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Personagens
Patkull, gentil homem da Livônia
Paikel, alquimista
Namry Romhor, noiva de Patkull
Bertha, namorada de Paikel
Wolf, pajem
Um criado
Um mensageiro
Uma criada
Fleming
O rei Augusto
ATO PRIMEIRO
Uma sala em casa de Namry Romhor – uma porta no fundo – portas
laterais – mobília da época.
CENA I
NAMRY ROMHOR senta a ao pé de uma mesa e BERTHA
NAMRY – Que horas são, Bertha? BERTHA – Ainda há
pouco anoiteceu, minha senhora.
NAMRY – Ainda há pouco! Pesado e triste corre agora o tempo,
como um velho enfermo e lento! (Pausa) Chove? BERTHA – Não, minha
senhora, não; neva somente. (Chegando-se à janela e correndo
pouco a cortina) Se quisésseis chegar a esta janela, veríeis
que majestoso espetáculo é prolongar os olhos por esta planície,
que se estende a perder de vista, toda prateada, e luzindo um pouco com a
luz pálida e vacilante da lua… tão belo… que prazer não
é ver estes flocos de neve que vêm descendo sobre a terra e lento
e lento ! quereis vir, senhora? NAMRY (Como falando consigo) – Houve
tempo em que a vida também para mim corria fagueira e leve. Minhas
noites eram cheias de sonhos de inocência e de ventura… Meus dias
tranqüilos e felizes. – Nada mais desejava – ou brisa ou
tempestade sempre acharam meu coração venturoso e o prazer que
se me ria nos lábios! E hoje?!…
Quem me dera ver-me longe deste céu tristonho – destas nuvens
carregadas – desta atmosfera de mau agouro.
BERTHA – Perdoai, Senhora – mas eu pensava que em parte nenhuma
seria melhor a vida que na terra, em que a provamos. Tem encantos a terra,
onde na infância gravamos passos mal seguros – têm encantos
os sítios, que nos recordam dias mais felizes, que todos nós
gozamos – rico ou pobre – : o céu que nossos olhos primeiro
encontraram; o sol que nos afagou no berço, como olho vigilante de
mãe; e a língua que nós falamos e que outra língua
nunca pode suprir! NAMRY – Assim pensei, Bertha, assim pensei, e quem
então me dissesse que este seria o meu desejo de hoje, certo que em
mim não acharia crédito. Mas eu já tenho sobejos motivos
para ser triste, para mais os desejar. Queria alguma coisa que me distraísse!
Queria ver essa terra tão antiga, e que mais que as outras, dizem bela,
onde reina contínua primavera, onde o céu rutila sempre grande,
onde a noite equivale aos nossos dias! Queria ver essa terra! Nápoles,
a cidade afortunada, com seu vulcão fumegando noite e dia; com seu
golfo tão risonho e pitoresco; Veneza, a cidade de encantos e prodígios,
onde de contínuo se escuta ao longe o triste cantar dos gondoleiros,
e a barca que passa silenciosamente com o seu fanal na proa, e o mascara de
traje oriental, que se perde na arcadaria de um palácio inabitado;
talvez que então pensasse menos sobre mim, Bertha; e seria ainda uma
fortuna.
BERTHA – Sois infeliz?! NAMRY – Infeliz?! Vês tu que daria
meus títulos de não sei quantos avós – meu ducado
que vale um reino – minhas terras, minhas jóias – meu brasão
– tudo o que me cerca de adulações, de lisonjas, de galanteios
– tudo – tudo – e até o meu nome, para que me chamasse
simplesmente – Bertha. Foi meu nome quem me trouxe a desventura! Na
tua classe não há preconceitos de nomes, de brasões;
não há lei dura e inflexível da vontade de um pai severo
e orgulhoso. Não há nada –, nada, absolutamente nada:
porque são menos os preconceitos quanto mais se aproximam da terra,
e alguns palmos abaixo nem uns! BERTHA – Mal pecado que já fiz
tão negra experiência e não desci de tão a1to.
Crede-me, Senhora – amargo é o pão do infortúnio
e da sujeição. É viver para os outros e não para
si. Não é de mim que eu falo – amável para com
todos muito mais o foste para comigo – e tanto que mais lágrimas
me fez derramar a vossa bondade, que meu infortúnio. Mas sofrer insulto
e repreensões, sempre curvada e humilhada aos pés do mais rico.
– Sempre de um para outro senhor – sem esperanças de melhor
sorte, nem minguadas – nem ao longe – muito ao longe – no
extremo de uma vida de espinhos e de sofrer – oh! que é uma vida
bem triste esta assim vivida! NAMRY – Também tu, Bertha? (Refletindo
um pouco) Vem cá – senta-te bem perto de mim… Estimo saber
que és infiel, Bertha; por egoísmo? Que importa? Todo este bulício
de prazer e de alegria me pesa no coração – todo este
arruído de passos, de vozes, todos estes cantos de amor e de esperanças,
me desesperam porque já não tenho amor nem esperanças!
Não me interrompas… aflige-me tudo isto que me cerca, que me parece
respirar ledice e contentamento; e eu só no meio de tudo isto?! Estimo
saber que és infeliz. – Eu precisava de alguém que me
pudesse compreender: preciso desabafar o que trago no coração,
e que me tortura todos os momentos da vida. – Felizmente que te encontrei!
Contar-me-ás tuas penas e eu te confiarei as minhas. – Ao menos
no infortúnio seremos irmãs.
BERTHA (Com a mão sobre o coração) – É
meu segredo; não me pode livrar dos desgostos por que tenho passado,
mas pode poupar os novos.
NAMRY – Não tens ainda em mim bastante confiança?! É
que tu não sabes o que é guardar um segredo no mais fundo da
alma. Um segredo que é o pensamento de todos os dias, de todos os instantes,
que nos prende alma e coração – que nos mina e consome
a existência, que nos esmaga e a martiriza. Falarei eu, Bertha; falarei;
– porque tenho necessidade de dizer o que encerra o meu pobre coração
– falarei, porque preciso de um peito sobre que possa derramar as lágrimas,
que já não posso sorver. Escuta-me.
Outra que não fosse eu daria graças à sua boa estrela
por lhe ter deparado com o amor de Patkull. – É um homem patriota
e nobre. Os reis se calaram na sua presença porque a sua voz era de
verdade e consciência. Seus inimigos o temeram na guerra, porque o seu
braço era de ferro e sua vontade inflexível. – Os seus
compatriotas o adoram porque sacrificou por eles seus bens que um rei invejaria
e o seu futuro, que prometia ser tão brilhante. E no exílio,
na pobreza imerecida, no meio de quanto aviltamento lhe podia arremessar a
Suécia, sempre se ouviu a sua voz que chamava os seus patrícios
à liberdade, mais forte que a destruição de reinos e
monarquias – do que o barulho das armas de Carlos XII – Pedro
I e do rei Augusto. E este homem trocou tudo por mim.
Meu pai, a quem ele mais que uma vez salvou a vida no meio dos combates
me pediu no seu leito de morte que lhe pagasse esta dívida de reconhecimento
e de amizade E eu prometi, Bertha; prometi porque já tinha dado bastantes
desgostos a meu pobre pai, para lhe negar este último pedido ao despedir-se
da vida – porque não queria que o pobre velho saísse do
mundo desesperado, com a maldição a esvoaçar nos lábios
quando ele julgava granjear-me um nome e um apoio…
E no entanto eu nunca amei este homem, que tanto me ama. Seus extremos me
enfastiam; e na minha consciência sinto de lhe não poder dar
amor em troca de amor tamanho. (Baixo) – Eu amo a outrem Bertha: a outrem
com quem vivi os primeiros anos da minha vida, a outrem com quem troquei amor
e juramentos, a outrem com quem talvez me não casasse ainda não
havendo estes impedimentos, porque meu pai lhe negou a minha mão, e
o chamou de cara um cavaleiro que deslustrava a sua nobreza com essa arte
diabólica de Alquimia. E ele calou-se – Paikel…
BERTHA (Indo para se levantar) – Paikel?! NAMRY (Como admirada) –
Paikel, sim, conheces-lo?… (Encarando-a) BERTHA (Sentando-se) – Nada;
não, minha senhora; parecia-me que já tinha ouvido pronunciar
esse nome; não sei por que me vem ele agora à memória!
NAMRY (Observando-a) – Paikel calou-se. Nesse instante agradeci sinceramente
essa delicadeza da parte dele: julguei então generosidade o que agora
me vem em dúvida de cobardia.
BERTHA – Dizem-no valente! NAMRY – Ele desamparou-me, fugiu
vergonhosamente sem mais se dar de mim! BERTHA – Presumiu talvez que
as palavras do pai não eram sem o consentimento da filha! NAMRY –
Talvez! Porém, quem tão breve se esquece de que ama –
que assim a traiu, também se esquecerá e trairá o seu
amigo.
BERTHA – Ele é nobre.
NAMRY (Mais forte) – Ele jogaria o ducado de seu pai; venderia sua
irmã se a tivesse; seu brasão, se alguma coisa lhe rendesse
para as consumir nas suas diabólicas experiências – é
um infame! BERTHA – É um homem honrado.
NAMRY (Rindo-se) – Melhor o conheces que dizias – Bertha! E
bastante interessas por ele – vai – outro dia me contarás
a tua história. (Bertha sai. Olhando-a sair) Também o ama –
minha ciada, minha riva1!… (Assenta-se e fica pensativa) (Entra Patkull
– manso – encosta-se à cadeira em que Namry está
sentada. Fica contemplando-a um pouco tristemente.)
CENA II
PATKULL – Sempre triste.
NAMRY ( Sobressaltada e levantando-se) – Senhor Patkull PATKULL –
Por que me tratas tu por senhor? Entre amantes que breve serão esposos
– tu – é um delicioso tratamento, que alimenta o amor e
a confiança – Senta-te, Namry (Ele também se assenta)
Vinha eu com o peito cheio de prazer e de contentamento, vinha ansioso por
te ver, vinha feliz e venturoso – ao passar da tua porta – quando
te vi tão triste e pensativa, também eu me entristeci contigo,
e pensei que o amor de teu esposo mal supriria o deserto que teu pai te deixou
no coração! NAMRY – Meu pai era bom! PATKULL – Nem
eu te crimino o sofrimento: ele era meu amigo! senti a sua morte como se fora
a de um irmão, como se fora a morte de um pai – bem que ele me
deixasse um legado a que mal se exaltariam as minhas esperanças nas
minhas noites de amor e de insônia. Deixou-me a tua mão, que
eu não aceitaria por certo se julgasse que a devia somente à
obediência.
NAMRY – És generoso, Patkull! PATKULL – Por que me falas
tu em generosidade? Quem te pede agradecimentos? Nada faço por ti que
o não deva fazer. – Olha, por vezes uma idéia de amor
e de egoísmo me atravessa o pensamento. Eu quisera conhecer-te aldeã
humilde e simples – só – com a tua pureza e formosura –
e eu quisera ser o homem rico e poderoso por que tudo se curvasse às
tuas ordens, para que te pudesse transportar para um palácio de maravilha
e de encantos, para que eu fizesse da tua vida um paraíso, e da minha
alma um templo para a tua alma.
NAMRY – Tens mais do que te posso merecer. Teu amor é o amor
com que se adora a Deus e aos anjos; demais para uma mulher que é uma
frágil criatura.
PATKULL – Não é demais para ti. – E contudo eu
te amo como neste mundo se pode amar, como se ama a uma coisa pura e bela,
como se ama uma flor encantadora, como se ama o azul de um céu e de
um lago, como se ama o sol e as estrelas – como se ama um instrumento
que se escuta no silêncio da noite – como se ama o perfume e a
harmonia. Assim é que eu te amo – mais do que te posso dizer,
mais do que te posso explicar – mais do que pode exprimir um pensamento,
que é teu; uma pulsação do peito, que é tua. Oh!
Que não possa exprimir a linguagem do coração o falar
rude e franco de um soldado que só tem vivido no meio do estrépito
e da carnagem, vida de movimento e de guerra. Oh! Que não possa minha
alma estalar este invólucro de lodo, e trazer-me lá dos céus
a expressão do que eu sinto por ti? Namry, tu verias; então
o que é o amor deste homem já maduro e sério, e que até
hoje tem conservado sua alma virgem de todo amor; e debalde teu pensamento
se abismaria em sondar a profundidade desse seu sentir tão ardente,
de que nem ele mesmo conhece a intensidade.
NAMRY – Tu amas muito, Patkull! Esse teu amor me amedronta mais por
ti que por mim.
Dizem que o pensamento do homem gravita sempre em torno de fantasmas e de
ilusões.
Pensa bem, Patkull. Talvez que num dia, mesmo antes do matrimônio,
se perca o colorido dessas tuas quimeras de amor; – depois dele poderás
achar que a vida doméstica e prosaica é muito fria e insuficiente
para uma alma sedenta de emoções, como a tua – seria de
perder a razão o acordar repentinamente desse sonho; e a culpa seria
tua porque foste tu quem o forjaste.
PATKULL – Como são feiticeiras essas tuas dúvidas do
coração! És o amor que o comprime, e tu julgas prudência
minguar-lhe a força e a intensidade. Não – não
é quimera ver-te assim tão nobre e tão bela respirando
melancolia e suavidade em todos os teus movimentos. Não; não
é ilusão o fogo tão puro e tão expressivo que
dimana dos teu olhos. Não; não é frieza que eu receio
de ti. Quando te vi tão sentida e penalizada com a perda de teu pai;
quando vi com quanto apego tinhas ligado tua vida à vida dele; então
senti quamanha era a fonte de sensibilidade que encerravas, quão forte
e enérgico devia ser o teu amor, quando o tivesses – que cedo
ou tarde despontaria; foi também então que compreendi como a
vida leve e graciosa escoaria nas asas do tempo, vivida a sós contigo
e com o teu amor! Então amei: então compreendi que havia outra
felicidade que não o arruído de um campo de batalha: outra magia
numa voz de ternura, que eu ansiava, que no estrondo ou no estertor de moribundos,
outra embriaguez, que não a da vitória: então compreendi
a vida que até ali mal pudera decifrar: amei; e o tempo que dantes
se arrastava vagaroso e lento – hoje passa sobre mim mal apercebido
e todo concentrado no amor; e a vida me parece mais radiante e mais afortunada
– assim – do que vista através duma atmosfera de pó
e de sangue; radiante e mais bela passada a sós contigo.
NAMRY (Abraçando-o) – Meu bom Patkull.
PATKULL (Retendo-a nos braços – encara-a um pouco, como extasiado)
– Ainda há pouco que eu teria nos lábios um sorriso de
compaixão e incredulidade parar aquele que me dissesse a embriaguez
com que enleia os sentidos do homem um som argentino de voz, que dos ouvidos
resvala ao coração, uns olhos que entornam em nossos olhos mágico
fluido de amor; uns braços que nos cingem, que nos alteiam além
da terra, uns peitos que fogosos contra nós palpitam. Não –
tal não crera; e hoje … sinto por ti o que se não diz no falar
dos homens, no cantar dos bardos; uma coisa que na terra não tem nome,
e que os anjos nos céus, entre o coro dos astros talvez modulem nas
suas liras douro, quando à Virgem-Mãe levantam incensos de louvores.
PATKULL – Assim! Chama-me sempre por meu nome: nunca o julguei tão
lindo antes que a tua voz o pronunciasse. O teu… mesmo o teu – me
parece despido de encantos em comparação desse nome, que me
enamora, quando tu o pronuncias – Patkull?! Não – não
era assim que tu dizias – Patkull!! Não – não era
assim. Donde roubas tu essa harmonia, que só encontro em ti? –
Donde o roubas?! (Pensando) Namry, às vezes me pergunto na minha consciência
se não é possíve1 que um anjo se transformasse em ser
humano, conservando ainda resquícios da sua divindade, porque tu és
meu bom anjo – Namry ; paz do coração encontrei a teu
lado como no silêncio de uma noite puramente bela. – Então
pesa-me do tempo já passado, não por feitos maus; o que fiz
foi bom, foi justo; mas por te não haver conhecido, Namry – porque
a flor da minha mocidade desfolhei-a eu em tropeços e barrancos, –
nas intrigas de gabinete e em lutas com reis, porque pouco tempo me resta
para viver, porque em um dia meus cabelos apareceram brancos como a neve,
que embranquece o píncaro de um rochedo num dia – ao principiar
do inverno ; porque eu me tornarei velho e curvado com o peso dos anos e dos
trabalhos, quando tu brilharás com todo o esplendor da tua beleza,
com todo o fogo dos anos e da mocidade.
NAMRY – Estás triste, Patkull? Triste te afundaste em recordações
do passado?! Meu amigo, quem de nós que elevantar o sudário
desse morto não encontrará debaixo dele um pesar e um desacorçoamento?!
Quem de nós?! Temos todos nossos pesares; bem felizes quando nossos
amigos o compreendem e nos podem consolar! Eu sofri muito; derramei lágrimas
tristes em silêncio e no retiro; meu pesar tinha – e no peito;
cansei-me de sofrer sozinha, disse-o a alguém; não achei piedade
nem simpatia; mas fui sobejamente recompensada; achei uma traição
– inocente porque fui eu quem a provoquei.
– Breve seremos unidos, Patkull; talvez que a mulher saiba cumprir
melhor os deveres de esposa, do que a amante os de namorada. Então
esqueçamo-nos do que foi, o que em breve não tornará
a voltar.
PATKULL – Em bem que não, voltará! Assim também
se pudessem abismar no esquecimento recordações do que amargou
nossa vida, a memória sempre viva do que foi, e um brado contínuo
de vingança, que nos ferve na alma e não passa do pensamento.
Minha vida tem sido uma luta contra o sofrimento, um contraste de miséria
e de grandeza. Namry, não me recordo nem de jogos, nem de passatempos
da infância, nem de parceiros de folguedos, nem de passeios à
margem dum regato, ou a corrida afanosa e inocente por um prado florido entre
flores e verdura atrás de uma borboleta, ou de outro inseto brilhante
– de nada disto me recordo, porque nada disto desfrutei. Um dia quando
me entendi, estava num lugar escuro e frio; era uma prisão de Estado;
era funda a prisão, a terra lodosa e encharcada, e alguns molhos de
palha. Bem alto estava uma fresta, por onde enfiava um raio baço de
sol de inverno. Ao meu lado uma mulher que seria bela em outros tempos, porém
que eu via descorada e miserável com as faces fundas, e o cabelo enxovalhado
e solto. Além, um homem alto – magro – pálido –
com os olhos vacilantes e luzentes, o cabelo em desordem e braços cruzados.
Seu rosto metia medo; às vezes uma contração nervosa
lhe abalava o corpo inteiro, e tão seus cabelos se eriçavam,
e caíam pouco depois como árvores que o vento curva a seu bom
grado; e os dentes rangiam e batiam com força como num acesso de febre.
Era horrível vê-lo assim, e contudo, tirante disso, o dirias
um espectro. Esse homem doido era meu pai, essa mulher morta, minha mãe
e nada mais sei deles. E eles ambos me bradam vingança porque morreram
ambos de fome; e eu ainda os não vinguei! À noite, em alguma
marcha forçada e silenciosa eu tenho visto essa visão, que caminha
sempre diante de mim – Quando deitado na tenda – à espera
da batalha, um pouco repousava – ainda via essa visão. Quando
contigo, ainda me aparece a sombra de meu pai, que me pede contas do que fiz
e do que poderia ter feito. Pois bem, Namry, eu direi como tu: esqueçamo-nos
do que foi esqueçamo-nos de tudo, seja nossa vida o amor – sejam
nossos dias instantes de ventura – vivamos sós, só nós
– E quando à noite me sentires ansioso e delirante com a fronte
banhada em suor, e com o peito oprimido de um horrível pesadelo –
tu me chamarás, não é assim? E eu acordarei num paraíso,
acordarei feliz quando vir teus olhos sobre meus olhos; e um sorriso nos teus
lábios, e tua mão, que me enxuga as bagas de suor.
NAMRY – Patkull, meu amigo, por que te deixas levar destas idéias,
que me aterrorizam? Por que esses pensamentos de vingança? Não
estás cansado de sofrer? – Crê-me; é curta a vida
para ser desperdiçada em ódios e tormentos. Patkull, teu pai
mesmo que agora ressurgisse do sepulcro certo se doeria de ti – e te
pedira o perdão daqueles que o maltrataram, porque se os mártires
se recordam nos céus do que na terra padeceram, também se esquecem
dos que fizeram padecer; Patkull – esquece-te disso.
PATKULL – Eu já te disse, minha alma é tua; são
teus meus pensamentos, minha vida é tua. (Abraçados)
CENA III
Os mesmos e WOLF
WOLF – Senhor Patkull? PATKULL – Entra, Wolf – entra –
que novas trazes? WOLF – É chegado o estrangeiro que me dissestes
conduzisse aqui – Aqui está e vos aguarda.
PATKULL – Dize-lhe que entre. (O pajem sai) Namry tinha-me esquecido
de te prevenir disto e contudo era essa minha intenção quando
te vim falar. É um meu amigo.
Diz que me traz notícias importantes, e que mas quisera comunicar
em lugar seguro. – Escolhi a tua casa: porque a minha, afora este pajem,
está cheia de espiões do rei Carlos.
NAMRY – Escusas pedir, quando podes mandar. – Faz o que te aprouver
– Patkull
CENA IV
Os mesmos e PAIKEL, vestido de jornada. Patkull vai recebê-lo,
Paikel e Namry páram, encarando-se.
PATKULL – Entra, meu amigo – entra sem receios – certo
que não me esperavas achar de companhia. – Entra! – Quê?
Dar-se-á acaso que vos conheçais.
PAIKEL – Sim – conheço-a, porém é possível
que outro tanto não aconteça à senhora Duquesa. As pessoas
indiferentes usam deixar pouca impressão.
NAMRY – Bem vindo sejais, Senhor Paikel.
PATKULL – Melhor – estimo bem que a conheças, Paikel
– estimo-o muito.
Escusado será elogiá-la; porque quem uma vez tratou com a
Duquesa de Mecklenburg conhece quão insuficientes são as palavras
para a retratar. – É minha mulher, Palkel.
PAIKEL – Tua mulher?! PATKULL – Brevemente o será, e
tão boa estréia foi a tua que assistirás aos desposórios
do teu amigo – dar-me-ás este prazer? PAIKEL – Sim, sim,
mas primeiro deixa-me congratular contigo pela tua boa fortuna; mais feliz
do que eu; só a ti poderia eu dar parabéns duma dita que não
pude gozar. (Com intenção) Aceitareis meus parabéns,
senhora Duquesa? NAMRY – Por que não, Senhor Paikel? De tão
bom grado os destes ao vosso amigo – tão francamente lhe cedestes
uma fortuna que poderia ser a vossa – dissestes que seria faltar ao
reconhecimento não vô-los aceitar – mil vezes obrigada,
Senhor Paikel.
PATKULL – Basta de civilidades. Paikel, serás tão amigo
da esposa como o és do esposo: e certo que algumas vezes te acontecerá
esquecer-te das tuas locubrações científicas e do ouro
que procuras, quando topares com um verdadeiro diamante.
PAIKEL – Mas já te esqueceste que tinha de te falar? PATKULL
– Pelo contrário, lembro-me tanto que já pedi esta casa
a Namry; estaremos aqui mais à nossa vontade, e como querias, longe
de suspeitas.
PAIKEL – Bom será, porque é de segredo o que tenho de
te comunicar; e contudo a senhora Duquesa poderá assistir à
nossa prática.
NAMRY – Ainda quando eu vos pudesse ouvir, sem dúvida que tereis
muito que vos dizer, depois de tantos anos de separação; assim
estareis com mais franqueza. Se de alguma coisa careceres – chamarás,
Patkull.
CENAV
PATKULL (Vê-a sair) – É um anjo, Paikel – esta mulher
é um anjo de bondade e candura.
PAIKEL – Dize antes que é uma Armida. – Aqui estás
tu novo Reinaldo, no teu jardim de encantos – a descansar das fadigas
da guerra no seio da moleza e da voluptuosidade. E mal pecado, que eu não
tenho o espelho onde possas ver quanto caíste de tão alto que
estavas.
PATKULL – Tenho eu, Paikel; tenho no coração alegria
e contentamento – tenho na alma tranqüilidade e descanso –
tenho amor que me embeleza todos os momentos da vida; sou feliz, e quem fosse
meu amigo não me quisera ver desgraçado.
PAIKEL – É certo quanto me tinham dito!… E na minha consciência,
eu que te conhecia de bem perto, apelidei calúnia quanto de ti me diziam.
PATKULL – Fizeste mal. O que há no mundo tão seguro
e inabalável por que nos possamos constituir seus garantes? Não
há prudente que diga: deste pão não comerei: é
uma palavra de verdade, entre todas as verdades que prega o Evangelho. Há
pouco tempo um rei desceu do trono ao cadafalso; e era um bom rei Carlos I.
À árvore gigante que do cimo de um rochedo derrama a sombra
até a profundez do vale, em alguns momentos baqueia em terra mais humilde
que os bustos que a cercavam.
Que muito? PAIKEL – Há contudo, um povo que te adora, e que
pensa que o seu nome te faria estremecer na sepultura. Dize, Patkull, neste
retiro – não chegaram ainda aos teus ouvidos seus sofrimentos,
não retumbou um grito desesperado – não ouviste teus irmãos,
que te chamavam em auxílio?
PATKULL – Que mais querem de mim? Dei por eles quarenta anos da minha
vida – sacrifiquei por eles meus bens e o meu repouso. Sofri por eles
o degredo e traguei o negro pão de um mendigo: derramei por eles meu
sangue no campo da batalha – que mais querem de mim? PAIKEL –
Fizeste muito, Patkull, mas não tudo. Quererias tu perder quanto tens
feito? Que importa se por um instante livraste o escravo da cólera
de um senhor impiedoso, se o deixas na mesma escravidão, mais dura
porque incitaste as iras do senhor.
PATKULL – Que façam como eu fiz.
PAIKEL – Porém tu eras só; sem família, qualquer
lugar te oferecia uma pátria; qualquer distração um prazer.
Quererias tu que todos abandonássemos nossos lares, nossas terras;
e só com nossas famílias e miséria, fôssemos pelo
mundo como uma tribo errante de judeus, esmolando um asilo? PATKULL –
Quem quer ser livre peleja: Paikel, esqueçamo-nos deles.
PAIKEL – E eles se não esquecem de ti, Patkull. Eu vi por mais
de uma vez uma livônia que mal balbuciava o nome de sua mãe,
pronunciar o teu, como se fora um nome de família. Eu vi por mais de
uma vez o mancebo que sofria a tortura sem lamentações, nem
lágrimas, invocar o teu nome, como se fora o nome de Deus. Mais de
uma vez o velho calvo de cãs venerandas e de rosto engelhado, de quem
tinham recrutado a filha para o leito de um Boiardo, e o filho para vir morrer
nas guerras da Polônia, pronunciar teu nome como se por si só
for uma vingança. – Patkull, um homem que um povo venera tanto,
é um homem grande. Mas o que despreza tantas preces, não merece
tanto amor.
PATKULL – Por mais de uma vez eu chamei por eles. Chamei-os para a
vitória e liberdade; disse-lhes: tereis armas e munições;
forragens e mantimentos para uma – para mil campanhas; e eles ficaram
frios e gelados, como se eu falasse a um cadáver. – Não
me fales neles, Paikel, esse povo é um povo de cobardes.
PAIKEL – Tu mesmo o disseste: não há prudente que diga:
deste pão não comerei. Tu, que eras um lidador valente, cansaste
– tu que eras um bom patriota, renegaste a tua pátria, e a não
teres dado tantas provas de ambas, os nossos vindouros poderiam pôr
em dúvida a tua coragem e o teu patriotismo. Não fales pois
de coragem e patriotismo, que mal viste experimentada.
PATKULL – E que resultaria de me empenhar de novo em coisas de mau
agouro? PAIKEL – A glória.
PATKULL – Foi a ilusão dos meus primeiros amores; e por ela
sacrifiquei minha vingança, que me devera ser sagrada. Sabes tu, Paikel,
o que lucrei dos meus quarenta anos, com que a julgava sobejamente recompensada
– o nome do egoísta. – Assim me chamaram uma caterva de
escrivinhadores que formigam em todos os tempos e por toda a parte. Disseram
que se eu sofria era por amor de mim! Almas pequenas, que não compreendiam
o sacrifício de um ao bem-viver de muitos: Satíricos incoerentes
e absurdos que me viam pôr em desleixo meus haveres e me chamaram –
egoísta! Quisesse eu permanecer tranqüilo espectador da escravidão
dos meus! Pudesse cruzar os braços em vez de manejar a espada ou pena,
dignidade e honras, e favores cairiam sobre mim como uma chuva de inverno.
Oh! Quão diversamente me julgava meu gracioso soberano Carlos XI! PAIKEL
– E é de Carlos XI que data o teu favor no entusiasmo dos teus
irmãos.
Certo que toda a Livônia estremeceu, como se ainda fosse hora do seu
livramento, quando te escutou conciso e forte expondo as regalias dos teus
compatriotas que a Suécia abocanhava como um povo de Ilotas. O opressor
mesmo não pôde negar um bravo de entusiasmo e admiração
aos 19 anos de tão leal representante.
PATKULL – E ainda se não tinha apagado o murmúrio que
a minha voz fizera alevantar, quando um pregoeiro pelas ruas de Estocolmo
declarava Patkull – réu de lesamajestade condenado a ter as mãos
cortadas; e o carrasco quebrava publicamente sobre um cepo meu braço
tão nobre – e queimava os artigos do meu mandato tão aplaudido!
E tudo isto para quê? Hoje os livônios dormem tranqüilos
na sua ignomínia e o fel da calúnia se derramou sobre o meu
nome. Paikel, o homem pode resistir a perigos e a embaraços, porém
não resiste à calúnia.
PAIKEL – O homem virtuoso geme da cegueira dos outros homens. Se a
calúnia lhe enegrece uma virtude – outra virtude que responda
aos gritos da sua satânica vitória.
– Há uma coisa grande – Patkull – virtude –
há uma coisa santa – o dever: – De ambas elas, nasce a
glória que dura mais que a inveja. – E ao homem que pesa suas
ações no foro da consciência – pouco se lhe deve
dar do maldizer dos perversos.
PATKULL – Deixemo-nos disso, Paikel! PAIKEL – Pelo contrário,
falemos nisto! PATKULL – Mas que queres tu que eu faça? PAIKEL
– Salva-os.
PATKULL – Salva-os?! Lindas Palavras, Paikel, lindas palavras de tragédia,
que parecem dizer alguma coisa e não dizem nada – salva-os?!
(Com impaciência) Julgasme tu algum Deus, para que ao meu aceno se faça
um mundo ou rebente água de um rochedo. – Tua idade indica mais
experiência, Paikel! PAIKEL – Salva-os; porque os podes salvar.
PATKULL (Pensativo) – Como? PAIKEL – E quererias tu fazê-lo?!
PATKULL – Não é verdade que isto é uma simples
conversação entre amigos? PAIKEL – Um dia será
pesado na balança da justiça eterna, não o bem que fizemos,
mas o bem que poderíamos ter feito – Queres tu salvar teus irmãos?
PATKULL – Se a minha vida a mim só pertencesse de bom grado a
dera ao primeiro que ma pedisse. De sangue e bens fui sempre largo –
Mas vês tu? Eu prometi a um homem no ato mais solene da vida –
o da morte – defender sua filha, que eu amo, que sem ele ficou órfã,
e ficaria viúva sem mim. Dei-lhe a minha palavra de cavalheiro a ele
e a ela, e deixá-la penhorada, seria justificar a sentença de
Carlos XII quando mandou ao carrasco espedaçar as minhas armas em praça
pública.
PAIKEL – Dou-te minha palavra que não há risco nem perigo
– terás o poder de um rei: queres tu salvar teus irmãos?
PATKULL – Fala.
PAIKEL – A Dieta de Varsóvia declarou vago o trono da Polônia:
e por vontade de Carlos XII elegeu rei a Jaques Sobieski a quem devia pertencer
o trono, se o trono da Polônia fosse hereditário. Jaques Sobieski
e o príncipe Constantino aguardavam com impaciência o mensageiro,
que lhe trouxesse novas da sua eleição. Um dia, quando caçava
nas vizinhanças de Breslau – saíram de emboscada 50 cavaleiro
saxônicos que os prenderam. O chefe dos cavaleiros fui eu – tínhamos
cavalos folgados e de muda; e assim os conduzi a Leipzig antes que em Breslau
corresse a notícia de sua prisão. A Dieta não o pode
declarar incapaz de reinar porque ainda ontem o elegeu – não
o podem destituir, porque nem lhe podem forjar culpas. Outra Dieta poderia
revogar aquela – porém a pertinácia e inflexibilidade
do rei Carlos não o deixarão mudar de propósito. E o
reino ficará sempre nas mãos do rei Augusto. Talvez que Augusto
pretenda fazer as pazes, porque a sua Saxônia também pára
nas mãos o vencedor. Fleming assim mo deu a entender; e eu o creio.
O rei da Suécia tem já parte do seu acampamento dentro do Império;
presume-se que pretende destronar também a casa d’Áustria.
Neste caso uma paz com a Rússia torna-se necessária; no turbilhão
de tantos e tamanhos interesses a Livônia pouco avulta. Talvez por estes
tratados se firme a sua liberdade, se houver um político esperto e
diligente que a defenda; serás tu. – Se falhar a política
– 80.000 homens cobrem as fronteiras da Livônia – poderás
pôr uma contradição a Carlos XII; e será desfeito
o tratado com a Rússia. E então ver-te-ás generalíssimo
de Grão Czar. – 80.000 guerreiros cobrem a Polônia palmo
a palmo, e se vivos não a pudermos defender, nossos cadáveres
formarão uma muralha mais impenetrável que as da China.
PATKULL – Muito bem, Paikel, e agora tenho de me ir apresentar a Carlos
XI como ministro da Livônia? PAIKEL – Não; irás
a Dresde ter com Augusto – como plenipotenciário do Tzar Pedro
– Imperador de todas as Rússias.
PATKULL – E as provas?! PAIKEL – Ei-las – É o diploma
selado com as armas do Império, e do próprio punho do Imperador.
PATKULL – Vamos: será o derradeiro esforço! Far-me-ás
tu um favor? PAIKEL – Fala.
PATKULL – Ficarás aqui com Romhor.
PAIKEL – Patkull.
PATKULL – É um favor, meu amigo, porém que eu só
de ti aceitaria.
PAIKEL – És generoso.
PATKULL – Generoso?! Tu brincas? Se o que ora vou fazer fosse por
ti – seria falta de generosidade pedir como um salário do serviço
não prestado, mas ainda assim eu te pediria o mesmo favor, que em iguais
circunstâncias também to faria.
PAIKEL – Talvez que não! PATKULL – Não mo queres
fazer? PAIKEL – Não te posso dizer que não; mas se houvesse
outro meio…
PATKULL – Já te disse que só de ti a fiava.
PAIKEL – Fico.
PATKULL – Obrigado, meu amigo (Tocando uma campainha. Entra um pajem)
Que é do meu pajem? O PAJEM – Aqui está! PATKULL –
Dize-lhe que o chamo (Continuando. – O pajem sai.) Não me posso
despedir dela, Paikel, que certo não partira – levo rasgado o
coração por ter de a deixar, dize-lhe o porque parti –
que não há perigos, que não há riscos, que breve
serei dela. (Entra WoIf) Wolf, eu parto, não sei quando serei de volta,
tu aqui ficarás.
WOLF – Por que me não levais, Senhor? PATKULL – Fica,
Wolf; para nós ambos é melhor que fiques. – Ficarás
com a Senhora Duquesa, e se alguma novidade ocorrer – que me seja importante
saber – algum infortúnio – alguma fatalidade – virás
ter comigo a Dresde. – Traze o meu manto.
WOLF – Neva muito, Senhor; algum temporal estará próximo
a rebentar porque relampeja para o norte e a noite tornou-se escura e feia.
PATKULL – Não importa, bom pajem (O pajem sai. Ele a Paikel)
Pressinto alguma desgraça, Paikel.
PAIKEL – Não será nada: são saudades que levas,
e que minguarão a distância e o nojo da jornada. (Entra o pajem,
põe o manto) PATKULL – Adeus Wolf – abraça teu amo.
(Wolf chega-se e ele o abraça) Adeus Paikel. (Estende-lhe a mão)
PAIKEL (Vê-o sair – fica um pouco a olhar para a porta que se
tem fechado, olha para a câmara de Romhor – dá dois passos
para ela apertando as mãos contra os peitos) E eu fico.
Ato Segundo
NAMRY ROMHOR BERTHA PAIKEL WOLF Um pajem
A cena se passa no Ducado de Mecklenburg
A mesma sala que a do ato primeiro
CENA I
PAIKEL (Entra) – Ainda a não pude ver um só instante
– ontem passei o dia silencioso e tristonho à espera de mensagem
dela… e esperei debalde: hoje me recusou ela uma entrevista pretextando
incômodo… Hei-de falar-lhe. (Toca a campainha) Abusar assim da confiança
de um amigo, da sua cordialidade e franqueza, é uma infâmia.
– Mas por que me roubou ele o coração de Namry –
por que se veio interpôr no meu caminho? (Entra o pajem) Que me queres?
O PAJEM – Pensei que éreis vós quem chamáveis!
(Indo para sair) Perdoai! PAIKEL – Sim, fui eu: dize-me – poderei
falar à senhora duquesa? O PAJEM – Dizem que amanheceu doente.
PAIKEL – Quanto o ama! (Á parte) E tu, pajem, podes-lhe falar?
O PAJEM – Nada. Senhor, não.
PAIKEL – Quem então? O PAJEM – A sua dama, Senhor.
PAIKEL – E ela?…! O PAJEM – Está também doente.
PAIKEL – Por Deus que é muita moléstia num dia. Pajem,
faze o que quiseres, avém-te lá como puderes – hás-de
fazer chegar aos ouvidos da senhora duquesa que eu tenho que lhe dizer da
parte do senhor Patkull, e que talvez daqui a uma hora já tenha partido.
(Faz-lhe sinal com a mão que saia) Vai bem diverso o tempo de quando
a todos os instantes me esperavam, apesar de estranha vigilância, Namry?!
( Entra Wolf ) WOLF – Senhor Paikel! Senhor Paikel! PAIKEL – Que
tens tu, pajem? WOLF – Notícias de meu amo, mandou-as ainda de
caminho, e que a esta hora estaria em Desdre! PAIKEL – Tu amas muito
meu amo, Wolf! WOLF – Ele também me ama muito!! Ainda pequeno
fiquei sem pai, nem mãe; passou ele acaso por Casimir onde era meu
tio carcereiro da prisão do rei. Ele viu-me e como meu tio de pouco
me poderia servir, cedeu-me ao senhor Patkull que disse me havia de fazer
feliz. Meu bom tio se despediu de mim chorando, porque me amava muito o bom
Sally! Depois desse tempo tenho sempre vivido com ele: se soubésseis
quanto é meu amigo!! Quanto o amo…
PAIKEL – Tens razão, Wolf, ama-o muito e não terás
de que te arrepender. Ele é um amigo que não atraiçoa
o seu amigo, sua palavra é santa e pura. Tu és novo, Wolf, na
tua idade ainda há reconhecimento para um sorriso, e amor para o mimo
que nos mostram. (Entra a duquesa um pouco pálida e vagarosa ) Vai,
bom pajem, logo mais falaremos.
CENA II
NAMRY ROMHOR e PAIKEL
NAMRY – Mandastes-me dizer, Senhor, que tínheis recados para
mim da parte do vosso amigo! PAIKEL – E a não ser isso, não
é verdade que nem sequer uma vez, vos dignaríeis de mostrar-vos
ao vosso hóspede? NAMRY – Ninguém vos mandou aceitar a
sua hospedagem, Senhor.
PAIKEL – Foi a única desculpa que me não veio à
mente. Patkull rir-se-ia se eu lha desse; e eu talvez que outro tanto fizesse
ao sensato que a sonhasse! NAMRY – Nem era mister que lhe désseis
precisamente esta: bastava recusar.
Um pretexto de negócio ou de interesse nunca falta ao homem; é
um motivo que todos compreendem! PAIKEL – Todos! Senhora!! É
certo que não daríeis crédito ao homem que vos dissesse:
interesse e glória tenho eu sacrificado para seguir a ilusão
de um tempo que já passou, memórias de amor correspondido, sonhos
ditosos da infância que o acordar dos anos dissiparam na mulher que
então me amava.
NAMRY – Senhor Paikel! PAIKEL – Quando ele vos dissesse; soube
que estavas presa em novo enleio, e esta certeza não deu quebranto
ao meu amor, não o acreditareis por que não é do interesse
do homem o aviltar-se? NAMRY – Sim.
PAIKEL – Não o acreditaríeis quando ele vos dissesse,
sacrifiquei o meu repouso; vaguei noite e dia ao vento e à chuva –
aos raios do sol e ao frio de inverno para demorar ao menos por um dia um
casamento, que se ia concluir, e roubar-me para todo sempre esperanças
de ventura tão mimosa que a existência me douravam! NAMRY –
Paikel! PAIKEL – Se ele vos dissesse eu tenho um amigo; amava-o como
se ele fora meu irmão, como a mim próprio: Estivesse eu a rezar
sobre o túmulo de meu pai – iria para ele quando a sua voz me
chamasse. Estivesse eu a morrer de fome e de sede – darlhe- ia o único
pedaço de pão que me pudesse aliviar a fome – dar-lhe-ia
a sede de água que me pudesse umedecer as fauces! Eu amava-o; e para
ver a mulher que amava manchei a minha honra, e trai a amizade! Também
o não acreditaríeis, porque a honra e amizade valem mais que
o ouro, mais que o sangue! NAMRY – Se Patkull vos ouvisse!! PAIKEL –
Foi por isso que o mandei para longe. Mas em troco de um momento, que seria
de delícias para ele e nada mais para mim que absinto e fel, dei-lhe
honras e consideração. Eu bem sabia que ele tinha no coração
uma corda inteira, que vibraria a todo o momento como uma harpa vaporosa;
bem sabia eu que o nome da Livônia ainda era para ele mais que um nome.
Vali-me dessa virtude – e em recompensa do amor lhe dei a glória!
Há homens bem afortunados neste mundo; quando a desgraça como
um céu grávido de tempestade paira sobre eles; então
lhes sorri a fortuna mais brilhante, como o raiar de um sol de primavera.
NAMRY – Por que falais assim, Senhor? PAIKEL – Por quê?…
Porque eu não sou desses homens, e no entanto pouco me bastava para
o ser. Porém minhas palavras são um enigma que pareceis não
compreender!… Quem o dissera!… Se algum venerável astrólogo
lesse nos astros tão incrível horóscopo, certo que eu
me rira da sua ciência, e deixaria o velho ausentar-se impune, condoído
de tanta loucura! Hoje não me entendeis, Namry – minhas palavras
ferem os vossos ouvidos como se foram um monumento de pedra, que mas repercutisse
em eco; minha presença vos escandaliza; e para mim até deslembrastes
a polidez com que tratais a todos.
NAMRY – Quereis perder-me, Senhor? PAIKEL – Senhor! Sempre Senhor!
A pouco resumes a tua civilidade, Namry…
Quero-te contar uma história. Havia um duque… não sei onde!
Poderoso e nobre era o duque – cheio de altivez e de orgulho –
porém severo guardador da sua palavra – um pobre cavaleiro amava
a filha do duque, julgando haver na filha tanta religião de palavra,
como no pai: tal não era. Amavam-se ambos! Porém de que vale
o amor quando reina o interesse! Por interesse o duque negou sua filha ao
cavaleiro e a filha chorou porque nesse tempo também o amava. Depois…
familiarizou-se com a sua sorte; pouco a pouco abraçou as opiniões
do pai – e renegou o amante, como o pai tinha rejeitado o amigo. É
bem verdade o que dizeis, Senhora: o interesse é um motivo que todos
compreendem! NAMRY – Não mais – Senhor. – Promessas
da infância, dita-as a imprudência – hoje o dever se opõe
a elas. – Eu não vos iria pedir contas do que houvésseis
feito; não mas vinde também pedir – a mim.
PAIKEL – Não vos peço contas – somente como talvez
seja a última vez que nos veremos – conto-vos uma história
– coisas de que me pareceis esperta – eu vos dizia, Namry, que
a filha do duque e o cavaleiro se amavam. Não se tratavam como nós
por Senhor: esse véu grosseiro de civilidade que não diz amor,
nem gratidão porque indistintamente se confere a todos; tratavam-se
por tu. A filha do duque… não me acorda o seu nome – chamá-la-emos
Namry – Namry, essa moça inocente e pura, que a não acharíeis
mais. O cavaleiro pensava que dificultosamente a possuiria: e em um dia pensando
nisto, chamava-lhe a senhora duquesa – então a pobre moça
chorava e soluçava, que não havia acabar com tais soluços
porque se julgava menos amada.
NAMRY – Por piedade! PAIKEL – Como ela se enganava a si própria!
Criatura inocente? Como a fé do seu coração se debateria
em um caos de sombras e de trevas, se lhe dissessem então que ela um
dia não compreenderia as palavras daquele de quem até adivinhava
os pensamentos! Um caso mal apercebido – um volver de olhos insignificante
– uma flor colhida há pouco – e lançada no meio
duma leiva de flores – uma pegada simples no meio de uma alameda –
tudo tinha um nome – uma significação – uma lembrança.
Acreditareis isto, Namry! NAMRY – Quereis perder-me? PAIKEL –
Perder-vos, Senhora! Brincais comigo! Perder-vos – a mulher sisuda e
grave que lançou o esquecimento sobre o passado, como se lança
uma mortalha sobre as feições decompostas de um cadáver
– a mulher que tem tão gravados na sua consciência seus
deveres de hoje – que nem se lembra dos de ontem!… Perder-vos! Se
outra pessoa me dissesse estas palavras no meio do rumor e do giro de regozijo
e festa, sem dúvida que eu as aceitaria como uma delicada galanteria.
NAMRY – E no entanto tu bem vês que eu luto comigo mesma para
não ceder Não sabes que horrível seria atraiçoar
assim: eu, o esposo tão amante – tu, o amigo tão sincero.
Tem piedade de mim! PAIKEL – E o que pediria a vítima, a quem
o carrasco martirizasse a golpes de mal afiada segure? Em breve te cingirão
os braços do teu esposo, e te esquecerás do malfadado que se
irá por terras de estranhos com a dor no coração –
e as lágrimas nos olhos. E o que pediria eu, Namry? Ainda há
pouco apareceste diante de mim com as sobrancelhas carregadas de increpações,
e me endereçaste palavras de amargor e de cólera que eu duvidei
por um instante, se eu era verdadeiramente Paikel – e tu verdadeiramente
Namry Romhor – e se ambos nós nos tínhamos amado em outros
tempos.
NAMRY – Por Deus, Paikel – que queres tu que eu faça?
PAIKEL – Nada, Namry; não quero nada. E se tu soubesses?… Quando
soube que já me não amavas – quando mais não pude
duvidar – fiquei estúpido e frio como uma rocha batida pelas
vagas – Depois mil pensamentos remoinharam em minha alma; eu me julguei
doido, e a cabeça se me estalava com dores. Quis te ver ainda uma vez,
porque visse se eras tão bela como dantes, do que eu duvidava. Trazia
mil coisas para te dizer – mil palavras de furor e desespero –
de injúria e de insultos – e tudo se acabou quando te avistei.
Se estivéssemos sós, eu me lançaria a teus pés
para te pedir perdão de ter desconfiado de ti e hoje mesmo, ainda o
faria se me não viesse gelar a voz nos lábios com tua voz fria
e grave.
NAMRY – Meu Deus, meu Deus! PAIKEL – Uma palavra só,
e eu me retiro para sempre: Namry, por nosso amor tão formoso de outras
eras – pelo amor que hoje tens se te não acordas do pobre homem
que te adorava com todas as veras do seu coração, Namry, já
me não amas? NAMRY – Por que mo perguntas, Paikel? PAIKEL –
Por Deus – eu to suplico – Dize-me uma palavra só –
e eu me irei, Namry; e nem mais ouvirás falar de mim se notícias
minhas te importunam – não me amas? NAMRY – Mas seria fazer-te
uma confissão! PAIKEL – E é o que te peço –
livra-me desta dúvida que me esmaga o coração: Dize-me
que sim ou que não – pouco será para ti dizeres uma palavra
– só – nada mais que uma palavra. – porque não
me posso persuadir que em tão pouco tempo te esquecesses de tudo. Livra-me
desta incerteza que me endoidece – por quem és – e eu te
beijarei as mãos e os pés – e o sítio em que pisas
– dar-te-ei minha vida se ma pedires, e bendirei o teu nome.
NAMRY – Basta! Basta! Meu amigo. (Abraçando-o) PAIKEL (Apertando-a
nos braços) – Meu amigo! NAMRY – Deixa-me chorar –
deixa-me chorar de prazer nos teus braços, meu Paikel, custava-me tanto
ver-te sofrer! (Abraçados) PAIKEL – Eu bem sabia que tu eras
sempre a minha Namry – e que o meu coração não
me enganava. (Ela tem a cabeça nos ombros dele) NAMRY – Vem gente!
PAIKEL – Não é ninguém – deixa-te estar sobre
o meu coração – deixa-me ver o teu rosto – há
tanto tempo que não via – precisava tanto de ti! Precisava tanto
do teu amor! (Abre-se a porta e aparece Bertha)
CENA III
Paikel tem as costas para a porta da esquerda do espectador, por onde entrou
Bertha – Bertha traz um véu e pára um pouco à porta.
Paikel, que ficou a olhar para o sítio por onde desapareceu Namry,
olha repentinamente para trás – e dá com Bertha.
PAIKEL e BERTHA
BERTHA – Muito sinto de vos ter surpreendido, Senhor! PAIKEL –
Como deveis saber, a casa não é minha – tendes direito
de entrar nela e disto nada estranho. – Mas como agora me parece que
tendes de me falar – dar-me-ia por mui feliz se em alguma coisa vos
pudesse ser agradável.
BERTHA #8211; Obrigadíssimo, Senhor – porém não
vim para vos pedir favores.
PAIKEL – Não tendes que me agradecer, a não ser a minha
boa vontade; e apesar de tudo ser-me-á permitido pedir-vos um favor
com tanta franqueza com quanta recusaste o meu préstimo.
BERTHA – Podeis pedir, Senhor – porém desde já
tende a certeza de que não vô-lo faço.
PAIKEL – E por quê, Senhora? BERTHA – Porque nada me poderia
pedir Paikel que eu lho pudesse fazer.
PAIKEL – Oh! Mas parece que já nos conhecemos.
BERTHA – Tendes tido o cuidado de escrever o vosso nome por tanto
lugar imundo e sórdido, que não é muito que eu vos conheça.
PAIKEL – Perdoai, Senhora – porém para ter tido o meu
nome em tais lugares – seria preciso ter-vos abaixado até eles.
BERTHA – Vós o dizeis, Senhor! (Descobre-se) PAIKEL –
Bertha!!! BERTHA – Já me conheceis, Senhor? Julguei que já
vos teríeis esquecido das minhas feições como já
vos esquecestes da minha voz. Ora pois, agora que me conheceis – dizei-me:
não é verdade que já desci bem baixo, aos mais ínfimos
degraus da sociedade – aos lugares mais torpes e obscenos? Dizei-me!
PAIKEL – Que vieste aqui fazer, Bertha? BERTHA – Essa pergunta
deveria ser a minha; mas… responder-vos-ei; inquiri a vossa consciência
se ainda a tendes, e ela vos dirá o que aqui vim fazer. – Pesai
as vossas intenções, Senhor, e concluireis depois que por amor
de vós e por amor de mim – livrei-vos de ser um infame sedutor
por mais uma vez – e um amigo ingrato e refalsado, se já o não
fostes.
PAIKEL – Quem te disse que eu a queria seduzir, Bertha? BERTHA –
Digo-to eu, Paikel – porque conheço-te mais a ti do que a mim
própria. Digo-to eu, porque sei que o farias de bom grado sem te dares
da mulher que desonravas – sem te dares, nem da sua honra, nem da tua,
porque essa pobre mulher também te ama. E finalmente, Paikel, digo-to
eu porque conheço os teus projetos.
PAIKEL – Bertha, sempre é bem feliz uma mulher com ser fraca,
porque pode impunemente com o que lhe vem à fantasia atirar à
cara de um homem, e insultá-lo como lhe apraz.
BERTHA – É o que eu disse, Paikel – é bem feliz
a mulher; dize, não te parece que é bem feliz quando compra,
como eu comprei, a liberdade de um homem; e quando o insulta, como ora faço?
Dir-te-ei mais, Paikel, mente – quem emprega manhas e artifícios
para enganar a uma mulher – é um embusteiro: – e quem depois
de a ter humilhado a abandona, sem se lhe dar do seu futuro é um cobarde
– um infame.
Oh! Como eu sou bem feliz em te poder lançar em rosto todas estas
baixezas, que fariam corar o mais vil lacaio, e que te não podem fazer
subir a cor às faces! PAIKEL – Já vejo que de propósito
vieste para me insultar.
BERTHA – Já vos disse para o que vim – livrar-vos de
uma infâmia e facilitar vos a reparação de outra.
PAIKEL – Dizei – bem vedes que estou benévolo e tranqüilo,
e que ouvirei paciente de uma senhora tão polida a negra relação
dos meus delitos – sentai-vos! PAIKEL – Então falai breve
– porque me arreceio de que a minha impaciência afugente a minha
civilidade – e neste caso – sentiria não vos poder escutar
até o fim.
BERTHA – Como quiserdes! PAIKEL (Gesto de impaciência) –
Tratarei de vos interrogar, Bertha, a ver se mais depressa nos aviamos. Tereis
a bondade de me informar dos meus projetos? BERTHA – Seria inútil
– porém eu vô-los direi – para vos diminuir a vaidade
de pensardes que ninguém aventa as vossas intenções.
– Não foi por amor da Livônia ou pela glória do
vosso amigo – que o fizestes sair daqui: precisáveis de estar
só para melhor levar ao cabo a vossa empresa e vistes com a máscara
na cara – e o fingimento nos lábios atraiçoar o vosso
amigo, se me não interpusesse entre vós ambos, mais forte do
que a inocência de Romhor, mais vigilante do que a credulidade de Patkull.
PAIKEL – E sem dúvida terei tramado contra ele alguma horrível
emboscada! BERTHA – Que dúvida? PAIKEL – Oh! Meu Deus!
BERTHA – Tremo por alguém. Paikel, quando te sorris para ele
– quando lhe endereças palavras sedutoras, quando espontaneamente
obsequeias. – Armastes ao teu amigo alguma horrível emboscada
– tu o disseste.
PAIKEL – Bertha, Deus te livre de amigos que assim pensem de ti.
BERTHA – Deus me perdoe, se me engano; porque já me tens dado
razões sobejas para duvidar do bem que pareces fazer.
PAIKEL – E não receias que pensem mal de ti, quando pensas
mal de todos? BERTHA – Não. Porque ainda conheço corações
inocentes e virtuosos. Somente agora não sou tão fácil
de enganar, como já o fui em outros tempos: tu bem o sabes, Paikel.
PAIKEL – Bertha, por que havemos de estar assim a estomagar-nos cruelmente
um ao outro? – Eu bem sei que tu tens razão – muita razão
– para me tratares com tanta dureza: eu mesmo me condeno porque baixamente
me portei contigo – portei-me como um peão, como um servo. –
Eu bem o sei, Bertha. Ainda que eu me lançasse de joelhos a teus pés,
não me quererias perdoar, e contudo nunca te deixei de amar, Bertha:
ainda hoje te amo; ainda te amo como sempre; como no dia em que abandonaste
teus pais, teus lares, para seguires o simples cavaleiro Paikel – que
nada mais tinha para te oferecer que o seu amor.
BERTHA – Já uma vez me enganaste! PAIKEL – Não!
Nunca te enganei porque o teu amor ficou sempre comigo. – Crês
tu que um homem possa esquecer momentos tão deleitosos, como os que
eu passei ao teu lado? Esquece-los-ás tu, Bertha? Não, não
os esquecerás porque também eu me não esqueci deles.
Quando o amor é tão ardente e tão profundo como o nosso,
Bertha, dura por toda a vida e o coração não pode amar
duas vezes por igual modo.
BERTHA – Mas tu amas a esta mulher, Paikel.
PAIKEL – Não o creias. É uma distração
– uma ilusão – um passatempo, porém nunca será
o amor. Se tu me amasses ainda? Tu verias se o meu coração se
tem envilecido – Bertha, ainda poderíamos ser felizes como no
tempo em que eu te dizia: eu te amo. – E tu me abraçavas e com
teus lábios, que se sorriam, derramavas sobre os meus um prazer indizível,
inefável, que – que nunca igual experimentei.
BERTHA – Falas tu verdade, Paikel? PAIKEL – Meu Deus, meu Deus
– como te poderei eu persuadir? Dize o que queres tu que eu diga ou
faça, para que me possas acreditar. – Eu o farei, Bertha eu o
direi – oh! Se eu pudesse dizer tudo quanto sinto por ti! – tudo
quanto me enche o coração, e que eu mal posso traduzir –
tu me perdoarias – Bertha, tu me amarias.
BERTHA – E esta mulher? PAIKEL – Já te disse que a não
amo – não amo senão a ti, minha Bertha. – Queres
tu? Deixemos esta casa – esta terra – iremos nós ambos,
nós sozinhos para longe – para muito longe – para a nossa
casinha de Olitta, Bertha; e ali acharemos o prazer que ali deixamos, que
ali nos sorria e o nosso amor tão puro e tão terno.
Tu bem sabes o amor que eu tenho à ciência – o amor da
glória, que me não podia fazer esquecer. – Pois bem –
Bertha – deixar-me-ei das minhas experiências que tanto te assustavam,
e nem me ouvirás falar de alquimia ou de pedra filosofal – Queres
tu? Oh meu Deus, não terás tu unicamente direito ao coração.
– Já me não amas, Bertha? BERTHA – Paikel.
PAIKEL – Fujamos daqui, meu anjo, meu amor; Bertha. (Pegando-!he nas
mãos) Iremos para onde te aprouver – sempre amantes – sempre
unidos, na vida como na morte – Bertha?! BERTHA – Seria verdadeiramente
horrível que me enganasses segunda vez – Paikel! – Eu conheço
que é possível – que um dia o farás talvez. –
Não importa, Paikel; – eu também te amo. (Vai para o abraçar
– ele pega-lhe nas mãos e recua, para que ela o não abrace
e ela cai de joelhos) PAIKEL (A rir-se) – Sois bem difícil de
enganar, Bertha! BERTHA (Com a cara escondida no seio) – Desgraçada
que eu sou! PAIKEL – Desgraçada que tu és, Bertha. –
Vês tu que eu poderia fazer de ti tudo quanto me aprouvesse. –
Vês tu que estás a meus pés como se foras a criminosa.
– Vês tu que eu sei que ainda me amas, e que rejeitei o teu abraço,
como rejeitei o teu amor.
BERTHA (Tapando os olhos) – Paikel! PAIKEL – Desgraçada
mulher, chamaste-me vil – infame – cobarde – chamasteme
que sei – eu… E conclues dizendo – eu te amo: por Deus que é
incrível o teu amor! Amares qualidades tão infames! BERTHA –
Tem piedade de mim! PAIKEL – Não mereces nem amor, nem piedade;
mas terei compaixão de ti, se vir que as tuas faces ainda se não
esqueceram de corar.
BERTHA (Levantando-se resoluta) – Só esta vez, Senhor. –
Não vos falarei agora porque não terei palavras para vos dizer
quanto foi baixo e vergonhoso o modo por que me haveis tratado: – Paikel
– eu era rica e nova – tinha pais que me amavam, teria mil amantes
se os quisesse, e tudo abandonei por amor de ti. – É da tua honra
salvar a mulher que deixaste em tal abandono – queres salvar-me? PAIKEL
– Não.
BERTHA – Paikel, medita bem – tu me desonraste, humilhaste-me
aos olhos de minha própria mãe – tu me seduziste no tempo
em que me chamavas bela. – Esse tempo passou, bem o sei, mas foi o teu
amor fatal quem me pôs a palidez nas faces, e o desespero no coração.
– Fatigado com o meu amor me lançaste no mundo com a fronte cingida
de vergonha e de opróbrio – Paikel! – queres tu salvar-me
desta vergonha e deste opróbrio? PAIKEL – Não.
BERTHA – Se não por amor de mim ao menos por amor de ti. Já
sabes como eu amo – vê se me saberei vingar. – Não
te iludas. – Não creias mais em amor de minha parte porque o
acabaste de assassinar. – Mas, terrível é a vingança
da mulher que nada respeita, e tu nada me deixaste de sagrado. – Não
queres?
PAIKEL – Não.
BERTHA – Paikel, ainda uma vez.
PAIKEL – Não, mil vezes não.
BERTHA – Nada mais tenho que vos dizer, Senhor! (Paikel encara-a um
pouco com ar de triunfo e sai) Como pude eu amar a este homem, meu Deus. Paikel?!
Paikel?! Oh! Que em breve te arrependerás. (Ela pensa um pouco. –
Aparece Wolf) Estou vingada! Wolf.
CENA IV
WOLF e BERTHA
WOLF – Que tens tu? BERTHA – Não me disseste que o Senhor
Patkull te ordenara de o ir avisar se por aqui acontecesse alguma fatalidade?
WOLF – Disse sim, mas que tens tu? BERTHA – Nada, Wolf –
tens de ir ter com teu amo.
WOLF – Eu! BERTHA – Tu, Wolf – porque lhe aconteceu uma
desgraça.
WOLF – Uma desgraça – Bertha? BERTHA – Sim –
Wolf – partirás agora mesmo, sem dizer nada a ninguém,
e dirás ao Senhor Patkull que Romhor o não ama.
WOLF – Quê? BERTHA – Que ama outrem.
WOLF – Ela? BERTHA – E que Paikel é o seu rival.
(Cai o pano)
Ato Terceiro
PERSONAGENS
NAMRY ROMHOR PAIKEL BERTHA UM MENSAGEIRO UMA CRIADA
QUADRO I
A mesma sala que a do ato segundo.
CENA I
NAMRY ROMHOR (Vestida de preto) – Patkull?! Meu Deus, por que o prenderiam?
É uma coisa inaudita, absurda, impossível – um embaixador
de um aliado – um amigo de Augusto!! CRIADA (Entrando) – Senhora,
acaba de chegar um mensageiro que vos pretende falar.
NAMRY – Que entre já – não te demores. (A criada
sai) Ao menos agora saberei alguma coisa com mais certeza. (Entra o mensageiro)
O MENSAGEIRO (Ajoelha-se e beija-lhe a mão) – Saúde e
contentamento à Senhora Duquesa.
NAMRY – Deus te dê saúde e contentamento e eu te darei
o que me pedires e o que eu te puder dar, se me trouxeres notícias
de paz e contentamento.
O MENSAGEIRO – Nem de paz, nem de contentamento. – São
novas de mau agouro, Senhora. – É pesado ouvi-las e triste o
ter de as dizer.
NAMRY – Fala sem receio. É verdade que Patkull foi preso? O
MENSAGEIRO – Sim, Senhora Duquesa.
NAMRY – Está já morto? O MENSAGEIRO – Condenado
à morte.
NAMRY – Condenado à morte! Sabes tu o que dizes, homem? Condenado
à morte!! E por quê? Sabes tu por quê? O MENSAGEIRO –
Não o sei e ninguém o sabe com certeza. – Ele mesmo é
quem o disse – quando o prenderam. O rei Augusto não lhe quis
falar, e ele está na prisão de Roenigstads.
NAMRY – E o rei Augusto? O MENSAGEIRO – Está por ora
em Dresde.
NAMRY – Sabes um caminho seguro e breve.
O MENSAGEIRO – Poderei lá estar em duas jornadas.
NAMRY – Descansa que partiremos ambos.
O MENSAGEIRO – Vós, Senhora? NAMRY – Descansa, e não
haja demora na partida – vai. (Ele sai)
CENA II
NAMRY – Dizem que o rei Augusto é um bom rei – eu lhe
irei falar. – Dizem que é desgraçado? Tanto melhor, que
mais depressa se condoerá de mim – e mandará soltar o
pobre Patkull – que o serviu tantas vezes – de conselhos –
e com o seu braço – Patkull? Por muito tempo me tenho esquecido
dele! Pobre homem – que tanto me amava. (Entra Bertha)
CENA III
BERTA ajoelha-se aos pés de ROMHOR
NAMRY – Que fazes tu, Bertha? BERTHA – Vosso perdão, Senhora.
NAMRY – Sou eu que te falo, Bertha; não me conheces? BERTHA
– Vosso perdão, Senhora.
NAMRY – Ora vamos! Que me poderás ter tu feito, para que me
venhas assim pedir perdão? Levanta-te e eu também te pedirei
perdão porque te chamei minha amiga e por muito tempo me tenho esquecido
de ti… e não só de ti, minha amiga! – Vamos.
BERTHA – Não vos mereço tanta bondade.
NAMRY – Estás-me a inquietar seriamente – que tens tu,
Bertha? BERTHA – Remorsos do que fiz, Senhora.
NAMRY – E é coisa que eu te possa perdoar? Como me poderias
fazer mal? BERTHA – Eu o fiz, Senhora.
NAMRY – Olha – Bertha – talvez que fosse melhor que deixasses
para outra vez o que agora tens para me dizer porque tenho deveres a cumprir
que me chamam longe daqui. – Mas não te posso deixar assim, Bertha
– fala, se o teu perdão depende de mim, estás perdoada
– não tenhas vergonha nem receios, porque bem sabes que eu sou
tua amiga.
BERTHA – Eu amava, Senhora.
NAMRY – Bem o sei.
BERTHA – Oh! Como haveis de me odiar! NAMRY – Sê breve.
BERTHA – Ao vosso amigo.
NAMRY – Bem o sei.
BERTHA – Como! Sabíeis! (Encarando-a e levantando-se) NAMRY
– Sim – era só o que me querias dizer? Estavas com tanto
mistério para nada.
BERTHA – Não era só isto.
NAMRY – Então acaba.
BERTHA – A minha história é longa.
NAMRY – Queres matar-me de impaciência! BERTHA – Sabeis
quem sou eu? NAMRY – Filha não sei donde – educada por
caridade de não sei quem: – e depois.
BERTHA – Não, Senhora. – Nasci feliz e rica. –
Meus pais me amavam – e faziam o que lhes eu pedisse. – Nunca
contei com piedade – porque nunca supus carecer dela. – Então
me apareceu Paikel – e disse que me amava – eu o acreditei enquanto
não fui traída. Finalmente deixou-me só e abandonada.
NAMRY – Que te importa! Crê-me, Bertha, por mais forte que seja
o amor nunca dura por toda a vida. – Esquece-te dele.
BERTHA – Fugi com ele – e por ele abandonei tudo quanto neste
mundo me era mais caro. Abandonei meus pais e minha fortuna – e depois
ele pretextou uma viagem e partiu – nem mais ouvi falar dele.
NAMRY – Falas de Paikel – Bertha? BERTHA – Sozinha e fraca
não tinha meios para ganhar a vida. Lembrei-me de meus pais mas eu
não queria entrar em casa com a vergonha no rosto – e manchar
os últimos instantes de quem me tinha cercado a meninice de tanto amor
e carinhos. Não – eu queria antes morrer do que encontrar meus
olhos com os olhos de meu pai – que morreu de vergonha. Seria longo
dizer-vos os transes que passei – o que eu sofri de baixeza –
de insultos e de orgulho – de homens e mulheres – chorei lágrimas
de desespero quando nem uma esperança me restava sobre a terra –
por acaso encontrei vosso pai, e desde esse momento vos tenho servido.
NAMRY – Falaste a Paikel? BERTHA – Foi generoso em demasia –
ajuntou o insulto ao abandono. – Tentei tudo para o comover, mas nada
achei do que eu buscava. Foi então que para me vingar dele revelei
tudo a Wolf – que já partiu para ir ter com seu amo – e
para lhe contar o vosso amor.
NAMRY – Eu o mereci…! Porque me abaixei a amar esse homem. –
Os homens! Os homens! – Não chores, Bertha – o teu núncio
de mau agouro não dará essas novas porque certamente não
poderá falar com Patkull – que queres tu fazer? BERTHA –
Vingar-me.
NAMRY – Vingar-te! E que ganharás tu com isso? BERTHA –
A vingança.
NAMRY – E podes tu gozá-la? BERTHA – Talvez.
NAMRY – Eu verei se podemos arranjar uma reparação:
vai – faz saber a Paikel que lhe pretendo falar. (Bertha sai) Quem nos
dirá a nós outras pobres mulheres o que se passa no coração
de um homem. – Só palavras têm nos lábios –
palavras que mentem – olhos que mentem, que dizem virtude quando a consciência
diz crime. Os homens! Onde haverá mais falsidade? Eles que são
mais fortes! Empregarem assim mentira! Perpetrarem assim vilezas! (Entra o
mensageiro)
CENA IV
O MENSAGEIRO – Aqui estou, Senhora Duquesa.
NAMRY – Estás pronto? O MENSAGEIRO – Às ordens
da Senhora Duquesa.
NAMRY – E a carruagem? O MENSAGEIRO – Também pronta.
NAMRY – Vai – brevemente serei contigo. (Ele sai) Vejamos se
posso tirar uma boa ação do que a consciência me exprobrava
como um crime – certo que o farei. – Paikel ama-me, ainda há
pouco mo disse. – O amor nada pode recusar, dizem. – Oh! Eu o
farei!! (Entra Paikel)
CENA V
PAIKEL – E o que não farias tu – Namry. – Tudo quanto
cabe nas forças de um homem ele o faria se a tua voz o dissesse –
se teus olhos lho pedissem, se teus lábios lhe sorrissem! NAMRY –
Eu te esperava, Paikel.
PAIKEL – E eu, Namry! Eu aqui vinha a teus pés verificar tamanha
dita, porque acabo de conhecer que realmente me amas – que não
podes estar sem mim, como eu não posso estar sem ti. – E como
no outro tempo – em que te ouvia dizer-me de contínuo: vem –
como agora, Namry – eu vinha cheio de prazer e de contentamento –
para te ver, como agora – para como agora te dizer: eu te amo, Namry.
NAMRY – Paikel, não é verdade que a mentira deslustra
a honra de cavaleiro? PAIKEL – Namry – o homem que mente é
um mau cristão – o cavaleiro que mente é indigno de calçar
esporas de ouro – e de lidar em justas e torneios com o seu nome de
guerra. – Pela fé de um cristão e pela honra de um cavaleiro
– Namry – eu te amo.
NAMRY – Não te recordas, Paikel, de ter dado a tua palavra
a outra – de lhe teres empenhado a tua honra – como ora acabas
de fazer por meu respeito? PAIKEL – Negar-to fora mentir: – Namry
– não há um homem da minha idade que derramando um olhar
sobre o passado não encontre nele um remorso para a sua consciência.
– Isso que dizes – Namry – eu o fiz – e talvez mais
do que uma vez. – Mas – um cavaleiro que mal fez concede reparação
leal e franca, a quem quer que lha peça.
Eu sou cavaleiro, e que o não fosse, Namry – ser-me-ia penoso
ter a consciência de não merecer o teu amor. – Alto soa
o meu nome. – Quem se der por ofendido que venha ter comigo –
e certo que voltará contente e satisfeito. – Tenho mais honra
que dinheiro – mas o sangue e fazendas de Paikel, serão de sobra
para o mais sedento e ambicioso.
NAMRY – E quando forem dívidas que se não pagam nem
com dinheiro, nem com o sangue? PAIKEL – Que Deus se condoa de mim –
porque tudo lhe poderia dar – e lhe daria tudo, menos o meu amor que
não é meu.
NAMRY – Eu cria que o amor era sujeito ao dever.
PAIKEL – Crês tu – Namry! NAMRY – Creio que o cavaleiro
que é o mais forte deve dar exemplo à mulher que é mais
fraca.
PAIKEL – E porque nos vês envergar couraça e saia de
guerra ou – porque nos vês cobertos de aço e ferro –
de aço e ferro, julgas tu que temos os corações? NAMRY
– Julgo-os demasiadamente sensíveis, a serem como o teu. –
Mas dize? Quando uma mulher pode fazer calar o seu amor por que não
poderá um cavaleiro acabar com ele? PAIKEL – Porque ele se esquece
de tudo para pensar nela e ela se lembra de tudo para o esquecer a ele.
NAMRY – Paikel, como se apelida entre vós outros uns cavaleiro
que falta à sua palavra? PAIKEL – Um felão.
NAMRY – E tu queres ser um cavaleiro felão? PAIKEL –
Serei. (Gesto de desprezo de Namry) Serei, Namry, só por teu respeito.
– Ainda quando o arauto me negasse a entrada na liça dos combates
por esta ação – quando todos me repreendessem, não
o deverias tu fazer, Namry – porque é por ti que eu o faço.
Mas não será eterna a exprobração – quando
eu mostrar um dia o que era o meu amor de hoje – o meu amor de sempre:
– meus pares dirão cheios de assombro – só o amor
de Paikel podia vencer a sua honra.
NAMRY – Já que te esqueces de tudo para só te lembrares
de mim – quero corresponder-te por igual modo.
Também me esquecerei de mim para só pensar em ti. –
Tratemos da tua honra, Paikel.
PAIKEL – E desde quando te importas com ela? NAMRY – Desde que
dela te esqueceste. – Há uma mulher a quem chamo minha amiga
– Paikel – bem sabes quanto perdeu por teu respeito – bem
sabes – porque a conheces há mais tempo do que eu; – e
porque ela mesma to disse antes que mo dissesse a mim.
É a primeira coisa que te peço – Paikel – repara
o mal que fizeste, e eu serei contente de mim mesma por ver que amava um homem
que merecia ser amado.
PAIKEL – Não posso.
NAMRY – E porquê? PAIKEL – Porque a sua família
não é nobre.
NAMRY – Devias ver isso quando a desonraste.
PAIKEL – Mas estas alianças sabes, bem o sabes, têm pouco
uso entre nós.
NAMRY – Também entre vós outros é de pouco uso
deixar penhorada a sua palavra.
PAIKEL – Bem o sei. – Mas eu não amo a essa mulher. Inda
há pouco me veio ela injuriar face a face – chamou-me nomes de
desprezo e de injúria, que eu me envergonharia de os repetir. Tivesse
ela um parente que cingisse uma espada – e a esta hora ela não
teria este parente. Não fosse vilania assassiná-la – a
esta hora não terias mais amiga.
NAMRY – Ela te defendeu em minha presença como eu talvez o
não fizesse agora – eram palavras de ciúme que não
mancham porque são filhas do amor.
PAIKEL – A vingança de que um para o outro éramos capazes,
nós a temos praticado. – Insulto por insulto: somos pagos.
NAMRY – Estás pago – e ela punida – muito bem,
Paikel. – Já não restam lembranças de recíprocos
insultos – nada mais terás que objetar.
PAIKEL – Nem ela que me pedir.
NAMRY – Deixemo-nos de razões, Paikel – por esse modo
não posso lutar contigo. Por que me não fazes tu o que eu te
peço? PAIKEL – Porque eu te amo! Namry – porque te amo
de todo o meu coração.
NAMRY – Oh! – Mas seria eu verdadeiramente pobre – roubar
à fortuna da minha criada – pensas em tal, Paikel.
PAIKEL – Da tua criada? NAMRY – Da minha amiga – como
também tu ao teu amigo. Já bastante erramos – é
preciso que ao menos uma vez na vida andemos por caminho seguro e plano. Temos
hoje mais que fazer do que o papel de amantes. – Tu és o cavaleiro
Paikel – que tens um brasão ilustre, um dragão lavrado
em sinople que despedaça uma serpente. – Tens por divisa o valor
pela virtude. Eu sou a Duquesa de Mecklembourg. – Lembremo-nos do que
somos, e façamos o que devemos.
PAIKEL – Pede-me tudo quanto quiseres – Namry – tudo,
e eu farei tudo – mas não me peças que te deixe de amar
porque de certo o não pudera fazer. Eu daria quanto tenho de mais precioso
a quem me reduzisse o meu amor à têmpera do teu – é
um amor brando e fácil que se turva como a mais pequena nuvem, que
mostra mil aspectos, como as asas da borboleta adejando ao sol.
NAMRY – Não mo queres fazer? PAIKEL – Não posso.
NAMRY – Paikel – meu pai dizia que um nobre que se debruça
sobre uma mesa para ter um livro ou pergaminho – era da nação
efeminada dos franceses, que hoje não conta um cavaleiro: que um cavaleiro
que se compraz em rabiscar papel, em vez de manejar a espara, descaía
da sua nobreza – que um cavaleiro que consome dias e noites em busca
de ouro, tinha o gênio de um vilão.
PAIKEL – Teu pai nasceu 200 anos depois de que deveria ter vivido.
NÁMRY – Meu pai era um Duque honrado e nobre – se ele
te dissesse – farei isto; podias dormir descansado como debaixo da folha
da sua espada, porque ele cumpriria a sua promessa sem que fosse mister lembrar-lha.
PAIKEL – Tu me enganaste, Namry – quando me disseste que me
amavas.
NAMRY – Era eu que me enganava a mim própria. Deves confessar
que não posso satisfazer a tudo quanto por mim tens feito.
PAIKEL – Talvez.
NAMRY – Talvez!! Bem – será mais uma dívida, Paikel
– que eu te não poderei pagar. Salva a honra de Bertha –
eu me esquecerei de tudo.
PAIKEL (A rir-se) – Esquecer-te-ás de tudo? Como és
generosa…
NAMRY – E mais do que mereceis, Senhor, sois um infame.
PAIKEL – Namry! NAMRY – Agradeço-vos amor tão
alto. Porém tenho orgulho sobejo para me contentar com os restos de
outra, e não deixei de ser nobre para me casar com um assassino. Destes
a vossa palavra a vossa amante, de que ela seria a vossa esposa – e
ela, porque fiou de vós, serve hoje para ganhar a vida. Destes vossa
palavra ao vosso amigo – e porque ele acreditou na vossa palavra, vai
ser assassinado.
PAIKEL – Patkull? Falas de Patkull? NAMRY – Ide a Romgstads
e lá o vereis subir ao cadafalso que para ele mandastes aparelhar.
PAIKEL – Eu o salvarei, Namry, eu parto já, sem demora.
NAMRY – Fazeis bem, Senhor – porque se ele entrar uma vez nesta
casa, não lhe seria gostoso o encontrar-vos nela; e quando ele não
viesse – não me seria vossa presença muito para desejar.
PAIKEL (Saindo) – Fleming!! Fleming!! Tu mo pagarás, Fleming!
NAMRY – Hipócrita.
Ato Quarto
QUADRO II
Uma sala de palácio em Dresde, uma mesa e cadeiras
CENA I
O REI AUGUSTO e FLEMING
AUGUSTO – O que há de novo, Fleming? FLEMING – Saberá
Vossa Majestade…
AUGUSTO – Já não sou Majestade.
FLEM1NG – Saberá Vossa Alteza que é chegado o correio
que foi de vossa parte dar a Estanislau os parabéns da sua elevação
ao vosso trono da Polônia.
AUGUSTO – Maldito seja ele… Que mais.
FLEMING – O correio de Carlos XII espera a vossa decisão quanto
aos artigos que deveis assinar para o tratado de paz.
AUGUSTO – Lê-os – Fleming – lê-os de novo
que me quero fartar de minha vergonha – lê-os.
FLEMING (Lendo) – Darei paz a Augusto – rei que foi da Polônia
– debaixo das condições seguintes, que serão cumpridas
à risca sem alteração alguma: 1º O Rei Augusto renunciará
ao trono da Polônia – reconhecerá Estanislau por seu legítimo
rei – e prometerá jamais pretender elevar-se ao trono, mesmo
depois da morte de Estanislau.
2º Renunciará a toda aliança com nações
estrangeiras – principalmente com a Rússia.
3º Mandará para o meu campo os príncipes Sobieski –
com uma guarda de honra e todos os prisioneiros que me houver feito.
4º o último. Entregar-me-á todos os desertores que passaram
do meu serviço – e expressamente João Reginoh, Patkull
– e dará anistia a todos que passaram do seu para o meu serviço.
AUGUSTO – Só? FLEMING – Nada mais se contém neste
rascunho que nos mandou o conde Piper.
AUGUSTO – Aceito. – O Rei Carlos é um rei magnânimo
e generoso… Porque me não mandou ir ele à sua presença
descalço com as insígnias reais, com uma corda nos rins, e o
knout nas mãos. Por Deus que eu lhe iria beijar os pés para
envilecer e abaixar esta maldita Polônia, já tão vil e
tão baixa – Polônia! – Povo de escravos orgulhosos
– povo de cobardes – povo lançado no meio da Europa para
ser vendido ao que mais dá e que mais promete – Polônia!
– Folga e ri satisfeita na tua prostituição – enche
o céu com fogos de vista e gritos de alegria – ilumina teus palácios
e habitações de escravos – alegra-te, que em breve gemerás
aflita sob o azorrague da infâmia.
FLEMING – Rei Augusto! AUGUSTO – Não me fales, Fleming
– não – não me fales – ou dá que eu
veja esta Polônia ardendo em fogo, como Sodoma ou Gomorra – Carlos
XII! Quem me dera ter vida para te ver um dia miserável e mendigo,
roído de ambições e de remorsos! – Não –
não serás o único conquistador que avistarás o
destino dos teus. – Por que não lutei até esse tempo?
FLEMING – Perderíeis vosso ducado como perdestes a Polônia.
AUGUSTO – E que me importa a mim um ducado, ou a Polônia? (Entra
um soldado).
O SOLDADO – O Príncipe de Mensicoff deseja falar a Vossa Majestade.
AUGUSTO – Não lhe posso falar.
O SOLDADO – Vem para vos falar a respeito de Patkull.
AUGUSTO – Não ouviste? (Pausa por aIgum tempo) Fleming, que
é feito de Patkull? FLEMING – Foi conduzido de Keenigstadt para
Casimir, e deve ser entregue aos soldados de Carlos XII, segundo a convenção.
AUGUSTO – O César quis saber o que eu fiz do seu plenipotenciário
– e tem razão – que lhe hei-de eu dizer? Ele era o meu
único aliado, o único verdadeiro amigo.
FLEMING – Mas ganhastes a vossa Saxônia.
AUGUSTO – Mas perdi a honra, Fleming. – Se eu tivesse ainda
em meu poder esse homem, a quem agradeço tão mal – oh!
Não sei de certo se o entregaria ainda quando me rendesse o cêntuplo,
do que ora me rende.
FLEMING – E fareis mal.
AUGUSTO – És um bom político, F1eming – porém
tens uma alma bem pequena. – Tens ocasião de te vingar de um
inimigo e pouco te importa que ele seja desgraçado. – Eu estimaria
mais que o defendesses.
FLEMING – Nem que ele fosse meu irmão – pediria eu por
ele quando se trata dos interesses de Vossa Majestade.
AUGUSTO – Escusas lisonjas – vês que sou um rei sem trono
ou Majestade; um poder sem alçada.
FLEMING – Não é lisonja, Senhor – quando vos digo
que a rebelião é um crime – e que um rei nunca deve proteger
um rebelde. – Um duque espanhol jurou ao seu rei que faria queimar seu
palácio se o Duque de Bombonde se demorasse nele por espaço
de uma hora, porque o Duque se tinha rebelado contra o seu rei – Francisco
I. – E o rei louvou a nobreza do vassa1o. – Ora, Patkull é
um rebelde – era um dever real puni-lo – vós o fizestes,
senhor. E nem vos fica menos airoso que a sua morte vos renda um ducado –
que já era vosso, e para mim, o chamais uma vingança, que nunca
tencionei tomar.
AUGUSTO – Seja como dizes. (Faz-lhe sinal com a mão que saia.
Ouvem-se passos) Já devem ser seis horas; para que me pediu uma audiência
a Duquesa de Meklembourg? – Que me pretenderá!! – Veremos.
– Algum capricho de Senhora?! Que importa?! – Não negarei
um favor ao descer do trono à filha de quem era meu amigo, antes que
alguém sonhasse que Augusto seria rei um dia.
Um dia!… O que é um dia? – Às vezes se passam eles
serenos e mansos sem que nem ao menos a sombra de um acontecimento escureça
alguma parte dele. – Outras vezes a vida pende do resultado de um dia,
e a alma tem a vista pregada no que vai acontecer que lhe trará ventura
ou desventura. – É um lago tranqüilo e manso, representando
o azul do céu e das nuvens. São ondas negras e revoltas que
se embatem, que se cruzam, que se repelem mal ditas da esperança. –
E a vida aí está como no aspecto fagueiro ou terrível
da superfície do lago. – Somente a alma guarda mais constantemente
para todo o resto da sua existência neste mundo o que por ela passou
uma vez. – O pesar dura eterno como o seixo lançado na corrente.
– E o prazer também lá permanece, e por vezes se nos acorda
feiticeiro e saudoso – como a imagem da donzela que uma vez topamos
para mais não voltar.
CENA II
Batem. – Ele pára como despertado de seus pensamentos –
e de repente vai à porta – abre e entra Namry Romhor
NAMRY – Senhor! AUGUSTO – Que pretendeis, Senhora? NAMRY –
Falar ao rei Augusto.
AUGUSTO – Sou eu.
NAMRY – Vós? (Como consigo) Parecia-me que a presença
de um rei deveria de ser terrível e majestosa.
AUGUSTO – Nada disso – nem majestosa nem terrível –
porém benevolente quando a vida de um rei se fita num profil gracioso
e belo de formosura como a vossa.
NAMRY – Não mereço que sejais homem para vos abaixar
até mim.
AUGUSTO – Também nós somos homens: – também!
Com diferença de que o coração de um rei parece ter mais
força para a dor e maior espaço para conter lágrimas
que se não podem deslizar impunes pelas faces do monarca – mas
eu já não sou monarca – não, já o não
sou! Podeis falar sem receios. – O Rei Augusto morreu – mas ainda
vive o amigo de vosso pai, Senhora Duquesa.
NAMRY – Não contava com mais esse título para me apresentar
diante de vós, Rei Augusto. – É um bom agouro da minha
boa fortuna. – Recordei-me de que meu pai vos chamava justo e bom –
e eu vim ter convosco fiada na justiça e na bondade que meu pai tanto
exaltava.
AUGUSTO – Não praza a Deus que eu desminta conceito para mim
tão lisonjeiro – podeis falar, Senhora Duquesa.
NAMRY – Meu Deus! Não sei por que me acanho tanto para vos
pedir o que tenho de vos pedir.
AUGUSTO – Quereis muito. (A sorrir-se) NAMRY – Muito! Muito!
AUGUSTO – Oh! Tanto melhor – certo que eu não quisera tão
somente conceder à filha do meu velho amigo o que outro qualquer também
pudesse. – Já não sou rei, Senhora Duquesa, mas ainda
me não esqueci de o ser.
NAMRY – Confio nisso, – e é por isso que vos venho pedir
a liberdade de Patkull.
AUGUSTO – Patkull? Patkull! Que vos importa esse homem? NAMRY –
Peço-vos uma graça, Senhor.
AUGUSTO – Patkull! Vejamos, Senhora Duquesa. –– Eu vos
quisera servir pedi-me qualquer coisa possível, e eu vô-la farei.
– A minha Saxônia é bastante vasta – escolhei uma
cidade – uma vila – um castelo e eu vô-lo darei. –
Vede de Leipzig de Blauzou – de Zillan a Plauen – escolhei o que
quiserdes, – Vistes vós Altenbourg molemente deitada à
margem do seu rio como uma otomana voluptuosa? Gera – a cidade do comércio
e da riqueza. – Leipzig – a cidade das artes e das ciências
– e Plauen – campeando no cimo de uma rocha como um guerreiro
noturno que vigia firmado na sua espada. – Plauen austera e forte como
um castelo esquecido do perpassar dos anos, vigiando a Áustria, sombrio
e grave – tudo – tudo o que vos aprouver não vos ireis
queixosa do rei Augusto que foi amigo de vosso pai.
NAMRY – Não, Senhor – pela melhor das vossas cidades
não vos viera eu importunar – venho pedir-vos a vida de um homem
que não mereceu perdê-la.
AUGUSTO – Quem vos disse que ele o não tinha merecido? NAMRY
– Era vosso, todo vosso – de alma e coração –
ele vos aconselhou como amigo – e vos serviu como escravo.
AUGUSTO – Era um rebelde! NAMRY – Não a vós que
só podeis puni-lo por vos haver bem servido. – Perdoai se vos
falo assim. – Durante o caminho tão breve da minha vida não
pude ainda aprender como se fala aos reis – peço-vos a vida desse
homem – que meu pai me deu por esposo – meu pai era amigo de vós
ambos. Certo que se o pobre velho ainda existisse, ele se curvaria diante
de vós, Senhor – para que lhe désseis a vida do esposo
de sua filha – e o rei Augusto não seria surdo às vozes
do infortúnio. – Senhor, é a vida do meu esposo que vos
peço, que vos peço de joelhos – que vos peço pelo
que há de mais santo, pelo que tendes mais precioso e mais caro.
AUGUSTO – Levantai-vos, Senhora – bem me custa ver-vos assim
a chorar sem poder enxugar vossas lágrimas! NAMRY – Por que o
não podeis, Senhor – é vossa a prisão – é
vosso o carcereiro – os soldados que o guardam são vossos; os
ferros que o prendem são vossos.
– Uma palavra só, e ele será livre e feliz – e
eu agradecida e contente, e vós satisfeito com a ventura que fazeis
nascer. – Como é belo ser rei para fazer o bem, livre e grandemente
– para ter palavras que dão vida e alegria. Meu Deus, como poderia
eu resistir a quem me pedisse a vida de uma criatura? AUGUSTO – Pedi
outra coisa, Senhora Duquesa.
NAMRY – Nada mais, Senhor, nada mais que a vida do meu esposo e sereis
para mim como um Deus. – Que mal vos pode ele fazer? Ele que vos amava
tanto. – Que mal vos pode fazer – ver-nos alegres e felizes –
quando vos devermos alegria e felicidade? AUGUSTO – Não alcançareis
nada, Senhora Duquesa: – quanto vos podia dar, eu vô-lo ofereci
– nada mais tenho que vos sirva.
NAMRY – Senhor, como vos hei-de eu falar para vos mostrar que me podeis
fazer o que vos peço, que mo deveis fazer – Senhor. – Senhor,
não vos incomoda acaso ver em roda de vosso trono um rio de sangue?
– Vós me pareceis tão bom, rei Augusto.
Podereis acaso pensar tranqüilamente de que às tantas um homem
será de menos – e isto porque vós o quisestes –
porque vós mandastes – Senhor? – Tende piedade de mim!
AUGUSTO – Ele tem de ser entregue a Carlos XII.
NAMRY – Por Deus, Senhor – por Deus – não façais
tal – sabeis vós que é um verdadeiro assassinato –
que ele o mataria sem compaixão nem piedade – esse homem de sangue
e de carnagem – vós o não fareis, rei Augusto –
Carlos XII também é vosso inimigo cruel, que vos tem perseguido
e ultrajado vergonhosamente. – Quereis condescender com ele, rei Augusto
– quereis dar-lhe o vosso amigo em recompensa de vos haver roubado a
vossa Polônia. – Vós o não fareis. – E depois
não podeis sem desonra tocar na cabeça de um embaixador. Tencionais
fazê-lo, Rei Augusto.
AUGUSTO – Já vos disse que ele era um rebelde.
NAMRY – Rei Augusto, o que ides fazer era demais para desonrar um
homem.
– É uma coisa verdadeiramente baixa – um rei ser constrangido
por outro rei como um escravo – dois reis que se ligam para perder um
homem. – Não é isto uma coisa vil e infame?! AUGUSTO –
Duquesa, não faleis de razões que mal podeis compreender.
NAMRY – Nada mais vos direi. (Indo para sair.) AUGUSTO – Vejamos,
Duquesa, ainda uma vez, pedi-me uma coisa qualquer que seja e eu vô-la
farei – não, eu não quisera vos fôsseis descontente
comigo.
NAMRY – Deus guarde a Vossa Majestade. (Sai)
CENA III
AUGUSTO (Depois de um momento de silêncio) – Acaso um dia se
levantará a voz da posteridade para dizer que o rei Augusto foi um
traidor e um cobarde – traidor! e cobarde! Fleming? FLEMING –
Senhor! AUGUSTO – Quero que Patkull viva.
FLEMING – Mandai pedir a sua graça a Carlos XII.
AUGUSTO – São 6 horas. – Às 9 um correio pode
estar em Keenigstadt – e Patkull será livre.
FLEMING – Às 8 horas já deverá estar em poder
de Carlos XII.
AUGUSTO – É já tarde. (Caindo numa cadeira)
ATO QUINTO
PERSONAGENS
PATKULL NAMRY UM PADRE SOLDADOS
ATO QUINTO
O mesmo cárcere – e mesmo arranjo de cena.
CENA I
PATKULL – Meu pobre coração?! Eu, mesmo eu, te desconheço
– o que viste tão coitado não são lágrimas
– é fel é sangue! – Meus amores tão lindos,
que são deles?! Que é da amizade tão grande que encerravas?!
De tão nobre sentir o que te resta, meu pobre coração?!
Eu amava!! Amava o meu amigo, a minha amante – e ele vendeu-me –
e ela, meu Deus – e ela?! Era dela meu sangue, meu coração
– minha alma – era dela o pensamento – o prazer –
a tristeza – tudo – só por ela vivia – só
por ela e para ela. – Que lhes fiz eu?! Paikel?! Quê de vezes
me chamaste teu amigo – mentias tu então?! Por que me traíste,
meu Paikel – por quê? Que se me dessem um reino – e agora
mesmo, se me dessem a liberdade – se alguém no mundo me pudesse
dar o engano de outros tempos – a ilusão e brilhantismo do primeiro
amor… para que te eu traísse – talvez – talvez que o
não fizera – e tu?! Mas eu me calarei sobre ti – pobre
amigo que te perdeste e me perdeste contigo. Não inquietarei tua sombra,
Paikel. Os homens te mandaram para Deus – morreste. – Não,
não serei eu que porei na balança da justiça eterna traição
tão feia e má.
Não serei eu – bem que tudo me roubaste – o amor e a
vida – o amor que era o meu paraíso – que era meu tesouro
– tesouro de avarento – tesouro inesgotável de venturas
que ela enfeitava. – E a vida só para a gastar com ela –
só com ela – aos pés dela – para a ver sempre com
um sorriso nos lábios, ou com lágrimas nos olhos – Namry
– bela estrela – farol tão meigo de esperanças –
belo anjo de luz – também tu me pudeste trair – Namry!
A mim que te amava tanto. Oh! Que só por ti me pesa deixar a vida –
que serás tu sem mim? Agora que eu já sinto a morte esvoaçando
sobre a minha cabeça – não me pesa deixar a vida –
mas pesa-me deixar-te a ti que eras meus amores.
– Mas por que choro assim? Não – não saberá
ela que a chorei no agonizar da vida – não saberá que
talvez de mim se rira orgulhosa! Ela a escarnecer-me – a rir-se sobre
o meu sepulcro – a insultar-me no cadafalso – no cavalete, quando
me ralo com dores! Que mais me poderás tu fazer!! Dir-me-ás
talvez que me não amavas. – Demais o sei! Meu Deus! Meu Deus!
(Cai sobre a cadeira) Por que me esqueci eu de meus pais? Certo que a morte
seria então bela, chorada por todo um povo. – E que me importa
um povo!! Loucuras que eu afaguei no entrar da vida – quimeras que se
me esvaem no entrar da morte.
Louco o homem neste mundo que diz na sua consciência: eu salvarei
tal povo.
Louco o homem que diz: eu tenho um amigo – que é meu sangue
– meu corpo.
Louco o homem que diz: eu tenho uma amante pura e bela como um anjo –
uma mulher que é minha alma – louco porque o povo está
embriagado na sua vilania – porque o amigo é falso – porque
a mulher é víbora. – Oh! Não ter alguns dias mais
para assistir tranqüilo ao espetáculo de tanta baixeza –
queria me rir do que se julga um libertador – do que conta com a fé
do amigo – e com o amor da amante. – E que mais merecemos nós
do que desprezo ou riso – crédulos como somos? Não –
mais vale morrer. Depois de tantas esperanças só nos resta a
morte em última recompensa. – Quem me dera morrer – morrer
com dores que me façam esquecer o muito do que eu sofro! Morrer, que
talvez debaixo da lousa fria de um sepulcro não pulse o coração.
CENAII
Abre-se a porta. Aparece um padre.
O PADRE – Senhor.
PATKULL – Benvindo sejas, meu padre.
O PADRE – Como ides?! PATKULL – Mal – muito mal –
porém sinto que serei melhor quando me houverdes falado – porque
se para outro podiam ser fatais palavras – serão para mim de
contentamento.
O PADRE – Presunções do que vive sempre falham, meu
filho, as esperanças mentem, quando se não espera a morte.
PATKULL – Eu a espero, meu padre.
O PADRE – Que esperais? PATKULL – Sim, meu Padre – espero
a morte – espero-a breve – desejo-a como se poderia desejar a
vida. – E que Deus me perdoe esta esperança se resume um pecado.
O PADRE – Muito me apraz encontrar-vos neste estado – o que
sofre encontra a graça do Senhor que só consola àqueles
que o mundo não pode consolar. – Porém se não tendes
apego à vida, também a não aborreceis, que o aborrecimento
é mau conselheiro – como vós, também sofri, também
vaguei no mundo às tontas, e em bem que o conheci – são
mil caminhos enganosos, orlados de flores – banhados de perfumes –
onde contudo crescem cardos e os espinhos brotam; e a ovelha mansa que se
desgarra do rebanho do Senhor – deixa nos cardos e nos espinhos a maior
porção de lã tão alva e fina, e não encontra
o pasto que deseja. – Somos todos nós como a ovelha imprudente
– e porque não trilhamos a senda da verdade – aborrecemos
tudo, bem que de tudo não tenhamos ciência.
Que merece a vida – sonho mais ou menos longo – alegre ou triste
– é como o fumo que um leve sopro do vento espalha nos ares.
PATKULL – Como falais bem, meu Padre.
O PADRE – Talvez vos pese deixar a vida pelo que deixais com ela!
Quem não sente o amor da vida? Quem não sente a amizade? –
E o amor e a amizade são ouropéis quando não manam do
Senhor. Bem felizes aqueles que morrem enganados! – Talvez amastes –
mas o que não sabeis é que a humanidade é frágil,
e os afetos, movediços como a grimpa do campanário.
PATKULL – Tendes razão.
O PADRE – De tudo vos deveis esquecer, para que o Senhor seja convosco.
– Em breve tereis de aparecer na presença de Deus – segundo
o crer dos homens. – Trabalhai pois para que a morte vos não
encontre desprevenido – porque lhe não podeis dizer pára.
– Preparai-vos.
PATKULL – Preparado me achais.
O PADRE – Talvez não tanto como será mister; dir-vos-ei,
por que não fraquieis quando carecerdes de toda a vossa coragem –
vossa morte tem de ser horrível.
PATKULL – Como quiserem.
O PADRE – Cheia de ignomínia PATKULL – Seja.
O PADRE – E de tormentos.
PATKULL – Seja também.
O PADRE – Serão vossos escritos queimados.
PATKULL – Já o foram.
O PADRE – Vosso brasão espedaçado pelo carrasco.
PATKULL – O mais nobre talvez que ele terá espedaçado.
O PADRE – Sereis depois rodado.
PATKULL – Que seja breve.
O PADRE – Não! Querem-vos paciente por muito tempo –
ainda em vida tereis a cabeça despedaçada.
PATKULL – Em bem! Que eu já desesperava de morrer.
O PADRE – Sereis depois esquartejado e vossos membros pendurados nos
quatro pontos da cidade. – Tal é a sentença de Carlos
XII.
PATKULL – Calos XII – Carlos XII. – Oh! Por que me falais
nesse homem? Já que tanto me tenho esquecido ao menos me podereis deixar
morrer sem ouvir pronunciar o seu nome.
O PADRE – Tal ódio às bordas do sepulcro!! PATKULL –
Meu padre, dizei-me: não é verdade que o filho tem dever de
defender a vida do pai? O PADRE – É um dever recíproco
de um para com outro, e do homem para o homem.
PATKULL – Não terá ele direito de vingar sua morte?
O PADRE – Não – que a vingança é do que nega
a Providência.
PATKULL – Crede-o vós? Oh! É porque não sabeis
como acreditais que ele me perdoará nos céus de o ter esquecido
por tanto tempo? O PADRE – Por que não? PATKULL – Oh! Sim,
por que não? Um pai não se esquece de seu filho – e de
mais tenho sofrido para impetrar o seu perdão – sofri muito talvez,
porque de tudo me esqueci para me lembrar só da glória e do
amor. – Oh! Meu padre, que se a vida é fonte de venturas, não
o foi para mim – que só achei tropeços e calamidades.
– E hoje, quando me lanço na história do passado –
não encontro um quadro feliz em toda a existência – que
não tenha o acre do desengano. – Busquei o amor e a glória.
– E o amor traiu-me e enegreceu os últimos instantes da vida
que a glória me faz perder no cadafalso e na vergonha.
O PADRE – Consolai-vos que o sofrer é dos homens – não
se vos dê do passado – melhor para vós se ele foi áspero
e terrível, porque o não chorareis no passar da inquietação
da vida para o sossego do túmulo.
PATKULL – Não serei eu quem a chore! O PADRE – Estais
preparado? PATKULL – Já vô-lo disse.
O PADRE – Então – adeus, meu filho.
PATKULL – Adeus, meu Padre.
O PADRE (Pega-lhe nas mãos) – Bem me custa separar-me de vós
– muito – mas não quis Deus que o homem visse a dor do
seu semelhante sem que despontasse em seus olhos uma lágrima de simpatia.
PATKULL (Abraçando-o) – Bom padre.
O PADRE – Adeus, meu filho. (Vai-se)
CENA III
PATKULL – Bom padre – como se compadeceu de mim? E se ele soubesse
o que encerra este meu peito, se ele o soubesse? Oh! Não derramaria
lágrimas – não – porque lágrimas não
bastam para o que sofro!! E eu morro sozinho e abandonado na morte, como na
vida – Namry!! Sempre este nome; ao menos praza a Deus que dela não
me recorde noutra vida. – Oh! Se ainda a pudesse ver uma vez?! Bem sei
que foi falsa, que me enganou: não virá, não. –
Que lhe importa Patkull que morre, e se alguém chora, certo que não
é por mim.
CENA IV
PATKULL E NAMRY
(PATKULL sentado com as mãos na cabeça. NAMRY entra e vai correndo
para ele. PATKULL desperta, encara-a – fica assentado – e ela
pára.) NAMRY – Sou eu – não me conheces, Patkull
– eles me concederam este momento, para que te eu visse antes da tua
morte!! Não me conheces?! PATKULL – Namry (Abraça-a, beija-a
muitas vezes), tardaste tanto! NAMRY – Quis ver se te salvava.
PATKULL – E eles disseram que tu não me amavas – Namry
– e eu acreditei-os – sim – tu mo perdoarás –
tão boa que tu és – tu te lembraste do pobre homem que
morria, Namry – Oh! Bendita sejas tu – e possas ter na hora da
tua morte a felicidade que me fazes experimentar – meu anjo.
NAMRY – Por que te não pude eu apreciar de mais tempo? PATKULL
– Tu me amas.
NAMRY – Não mereço o teu amor.
PATKULL – Oh! Dizes bem – não respondas – Namry
– não me respondas, que me seria cruel tua resposta: Deixa-me
acreditar que vieste aqui por amor e não por piedade. – Deixa-me
acreditar que foi mentira o que me disseram de ti – deixa-me acreditar
– para que morra consolado.
NAMRY – Por que te matam tão cedo! PATKULL – Não
é cedo, é tarde. – Eu quisera morrer aqui nos teus braços
deixando no teu peito meu último suspiro, e gravando na memória
o teu nome intercortado, que acabar não poderia.
NAMRY – Por que morres agora – ah! Se pudesses viver –
se pudesses viver – Patkull, se o pudesses – então talvez
que eu fizesse esquecer a minha ingratidão doutros tempos e o faria;
dár-te-ia amor – não como o teu que não pudera
– mas alma e coração – eu tos daria e o que fosse
em meu poder fazer-te – para te alegrar a vida e o pensamento –
eu o faria por gratidão, por amor e por mim mesma, Patkull! PATKULL
– Não vês que eu choro?! NAMRY – Choras a vida que
é tanto para ser chorada – quando como a tua se empregou em obras
de merecimento e de virtude.
PATKULL – Não – não choro a vida. – Muitas
vezes me vi no campo da batalha – vi a morte pairar sobre mim em nuvens
de fumo e de pó, calquei meus companheiros ainda quentes – e
não chorei – não choraria a vida – não –
mas choro por te deixar – e conheço todavia que o devo fazer
porque a minha Namry de hoje talvez que amanhã a não encontre.
NAMRY – Sempre eu – sempre a tua Namry – Patkull. –
Tua Namry – desgraçada – que eternamente será viúva
sem nunca ter sido esposa. Também me não pesa de ficar só
– que te não merecera – mas pesa-me deixar-te, Patkull.
PATKULL – Namry.
NAMRY – Meu Patkull! PATKULL – Namry – vive feliz e venturosa
– que eu morro – morro com saudades tuas – e serei feliz
se depois da morte acudirem lembranças do passado por saber que me
choravas depois de morto – por ter visto que choravas a minha morte.
NAMRY – Meu bom Patkull.
PATKULL – Namry – olha, eu tenho um pajem – tu o conheces,
talvez que há pouco com palavras mal pensadas ofendesse o meu pobre
pajem. – Toma-o para te servir – Namry – que é fiel
e honrado – muito me amava e é uma dívida que pagarás
por mim. (NAMRY nos braços dele chora)
CENA V
SOLDADOS e os mesmos
SOLDADO – Temos ordem de vos levar daqui.
NAMRY – Já! Já! Meu Patkull.
PATKULL – Coragem, Namry! NAMRY – Oh! Eu teria coragem –
mas que ao menos por um momento mais me deixassem contigo.
PATKULL – Tem de ser já.
NAMRY – Oh! Como sois cruel – Patkull! – meu Patkull –
meu amigo, tu não me deixarás, não – eu morreria
sem ti.
PATKULL – Namry – meu amor! – meu anjo – deixa-me
partir. (Abraçando-a e beijando-a) O SOLDADO – Diziam-nos que
éreis valente! PATKULL – Não vos mentiram.
O SOLDADO – E chorais! PATKULL – São lágrimas
nascidas de um coração que ama – nunca as derramei no
travado das pelejas, nem ora me oprime – e acabrunha o aspecto da morte!…
O SOLDADO – Apressai-vos. O tempo urge! PATKULL (Abraçando
Namry) – Adeus! Narnry! (Arrancando-se dos braços dela) NAMRY–
Meu Patkull! Ah! (Cai, Patkull retira-se entre os soldados)
(Cai o pano)
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