.

O mundo surge-nos logo como uma formidável floresta dos tempos primitivos
e só tremendos animais de uma colossal corpulência urram e bufam
sanguinolentos.

E a noite, que verte fel no espírito, arrebatando-o não sei
para que inferno de agitações, não sei para que tercetos
do Dante, ainda mais peadas barras de chumbo arroja sobre o florido arbusto
da Crença, cujas flores luminosas já a indiferença humana
calcou a pés, ou a ruidosa, jogralesca multidão dos cafés
desdenhosamente cuspiu em cima.

E, nessas batalhas, batalhas vivas, acres, onde o coração está
eternamente a sangrar, a sangrar; nesses rudes combates, ao mesmo tempo tão
puros e fidalgos, a carne é o menos que fica ferido, os músculos
são o menos que se perde, os nervos o menos que se atrofia.

O que se perde de todo é a alta penetração da Vida,
do Mundo e dos Homens, para terrivelmente se adquirir uma doença amarga,
aguda e dilacerante, que se constitui das frias e tortuosas análises
e que se chama – Psicologia.
SUGESTÃO

Tu, quem quer que sejas, obscuro para muitos, embora, tens um grande espírito
sugestivo.

Os jornais andam cantando a tua verve flamante, pertences a uma seita de
princípios transcendentais.

Na tua terra os cretinos gritam, vociferam.

Não sabem o que tu escreves. Não entendem aquilo… Palavras,
palavras, dizem.

Tu tens, porém, uma tal orientação, uma tão profunda
firmeza artística, que não te abalas com a vozeria que se levanta.
Pelo contrário! À bateria de frases ríspidas, que te
assestam, rompe do teu cérebro a bateria viva das idéias.Não
recuas, escreves.

Tudo quanto a imaginação pode criar de imprevisto, original,
surpreendente, vais arrancar à nevrose da composição,
encrustar, como pedrarias, na escrita cinzelada, cujo estilo apuras e aprimoras
com verdadeira êxtase de uma devotada seita religiosa.

E, apesar das frases que te dirigem, cercam-te apoteoses. E isso, conquanto
simules o contrário, sempre te desvanece.

Então, para que o teu esplendor seja maior e mais completo, andas
a preparar um livro de estilo nobre e que, segundo pensas nas horas de nervosismo
psíquico, há de fazer sucumbir no lodo da banalidade a turba
triunfante dos imbecis.

E assim, com a tua elevação mental e disciplina, julgas-te
profundamente feliz. Não trocarias o teu espírito pela ostentação
e pompas do mundo. Ah! se tu tens a pompa das idéias!

O cocheiro mais agaloado e galante, guiando o mais elegante coupé
tirado por éguas de raça, de amplas ancas carnudas e luzidias,
cheias de nervosidades, de altivezes bourbônicas, com um fino sentimento
mulheril nas linhas, tudo isso, Artista, não vale a página mais
simples, mais frouxa, sem mesmo maior ornamentação de estilo,
que tu, por acaso, escrevas.

Nem tu trocarias todo o veio virgem do ouro do mundo pelo livro que daí
a meses deve entrar para o prelo.

Os reclamos soam pelos jornais, como clarins. Andam já longe. Caminham.
Chega já ao domínio de todos a notícia. Há ansiedade.
Espera-se a obra. Vai aparecer, brevemente, cintilante, a duas cores, em tipos
Elzevires, vistosos e claros, com o teu retrato, papel satin, nas lustrosas
vitrinas, acendendo um clarão em torno do teu nome, como um facho de
fama.

Mas, um dia, vais ao teatro, um acaso, por exemplo. Sentas-te na poltrona
junto à orquestra. Num intervalo suas demasiadamente. Estás
abafado do calor da noite tórrida. Precisas de ar, de refrigerantes.
Um sorvete, um gelado.

E, seguro de teu vigor de mocidade, da tua saúde e do radiante rubor
do teu rosto, que é admirado na rumorosa cidade onde habitas, tomas,
sem o maior receio, o gelado que te trazem.

Daí sentes-te logo como que atordoado.

Não estás bem. Calafrios agudos percorrem-te a espinha. Vertigens
cálidas fisgam-te a cabeça. Ardem-te os olhos e se umedecem
sob a luz flagrante e crua da ribalta;mesmo o gás te dá mais
febre; parece que te estalam as fontes, latejando fortemente – e tu
não podes mais ficar, nem um instante sequer, na vasta sala iluminada
e cheia de multidão matizada que formiga e aplaude.

Então, um de teus amigos te conduz à casa, já abatido
e quase sem voz; e, mais tarde, passados dias, corre a dolorosa notícia,
– ó amargurado Espírito moderno! – de que morreste
de uma pneumonia aguda…

E após a tua morte ainda se haveria de contentar o teu merecimento.
Muitos diriam:

– Também não deixou um livro que significasse a sua individualidade.

E outros responderiam:

– Mas deixou escritos nos jornais.

– Ora, jornais! jornais são papéis avulsos, vivem o curto espaço
de um minuto ou de um segundo e, muitas vezes, até sem os lermos, com
os mais resplandecentes pensamentos contidos em suas colunas, os

deitamos pela janela fora… Um livro sintetiza qualquer individualidade.
Não se pode acreditar, portanto, não há documentos que
atestem, criticamente, o valor intelectual desse escritor que morreu…

Daí então, só no preciso decurso de tempo para o teu
cadáver apodrecer na soberana indiferença da terra, aparece
o teu livro, aquele mesmo onde tanto trabalhaste, que fecundaste de idéias,
onde tanto derramaste o vivo poder de teu cérebro, onde consumiste
uma porção de sangue e de nervos, assinado, e com outro título,
por uma vulgaridade batráquia, na qual toda a gente acredita, e, oh!!
comparando-a contigo, acha-a mais superior, extraordinária, sem igual
até.

E tu, lá embaixo, ficarás, na frialdade da terra, sem nunca
teres vencido! com ironia dessa glória de néscio a rir de ti,
perpetuamente, à chuva, aos vendavais e ao sol, do alto da tua cova!

Missal 4

SOFIA

Foi na sala branca, de leves listrões d’ouro, que eu a vi interpretar
um dia ao piano Mendelsohn, Schumann, as fugas de Bach, as sinfonias de Beethoven.

Tinha um nome bíblico, lembrando palmeiras e cisternas: chamava-se
Sofia.

Era alta, de uma brancura de hóstia, como certas aves esguias que
os aviários conservam e que aí vivem num grande ar dolente de
nostalgia de selvas, de matas cerradas, de sombrios bosques.

Nervosa, de um desdém fidalgo de fria flor dos gelos polares, e triste,
traía a Arte aquele altivo aspecto, a orgulhosa cabeça erecta
em frente às partituras, que os seus olhos garços liam e que
os seus dedos rosados e aristocráticos executavam com perfeição,
com claro entendimento nas teclas.

E de todo esse nobre ser delicado, de todo esse perfil de imagem de jaspe,
irradiava uma harmonia vaga, melancólica, uma auréola de pungitiva
amargura, mais desoladas que as sinfonias de Beethoven, como se todas aquelas
músicas excelsas tivessem sido inspiradas nela.

Ó aromas, sutilíssimas essências dos finos frascos facetados
do luxuoso boudoir dessa musical Magnólia; aromas vaporosos, maravilhosos
perfumes que incensais, à noite, de volúpia, a sua alcova, como
as purpurinas bocas das rosas, falai a linguagem alada que as vozes humanas
não podem falar e dizei os murmúrios estranhos dos sentimentos
imperceptíveis, imaculados, que alvoroçam a alma ansiosa dessa
sonhadora Sofia.

Só os aromas, só as essências terão os eflúvios
castos, os fluidos luares de expressão, o ritmo inefável para
contar que latentes palpitações traz Ela no sangue, que chama
d’astro lhe inflama o peito, quando volta triste dos concertos egrégios
e vai enclausurar-se na alcova, – muda, muda, talvez sob a névoa
de lágrimas, na comovente concentração dos que morrem
amando…
MANHÃ D’ESTIO

O Azul hoje amanheceu numa melodiosa canção, duma consoladora
carícia veludosa de arminho, duma doce e suavíssima frescura
de maçã rosada – brunido, reluzente, como um raro bronze
florentino finíssimo, vivamente cheirando a violetas, a jasmins e a
rosas machucadas.

Na cristalina sonoridade do côncavo páramo aberto há
uma etérea música que passa em fios sutilíssimos de luz
e de aroma pela sua transparência diamantina e velada, como um líquido
radioso e fragrante através duma primorosa safira.

E o canto de um pássaro, que além atravessa o céu é
mais brando, é mais tenro, então, mais harmonioso e sereno,
prende, emociona e arrebata mais porque vai cheio desta ambiente fluidez matinal,
desta vaporosa e delicada tonalidade aérea, deste fino sentimento amoroso
de impoluto noivado dos elementos naturais animados, destes, enfim, deliciosos
tons alegres que dão um rico sabor à terra, uma vibração
luminosa aos aspectos e um mais meigo encanto imaculado aos frutos que pendem
das árvores e às flores que coloram, dulcificam tudo com a graça,
a inefável candidez de sorrisos.

Os arvoredos recortam nitidamente no ar as suas ramagens intensas, cujo verde
orvalho cintila, e as palmeiras, que mais de perto avisto, altas, sobrepujando
os outros arvoredos, como a afirmação soberana do poder germinativo,
aprumam-se, firmes, desdobrando no alto as suas verdejantes plumas que tremeluzem
nas arfantes aragens.

Na pradaria florida os gorjeios crescem, trinados festivamente cortam o espaço,
vôos, rumores d’asas, claros e argentinos ruídos frescos
de rios, chiantes carros dormentes de lavouras tomando o vermelho e risonho
atalho murmuroso dos campos relvosos, entre a implorativa plangência
mugidora dos tardos bois melancólicos;

movimentos agrícolas de enxadas, de sachos e arados, todos os instrumentos
e aparelhos rurais, cavando, mondando, preparando a terra para as culturas,
avigorando-a e adubando-a, dando-lhe a larga força nutriente aos germes
para que ela opere e produza, farte infinitamente a todos de sazonadas colheitas.

E toda essa orquestração da Natureza e do trabalho, todas essas
impetuosas, palpitantes correntes da Vida, enchem o ar de alvoroço,
de alarido, duma religiosa bênção panteísta e de
um cântico enlevador que desce consolativamente sobre as coisas –
como se toda a seiva, vegetal e humana, estivesse na gestação
poderosa, da fecunda elaboração de mundos virgens e novos.

Nós, Artistas, que dissipamos toda a nossa mais bela e opulenta porção
de glóbulos rubros para arrancar à Natureza a sua latente verdade;
que nos embevecemos na contemplação, no misticismo do céu;
que de tudo ansiamos pelas recônditas, encantadas origens; que tanta
vez nos mergulhamos no azedume e na inclemente maresia do tédio, achando
a vida gasta, acabada, falazes e mentidos os seus lantejoulados, fascinantes
enlevos, trememos de comoção, ficamos extasiados quando essas
perspectivas se nos antolham assim d’esplendor, trazendo ainda à
nossa desvirilizada e já quase decadente estrutura moral um pouco de
alento, heroísmo e força, de sagrada virtude de pensamento e
gloriosa envergadura espiritual para a luta, hauridos a plenos sorvos nos
abundantes mananciais de luz, na soberba caudal imensa da Natureza fecunda
e generosa.

Porque só a Natureza, germinalmente só ela, nos sabe dar à
alma e ao corpo esta nobre saúde, estas estóicas atitudes épicas;
porque só ela nos comunica os seus emotivos impressionismos, nos penetra
os seus evangélicos, pensativos silêncios e recolhimentos alpestres,
tão empiricamente transvasados no neblinoso luar dos Sonhos e tão
relicariamente votados ao culto como os santuários; só é
dela que vem a crença robusta que nos põe no peito como que
afiadas lâminas de espada para destruirmos bizarros as mil venenosas
cabeças da formidável serpente da Dúvida; só ela
nos veste dessa flamante irradiação de aurora da qual emergimos
vitoriosos, no fluido ouro resplandecente da aurora da Vida;e só ela,
enfim, nos lava do mal, nos purifica como a salitrosa salsugem do Mar glauco
nas salutares e matinais travessias d’alacridade picante, quando se
volta das ondas numa eflorescência pagã de Tritão marinho,
no luminoso frescor primaveril e sonoro dum viçoso ramo silvestre ruflante
de revoadas de coleiros e gaturamos cantando.

Um clarim, uma trompa de caça que por aqui vibrasse, como numa pastoral
da idade média, nesta formosa manhã perfumada, apanharia, tomaria
destes murmúrios todos, pelo fenômeno acústico da recepção
e transladação dos sons, como em placas fonográficas,
todos os profundos e vagos ecos e os levaria então para longe –
derramando-os, espalhando-os em cada placidez sedentária de sítio,
em cada remanso bonançoso de campo, fazendo renascer a brava cultura
ingênita das terras, palpitar o rijo pulmão d’aço
do movimento incessante, pulsar, latejar vinculativamente as artérias
da fecundidade e circular em todo o sangue oxigenado, ardoroso e produtivo
que gera e fortalece tudo e que não é mais do que o Sol eletricamente
entranhado nas mais profundas raízes de tudo.
APARIÇÃO DA NOITE

Fria aparição da meia-noite, o Luar seja contigo!

Tu vens da neve, das algidezes cruas da neve; e eu não sei bem se
é a neve que te faz frio ou se és tu que fazes fria a neve.

Há, contudo, em ti, algum calor, que não é inteiramente
a vida, mas que suaviza os punhalantes regelos da neve; que não é
o sol da tua carne, a chama do teu corpo, mas um quente raio d’estrela,
a estrela de teu olhar aceso como velas místicas no recolhido e sagrado
santuário de uma Capela.

O luar seja contigo, seja contigo o luar emoliente e lascivo, este luar equatorial
que não é dia nem noite, mas uma doce penumbra velada do sol
do teu sorriso – como se sobre o sol do teu sorriso, para dulcificar
a intensidade do foco da sua luz, quando tu eras astro inflamado, que ardias,
força latente, matéria animada e pulsante, se houvesse colocado
um transparente abat-jour verde, branco, azulado e amarelado, conforme é,
às vezes, a refração luminosa da Lua.

Mas tu deveras aparecer-me, fria Visão da meia-noite, dentro de uma
redoma de cristal, por entre um resplendor de lágrimas, para eu então
poder assim crer no teu encanto, no teu mistério de meia-noite.

No entanto, aqui me aparece, metida em pelas de Astrakan, melancólica,
pálida, vaporosa, livorescida quase, como aquelas belezas apagadas
e tristes que vêm dos frígidos ares desolados do Norte.

Porque tu acabas de vir da Rússia agora, das fulgurantes estepes,
da ostentação militar do Tzar de ferro, ouvindo os clamores
da dinamite.

Vens das hirtas margens do Neva para os coruscantes fogos tropicais das terras
da América. E chegas ainda virginal e pubescente para a irradiação
angélica do Véu, para o simbolismo cândido da Grinalda
de flores de laranjeira, para a bênção serena e perfumada
do Noivado.

Chegas a tempo…

E se queres um noivo, se andas em busca de um noivo, aí tens, pois,
o Luar, frio como essa natureza fria, e alvo, lirialmente alvo, como tu.

Aí tens o Luar…

Envolve-se à sua clâmide de linho, mergulha-te nos seus flocos
de prata, ó meiga Eslava triste, meu desmaiado amor e heliotrópio
branco dos sonhos, que aqui vieste findar eternamente a vida nessa nostálgica
doença nervosa de melancolia que trouxeste do teu país polar,
muito longe nos gelos, e que até te dá já a névoa
densa, a espessa nuvem dolorosa das ilusões que se transformam em nuvens.

Vens para sempre extinguir-se sob esses tórridos mormaços,
nessa doença histérica de que ninguém na tua pátria
pôde de certo determinar a pugentíssima origem, e que não
é mais, nada mais é, talvez do que a doença do clima,
do spleen das tardes, das exaustas paisagens sem seiva; as displicências
amargas à hora dos longos ocasos taciturnos, quando adormecidamente
as campinas e as planícies incultas nevam e o horizonte é uma
trespassante angústia crepuscular que desola…

Aí tens o Luar…

Cobre-te nessa musselina fúlgida, veste essa finíssima gaze
diáfana…

Abre os primorosos olhos de Madona, castíssimos, chorosos e macerados,
e absorve pelos cílios todo esse nosso fluido e luxuoso azul; e fecha
depois esses teus primorosos olhos também azues…

Sorri ainda uma vez, como num supremo frêmito final de ave ferida no
peito;agita amorosamente, languescidamente, numa poeirada d’ouro, como
na última noite de beijos da remota paixão que se foi, a loira
e divina cabeça astral, leonina e doirada; tem um derradeiro estremecimento
convulsivo e sonoro de cordas d’harpa em todo o níveo corpo;
cerra à música celeste, eucarística da voz para sempre
os lábios, e, assim, nesse láteo nimbo seráfico da Lua,
fica em êxtase, na doce, na infinita quimera misteriosa da Morte, numa
leve graça idealizante e alada de vôo etéreo de querubins,
como quem está dormindo ou como o sol que emperdeniu e gelou…

Fria Aparição da meia-noite, o Luar seja contigo!
ESTESIA ESLAVA

Como os embriagados de kava da Polinésia vou tartamudeando e soluçando
sob as paixões, ó águia, Águia Germânica,
imperiosa e doirada!

Uma estranha harmonia de “Dança macabra” de Saint-Saens
me entorpece e invade em lágrimas negras de notas.

Todo o meu pensar e sentir estacou de súbito agora, como um nervoso
cavalo da Arábia a que se refreia o bridão, diante da tua plumagem
d’oiro da tua envergadura d’asa valente, – ó águia!
doirada Águia humana e Germânica, que tudo de mim para sempre
levas, Esperanças e Sonhos, impetuosamente arrebatado no alto, ao impulso
fremente das tuas garras alpinas.

E eu fico em ânsias no vácuo, num vago anelar indefinido, como
as aspirações do perfume que quer ser luz…

Mas um pedaço de horizonte ao longe marcando as infinitas distâncias
e uma língua de terra aprumada em monte, tornam-me tangível
o sentimento da realidade; e, então, claramente vejo e sinto, desiludido
das Coisas, dos Homens e do Mundo, que o que eu supunha embriagamento, arrebatamento
de amor nas tuas asas, ó loira Águia Germânica! –
nada mais foi que o sonambulismo dum sonho à beira de rios marginados
de resinoso aloendros em flor, na dolência da Lua nebulosa e fria, à
alta paz do Azul, sob as pestanejantes estrelas rutilamente acesas…
TÍSICA

Lânguida e loira, tinha, na verdade, um ruidoso e festivo acordar de
canários.

Quando o dia vem triunfalmente cantando por todas as gargantas de oiro dos
pássaros, perfumado por todos os prados de rosas, rumorejando por todos
os sonoros veios cristalinos de fontes, ela erguia-se também do leito,
cantando, numa alegria comunicativa que iluminava tudo e ia para o piano soluçar
no teclado, lindas barcarolas e valsas.

Quanta vez eu ouvi, e quantas outras a vi no rés do chão que
enfrentava a minha morada, sempre com um vermelho esmaecido, manchado, em
ambas as faces.

Como era feliz, e que ruidoso e festivo acordar de canários tinha
Ela!

Chegou, afinal, o inverno.

A emigração das andorinhas começa em vôos incisivos,
que frisa o espaço translúcido de ruflagens d’asas…

Os grandes frios pedem as grandes capas de lã para as mulheres, os
confortáveis regalos de pelúcia, as luvas, que agasalham, que
protegem as mãos, os pardessus e os largos fíchus para a cabeça.

Desprende-se já do éter as fortes lestadas de vento e chuva,
destruidoras e rijas, arrepiando e convulsionamente contorcendo os galhos
das árvores, que amarelecem.

Amanhece-se tiritando sob o fulgurante ar frígido das geadas, que
nevam os plácidos campos.

E, lá, à cima das serras altas, nas desprotegidas cabanas onde
a miséria habita, tiritam também de frio e desamparadamente
morrem, com uma chama azul no olhar vítreo, as loiras e morenas virgens
tísicas que na estação passada levaram a trabalhar nos
rudes amanhos da lavoura e a mourejar nas longas vigílias amargurosas
da agulha.

A tísica! a tísica! Essa doença simbolicamente dolorosa
e triste, que devasta os lares como os cortantes invernos devastam as searas!
Doença artística e desolada, que dá um aspecto eminentemente
romântico a todas as mulheres, como àquela violeta de Parma,
flor dolente e venenosa do Amor, essa Margarida Gautier, roxo lírio
inefável de melancolia plantado à margem de lagos furta-cores
de quimera, e que a mais abrasadora paixão, a febre mais intensa, o
tufão ardente de um fundo e desvairado sentimento para sempre emurcheceu
e desfolhou!

Doença amarga! que soturnamente devorando os pulmões, põe
em redor de quem a sofre um magoado impressionismo de saudade e uma névoa
gelada de sepulcro…

E as virgens que morrem dessa doença tão atormentadora e serena
ao mesmo tempo, levam para o túmulo, na crispação dos
lábios entreabertos e violáceos, como derradeira e a mais pungente
ironia da Dor, o desmaiado sorriso da última esperança, do último
sonho, da última ilusão que tiveram sobre a Terra.

Há muitos dias já não a vejo, a lânguida Loira.

Não sei porque, mas a sua ausência inquieta-me.

Eu quisera sempre vê-la, como dantes, pálida, lânguida
e loira, com um vermelho esmaecido, manchado, em ambas as faces.

Porém, ela não aparece, não vai, como então,
sentar-se ao piano, no luminoso purpurear das manhãs, fazendo soluçar
no teclado lindas barcarolas e valsas. E isso punge-me n’alma de tal
modo que eu procuro saber o que é feito dela e dizem-me que adoeceu.

– Adoeceu! E de que?

– Está tísica. O médico diz que não durará
muito.

– Tísica! Tão moça e tão bela! E que ar festivo
tinha ela. Como cantava! Que sonoridade de voz! E tudo isso agora acabar,
morrer…

É certo, aflitivamente certo o que me disseram. Ela vai morrer!

Vejo-a continuamente de uma palidez clorótica, os olhos de um brilho
cru, agudo, que faz febre; as orelhas diáfanas, muito despegadas do
crâneo; o nariz cada vez mais afilado e desfalecido; toda ela de uma
amarelada transparência de morte, de uma magreza hirta, como essas santas
mártires do cilício que vivem nos claustros fechados e austeros
de pedra, olhando entre grades para céus fuscos, com olhos cheios dos
fluidos místicos do Panteísmo, e que parecem subir, através
de nimbos, além, às empíreas regiões dos excelsos
arcanjos alvos de luz…

Vejo-a constantemente, através de vidraças, sem brilho de vida
quase, como um astro vesperal prestes a apagar para sempre todo o seu clarão
diamantino e virgem.

E, no entanto, nos intervalos lúcidos da doença, que lhe abrem
no peito, às Esperanças, como um esplendor de força nova,
de vigorosa saúde, o piano vibra de quando em quando, , sob as suas
mãos febris, trêmulas, nervosas e cadavéricas, alguma
melodia triste de casuarinas gementes, um desvairamento histérico de
lágrimas, a fina música nostálgica no fim de tudo –
talvez essa suspirante serenata de Schubert, cujo ritmo saudoso tão
profundamente nos invade a alma e a entristece e no qual parece haver gritos
e soluços de amor entrecortados pela agonia torturante da Morte…
ORAÇÃO AO MAR

Ó mar! Estranho Leviatã verde! Formidável pássaro
selvagem, que levas nas tuas asas imensas, através do mundo, turbilhões
de pérolas e turbilhões de músicas!

Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de todas as plangências
e dolências…

Mar! Mar azul! Mar de ouro! Mar glacial!

Mar das luas trágicas e das luas serenas, meigas como castas adolescentes!
Mar dos sóis purpurais, sangrentos, dos nababescos ocasos rubros! No
teu seio virgem, de onde se originam as correntes cristalinas da Originalidade,
de onde procedem os rios largos e claros do supremo vigor, eu quero guardar,
vivos, palpitantes, estes Pensamentos, como tu guardas os corais e as algas.

Nessa frescura iodada, nesse acre e ácido salitre vivificante, eles
se perpetuarão, sem mácula, à saúde das tuas águas
mucilaginosas onde se geram prodígios como de uma luz imortal fecundadora.

Nos mistérios verdes das tuas ondas, dentre os profundos e amargos
Salmos luteranos que elas cantam eternamente, estes pensamentos acerbos viverão
para sempre, à augusta solenidade dos astros resplandecentes e mudos.

Rogo-te, ó Mar suntuoso e supremo! para que conserves no íntimo
da tu’alma heróica e ateniense toda esta dolorosa Via-Láctea
de sensações e idéias, estas emoções e
formas evangélicas, religiosas, estas rosas exóticas, de aromas
tristes, colhidas com enternecido afeto nas infinitas idéias do Ideal,
para perfumar e florir, num Abril e Maio perpétuos, as aras imaculadas
da Arte.

Em nenhuma outra região, Mar triunfal! ficarão estes pensamentos
melhor guardados do que no fundo das tuas vagas cheias de primorosas relíquias
de corações gelados, de noivas pulcras, angélicas, mortas
no derradeiro espasmo frio das paixões enervantes…

Lá, nessas ignotas e argentadas areias, estas páginas se eternizarão,
sempre puras, sempre brancas, sempre inacessíveis a mãos brutais
e poluídas, que as manchem, a olhos sem entendimento, indiferentes
e desdenhosos, que as vejam, a espíritos sem harmonia e claridade,
que as leiam…

Pelas tuas alegrias radiantes e garças; pelas alacridades salgadas,
picantes, primaveris e elétricas que os matinais esplendores derramam,
alastram sobre o teu dorso, em pompas; pelas confusas e mefistofélicas
orquestrações das borrascas; pelo epiléptico chicotear,
pelas vergastantes nevroses dos ventos colossais, que te revolvem; pelas nostálgicas
sinfonias que violinam e choram nas harpas das cordoalhas dos Navios, ó
Mar! guarda nos recônditos Sacrários d’esmeralda as idéias
que este Missal encerra, dá-o, pelas noites, a ler, a meditadoras Estrelas,
á emoção do Ângelus espiritualizados e, majestosamente,
envolve-o, deixa que Ele repouse, calmo, sereno, por entre as raras púrpuras
olímpicas dos teus ocasos…

Monja

Ó Lua, Lua triste, amargurada,
Fantasma de brancuras vaporosas,
A tua nívea luz ciliciada
Faz murchecer e congelar as rosas.

Nas flóridas searas ondulosas,
Cuja folhagem brilha fosforeada,
Passam sombras angélicas, nivosas,
Lua, Monja da cela constelada.

Filtros dormentes dão aos lagos quietos,
Ao mar, ao campo, os sonhos mais secretos,
Que vão pelo ar, noctâmbulos, pairando…

Então, ó Monja branca dos espaços,
Parece que abres para mim os braços,
Fria, de joelhos, trêmula, rezando…

Monja negra

É teu esse espaço, e teu todo o Infinito
Transcendente Visão das lágrimas nascida,
Bendito o teu sentir, para sempre bendito
Todo o teu divagar na Esfera indefinida!

Através de teu luto as estrelas meditam
Maravilhosamente e vaporosamente;
Como olhos celestiais dos Arcanjos nos fitam
Lá do fundo negror do teu luto plangente.

Almas sem rumo já, corações sem destino
Vão em busca de ti, por vastidões incertas…
E no teu sonho astral, mago e luciferino,
Encontram para o amor grandes portas abertas.

Cândida Flor que aroma e tudo purifica,
Trazes sempre contigo as sutis virgindades
E uma caudal preciosa, interminável, rica,
De raras sugestões e curiosidades.

As belezas do mito, as grinaldas de louro,
Os priscos ouropéis, os símbolos já vagos,
Tudo forma o painel de um velho fundo de ouro
De onde surges enfim como as visões dos lagos.

Certa graça cristã, certo excelso abandono
De Deusa que emigrou de regiões de outrora,
Certo aéreo sentir de esquecimento e outono,
Trazem-te as emoções de quem medita e chora.

És o imenso crisol, és o crisol profundo
Onde se cristalizam todas as belezas,
És o néctar da Fé, de que eu melhor me inundo.
Ó néctar divinal das místicas purezas.

Ó Monja soluçante! Ó Monja soluçante,
Ó Monja do Perdão, da paz e da clemência,
Leva para bem longe este Desejo errante,
Desta febre letal toda secreta essência.

Nos teus golfos de Além, nos lagos taciturnos,
Nos pélagos sem fim, vorazes e medonhos,
Abafa para sempre os soluços noturnos,
E as dilacerações dos formidáveis Sonhos!

Não sei que Anjo fatal, que Satã fugitivo,
Que gênios infernais, magnéticos, sombrios,
Deram-te as amplidões e o sentimento vivo
Do mistério com todos os seus calafrios…

A lua vem te dar mais trágica amargura,
E mais desolação e mais melancolia,
E as estrelas, do céu na Eucaristia pura,
Têm a mágoa velada da Virgem Maria.

Ah! Noite original, noite desconsolada
Monja da solidão, espiritual e augusta,
Onde fica o teu reino, a região vedada,
A região secreta, a região vetusta?!

Almas dos que não tem o Refúgio supremo
De altas contemplações, dos mais altos mistérios,
Vinde sentir da Noite o Isolamento extremo,
Os fluidos imortais, angelicais, etéreos.

Vinde ver como são mais castos e mais belos,
Mais puros que os do dia os noturnos vapores:
Por toda a parte no ar levantam-se castelos
E nos parques do céu há quermesses de amores.

Volúpias, seduções, encantos feiticeiros
Andam a embalsamar teu seio tenebroso
E as águias da Ilusão, de vôos altaneiros,
Crivam de asas triunfais o horizonte onduloso.

Cavaleiros do Ideal, de erguida lança em riste,
Sonham, a percorrer teus velhos Paços cavos…
E esse nobre esplendor de majestade triste
Recebe outros lauréis mais bizarros e bravos.

Convulsivas paixões, convulsivas nevroses,
Recordações senis nos teus aspectos vagam,
Mil alucinações, mortas apoteoses
E mil filtros sutis que mornamente embriagam.

O grande Monja negra e transfiguradora,
Magia sem igual dos paramos eternos,
Quem assim te criou, selvagem Sonhadora,
Da carícia de céus e do negror d’infernos?

Quem auréolas te deu assim miraculosas
E todo o estranho assombro e todo o estranho medo,
Quem pôs na tua treva ondulações nervosas,
E mudez e silêncio e sombras e segredo?

Mas ah! quanto consolo andar errando, errando,
Perdido no teu Bem, perdido nos teus braços,
Nos noivados da Morte andar além sonhando,
Na unção sacramental dos teus negros Espaços!

Que glorioso troféu andar assim perdido
Na larga vastidão do mudo firmamento,
Na noite virginal ocultamente ungido,
Nas transfigurações do humano sentimento!

Faz descer sobre mim os brandos véus da calma,
Sinfonia da Dor, ó Sinfonia muda,
Voz de todo o meu Sonho, ó noiva da minh’alma,
Fantasma inspirador das Religiões de Buda.

O negra Monja triste, ó grande Soberana,
Tentadora Visão que me seduzes tanto,
Abençoa meu ser no teu doce Nirvana,
No teu Sepulcro ideal de desolado encanto!

Hóstia negra e feral da comunhão dos mortos,
Noite criadora, mãe dos gnomos, dos vampiros,
Passageira senil dos encantados portos,
Ó cego sem bordão da torre dos suspiros…

Abençoa meu ser, unge-o dos óleos castos,
Enche-o de turbilhões de sonâmbulas aves,
Para eu me difundir nos teus Sacrários vastos,
Para me consolar com os teus Silêncios graves.

Morena dos olhos pretos

Morena dos olhos pretos
Dos olhos pretos, morena, Escuta os vagos duetos Morena dos olhos pretos,
Faremos ambos, tercetos, Com esta esfera serena, Morena dos olhos pretos,
Dos olhos pretos, morena.

Mudez perversa

Que mudez infernal teus lábios cerra
Que ficas vago, para mim olhando,
Na atitude de pedra, concentrando
No entanto, n’alma, convulsões de guerra!

A mim tal fel essa mudez encerra,
Tais demônios revéis a estão forjando
Que antes te visse morto, desabando
Sobre o teu corpo grossas pás de terra.

Não te quisera nesse atroz e sumo
Mutismo horrível que não gera nada,
Que não diz nada, não tem fundo e rumo.

Mutismo de tal dor desesperada,
Que quando o vou medir com o estranho prumo
Da alma fico com a alma alucinada!

Múmia

Múmia de sangue e lama e terra e treva,
Podridão feita deusa de granito,
Que surges dos mistérios do Infinito
Amamentada na lascívia de Eva.

Tua boca voraz se farta e ceva
Na carne e espalhas o terror maldito,
O grito humano, o doloroso grito
Que um vento estranho para és limbos leva.

Báratros, criptas, dédalos atrozes
Escancaram-se aos tétricos, ferozes
Uivos tremendos com luxúria e cio…

Ris a punhais de frígidos sarcasmos
E deve dar congélidos espasmos
O teu beijo de pedra horrendo e frio!…

Mundo inaccecível

Tu’alma lembra um mundo inaccessível
Onde só astros e águias vão pairando,
Onde só se escuta, trágica, cantando,
A sinfonia da Amplidão terrível!

Alma nenhuma, que não for sensível,
Que asas não tenha para as ir vibrando,
Essa região secreta desvendando,
Falece, morre, num pavor incrível!

É preciso ter asas e ter garras
Para atingir aos ruídos de fanfarras
Do mundo da tu’alma augusta e forte.

É preciso subir ígneas montanhas
E emudecer, entre visões estranhas,
Num sentimento mais sutil que a Morte!

Música de morte

A musica da Morte, a nebulosa,
Estranha, imensa musica sombria,
Passa a tremer pela minh’alma e fria
Gela, fica a tremer, maravilhosa…

Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
Letes sinistro e torvo da agonia,
Recresce a lancinante sinfonia,
Sobe, numa volúpia dolorosa…

Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
Tremenda, absurda, imponderada e larga,
De pavores e trevas alucina…

E alucinando e em trevas delirando,
Como um Ópio letal, vertiginando,
Os meus nervos, letárgica, fascina…

Música misteriosa

Tenda de Estrelas níveas, refulgentes,
Que abris a doce luz de alampadários,
As harmonias dos Estradivarius
Erram da Lua nos clarões dormentes…

Pelos raios fluídicos, diluentes
Dos Astros, pelos trêmulos velários,
Cantam Sonhos de místicos templários,
De ermitões e de ascetas reverentes…

Cânticos vagos, infinitos, aéreos
Fluir parecem dos Azuis etéreos,
Dentre os nevoeiros do luar fluindo…

E vai, de Estrela a Estrela, a luz da Lua,
Na láctea claridade que flutua,
A surdina das lágrimas subindo…

Na luz

De soluço em soluço a alma gravita,
de soluço em soluço a alma estremece,
anseia, sonha, se recorda, esquece
e no centro da Luz dorme contrita.

Dorme na paz sacramental, bendita,
onde tudo mais puro resplandece,
onde a Imortalidade refloresce
em tudo, e tudo em cânticos palpita.

Sereia celestial entre as sereias,
ela só quer despedaçar cadeias,
de soluço em soluço, a alma nervosa.

Ela só quer despedaçar algemas
e respirar nas Amplidões supremas,
respirar, respirar na Luz radiosa.

Na mazurka

Morava num palácio — estranha Babilônia
De arcadas colossais, de impávidos zimbórios,
Alcovas de damasco e torreões marmóreos,
Volutas primorais de arquitetura jônia.

Assim, quando surgia em meio aos peristilos
Descendo, qual mulher de Séfora, vaidosa,
Envolta em ouropéis, em sedas, luxuosa,
Cercam-na do belo os místicos sigilos!

E quando nos saraus, assim como um rainúnculo,
O lábio lhe tremia e o olhar, vivo carbúnculo,
Vibrava nos salões, como uma adaga turca,

Ou como o sol em cheio e rubro sobre o Bósforo,
— nos crânios os Homens sentiam ter mais fósforo…
Ao vê-la escultural no passo da Mazurka…

Nas explosões de bons risos

Nas explosões de bons risos
Os triolés petulantes
Chocalhem, tinam, precisos
Nas explosões de bons risos,
Tilintem como mil guisos
Sonoros, raros, vibrantes
Nas explosões de bons risos,
Os triolés petulantes.

Naufrágios

(Desterro)

I
O Mar! O mar! Quem nunca viajasse… Quem nunca dentre dúvidas sentisse
O coração e ai, nunca embarcasse… Oh! quem do mar as cóleras
punisse!

Ora o mar e sereno, e calmo, e manso,
As vagas são melódicos arpejos Dando à embarcação
leve balanço, Como um afago maternal de beijos.

Ora o mar franco, livre e transparente,
Tão tranqüilo que está, tão brando, rindo, Que até
parece, que até cuida a gente
Que os corações podem boiar, dormindo.

Ora ferve, rebenta, estoura, estala, Rude, feroz, em convulsões; profundo,
Abrindo a corpos pavorosa vala
E mundos de agonia num só mundo!

II
Filho! Filho! Adeus, querido, Vou viajar para além,
Sejas de Deus protegido… Que sempre me queiras bem.

Vou deixar-te nesta terra, Entregue aos destinos teus; Filho, o que este
adeus encerra Só o pode saber Deus.

Levo as crenças em pedaços, Como pedaços de céus.
Vou ver mar, vou ver espaços
Ver temporais, escarcéus.

Filho amado, vou deixar-te
Cá na terra, pelo mar;
Porem, crê, de qualquer parte, Crê, meu filho, hei de voltar.

III
Adeus, noiva, vou-me embora, Vou-me com Deus, é preciso. Que colhas
em cada aurora Muita messe de sorriso.

Sou soldado, o meu destino É viver bem longe, é certo, Longe
do canto divino
Da tua voz, sol aberto.

Custa bem esta partida
A mim que entanto sou forte. Ninguém sabe o que é a vida Para
quem vive da morte.

Da morte, sim, pomba amada; Que as minhas crenças já mortas
Tu, com essa alma estrelada
Sem tu sequer me confortas.

Perdi pai, perdi carinhos
De mãe, de irmãos e de todos. Eu sou como a flor de espinhos
Nascida por entre lodos.

Tu vieste, ó noiva, apenas, Como um íris de esperanças,
Dar-me alvoradas serenas, Encher-me de confianças.

Só em ti confio, espero
Com ardor, com fé veemente, Pomba de luz que eu venero, Doce vésper
do oriente.

Adeus, pois chegou a hora,
Vou-me com Deus, minha filha; Não chores, que o mar não chora:
— Olha, vê que canta e brilha.

IV
Adeus, esposa estremosa,
Vou-me, não sei para quando Voltar — minh’alma saudosa Por meus filhos
vai chorando.

Ficam-te eles no entretanto
Pra tirarem-te os pesares,
Para enxugarem-te o pranto
Que há de ser maior que os mares.

Maior que os mares, não minto, Não exagero tão pouco,
Porque ai, só tu e só eu sinto
O nosso amor como é louco.

Vou-me às viagens, aos dias
Passados entre horizontes
E mares e ventanias
Sem arvoredos, sem montes.

Os dias de céus eternos
E de mar ilimitado,
Com tempo de atroz infernos
Com tempo de sol doirado.

Adeus! Cá dentro do peito Há dois corações unidos;
Sobre um o mar tem direito,
Sobre outro — os filhos queridos.

V
Eis as canções e adeuses de saudade Que as desgraçadas
almas palpitantes Soluçam na sombria imensidade
Desta vida de angústias lacerantes.

Ao mar! Ao mar! Frescas aragens puras
Aflam nas ondas maviosamente. Que balada de plácidas venturas, Que
sinfonias, que gemer dolente!

Os céus abertos, claros, luminosos Lembram a candidez branda das virgens.
Vítreos ares, magníficos, radiosos
Onde o sol arde em férvidas vertigens.

Lindíssimos painéis, bela paisagem
Abre na vista do viajante o ouro
Da luz que salta como uma homenagem
De oriental, esplêndido tesouro.

Vai bem, vai muito bem, mesmo, o navio. As vagas desenrolam-se de leve.
Parece um berço por de sobre um rio
Manso, prateado, espúmeo, cor de neve.

Vive-se a bordo como em terra. — As vagas
Nunca foram tão doces e tão meigas, Como em desertas, viridentes
plagas
É doce e meigo o mole chão das veigas.

Viver assim, na realidade, é gozo
Que até parece não haver na terra!
Tão belo é o mar, tão calmo e bonançoso, Tal confiança
nos semblantes erra!

Vogando assim a embarcação, quem pensa
Ir acordado afora pela Vida?!
Tudo é um sonho de esperança imensa
Um bom sonho de aurora indefinida.

VI
Súbito os ares enchem-se de noite
E grita e zune, zargunchando o vento
Que esbraveja, morde com rijo acoite
O mar que espuma e empola num momento.

Não estrugem os raios pela treva
Não ha trovões bravios rebentando
Como canhões que estouram, — mas se eleva
Do oceano um vendaval que vai urrando

Com fúrias e com cóleras enormes Como potros sanhudos relinchando
Em pinotes e berros desconformes.

Caiu talvez no mar o etéreo espaço,
Toda a cúpula azul tombou, quem sabe? Céus! há lutas
ali, de braço a braço. Horror! Crível sera que o mundo
acabe?

Ninguém calcula o que será tudo isso… Mas os ventos elétricos,
largados
Nas amplidões do mar antes submisso, Rugindo vão como desesperados.

Deus, ó meu Deus, todas as bocas gritam, E se afervora mais e mais
a crença.
Mas, onde os astros muita vez palpitam
No céu, há noite cada vez mais densa.

Ah! que mudez de túmulo nos ares.
Nada responde, oh! nada então responde; Mas onde está o grande
Deus dos mares
E da terra, onde está, aonde, aonde?

Tudo está mudo — a natureza inteira, Tudo emudece e não responde
nada; E só os vendavais têm a maneira
De responder dando uma gargalhada.

Gargalhada de lágrimas atrozes, De lágrimas de morte e de agonia
Que abafa e extingue na garganta as vozes, Gera a coragem que e a luz do dia.

O valentes e rudes marinheiros Vindos da pátria para pátria
nova, Que sepultais amores verdadeiros Do tão profundo coração
na cova;

Ó viajantes de longe, de países Onde a vida cintila e canta
alerta Como um turbilhão de aves felizes Numa campina de rosais, deserta;

Ó vós todos que vindes lá do oceano,
Entre as mais bruscas e hórridas tormentas. Lá do mar, alto,
a vela, a todo o pano,
Com as almas ansiosas e sedentas,

De chegar cedo ao porto desejado, Calculai, calculai o quanto é triste
Ver dar à praia um pobre desgraçado
Em cuja carne a podridão existe!

À praia! À praia! Dai à praia, morto, Rejeitado por
ondas convulsivas, Indo encontrar na sepultura o porto,
Deixando ao mundo as ilusões mais vivas.

O eterno amor de mãe, de filho, esposa, Tanta fé, tanto riso
de alegria,
Tanta coisa dourada, ai tanta coisa
Que ao recordar toda a nossa alma esfria.

Morrer no mar, os nervos contraídos, Numa asfixia atroz, cerrando
os dentes, Num abismo de cores e gemidos,
De maldições e de uivos de descrentes;

Morrer no mar, sem o farol amigo, Esse farol que os náufragos anima,
Fora de proteção, fora de abrigo,
Sem sequer uma luz no espaço, em cima;

Morrer no mar, sem astros no infinito, Na solidão das águas,
fria, imensa, Enquanto a treva aura de granito,
Ri-se de tudo, com indiferença;

Morrer no mar, só e desamparado
E num terror que não acaba nunca, Vendo rasgar o corpo enregelado
O desespero como garra adunca.

É horrível! Bem sei! Mas ai daqueles
Que morrem mesmo assim lá no mar fundo Sem ter alguém que ao
menos neste mundo Derrame uma só lágrima por eles!

Na vila

Nos ervaçais vibrou o sol agora,
Nas fitas verdes dos canaviais…
Como rompesse loura e fresca a aurora
Agora o sol vibrou nos ervaçais.

Murmurejam de alegres os caminhos
Que até parecem, límpidos, cantar
Na música melódica dos ninhos
Que vai nos ares se cristalizar.

Floresce tudo, em toda parte flores
Neste maio feliz, e tão feliz
Que as plantas exuberam de vigores
Desde a profunda, pródiga raiz.

Noivam as aves junto dos riachos
No seu alado alvorecer de amor;
E o coqueiral, com os amarelos cachos,
Pompeia de riquíssimo verdor.

Fluem na sombra meigas fontes claras
Sob o frondente e vasto laranjal
E para além magníficas searas
Se estendem como um leito virginal.

Na serena paz vegetativa
Faz docemente tudo adormecer
Mas num sono de luz doirada e viva,
Quase a dormência de quem vai morrer…

Ah! que o silêncio, a solidão dos ermos,
Das agrestes paragens do sertão
Se dão saúdes a espíritos enfermos
Também supremas nostalgias dão!

A volúpia letal do meio-dia,
Nas horas encalmadas, sob a luz,
Dá duma campa a atroz melancolia
Assinalada numa simples cruz.

Depois o campo na mudez da vila,
Aquela eterna e soberana paz
Da imensa vastidão sempre tranqüila
Como que punge e que entristece mais!

Nerah

(Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea)
A Vítor Lobato

Nerah não brinca mais, não dança mais. — E agora
Que vão-se apropinquando os tempos invernosos,
Nerah traz uns receios tímidos, nervosos,
De quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.

Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos
Se vão embora, embora à vinda dos invernos,
Seguindo em debandada os úmidos galernos —
— lembrando um roto bando informe de mendigos.

Não canta o sabiá que triste na gaiola,
Parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola
De um riso — aquela flor que esvai-se, branca e fria.

Em tudo a fina seta aguda de aflições!
Na própria atmosfera um caos de interjeições!
Em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.

Noiva de agonia

Trêmula e só, de um túmulo surgindo,
Aparição dos ermos desolados,
Trazes na face os frios tons magoados,
De quem anda por túmulos dormindo…

A alta cabeça no esplendor, cingindo
Cabelos de reflexos irisados,
Por entre aureolas de clarões prateados,
Lembras o aspecto de um luar diluindo…

Não és, no entanto, a torva Morte horrenda,
Atra, sinistra, gélida, tremenda,
Que as avalanches da Ilusão governa…

Mas ah! és da Agonia a Noiva triste
Que os longos braços lívidos abriste
Para abraçar-me para a Vida eterna!

Noiva e triste

Rola da luz do céu, solta e desfralda
Sobre ti mesma o pavilhão das crenças,
Constele o teu olhar essas imensas
Vagas do amor que no teu peito escalda.

A primorosa e límpida grinalda
Há de enflorar-te as amplidões extensas
Do teu pesar — há de rasgar-te as densas
Sombras — o véu sobre a luzente espalda…

Inda não ri esse teu lábio rubro
Hoje — inda n’alma, nesse azul delubro
Não fulge o brilho que as paixões enastra;

Mas, amanhã, no sorridor noivado,
A vida triste por que tens passado,
De madressilvas e jasmins se alastra.

Nos campos

Por entre campos de seara loura
De alegre sol puríssimo batidos,
Passam carros chiantes de lavoura
E raparigas sãs, de coloridos
Que a luz solar que as ilumina e doura
Lembram pomares e jardins floridos,
Por entre campos de seara loura.

A Natureza inteira reverdece
Pelos montes e vales e colinas;
E o luar que freme, anseia e resplandece,
Movido por aragens vespertinas,
Parece a alma dos tempos que floresce…
Enquanto que por prados e campinas
A Natureza inteira reverdece.

A paz das coisas desce sobre tudo!
E no verde sereno d’espessuras,
No doce e meigo e cândido veludo,
Tremem cintilações como armaduras
Ou como o aço brunido dum escudo;
Enquanto que das límpidas alturas
A paz das coisas desce sobre tudo!

A casa, a rude tenda construída,
Onde habitam as mães e as crianças
Promiscuamente, nessa mesma vida
De perfume lirial das esperanças,
Como é feliz, dos astros aquecida!
Aquecida do Amor nas asas mansas
A casa, a rude tenda construída.

As bocas impolutas e cheirosas
Das raparigas, pródigas belezas
De finos lábios púrpuros de rosas,
Abrem, cheias de angélicas purezas,
As cristalinas fontes murmurosas
De risos, refrescando em correntezas
As bocas impolutas e cheirosas.

Da vida aurora rica do seu sangue
Flameja a carne em báquicas vertigens!
E quem tiver uma epiderme exangue
Para ficar com essas faces virgens,
Para não ser mais pálida nem langue,
Tem de beber das cálidas origens
Da viva aurora rica do seu sangue.

Lindas ceifeiras percorrendo. searas
Nos campos, ó bizarras raparigas,
Pelas manhãs e pelas tardes claras
Vós desfolhais sorrisos e cantigas
Que deixam ver as pérolas mais raras
Dos dentes brancos, frescos como estrigas…
Lindas ceifeiras percorrendo searas!

No seio da terra

Do pélago dos pélagos sombrios,
Cá do seio da Terra olhando as vidas,
escuto o murmurar de almas perdidas,
como o secreto murmurar dos rios.

Trazem-me os ventos negros calafrios e
os soluços das almas doloridas
que têm sede das Terras prometidas
e morrem como abutres erradios.

As ânsias sobem, as tremendas ânsias!
velhices, mocidades e as infâncias
humanas entre a Dor se despedaçam…

Mas sobre tantos convulsivos gritos,
passam horas, espaços, infinitos,
esferas, gerações, sonhando, passam!

Nunca se cala o calado

Nunca se cala o Callado
E sempre o Callado, fala
Callado que não se cala,
Nunca se cala o Callado,
Callado sem ser calado,
Callado que é tão falado…
Nunca se cala o Callado
E sempre o Callado, fala.

Ó adalziza dos sonhos

Ó Adalziza dos sonhos; Estrela dos firmamentos
Dos meus cantares risonhos
Ó Adalziza dos sonhos
Rasga esses véus enfadonhos Dos teus louros pensamentos, Ó Adalziza
dos sonhos, Estrela dos firmamentos.

Ó alzira, alzira, alzira

Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente, Resplandecente safira, Ó Alzira, Alzira, Alzira,
As vibrações desta lira, Acorda do sono ardente, Ó Alzira,
Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente.

O assinalado

Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A Terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas etrenas, pouco a pouco…

Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!

O botão de rosa

A uma atriz

O campo abrira o seio às expansões frementes
Das árvores senis, dos galhos viridentes.

Caía a tarde fresca
Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca. A iluminada esfera
Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem, Dava um brilho-cetim às
verdes folhas d’hera.
No ar uma harmonia avigorada e casta, No crânio uma vertigem
Duma idéia viril, duma eloqüência vasta.

Tardes formosíssimas,
Ó grande livro aberto aos geniais artistas, Como tanto alargais as
crenças panteístas,
Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.

Quanta vitalidade indefinida, quanta, Na pequenina planta,
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos, Que misticismo, justos,
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano
Das árvores titãs, das árvores fecundas
Que tinham, como o oceano,
Febris palpitações intérminas, profundas.

Esplêndidas paisagens
Opunhas o largo campo às vistas deslumbradas. As múrmuras ramagens,
À luz serena e terna, à luz do sol — que espadas De fogo arremessava,
em frêmitos nervosos, Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,
Tinham falas de amor, segredos vacilantes
Finos como os brilhantes.

A música das aves
Cortava o éter calmo, em notas multiformes,
Límpidas e graves
Que estouravam no ar em convulsões enormes. Aqui e além um rio
Serpejava na sombra, em meio de um rochedo
Áspero e sombrio.
O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo
E o espírito mudo,
Como um herói gigante avassalavam tudo…

Nuns madrigais risonhos
Abria-se o país fantástico dos sonhos. Alavam-se os aromas
Leais, inexauríveis
Das largas e invisíveis
Selváticas redomas.

A seiva rebentava
Em ondas — irrompia
Na doce e maviosa e plácida alegria
De uma ave que cantava, Dos belos roseirais
Que ostentavam a flux as rosas virginais.

E as jubilosas franças Dos árvoredos altos, Rígidos,
atléticos,
Derramavam no campo uns fluidos magnéticos
Dumas vontades mansas.

A doce alacridade ia explosindo aos saltos. E toda a natureza
Robusta de saúde e estrênua de grandeza
Libérrima e vital,
Erguia-se pujante, audaz e redentora, No gérmen material da força
criadora,
Dentre a vida selvagem mística, animal…

Dos roseirais preciosos
Nos renques primorosos,
Numa linda roseira abria castamente,
Como um sonho de luz numa cabeça ardente,
O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa. Tinha essa cor formosa,
Tinha essa cor da aurora,
Quando ensangüentada em rubro a vastidão sonora

Era um botão feliz
Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.
Tinha o leve quebranto e a maciez etérea
Que uma estrofe não diz. Das pétalas macias,
Das pétalas sanguíneas, Doces como harmonias
Brandas e velutíneas
Uns perfumes sutis se espiralavam, raros, Pela mansão do Bem, pelos
espaços claros. Perfumes excelentes,
Perfumes dos melhores,
Perfumes bons de incógnitos Orientes.

Matéria, não deplores
O viver natural dos vegetais alegres; Eles são mais ditosos
Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos; E por mais que tu regres
Ó matéria fatal, a tua vida inteira, No rigor da higiene;
E por mais que a maneira
Do teu grande existir, desse existir — perene
De ironias e pasmos, Explosões de sarcasmos
Tu completes, matéria — ó humanidade ousada — Com a ciência
altanada;
E por mais que no século,
Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo, Será sempre
maior e exuberante e forte,
Ó matéria fatal, Essa vida tão rica
Que se corporifica
Na valente coorte
Do poder vegetal.

Era um botão feliz,
Cuja roseira, impávida,
Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos — ávida
De completa fragrância, Palpitava com ânsia Desde a própria
raiz.

E entanto o sol tombara e triunfantemente
Como um supremo Rubens,
Jorrando à curvidade etérea do poente,
O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens, Numa distribuição
simpática de cores,
De tintas e de luzes
De galas e fulgores
Rubros como o estourar dos fervidos obuses.

O cérebro em nevrose,
No pasmo que precede a augusta apoteose De uma excelsa visão perfeitamente
bela, De uma excelsa visão em límpidos dóceis, Exaltava
o acabado artístico da Tela
E o gosto dos pincéis.

Caíam da amplidão em névoas singulares
Os pálidos crepúsculos. Os fúlgidos altares
Do homem primitivo — a relva, o prado, o campo
Onde ele ia buscar a força de uma crença
Que então lhe iluminasse a alma escura e densa
Morriam de clarões — os poderosos músculos Da fértil
mãe de tudo — a natureza ingente — Deixavam de bater. — O olhar
do pirilampo
Oscilava, tremia — azul, fosforescente.

As sombras vinham, vinham
Lembrando um batalhão d’espectros que caminham
E a casta nitidez sintética das cousas
Tomava a proporção das funerárias lousas.

Completara-se então o mais extraordinário, O mais extravagante
Dos fenômenos todos:
A noite. — Enfim descera a treva do Calvário, A treva que envolveu
o Cristo agonizante.

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos. A abóbada espaçosa,
a física amplitude, Mostrava a profundez da angústia de ataúde
De um operário pobre, Quando se escuta o dobre Amplíssimo e
funéreo, Sinistro e compassado,
Rolar pela mansão gloriosa do mistério, Assim com um soluço
aflito, estrangulado.

Devia ser, devia
Por uma noite assim, Como esta noite igual, Que derramou Maria
A lágrima da dor, — que o célebre Caim
Sentiu do crânio as convulsões do Mal.

Mas o botão de rosa,
Traído pelo estranho zéfiro da sorte, Rolou como uma cisma
Intensa e luminosa
Ardente e jovial em que a razão se abisma
E foi cair, cair no pélago da morte, Em um dos mais raivosos,
Em um dos mais atrozes
Rios impetuosos,
Cheios de surdas vozes,
Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito, Em meio à placidez
Dos astros no infinito
E a mesma irracional e fúnebre mudez.
Depois e além de tudo,
Além do grave aspecto inteiramente mudo, Ao tempo que morria
O cândido botão — em um dos tantos galhos
Virentes da roseira — alegre no ar se abria Um outro que ostentava as pétalas
sedosas, As pétalas gracis de cores deliciosas,
De cores ideais.

As auras musicais Passavam-lhe de leve, Nos tímidos rumores,
De um ósculo mais breve

E dentre a exposição das delicadas flores, Das rosas — o botão
Aberto ultimamente as cúpulas austeras,
As plagas da esperança, a irmã das primaveras, Pendido um quase
nada, esbelto na roseira, Mostrava aquela unção,
A ínclita maneira
De quem se glorifica
Subindo ao céu azul da majestade pura, Da eterna exuberância,
Da fonte sempre rica, Da esplêndida fartura
Da luz imaculada — a egrégia substância
Que faz das almas claras
Pela fecundidade olímpica do amor, Magníficas searas,
De onde se difunde a vida sempiterna, A vida essencial, a lei que nos governa,
A idéia varonil do poeta sonhador.

A arte especialmente, esse prodígio, atriz, Como o botão de
rosa
Tão meigo e tão feliz,
Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego, Na treva silenciosa,
Onde o espírito vai, atordoado e cego, Cair, entre soluços,
Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços, Ou pode equilibrar-se
em admirável base
Estética e profunda,
Assim, bem como o outro, a mais radiosa altura.

Deves sondá-la bem nesta segunda fase. Precisas para isso uma alma
mais fecunda. Precisas de sentir a artística loucura.

Ó cintilante quiquia

Ó cintilante Quiquia,
Menina dos meus olhares,
Flor azul da simpatia,
Ó cintilante Quiquia,
Rasga este céu da alegria
Dos meus risonhos cantares,
Ó cintilante Quiquia,
Menina dos meus olhares.

O coração

O coração é a sagrada pira
onde o mistério do sentir flameja.
A vida da emoção ele a deseja
como a harmonia as cordas de uma lira.

Um anjo meigo e cândido suspira
no coração e o purifica e beija…
e o que ele, o coração, aspira, almeja é
sonho que de lágrimas delira.

É sempre sonho e também é piedade,
doçura, compaixão e suavidade
e graça e bem, misericórdia pura.

Uma harmonia que dos anjos desce,
Que como estrela e flor e som floresce
maravilhando toda a criatura!

Ódio sagrado

Ó meu ódio, meu ódio majestoso,
meu ódio santo e puro e benfazejo,
unge-me a fronte com teu grande beijo,
torna-me humilde e torna-me orgulhoso.

Humilde, com os humildes generoso,
orgulhoso com os seres sem Desejo,
sem Bondade, sem Fé e sem lampejo
de sol fecundador e carinhoso.

Ó meu ódio, meu lábaro bendito, de
minh’alma agitado no infinito,
através de outros lábaros sagrados.

Ódio são, ódio bom! sê meu escudo
contra os vilões do Amor, que infamam tudo,
das sete torres dos mortais Pecados!

O duque

Quando o duque voltava da caçada Alegre num clarim d’aço
vibrante De alacridade moça e evigorada Dum ruidoso e trêfego
estudante.

Quando ele vinha com seu ar bizarro De atravessar os vales e as colinas,
Sadio aspecto fresco como um jarro Cheio de leite às horas matutinas.

Em toda a aristocrática varanda
Alta e vistosa, ampla, aberta em janelas, Ele vibrava, de uma e outra banda,
Cancões de amor, nostálgicas e belas.

Do salão nobre entre tapeçarias De Gobelins, riquíssimas
e raras, Iam vibrando aladas harmonias Da sua voz, esplêndidas e claras.

Todas as fluidas, leves, calmas, frescas Manhãs azuis, serenas e formosas,
Loura mulher das regiões tudescas
O seu bom dia era mandar-lhe roses.

Floria, é certo, em grande amor, floria
Gerado pelo eflúvio dessas flores, Pois quando o duque não as
recebia Era o mais infeliz dos caçadores.

Tão doce amor lembrava aquelas lendas Dos medievais castelos esquecidos,
Quando visões de nuvens e de rendas Apareciam nos balcões floridos.

A caça, a caça, eternamente a caça! Quanto melhor, mais
fácil não lhe fora A conquista das aves do que a graça
De conquistar essa beleza loura!

Para possuí-la como noiva amada, Aceso há muito nas paixões
insanas, Arrostaria a caça mais ousada
Dos javalis nas selvas africanas.

E sempre as lindas rosas matutinas Vinham-no perfumar todos os dias, Quando
saltava aos vales e as colinas, Bizarro e são, dentre as tapeçarias.
Tempos passaram sobre tais amores! Mas depois de casado fez surpresa
Saber que o duque, o rei dos caçadores, Não tinha o mesmo amor
pela duquesa.

O final do guaranai

Ceci — é a virgem loira das brancas harmonias,
A doce-flor-azul dos sonhos cor de rosa,
Peri — o índio ousado das bruscas fantasias,
O tigre dos sertões — de alma luminosa.

Amam-se com o amor indômito e latente
Que nunca foi traçado nem pode ser descrito.
Com esse amor selvagem que anda no infinito.
E brinca nos juncais, — ao lado da serpente.

Porém… no lance extremo, o lance pavoroso,
Assim por entre a morte e os tons de um puro gozo,
Dos leques da palmeira a note musical…

Vão ambos a sorrir, às águas arrojados,
Mansos como a luz, tranqüilos, enlaçados
E perdem-se na noite serena do ideal!…

Ó flora, ó ninfa das rosas

Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Ó frescura dos morangos,
Abre as pupilas radiosas,
Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Dá-me as estrelas formosas
Do olhar repleto de tangos,
Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Ó frescura dos morangos.

O grande momento

Inicia-te, enfim, Alma imprevista,
Entra no seio dos Iniciados.
Esperam-te de luz maravilhados
Os Dons que vão te consagrar Artista.

Toda uma Esfera te deslumbra a vista,
Os ativos sentidos requintados.
Céus e mais céus e céus transfigurados
Abrem-te as portas da imortal Conquista.

Eis o grande Momento prodigioso
Para entrares sereno e majestoso
Num mundo estranho d’esplendor sidéreo.

Borboleta de sol, surge da lesma…
Oh! vai, entra na posse de ti mesma,
Quebra os selos augustos do Mistério!

O grande sonho

Sonho profundo, ó Sonho doloroso,
doloroso e profundo Sentimento!
Vai, vai nas harpas trêmulas do vento
chorar o teu mistério tenebroso.

Sobe dos astros ao clarão radioso,
aos leves fluidos do luar nevoento, às
urnas de cristal do firmamento, ó
velho Sonho amargo e majestoso!

Sobe às estrelas rútilas e frias,
brancas virginais eucaristias
de onde uma luz de eterna paz escorre.

Nessa Amplidão das Amplidões austeras
chora o Sonho profundo das Esferas
que nas azuis Melancolias morre…

Oiseaux de passage

Les rêves, les grands rêves que moi toujours adore,
Les rêves couleur rose, les rêves éclatants;
Ainsi que les colombes un autre ciel cherchants
J’ai vu les ailes ouvertes, si belles que l’aurore.

Autour de la nature, autour de la profonde
Et merveilleuse mère des fleurs, des harmonies,
Les rêves éblouissants, remplis d’amour et vie,
Trouvaient de l’espoir le plus doré des mondes.

Hélas!… — mais maintenant, par des chagrins, secrets,
L’amour, les étoiles et tout ce qu’il nous est
Chéri — le beau soleil, la lune et les nuages;

Tout fut plongé d’abord’ plongé dans le mystère,
Avec de mon coeur la douce lumière,
Les rêves de mon âme — uns* oiseaux de passage!…

* sic.

Olhares

Teus traquinantes olhinhos
Continhas, Ziza, parecem;
Zigzagam sempre, tontinhos
Teus traquinantes olhinhos;
Tão pretos, tão redondinhos
Olhinhos que me embevecem,
Teus traquinantes olhinhos
Continhas, Ziza, parecem.

Olhos

II

A Grécia d’Arte, a estranha claridade
D’aquela Grécia de beleza e graça,
Passa, cantando, vai cantando e passa
Dos teus olhos na eterna castidade.

Toda a serena e altiva heroicidade
Que foi dos gregos a imortal couraça,
Aquele encanto e resplendor de raça
Constelada de antiga majestade,

Da Atenas flórea toda o viço louro,
E as rosas e os mirtais e as pompas d’ouro,
Odisséias e deuses e galeras…

Na sonolência de uma lua aziaga,
Tudo em saudade nos teus olhos vaga,
Canta melancolias de outras eras!…

Olhos dos sonhos

(jan. I897)

Certa noite soturna, solitária,
Vi uns olhos estranhos que surgiam
Do fundo horror da terra funerária
Onde as visões sonâmbulas dormiam…

Nunca da terra neste leito raso
Com meus olhos mortais, alucinados…

Nunca tais olhos divisei acaso
Outros olhos eu vi transfigurados.

A luz que os revestia e alimentava
Tinha o fulgor das ardentias vagas,
Um demônio noctâmbulo espiava
De dentro deles como de ígneas plagas.

E os olhos caminhavam pela treva
Maravilhosos e fosforescentes…

Enquanto eu ia como um ser que leva
Pesadelos fantásticos, trementes.

Na treva só os olhos, muito abertos,
Seguiam para mim com majestade,
Um sentimento de cruéis desertos
Me apunhalava com atrocidade.

Só os olhos eu via, só os olhos
Nas cavernas da treva destacando:
Faróis de augúrio nos ferais escolhos,
Sempre, tenazes, para mim olhando…

Sempre tenazes para mim, tenazes,
Sem pavor e sem medo, resolutos,
Olhos de tigres e chacais vorazes
No instante dos assaltos mais astutos.

Só os olhos eu via! — o corpo todo
Se confundia com o negror em volta…

Ó alucinações fundas do lodo
Carnal, surgindo em tenebrosa escolta!
E os olhos me seguiam sem descanso,
Suma perseguição de atras voragens,
Nos narcotismos dos venenos mansos,
Como dois mudos e sinistros pajens.

E nessa noite, em todo meu percurso,
Nas voltas vagas, vãs e vacilantes
Do meu caminho, esses dois olhos de urso
Lá estavam tenazes e constantes.

Lá estavam eles, fixamente eles,
Quietos, tranqüilos, calmos e medonhos…

Ah! quem jamais penetrará naqueles
Olhos estranhos dos eternos sonhos!

Olhos pretos sonhadores

Olhos pretos, sonhadores
Ó celeste Carolina, Como são esmagadores
Olhos pretos sonhadores,
Como vibram dos amores A noss’alma cristalina, Olhos pretos, sonhadores,
Ó celeste Carolina.

O órgão

Um largo e lento vento dormente
Taciturnas lágrimas sonambulas, sinfônicas
Um esquecimento amargo
Uma sombria clausura de almas
Suspirando e gemendo solitárias harmonias
Vago luar de esquecimento e prece, Dessa melancolia que anda errando No mar
e nas estrelas ondulando, Pela minh’alma etereamente desce.

Na minh’alma, dos Sonhos anoitece
O Sentimento que ando transformando
Em hóstia de ouro

Sombra e silêncio

O seu boné

(Corte, out. 1883)
À atriz Adelina Castro

É um boné ideal, de feltros e de plumas,
Que ela usa agora, assim como um turbante
Turco, aveludado, doce como algumas
Nuvens matinais que rolam no levante.

Lembro quando ao vê-lo a rubra marselhesa,
Lembro sensações e cousas de prodígio
E penso que ele tem a máscula grandeza
Desse sedutor, vital barrete frígio!…

Às vezes meu olhar medindo-lhe o contorno
E a flácida plumagem que serve-lhe d’adorno,
— satânico, voraz, esplêndido de fé!

Exclama num idílio cândido e singelo,
Por entre as convulsões artísticas do Belo; —
Oh! tem coração e alma, esse boné!…

Os monges

Montanhas e montanhas e montanhas
Ei-los que vão galgando.

As sombras vãs das figuras estranhas
Na Terra projetando.

Habitam nas mansões do Imponderável
Esses graves ascetas;
Ocultando, talvez, no Inconsolável
Amarguras inquietas.

Como os reis Magos, trazem lá do Oriente
As alfaias preciosas,
Mas alfaias, surpreendentemente,
As mais miraculosas.

Nem incensos, nem mirras e nem ouros,
Nem mirras nem incensos,
Outros mais raros, mágicos tesouros
Sobre todos, imensos.

Pelos longínquos, sáfaros caminhos
Que vivem percorrendo,
A Dor, como atros, venenosos vinhos,
Os vai deliqüescendo.

São os monges sombrios, solitários,
Como esses vagos rios
Que passam nas florestas tumultuários,
Solitários, sombrios.

São monges das florestas encantadas,
Dos ignotos tumultos,
Almas na Terra desassossegadas,
Desconsolados vultos.

São os monges da Graça e do Mistério,
Faróis da Eternidade
Iluminando todo o Azul sidéreo
Da sagrada Saudade.

— Onde e quando acharão o seu descanso
Eles que há tanto vagam?
Em que dia terão esse remanso
Os seus pés que se chagam?

Quando caminham nas Regiões nevoentas,
Da lua nos quebrantos,
As suas sombras vagarosas, lentas
Ganham certos encantos…

Ficam nimbados pela luz da lua
Os seus perfis tristonhos…

Sob a dolência peregrina e crua
Dos tantálicos sonhos.

As Ilusões são seus mantos sangüíneos
De símbolos de dores,
De signos, de solenes vaticínios,
De nirvânicas flores.

Benditos monges imortais, benditos
Que etéreas harpas tangem!
Que rasgam d’alto a baixo os Infinitos,
Infinitos abrangem.

Deixai-os ir com os seus troféus bizarros
De humano Sentimento,
Arrebatados pelos ígneos carros
Do augusto Pensamento.

Que os leve a graça das errantes almas,
— Grandes asas de tudo —
Entre as Hosanas, o verdor das palmas,
Entre o Mistério mudo!
Não importa saber que rumo trazem
Nem se é longo esse rumo…

Eles no Indefinido se comprazem,
São dele a chama e o fumo.

Deixai-os ir pela Amplidão a fora,
Nos Silêncios da esfera,
Nos esplendores da eternal Aurora
Coroados de Quimera!

Deixai-os ir pela Amplidão, deixai-os,
No segredo profundo,
Por entre fluidos de celestes raios
Transfigurando o mundo.

Que só os astros do Azul cintilam
Pela sidérea rede
Saibam que os monges, lívidos, desfilam
Devorados de sede…

Que ninguém mais possa saber as ânsias
Nem sentir a Dolência
Que vindo das incógnitas Distancias
E dos monges a essência!

Monges, ó monges da divina Graça,
Lá da graça divina,
Deu-vos o Amor toda a imortal couraça
Dessa Fé que alucina.

No meio de anjos que vos-abençoam
Corações estremecem…

E tudo eternamente vos perdoam
Os que não vos esquecem.

Toda a misericórdia dos espaços
Vos oscule, surpresa…

E abri, serenos, largamente, os braços
A toda a Natureza!

O sol e o coração

Sol, coração do Espaço que flamejas, O coração
é qual tu, sol de utopias…
Mas, coração, dize-me: — Que desejas?…

Foram-se já todas as alegrias,
Ó Sol! E tu, coração, que ainda adejas, Que fazes sobre
as mortas fantasias?!…

Podes brilhar, ó Sol, vivo e fulgente! E tu, coração,
que me iludiste, Também podes bater, inutilmente.

Crença, Ilusão, Amor, já nada existe, Não mais
levarás sobre a corrente
Da tenebrosa dúvida mais triste.

Longe, mui longe, em regiões caladas, Emudecidos pelo Esquecimento,
Estão hoje esses sonhos de alvoradas.

Foram-se, há muito, soltos pelo vento
Entre as grandes ruínas derrocadas
Do meu amargo e pobre pensamento,

Entre as profundas, tétricas ruínas
Em que o doce fantasma desses sonhos
Atravessou em lágrimas divinas.

Fantasma ideal, de cânticos risonhos Que da vida encontrei pelas colinas
E hoje vaga entre bulcões medonhos!

Fantasma que eu amei, visão errante
Que sempre junto a mim vivia perto,
Por mais longe que eu fosse e mais distante.

Visão que era como a água do deserto Para o meu coração
sempre anelante, Sequioso de amor e sempre aberto…

Ó pobre coração, em vão te agitas, Em vão
tu bates, coração estreito,
Tal qual tu, Sol, nos páramos crepitas.

Nada mais, para mim, de satisfeito
Brilha com o Sol nas plagas infinitas,
Como não canta o coração no peito…

Podes, enfim, sumir-te nos Espaços
Sol! E tu, coração, sempre batendo, Quebrar da terra os “Transitórios
Laços,, Eternamente desaparecendo!…

O soneto

Nas formas voluptuosas o soneto
Tem fascinante, cálida fragrância
E as leves, langues curvas de elegância
De extravagante e mórbido esqueleto.

A graça nobre e grave do quarteto
Recebe a original intolerância,
Toda a sutil, secreta extravagância
Que transborda terceto por terceto.

E como um singular polichinelo
Ondula, ondeia, curioso e belo,
O Soneto , nas formas caprichosas.

As rimas dão-lhe a púrpura vetusta
E nas mais rara procissão augusta
Surge o Sonho das almas dolorosas…

Os risonhos

Pastores e camponesas

De rudes almas esquivas
Passam entre as candidezas
Das estrelas fugitivas.

Parece que nada os punge,
Nada os punge e sobressalta.
A lua que os campos unge
No firmamento vai alta.

E eles passam sob a lua,
De queixas desafogados,
A cabeça livre e nua,
Na florescência dos prados.

Seres meigos e singelos,
Mulheres de lindo rosto,
Lábios cálidos e belos,
Do quente sabor do mosto.

Pastores de tez morena,
Queimados ao sol adusto:
Claridade bem serena
No fundo do olhar bem justo.

Neles tudo é riso e festa,
Neles tudo é festa e riso,
Frescuras brandas de giesta
E graças de Paraíso.

Simples, toscas e felizes,
Sem ter um laivo de mágoa:
Almas das verdes raízes,
Limpidez de gota d’água.

Neles tudo é paz de aldeia
E ri com os risos mais frescos…
O céu inteiro gorjeia
Idílios madrigalescos.

Seduzido por miragens
Caminha o bando risonho
Dessas virentes paragens,
Levado na asa de um sonho.

Nele tudo ri sem ânsia
E com doçura secreta;
E como uma nova infância
Cantantemente irrequieta.

Encantos de mocidade,
Saúde, fulgor, vigores,
Dão-lhe a doce suavidade
Maravilhosa das flores.

Os corações, florescentes,
Vão nesses peitos cantando
E rindo em festins ardentes
E dentre os risos sonhando.

Ri na boca, ri nos olhos,
Nas faces o bando, rindo
O bom riso sem abrolhos,
Que lembra um campo florindo.

Rindo em sonoras risadas,
Rindo em frêmitos vivazes,
Rindo em risos de alvoradas,
Rindo em risos de lilazes.

Os campos entontecidos
Nos vinhos da lua clara
Ficam bizarros, garridos,
De vitalidade rara.

As águas claras das fontes
Vibram lânguidas sonatas
E as nuvens vestem os montes
Das visões mais timoratas.

Na copa dos árvoredos,
Nas orvalhadas verduras
Há sonâmbulos segredos
E murmuradas ternuras.

E o bando festivo passa
Rindo, alegre, casto e suave,
Iluminado de graça,
Mais leve que um vôo de ave.

Podeis rir, almas ditosas,
Almas novas como frutos
De vinhas miraculosas
De pomares impolutos.

Podeis rir, almas eleitas
Que os anjos percebem tanto
Lá das esferas perfeitas
Nas harmonias do Encanto.

Almas brancas, Páscoas leves,
Alvos pães de áureos altares,
De mais candidez que as neves
E a madrugada nos mares.

Almas sem sombras ferozes
Nem espasmos delirantes.
Eco das bíblicas vozes,
Caminhos reverdejantes.

O vosso riso é bendito,
Os vossos sonhos são castos,
O estrelamento infinito
De mundos claros e vastos.

Podeis rir, peitos ufanos,
Belas almas feiticeiras,
Vós tendes nos risos lhanos
O trigo das vossas eiras.

A vossa vida é planície,
Não tem declives funestos:
Sois torres que a superfície
Assenta nos dons modestos.

A nossa vida é bem rasa,
Preso à terra o vosso esforço;
Nem mesmo um frêmito de asa
Vos faz agitar o dorso…

Sois como plantas vencidas
Conquistadas pela terra,
Dando à terra muitas vidas
E tudo que a Vida encerra.

É do vosso sangue moço
Que na terra se derrama,
Que sobe o rubro alvoroço
De ocasos de sóis em chama.

Manchas, ao certo, não tendes
E nem trágico flagício,
Almas isentas de duendes,
Lavadas no Sacrifício.

Das pedras, nos vossos ombros,
A rigidez não carrega.
Em jardins tornam-se escombros
E em luz a crença que é cega.

Desses perfis adoráveis,
Na curva casta dos flancos
Brotam viços inefáveis
Dos florescimentos brancos.

Podeis rir! ó benfazeja
Bondade de nobre essência,
Deus vos chama e vos deseja
Na estrelada florescência.

Um anjo vos acompanha
Nessa estrada matutina
E convosco a ideal montanha
Sobe da graça divina.

O flagelo deste mundo,
Nesses corações não pesa.
Enquanto o Horror vai profundo
Vossa alma tranqüila reza.

Contritos e de mãos postas,
Humildemente de joelhos,
O Demônio, pelas costas,
Não vem vos dar maus conselhos.

Vós sois as sagradas reses
Votadas ao azul Sacrário.
Deus vos olha muitas vezes
Com o seu olhar visionário.

Mas quando, como as estrelas,
Adormecerdes um dia,
Voando mais perto a vê-las
Na Paragem fugidia.

Quando na excelsa Bonança
Afinal adormecerdes,
Nos olhos toda a esperança
Levando dos prados verdes.

Quando lá fordes, subindo
Para as límpidas Alturas,
Profundamente dormindo,
Em busca das almas puras.

Praza aos céus que nos caminhos
Da eterna Glória, das palmas,
Mais brancas que os claros linhos
Possais encontrar as almas!

Outros sonetos

SONETO

Chegou enfim, e o desembarque dela
Causou-me logo uma impressão divina!
É meiga, pura como sã bonina,
Nos olhos vivos doce luz revela!

É graciosa, sacudida e bela,
Não tem os gestos de qualquer menina:
Parece um gênio que seduz, fascina,
Tão atraente, singular é ela!

Chegou, enfim! eu murmurei contente!
Fez-se em minh’alma purpurina aurora,
O entusiasmo me brotou fervente!

Vimos-lhe apenas a construção sonora,
Vimos a larva, nada mais, somente
Falta-nos ver a borboleta agora!

MÃE E FILHO

NATUREZA Aos Poetas

Tudo por ti resplende e se constela, Tudo por ti, suavíssimo, flameja;
É s o pulmão da racional peleja, Sempre viril, consoladora e
bela.

Teu coração de pérolas se estrela, E o bom falerno dás
a quem deseja Vigor, saúde a crença que floreja,
Que as expansões do cérebro revela.

Toda essa luz que bebe-se de um hausto Nos livros sãos, todo esse
enorme fausto Vem das verduras brandas que reluzem!

Esse da idéia esplêndido eletrismo,
O forte, o grande, audaz psicologismo, Os organismos naturais produzem…

Pacto de almas

A Nestor Vítor
Por Devotamento e Admiração.
I
PARA SEMPRE!

Ah! para sempre! para sempre! Agora
não nos separaremos nem um dia…
Nunca mais, nunca mais, nesta
harmonia das nossas almas de
divina aurora.

A voz do céu pode vibrar
sonora ou do Inferno a
sinistra sinfonia,
que num fundo de astral
melancolia minh’alma com a
tu’alma goza e chora.

Para sempre está feito o augusto
pacto! Cegos serenos do celeste tato,
do Sonho envoltos na estrelada rede.
E perdidas, perdidas no Infinito
as nossas almas, no Clarão
bendito hão de enfim saciar
toda esta sede…
II
LONGE DE TUDO

E livres, livres desta vã
matéria, longe, nos claros
astros peregrinos
que havemos de encontrar os dons divinos
e a grande paz, a grande paz sidérea.

Cá nesta humana e trágica
miséria, nestes surdos
abismos assassinos teremos
de colher de atros destinos a
flor apodrecida e deletéria.

O baixo mundo que troveja e
brama só nos mostra a
caveira e só a lama, ah! só a
lama e movimentos lassos…

Mas as almas irmãs, almas
perfeitas, hão de trocar, nas
Regiões eleitas, largos,
profundos, imortais abraços!
III
ALMA DAS ALMAS

Alma das almas , minha irmã
gloriosa, divina irradiação do
Sentimento,
quando estarás no azul
Deslumbramento, perto de mim, na
grande Paz radiosa?!

Tu que és a lua da Mansão de rosa
da Graça e do supremo
Encantamento, o círio astral do
augusto Pensamento velando
eternamente a Fé chorosa;

Alma das almas, meu consolo
amigo, seio celeste, sacrossanto
abrigo,
serena e constelada imensidade;

entre os teus beijos de etereal
carícia, sorrindo e soluçando
de delícia, quando te abraçarei
na Eternidade?!

Pandemonium

A Maurício Jubim

Em fundo de tristeza e de agonia
O teu perfil passa-me noite e dia.

Aflito, aflito, amargamente aflito,
Num gesto estranho que parece um grito.

E ondula e ondula e palpitando vaga,
Como profunda, como velha chaga.

E paira sobre ergástulos e abismos
Que abrem as bocas cheias de exorcismos.

Com os olhos vesgos, a flutuar de esguelha,
Segue-te atrás uma visão vermelha.

Uma visão gerada do teu sangue
Quando no Horror te debateste exangue,

Uma visão que é tua sombra pura
rodando na mais trágica tortura.

A sombra dos supremos sofrimentos
Que te abalaram como negros ventos.

E a sombra as tuas voltas acompanha
Sangrenta, horrível, assombrosa, estranha.

E o teu perfil no vácuo perpassando
Vê rubros caracteres flamejando.

Vê rubros caracteres singulares
De todos os festins de Baltazares.

Por toda a parte escrito em fogo eterno:
Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno!
E os emissários espectrais das mortes
Abrindo as grandes asas flamifortes…

E o teu perfil oscila, treme, ondula,
Pelos abismos eternais circula…

Circula e vai gemendo e vai gemendo
E suspirando outro suspiro horrendo.

E a sombra rubra que te vai seguindo
Também parece ir soluçando e rindo.

Ir soluçando, de um soluço cavo
Que dos venenos traz o torvo travo.

Ir soluçando e rindo entre vorazes
Satanismos diabólicos, mordazes.

E eu já nem sei se e realidade ou sonho
Do teu perfil o divagar medonho.

Não sei se e sonho ou realidade todo
Esse acordar de chamas e de lodo.

Tal é a poeira extrema confundida
Da morte a raios de ouro de outra Vida.

Tais são as convulsões do último arranco
Presas a um sonho celestial e branco.

Tais são os vagos círculos inquietos
Dos teus giros de lágrimas secretos.

Mas, de repente, eis que te reconheço,
Sinto da tua vida o amargo preço.

Eis que te reconheço escravizada,
Divina Mãe, na Dor acorrentada.

Que reconheço a tua boca presa
Pela mordaça de uma sede acesa
Presa, fechada pela atroz mordaça
Dos fundos desesperos da Desgraça.

Eis que lembro os teus olhos visionários
Cheios do fel de bárbaros Calvários.

E o teu perfil asas abrir parece
Para outra Luz onde ninguém padece…

Com doçuras feéricas e meigas
De Satãs juvenis, ao luar, nas veigas.

E o teu perfil forma um saudoso vulto
Como de Santa sem altar, sem culto.

Forma um vulto saudoso e peregrino
De força que voltou ao seu destino.

De ser humano que sofrendo tanto
Purificou-se nos Azuis do Encanto.

Subiu, subiu e mergulhou sozinho,
Desamparado, no fetal caminho.

Que lá chegou transfigurado e aéreo,
Com os aromas das flores do Mistério.

Que lá chegou e as mortas portas mudas
Fez abalar de imprecações agudas…

E vai e vai o teu perfil ansioso,
De ondulações fantásticas, brumoso.

E vai perdido e vai perdido, errante,
Trêmulo, triste, vaporoso, ondeante.

Vai suspirando, num suspiro vivo
Que palpita nas sombras incisivo…

Um suspiro profundo, tão profundo
Que arrasta em si toda a paixão do mundo.

Suspiro de martírio, de ansiedade,
De alívio, de mistério, de saudade.

Suspiro imenso, aterrador e que erra
Por tudo e tudo eternamente aterra…

O pandemonium de suspiros soltos
Dos condenados corações revoltos.

Suspiro dos suspiros ansiados
Que rasgam peitos de dilacerados.

E mudo e pasmo e compungido e absorto,
Vendo o teu lento e doloroso giro,
Fico a cismar qual é o rio morto
Onde vai divagar esse suspiro.

Papoula

A Oscar Rosas

Assim loura és mais formosa
Do que se fosses trigueira:
Corpo de eflúvios de rosa
Com esbeltez de palmeira.

Vestida de cor da aurora
Leve dos fluidos da graça,
És uma estrela sonora
Que, em sonhos, pelo éter passe.

Resplandece em teu cabelo
Um fulgor de sol dourado,
Que só de senti-lo e vê-lo
Fica tudo iluminado.

Do teu branco leque aberto
Que lembra uma asa de garça,
Aspiro um perfume incerto,
Talvez a tua alma esparsa.

Num resplendor de madona
E altivez de corça arisca
Surges da luz entre a zona
Com quebrantos de odalisca.

Que venha o duque normando
De castelos escoceses
Com seu ar bizarro e brando
Amar-te os olhos ingleses.

E entre aromas e frescores
E revoadas de abelhas,
Como num campo de flores
Que esse olhar vibre centelhas.

Que cantem na tua boca
As alegrias radiadas,
Numa ideal rajada louca
De vôos de passaradas.

Que como os astros no espaço,
Teu encanto resplandeça…
Com pelúcias no regaço
E asas de ave na cabeça.

E que os teus dois seios puros
Que o amor fecundando beija Fiquem cheios e maduros
Com dois bicos de cereja.

Paranaguadas

Que importa que tu fales
Que importa que tu files
Que importa que não cales,
Que importa que tu fales
Que importa que te rales,
Que importa-me essa bílis
Que importa que tu fales
Que importa que tu files.

Parece um céu estrelado

Parece um céu estrelado
Esta vida de nós dois
Depois d’aquele passado…
Parece um céu estrelado
Largo, puro, undiflavado
Depois do pesar, depois,
Parece um céu estrelado
Esta vida de nós dois.

Perante a morte

Perante a Morte empalidece e treme,
Treme perante a Morte, empalidece.
Coroa-te de lágrimas, esquece
O Mal cruel que nos abismos geme.

Ah! longe o Inferno que flameja e freme,
Longe a Paizão que só no horror florece…
A alma precisa de silêncio e prece,
Pois na prece e silêncio nada teme.

Silêncio e prece no fatal segredo,
Perante o pasmo do sombrio medo
Da morte e os seus aspectos reverentes…

Silêncio para o desespero insano,
O furor gigantesco e sobre-humano,
A dor sinistra de ranger os dentes!

Pés

VI

Lívidos, frios, de sinistro aspecto,
Como os pés de Jesus, rotos em chaga,
Inteiriçados, dentre a auréola vaga
Do mistério sagrado de um afeto.

Pés que o fluido magnético, secreto
Da morte maculou de estranha e maga
Sensação esquisita que propaga
Um frio n’alma, doloroso e inquieto…

Pés que bocas febris e apaixonadas
Purificaram, quentes, inflamadas,
Com o beijo dos adeuses soluçantes.

Pés que já no caixão, enrijecidos,
Aterradoramente indefinidos
Geram fascinações dilacerantes!

Piedade

O coração de todo o ser humano
foi concebido para ter piedade,
para olhar e sentir com caridade,
ficar mais doce o eterno desengano.

Para da vida em cada rude oceano
arrojar, através da imensidade,
tábuas de salvação, de suavidade,
de consolo e de afeto soberano.

Sim! Que não ter um coração profundo é
os olhos fechar à dor do mundo,
ficar inútil nos amargos trilhos.

É como se o meu ser compadecido
não tivesse um soluço comovido
para sentir e para amar meus filhos!

Piedosa

A Nestor Vitor

Não sei por que, magoada Flor sem glória,
A tua voz de trêmula meiguice
Desperta em mim a mocidade flórea
De sentimentos que não tem velhice.

Guslas de um céu remotamente mudo
Gemem plangentes nessa voz que voa
E através dela, abençoando tudo,
Um luar de perdões desabotoa.

Vejo-te então sublimemente triste
E excelsa e doce, num anseio lento,
Vagando como um ser que não existe,
Transfigurada pelo Sofrimento.

Mas, não sei como, vejo-te por brumas,
Além da de ouro constelada Porta,
Na ondulação das lívidas espumas,
Morta, já morta, muito morta, morta…

E sinto logo esse supremo e sábio
Travo da dor, se morta te antevejo,
Essa macabra contração de lábio
Que morde e tantaliza o meu desejo.

Fico sempre a cismar, se tu morresses
Que angustia fina me laceraria,
Que músicas de céus saudosos, desses
Céus infinitos sobre mim fluiria…

Que anjos brancos soberbos, deslumbrantes,
Resplandecentes nos broqueis das vestes,
Claros e altos voariam flamejantes
Para buscar-te, dos Azuis Celestes.

Sim! Sim! Pois então tanta e atroz fadiga,
Tanta e tamanha dor convulsa e cega
Há de ficar sem doce luz amiga,
Da lágrima dos céus, que tudo rega?!

As batalhas cruéis do sacrifício,
As transfigurações dos teus calvários,
Essas virtudes, rolarão com o vício
Pelos mesmos abismos tumultuários?!

Toda a obscura pureza dos teus feitos,
A tua alma mais simples do que a água,
Essa bondade, todos os eleitos

Sentimentos que tens de flor da Mágoa;
Nada se salvará jamais, mais nada
Se salvará, no instante derradeiro?!

Ó interrogação desesperada,
Errante, errante pelo mundo inteiro!
Nada se salvará da essência viva
Que tudo purifica e refloresce;

De tanta fé, de tanta luz altiva
De tanta abnegação, de tanta prece?!
Nada se salvará, piedosa e pobre
Flor desdenhada pelo Mal ufano,
Só o meu coração e verso nobre
Hão de abrigar-te do desprezo humano.

Na transcendência do teu ser, tão alta,
Vejo dos céus como que os dons, a esmola,
O indefinido que de ti ressalta
Me prende, me arrebata e me consola.

E sinto que a tua alma desprendida
Do terrestre, do negro labirinto
Melhor há de adorar-me na outra
Vida Melhor sentindo tudo quanto eu sinto.

Porque não é por sentimento vago,
Nem por simples e vã literatura,
Nem por caprichos de um estilo mago
Que sinto tanto a tua essência pura.

Não é por transitória veleidade
E para que o mundo reconheça,
Que sinto a tua cândida Piedade,
As auréolas de Luz dessa cabeça.

Não é para que o mundo te proclame
Maravilha das mártires, das santas
Que eu digo sempre ao meu Amor que te ame
Mesmo através de tantas ânsias, tantas.

Nem é também para que o mundo creia
Na humilde limpidez da tua alma justa,
Que o mundo, vil e vão, desdenha e odeia
Toda a humildade, toda a crença augusta.

Mas sinto porque te amo e te acompanho
Pelas montanhas de onde sóis saudosos
Clarões e sombras de um mistério estranho
Espalham, como adeuses carinhosos.

Sinto que te acompanho, que te sigo
Tranqüilo, calmo desses vãos rumores
E que tu vais embalada comigo,
Na mesma rede de carinho e dores.

Sinto os segredos do teu corpo amado,
Toda a graça floral, a graça breve,
Todo o composto lânguido, alquebrado
Do teu perfil de áureo crescente leve.

Sinto-te as linhas imortais do flanco,
E as ondas vaporosas dos teus passos
E todo o sonho castamente branco
Da volúpia celeste desses braços.

Sinto a muda expressão da tua boca
Feita num doce e doloroso corte
De beijo dado na veemência louca
Dos céus do gozo entre o estertor da morte.

Sinto-te as nobres mãos afagadoras,
Riquezas raras de um valor secreto
E mãos cujas carícias redentoras
São as carícias do supremo Afeto.

Sinto os teus olhos fluidos, de onde emerge
Uma graça, uma paz, tamanho encanto,
Tão brando e triste, que a minha alma asperge
Em suavíssimos bálsamos de pranto.

Uns olhos tão etéreos, tão profundos,
De tanta e tão sutil delicadeza
Que parecem viver lá n’outros mundos,
Longe da contingente Natureza.

Olhos que sempre no tremendo choque
Dos sofrimentos íntimos, latentes,
Tem esse toque amigo, o velho toque
Original das lágrimas ardentes.

Ah! sÓ eu vejo e sinto esse desvelo
Que transfigura e faz o teu martírio,
O sentimento amargurado e belo
Que e já, talvez, quase mortal delírio…

Sinto que a mesma chama nos abraça,
Que um perfume eternal, casto, esquisito,
Circula e vive com divina graça
Dentro do nosso trêmulo Infinito.

E tudo quanto me sensibiliza,
Fere, magoa, dilacera, punge,
Tudo no teu olhar se cristaliza,
No teu olhar, no teu olhar que unge.

Sinto por ti o mais febril e intenso
Carinho quase louco, doentio…

Carinho singular, curioso, imenso,
Que deixa na alma um resplendor sombrio.

E e de tal forma esse carinho raro,
De tal encanto e tão sagrada essência,
De tal Piedade e tal Perdão preclaro,
Que canta na estrelada Refulgência.

Ah! nunca saberás quanto exotismo
De sentimento me alanceia e pulsa,
Vibra violinos de sonambulismo
Nest’alma ora serena, ora convulsa!
Tens luz de lua e tens gorjeios de ave
No mundo virginal dos meus sentidos,
E és sonho, sombra de Angelus suave
Nos nossos mútuos e comuns gemidos.

E sonho, sombra de Angelus, tão brandos,
Imortalmente tão indefiníveis
Que todos os terrores execrandos
Cobrem-se para nós de íris sensíveis.

É assim que eu te sinto, erma, sozinha,
Frágil, piedosa, nos singelos brilhos
Erguendo aos braços, nobremente minha,
Os dolentes troféus dos nossos filhos.

Erguendo-os como cálices amargos
De um vinho ideal de já mortas quimeras,
Para além destes céus mudos e largos
Na ampla misericórdia das Esferas!

Pinto, pinta – ponta à ponta

Pinto, pinta — ponta à ponta
Tanta ponta, Pinto pinta
Que pinta se pinta a pinta
Pinto — pinta — ponta à ponta.
Pinto é ponto mas não ponta
Mas se pinta por um pinto
E já que o Pinto se pinta
Eu pinto-lhe a pinta ao Pinto.

Piruetas

Finou-se um tal inglês
Gastrônomo e patife
Que tanto — de uma vez
Comeu, comeu e esparramou-se em bife;
Que um dia de jejum,
Pela pança rotunda e quixotesca,
Teve um parto… comum,
Um feto original… de carne fresca.

Poesia

C’est la musique la poesie de l’âme;
et la gloire est Dieu, ce sont les
deux choses les plus charmantes, les plus belles, les plus grandes de la vie!
(Do Autor)

Da música escutando preclaras harmonias
Vendo em cada lábio brilhar ledo sorriso
Vendo luz e flores e tanto entusiasmo
Julguei-me transportado ao célico Paraíso!

Foi sonho na verdade — mas hoje realizado
Vos dá, distintos sócios, venturas mais de mil,
A vós que à frente tendo Penedo, grande, forte,
Subis, alistridente, qual ave mais gasil!

E quando executais as vossas belas peças
As notas quais gemidos vagam n’amplidão
Parece que o infinito derrama sobre vós
Centelhas sublimadas só d’inspiração!

Da arte de Mozart vós sois grandes romeiros
Lutais como nas vagas o triste palinuro,
Os olhos tendes fitos na glória que dá brilho
No livro tricolor e ovante do futuro!

Hoje que os sorrisos assomam em vossos lábios
Que da “Guarani” alçais áureo pendão,
Eu humilde e fraco — com flores inodoras
Somente aqui vos venho fazer uma ovação!

Quando há só coragem, força, intrepidez
Quando se alimenta no peito divo ardor,
O homem não recua, caminha p’ro progresso
Co’a fronte sempre erguida, sem ter menor temor,

Sem ter algum trabalho jamais s’alcança trono
Sem ter valor e força jamais se tem lauréis
P’ra vossa grande glória, além do grã futuro
Deus já tem erectos milhares de docéis!

Mas dentre vós vulto sereno se destaca
Qual Rodes portentoso, imenso, verdadeiro
Que nunca recuou sequer um só momento
Que sempre em trabalhar foi pronto companheiro!

E este vosso sócio, digno diretor
Que forte não pensou jamais em recuar!
É José Gonçalves — águia valorosa
A quem, altivamente, eu ouso aqui louvar!

Vencendo mil tropeços, altiva os derribando
A bela “Guarani” se mostra triunfante
Foi como esses heróis — na mão sustenta o gládio
— O gládio da vitória serena e radiante!

Portanto erguei ridente a fronte ao infinito!
Erguei ó grandes bravos a fronte toda luz!
Eis, a senda é bela, sublime, é grandiosa
Avante pois ness’arte, avante, avante, sus!

E agora concluindo palavras pobrezinhas
Que eu pronunciar humilde vim aqui,
Saúdo fervoroso — do imo de minh’alma
A essa tão gentil, simpática “Guarani”!

Post mortem

Quando do amor das Formas inefáveis
No teu sangue apagar-se a imensa chama,
Quando os brilhos estranhos e variáveis
Esmorecerem nos troféus da Fama.

Quando as níveas Estrelas invioláveis,
Doce velário que um luar derrama,
Nas clareiras azuis ilimitáveis
Clamarem tudo o que o teu Verso clama.

Já terás para os báratros descido,
Nos cilícios da Morte revestido,
Pés e faces e mãos e olhos gelados…

Mas os teus Sonhos e Visões e Poemas
Pelo alto ficarão de eras supremas
Nos relevos do Sol eternizados!

Presa do ódio

Este caminho é cor de rosa e é de ouro,
Estranhos roseirais nele florescem,
Folhas augustas, nobres reverdecem
De acanto, mirto e sempiterno louro.

Neste caminho encontra-se o tesouro
Pelo qual tantas almas estremecem;
É por aqui que tantas almas descem
Ao divino e fremente sorvedouro.

É por aqui que passam meditando,
Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando,
Neste celeste, límpido caminh

Os seres virginais que vêm da Terra,
Ensangüentados da tremenda guerra,
Embebedados do sinistro vinho.

Preso ao trapézio da rima

Preso ao trapézio da rima
Triolé — pega estes zotes
E dá-lhes de baixo acima
Preso ao trapézio da rima
Na mais artística esgrima
D’estouros e piparotes,
Preso, ao trapézio da rima
Triolé — pega estes zotes.

Pressago

Nas águas daquele lago
Dormita a sombra de Iago…

Um véu de luar funéreo
Cobre tudo de mistério…

Há um lívido abandono
Do luar no estranho sono.

Transfiguração enorme
Encobre o luar que dorme…

Dá meia-noite na ermida,
Como o último ai de uma vida.

São badaladas nevoentas,
Sonolentas, sonolentas…

Do céu no estrelado luxo
Passa o fantasma de um bruxo.

No mar tenebroso e tetro
Vaga de um naufrago o espectro.

Como fantásticos signos,
Erram demônios malignos.

Na brancura das ossadas
Gemem as almas penadas
Lobisomens, feiticeiras
Gargalham no luar das eiras.

Os vultos dos enforcados
Uivam nos ventos irados.

Os sinos das torres frias
Soluçam hipocondrias.

Luxúrias de virgens mortas
Das tumbas rasgam as portas.

Andam torvos pesadelos
Arrepiando os cabelos.

Coalha nos lodos abjetos
O sangue roxo dos fetos.

Há rios maus, amarelos
De presságio de flagelos.

Das vesgas concupiscências
Saem vis fosforescências.

Os remorsos contorcidos
Mordem os ares pungidos.

A alma cobarde de Judas
Recebe expressões comudas.

Negras aves de rapina
Mostram a garra assassina.

Sob o céu que nos oprime
Languescem formas de crime.

Com os mais sinistros furores,
Saem gemidos das flores.

Caveiras! Que horror medonho!
Parecem visões de um sonho!

A morte com Sancho Panca,
Grotesca e trágica dança.

E como um símbolo eterno,
Ritmos dos Ritmos do inferno.

No lago morto, ondulando,
Dentre o luar noctivagando,

O corvo hediondo crocita
Da sombra d’Iago maldita!

Primeira comunhão

Grinaldas e véus brancos, véus de neve,
Véus e grinaldas purificadores,
Vão as Flores carnais, as alvas Flores
Do Sentimento delicado e leve.

Um luar de pudor, sereno e breve,
De ignotos e de prônubos pudores,
Erra nos pulcros virginais brancores
Por onde o Amor parábolas descreve…

Luzes claras e augustas, luzes claras
Douram dos templos as sagradas aras,
Na comunhão das níveas hóstias frias…

Quando seios pubentes estremecem,
Silfos de sonhos de volúpia crescem,
Ondulantes, em formas alvadias…

Pródigo

Como o Rei Lear não sentes a tormenta
Que te desaba na fatal cabeça!
(Que o céu d’estrelas todo resplandeça.)
A tua alma, na Dor, mais nobre aumenta.

A Desventura mais sanguinolenta
Sobre os teus ombros impiedosa desça,
Seja a treva mais funda e mais espessa,
Todo o teu ser em músicas rebenta.

Em músicas e em flores infinitas
De aromas e de formas esquisitas
E de um mistério singular, nevoento…

Ah! só da Dor o alto farol supremo
Consegue iluminar, de extremo a extremo,
o estranho mar genial do Sentimento!

Quando ela está de colete

Quando ela está de colete,
Espartilhada, irradiante
Vestida de azul-ferrete
Quando ela está de colete
Em mim cruzando o florete
Do seu olhar — que elegante
Quando ela está de colete,
Espartilhada, irradiante.

Quando estás de laçarotes

Quando Estás De Laçarotes
E De Plissês E Fichus,
De Rendas E De Decotes,
Quando Estás De Laçarotes,
Toilette De Chamalotes,
Quanto Esplendor, Quanta Luz,
Quando Estás De Laçarotes
E De Plissês E Fichus.

Quando eu partir

Quando eu partir, que eterna e que infinita
Há de crescer-me a dor de tu ficares;
Quanto pesar e mesmo que pesares,
Que comoção dentro desta alma aflita.

Por nossa vida toda sol, bonita,
Que sentimento, grande como os mares,
Que sombra e luto pelos teus olhares
Onde o carinho mais feliz palpita…

Nesse teu rosto da maior bondade
Quanta saudade mais, que atroz saudade…
Quanta tristeza por nós ambos, quanta,

Quando eu tiver já de uma vez partido,
Ó meu amor, ó meu muito querido
Amor, meu bem, meu tudo, ó minha santa!

Quando será

Quando será que tantas almas duras
Em tudo, já libertas, já lavadas
nas águas imortais, iluminadas
Do sol do Amor, hão de ficar bem puras?

Quando será que as límpidas frescuras
Dos claros rios de ondas estreladas
Dos céus do Bem, hão de deixar clareadas
Almas vis, almas vãs, almas escuras?

Quando será que toda a vasta Esfera,
Toda esta constelada e azul Quimera,
Todo este firmamento estranho e mudo,

Tudo que nos abraça e nos esmaga,
quando será que uma resposta vaga,
Mas tremenda, hão de dar de tudo, tudo?!

Questão brocardo

— Pife, pufe, pafe, pefe
Pafe, pefe, pife, pufe —
A cacholeta no chefe —
— Pife, pufe, pafe, pefe
Estoure como um tabefe
E o ventre de raiva entufe —
— Pife, pufe, pafe, pefe
Pafe, pefe, pife, pufe!
Questão Brocardo

Triolé fura essa pança
Do Delegado — és um russo,
Revolução n’esta dança…
Triolé fura essa pança,
Fura, fura como a lança
Ou como no boi um chuço;
Triolé fura essa panca
Do Delegado — és um russo.

Rebelado

Ri tua face um riso acerbo e doente,
Que fere, ao mesmo tempo que contrista…
Riso de ateu e riso de budista
Gelado no Nirvana impenitente.

Flor de sangue, talvez, e flor dolente
De uma paixão espiritual de artista,
Flor de Pecado sentimentalista
Sangrando em riso desdenhosamente.

Da alma sombria de tranqüilo asceta
Bebeste, entanto, a morbidez secreta
Que a febre das insânias adormece.

Mas no teu lábio convulsivo e mudo
Mesmo até riem, com desdéns de tudo,
As sílabas simbólicas da Prece!

Recolta das estrelas

(1 out. 1895)
A Tibúrcio de Freitas

Filho meu, de nome escrito
Da minh’alma no Infinito.

Escrito a estrelas e sangue
No farol da lua langue…

Das tuas asas serenas
Faz manto para estas penes.

Dá-me a esmola de um carinho
Como a luz de um claro vinho.

Com tua mão pequenina
Caminhos em flor me ensina.

Com teu riso fresco e suave
Oh! Dá-me do encanto a chave.

Do teu florão de Inocência
Dá-me as roses da Clemência.

Como outro Jesus bambino,
Esclarece-me o Destino.

Traz luz ao mundano pego
Onde sigo, mudo e cego…

Com teus enleios e graça
Nos meus cuidados perpassa.

Este peito acende, inflama
Na mais sacrossanta chama.

Faz brotar nevados lírios
Das cruzes dos meus martírios.

Dá-me um sol de estranho brilho,
Flor das lágrimas, meu filho.

Rebento triste, orvalhado
Com tanto pranto chorado.

Filho das ânsias, das ânsias,
Das misteriosas fragrâncias,

Filho de aromas secretos
E de desejos inquietos.

De suspiros anelantes
E impaciências clamantes.

Filho meu, tesouro mago
De todo esse afeto vago…

Filho meu, torre mais alta
De onde o meu amor se exalta.

Ânfora azul, de onde o incenso
dos sonhos se eleva denso.

Constelação flamejada
De toda esta vida ansiada.

Crisol onde lento, lento
Purifico o Sentimento.

Íris curioso onde giro
E alucinado deliro.

Signo dos signos extremos
Destes tormentos supremos.

Orbita de astros onde pairo
E em febre de luz desvairo.

Vertigem, vertigem viva
Da paixão mais convulsiva.

Traz-me unção, traz-me concórdia
E paz e misericórdia.

Do teu sorriso a frescura
Rios de ouro abra, na Altura.

Abra, acenda labaredas,
Iluminando-me as quedas.

Flor noturna da luxúria
Brotada de haste purpúrea.

Dos teus olhos dadivosos
Escorram óleos preciosos…

Óleos cândidos, dos mundos
Maravilhosos, profundos.

Óleos virgens se derramem
E o meu viver embalsamem.

Embalsamem de eloqüentes,
Celestes dons prefulgentes.

Para que eu possa com calma
Erguer os castelos da alma.

Para que eu durma tranqüilo
Lá no sepulcral Sigilo.

Ó meu Filho, ó meu eleito
Deslumbramento perfeito.

Traz novo esplendor ao facho
Com que altos Mistérios acho

Meu Filho, frágil e terno,
Socorre-me do atro Inferno.

Onde vibram gládios duros
Por ergástulos escuros.

E cruzam flamíneas, fortes,
Negras vidas, negras mortes.

Onde tecem Satanases
Sete círculos vorazes…

Recorda

Quando a onda dos desejos inquietantes,
Que do peito transborda,
Morrer, enfim, nas amplidões distantes,
Recorda-te, recorda…

Revive dessa música já finda
Que nas estrelas dorme.
Volta-te ao mundo sedutor ainda
Da ilusão multiforme!

Volta, recorda eternamente, volta
Aos faróis da Esperança,
Do Sonho estranho as grandes asas solta
À celeste Bonança.

Recorda mágoas, lágrimas e risos
E soluços e anseios…
Revive dos nevoeiros indecisos
E dos vãos devaneios.

Revive! Goza! Desolado, embora,
Sorrindo e soluçando,
Erguendo os véus de já passada aurora,
Recordando e sonhando…

Cada alma tem seu íntimo recato
Numa estrela perdida
E cada coração intemerato
Tem na estrela uma vida.

Aplica o ouvido a correnteza fria
Dos golfões da matéria
E recorda de que lama sombria
E composta a miséria.

Recorda! Sonha! Nas estrelas erra,
Beduíno do Espaço
Aos sonhos brancos, que não são da Terra,
Dá, sorrindo, o teu braço…

Dá o teu braço, pelos céus sorrindo
E recordando parte
E hás de entender os claros céus, sentindo
Que andas a recordar-te.

Bate a porta dos Astros solitários
Dos eternos Fulgores,
Em busca desses mortos visionários,
Almas de sonhadores.

Ah! volta a infância dos primeiros beijos,
Dos momentos sidéreos,
Volta a sede dos últimos desejos,
Dos primeiros mistérios!

Ah! volta aos desenganos primitivos,
Volta a essência dos anos,
Volta aos espectros tristemente vivos,
Ah! volta aos desenganos!

Volta aos serenos, flóridos oásis,
Volta aos hinos profundos,
Volta as eflorescências dos Lilazes,
Volta, volta a esses mundos!

Fique na Sombra e no Silêncio d’alma
Todo o teu ser dolente,
Para tranqüilo, com ternura e calma,
Recordar docemente…

Na Sombra então e no Silêncio denso,
Como em mágicas plagas,
Faz acender o alampadário imenso
Das recordações vagas…

Pousa a cabeça, meigamente pousa
Nesse augusto Quebranto
E nem da Terra a mais ligeira cousa
Te desperte do Encanto.

Para o Amor, para a Dor e para o Sonho
Nas Esferas transborda…
E entre um soluço e um segredo risonho
Recorda-te, recorda…

Regenerada

De mãos postas, à luz de frouxos círios
Rezas para as Estrelas do Infinito,
Para os Azuis dos siderais Empíreos
Das Orações o doloroso rito.

Todos os mais recônditos martírios,
As angústias mortais, teu lábio aflito
Soluça, em preces de luar e lírios,
Num trêmulo de frases inaudito.

Olhos, braços e lábios, mãos e seios,
Presos, d’estranhos, místicos enleios,
Já nas Mágoas estão divinizados.

Mas no teu vulto ideal e penitente
Parece haver todo o calor veemente
Da febre antiga de gentis Pecados.

Regina coeli

Ó Virgem branca, Estrela dos altares,
Ó Rosa pulcra dos Rosais polares!

Branca, do alvor das ambulas sagradas
E das níveas camélias regeladas.

Das brancuras de seda sem desmaios
E da lua de linho em nimbo e raios.

Regina Coeli das sidéreas flores,
Hóstia da Extrema-Unção de tantas dores.

Ave de prata e azul, Ave dos astros…

Santelmo aceso, a cintilar nos mastros…

Gôndola etérea de onde o Sonho emerge…

Água Lustral que o meu Pecado asperge.

Bandolim do luar, Campo de giesta,
Igreja matinal gorjeando em festa.

Aroma, Cor e Som das Ladainhas
De Maio e Vinha verde dentre as vinhas,

Dá-me através de cânticos, de rezas,
O Bem, que almas acerbas torna ilesas.

O Vinho douro, ideal, que purifica
das seivas juvenis a força rica.

Ah! faz surgir, que brote e que floresça
A Vinha douro e o vinho resplandeça.

Pela Graça imortal dos teus Reinados
Que a Vinha os frutos desabroche iriados.

Que frutos, flores essa Vinha brote
Do céu sob o estrelado chamalote.

Que a luxúria poreje de áureos cachos
E eu um vinho de sol beba aos riachos.

Virgem, Regina, Eucaristia, Coeli,
Vinho é o clarão que teu Amor impele.

Que desabrocha ensangüentadas rosas
Dentro das naturezas luminosas.

Ó Regina do Mar! Coeli! Regina!
Ó Lâmpada das naves do Infinito!
Todo o Mistério azul desta Surdina
Vem d’estranhos Missais de um novo Rito!…

Requiém

Como os salmos dos Evangelhos celestiais,
Os sonhos que eu amei hão de acabar,
Quando o meu corpo, trêmulo, dos velhos
Nos gelados outonos penetrar.

O rosto encarquilhado e as mãos já frias,
Engelhadas, convulsas, a tremer,
Apenas viverei das nostalgias
Que fazem para sempre envelhecer.

Por meus olhos sem brilho e fatigados
Como sombras de outrora, passarão
As ilusões de uns olhos constelados
Que da Vida dourarão-me a Ilusão.

Mas tudo, enfim, as bocas perfumosas,
O mar, o campo e tudo quanto amei,
As auroras, o sol, pássaros, rosas,
Tudo rirá do estado a que cheguei.

Do brilho das estrelas cristalinas
Virá um riso irônico de dor,
E da minh’alma subirão neblinas,
Incensos vagos, cânticos de amor.

Por toda parte o amargo escárnio fundo,
Sem já mais nada para mim florir,
As risadas vandálicas do mundo
Secos desdéns por toda a parte a rir.

Que hão de ser vãos esforços da memória
Para lembrar os tempos virginais,
As rugas da matéria transitória
Hão de 1á estar como a dizer: — jamais!

E hei de subir transfigurado e lento
Altas montanhas cheias de visões,
Onde gelaram, num luar, nevoento,
Tantos e solitários corações.

Recordarei as íntimas ternuras,
De seres raros, porém mortos já,
E de mim, do que fui, pelas torturas
Deste viver pouco me lembrará.

O mundo clamará sinistramente
Daquele que a velhice alquebra e alui…
Mas ah! por mais que clame toda a gente
Nunca dirá o que de certo eu fui.

E os dias frios e ermos da Existência
Cairão num crepúsculo mortal,
Na soluçante, mística plangência
Dos órgãos de uma estranha catedral.

Para me ungir no derradeiro e ansioso
Olhar que a extrema comoção traduz,
Sob o celeste pálio majestoso
Hão de passar os Viáticos da luz.

Requiém do sol

Águia triste do Tédio, sol cansado,
Velho guerreiro das batalhas fortes!
Das ilusões as trêmulas coortes
Buscam a luz do teu clarão magoado…

A tremenda avalanche do Passado
Que arrebatou tantos milhões de mortes
Passa em tropel de trágicos Mavortes
Sobre o teu coração ensangüentado…

Do alto dominas vastidões supremas
Águia do Tédio presa nas algemas
Da Legenda imortal que tudo engelha…

Mas lá, na Eternidade, de onde habitas,
Vagam finas tristezas infinitas,
Todo o mistério da beleza velha!

Ressureição

Alma! Que tu não chores e não gemas,
Teu amor voltou agora.

Ei-lo que chega das mansões extremas,
Lá onde a loucura mora!
Veio mesmo mais belo e estranho, acaso,
Desses lívidos países,
Mágica flor a rebentar de um vaso
Com prodigiosas raízes.

Veio transfigurada e mais formosa
Essa ingênua natureza,
Mais ágil, mais delgada, mais nervosa,
Das essências da Beleza.

Certo neblinamento de saudade
Mórbida envolve-a de leve…

E essa diluente espiritualidade
Certos mistérios descreve.

O meu Amor voltou de aéreas curvas,
Das paragens mais funestas…

Veio de percorrer torvas e turvas
E funambulescas festas.

As festas turvas e funambulescas
Da exótica Fantasia,
Por plagas cabalísticas, dantescas,
De estranha selvageria.

Onde carrascos de tremendo aspecto
Como astros monstros circulam
E as meigas almas de sonhar inquieto
Barbaramente estrangulam.

Ele andou pelas plagas da loucura,
O meu Amor abençoado,
Banhado na poesia da Ternura,
No meu Afeto banhado.

Andou! Mas afinal de tudo veio
Mais transfigurado e belo,
Repousar no meu seio o próprio seio
Que eu de lágrimas estréio.

De lágrimas de encanto e ardentes beijos,
Para matar, triunfante,
A sede ideal de místico desejo
De quando ele andou errante.

E lágrimas, que enfim, caem ainda
Com os mais acres dos sabores
E se transformam (maravilha infinda!)
Em maravilhas de flores!

Ah! que feliz um coração que escuta
As origens de que é feito!

E que não é nenhuma pedra bruta
Mumificada no peito!

Ah! que feliz um coração que sente
Ah! tudo vivendo intenso
No mais profundo borbulhar latente
Do seu fundo foco imenso!

Sim! eu agora posso ter deveras
Ironias sacrossantas…

Posso os braços te abrir, Luz das esferas,
Que das trevas te levantas.

Posso mesmo já rir de tudo, tudo
Que me devora e me oprime.

Voltou-me o antigo sentimento mudo
Do teu olhar que redime.

Já não te sinto morta na minh’alma
Como em câmara mortuária,
Naquela estranha e tenebrosa calma
De solidão funerária.

Já não te sinto mais embalsamada
No meu carinho profundo,
Nas mortalhas da Graça amortalhada,
Como ave voando do mundo.

Não! não te sinto mortalmente envolta
Na névoa que tudo encerra…

Doce espectro do pó, da poeira solta
Deflorada pela terra.

Não sinto mais o teu sorrir macabro
De desdenhosa caveira.

Agora o coração e os olhos abro
Para a Natureza inteira!
Negros pavores sepulcrais e frios
Além morreram com o vento…

Ah! como estou desafogado em rios
De rejuvenescimento!
Deus existe no esplendor d’algum Sonho,
Lá em alguma estrela esquiva.

Só ele escuta o soluçar medonho
E torna a Dor menos viva.

Ah! foi com Deus que tu chegaste, é certo,
Com a sua graça espontânea
Que emigraste das plagas do Deserto
Nu, sem sombra e sol, da Insânia!
No entanto como que volúpias vagas
Desses horrores amargos,
Talvez recordação daquelas plagas
Dão-te esquisitos letargos…

Porém tu, afinal, ressuscitaste
E tudo em mim ressuscita.

E o meu Amor, que repurificaste,
Canta na paz infinita!

Rosa

a A. Moreira de Vasconcelos

Et, rose, elle a vécu ce que vivent les roses, l’espace d’un
matin.
(Malherbe)

Rosa — chamava-se a estrela Daquelas flóreas paragens; Era escutá-la
e era vê-la
Metida em brancas roupagens

Todas de pregas e tufos, De laçarotes e rendas,
Ou mesmo ouvir-lhe os arrufos
Ou surpreender-lhe as contendas

Nas lindas tardes radiadas
Por cores de silforamas
E sentir logo, inspiradas
Do amor, as férvidas chamas.

Ela era um beijo fundido
Ao cintilar de uma aurora, Um sonho eterno espargido
Nos belos sonhos de Flora.

E tinha uns longes sublimes
De grande força lasciva,
A transudar, como uns crimes
Do sangue, da carne altiva.

Contava tudo… mas tanto,
Em turbilhões, em cascata, Que recordava esse canto
Uma garganta de prata.
E quando os poetas, rapazes, A viam passar, vibrante,
Mostrando as curvas audazes, Do corpo todo radiante,

Diziam de entre os primores
De estrofes mais dulçurosas:
— Tu és a gêmea das flores, Das rosas, perfeitas rosas.

Convulsionado e sem regra O coração nos palpita; Andas alegre
e se alegra
A gente quando te fita.

Tens umas coisas estranhas Nas refrações da pureza… Umas
finuras tamanhas… Uma sutil gentileza…

Ficas rosada se um tico
Alguém te diz, de mais franco… Mas como fica tão rico,
Tão belo o rubro no branco,

Nesse grácil e tão claro, Sereno e cândido rosto
Que é mesmo um céu puro e raro
Das alvoradas de agosto.

Depressa cobre-te o pejo A face nova e adorada, De sorte que sem desejo
És — Rosa e ficas rosada.

Dos risos colhes a messe
E és doce como o conforto, És casta como uma prece
Gemida ao lado de um morto.

Para que a dor não te obumbre
A glória de flores junca
Tua vida e, por isso, nunca
Nas mágoas terás vislumbre.

Permita o bom sol que inunda De luz os bosques — permita Que sejas sempre
fecunda
De gozo e sempre bonita.

Agora, quando alguém passa Por onde a estrela morava, Olhando pela
vidraça
Bem junto da qual bordava,

Repara um silêncio triste
Na sala — em crepes envolta, Onde parece que existe Profunda lágrima
solta.

E sente por dentro d’alma
Aquela angústia que esmaga
Bem como em noites sem calma
A vaga esmaga outra vaga.

Apenas as flores lindas
Que vendo Rosa morriam
Com brejeirices infindas
De invejas que renasciam,

Sem mais inúteis ciúmes, Abrem os frescos pistilos,
Jogando aos céus, em perfumes, Os seus melhores sigilos.

No entanto a luz soberana
Do amor desfilam as rimas
Dos poetas — como um hosana
A quem já goza outros climas.

Rosa — chama-se a estrela Daquelas flóreas paragens; Era escutá-la
e era vê-la
Metida em brancas roupagens,

Para exclamar: — Dentro dela Existe a fibra gloriosa… Ninguém viu
coisa mais bela Nem Rosa… tão bela rosa!…

Santos óleos

Cos santos óleos de que vens ungido
podes andar no mundo sem receio.
Quem veio para a Luz, por certo veio
para ser valoroso e ser temido.

Que tudo é embalde, tudo em vão, perdido
quando se traz esse divino anseio,
esse doce transporte ou doce enleio
que deixa tudo e tudo confundido.

A Alma que como a vela chega ao porto
sente o melhor consolador conforto
e a asa nas asas dos Arcanjos toca…

Os santos óleos são a luz guiadora
que vigia por ti na pecadora
terra e o teu mundo celestial evoca!

Sapo humano

A Emiliano Perneta

Oh sapo! eu vou cantar tuas misérias, sapo,
Vou tirar, nesse lodo onde habitas de rastros,
Umas vivas canções do teu nojento papo,
Da crosta esverdeada umas centelhas de astros.

E canções de tal forma e tais e tais centelhas,
Que todas possam ir, miraculosamente,
Transformadas, pelo ar, em rútilas abelhas
Com o íris voador de cada asa fulgente.

Que tu, tredo animal, tu, triste sapo hediondo,
Não és o vil, o torpe, o irracional, que a lama
Em camadas envolve o atro ventre redondo,
Dos tempos imortais nessa fecunda chama.

Não és o sapo histrião de imundas esterqueiras,
O sombrio Caim nos lamaçais errantes,
O clown gargalhador das charnecas rasteiras,
Que ri-se para o sol com riso ironizante.

Não és o sapo atroz, coaxador, visguento,
Que rouco ruge e raiva à noite os seus horrores,
E para o constelado e mudo firmamento
Faz ecoar os mais surdos e ásperos tambores.

Mas és o sapo humano, esse asqueroso e feio,
Nascido de roldão na lúgubre miséria
E que do mundo vão no pavoroso seio
Lembra o negro sarcasmo enorme da Matéria.

Mas és o sapo humano, o sapo mais abjeto
Do crime aterrador, do tenebroso vício,
Mas que ainda possuis o brilho de um afeto
Que te livra, talvez, do eterno precipício.

Por ora na tua alma a noite cruel, cerrada,
Não caiu de uma vez, como terrível fora;
Nela ainda há clarões de límpida alvorada,
Um prenúncio feliz de aurora redentora.

Ainda tens coração que pulsa no teu peito
Por uns filhos gentis, ingênuos, pequeninos,
Que são o grande amor, o sentimento eleito
Vencendo esses fatais instintos assassinos.

Tu semelhas de um charco a superfície nua
E vítrea, que no campo, aos ares, adormece,
Que se em cheio lhe bate a luz do sol, da lua,
Para a vasta amplidão cintila e resplandece.

Pois no teu organismo, assim sinistro e torvo,
Repleto de vibriões do vício — essas crianças,
Sorriem virginais, oh! solitário corvo,
Com sorrisos de luzes e barcarolas mansas.

O amor que regenera os ínfimos bandidos,
Não reduziu, enfim, tu’alma a ignóbil trapo.

E eis por que, num viver de pântano e gemidos,
Cantam dentro de ti aves e estrelas, sapo!

Satanismo

Não me olhes assim, branca Arethusa,
Peregrina inspiração dos meus cantares;
Não me deixes a razão vagar confusa
Ao relâmpago ideal de teus olhares.

Não me olhes, oh! não, porquanto eu penso
Envolvido no luar das minhas cismas,
Que o olhar que me dardejas — doido, imenso
Tem a rápida explosão dos aneurismas.

Não me olhes. Oh! não, que o próprio inferno
Problemático, fatal, cálido, eterno,
Nos teus olhos, mulher, se foi cravar!…

Não me olhes, oh! não, que m’entolece
Tanta luz, tanto sol — e até parece
Que tens músicas cruéis dentro do olhar!…

Saudação

(Desterro, 14 nov. 1880)

Qual o que não exulta ao ler uma epopéia!
Qual o que a ver dor não lhe estremece o crânio,
Em confusões cruéis?! Qual o que tem fresca, sublime, pronta
a idéia,
E do altar da caridade no supedâneo, Não deixa alguns lauréis?!
(Do Autor)

Ontem, grande desgraça
Que o povo se abraça
D’Itajaí em geral! Ontem, o cetro divino
Que se tornando ferino Tudo esmaga afinal!

Ontem, prantos e dor. . .
Grandes gritos d’horror…
A fatal confusão!
Ontem, lampas perdidas
De centenas de vidas,
Que nas águas lá vão!

Ontem, negras as vagas,
Os belos céus, essas plagas,
— Onde existe o Senhor! Ontem, — fatalidade!
A pobrezinha cidade
Toda envolta em negror!

Hoje, oh! Deus sempiterno!
— O teu gládio superno
De bonança a irradir,
Veio ao povo esmagado
Ao tredo peso do fado
Fazer do caos ressurgir!

Hoje, o íris brilhante
Lá nos céus, radiante,
Já se faz divulgar!
E todo o povo prostrado
Te agradece arroubado
Mas ainda a chorar!

E corações caridosos
Farão a dar pressurosos
Os seus globos gentis!
Dai! é doce a esmola!
Ela aos pobres consola,
Torna-os ledos, gasis!

A miséria chorava
Em delírio bradava
Por um pouco de pão!
E eles foram dizendo
— Ide, pois vos mantendo,
Aqui tendes a mão!

E vós — lá no tablado,
O mor rasgo, elevado,
De fazer acabais!
E um rasgo de glória
De brilhante memória
Pros vindouros anais!

Vós fazeis do cenário
Um dinal santuário
Trabalhando p’ra pobres!
Mostrais bem que nas almas
Possuís celsas palmas
De ações muito nobres!

P’ra louvar amadores,
Tantas lutas, labores,
Tanta excelsa virtude!
Ah! me falta uma lira
Que um poema desfira…
Ai! me falta alaúde!

Só Deus pode dar louros
De mil glórias, tesouros,
Como vós mereceis!
Pois que feitos são divos,
Tão imensos, altivos
Só d’heróis ou de reis!

Amadores briosos!
Vós sois tão valorosos
Qual os bravos na guerra!
Sois os nautas valentes
Socorrendo ridentes
Quem cá gema na terra!

Amor, Deus, Caridade
— E a sublime trindade
Radiante de Luz!
Donde vós, amadores,
Lá colheis os fulgores,
De mil graças a flux!

Se estala a estrofe de fogo

Se estala a estrofe de fogo,
Se explose a estrofe do Bem,
Como o verbo demagogo
Se estala a estrofe de fogo,
Não ceda o espírito ao rogo
Do Mal que os erros contêm,
Se estala a estrofe de fogo,
Se explose a estrofe do Bem!

Seios

IV

Magnólias tropicais, frutos cheirosos
Das árvores do Mal fascinadoras,
Das negras mancenilhas tentadoras,
Dos vagos narcotismos venenosos.

Oásis brancos e miraculosos
Das frementes volúpias pecadoras
Nas paragens fatais, aterradoras
Do Tédio, nos desertos tenebrosos…

Seios de aroma embriagador e langue,
Da aurora de ouro do esplendor do sangue,
A alma de sensações tantalizando.

Ó seios virginais, tálamos vivos
Onde do amor nos êxtases lascivos
Velhos faunos febris dormem sonhando…

Sem esperança

Ó cândidos fantasmas da Esperança,
Meigos espectros do meu vão Destino,
Volvei a mim nas leves ondas do Hino
Sacramental de Bem-aventurança.

Nas veredas da vida a alma não cansa
De vos buscar pelo Vergel divino
Do céu sempre estrelado e diamantino
Onde toda a alma no Perdão descansa.

Na volúpia da dor que me transporta,
Que este meu ser transfunde nos Espaços,
Sinto-te longe, ó Esperança morta.

E em vão alongo os vacilantes passos
À procura febril da tua porta,
Da ventura celeste dos teus braços.

Sempre

Se é certo que o amor é um bem profundo
Se é certo que o amor é um sol ardente,
Eu hei de amar-te sempre neste mundo
E sempre, sempre, sempre — eternamente.

Sempre e sempre

A M. B. Augusto Varela
Sempre se amando, sempre se querendo.
(Oliveira Paiva)

De longe ou perto, juntas, separadas,
Olhando sempre os mesmos horizontes,
Presas, unidas nossas duas fontes
Gêmeas, ardentes, novas, inspiradas;

Vendo cair as lágrimas prateadas,
Sentindo o coro harmônico das fontes,
Sempre fitando a cúspide dos montes
E o rosicler das frescas alvoradas;

Sempre embebendo os límpidos olhares
Na claridão dos humildes luares,
No loiro sol das crenças se embebendo,

Vão nossas almas brancas e floridas
Pelo futuro azul das nossas vidas,
Sempre se amando, sempre se querendo.

Sempre o sonho

Para encantar os círculos da Vida
é ser tranqüilo, sonhador, confiante,
sempre trazer o coração radiante
como um rio e rosais junto de ermida.

Beber na vinha celestial, garrida
das estrelas o vinho flamejante
e caminhar vitorioso e ovante
como um deus, com a cabeça enflorescida.

Sorrir, amar para alargar os mundos
do Sentimento e para ter profundos
momentos e momentos soberanos.

Para sentir em torno à terra ondeando
um sonho, sempre um sonho além rolando
vagas e vagas de imortais oceanos.

Sentimento esquisito

Ó céu estéril dos desesperados,
forma impassível de cristal sidéreo,
dos cemitérios velho cemitério
onde dormem os astros delicados.

Pátria d’estrelas dos abandonados,
casulo azul do anseio vago, aéreo,
formidável muralha de mistério
que deixa os corações desconsolados.

Céu imóvel milênios e milênios,
tu que iluminas a visão dos Gênios
E ergues das almas o sagrado acorde.

Céu estéril, absurdo, céu imoto,
faz dormir no teu seio o Sonho
ignoto, esta serpente que alucina e morde…

Sentimentos carnais

Sentimentos carnais, esses que agitam
Todo o teu ser e o tornam convulsivo…
Sentimentos indômitos que gritam
Na febre intensa de um desejo altivo.

Ânsias mortais, angústias que palpitam,
Vãs dilacerações de um sonho esquivo,
Perdido, errante, pelos céus, que fitam
Do alto, nas almas, o tormento vivo.

Vãs dilacerações de um Sonho estranho,
Errante, como ovelhas de um rebanho,
Na noite de hóstias de astros constelada…

Errante, errante, ao turbilhão dos ventos,
Sentimentos carnais, vãos sentimentos
De chama pelos tempos apagada…

Ser dos seres

No teu ser de silêncio e d’esperança
a doce luz das Amplidões flameja.
Ele sente, ele aspira, ele deseja
A grande zona da imortal Bonança.

Pelos largos espaços se balança
como a estrela infinita que dardeja,
sempre isento da Treva que troveja
o clamor inflamado da Vingança.

Por entre enlevos e deslumbramentos
entre na Força astral dos sentimentos
e do Poder nos mágicos poderes.

E traz, mau grado os íntimos cansaços,
ânsias secretas para abrir os braços
na generosa comunhão dos Seres!

Ser pássaro

Ah! Ser pássaro! ter toda a amplidão dos ares
Para as asas abrir, ruflantes e nervosas,
Dos parques através e dos moitais de rosas, Nos floridos jardins, nas
hortas e pomares.

Ser pássaro, cantar, subir, voar na altura,
Pelos bosques sem fim, perder-se nas florestas,
Das folhagens do campo em meio da espessura,
Das auroras de abril nas cristalinas festas.

Tecer no tronco seco ou no tronco viçoso
O quente lar do amor, o carinhoso ninho,
De onde sairá mais tarde o pipilar mavioso
De um outro mais gentil e meigo passarinho.

Não temer o verão e não temer o inverno Para tudo alcançar
na leve subsistência, No contínuo lidar, no labutar eterno,
Que é talvez da alegria a mais feliz essência.

Viver, enfim, de luz e aromas delicados Nascido dentre a luz, gerado dentre
aromas, Sonorizando o azul, sonorizando os prados
E dormindo da flor sob as cheirosas comas.

Voar, voar, voar, voar eternamente, Extinguir-se a voar, no matinal gorjeio,
E ser pássaro, é ter em cada asa fremente
Um sol para aquecer o frio de algum seio.

Serpente de cabelos

A tua trança negra e desmanchada
Por sobre o corpo nu, torso inteiriço,
Claro, radiante de esplendor e viço,
Ah! lembra a noite de astros apagada.

Luxúria deslumbrante e aveludada
Através desse mármore maciço
Da carne, o meu olhar nela espreguiço
Felinamente, nessa trance ondeada.

E fico absorto, num torpor de coma,
Na sensação narcótica do aroma,
Dentre a vertigem túrbida dos zeros.

És a origem do Mal, és a nervosa
Serpente tentadora e tenebrosa,
Tenebrosa serpente de cabelos!…

Sete de setembro

Liberdade! Independência!… Eis os brados grandiosos
Que quais raios luminosos
Fulguraram lá nos céus!… Eis a mágica — Odisséia
Que duns lábios rebentando, Foi o povo transformando,
Foi rompendo os negros véus!…

As colinas, prados, montes, As florestas seculares
— Os sertões, os próprios mares
Exultaram com fervor!
E os brados retumbaram
Pela lúcida devesa, Pela virgem natureza
Com homérico clangor!…

Qual artista consumado, Qual um velho estatuário Do Brasil no azul
sacrário, Essa data vos traçou,
— O triunfo mais pujante, A eleita das idéias,
A major das epopéias
— Q’inda igual não se gerou!…

Mas embora, meus senhores
Se festeje a Liberdade, A gentil Fraternidade
Não raiou de todo, não!… E a pátria dos Andradas
Dos — Abreu, Gonçalves Dias
Inda vê nuvens sombrias, Vê no céu fatal bulcão!…

Muito embora Rio Branco, Esse cérebro profundo
Que passou por entre o mundo, Do Brasil como um Tupã!… Muito embora
em catadupas Derramasse o verbo augusto,
Da nação no enorme busto
Inda a mancha existe, há!…

É preciso com esforço, Colossal, estranho, ingente, Ir o cancro,
de repente Esmagar que nos corrói!…
É preciso que essa Deusa, A excelsa Liberdade,
Raie enfim na Imensidade
Mais altiva como sói!…

Sai da larva a borboleta
Com as asas auriazuis
E um disco vai — de luz
A deixar onde passou!
No entanto o grande berço Das façanhas de Cabrito Inda espera
um novo grito
Como o — Basta — de Waterloo!…

Eu bem sei que Guttemberg Que esse Fulton primoroso Faust, Kepler grandioso
Trabalharam té vencer!
Mas embora tropeçassem Acurando os seus eventos, Tinham sempre tais
portentos A vontade por poder!…

Eia! sim! — p’ra Liberdade Irrompei qual verbo eterno, Como o — Fiat
— superno Pelos ares a rolar!
Eia! sim! — que nossa pátria Só precisa — mas de bravos…
E em prol desses escravos
Seu dever é trabalhar!!…

Somos filhos dessa gleba Majestosa aonde o gênio Como o astro do proscênio
Solta as asas, mui febril! Dos selvagens Tiaraiús
E dos brônzeos Guaicurus… Somos filhos do Brasil!…

Esperemos, tudo embora!… Pois que a sã locomotiva, Do progresso
imagem viva
Não se fez a um sopro vão!. Aguardemos o momento
Das mais altas epopéias, Quando o gládio das idéias
Empunhar toda a nação!…

Esperemos mais um pouco
Q’inda há almas brasileiras
Que se lembrarão, sobranceiras, Que é preciso progredir!…
Inda há peitos valerosos
Que combatem descobertos Por florestas, por desertos, Mas c’os olhos no porvir!…

Inda há lúcidas falanges
Lutadores denodados
Que se erguem transportados
Burilando a sã razão!… Inda há quem se recorde
Do Egrégio Tiradentes
Que do sangue as gotas quentes
Derramou pela nação!!…

Já nas margens do Ipiranga
Patrióticos acentos
Vão alados como os ventos Pelos páramos azuis!!… Vamos! Vamos!
— eia! exulta, Jovem pátria dos renomes…
— Vibra a lira, Carlos Gomes! Bocaiúva, espalha luz!!…

Sexta-feira santa

Lua absíntica, verde, feiticeira,
pasmada como um vício monstruoso…
Um cão estranho fuça na esterqueira,
uivando para o espaço fabuloso.

É esta a negra e santa Sexta-Feira!
Cristo está morto, como um vil leproso,
chagado e frio, na feroz cegueira
da Morte, o sangue roxo e tenebroso.

A serpente do mal e do pecado
um sinistro veneno esverdeado
verte do Morto na mudez serena.

Mas da sagrada Redenção do Cristo,
em vez do grande Amor, puro, imprevisto,
brotam fosforescências de gangrena!

Sganarelo

Esse que eu agora rimo
É viscoso como a lesma Pegajosa sobre o limo, Sinistro como aventesma.

Feia coisa, enorme bicho, Pavoroso mastodonte
Feito do horror a capricho, Com cornos rijos na fronte.

Todo o ventre se lhe estufa
De obesidade lasciva,
Se fala a voz urra e bufa
Lembrando a locomotiva.

Na terrível carantonha
Retorcida, escalavrada,
Lhe estruge, às vezes medonha, Formidável gargalhada.

E a luz do sol, que corusca, Nas praças, à luz do dia,
A sua presença brusca, Tem uma ardente ironia.

A língua rubra e convulsa
Sai-lhe da boca em espasmo, Enquanto no olhar lhe pulsa A blasfêmia
do sarcasmo.

Capra figura profunda, Atroz e amedrontadora,
Que larga entranha fecunda
Foi a tua geradora?!
Que aborto de ventre estranho
Pode gerar esse aborto Assim feroz e tamanho, Peludo, estroncado e torto?

De que idades tão antigas, Pré-históricas vieste?
Mais hostil do que as urtigas, Mais nefando de que a peste!

Trazes a pata esmagante, A pata do bronze trazes;
Que é no espírito diamante
E que é nas almas lilazes.

Possuis o sangue da verve Resplandecente, infinita, Que ruge, palpita e ferve
E canta e soluça e grita.

Vens como imagem da Morte, Da Morte hedionda e nefasta, Das iras ao vento
forte,
Do desespero a vergasta.

Desmancha-te em cabriolas
De doido polichinelo,
Que os teus membros lembrem molas
Como um palhaço amarelo.

Faz nos músculos esgrimas, Pula trapézios e barras
E salta saltando estas rimas
Que vão saltando bizarras.

Acrobata da miséria Estica os nervos, estica E ri, ri tu da matéria
Da gente fidalga e rica.

És medonho?! isso que importa? Ri! mas ri alto na praça,
Se a desgraça não foi morta, Ah! deixem rir a desgraça!

Satanás sujo e potrudo
Nas cambalhotas te inspire. Eia! vá! desdém por tudo,
Por tudo, e o tempo que gire!

Faz que o século se agite De eternas risadas grossas E como com dinamite
Arromba o mundo com troças.

Fura o estúrdio Sancho Pança
Com estocadas de riso
E mete-o também na dança
Dos saltos, se for preciso.

Destrói tudo, vai, desaba, De tudo faz estilhaços
E a golpes de riso acaba
Os erros córneos e crassos.

Fura os ventres mais rotundos
Com aguilhões de chacota
E manda ao Mestre dos mundos
Um exemplar da risota.

Na tal luxúria gorducha, Na velha e calva luxúria Rebente risos
em ducha, Com toda a sátira e fúria.

Ri! até que se transforme, O rebelado do inferno!
O riso num facho enorme
Aceso no sol moderno!

Siderações

Para as Estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo,
Galgando azuis e siderais noivados
De nuvens brancas a amplidão vestindo…

Num cortejo de cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras ferindo,
Passam, das vestes nos troféus prateados,
As asas de ouro finamente abrindo…

Dos etéreos turíbulos de neve
Claro incenso aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levanta…

E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta…

Silêncios

Largos Silêncios interpretativos,
adoçados por funda nostalgia,
balada de consolo e simpatia
que os sentimentos meus torna cativos.

Harmonia de doces lenitivos,
sombra, segredo, lágrima, harmonia
da alma serena, da alma fugidia
nos seus vagos espasmos sugestivos.

ó Silêncios! ó cândidos desmaios,
vácuos fecundos de celestes raios
de sonhos, no mais límpido cortejo…

Eu vos sinto os mistérios insondáveis,
como de estranhos anjos inefáveis
o glorioso esplendor de um grande beijo!

Sinfonias do acaso

Musselinosas como brumas diurnas
Descem do acaso as sombras harmoniosas,
Sombras veladas e musselinosas
Para as profundas solidões noturnas.

Sacrários virgens, sacrossantas urnas,
Os céus resplendem de sidéreas rosas,
Da lua e das Estrelas majestosas
Iluminando a escuridão das furnas.

Ah! por estes sinfônicos ocasos
A terra exala aromas de áureos vasos,
Incensos de turíbulos divinos.

Os plenilúnios mórbidos vaporam…
E como que no Azul plangem e choram
Cítaras, harpas, bandolins, violinos…

Somrzando

O véu da tarde cai pelas quebradas
Das serras altaneiras; As aves condoreiras
Rompem da mata em místicas risadas
O largo espaço intérmino cindindo.

A livre natureza,
Humildemente, pura, vai caindo, Caindo de joelhos
Como esse denso véu
Cai na viril e rútila grandeza
Do sol que desce em borbotões vermelhos
Como uma mancha tropical no céu.

E vibra a Ave-Maria
Como um soluço, estranho, indefinido; Talvez como um gemido
Dentre a escalvada e agreste serrania.

E desce e desce e desce
De toda a imensidade
A salutar carícia de uma prece, O eflúvio da saudade
Que alaga o nosso peito heroicamente
Como o luar de um treno
Mavioso e emoliente,
Mais doce que o sorrir do Nazareno.

Só !

Muito embora as estrelas do Infinito
lá de cima me acenem carinhosas
e desça das esferas luminosas
a doce graça de um clarão bendito;

Embora o mar, como um revel proscrito,
chame por mim nas vagas ondulosas
e o vento venha em cóleras medrosas o
meu destino proclamar num grito,

neste mundo tão trágico, tamanho,
como eu me sinto fundamente estranho e
o amor e tudo para mim avaro…

Ah! como eu sinto compungidamente,
por entre tanto horror indiferente,
um frio sepulcral de desamparo!

Sonata

I

Do imenso Mar maravilhoso, amargos,
Marulhosos murmurem compungentes
Cânticos virgens de emoçÓes latentes,
Do sol nos mornos, mórbidos letargos…
II

Canções, leves canções de gondoleiros,
Canções do Amor, nostálgicas baladas,
Cantai com o Mar, com as ondas esverdeadas,
De lânguidos e trêmulos nevoeiros!
III

Tritões marinhos, belos deuses rudes,
Divindades dos tártaros abismos,
Vibrai, com os verdes e acres eletrismos
Das vagas, flautas e harpas e alaúdes!
IV

O Mar supremo, de flagrância crua,
De pomposas e de ásperas realezas,
Cantai, cantai os tédios e as tristezas
Que erram nas frias solidões da Lua…

Soneto

(Oferecido e dedicado ao llmo. Sr. M. Bernardino A. Varela pelo autor.) Vir
bonus dicendi peritus laudandum est.

Senhor de nobre alma,
tão D’entre os sábios conhecido,
De pais excelsos nascido,
Aceitai a minha canção.

Probo pai, bom cidadão,
Sois dos seres melhor ser
Por saber tão profundo ter,
Sois ilustre qual Catão.

Recebei esta prova mesquinha
De penhor e de oração,
Produto da pena minha.

Perdoai, mui digno varão,
Se na mente eu pobre tinha
Cometer-vos indiscrição.

Sonetos

SONETO I

— Os Trópicos pulando as palmas batem… Em pé nas ondas —
O Equador dá vivas!…

Ao estrídulo solene dos bravos! das platéias, Prossegues altaneira,
oh! ídolo da arte!…
— O sol pára o curso p’ra bem de admirar-te
— O sol, o grande sol, o misto das idéias.

A velha natureza escreve-te odisséias…
A estrela, a nívea concha, o arbusto… em toda a parte Retumba a doce
orquestra que ousa proclamar-te Assombro do ideal, em duplas melopéias!

Perpassam vagos sons na harpa do mistério
Lá, quando no proscênio te ergues imperando
— Oh! Íbis magistral do mundo azul — sidério!

Então da imensidade, audaz vem reboando
De palmas o tufão, veloz, febril, aéreo
Que cai dentro das almas e as vai arrebatando!…
SONETO II

Dizem que a arte é a clâmide de idéia
A peregrina irradiação celeste,
E d’isso a prova singular já deste
Sorvendo d’ela a divinal sabéia!.

Da “Georgeta” na feliz estréia, Asseverar-nos ainda mais
vieste
Que és um gênio, que te vás de preste
Tornando o assombro de qualquer platéia!…

Sinto uns transportes fervorosos, ledos
Quando nas cenas de sutis enredos
Fulgem-te os olhos co’a expressão dos astros!…

E as turbas mudas, impassíveis, calmas Sentem mil mundos lhes crescer
nas almas… Vão-te seguindo os luminosos rastros!…
SONETO III

Um dia Guttemberg c’o a alma aos céus suspensa, Pegou do escopro ingente
e pôs-se a trabalhar!
E fez do velho mundo um rútilo alcançar
Ao mágico clangor de sua idéia imensa!

Rolou por todo o globo a luz da sacra imprensa! Ruiu o despotismo no pó,
a esbravejar…
Uniram-se n’um lago, o céu, a terra, o mar…
Rasgou-se o manto atroz da horrível treva densa!…

Ergueram-se mil povos ao som das melopéias, Das grandes cavatinas
olímpicas da arte!
Raiou o novo sol das fúlgidas idéias!…

Porém, quem lance luz maior por toda a parte
És tu, sublime atriz, ó misto de epopéias
Que sabes no tablado subir, endeusar-te!…
SONETO IV

É delicada, suave, vaporosa,
A grande atriz, a singular feitura… É linda e alva como a neve pura,
Débil, franzina, divinal, nervosa!…

E d’entre os lábios setinais, de rosa Libram-se pérolas de
nitente alvura… E doce aroma de sutil frescura
Sai-lhe da leve compleição mimosa!…

Quando aparece no febril proscênio
Bem como os mitos do passado, ingentes, Bem como um astro majestoso, helênio…

Sente-se n’alma as atrações potentes Que só se operam
ao fulgor do gênio, As rubras chispas ideais, ferventes!…
SONETO V

Imaginai um misto de alvoradas
Assim com uns vagos longes de falena,
Ou mesmo uns quês suaves de açucena
C’os magos prantos bons das madrugadas!…

Imaginai mil cousas encantadas… O tímido dulçor da tarde
amena,
As esquisitas graças de uma Helena, As vaporosas noites estreladas…

Que encontrareis então em Julieta
O tipo são, fiel da Georgeta
Nos dois brilhantes, primorosos atos!…

E sentireis um fluido magnético
Trêmulo, nervoso, mórbido, patético,
Bem como a voz dos langues psicattos!…
SONETO VI

Parece que nasceste, oh! pálida divina,
Para seres o farol, a luz das puras almas!… Parece que ao estridor, ao frêmito
das palmas Exalças-te feliz a plaga cristalina!…

Parece que se partem, angélica Bambina,
As campas glaciais dos Tassos e dos Talmas,
Lá quando no tablado as turbas sempre calmas
Transmutas em vulcão, em raio que fulmina!…

E quando majestosa, em lance sublimado
Dardejas do olhar, olímpico, sagrado
Mil chispas ideais, titânicas, ardentes!…

Então sente-se n’alma o trêmulo nervoso
Que deve ter o mar, fantástico, espumoso
Nos grossos vagalhões, indômitos, frementes!!…
SONETO VII

Quando apareces, fica-se impassível E mudo e quedo, trêmulo,
gelado!… Quer-se ficar com atenção, calado,
Quer-se falar sem mesmo ser possível!.

Anda-se c’o a alma n’um estado horrível
O coração completamente ervado!…
Quer-se dar palmas, mas sem ser notado, Quer-se gritar, n’uma explosão
temível!…

Sobe-se e desce-se ao país das fadas,
Vaga-se co’as nuvens das mansões douradas
Sob um esforço colossal, titânico!…

E as idéias galopando voam…
Então lá dentro sem parar, ressoam
As indomáveis convulsões do crânio!!…
SONETO VIII

Lágrimas da aurora, poemas cristalinos Que rebentais das cobras do
mistério! Aves azuis do manto auri-sidério… Raios de luz,
fantásticos, divinos!…

Astros diáfanos, brandos, opalmos, Brancas cecens do Paraíso
etéreo, Canto da tarde, límpido, aéreo,
Harpa ideal, dos encantados hinos!…

Brisas suaves, virações amenas, Lírios do vale, roseirais
do lago,
Bandos errantes de sutis falenas!…

Vinde do arcano n’um potente afago Louvar o Gênio das mansões
serenas, Esse Prodígio singular e mago!!…

Sonhador

Por sóis, por belos sóis alvissareiros,
Nos troféus do teu Sonho irás cantando
As púrpuras romanas arrastando,
Engrinaldado de imortais loureiros.

Nobre guerreiro audaz entre os guerreiros,
Das Idéias as lanças sopesando,
Verás, a pouco e pouco, desfilando
Todos os teus desejos condoreiros…

Imaculado, sobre o lodo imundo,
Há de subir, com as vivas castidades,
Das tuas glórias o clarão profundo.

Há de subir, além de eternidades,
Diante do torvo crocitar do mundo,
Para o branco Sacrário das Saudades!

Sonho branco

De linho e rosas brancas vais vestido,
Sonho virgem que cantas no meu peito!…
És do Luar o claro deus eleito,
Das estrelas puríssimas nascido.

Por caminho aromal, enflorescido,
Alvo, sereno, límpido, direito,
Segues radiante, no esplendor perfeito,
No perfeito esplendor indefinido…

As aves sonorizam-te o caminho…
E as vestes frescas, do mais puro linho
E as rosas brancas dão-te um ar nevado…

No entanto, Ó Sonho branco de quermesse!
Nessa alegria em que tu vais, parece
Que vais infantilmente amortalhado!

Sorriso interior

O ser que é ser e que jamais vacila
nas guerras imortais entra sem susto,
leva consigo este brasão augusto
do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila
ele os vence sem ânsias e sem custo…
Fica sereno, num sorriso justo,
enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores…
e para ironizar as próprias dores canta
por entre as águas do Dilúvio!

Spleen de deuses

Oh! Dá-me o teu sinistro Inferno
Dos desesperos tétricos, violentos,
Onde rugem e bramem como os ventos
Anátemas da Dor, no fogo eterno…

Dá-me o teu fascinante, o teu falerno
Dos falernos das lágrimas sangrentos
Vinhos profundos, venenosos, lentos
Matando o gozo nesse horror do Averno.

Assim o Deus dos Páramos clamava
Ao Demônio soturno, e o rebelado,
Capricórnio Satã, ao Deus bradava.

Se és Deus-e já de mim tens triunfado,
Para lavar o Mal do Inferno e a bava
Dá-me o tédio senil do céu fechado…

Sr. M. Bernardino a. Varela

(Oferecido e dedicado ao llmo. Sr. M. Bernardino A. Varela pelo autor.) Vir
bonus dicendi peritus laudandum est.

Senhor de nobre alma,
tão D’entre os sábios conhecido,
De pais excelsos nascido,
Aceitai a minha canção.

Probo pai, bom cidadão,
Sois dos seres melhor ser
Por saber tão profundo ter,
Sois ilustre qual Catão.

Recebei esta prova mesquinha
De penhor e de oração,
Produto da pena minha.

Perdoai, mui digno varão,
Se na mente eu pobre tinha
Cometer-vos indiscrição.

Supremo anseio

Esta profunda e intérmina esperança
Na qual eu tenho o espírito seguro,
A tão profunda imensidade avança
Como é profunda a idéia do futuro.

Abre-se em mim esse clarão, mais puro
Que o céu preclaro em matinal bonança:
Esse clarão, em que eu melhor fulguro,
Em que esta vida uma outra vida alcança.

Sim! Inda espero que no fim da estrada
Desta existência de ilusões cravada
Eu veja sempre refulgir bem perto

Esse clarão esplendoroso e louro
Do amor de mãe — que é como um fruto de ouro,
Da alma de um filho no eternal deserto.

Supremo desejo

Eternas, imortais origens vivas
Da Luz, do Aroma, segredantes vozes
Do mar e luares de contemplativas,
Vagas visões volúpicas, velozes…

Aladas alegrias sugestivas
De asa radiante e branca de albornozes,
Tribos gloriosas, fulgidas, altivas,
De condores e de águias e albatrozes…

Espiritualizai nos Astros louros,
Do sol entre os clarões imorredouros
Toda esta dor que na minh’alma clama…

Quero vê-la subir, ficar cantando
Na chama das Estrelas, dardejando
Nas luminosas sensações da chama.

Supremo verbo

– Vai, Peregrino do caminho santo,
Faz da tu’alma lâmpada do cego,
Iluminando, pego sobre pego,
As invisíveis amplidões do Pranto.
Ei-lo, do Amor o Cálix sacrossanto!
Bebe-o, feliz, nas tuas mãos o entrego…
És o filho leal, que eu não renego,
Que defendo nas dobras do meu manto.

Assim ao Poeta a Natureza fala!
Enquanto ele estremece ao escutá-la,
Transfigurado de emoção, sorrindo…
Sorrindo a céus que vão se desvendando,
A mundos que vão se multiplicando,
A portas de ouro que vão se abrindo!

Tédio

Vala comum de corpos que apodrecem,
E esverdeada gangrene
Cobrindo vastidões que fosforescem
Sobre a esfera terrena.

Bocejo torvo de desejos turvos,
Languescente bocejo
De velhos diabos de chavelhos curvos
Rugindo de desejo.

Sangue coalhado, congelado, frio,
Espasmado nas veias…

Pesadelo sinistro de algum rio
De sinistras sereias…

Alma sem rumo, a modorrar de sono,
Mole, túrbida, lassa…

Monotonias lúbricas de um mono
Dançando numa praça…

Mudas epilepsias, mudas, mudas,
Mudas epilepsias,
Masturbações mentais, fundas, agudas,
Negras nevrostenias.

Flores sangrentas do soturno vício
Que as almas queima e morde…

Música estranha de fetal suplício,
Vago, mórbido acorde…

Noite cerrada para o Pensamento
Nebuloso degredo
Onde em cavo clangor surdo do vento
Rouco pragueja o medo.

Plaga vencida por tremendas pragas,
Devorada por pestes,
Esboroada pelas rubras chagas
Dos incêndios celestes.

Sabor de sangue, Lágrimas e terra
Revolvida de fresco,
Guerra sombria dos sentidos, guerra,
Tantalismo dantesco.

Silêncio carregado e fundo e denso
Como um poço secreto,
Dobre pesado, carrilhão imenso
Do segredo inquieto…

Florescência do Mal, hediondo parto
Tenebroso do crime,
Pandemonium feral de ventre farto
Do Nirvana sublime.

Delírio contorcido, convulsivo
De felinas serpentes,
No silamento e no mover lascivo
Das caudas e dos dentes.

Porco lúgubre, lúbrico, trevoso
Do tábido pecado,
Fuçando colossal, formidoloso
Nos lodos do passado.

Ritmos de forças e de graças mortas,
Melancólico exílio,
Difusão de um mistério que abre portas
Para um secreto idílio…

Ócio das almas ou requinte delas,
Quint’essências, velhices
De luas de nevroses amarelas,
Venenosas meiguices.

Insônia morna e doente dos Espaços,
Letargia funérea,
Vermes, abutres a correr pedaços
Da carne deletéria.

Um misto de saudade e de tortura,
De lama, de Ódio e de asco,
Carnaval infernal da Sepultura,
Risada do carrasco.

Ó tédio amargo, ó tédio dos suspiros,
Ó tédio d’ansiedades!
Quanta vez eu não subo nos teus giros
Fundas eternidades!
Quanta vez envolvido do teu luto
Nos sudários profundos
Eu, calado, a tremer, ao longe, escuto
Desmoronarem mundos!
Os teus soluços, todo o grande pranto,
Taciturnos gemidos,
Fazem gerar flores de amargo encanto
Nos corações doridos.

Tédio! que pões nas almas olvidadas
Ondulações de abismo
E sombras vesgas, lívidas, paradas,
No mais feroz mutismo!
Tédio do Réquiem do Universo inteiro,
Morbus negro, nefando,
Sentimento fatal e derradeiro
Das estrelas gelando…

O Tédio! Rei da Morte! Rei boêmio!
Ó Fantasma enfadonho!
És o sol negro, o criador, o gêmeo,
Velho irmão do meu sonho!

Teus olhos belos olhos por dentro

Teus olhos belos por dentro
De grandes colorações,
Parecem ter pelo centro
Teus olhos belos por dentro
A luz vital onde eu entro
E saio imerso em clarões…
Teus olhos belos, por dentro
De grandes colorações.

Teus olhos – esses carinhos

Teus olhos — esses carinhos,
Esse casal de ilusões
Tão doces como os arminhos,
Teus olhos — esses carinhos
Parecem ser os dois ninhos
Das minhas consolações,
Teus olhos — esses carinhos
Esse casal de ilusões!…

Torre de ouro

Desta torre desfraldam-se altaneiras,
Por sóis de céus imensos broqueladas,
Bandeiras reais, do azul das madrugadas
E do íris flamejante das poncheiras.

As torres de outras regiões primeiras
No Amor, nas Glórias vãs arrebatadas
Não elevam mais alto, desfraldadas,
Bravas, triunfantes, imortais bandeiras.

São pavilhões das hostes fugitivas,
Das guerras acres, sanguinárias, vivas,
Da luta que os Espíritos ufana.

Estandartes heróicos, palpitantes,
Vendo em marcha passe aniquilantes
As torvas catapultas do Nirvana!

Tortura eterna

Impotência cruel, ó vã tortura!
Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura!
Ó luta, Ó luta secular, insana!

Que tu não possas, Alma soberana,
Perpetuamente refulgir na Altura,
Na Aleluia da Luz, na clara Hosana
Do Sol, cantar, imortalmente pura.

Que tu não posses, Sentimento ardente,
Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente,
Por entre as chamas, os clarões supernos.

Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!…
Ah! que eu não possa eternizar as cores
Nos bronzes e nos mármores eternos!

Três pensamentos

Nasceste no Brasil — filha d’América, Tu sabes conservar nas
débeis veias No lúcido pulmão
O sangue efervescente e purpurino A força de subir ao céu da
história. As lutas da razão!…

Nasceste no Brasil — em meio às plagas
Da grande natureza mais pujante
E cheia de arrebol!…
E sabes obumbrar os astros fulvos E lanças raios mil por toda a parte,
Soberba como o sol!…

Nasceste no Brasil e o eco ovante
Das glórias sublimadas que tu colhes
Por este céu azul,
Vem férvido, viril e acentuado Assaz repercutir com mais verdade Aqui…
aqui no sul!…

Triste

(Desterro)

Em junho, que é mês do frio,
Perdes todo o colorido,
Tens um tom vago e sombrio
De dor, de mágoa e gemido.

Não sei que tristeza é essa De tão doloroso cunho Que
perdes a cor depressa
Assim que vem vindo junho.

Ficas branca e desmaiada, Lembrando a lua serena, Fraca, pálida e
gelada, Como frágil açucena.

Vão-se-te as rosas da face Emurchecendo e sumindo Num crepúsculo
vivace
De tudo o que estas sentindo.

Ai! no entanto pelos prados Onde os dias resplandecem Risonhas como noivados
Em junho as rosas florescem…

Tristeza do infinito

Anda em mim, soturnamente,
Uma tristeza ociosa
Sem objetivo, latente,
Vaga, indecisa, medrosa.

Como ave torva e sem rumo,
Ondula, vagueia, oscila
E sobe em nuvens de fumo
E na minh’alma se asila.

Uma tristeza que eu, mudo,
Fico nela meditando
E meditando, por tudo
E em toda a parte sonhando.

Tristeza de não sei donde,
De não sei quando nem como…

Flor mortal, que dentro esconde
Sementes de um mago pomo.

Dessas tristezas incertas,
Esparsas, indefinidas…

Como almas vagas, desertas
No rumo eterno das vidas.

Tristeza sem causa forte,
Diversa de outras tristezas,
Nem da vida nem da morte
Gerada nas correntezas…

Tristeza de outros espaços,
De outros céus, de outras esferas,
De outros límpidos abraços,
De outras castas primaveras.

Dessas tristezas que vagam
Com volúpias tão sombrias
Que as nossas almas alagam
De estranhas melancolias.

Dessas tristezas sem fundo,
Sem origens prolongadas,
Sem saudades deste mundo,
Sem noites, sem alvoradas.

Que principiam no sonho
E acabam na Realidade,
Através do mar tristonho
Desta absurda Imensidade.

Certa tristeza indizível,
Abstrata, como se fosse
A grande alma do Sensível
Magoada, mística, doce.

Ah! tristeza imponderável,
Abismo, mistério aflito,
Torturante, formidável…

Ah! tristeza do Infinito!

Truinfo supremo

Quem anda pelas lágrimas perdido,
Sonâmbulo dos trágicos flagelos,
é quem deixou para sempre esquecido
o mundo e os fúteis ouropéis mais belos!

É quem ficou no mundo redimido,
expurgado dos vícios mais singelos
e disse a tudo o adeus indefinido
e desprendeu-se dos carnais anelos!

É quem entrou por todas as batalhas
as mãos e os pés e o flanco ensangüentando,
amortalhado em todas as mortalhas.

Quem florestas e mares foi rasgando e
entre raios, pedradas e metralhas,
ficou gemendo mas ficou sonhando!

Tuberculosa

Entre as vidraças, como numa estufa-
No inverno glacial de vento e chuva
Que sobre as telhas tamborila e rufa,
Vejo-a, talhada em nitidez de luva…

E faz lembrar uma esquisita planta
De profundos pomares fabulosos
Ou a angélica imagem de uma Santa
Dentre a auréola de nimbos religiosos.

A enfermidade vai-lhe, palmo a palmo,
Ganhando o corpo, como num terreno…
E com prelúdios místicos de salmo
Cai-lhe a vida em crepúsculo sereno.

Jamais há de ela ter a cor saudável
Para que a carne do seu corpo goze,
Que o que tinha esse corpo de inefável
Cristalizou-se na tuberculose.

Foge ao mundo fatal, arbusto débil,
Monja magoada dos estranhos ritos,
Ó trêmula harpa soluçante, flébil,
Ó soluçante, flébil eucaliptus…

Tulipa real

Carne opulenta, majestosa, fina,
Do sol gerada nos febris carinhos,
Há músicas, há cânticos, há vinhos
Na tua estranha boca sulferina.

A forma delicada e alabastrina
Do teu corpo de límpidos arminhos
Tem a frescura virginal dos linhos
E da neve polar e cristalina.

Deslumbramento de luxúria e gozo,
Vem dessa carne o travo aciduloso
De um fruto aberto aos tropicais mormaços.

Teu coração lembra a orgia dos triclínios…
E os reis dormem bizarros e sangüíneos
Na seda branca e pulcra dos teus braços.

Um ser

Um ser na placidez da Luz habita,
entre os mistérios inefáveis mora.
Sente florir nas lágrimas que chora
A alma serena, celestial, bendita.

Um ser pertence à música infinita das
Esferas, pertence à luz sonora das
estrelas do Azul e hora por hora na
Natureza virginal palpita.

Um ser desdenha das fatais poeiras,
dos miseráveis ouropéis mundanos
e de todas as frívolas cegueiras…

Ele passa, atravessa entre os humanos,
como a vida das vidas forasteiras
fecundada nos próprios desenganos.

Único remédio

Como a chama que sobe e que se apaga
Sobem as vidas a espiral de Inferno.
O desespero é como o fogo eterno
Que o campo quieo em convulções alaga…

Tudo é veneno, tudo cardo e praga!
E al almas que têm sede de falerno
Bebem apenas o licor moderno
Do tédio pessimista que as esmaga.

Mas a Caveira vem se aproximando,
Vem exótica e nua, vem dançando,
No estrambotismo lúgubre vem vindo.
E tudo acaba então no horror insano –
– Desespero do Inferno e tédio humano –
Quando, d’esguelha, a Morte surge, rindo…

Vão arrebatamento

Partes um dia das Curiosidades
Do teu ser singular, partes em busca
De alamas irmãs, cujo esplendor ofusca
As celestes, divinas claridades.

Rasgas terras e céus, imensidades,
Dos perigos da Vida a vaga brusca,
Queima-te o sol que na Amplidão corusca
E consola-te a lua das saudades.

Andas por toda a parte, em toda a parte
A sedução das almas a falar-te,
Como da Terra luminosos marcos.
E a sorrir e a gemer e soluçando
Ah! Sempre em busca de almas vais andando
Mas em vez delas encontrando charcos!

Velhas tristezas

Diluências de luz, velhas tristezas
Das almas que morreram para a lute!
Sois as sombras amadas de belezas
Hoje mais frias do que a pedra bruta.

Murmúrios incógnitos de gruta
Onde o Mar canta os salmos e as rudezas
De obscuras religiões — voz impoluta
De sodas as titânicas grandezas.

Passai, lembrando as sensações antigas,
Paixões que foram já dóceis amigas,
Na luz de eternos sóis glorificadas.

Alegrias de há tempos! E hoje e agora,
Velhas tristezas que se vão embora
No poente da Saudade amortalhadas!…

Velho

Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um sulco de lágrimas pungidas,
Ei-las, as rugas, as indefinidas
Noites do ser vencido e fatigado.

Envolve-te o crepúsculo gelado
Onde vai soturno amortalhando as vidas
Ante o responso em músicas gemidas
No fundo coração dilacerado.

A cabeç pendida de fadiga,
Sentes a morte taciturna e amiga
Que os teus nervos círculos governa.

Estás velho, estás morto! Ó dor, delírio,
Alma despedaçada de martírio,
Ó desespero da Desgraça eterna!

Velho vento

Velho vento vagabundo!
No teu rosnar sonolento
Leva ao longe este lamento, Além do escárnio do mundo.

Tu que erras dos campanários
Nas grandes torres tristonhas E és o fantasma que sonhas Pelos bosques
solitários.

Tu que vens lá de tão longe Com o teu bordão das jornadas
Rezando pelas estradas Sombrias rezas de monge.

Tu que soltas pesadelos
Nos campos e nas florestas E fazes, por noites mestas, Arrepiar os cabelos.

Tu que contas velhas lendas
Nas harpas da tempestade, Viajas na Imensidade, Caminhas todas as sendas.

Tu que sabes mil segredos,
Mistérios negros, atrozes E formas as dúbias vozes Dos soturnos
arvoredos.

Que tornas o mar sanhudo,
Implacável, formidando,
As brutas trompas soprando
Sob um céu trevoso e mudo.

Que penetras velhas portas,
Atravessando por frinchas…
E sopras, zargunchas, guinchas
Nas ermas aldeias mortas.

Que ao luar, pelos engenhos, Nos miseráveis casebres Espalhas frios
e febres
Com teus aspectos ferrenhos.

Que soluças nos zimbórios Os teus felinos queixumes, Uivando
nos altos cumes
Dos montes verdes e flóreos.

Que te desprendes no espaço
Perdido no estranho rumo
Por entre visões de fumo,
Das estrelas no regaço.

Que de Réquiens e surdinas
E de hieróglifos secretos
Enches os lagos quietos
Revestidos de neblinas.

Que ruges, brames, trovejas
Ó velho vândalo amargo, No sonâmbulo letargo
De um mocho rondando igrejas.

Que falas também baixinho Lá da origem do mistério,
Trazendo o augúrio sidéreo E certa voz de carinho…

Que nas ruas mais escusa, Por tardes de nuvens feias, Como um ébrio
cambaleias Rosnando pragas confusas.

Que és o boêmio maldito, O renegado boêmio,
Em tudo o turvo irmão gêmeo
Do sonhador Infinito.

Que és como louco das praças Nos seus gritos delirantes Clamando
a pulmões possantes Todo o Inferno das desgraças.

Que lembras dragões convulsos, Bufantes, aéreos, soltos, Noctambulando
revoltos Mordendo as caudas e os pulsos.

Ó velho vento saudoso, Velho vento compassivo, Ó ser vulcânico
e vivo, Taciturno e tormentoso!

Alma de ânsias e de brados, Consolador companheiro Sinistro deus forasteiro
D’espaços ilimitados!

Tu que andas, além, perdido,
Tateando na esfera imensa
Como um cego de nascença
Nos desertos esquecido…

Que gozas toda a paragem,
Toda a região mais diversa, Levando sempre dispersa
A tua queixa selvagem.

Que no trágico abandono, No tédio das grandes horas Desoladamente
choras,
Sem fadigas e sem sono.

Que lembras nos teus clamores,
Nas fúrias negras, dantescas, Torturas medievalescas
Dos ímpios inquisidores.

Que és sempre a ronda das casas, A gemente sentinela
Que tudo desgrenha e gela
Com o torvo rumor das asas.

Que pareces hordas e hordas
De hirsutos, intonsos bardos
Vibrando cânticos tardos
Por liras de cem mil cordas.

Ó vento languido e vago, Ó fantasista das brumas,
Sopro equóreo das espumas, Ó dá-me o teu grande afago!

Que a tua sombra me envolva
Que o teu vulto me console
E o meu Sentimento role
E nos astros se dissolva…

Que eu me liberte das ânsias De ansiedades me liberte, Pairando no
espasmo inerte
Das mais longínquas distâncias.

Eu quero perder-me a fundo
No teu segredo nevoento, Ó velho e velado vento, Velho vento vagabundo!

Versos

VERSOS
(Desterro, 9 abr. 1881)
Admirai Carrara, Canova, Rafael, Murillo, Mozart e Verdi e tereis
as sublimes, mais que sublimes, as divinas encarnações da arte!
(Do Autor)

Bravo, prole bendita
Pois à glória infinita
O lutar vos conduz!
É assim — trabalhando
Sempre e sempre estudando
Que se alcança mais luz!

Contemplai estas flores
Estes tantos lavores
Contemplai o painel!
Repetindo orgulhosos
Estes feitos briosos
São dum belo pincel!

Eia, jovens, avante! Ser artista é brilhante, Trabalhar é uma
lei!
Não são só os c’roados Que merecem em brados Ter
as honras de rei!

O artista qu’é pobre
É tão rico, é tão nobre
Qual potente césar! E a glória bem cedo
Lhe murmura o segredo
— És artista — és sem par!

Não temais os pampeiros Sois gentis brasileiros Deveis pois progredir!
Quem vos traça na história Vossa augusta memória
É um deus — O Porvir!

Levantai-vos potentes
Altanados, ingentes
E fazei-vos Criseus!
Só quem pode vergar-vos
E pensar obumbrar-vos
Mais ninguém — é só Deus!

Não fiqueis ignavos Que o futuro dá bravos Vos dizendo — estudai!
Sois humanos — portanto Se há de trevas um manto Apressai-vos, rasgai!

Nossa pátria querida Necessita mais vida, Necessita crescer!
É preciso contudo
Que tenhais como escudo
Quem vos mostra o saber!

E de obreiros altivos, Que sereis redivivos
Que sereis imortais, Achareis vossos nomes Vossos grandes renomes Nas mansões
divinais!

Perdoai-me estas flores
Que tão murchas, sem cores
Nada podem valer! São ofertas sinceras Arrancadas deveras
Para vir vos trazer!

Palinuros — à frente Esse trilho é ridente Dás-vos
honra, louvor!
Quem o braço vos guia
Nunca, nunca entibia —
— É artista… e pintor!

É a vós a quem falo E se hoje eu não calo Estas vãs
expressões! É que a louca alegria Em minh’alma irradia
Com fulgentes clarões!

O trabalho enobrece Glorifica, engrandece Aos artistas quais vós!
Que zombando da sorte Têm a tela por norte
Os pincéis por faróis!

Eia! nessa carreira
Qual a nau sobranceira
Indo o mar a fender!
Quando há negros abrolhos, Mil cachopos, escolhos
É mais belo o vencer!

Se o lutar é dos grandes
Que são gêmeos dos Andes Que não sabem tombar! Colhereis
uma glória
Mais suprema memória, Trabalhando, a lutar!

Deus, o Deus sublimado
Disse ao homem num brado,
Da sidérea mansão!
— Vai depressa arrimar-te
Aos arcanos da arte,

Que terás um bordão!

Onde há braços d’artista
E seu ponto de vista
Decepar escarcéus!
E seu gládio seguro
Vai cavar o futuro
Vai rasgar negros véus!

E lá quando os vindouros
Vos c’roarem de louros
Vos erguerem docel!
Bradarão altaneiros:
— Exultai brasileiros, Ressurgiu Rafael!

Não temais os insanos,
Insensatos humanos
Bajulantes e maus!
Trabalhai muito embora!
Há de vir uma aurora
P’ra arrancá-los do caos!

Away, estudantes
Sois vergônteas pujantes
A lauréis tendes jus!
Caminhai com coragem,
Qu’esta é a romagem
Dos apóstolos da luz!!!…

Versos à infância

(Desterro)

Nos roseirais, ao vir da madrugada, Desabrocham no val todas as rosas, Nos
galhos cheios de uma luz doirada, Meigas e frescas, rubras, perfumosas, Nos
roseirais, ao vir da madrugada.

Como em bocas cheirosas e vermelhas
Pousam beijos de amor e de ventura, O mel lhe sugam todas as abelhas Pousando
em cima da corola pura
Como em bocas cheirosas e vermelhas.

Desde os campos, o bosque, até aos montes
Tudo renasce num jardim de flores; E pelo azul do céu, nos horizontes,
Há os mais vivos, raros esplendores,
Desde os campos, o bosque, até aos montes.

Pelos ninhos sonoros, delicados, Cantam e trinam muitos passarinhos Nos altos
arvoredos enflorados,
A margem verdejante dos calminhos,
Pelos ninhos sonoros, delicados.

As borboletas brancas e amarelas,
Azuis, cor de ouro, cor de prata e brasa,
Leves, ligeiras, tênues e singelas,
Abrem a fine talagarça da asa,
As borboletas brancas e amarelas.

Tudo no val acorda de desejos
À musica dos cantos mais risonhos;
E as aves soltas, peregrinos beijos, Dizem, cantando, que através de
sonhos Tudo no val acorda de desejos.

II
Na alma da infância, tal e qual roseiras, Abrem festões de límpida
fragrância
Os sonhos e as quimeras passageiras
Que são mais próprias do vergel da infância, Na alma da
infância, tal e qual roseiras.

O pequenino coração ditoso
Canta canções de uma ave pequenina; E é um encanto ver
assim radioso
No peito de uma cândida menina
O pequenino coração ditoso.

A existência de sol das criancinhas Lembra um pomar de frutas bem serenas,
Por onde os colibris e as andorinhas Gozam amores sacudindo as penas,
A existência de sol das criancinhas.

Não sei dizer se adore mais crianças
Ou mais também as flores de um arbusto; Nessas tão puras, castas
semelhanças
Eu, para ser bem carinhoso e justo, Não sei dizer se adore mais crianças.

Vesperal

Tardes de ouro para harpas dedilhadas
Por sacras solenidades
De catedrais em pompa, iluminadas
Com rituais majestades.

Tardes para quebrantos e surdinas
E salmos virgens e cantos
De vozes celestiais, de vozes finas
De surdinas e quebrantos…

Quando através de altas vidraçarias
De estilos góticos, graves,
O sol, no poente, abre tapeçarias,
Resplandecendo nas naves…

Tardes augustas, bíblicas, serenas,
Com silencio de ascetérios
E aromas leves, castos, de açucenas
Nos claros ares sidéreos…

Tardes de campos repousados, quietos,
Nos longes emocionantes…
De rebanhos saudosos, de secretos
Desejos vagos, errantes…

Ó Tardes de Beethoven, de sonatas,
De um sentimento aéreo e velho…
Tardes da antiga limpidez das pratas,
De Epístolas do Evangelho!…

Vida obscura

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.

NinguémTe viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!

Vinho negro

O vinho negro do imortal pecado
Envenenou nossas humanas veias
Como fascinações de atras sereias
E um inferno sinistro e perfumado.

O sangue canta, o sol maravilhado
Do nosso corpo, em ondas fartas, cheias.
como que quer rasgar essas cadeias
Em que a carne o retém acorrentado.

E o sangue chama o vinho negro e quente
Do pecado letal, impenitente,
O vinho negro do pecado inquieto.

E tudo nesse vinho mais se apura,
Ganha outra graça, forma e formosura,
Grave beleza d’esplendor secreto.

Violões que choram

(jan. I897)

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento…
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Bocas murmurejantes de lamento.

Noites de além, remotas, que eu recordo,
Noites da solidão, noites remotas
Que nos azuis da Fantasia bordo,
Vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações a luz da lua,
Anseio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos Nervosos e ágeis que percorrem
Cordas e um mundo de dolências geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem…

E sons soturnos, suspiradas magoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre ramagens frias.

Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso…
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.

Que esses violões nevoentos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Para onde vão, fatigadas do sonho
Almas que se abismaram no mistério.

Sons perdidos, nostálgicos, secretos,
Finas, diluídas, vaporosas brumas,
Longo desolamento dos inquietos
Navios a vagar a flor de espumas.

Oh! languidez, languidez infinita,
Nebulosas de sons e de queixumes,
Vibrado coração de ânsia esquisita
E de gritos felinos de ciúmes!

Que encantos acres nos vadios rotos
Quando em toscos violões, por lentas horas,
Vibram, com a graça virgem dos garotos,
Um concerto de lágrimas sonoras!

Quando uma voz, em trêmolos, incerta,
Palpitando no espaço, ondula, ondeia,
E o canto sobe para a flor deserta
Soturna e singular da lua cheia.

Quando as estrelas mágicas florescem,
E no silêncio astral da Imensidade
Por lagos encantados adormecem
As pálidas ninféias da Saudade!

Como me embala toda essa pungência,
Essas lacerações como me embalam,
Como abrem asas brancas de clemência
As harmonias dos Violões que falam!

Que graça ideal, amargamente triste,
Nos lânguidos bordões plangendo passa…
Quanta melancolia de anjo existe
Nas visões melodiosas dessa graça.

Que céu, que inferno, que profundo inferno,
Que ouros, que azuis, que lágrimas, que risos,
Quanto magoado sentimento eterno
Nesses ritmos trêmulos e indecisos…

Que anelos sexuais de monjas belas
Nas ciliciadas carnes tentadoras,
Vagando no recôndito das celas,
Por entre as ânsias dilaceradoras…

Quanta plebéia castidade obscura
Vegetando e morrendo sobre a lama,
Proliferando sobre a lama impura,
Como em perpétuos turbilhões de chama.

Que procissão sinistra de caveiras,
De espectros, pelas sombras mortas, mudas.
Que montanhas de dor, que cordilheiras
De agonias aspérrimas e agudas.

Véus neblinosos, longos véus de viúvas
Enclausuradas nos ferais desterros
Errando aos sóis, aos vendavais e às chuvas,
Sob abóbadas lúgubres de enterros;

Velhinhas quedas e velhinhos quedos
Cegas, cegos, velhinhas e velhinhos
Sepulcros vivos de senis segredos,
Eternamente a caminhar sozinhos;

E na expressão de quem se vai sorrindo,
Com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos
E um lenço preto o queixo comprimindo,
Passam todos os lívidos defuntos…

E como que há histéricos espasmos
na mão que esses violões agita, largos…
E o som sombrio é feito de sarcasmos
E de Sonambulismos e letargos.

Fantasmas de galés de anos profundos
Na prisão celular atormentados,
Sentindo nos violões os velhos mundos
Da lembrança fiel de áureos passados;

Meigos perfis de tísicos dolentes
Que eu vi dentre os vilões errar gemendo,
Prostituídos de outrora, nas serpentes
Dos vícios infernais desfalecendo;

Tipos intonsos, esgrouviados, tortos,
Das luas tardas sob o beijo níveo,
Para os enterros dos seus sonhos mortos
Nas queixas dos violões buscando alivio;

Corpos frágeis, quebrados, doloridos,
Frouxos, dormentes, adormidos, langues
Na degenerescência dos vencidos
De toda a geração, todos os sangues;

Marinheiros que o mar tornou mais fortes,
Como que feitos de um poder extremo
Para vencer a convulsão das mortes,
Dos temporais o temporal supremo;

Veteranos de todas as campanhas,
Enrugados por fundas cicatrizes,
Procuram nos violões horas estranhas,
Vagos aromas, cândidos, felizes.

Ébrios antigos, vagabundos velhos,
Torvos despojos da miséria humana,
Têm nos violões secretos Evangelhos,
Toda a Bíblia fatal da dor insana.

Enxovalhados, tábidos palhaços
De carapuças, máscaras e gestos
Lentos e lassos, lúbricos, devassos,
Lembrando a florescência dos incestos;

Todas as ironias suspirantes
Que ondulam no ridículo das vidas,
Caricaturas tétricas e errantes
Dos malditos, dos réus, dos suicidas;

Toda essa labiríntica nevrose
Das virgens nos românticos enleios;
Os ocasos do Amor, toda a clorose
Que ocultamente lhes lacera os seios;

Toda a mórbida música plebéia
De requebros de faunos e ondas lascivas;
A langue, mole e morna melopéia
Das valsas alanceadas, convulsivas;

Tudo isso, num grotesco desconforme,
Em ais de dor, em contorsões de açoites,
Revive nos violões, acorda e dorme
Através do luar das meias noites!

Visão

Noiva de Satanás, Arte maldita,
Mago Fruto letal e proibido,
Sonâmbula do Além, do Indefinido
Das profundas paixões, Dor infinita.

Astro sombrio, luz amarga e aflita,
Das Ilusões tantálico gemido,
Virgem da Noite, do luar dorido,
Com toda a tua Dor oh! sê bendita!

Seja bendito esse clarão eterno
De sol, de sangue, de veneno e inferno,
De guerra e amor e ocasos de saudade…

Sejam benditas, imortalizadas
As almas castamente amortalhadas
Na tua estranha e branca Majestade!

Visão da morte

Olhos voltados para mim e abertos
Os braços brancos, os nervosos braços,
Vens d’espaços estranhos, dos espaços
Infinitos, intérminos, desertos…

Do teu perfil os tímidos, incertos
Traços indefinidos, vagos traços
Deixam, da luz nos ouros e nos aços,
Outra luz de que os céus ficam cobertos.

Deixam nos céus uma outra luz mortuária,
Uma outra luz de lívidos martírios,
De agonies, de mágoa funerária…

E causas febre e horror, frio, delírios,
Ó Noiva do Sepulcro, solitária,
Branca e sinistra no clarão dos círios!

Visão guiadora

Ó alma silenciosa e compassiva
Que conversas com os Anjos da Tristeza,
Ó delicada e lânguida beleza
Nas cadeias das lágrimas cativa.

Frágil, nervosa timidez lasciva,
Graça magoada, doce sutileza
De sombra e luz e da delicadeza
Dolorosa de música aflitiva.

Alma de acerbo, amargurado exílio,
Perdida pelos céus num vago idílio
Com as almas e visões dos desolados.

Ó tu que és boa e porque és boa és bela,
Da Fé e da Esperança eterna estrela
Todo o caminho dos desamparados.

Visionários

Armam batalhas pelo mundo adiante
os que vagam no mundo visionários,
abrindo as áureas portas de sacrários
do Mistério soturno e palpitante.

O coração flameja a cada instante
com brilho estranho, com fervores vários,
sente a febre dos bons missionários
da ardente catequese fecundante.

Os visionários vão buscar frescura
de água celeste na cisterna pura
da Esperança por horas nebulosas…

Buscam frescura, um outro novo encanto…
E livres, belos através do pranto,
falam baixo com as almas misteriosas!

Voz fugutiva

Às vezes na tu’alma que adormece
Tanto e tão fundo, alguma voz escuto
De timbre emocional, claro, impoluto
Que uma voz bem amiga me parece.

E fico mudo a ouvi-la como a prece
De um meigo coração que estaá de luto
E livre, já, de todo o mal corruto,
Mesmo as afrontas mais cruéis esquece.

Mas outras vezes, sempre em vão, procuro
Dessa voz singular o timbre puro,
As essências do céu maravilhosas.

Procuro ansioso, inquieto, alvoroçado,
Mas tudo na tu’alma está calado,
No silêncio fatal das nebulosas.

Zulmira dos meus amores

Zulmira dos meus amores,
Zulmira das minhas cismas,
Resplandece como as flores,
Zulmira dos meus amores
Abre os olhos sedutores
Nos quais a minh’alma abismas,
Zulmira dos meus amores,
Zulmira das minhas cismas.

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