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Eça de Queiroz
Capítulo I
A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida
na visinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das
Janellas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar
d’este fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão
de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro
andar, e por cima uma timida fila de janellinhas abrigadas à beira
do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residencia Ecclesiastica que competia
a uma edificação do reinado da sr.ª D. Maria I: com uma
sineta e com uma cruz no topo assimilhar-se-hia a um Collegio de Jesuitas.
O nome de Ramalhete provinha de certo d’um revestimento quadrado de azulejos
fazendo painel no logar heraldico do Escudo d’Armas, que nunca chegara a ser
collocado, e representando um grande ramo de girasoes atado por uma fita onde
se distinguiam letras e numeros d’uma data.
Longos annos o Ramalhete permanecera deshabitado, com teias d’aranha pelas
grades dos postigos terreos, e cobrindo-se de tons de ruina. Em 1858 Monsenhor
Buccarini, Nuncio de S. Santidade, visitara-o com idéa d’installar
lá a Nunciatura, seduzido pela gravidade clerical do edificio e pela
paz dormente do bairro: e o interior do casarão agradara-lhe tambem,
com a sua disposição apalaçada, os tectos apainelados,
as paredes cobertas de frescos onde já desmaiavam as rosas das grinaldas
e as faces dos Cupidinhos. Mas Monsenhor, com os seus habitos de rico prelado
romano, necessitava na sua vivenda os arvoredos e as agoas d’um jardim de
luxo: e o Ramalhete possuia apenas, ao fundo dum terraço de tijolo,
um pobre quintal inculto, abandonado ás hervas bravas, com um cypreste,
um cedro, uma cascatasinha secca, um tanque entulhado, e uma estatua de marmore
(onde Monsenhor reconheceu logo Venus Citherêa) ennegrecendo a um canto
na lenta humidade das ramagens silvestres. Além d’isso, a renda que
pedio o velho Villaça, procurador dos Maias, pareceu tão exagerada
a Monsenhor, que lhe perguntou sorrindo se ainda julgava a Egreja nos tempos
de Leão X. Villaça respondeu – que tambem a nobreza não
estava nos tempos do sr. D. João V. E o Ramalhete, continuou deshabitado.
Este inutil pardieiro (como lhe chamava Villaça Junior, agora por morte
de seu pae administrador dos Maias) só veio a servir, nos fins de 1870,
para lá se arrecadarem as mobilias e as louças provenientes
do palacete de familia em Bemfica, morada quasi historica, que, depois de
andar annos em praça, fôra então comprada por um commendador
brazileiro. N’essa occasião vendera-se outra propriedade dos Maias,
a Tojeira; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias,
e sabiam que desde a Regeneração elles viviam retirados na sua
quinta de Santa Olavia, nas margens do Douro, tinham perguntado a Villaça
se essa gente estava atrapalhada.
– Ainda teem um pedaço de pão, disse Villaça sorrindo,
e a manteiga para lhe barrar por cima. Os Maias eram uma antiga familia da
Beira, sempre pouco numerosa, sem linhas collateraes, sem parentellas – e
agora reduzida a dois varões, o senhor da casa, Affonso da Maia, um
velho já, quasi um antepassado, mais edoso que o seculo, e seu neto
Carlos que estudava medicina em Coimbra. Quando Affonso se retirara definitivamente
para Santa Olavia, o rendimento da casa excedia já cincoenta mil cruzados:
mas desde então tinham-se accumulado as economias de vinte annos de
aldêa; viera tambem a herança d’um ultimo parente, Sebastião
da Maia, que desde 1830 vivia em Napoles, só, occupando-se de numismatica;
– e o procurador podia certamente sorrir com segurança quando fallava
dos Maias e da sua fatia de pão.
A venda da Tojeira fôra realmente aconselhada por Villaça: mas
nunca elle approvara que Affonso se desfizesse de Bemfica – só pela
rasão d’aquelles muros terem visto tantos desgostos domesticos. Isso,
como dizia Villaça, acontecia a todos os muros. O resultado era que
os Maias, com o Ramalhete inhabitavel, não possuiam agora uma casa
em Lisboa; e se Affonso n’aquella edade amava o socego de Santa Olavia, seu
neto, rapaz de gosto e de luxo que passava as ferias em Paris e Londres, não
quereria, depois de formado, ir sepultar-se nos penhascos do Douro. E com
effeito, mezes antes de elle deixar Coimbra, Affonso assombrou Villaça
annunciando-lhe que decidira vir habitar o Ramalhete! O procurador compoz
logo um relatorio a enumerar os inconvenientes do casarão: o maior
era necessitar tantas obras e tantas despezas; depois, a falta d’um jardim
devia ser muito sensivel a quem sahia dos arvoredos de Santa Olavia; e por
fim alludia mesmo a uma lenda, segundo a qual eram sempre fataes aos Maias
as paredes do Ramalhete, «ainda que (acrescentava elle n’uma phrase
meditada) até me envergonho de mencionar taes frioleiras n’este seculo
de Voltaire, Guisot e outros philosophos liberaes … »
Affonso riu muito da phrase, e respondeu que aquellas razões eram
excellentes – mas elle desejava habitar sob tectos tradiccionalmente seus;
se eram necessarias obras, que se fizessem e largamente; e emquanto a lendas
e agoiros, bastaria abrir de par em par as janellas e deixar entrar o sol.
S. ex.ª mandava: – e, como esse inverno ia secco, as obras começaram
logo, sob a direcção d’um Esteves, architecto, politico, e compadre
de Villaça. Este artista enthusiasmára o procurador com um projecto
de escada apparatosa, flanqueada por duas figuras symbolisando as conquistas
da Guiné e da India. E estava ideando tambem uma cascata de louça
na sala de jantar – quando, inesperadamente, Carlos appareceu em Lisboa com
um architecto-decorador de Londres, e, depois de estudar com elle á
pressa algumas ornamentações e alguns tons de estofos, entregou-lhe
as quatro paredes do Ramalhete, para elle ali crear, exercendo o seu gosto,
um interior confortavel, de luxo intelligente e sobrio.
Villaça resentiu amargamente esta desconsideração pelo
artista nacional; Esteves foi berrar ao seu Centro politico que isto era um
paiz perdido. E Affonso lamentou tambem que se tivesse despedido o Esteves,
exigiu mesmo que o encarregassem da construcção das cocheiras.
O artista ia acceitar – quando foi nomeado governador civil.
Ao fim d’um anno, durante o qual Carlos viera frequentemente a Lisboa collaborar
nos trabalhos, «dar os seus retoques estheticos» – do antigo Ramalhete
só restava a fachada tristonha, que Affonso não quizera alterada
por constituir a phisionomia da casa. E Villaça não duvidou
declarar que Jones Bule (como elle chamava ao inglez) sem despender despropositadamente,
aproveitando até as antigualhas de Bemfica, fizera do Ramalhete um
museu.
O que surprehendia logo era o pateo, outr’ora tão lobrego, nú,
lageado de pedregulho – agora resplandecente, com um pavimento quadrilhado
de marmores brancos e vermelhos, plantas decorativas, vazos de Quimper, e
dois longos bancos feudaes que Carlos trouxera de Hespanha, trabalhados em
talha, solemnes como córos de cathedral. Em cima, na antecamara, revestida
como uma tenda de estofos do Oriente, todo o rumor de passos morria: e ornavam-n’a
divans cobertos de tapetes persas, largos pratos mouriscos com reflexos metalicos
de cobre, uma harmonia de tons severos, onde destacava, na brancura immaculada
do marmore, uma figura de rapariga friorenta, arripiando-se, rindo, ao metter
o pésinho n’agoa. D’ahi partia um amplo corredor, ornado com as peças
ricas de Bemfica, arcas gothicas, jarrões da India, e antigos quadros
devotos. As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria. No salão
nobre, raramente usado, todo em brocados de velludo côr de musgo d’outono,
havia uma bella téla de Constable, o retrato da sogra de Affonso, a
condessa de Runa, de tricorne de plumas e vestido escarlate de caçadora
ingleza, sobre um fundo de paisagem enevoada. Uma sala mais pequena, ao lado,
onde se fazia musica, tinha um ar de seculo XVIII com seus moveis enramelhetados
d’ouro, as suas sedas de ramagens brilhantes: duas tapeçarias de Gobelins,
desmaiadas, em tons cinzentos, cobriam as paredes de pastores e d’arvoredos.
Defronte era o bilhar, forrado d’um couro moderno trazido por Jones Bule,
onde, por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, esvoaçavam cegonhas
prateadas. E, ao lado, achava-se o fumoir, a sala mais commoda do Ramalhete:
as ottomanas tinham a fôfa vastidão de leitos; e o conchego quente,
e um pouco sombrio dos estofos escarlates e pretos era alegrado pelas cores
cantantes de velhas faienças hollandezas.
Ao fundo do corredor ficava o escriptorio de Affonso, revestido de damascos
vermelhos como uma velha camara de prelado. A macissa meza de pau preto, as
estantes baixas de carvalho lavrado, o solemne luxo das encadernações,
tudo tinha ali uma feição austera de paz estudiosa – realçada
ainda por um quadro attribuido a Rubens, antiga reliquia da casa, um Christo
na Cruz, destacando a sua nudez de athleta sobre um ceu de poente revolto
e rubro. Ao lado do fogão Carlos arranjara um canto para o avô
com um biombo japonez bordado a ouro, uma pelle d’urso branco, e uma veneravel
cadeira de braços, cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos
Maias no desmaio da trama de sêda.
No corredor do segundo andar, guarnecido com retratos de farmlia, estavam
os quartos de Affonso. Carlos despozera os seus, n’um angulo da casa, com
uma entrada particular, e janellas sobre o jardim: eram tres gabinetes a seguir,
sem portas, unidos pelo mesmo tapete: e, os recostos acolchoados, a sêda
que forrava as paredes, faziam dizer ao Villaça que aquillo não
eram aposentos de medico – mas de dançarina!
A casa, depois de arranjada, ficou vazia emquanto Carlos, já formado,
fazia uma longa viagem pela Europa; – e foi só nas vesperas da sua
chegada, n’esse lindo outono de 1875, que Affonso se resolveu emfim a deixar
Santa Olavia e vir installar-se no Ramalhete. Havia vinte e cinco annos que
elle não via Lisboa; e, ao fim de alguns curtos dias, confessou ao
Villaça que estava suspirando outra vez pelas suas sombras de Santa
Olavia. Mas, que remedio! Não queria viver muito separado do neto;
e Carlos agora, com idéas sérias de carreira activa, devia necessariamente
habitar Lisboa… De resto, não desgostava do Ramalhete, apezar de
Carlos, com o seu fervor pelo luxo dos climas frios, ter prodigalisado de
mais as tapeçarias, os pesados reposteiros, e os velludos. Agradava-lhe
tambem muito a visinhança, aquela dôce quietação
de suburbio adormecido ao sol. E gostava até do seu quintalejo. Não
era de certo o jardim de Santa Olavia: mas tinha o ar sympathico, com os seus
girasoes perfilados ao pé dos degraus do terraço, o cypreste
e o cedro envelhecendo juntos como dois amigos tristes, e a Venus Cytherêa
parecendo agora, no seu tom claro de estatua de parque, ter chegado de Versalhes,
do fundo do grande seculo… E desde que a agoa abundava, a cascatasinha era
deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus tres pedregulhos arranjados
em despenhadeiro bucolico, melancolisando aquelle fundo de quintal soalheiro
com um pranto de nayade domestica, esfiado gota a gota na bacia de marmore.
O que desconsolara Affonso, ao principio, fôra a vista do terraço
– d’onde outr’ora, de certo, se abrangia até ao mar. Mas as casas edificadas
em redor, nos ultimos annos, tinham tapado esse horizonte explendido. Agora,
uma estreita tira de agoa e monte que se avistava entre dois predios de cinco
andares, separados por um córte de rua, formava toda a paizagem defronte
do Ramalhete. E, todavia, Affonso terminou por lhe descobrir um encanto intimo.
Era como uma téla marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa
do céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedades infinitas
de côr e luz, os episodios fugitivos d’uma pacata vida de rio: ás
vezes uma véla de barco da Trafaria fugindo airosamente á bolina;
outras vezes uma galera toda em panno, entrando n’um favor da aragem, vagarosa,
no vermelho da tarde; ou então a melancolia d’um grande paquete, descendo,
fechado e preparado para a vaga, entrevisto um momento, desapparecendo logo,
como já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pó
d’ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraçado inglez…
E sempre ao fundo o pedaço de monte verde-negro, com um moinho parado
no alto, e duas casas brancas ao rez d’agoa, cheias de expressão –
ora faiscantes e despedindo raios das vidraças accezas em braza; ora
tomando aos fins de tarde um ar pensativo, cobertas dos rosados tenros de
poente, quasi similhantes a um rubor humano; e d’uma tristeza arripiada nos
dias de chuva, tão sós, tão brancas, como nuas, sob o
tempo agreste.
O terraço communicava por tres portas envidraçadas com o escriptorio
– e foi n’essa bella camara de prelado que Affonso se acostumou logo a passar
os seus dias, no recanto aconchegado que o neto lhe preparara ternamente,
ao lado do fogão. A sua longa residencia em Inglaterra dera-lhe o amor
dos suaves vagares junto do lume. Em Santa Olavia as chaminés ficavam
accezas até Abril; depois ornavam-se de braçadas de flôres,
como um altar domestico; e era ainda ahi, n’esse aroma e n’essa frescura,
que elle gozava melhor o seu cachimbo, o seu Tacito, ou o seu querido Rabelais.
Todavia, Affonso ainda ia longe, como elle dizia, de ser um velho borralheiro.
N’aquella edade, de verão ou de inverno, ao romper do sol, estava a
pé, sahindo logo para a quinta, depois da sua boa oração
da manhã que era um grande mergulho na agoa fria. Sempre tivera o amor
supersticioso da agoa; e costumava dizer que nada havia melhor para o homem
– que sabor d’agoa, som d’agoa, e vista d’agoa. O que o prendera mais a Santa
Olavia fôra a sua grande riqueza d’agoas vivas, nascentes, repuxos,
tranquillo espelhar d’agoas paradas, fresco murmurio de agoas regantes…
E a esta viva tonificação da agoa attribuia elle o ter vindo
assim, desde o começo do seculo, sem uma dôr e sem uma doença,
mantendo a rica tradição de saude da sua familia, duro, resistente
aos desgostos e annos – que passavam por elle, tão em vão, como
passavam em vão, pelos seus robles de Santa Olavia, annos e vendavaes.
Affonso era um pouco baixo, macisso, de hombros quadrados e fortes: e com
a sua face larga de nariz aquilino, a pelle córada, quasi vermelha,
o cabello branco todo cortado á escovinha, e a barba de neve aguda
e longa – lembrava, como dizia Carlos, um varão esforçado das
edades heroicas, um D. Duarte de Menezes ou um Affonso d’Albuquerque. E isto
fazia sorrir o velho, recordar ao neto, gracejando, quanto as apparencias
illudem!
Não, não era Menezes, nem Albuquerque; apenas um antepassado
bonacheirão que amava os seus livros, o conchego da sua poltrona, o
seu whist ao canto do fogão. Elle mesmo costumava dizer, que era simplesmente
um egoista: – mas nunca, como agora na velhice, as generosidades do seu coração
tinham sido tão profundas e largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe
por entre os dedos, esparsamente, n’uma caridade enternecida. Cada vez amava
mais o que é pobre e o que é fraco. Em Santa Olavia, as creanças
corriam para elle, dos portaes, sentindo-o acariciador e paciente. Tudo o
que vive lhe merecia amor: – e era dos que não pisam um formigueiro,
e se compadece da sêde d’uma planta.
Villaça costumava dizer que lhe lembrava sempre o que se conta dos
patriarchas, quando o vinha encontrar ao canto da chaminé, na sua coçada
quinzena de velludilho, sereno, risonho, com um livro na mão, o seu
velho gato aos pés. Este pesado e enorme angorá, branco com
malhas louras, era agora (desde a morte de Tobias, o soberbo cão de
S. Bernardo) o fiel companheiro de Affonso. Tinha nascido em Santa Olavia,
e recebera então o nome de Bonifacio: depois, ao chegar á edade
do amor e da caça fora-lhe dado o appellido mais cavalheiresco de D.
Bonifacio de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente
no remanso das dignidades ecclesiasticas, e era o Reverendo Bonifacio…
Esta existencia nem sempre assim correra com a tranquillidade larga e clara
d’um bello rio de verão. O antepassado, cujos olhos se enchiam agora
d’uma luz de ternura diante das suas rosas, e que ao canto do lume relia com
gosto o seu Guisot, fôra, na opinião de seu pae, algum tempo,
o mais feroz Jacobino de Portugal! E todavia, o furor revolucionario do pobre
moço consistira em lêr Rousseau, Volney, Helvetius, e a Encyclopedia;
em atirar foguetes de lagrimas á Constituição; e ir,
de chapeu á liberal e alta gravata azul, recitando pelas lojas maçonicas
Odes abominaveis ao Supremo Architecto do Universo. Isto, porém, bastára
para indignar o pae. Caetano da Maia era um portuguez antigo e fiel que se
benzia ao nome de Robespierre, e que, na sua apathia de fidalgo beato e doente,
tinha só um sentimento vivo – o horror, o odio ao Jacobino, aquem attribuia
todos os males, os da patria e os seus, desde a perda das colonias até
ás crises da sua gota. Para extirpar da nação o Jacobino,
déra elle o seu amor ao sr. infante D. Miguel, Messias forte e Restaurador
providencial… E ter justamente por filho um Jacobino, parecia-lhe uma provação
comparavel só ás de Job!
Ao principio, na esperança que o menino se emendasse, contentou-se
em lhe mostrar um carão severo e chamar-lhe com sarcasmo – cidadão!
Mas quando soube que seu filho, o seu herdeiro, se misturara á turba
que, n’uma noite de festa civica e de luminarias, tinha apedrejado as vidraças
apagadas do sr. Legado d’Áustria, enviado da Santa Alliança
– considerou o rapaz um Marat e toda a sua colera rompeu. A gota cruel, cravando-o
na poltrona, não lhe deixou espancar o mação, com a sua
bengala da India, á lei de bom pae portuguez: mas decidiu expulsal-o
de sua casa, sem mezada e sem benção, renegado como um bastardo!
Que aquelle pedreiro livre não podia ser do seu sangue!
As lagrimas da mamã amolleceram-n’o; sobretudo as razões d’uma
cunhada de sua mulher, que vivia com elles em Bemfica, senhora irlandeza de
alta instrucção, Minerva respeitada e tutelar, que ensinara
inglez ao menino e o adorava como um bébé. Caetano da Maia limitou-se
a desterrar o filho para a quinta de Santa Olavia; mas não cessou de
chorar no seio dos padres, que vinham a Bemfica, a desgraça da sua
casa. E esses santos lá o consolavam, affirmando-lhe que Deus, o velho
Deus d’Ourique, não permittiria jámais que um Maia pactuasse
com Belzebut e com a Revolução! E, á falta de Deus Padre,
lá estava Nossa Senhora da Soledade, padroeira da casa e madrinha do
menino, para fazer o bom milagre.
E o milagre fez-se. Mezes depois, o Jacobino, o Marat, voltava de Santa Olavia
um pouco contricto, enfastiado sobretudo d’aquella solidão, onde os
chás do brigadeiro Senna eram ainda mais tristes que o terço
das primas Cunhas. Vinha pedir ao pae a benção, e alguns mil
cruzados, para ir a Inglaterra, esse paiz de vivos prados e de cabellos d’ouro
de que lhe fallara tanto a tia Fanny. O pae beijou-o, todo em lagrimas, accedeu
a tudo fervorosamente, vendo ali a evidente, a gloriosa intercessão
de Nossa Senhora da Soledade! E o mesmo Frei Jeronymo da Conceição
seu confessor, declarou este milagre – não inferior ao de Carnaxide.
Affonso partiu. Era na primavera – e a Inglaterra toda verde, os seus parques
de luxo, os copiosos confortos, a harmonia penetrante dos seus nobres costumes,
aquella raça tão séria e tão forte – encantaram-n’o.
Bem depressa esqueceu o seu odio aos sorumbaticos padres da Congregação,
as horas ardentes passadas no café dos Romulares a recitar Mirabeau,
e a Republica que quizera fundar, classica e voltarianna, com um triumvirato
de Scipiões e festas ao Ente Supremo. Durante os dias da Abrilada estava
elle nas corridas d’Epsom, no alto d’uma sege de posta, com um grande nariz
postiço, dando hurrahs medonhos – bem indifferente aos seus irmãos
de Maçonaria, que a essas horas o sr. infante espicaçava a chuço,
pelas viellas do Bairro Alto, no seu rijo cavallo d’Alter.
Seu pae morreu de subito, elle teve de regressar a Lisboa. Foi então
que conheceu D. Maria Eduarda Runa, filha do conde de Runa, uma linda morena,
mimosa e um pouco adoentada. Ao fim do luto casou com ella. Teve um filho,
desejou outros; e começou logo, com bellas idéas de patriarcha
moço, a fazer obras no palacete de Bemfica, a plantar em redor arvoredos,
preparando tectos e sombras á descendencia amada que lhe encantaria
a velhice.
Mas não esquecia a Inglaterra: – e tornava-lh’a mais appetecida essa
Lisboa miguelista que elle via, desordenada como uma Tunis barbaresca; essa
rude conjuração apostolica de frades e bolieiros, atroando tavernas
e capellas; essa plebe beata, suja e feroz, rolando do lausperenne para o
curro, e anciando tumultuosamente pelo principe que lhe encarnava tão
bem os vicios e as paixões…
Este espectaculo indignava Affonso da Maia; e muitas vezes, na paz do serão,
entre amigos, com o pequeno nos joelhos, exprimiu a indignação
da sua alma honesta. Já não exigia de certo, como em rapaz,
uma Lisboa de Catões e de Mucios-Scevolas. Já admittia mesmo
o esforço d’uma nobreza para manter o seu privilegio historico; mas
então queria uma nobreza intelligente e digna, como a Aristocracia
tory (que o seu amor pela Inglaterra lhe fazia idealisar), dando em tudo a
direcção moral, formando os costumes e inspirando a litteratura,
vivendo com fausto e fallando com gosto, exemplo de idéas altas e espelho
de maneiras patricias… O que não tolerava era o mundo de Queluz,
bestial e sordido.
Taes palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E quando se reuniram as côrtes
geraes, a policia invadiu Bemfica, «a procurar papeis e almas escondidas.»
Affonso da Maia, com o seu filho nos braços e a mulher tremendo ao
lado – viu, impassivelmente e sem uma palavra, a busca, as gavetas arrombadas
pela coronha das escopetas, as mãos sujas do malsim rebuscando os colxões
do seu leito. O sr. juiz de fóra não descobriu nada: acceitou
mesmo na copa um calice de vinho, e confessou ao mordomo «que os tempos
iam bem duros…» Desde essa manhã as janellas do palacete conservaram-se
cerradas; não se abriu mais o portão nobre para sahir o coche
da senhora; e d’ahi a semanas, com a mulher e com o filho, Affonso da Maia
partia para Inglaterra e para o exilio.
Ahi installou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredores de Londres,
junto a Richmond, ao fundo d’um parque, entre as suaves e calmas paisagens
de Surrey.
Os seus bens, graças ao credito do conde de Runa, antigo mimoso de
D. Carlota Joaquina, hoje conselheiro rispido do sr. D. Miguel, não
tinham sido confiscados; e Affonso da Maia podia viver largamente.
Ao principio os emigrados liberaes, Palmella e a gente do Belfast, ainda
o vieram desassocegar e consumir. A sua alma recta não tardou a protestar
vendo a separação de castas, de gerarchias, mantidas ali na
terra estranha entre os vencidos da mesma idéa – os fidalgos e os desembargadores
vivendo no luxo de Londres á forra, e a plebe, o exercito, depois dos
padecimentos da Galliza, succumbindo agora á fome, á vermina,
á febre nos barracões de Plymouth. Teve logo conflictos com
os chefes liberaes; foi accusado de vintista e demagogo; descreu por fim do
liberalismo. Isolou-se então – sem fechar todavia a sua bolsa, d’onde
sahiam ás cincoenta, ás cem moedas… Mas quando a primeira
expedição partiu, e pouco a pouco se foram vasando os depositos
de emigrados, respirou emfim – e, como elle disse, pela primeira vez lhe soube
bem o ar d’Inglaterra!
Mezes depois sua mãe, que ficara em Bemfica, morria d’uma apoplexia:
e a tia Fanny veiu para Richmond completar a felicidade d’Affonso, com o seu
claro juizo, os seus caracóes brancos, os seus modos de discreta Minerva.
Alli estava elle pois no seu sonho, numa digna residência ingleza, entre
arvores seculares, vendo em redor nas vastas relvas dormirem ou pastarem os
gados de luxo, e sentindo em torno de si tudo são, forte, livre e solido,
– como o amava o seu coração.
Teve relações; estudou a nobre e rica litteratura ingleza; interessou-se,
como convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela cultura, pela cria dos cavallos,
pela pratica da caridade; – e pensava com prazer em ficar ali para sempre
n’aquella paz e n’aquella ordem.
Sómente Affonso sentia que sua mulher não era feliz. Pensativa
e triste, tossia sempre pelas salas. Á noite sentava-se ao fogão,
suspirava e ficava calada…
Pobre senhora! a nostalgia do paiz, da parentella, das egrejas, ia-a minando.
Verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar e sorrindo pallidamente,
tinha vivido desde que chegara n’um odio surdo áquella terra d’herejes
e ao seu idioma barbaro: sempre arripiada, abafada em pelles, olhando com
pavor os ceus fuscos ou a neve nas arvores, o seu coração não
estivera nunca alli, mas longe, em Lisboa, nos adros, nos bairros batidos
do sol. A sua devoção (a devoção dos Runas!) sempre
grande, exaltara-se, exacerbara-se áquella hostilidade ambiente que
ella sentia em redor contra os «papistas». E só se satisfazia
á noite, indo refugiar-se no sotão com as creadas portuguezas,
para resar o terço agachada n’uma esteira – gosando ali, n’esse murmurio
d’ave-marias em paiz protestante, o encanto de uma conjuração
catholica!
Odiando tudo o que era inglez, não consentira que seu filho, o Pedrinho,
fosse estudar ao collegio de Richmond. Debalde Affonso lhe provou que era
um collegio catholico! Não queria: aquelle catholicismo sem romarias,
sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades
nas ruas – não lhe parecia a religião. A alma do seu Pedrinho
não abandonaria ella á heresia; – e para o educar mandou vir
de Lisboa o padre Vasques, capellão do Conde de Runa.
O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a cartilha:
e a face d’Affonso da Maia cobria-se de tristeza, quando ao voltar d’alguma
caçada ou das ruas de Londres, d’entre o forte rumor da vida livre
– ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo, perguntando como
do fundo d’uma treva:
– Quantos são os inimigos da alma?
E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:
-Tres. Mundo, Diabo e Carne…
Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia alli o reverendo Vasques,
obeso e sordido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do
rapé sobre o joelho…
Ás vezes Affonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina,
agarrava a mão do Pedrinho – para o levar, correr com elle sob as arvores
do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha.
Mas a mamã accudia de dentro, em terror, a abafal-o n’uma grande manta:
depois lá fóra o menino, acostumado ao collo das creadas e aos
recantos estofados, tinha medo do vento e das arvores: e pouco a pouco, n’um
passo desconsolado, os dois iam pisando em silencio as folhas seccas – o filho
todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pae vergando os hombros pensativo,
triste d’aquella fraqueza do filho…
Mas o menor esforço d’elle para arrancar o rapaz áquelles braços
de mãe que o amolleciam, áquella cartilha mortal do padre Vasques
– trazia logo á delicada senhora accessos de febre. E Affonso não
se atrevia já a contrariar a pobre doente, tão virtuosa, e que
o amava tanto! Ia então lamentar-se para o pé da tia Fanny:
a sabia irlandeza mettia os oculos entre as folhas do seu livro, tratado d’Addisson
ou poema de Pope, e encolhia melancolicamente os hombros. Que podia ella fazer!…
Por fim a tosse de Maria Eduarda foi augmentando – como a tristeza das suas
palavras. Já fallava da «sua ambição derradeira»,
que era ver o sol uma vez mais! Por que não voltariam a Bemfica, ao
seu lar, agora que o sr. Infante estava tambem desterrado e que havia uma
grande paz? Mas a isso Affonso não cedeu: não queria ver outra
vez as suas gavetas arrombadas a coronhadas – e os soldados do sr. D. Pedro
não lhe davam mais garantias que os malsins do sr. D. Miguel.
Por esse tempo veio um grave desgosto á casa: a tia Fanny morreu, d’uma
pneumonia, nos frios de março; e isto ennegreceu mais a melancolia
de Maria Eduarda, que a amava muito tambem – por ser irlandeza e catholica.
Para a distrahir, Affonso levou-a para a Italia, para uma deliciosa villa
ao pé de Roma. Ahi não lhe faltava o sol: tinha-o ponctual e
generoso todas as manhãs, banhando largamente os terraços, dourando
loureiraes e myrtos. E depois, lá em baixo, entre marmores, estava
a coisa preciosa e santa, o Papa!
Mas a triste senhora continuava a choramigar. O que realmente appetecia era
Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões
passando n’um rumor de pachorrenta penitencia por tardes de sol e de poeira…
Foi necessario calmal-a, voltar a Bemfica.
Ahi começou uma vida desconsolada. Maria Eduarda definhava lentamente,
todos os dias mais pallida, levando semanas immovel sobre um canapé,
com as mãos transparentes cruzadas sobre as suas grossas pelles d’lnglaterra.
O padre Vasques, apoderando-se d’aquella alma aterrada para quem Deus era
um amo feroz, tornára-se o grande homem da casa. De resto Affonso encontrava
a cada momento pelos corredores outras figuras canonicas, de capote e solideo,
em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum magro capuchinho parasitando
no bairro; a casa tinha um bafio de sachristia; e dos quartos da senhora vinha
constantemente, dolente e vago, um rumor de ladainha.
Todos aquelles santos varões comiam, bebiam o seu vinho do Porto na
copa. As contas do administrador appareciam sobrecarregadas com as mesadas
piedosas que dava a senhora: um Frei Patricio surripiára-lhe duzentas
missas de cruzado por alma do Sr. D. José I…
Esta carolice que o cercava ia lançando Affonso n’um atheismo rancoroso:
quereria as egrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavacadas a machado,
uma matança de reverendos… Quando sentia na casa a voz de resas,
fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu
Voltaire: ou então partia a desabafar com o seu velho amigo, o coronel
Sequeira, que vivia n’uma quinta a Queluz.
O Pedrinho no entanto estava quasi um homem. Ficara pequenino e nervoso como
Maria Eduarda, tendo pouco da raça, da força dos Maias; a sua
linda face oval d’um trigueiro calido, dois olhos maravilhosos e irresistiveis,
promptos sempre a humedecer-se, faziam-n’o assemelhar a um bello arabe. Desenvolvera-se
lentamente, sem curiosidades, indifferente a brinquedos, a animaes, a flores,
a livros. Nenhum desejo forte parecera jámais vibrar n’aquella alma
meia adormecida e passiva: só ás vezes dizia que gostaria muito
de voltar para a Italia. Tomára birra ao Padre Vasques, mas não
ousava desobedecer-lhe. Era em tudo um fraco; e esse abatimento continuo de
todo o seu ser resolvia-se a espaços em crises de melancolia negra,
que o traziam dias e dias mudo, murcho, amarello, com as olheiras fundas e
já velho. O seu unico sentimento vivo, intenso, até ahi, fôra
a paixão pela mãe.
Affonso quizera-o mandar para Coimbra. Mas, á idéa de se separar
do seu Pedro, a pobre senhora cahira de joelhos deante d’Affonso, balbuciando
e tremendo: e elle, naturalmente, lá cedeu perante essas mãos
supplicantes, essas lagrimas que cahiam quatro a quatro pela pobre face de
cera. O menino continuou em Bemfica dando os seus lentos passeios a cavallo,
de creado de farda atraz, começando já a ir beber a sua genebra
aos botequins de Lisboa… Depois foi despontando n’aquella organisação
uma grande tendencia amorosa: aos dezenove annos teve o seu bastardosinho.
Affonso da Maia consolava-se pensando que, apesar de tão desgraçados
mimos, não faltavam ao rapaz qualidades: era muito esperto, são,
e, como todos os Maias, valente: não havia muito que elle só,
com um chicote, dispersara na estrada tres saloios de varapau que lhe tinham
chamado palmito.
Quando a mãe morreu, n’uma agonia terrivel de devota, debatendo-se
dias nos pavores do inferno, Pedro teve na sua dôr os arrebatamentos
d’uma loucura. Fizera a promessa hysterica, se ella escapasse, de dormir durante
um anno sobre as lageas do pateo: e levado o caixão, sahidos os padres,
cahio n’uma angustia soturna, obtusa, sem lagrimas, de que não queria
emergir, estirado de bruços sobre a cama n’uma obstinação
de penitente. Muitos mezes ainda não o deixou uma tristeza vaga: e
Affonso da Maia já se desesperava de ver aquelle rapaz, seu filho e
seu herdeiro, sahir todos os dias a passos de monge, lugubre no seu luto pesado,
para ir visitar a sepultura da mamã…
Esta dôr exagerada e morbida cessou por fim; e succedeu-lhe, quasi sem
transição, um periodo de vida dissipada e turbulenta, estroinice
banal, em que Pedro, levado por um romantismo torpe, procurava affogar em
lupanares e botequins as saudades da mamã. Mas essa exhuberancia anciosa
que se desencadeara tão subitamente, tão tumultuosamente, na
sua natureza desequilibrada, gastou-se depressa tambem.
Ao fim d’um anno de disturbios no Marrare, de façanhas nas esperas
de toiros, de cavallos esfalfados, de pateadas em S. Carlos, começaram
a reapparecer as antigas crises de melancolia nervosa; voltavam esses dias
taciturnos, longos como desertos, passados em casa a bocejar pelas salas,
ou sob alguma arvore da quinta todo estirado de bruços, como despenhado
n’um fundo de amargura. N’esses periodos tornava-se tambem devoto: lia Vidas
de Santos, visitava o Lausperenne: eram d’esses bruscos abatimentos d’alma
que outr’ora levavam os fracos aos mosteiros.
Isto penalisava Affonso da Maia: preferia saber que elle recolhera de Lisboa,
de madrugada, exhausto e bebedo, – do que vel-o, de ripanço debaixo
do braço, com um ar velho, marchando para a Egreja de Bemfica.
E havia agora uma idéa que, a seu pesar, ás vezes o torturava:
descobrira a grande parecença de Pedro com um avô de sua mulher,
um Runa, de quem existia um retrato em Bemfica: este homem extraordinario,
com que na casa se mettia medo ás creanças,enlouquecera – e
julgando-se Judas enforcara-se n’uma figueira…
Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor á
Romeu, vindo de repente n’uma troca de olhares fatal e deslumbradora, uma
d’essas paixões que assaltam uma existencia, a assolam como um furacão,
arrancando a vontade, a rasão, os respeitos humanos e empurrando-os
de roldão aos abysmos.
N’uma tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, á porta de Mme.
Levaillant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapéo branco,
e uma senhora loira, embrulhada num chale de Cashmira.
O velho, baixote e reforçado, de barba muito grisalha talhada por baixo
do queixo, uma face tisnada d’antigo embarcadiço e o ar gôche,
desceu todo encostado ao trintanario como se um rheumatismo o tolhesse, entrou
arrastando a perna o portal da modista; e ella voltando de vagar a cabeça
olhou um momento o Marrare.
Sob as rosinhas que ornavam o seu chapeu preto os cabellos loiros, d’um oiro
fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e classica: os olhos maravilhosos
illuminavam-n’a toda; a friagem fazia-lhe mais pallida a carnação
de marmore: e com o seu perfil grave de estatua, o modelado nobre dos hombros
e dos braços que o chale cingia – pareceu a Pedro n’eses instantes
alguma cousa d’immortal e superior á terra.
Não a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido
de negro, que fumava encostado á outra hombreira, n’uma pose de tedio
– vendo o violento interesse de Pedro, o olhar acceso e perturbado com que
seguia a caleche trotando Chiado acima, veiu tomar-lhe o braço, murmurou-lhe
junto á face, na sua voz grossa e lenta:
– Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens, as datas e os
feitos principaes? E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar,
uma garrafa de Champagne?
Veiu o Champagne. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anneis
da cabelleira e pelas pontas do bigode, começou, todo recostado e dando
um puchão aos punhos:
– Por uma dourada tarde d’outomno…
– André, gritou Pedro ao creado, martellando o marmore da mesa, retira
o Champagne!
O Alencar bradou, imitando o actor Epiphanio:
– O quê! Sem saciar a avidez de meu labio?…
Pois bem, o Champagne ficaria: mas o amigo Alencar, esquecendo que era o poeta
das Vozes d’Aurora, explicaria aquella gente da caleche azul n’uma linguagem
christã e pratica!…
– Ahi vae, meu Pedro, ahi vae!
Havia dois annos, justamente quando Pedro perdera a mamã, aquelle velho,
o papá Monforte, uma manhã rompera subitamente pelas ruas e
pela sociedade de Lisboa n’aquella mesma caleche com essa bella filha ao seu
lado. Ninguem os conhecia. Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no palacete
dos Vargas; e a rapariga principiou a apparecer em S. Carlos, fazendo uma
impressão – uma impressão de causar aneurismas, dizia o Alencar!
Quando ella atravessava o salão os hombros vergavam-se no deslumbramento
de auréola que vinha d’aquella magnifica creatura, arrastando com um
passo de Deusa a sua cauda de côrte, sempre decotada como em noites
de gala, e apesar de solteira resplandecente de joias. O papá nunca
lhe dava o braço: seguia atraz, entalado n’uma grande gravata branca
de mordomo, parecendo mais tisnado e mais embarcadiço na claridade
loira que sahia da filha, encolhido e quasi apavorado, trazendo nas mãos
o oculo, o libretto, um saco de bonbons, o leque e o seu proprio guardachuva.
Mas era no camarote, quando a luz cahia sobre o seu collo eburneo e as suas
tranças de oiro, que ella offerecia verdadeiramente a encarnação
d’um ideal da Renascença, um modelo de Ticiano… Elle, Alencar, na
primeira noite em que a vira, exclamara, mostrando-a a ella e ás outras,
ás trigueirotas da assignatura:
– Rapazes! é como um ducado de ouro novo entre velhos patacos do tempo
do Sr. D. João VI!
O Magalhães, esse torpe pirata, pozera o dito n’um folhetim do Portuguez.
Mas o dito era d’elle, Alencar!
Os rapazes, naturalmente, começaram logo a rondar o palacete de Arroios.
Mas nunca n’aquella casa se abria uma janella. Os criados interrogados disseram
apenas que a menina se chamava Maria, e que o senhor se chamava Manoel. Emfim
uma creada, amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem era taciturno,
tremia deante da filha, e dormia n’uma rêde; a senhora, essa, vivia
n’um ninho de sedas todo azul-ferrête, e passava o seu dia a ler novellas.
Isto não podia satisfazer a soffreguidão de Lisboa. Fez-se uma
devassa methodica, habil, paciente… Elle, Alencar, pertencera á devassa.
E souberam-se horrores. O papá Monforte era dos Açores: muito
moço, uma facada n’uma rixa, um cadaver a uma esquina tinham-n’o forçado
a fugir a bordo d’um brigue americano. Tempos depois um certo Silva, procurador
da casa de Taveira, que o conhecera nos Açores, estando na Havana a
estudar a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Ilhas encontrára
lá o Monforte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando pelo
caes, de chinellas de esparto, á procura de embarque para a Nova-Orleans.
Aqui havia uma treva na historia do Monforte. Parece que servira algum tempo
de feitor n’uma plantação da Virginia… Emfim, quando reappareceu
á face dos céos commandava o brigue Nova Linda, e levava cargas
de pretos para o Brazil, para a Havana e para a Nova Orleans.
Escapara aos cruzeiros inglezes, arrancára uma fortuna da pelle do
africano, e agora rico, homem de bem, proprietario, ia ouvir a Corelli a S.
Carlos. Todavia esta terrivel chronica, como dizia o Alencar, obscura e mal
provada, claudicava aqui e além…
– E a filha? perguntou Pedro, que o escutara, serio e pallido.
Mas isso não o sabia o amigo Alencar. Onde a arranjara assim tão
loira e bella? Quem fôra a mamã? Onde estava? Quem a ensinara
a embrulhar-se com aquelle gesto real no seu chale de Cashmira?…
– Isso, meu Pedro, são
mysterios que jámais poude Lisboa
astuta devassar e só Deus sabe!
Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquella legenda de sangue e negros,
o enthusiasmo pela Monforte calmou. Que diabo! Juno tinha sangue de assassino,
a beltà do Ticiano era filha de negreiro! As senhoras, deliciando-se
em villipendiar uma mulher tão loira, tão linda e com tantas
joias, chamaram-lhe logo a negreira! Quando ella apparecia agora no theatro,
D. Maria da Gama affectava esconder a face detraz do leque, porque lhe parecia
ver na rapariga (sobretudo quando ella usava os seus bellos rubis) o sangue
das facadas que dera o papázinho! E tinham-n’a calumniado abominavelmente.
Assim, depois de passarem em Lisboa o primeiro inverno, os Monfortes sumiram-se:
pois disse-se logo, com furor, que estavam arruinados, que a policia perseguia
o velho, mil perversidades… O excellente Monforte, que soffre de rheumatismos
articulares, achava-se tranquillamente, ricamente, tomando as aguas dos Piryneus…
Fora lá que o Mello os conhecera…
– Ah! o Mello conhece-os? exclamou Pedro.
– Sim, meu Pedro, o Mello os conhece.
Pedro d’ahi a um momento deixou o Marrare; e n’essa noite, antes de recolher,
apesar da chuva fria e miuda, andou rondando uma hora, com a imaginação
toda accesa, o palacete dos Vargas apagado e mudo. Depois, d’ahi a duas semanas
o Alencar, entrando em S. Carlos ao fim do primeiro acto do Barbeiro, ficou
assombrado ao ver Pedro da Maia installado na frisa da Monforte, á
frente, ao lado de Maria, com uma camelia escarlate na casaca – egual ás
d’um ramo pousado no rebordo de velludo.
Nunca Maria Monforte apparecera mais bella: tinha uma d’essas toilettes excessivas
e theatraes que offendiam Lisboa, e faziam dizer ás senhoras que ella
se vestia «como uma comica». Estava de seda côr de trigo,
com duas rosas amarellas e uma espiga nas tranças, opalas sobre o collo
e nos braços; e estes tons de ceara madura batida do sol, fundindo-se
com o ouro dos cabellos, illuminando-lhe a carnação eburnea,
banhando as suas fórmas de estatua, davam-lhe o esplendor d’uma Ceres.
Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Mello, que conversava de
pé com o papá Monforte – escondido como sempre no canto negro
da frisa.
O Alencar foi observar «o caso» do camarote dos Gamas. Pedro voltára
á sua cadeira, e de braços cruzados contemplava Maria. Ella
conservou algum tempo a sua attitude de Deusa insensivel; mas, depois, no
duetto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azues e profundos se fixaram
n’elle, gravemente e muito tempo. O Alencar, correu ao Marrare, de braços
ao ar, a berrar a novidade.
Não tardou de resto a fallar-se em toda a Lisboa da paixão de
Pedro da Maia pela negreira. Elle tambem namorou-a publicamente, á
antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos
cravados na janella d’ella, immovel e pallido d’extasi.
Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel – poemas desordenados
que ia compôr para o Marrare: e ninguem lá ignorava o destino
d’aquellas paginas de linhas encruzadas que se accumulavam deante d’elle sobre
o taboleiro da genebra. Se algum amigo vinha á porta do café
perguntar por Pedro da Maia, os criados já respondiam muito naturalmente:
– O sr. D. Pedro? Está a escrever á menina.
E elle mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a mão, exclamava
radiante, com o seu bello e franco sorriso:
– Espera ahi um bocado, rapaz, estou a escrever á Maria!
Os velhos amigos de Affonso da Maia que vinham fazer o seu whist a Bemfica,
sobretudo o Villaça, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade
da casa, não tardaram em lhe trazer a nova d’aquelles amores do Pedrinho.
Affonso já os suspeitava: via todos os dias um criado da quinta partir
com um grande ramo das melhores camelias do jardim; todas as manhãs
cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino,
a cheirar regaladamente o perfume d’um enveloppe com sinete de lacre dourado;
– e não lhe desagradava que um sentimento qualquer, humano e forte,
lhe fosse arrancando o filho á estroinice bulhenta, ao jogo, ás
melancolias sem rasão em que reapparecia o negro ripanço…
Mas ignorava o nome, a existencia sequer dos Monfortes; e as particularidades
que os amigos lhe revelaram, aquella facada nos Açores, o chicote de
feitor na Virginia, o brigue Nova Linda, toda a sinistra legenda do velho
contrariou muito Affonso da Maia.
Uma noite que o coronel Sequeira, á mesa do whist, contava que vira
Maria Monforte e Pedro passeando a cavallo, «ambos muito bem e muito
distingués», Affonso, depois d’um silencio, disse com um ar enfastiado:
– Emfim, todos os rapazes teem as suas amantes… Os costumes são assim,
a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir taes cousas. Mas essa
mulher, com um pae d’esses, mesmo para amante acho má.
O Villaça suspendeu o baralhar das cartas, e ageitando os oculos d’ouro
exclamou com espanto:
– Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor, é uma menina
honesta!…
Affonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos começaram a tremer-lhe;
e voltando-se para o administrador, n’uma voz que tremia um pouco tambem:
– O Villaça de certo não suppõe que meu filho queira
casar com essa creatura…
O outro emmudeceu. E foi o Sequeira que murmurou:
-Isso não, está claro que não…
E o jogo continuou algum tempo em silencio.
Mas Affonso da Maia principiou a andar descontente. Passavam-se semanas que
Pedro não jantava em Bemfica. De manhã, se o via, era um momento,
quando elle descia ao almoço, já com uma luva calçada,
apressado e radiante, gritando para dentro se estava sellado o cavallo; depois,
mesmo de pé, bebia um gole de chá, perguntava a correr «se
o papá queria alguma cousa», dava um geito ao bigode deante do
grande espelho de Veneza sobre o fogão, e lá partia, enlevado.
Outras vezes todo o dia não sahia do quarto: a tarde descia, accendiam-se
as luzes; até que o pae, inquieto, subia, ia encontral-o estirado sobre
o leito, com a cabeça enterrada nos braços.
– Que tens tu? – perguntava-lhe.
– Enchaqueca, – respondia n’um tom surdo e rouco.
E Affonso descia indignado, vendo em toda aquella angustia covarde alguma
carta que não viera, ou talvez uma rosa offerecida que não fôra
posta nos cabellos…
Depois, por vezes, entre dois robbers ou conversando em volta da bandeja do
chá, os seus amigos tinham observações que o inquietavam,
partindo d’aquelles homens que habitavam Lisboa, lhe conheciam os rumores
– emquanto elle passava alli, inverno e verão, entre os seus livros
e as suas rosas. Era o excellente Sequeira que perguntava porque não
faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, á Allemanha, ao Oriente?
Ou o velho Luiz Runa, o primo d’Affonso, que, a proposito de cousas indifferentes,
rompia lamentando os tempos em que o Intendente da policia podia livremente
expulsar de Lisboa as pessoas importunas… Evidentemente alludiam á
Monforte, evidentemente julgavam-n’a perigosa.
No verão, Pedro partiu para Cintra; Affonso soube que os Monfortes
tinham lá alugado uma casa. Dias depois o Villaça appareceu
em Bemfica, muito preoccupado: na vespera Pedro visitara-o no cartorio, pedira-lhe
informações sobre as suas propriedades, sobre o meio de levantar
dinheiro. Elle lá lhe dissera que em setembro, chegando á sua
maioridade, tinha a legitima da mamã…
– Mas não gostei d’isto, meu senhor, não gostei d’isto…
– E porque, Villaça? O rapaz quererá dinheiro, quererá
dar presentes á creatura… O amor é um luxo caro, Villaça.
– Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouça!
E aquella confiança tão nobre de Affonso da Maia no orgulho
patricio, nos brios de raça de seu filho, chegava a tranquillisar Villaça.
D’ahi a dias, Affonso da Maia viu emfim Maria Monforte. Tinha jantado na quinta
do Sequeira ao pé de Queluz, e tomavam ambos o seu café no mirante,
quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche azul com os
cavallos cobertos de redes. Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate, trazia
um vestido côr de rosa cuja roda, toda em folhos, quasi cobria os joelhos
de Pedro sentado ao seu lado: as fitas do seu chapéo, apertadas n’um
grande laço que lhe enchia o peito, eram tambem côr de rosa:
e a sua face, grave e pura como um marmore grego, apparecia realmente adoravel,
illuminada pelos olhos d’um azul sombrio, entre aquelles tons rosados. No
assento defronte, quasi todo tomado por cartões de modista, encolhia-se
o Monforte, de grande chapéo panamá, calça de ganga,
o mantelete da filha no braço, o guarda sol entre os joelhos. Iam callados,
não viram o mirante; e, no caminho verde e fresco, a caleche passou
com balanços lentos, sob os ramos que roçavam a sombrinha de
Maria. O Sequeira ficara com a chavena de café junto aos labios, de
olho esgazeado, murmurando:
– Caramba! É bonita!
Affonso não respondeu: olhava cabisbaixo aquella sombrinha escarlate,
que agora se inclinava sobre Pedro, quasi o escondia, parecia envolvel-o todo
– como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche sob o verde triste
das ramas.
O outono passou, chegou o inverno, frigidissimo. Uma manhã, Pedro entrou
na livraria onde o pae estava lendo junto ao fogão; recebeu-lhe a benção,
passou um momento os olhos por um jornal aberto, e voltando-se bruscamente
para elle:
– Meu pae, – disse, esforçando-se por ser claro e decidido – venho
pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte.
Affonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e n’uma voz grave e lenta:
– Não me tinhas fallado d’isso… Creio que é a filha d’um assassino,
d’um negreiro, a quem chamam tambem a negreira…
– Meu pae!
Affonso ergueu-se diante d’elle, rigido e inexoravel como a encarnação
mesma da honra domestica.
– Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha.
Pedro, mais branco que o lenço que tinha na mão, exclamou todo
a tremer, quasi em soluços:
– Pois póde estar certo, meu pae, que hei de casar! Sahiu, atirando
furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo escudeiro, muito alto para
que o pae ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao hotel da Europa.
Dois dias depois Villaça entrou em Bemfica, com as lagrimas nos olhos,
contando que o menino casára n’essa madrugada – e segundo lhe dissera
o Sergio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para a Italia.
Affonso da Maia sentára-se n’esse instante á mesa do almoço,
posta ao pé do fogão: ao centro, um ramo esfolhava-se n’um vaso
do Japão, á chamma forte da lenha: e junto ao talher de Pedro
estava o numero da Grinalda, jornal de versos que elle costumava receber…
Affonso ouviu o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrar lentamente
o seu guardanapo.
– Já almoçou, Villaça?
O procurador, assombrado d’aquella serenidade, balbuciou:
– Já almocei, meu senhor…
Então Affonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escudeiro:
– Póde tirar d’alli esse talher, Teixeira. D’aqui por diante ha só
um talher á mesa… Sente-se, Villaça, sente-se.
O Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indifferença o talher
do menino. Villaça sentára-se. Tudo em redor era correto e calmo
como nas outras manhãs em que almoçara em Bemfica. Os passos
do escudeiro não faziam ruido no tapete fofo; o lume estalava alegremente,
pondo retoques d’ouro nas pratas polidas; o sol discreto que brilhava fóra
no azul d’inverno fazia scintillar crystaes de geada nas ramas seccas; e á
janella o papagaio, muito patulêa e educado por Pedro, rosnava injurias
aos Cabraes.
Por fim Affonso ergueu-se; esteve olhando abstrahidamente a quinta, os pavões
no terrasso; depois ao sahir da sala tomou o braço de Villaça,
apoiou-se n’elle com força, como se lhe tivesse chegado a primeira
tremura da velhice, e no seu abandono sentisse alli uma amizade segura. Seguiram
o corredor, callados. Na livraria Affonso foi occupar a sua poltrona ao pé
da janella, começou a encher de vagar o seu cachimbo. Villaça,
de cabeça baixa, passeava ao comprido das altas estantes, nas pontas
dos pés, como no quarto d’um doente. Um bando de pardaes veiu gralhar
um momento nos ramos d’uma alta arvore que roçava a varanda. Depois
houve um silencio, e Affonso da Maia disse:
– Então, Villaça, o Saldanha lá foi demittido do Paço?…
O outro respondeu, vaga e machinalmente:
– É verdade, meu senhor, é verdade…
E não se fallou mais de Pedro da Maia.
Capítulo II
Pedro e Maria, no entanto, numa felicidade de novella, iam descendo a Italia,
a pequenas jornadas, de cidade em cidade, n’essa via sagrada que vae desde
as flores e das messes da planicie lombarda até ao molle paiz de romanza,
Napoles, branca sob o azul. Era lá que tencionavam passar o inverno,
n’esse ar sempre tepido junto a um mar sempre manso, onde as preguiças
de noivado teem uma suavidade mais longa… Mas um dia, em Roma, Maria sentiu
o appetite de Paris. Parecia-lhe fatigante o viajar assim, aos balouços
das caleças, só para ir ver lazzaroni engolir fios de macarrão.
Quanto melhor seria habitar um ninho acolchoado nos Campos Elyseos, e gozarem
alli um lindo inverno de amor! Paris estava seguro, agora, com o principe
Luiz Napoleão… Além d’isso, aquella velha Italia classica
enfastiava-a já: tantos marmores eternos, tantas madonas começavam
(como ella dizia pendurada languidamente do pescoço de Pedro) a dar
tonturas á sua pobre cabeça! Suspirava por uma boa loja de modas,
sob as chammas do gaz, ao rumor do boulevard… Depois tinha medo da Italia
onde todo mundo conspirava.
Foram para França.
Mas por fim aquelle Paris ainda agitado, onde parecia restar um vago cheiro
de polvora pelas ruas, onde cada face conservava um calor de batalha, desagradou
a Maria. De noite accordava com a Marselheza; achava um ar feroz á
policia; tudo permanecia triste; e as duquezas, pobres anjos, ainda não
ousavam vir ao Bois, com medo dos operarios, corja insaciavel! Emfim demoraram-se
lá até a primavera, no ninho que ella sonhára, todo de
velludo azul, abrindo sobre os Campos Elyseos.
Depois principiou a fallar-se de novo em revolução, em golpe
d’estado. A admiração absurda de Maria pelos novos uniformes
da garde-mobile fazia Pedro nervoso. E quando ella appareceu gravida, anciou
por a tirar d’aquelle Paris batalhador e fascinante, vir abrigal-a na pacata
Lisboa adormecida ao sol.
Antes de partir porém escreveu ao pae.
Fôra um conselho, quasi uma exigencia de Maria. A recusa de Affonso
da Maia ao principio desesperara-a. Não a affligia a desunião
domestica: mas aquelle não affrontoso de fidalgo puritano marcara muito
publicamente, muito brutalmente, a sua origem suspeita! Odiou o velho: e tinha
apressado o casamento, aquella partida triumphante para Italia, para lhe mostrar
bem que nada valiam genealogias, avós godos, brios de familia – deante
dos seus braços nus… Agora porém que ia voltar a Lisboa, dar
soirées, crear côrte, a reconciliação tornava-se
indispensavel: aquelle pae retirado em Bemfica, com o rigido orgulho de outras
edades, faria lembrar constantemente, mesmo entre os seus espelhos e os seus
estofos, o brigue Nova Linda carregado de negros… E queria mostrar-se a
Lisboa pelo braço d’esse sogro tão nobre e tão ornamental,
com as suas barbas de Viso-rei.
-Dize-lhe que já o adoro, murmurava ella curvada sobre a escrivaninha
acariciando os cabellos de Pedro. Dize-lhe que se tiver um pequeno lhe hei
de pôr o nome d’elle… Escreve-lhe uma carta bonita, hein!
E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao papá. O pobre rapaz amava-o.
Fallou-lhe commovido da esperança de ter um filho varão; as
desintelligencias deviam findar em torno do berço d’aquelle pequeno
Maia que alli vinha, morgado e herdeiro do nome… Contava-lhe a sua felicidade
com uma effusão de namorado indiscreto: a historia da bondade de Maria,
das suas graças, da sua instrucção, enchia duas paginas:
e jurava-lhe que apenas chegasse não tardaria uma hora em ir atirar-se
aos seus pés…
Com effeito, apenas desembarcou, correu n’um trem a Bemfica. Dois dias antes
o pae partira para Santa Olavia: isto pareceu-lhe uma desfeita – e feriu-o
acerbamente.
Fez-se então entre o pae e o filho uma grande separação.
Quando lhe nasceu uma filha Pedro não lh’o participou – dizendo dramaticamente
ao Villaça «que já não tinha pae!» Era uma
linda bébé, muito gorda, loira e côr de rosa, com os bellos
olhos negros dos Maias. Apesar do desejo de Pedro, Maria não a quiz
crear; mas adorava-a com phrenesi; passava dias de joelhos ao pé do
berço, em extasi, correndo as suas mãos cheias de pedrarias
pelas carninhas tenras, pondo-lhe beijos de devota nos pésinhos, na
rosquinha das côxas, balbuciando-lhe n’um enlevo nomes de grande amor,
e perfurmando-a já, enchendo-a já de laçarotes.
E n’estes delirios pela filha, brotava, mais amarga, a sua colera contra Affonso
da Maia. Considerava-se então insultada em si mesma e n’aquelle cherubim
que lhe nascera. Injuriava o velho grosseiramente, chamava-lhe o D. Fuas,
o Barbatanas…
Pedro um dia ouviu isto, e escandalisou-se: ella replicou desabridamente:
e deante d’aquella face abrazada, onde entre lagrimas os olhos azues pareciam
negros de colera, elle só poude balbuciar timidamente:
– É meu pae, Maria…
Seu pae! E á face de toda a Lisboa tratava-a então como uma
concubina! Podia ser um fidalgo, as maneiras eram de villão. Um D.
Fuas, um Barbatanas, nada mais!…
Arrebatou a filha, e abraçada n’ella, romperam as queixas por entre
os prantos:
– Ninguem nos ama, meu anjo! Ninguem te quer! Tens só a tua mãe!
Tratam-te como se fosses bastarda!
A bébé, sacudida nos braços da mãe, desatou a
gritar. Pedro correu, envolveu-as ambas no mesmo abraço, já
enternecido, já humilde; e tudo terminou n’um longo beijo.
E elle, por fim, no seu coração, justificava aquella colera
de mãe que vê desprezado o seu anjo. De resto, mesmo alguns amigos
de Pedro, o Alencar, o D. João da Cunha, que começavam agora
a frequentar Arroios, riam d’aquella obstinação de pae gothico,
amuado na provincia, porque sua nora não tivera avós mortos
em Aljubarrota! E onde havia outra em Lisboa, com aquellas toilettes, aquella
graça, recebendo tão bem? Que diabo, o mundo marchara, sahira-se
já das attitudes empertigadas do seculo XVI!
E o proprio Villaça, um dia que Pedro lhe fôra mostrar a pequerruchinha
adormecida entre as rendas do seu berço, sensibilisou-se, veio-lhe
uma da suas faceis lagrimas, declarou, com a mão no coração,
que aquillo era uma caturrice do sr. Affonso da Maia!
– Pois peior para elle! não querer ver um anjo destes! disse Maria,
dando deante do espelho um lindo geito ás flores do cabello. Tambem
não faz cá falta…
E não fazia falta. N’esse outubro, quando a pequena completou o seu
primeiro anno, houve um grande baile na casa de Arroios, que elles agora occupavam
toda, e que fôra ricamente remobilada. E as senhoras que outr’ora tinham
horror á negreira, a D. Maria da Gama que escondia a face por traz
do leque, lá vieram todas, amaveis e decotadas, com o beijinho prompto,
chamando-lhe «querida», admirando as grinaldas de camelias que
emmolduravam os espelhos de quatrocentos mil réis, e gozando muito
os gelados.
Começara então uma existencia festiva e luxuosa, que, segundo
dizia o Alencar, o intimo da casa, o cortesão de Madame, «tinham
um saborsinho d’orgia distinguée como os poemas de Byron.» Eram
realmente as soirées mais alegres de Lisboa: ceiava-se á uma
hora com Champagne; talhava-se até tarde um monte forte; inventavam-se
quadros vivos, em que Maria se mostrara soberanamente bella sob as roupagens
classicas de Helena ou no luxo sombrio do luto oriental de Judith. Nas noites
mais intimas, ella costumava vir fumar com os homens uma cigarrilha perfumada.
Muitas vezes, na sala de bilhar, as palmas estalaram, vendo-a bater á
carambola franceza D. João da Cunha, o grande taco da epoca.
E no meio d’esta festança, atravessada pelo sopro romantico da Regeneração,
lá se via sempre, taciturno e encolhido, o papá Monforte, d’alta
gravata branca, com as mãos atraz das costas, rondando pelos cantos,
refugiado pelos vãos das janellas, mostrando-se só para salvar
alguma bobèche que ia estalar – e não desprendendo nunca da
filha o olho embevecido e senil.
Nunca Maria fôra tão formosa. A maternidade dera-lhe um esplendor
mais copioso; e enchia verdadeiramente, dava luz áquellas altas salas
de Arroios, com a sua radiante figura de Juno loira, os diamantes das tranças,
o eburneo e o lacteo do collo nu, e o rumor das grandes sedas. Com rasão,
querendo ter, á maneira das damas da Renascença, uma flôr
que a symbolisasse, escolhera a tulipa real opulenta e ardente.
Citavam-se os requintes do seu luxo, roupas brancas, rendas do valor de propriedades!…
Podia fazel-o! o marido era rico, e ella sem escrupulo arruinal-o-hia, a elle
e ao papá Monforte…
Todos os amigos de Pedro, naturalmente, a amavam. O Alencar esse proclamava-se
com alarido seu «cavalleiro e seu poeta». Estava sempre em Arroios,
tinha lá o seu talher: por aquellas salas soltava as suas phrases ressoantes,
por esses sophás arrastava as suas poses de melancolia. Ia dedicar
a Maria (e nada havia mais extraordinario que o tom langoroso e plangente,
o olho turvo, fatal, com que elle pronunciava este nome – MARIA!) ia dedicar-lhe
o seu poema, tão annunciado, tão esperado – FLOR DE MARTYRIO!
E citavam-se as estrophes que lhe fizera ao gosto cantante do tempo:
Vi-te essa noite no explendor das sallas
Com as loiras tranças volteando louca…
A paixão do Alencar era innocente: mas, dos outros intimos da casa,
mais d’um de certo balbuciara já a sua declaração no
boudoir azul em que ella recebia ás tres horas, entre os seus vasos
de tulipas; as suas amigas porém, mesmo as peiores, affirmavam que
os seus favores nunca teriam passado de alguma rosa dada n’um vão de
janella, ou de algum longo e suave olhar por traz do leque. Pedro todavia
começava a ter horas sombrias. Sem sentir ciumes, vinha-lhe ás
vezes, de repente, um tedio d’aquella existencia de luxo e de festa, um desejo
violento de sacudir da sala esses homens, os seus intimos, que se atropellavam
assim tão ardentemente em volta dos hombros decotados de Maria.
Refugiava-se então n’algum canto, trincando com furor o charuto: e
ahi, era em toda a sua alma um tropel de cousas dolorosas e sem nome…
Maria sabia perceber bem na face do marido «estas nuvens», como
ella dizia. Corria para elle, tomava-lhe ambas as mãos, com força,
com dominio:
– Que tens tu, amor? Estás amuado!
– Não, não estou amuado…
– Olha então para mim!…
Collava o seu bello seio contra o peito d’elle; as suas mãos corriam-lhe
os braços n’uma caricia lenta e quente, dos pulsos aos hombros; depois,
com um lindo olhar, estendia-lbe os labios. Pedro colhia n’elles um longo
beijo, e ficava consolado de tudo.
Durante esse tempo Affonso da Maia não sahia das sombras de Sta. Olavia,
tão esquecido para lá como se estivesse no seu jazigo. Já
se não fallava d’élle em Arroios, D. Fuas estava roendo a teima.
Só Pedro ás vezes perguntava a Villaça «como ia
o papá.» E as noticias do administrador enfureciam sempre Maria:
o papá estava optimo; tinha agora um cosinheiro francez explendido;
Sta. Olavia enchera-se de hospedes, o Sequeira, André da Ega, D. Diogo
Coutinho…
– O Barbatanas trata-se! ia ella dizer ao pae com rancor.
E o velho negreiro esfregava as mãos, satisfeito de o saber assim feliz
em Sta. Olavia; porque nunca cessara de tremer á idéa de ver
em Arroios, deante de si, aquelle fidalgo tão severo e de vida tão
pura.
Quando porém Maria teve outro filho, um pequeno, o socego que então
se fez em Arroios trouxe de novo muito vivamente ao coração
de Pedro a imagem do pae abandonado n’aquella tristeza do Douro. Fallou a
Maria de reconciliação, a medo, aproveitando a fraqueza da convalescença.
E a sua alegria foi grande, quando Maria, depois de ficar um momento pensativa,
respondeu:
– Creio que me havia de fazer feliz tel-o aqui…
Pedro, enthusiasmado com um assentimento tão inesperado, pensou em
abalar para Sta. Olavia. Mas ella tinha um plano melhor: Affonso, segundo
dizia o Villaça, devia recolher em breve a Bemfica; pois bem, ella
iria lá com o pequeno, toda vestida de preto, e de repente, atirando-se-lhe
aos pés, pedir-lhe-hia a benção para seu neto! Não
podia falhar! Não podia, realmente; e Pedro viu alli uma alta inspiração
de maternidade…
Para abrandar desde já o papá, Pedro quiz dar ao pequeno o nome
de Affonso. Mas n’isso Maria não consentiu. Andava lendo uma novella
de que era heroe o ultimo Stuart, o romanesco principe Carlos Eduardo; e,
namorada d’elle, das suas aventuras e desgraças, queria dar esse nome
a seu filho… Carlos Eduardo da Maia! Um tal nome parecia-lhe conter todo
um destino de amores e façanhas.
O baptisado teve de ser retardado; Maria adoecera com uma angina. Foi muito
benigna porém; e d’ahi a duas semanas Pedro podia já sahir para
uma caçada na sua quinta da Tojeira, adiante d’Almada. Devia demorar-se
dois dias. A partida arranjara-se unicamente para obsequiar um italiano, chegado
por então a Lisboa, distincto rapaz que lhe fôra apresentado
pelo secretario da Legação Ingleza, e com quem Pedro sympathisara
vivamente; dizia-se sobrinho dos Principes de Soria; e vinha fugido de Napoles,
onde conspirára contra os Bourbons, e fôra condemnado á
morte. O Alencar e D. João Coutinho iam tambem á caçada
– e a partida foi de madrugada.
N’essa tarde, Maria jantava só no seu quarto, quando sentiu carruagens
parando á porta, um grande rumor encher a escada; quasi immediatamente
Pedro apparecia-lhe tremulo e enfiado:
– Uma grande desgraça, Maria!
– Jesus!
– Feri o rapaz, feri o napolitano!…
– Como?
Um desastre estupido!… Ao saltar um barranco, a espingarda dispara-se-lhe,
e a carga, zás, vae cravar-se no napolitano! Não era possivel
fazer curativos na Tojeira, e voltaram logo a Lisboa. Elle naturalmente não
consentira que o homem que tinha ferido recolhesse ao hotel: trouxera-o para
Arroios, para o quarto verde por cima, mandara chamar o medico, duas enfermeiras
para o velar, e elle mesmo lá ia passar a noite…
– E elle?
– Um heroe!… Sorri, diz que não é nada, mas eu vejo-o pallido
como um morto. Um rapaz adoravel! Isto só a mim, Senhor! E então
o Alencar que ia mesmo ao pé d’elle… Podia antes ter ferido o Alencar,
um rapaz intimo, de confiança! até a gente se ria. Mas não,
zás, logo o outro, o de cerimonia …
Uma sege, n’esse instante, entrava o pateo.
– É o medico!
E Pedro abalou.
Voltou d’ahi a pouco mais tranquillo. O Dr. Guedes quasi rira d’aquella bagatella,
uma chumbada no braço, e alguns grãos perdidos nas costas. Promettera-lhe
que d’ahi a duas semanas podia caçar outra vez na Tojeira; e o principe
estava já fumando o seu charuto. Bello rapaz! Parecia sympathisar com
o papá Monforte…
Toda essa noite Maria dormiu mal, na excitação vaga que lhe
dava aquella idéa d’um principe enthusiasta, conspirador, condemnado
á morte, ferido agora por cima do seu quarto.
Logo de manhã cedo – apenas Pedro sahira a fazer transportar, elle
mesmo, do hotel, as bagagens do napolitano – Maria mandou a sua criada franceza
de quarto, uma bella moça d’Arles, acima, saber da parte d’ella como
S. Alteza passara, e «ver que figura tinha». A arlesiana appareceu,
com os olhos brilhantes, a dizer á senhora, nos seus grandes gestos
de Provençal, que nunca vira um homem tão formoso! Era uma pintura
de Nosso Senhor Jesus Christo! Que pescoço, que brancura de marmore!
Estava muito pallido ainda; agradecia enternecido os cuidados de Madame Maia;
e ficara a ler o jornal encostado aos travesseiros…
Maria, desde então, não pareceu interessar-se mais pelo ferido.
Era Pedro que vinha, a cada instante, fallar-lhe d’elle, enthusiasmado por
aquella existencia pathetica de principe conspirador, partilhando já
o seu odio aos Bourbons, encantado com a similitude de gostos que encontrava
n’elle, o mesmo amor da caça, dos cavallos, das armas. Agora logo de
manhã, subia para o quarto do Principe, de robe-de-chambre e cachimbo
na boca, e passava lá horas n’uma camaradagem, fazendo grogs quentes
– permittidos pelo Dr. Guedes. Levava mesmo para lá os seus amigos,
o Alencar, o D. João da Cunha. Maria sentia-lhes por cima as risadas.
Ás vezes tocava-se viola. E o velho Monforte, pasmado para o heroe,
não cessava de lhe rondar o leito.
A Arlesiana, essa, tambem a cada momento apparecia lá a levar toalhas
de rendas, um assucareiro que ninguem reclamara, ou algum vaso com flores
para alegrar a alcova… Maria, por fim, perguntou a Pedro, muito seria, se
além de todos os amigos da casa, duas enfermeiras, dois escudeiros,
o papá e elle Pedro – era necessaria tambem constantemente a sua propria
criada no quarto de Sua Alteza!
Não era. Mas Pedro riu muito á idéa de que a Arlesiana
se tivesse namorado do principe. N’esse caso Venus era-lhe propicia! O napolitano
tambem a achava
picante: un très joli brin de femme, tinha elle dito.
A bella face de Maria impallideceu de colera. Julgava tudo isso de mau gosto,
grosseiro, impudente! Pedro fôra realmente um doido em trazer assim
para a intimidade de Arroios um estrangeiro, um fugido, um aventureiro! Demais,
aquella troça em cima, entre grogs quentes, com guitarra, sem respeito
por ella ainda toda nervosa, toda fraca da convalescença, indignava-a!
Apenas Sua Alteza podesse accommodar-se com almofadas n’uma sege, queria-o
fóra, na estalagem…
– O que ahi vae! Jesus! o que ahi vae!… disse Pedro.
– É assim.
E de certo foi muito severa tambem com a Arlesiana, por que n’essa tarde Pedro
encontrou a moça aos ais no corredor, limpando ao avental os olhos
affogueados.
D’ahi a dias, porém, o napolitano, já convalescente, quiz recolher
ao seu hotel. Não vira Maria: mas em agradecimento da sua hospitalidade
mandou-lhe um admiravel ramo, e, com uma galanteria de principe artista da
Renascença, um soneto em italiano enrolado entre as flores e tão
perfumado como ellas: comparava-a a uma nobre dama da Syria dando a gota de
agua da sua bilha ao cavalleiro arabe, ferido na estrada ardente; comparava-a
á Beatriz do Dante.
Isto affigurou-se a todos de uma rara distincção, e, como disse
o Alencar, um rasgo á Byron.
Depois, na soirée do baptisado de Carlos Eduardo, dada d’ahi a uma
semana, o napolitano mostrou-se, e impressionou tudo. Era um homem esplendido,
feito como um Apollo, de uma pallidez de marmore rico: a sua barba curta e
frisada, os seus longos cabellos castanhos, cabellos de mulher, ondeados e
com reflexos de ouro, apartados á nazarena – davam-lhe realmente, como
dizia a Arlesiana, uma physionomia de bello Christo.
Dançou apenas uma contradança com Maria, e pareceu, na verdade,
um pouco taciturno e orgulhoso: mas tudo n’elle fascinava, a sua figura, o
seu mysterio, até o seu nome de Tancredo. Muitos corações
de mulher palpitavam quando elle, encostado a uma hombreira, de claque na
mão, uma melancolia na face, exhalando o encanto pathetico de um condemnado
á morte, derramava lentamente pela sala o langor sombrio do seu olhar
de velludo. A marqueza d’Alvenga, para o examinar de perto, pediu o braço
a Pedro, e foi applicar-lhe, como a um marmore de museo, a sua luneta de ouro.
– É de appetite! exclamou ella. É uma imagem!… E são
amigos, são amigos, Pedro?
– Somos como dois irmãos d’armas, minha senhora.
N’essa mesma soirée, o Villaça informára Pedro que o
pae era esperado no dia seguinte em Bemfica. E Pedro, logo que se recolheram,
fallou a Maria em «irem fazer a grande scena ao papá.»
Ella, porém, recusou, e com as razões mais imprevistas, as mais
sensatas. Tinha cogitado muito! Reconhecia agora que um dos motivos d’aquella
teima do papá – ultimamente chamava-lhe sempre o papá – era
essa extraordinaria existencia de Arroios…
– Mas filha, disse Pedro, escuta, nós não vivemos tambem em
plena orgia… Alguns amigos que veem…
Pois sim, pois sim… Mas, realmente, estava decidida a ter um interior mais
calmo e mais domestico. Era mesmo melhor p’ra os bébés. Pois
bem, queria que o papá estivesse convencido d’essa transformação,
para que as pazes fossem mais faceis e eternas.
– Deixa passar dois ou tres mezes… Quando elle souber como nós vivemos
quietinhos, eu o trarei, socega… É bom tambem que seja quando meu
pae partir para as aguas, para os Pyrineos. Que o pobre papá, coitado,
tem medo do teu… Filho, não achas assim melhor?
– És um anjo, foi a resposta de Pedro, beijando-lhe ambas as mãos.
Toda a antiga maneira de Maria pareceu com effeito ir mudando. Suspendera
as soirées. Começou a passar as noites muito recolhidas, com
alguns intimos, no seu boudoir azul. Já não fumava; abandonara
o bilhar; e vestida de preto, com uma flôr nos cabellos, fazia crochet
ao pé do candieiro. Estudava-se musica classica quando vinha o velho
Cazoti. O Alencar, que, imitando a sua dama, entrara tambem na gravidade,
recitava traducções de Klopstock. Fallava-se com sisudez de
politica; Maria era muito regeneradora.
E todas essas noites, Tancredo lá estava, indolente e bello, desenhando
alguma flôr para ella bordar, ou tangendo á guitarra canções
populares de Napoles. Todos alli o adoravam; mas ninguem mais que o velho
Monforte, que passava horas, enterrado na sua alta gravata, contemplando o
Principe com enternecimento. Depois, de repente, erguia-se, atravessava a
sala, ia-se debruçar sobre elle, palpal-o, sentil-o, respiral-o, murmurando
no seu francez de embarcadiço:
– Ça aller bien… Hein? Beaucoup bien… Ora estimo…
E estas correntes bruscas de affecto communicavam-se decerto, porque n’esse
momento Maria tinha sempre um dos seus lindos sorrisos para o papá
ou vinha beijal-o na testa.
De dia occupava-se de cousas serias. Organisara uma util associação
de caridade, a Obra pia dos cobertores, com o fim de fazer no inverno ás
familias necessitadas distribuições de agasalhos; e presidia
no salão de Arroios, com uma campainha, as reuniões em que se
elaboravam os estatutos. Visitava os pobres. Ia tambem amiudadas vezes a uma
devoção ás Egrejas, toda vestida de preto, a pé,
com um véo muito espesso no rosto.
O esplendor da sua belleza apparecia agora velado por uma sombra tocante de
ternura grave: a Deusa idealisava-se em Madona; e não era raro ouvil-a
de repente suspirar sem razão.
Ao mesmo tempo a sua paixão pela filha crescia. Tinha então
dois annos e estava realmente adoravel; vinha todas as noites um momento á
sala, vestida com um luxo de princeza; e as exclamações, os
extasis de Tancredo não findavam! Fizera-lhe o retrato a carvão,
a esfuminho, a aquarella; ajoelhava-se para lhe beijar a mãosinha côr
de rosa, como ao bambino sagrado. E Maria, agora, apesar dos protestos de
Pedro, dormia sempre com ella entre os braços.
Ao começo d’esse setembro o velho Monforte partiu para os Pyrineos.
Maria chorou, dependurada do pescoço do velho, como se elle largasse
de novo para as travessias de Africa.
Ao jantar, porém, chegou já consolada e radiante; e Pedro voltou
a fallar da reconciliação, parecendo-lhe bom o momento de ir
a Bemfica recuperar para sempre aquelle papá tão teimoso…
– Ainda não, disse ella reflectindo, olhando o seu calice de Bordeus.
Teu pae é uma especie de santo, ainda o não merecemos… Mais
para o inverno.
Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Affonso da Maia estava no
seu escriptorio lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando
os olhos do livro, viu Pedro deante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado,
e na sua face livida, sob os cabellos revoltos, luzia um olhar de loucura.
O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços
do pae, rompeu a chorar perdidamente.
– Pedro! que succedeu, filho?
Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, á idéa do
filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo á sua
solidão os dois netos, toda uma descendencia para amar! E repetia,
tremulo tambem, desprendendo-o de si com grande amor:
– Socega, filho, que foi?
Pedro então cahiu para o canapé, como cae um corpo morto; e
levantando para o pae um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra,
n’uma voz surda:
– Estive fóra de Lisboa dois dias… Voltei esta manhã… A
Maria tinha fugido de casa com a pequena… Partiu com um homem, um italiano…
E aqui estou!
Affonso da Maia ficou deante do filho, quedo, mudo, como uma figura de pedra;
e a sua bella face, onde todo o sangue subira enchia-se pouco a pouco, de
uma grande colera. Viu, n’um relance, o escandalo, a cidade galhofando, as
compaixões, o seu nome pela lama. E era aquelle filho que, despresando
a sua auctoridade, ligando-se a essa creatura, estragara o sangue da raça,
cobria agora a sua casa de vexame. E alli estava! alli jazia sem um grito,
sem um furor, um arranque brutal de homem trahido! Vinha atirar-se para um
sophá, chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passeiar
pela sala, rigido e aspero, cerrando os labios para que não lhe escapassem
as palavras de ira e de injuria que lhe enchiam o peito em tumulto… – Mas
era pae: ouvia, alli ao seu lado, aquelle soluçar de funda dôr;
via tremer aquelle pobre corpo desgraçado que elle outr’ora emballara
nos braços; – parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça
entre as mãos, e beijou-o na testa, uma vez, outra vez, como se elle
fosse ainda creança, restituindo-lhe alli e para sempre a sua ternura
inteira.
– Tinha razão, meu pae, tinha razão, murmurava Pedro entre lagrimas.
Depois ficaram callados. Fóra, as pancadas successivas da chuva batiam
a casa, a quinta, n’um clamor prolongado; e as arvores, sob as janellas, ramalhavam
n’um vasto vento de inverno.
Foi Affonso que quebrou o silencio:
– Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Não é só
chorar…
– Não sei nada, respondeu Pedro n’um longo esforço. Sei que
fugiu. Eu sahi de Lisboa na segunda feira. N’essa mesma noite, ella partiu
de casa numa carruagem, com uma maleta, o cofre de joias, uma creada italiana
que tinha agora, e a pequena. Disse á governante e á ama do
pequeno que ia ter comigo. Ellas estranharam, mas que haviam de dizer?…
Quando voltei, achei esta carta.
Era um papel já sujo, e desde essa manhã de certo muitas vezes
relido, amarrotado com furia. Continha estas palavras:
«É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me
que não sou digna de ti, e levo a Maria que me não posso separar
d’ella.»
– E o pequeno, onde está o pequeno? exclamou Affonso.
Pedro pareceu recordar-se:
– Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.
0 velho correu, logo; e d’ahi a pouco apparecia, erguendo nos braços
o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era
gordo, de olhos muito negros, com uma adoravel bochecha fresca e côr
de rosa. Todo elle ria, grulhando, agitando o seu guiso de prata. A ama não
passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxasinha na mão.
Affonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e accommodou o neto no collo.
Os olhos enchiam-se-lhe de uma bella luz de ternura; parecia esquecer a agonia
do filho, a vergonha domestica; agora só havia alli aquella facesinha
tenra, que se lhe babava nos braços…
– Como se chama elle?
– Carlos Eduardo, murmurou a ama.
– Carlos Eduardo, hein?
Ficou a olhal-o muito tempo, como procurando n’elle os signaes da sua raça:
depois tomou-lhe na sua as duas mãosinhas vermelhas que não
largavam o guiso, e muito grave, como se a creança o percebesse, disse-lhe:
– Olha bem para mim. Eu sou o avô. É necessario amar o avô!
E áquella forte voz, o pequeno, com effeito, abriu os seus lindos olhos
para elle, serios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas:
depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a mãosinha,
e martellou-lhe furiosamente a cabeça com o guiso.
Toda a face do velho sorria áquella viçosa alegria; apertou-o
ao seu largo peito muito tempo, poz-lhe na face um beijo longo, consolado,
enternecido, o seu primeiro beijo d’avô; depois, com todo o cuidado,
foi collocal-o nos braços da ama.
– Vá, ama, vá… A Gertrudes já lá anda a arranjar-lhe
o quarto, vá vêr o que é necessario.
Fechou a porta, e veiu sentar-se junto do filho que se não movera do
canto do sophá, nem despregára os olhos do chão.
– Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo… Olha que nos não vemos ha
tres annos, filho…
– Ha mais de tres annos, murmurou Pedro.
Ergueu-se, allongou a vista á quinta, tão triste sob a chuva;
depois, derramando-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu
proprio retrato, feito em Roma aos doze annos, todo de velludo azul, com uma
rosa na mão. E repetia ainda amargamente:
– Tinha razão, meu pae, tinha razão…
E pouco a pouco, passeiando e suspirando, começou a fallar d’aquelles
ultimos annos, o inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a intimidade
do italiano na casa, os planos de reconciliação, por fim aquella
carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade, arremessando-lhe o nome do
outro!… No primeiro momento tivera só idéas de sangue e quizera
perseguil-os. Mas conservava um clarão de razão. Seria ridiculo,
não é verdade? De certo a fuga fora d’antemão preparada,
e não havia de ir correndo as estalagens da Europa á busca de
sua mulher… Ir lamentar-se á policia, fazel-os prender? Uma imbecillidade;
nem impedia que ella fosse já por esses caminhos fóra dormindo
com outro… Restava-lhe sómente o desprezo. Era uma bonita amante
que tivera alguns annos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho,
sem mãe, com um mau nome. Paciencia! Necessitava esquecer, partir para
uma longa viagem, para a America talvez; e o pae veria, havia de voltar consolado
e forte.
Dizia estas cousas sensatas, passeiando devagar, com o charuto apagado nos
dedos, n’uma voz que se calmava. Mas de repente parou deante do pae, com um
riso secco, um brilho feroz nos olhos.
– Sempre desejei ver a America, e é boa occasião agora… É
uma occasião famosa, hein? Posso até naturalisar-me, chegar
a presidente, ou rebentar… Ah! Ah!
– Sim, mais tarde, depois pensarás n’isso, filho, accudiu o velho assustado.
N’esse momento a sineta do jantar começou a tocar lentamente, ao fundo
do corredor.
– Ainda janta cedo, hein? disse Pedro.
Teve um suspiro cançado e lento, murmurou:
– Nós jantavamos ás sete…
Quiz então que o pae fosse para a mesa. Não havia motivo para
que se não jantasse. Elle ia um bocado acima, ao seu antigo quarto
de solteiro… Ainda lá tinha a cama, não é verdade?
Não, não queria tomar nada…
– O Teixeira que me leve um calice de genebra… Ainda cá está
o Teixeira, coitado!
E vendo Affonso sentado, repetiu, já impaciente:
– Vá jantar meu pae, vá jantar, pelo amor de Deus…
Saiu. O pae ouviu-lhe os passos por cima, e o ruido de janellas desabridamente
abertas. Foi então andando para a sala de jantar, onde os criados que
pela ama sabiam de certo o desgosto se moviam em pontas de pés, com
a lentidão contristada d’uma casa onde ha morte. Affonso sentou-se
á mesa só; mas já lá estava outra vez o talher
de Pedro; rosas de inverno esfolhavam-se n’um vaso do Japão; e o velho
papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosamente no poleiro.
Affonso tomou uma colher de sopa, depois rolou a sua poltrona para junto do
fogão; e ali ficou envolvido pouco a pouco n’aquelle melancolico crepusculo
de dezembro, com os olhos no lume, escutando o sudoeste contra as vidraças,
pensando em todas as cousas terriveis que assim invadiam n’um tropel pathetico
a sua paz de velho. Mas no meio da sua dôr, funda como era, elle percebia
um ponto, um recanto do seu coração onde alguma cousa de muito
doce, de muito novo, palpitava com uma frescura de renascimento, como se algures,
no seu ser, estivesse rompendo, burbulhando uma nascente rica de alegrias
futuras; e toda a sua face sorria á chama alegre, revendo a bochechinha
rosada, sob as rendas brancas da touca…
Pela casa no entanto tinham-se accendido as luzes. Já inquieto subiu
ao quarto do filho; estava tudo escuro, tão humido e frio, como se
a chuva caisse dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quando chamou, a voz
de Pedro veiu do negro da janella: estava lá, com a vidraça
aberta, sentado fóra na varanda, voltado para a noite brava, para o
sombrio rumor das ramagens, recebendo na face o vento, a agua, toda a invernia
agreste.
– Pois estás aqui filho! exclamou Affonso. Os criados hão de
querer arranjar o quarto, desce um momento… Estás todo molhado, Pedro!
Apalpava-lhe os joelhos, as mãos regeladas. Pedro ergueu-se com um
estremeção, desprendeu-se, impaciente d’aquella ternura do velho.
– Querem arranjar o quarto, hein? Faz-me bem o ar, faz-me tão bem!
O Teixeira trouxe luzes, e atraz d’elle appareceu o criado de Pedro, que chegára
n’esse momento de Arroios, com um largo estojo de viagem recoberto de oleado.
As malas tinha-as deixado em baixo; e o cocheiro viera tambem, como nenhum
dos senhores estava em casa…
– Bem, bem, interrompeu Affonso. O sr. Villaça lá irá
amanhã, e elle dará as ordens.
O criado então, em bicos de pés, foi depôr o estojo sobre
o marmore da commoda: ainda lá restavam antigos frascos de toilette
de Pedro: e os castiçaes sobre a meza allumiavam o grande leito triste
de solteiro com os colxões dobrados ao meio.
A Gertrudes toda atarefada entrara com os braços carregados de roupa
de cama; o Teixeira bateu vivamente os travesseiros; o criado d’Arroios pousando
o chapéo a um canto, e sempre em ponta de pés, veiu ajudal-os
tambem. Pedro no entanto, como somnambulo, voltara para a varanda, com a cabeça
á chuva, attraido por aquella treva da quinta que se cavava em baixo
com um rumor de mar bravo.
Affonso, então, puxou-lhe o braço quasi com aspereza.
– Pedro! Deixa arranjar o quarto! Desce um momento.
Elle seguiu maquinalmente o pae á livraria, mordendo o charuto apagado
que desde tarde conservava na mão. Sentou-se longe da luz, ao canto
do sophá, ali ficou mudo e entorpecido. Muito tempo só os passos
lentos do velho, ao comprido das altas estantes, quebraram o silencio em que
toda a sala ia adormecendo. Uma braza morria no fogão. A noite parecia
mais aspera. Eram de repente vergastadas d’agua contra as vidraças,
trazidas n’uma rajada, que longamente, n’um clamor teimoso, faziam escoar
um diluvio dos telhados; depois havia uma calma tenebroza, com uma susurração
distante de vento fugindo entre ramagens: n’esse silencio as goteiras punham
um pranto lento; e logo uma corda de vendaval corria mais furioso, envolvia
a casa n’um bater de janellas, redomoinhava, partia com silvos desolados.
– Está uma noite de Inglaterra, disse Affonso, debruçando-se
a espertar o lume.
Mas a esta palavra Pedro erguera-se, impetuosamente. De certo o ferira a idéa
de Maria, longe, n’um quarto alheio, agazalhando-se-lhe no leito do adulterio
entre os braços do outro. Apertou um instante a cabeça nas mãos,
depois veiu junto do pae, com o passo mal firme, mas a voz muito calma.
– Estou realmente cançado, meu pae, vou-me deitar. Boa noite… Amanhã
conversaremos mais.
Beijou-lhe a mão e saiu de vagar.
Affonso demorou-se ainda ali, com um livro na mão, sem ler, attento
só a algum rumor que viesse de cima; mas tudo jazia em silencio.
Deram dez horas. Antes de se recolher foi ao quarto onde se fizera a cama
da ama. A Gertrudes, o criado de Arroios, o Teixeira, estavam lá cochichando
ao pé da commoda, na penumbra que dava um folio posto deante do candieiro;
todos se esquivaram em pontas de pés quando lhe sentiram os passos,
e a ama continuou a arrumar em silencio os gavetões. No vasto leito,
o pequeno dormia como um Menino Jesus cançado, com o seu guiso apertado
na mão. Affonso não ousou beijal-o, para o não acordar
com as barbas asperas; mas tocou-lhe na rendinha da camisa, entalou a roupa
contra a parede, deu um geito ao cortinado, enternecido, sentindo toda a sua
dôr calmar-se n’aquella sombra de alcova onde o seu neto dormia.
– É necessário alguma cousa, ama? perguntou, abafando a voz.
– Não, meu senhor…
Então, sem ruido, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara,
entreabriu a porta. O filho escrevia, á luz de duas vellas, com o estojo
aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pae: e na face que ergueu, envelhecida
e livida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros.
– Estou a escrever, disse elle.
Esfregou as mãos, como arripiado da friagem do quarto, e accrescentou:
– Amanhã cedo é necessario que o Villaça vá a
Arroios… Estão lá os criados, tenho lá dois cavallos
meus, emfim uma porção de arranjos. Eu estou-lhe a escrever.
É numero 32 a casa d’elle, não é? O Teixeira ha de saber.
Boas noites, papá, boas noites.
No seu quarto, ao lado da livraria, Affonso não poude socegar, n’uma
oppressão, uma inquietação que a cada momento o faziam
erguer sobre o travesseiro, escutar: agora, no silencio da casa e do vento
que calmara, ressoavam por cima lentos e continuos os passos de Pedro.
A madrugada clareava, Affonso ia adormecendo – quando de repente um tiro atroou
a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um creado acudia tambem
com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de
polvora; e aos pés da cama, caido de bruços, n’uma poça
de sangue que se ensopava no tapete, Affonso encontrou seu filho morto, apertando
uma pistola na mão.
Entre as duas vélas que se extinguiam, com fogachos lividos, deixára-lhe
uma carta lacrada com estas palavras sobre o enveloppe, numa letra firme:
Para o papá.
D’ahi a dias fechou-se a casa de Bemfica. Affonso da Maia partia com o neto
e com todos os criados para a quinta de Sta. Olavia.
Quando Villaça, em fevereiro, foi lá acompanhar o corpo de
Pedro, que ia ser depositado no jazigo de familia, não pôde conter
as lagrimas ao avistar aquella vivenda onde passára tão alegres
nataes. Um baetão preto recobria o brazão d’armas, e esse panno
de esquife parecia ter distingido todo o seu negrume sobre a fachada muda,
sobre os castanheiros que ornavam o pateo; dentro os criados abafavam a voz,
carregados de luto; não havia uma flor nas jarras; o proprio encanto
de Sta. Olavia, o fresco cantar das aguas vivas por tanques e repuchos, vinha
agora com a cadencia saudosa de um choro. E Villaça foi encontrar Affonso
na livraria, com as janellas cerradas ao lindo sol de inverno, caido para
uma poltrona, a face cavada sob os cabellos crescidos e brancos, as mãos
magras e ociosas sobre os joelhos…
O procurador veio dizer para Lisboa que o velho não durava um anno.
Capítulo III
Mas esse anno passou, outros annos passaram.
Por uma manhã de abril, nas vesperas de Paschoa, Villaça chegava
de novo a Sta. Olavia.
Não o esperavam tão cedo; e como era o primeiro dia bonito d’essa
primavera chuvosa os senhores andavam para a quinta. O mordomo, o Teixeira,
que ia já embranquecendo, mostrou-se todo satisfeito de ver o sr. administrador
com quem ás vezes se correspondia, e conduziu-o á sala de jantar
onde a velha governante, a Gertrudes, tomada de surpreza, deixou cair uma
pilha de guardanapos e para lhe saltar ao pescoço.
As tres portas envidraçadas estavam abertas para o terraço,
que se estendia ao sol, com a sua balustrada de marmore coberta de trepadeiras:
e Villaça, adiantando-se para os degraus que desciam ao jardim, mal
poude reconhecer Affonso da Maia n’aquelle velho de barba de neve, mas tão
robusto e corado, que vinha subindo a rua de romanzeiras com o seu neto pela
mão.
Carlos, ao avistar no terraço um desconhecido, de chapéo alto,
abafado n’um cache-nez de pelucia, correu a miral-o, curioso – e achou-se
arrebatado nos braços do bom Villaça, que largara o guarda sol,
o beijava pelo cabello, pela face, balbuciando:
– Oh meu menino, meu querido menino! Que lindo que está! que crescido
que está…
– Então, sem avisar, Villaça? exclamava Affonso da Maia, chegando
de braços abertos. Nós só o esperavamos para a semana,
creatura!
Os dois velhos abraçaram-se; depois um momento os seus olhos encontraram-se,
vivos e humidos, e tornaram a apertar-se commovidos.
Carlos ao lado, muito serio, todo esbelto, com as mãos enterradas nos
bolsos das suas largas bragas de flanella branca, o casquete da mesma flanella
posta de lado sobre os bellos anneis do cabello negro – continuava a mirar
o Villaça, que com o beiço tremulo, tendo tirado a luva, limpava
os olhos por baixo dos oculos.
– E ninguem a esperal-o, nem um criado lá em baixo no rio! dizia Affonso.
Emfim, cá o temos, é o essencial… E como você está
rijo, Villaça!
– E v. ex.ª meu senhor! balbuciou o administrador, engulindo um soluço.
Nem uma ruga! Branco sim, mas uma cara de moço… Eu nem o conhecia!…
Quando me lembro, a ultima vez que o vi… E cá isto! cá esta
linda flor!…
Ia abraçar Carlos outra vez enthusiasmado, mas o rapaz fugiu-lhe com
uma bella risada, saltou do terraço, foi pendurar-se d’um trapesio
armado entre as arvores, e ficou lá, balançando-se em cadencia,
forte e airoso, gritando: «tu és o Villaça!»
O Villaça, de guarda sol debaixo do braço, contemplava-o embevecido.
– Está uma linda creança! Faz gosto! E parece-se com o pae.
Os mesmo olhos, olhos dos Maias, o cabello encaracolado… Mas ha de ser muito
mais homem!
– É são, é rijo, dizia o velho risonho, anediando as
barbas. E como ficou o seu rapaz, o Manuel? Quando é esse casamento?
Venha você cá para dentro, Villaça, que ha muito que conversar…
Tinham entrado na sala de jantar, onde um lume de lenha na chaminé
de azulejo esmorecia na fina e larga luz de abril; porcelanas e pratas resplandeciam
nos aparadores de pau santo; os canarios pareciam doudos de alegria.
A Gertrudes, que ficára a observar, acercou-se, com as mãos
cruzadas sob o avental branco, familiar, terna.
– Então, meu senhor, aqui está um regalo, vêr outra vez
este ingrato em Sta. Olavia!
E, com um clarão de sympathia na face, alva e redonda como uma velha
lua, ornada já de um buço branco:
-Ah! sr. Villaça, isto agora é outra cousa! Até os canarios
cantam! E tambem eu cantava, se ainda podesse.
E foi saindo, subitamente commovida, já com vontade de chorar.
O Teixeira esperava, com um riso superior e mudo que lhe ia d’uma á
outra ponta dos seus altos collarinhos de mordomo.
– Eu creio que prepararam o quarto azul ao sr. Villaça, hein? disse
Affonso. No quarto em que você costumava ficar dorme agora a viscondessa…
Então o Villaça apressou-se a perguntar pela sr.ª viscondessa.
Era uma Runa, uma prima da mulher de Affonso, que, no tempo em que os poetas
de Caminha a cantavam, casára com um fidalgote gallego, o sr. visconde
de Urigo-de-la-Sierra, um borracho, um brutal que lhe batia: depois, viuva
e pobre, Affonso recolhera-a por dever de parentella, e para haver uma senhora
em Sta. Olavia.
Ultimamente passara mal… Mas, olhando o relogio, Affonso interrompeu a relação
desses achaques.
– Villaça, vá-se arranjar, depressa, que d’aqui a pouco é
o jantar.
O administrador surprehendido olhou tambem o relogio, depois a mesa já
posta, os seis talheres, o cesto de flores, as garrafas de Porto.
– Então v. ex.ª agora janta de manhã? Eu pensei que era
o almoço…
– Eu lhe digo, o Carlos necessita ter um regimen. De madrugada está
já na quinta; almoça ás sete; e janta á uma hora.
E eu, emfim, para vigiar as maneiras do rapaz…
– E o sr. Affonso da Maia, exclamou Villaça, a mudar de habitos, n’essa
edade! O que é ser avô, meu senhor!
– Tolice! não é isso… É que me faz bem. Olhe que me
faz bem!… Mas avie-se, Villaça, avie-se que Carlos não gosta
de esperar… Talvez tenhamos o abbade.
– O Custodio? Rica cousa! Então, se v. ex.ª me dá licença…
Apenas no corredor, o mordomo, ancioso por conversar com o sr. administrador,
perguntou-lhe, desembaraçando-o do guarda sol e do chale-manta:
– Com franqueza, como nos acha por cá, pela quinta sr. Villaça?
– Estou contente, Teixeira, estou contente. Pode-se vir por gosto a Sta. Olavia.
E, pousando familiarmente a mão no hombro do escudeiro, piscando o
olho ainda humido:
– Tudo isto é o menino. Fez reviver o patrão! O Teixeira riu
respeitosamente. O menino realmente era a alegria da casa…
– Olá! Quem toca por cá? exclamou Villaça, parando nos
degraus da escada, ao ouvir em cima um afinar gemente de rebeca.
– É o sr. Brown, o inglez, o preceptor do menino… Muito habilidoso,
é um regalo ouvil-o; toca ás vezes á noite na sala, o
sr. juiz de direito acompanha-o na concertina… Aqui, sr. Villaça,
o quarto de v. s.ª…
– Muito bonito, sim senhor!
O verniz dos moveis novos brilhava na luz das duas janellas, sobre o tapete
alvadio semeado de florsinhas azues: e as bambinellas, os reposteiros de cretóne,
repetiam as mesmas folhagens azuladas sobre fundo claro. Este conforto fresco
e campestre deleitou o bom Villaça.
Foi logo apalpar os cretónes, esfregou o marmore da commoda, provou
a solidez das cadeiras. Eram as mobilias compradas no Porto, hein? Pois, elegantes.
E, realmente, não tinham sido caras. Nem elle fazia idéa! Ficou
ainda em bicos de pés a examinar duas aguarellas inglezas representando
vaccas de luxo, deitadas na relva, á sombra de ruinas romanticas. O
Teixeira, observou-lhe, com o relogio na mão:
– Olhe que v. s.ª tem só dez minutos… O menino não gosta
de esperar.
Então o Villaça decidiu-se a desenrolar o cache-nez; depois
tirou o seu pesado collete de malha de lã; e pela camisa entreaberta
via-se ainda uma flanella escarlate por causa dos rheumatismos, e os bentinhos
de seda bordada. O Teixeira desapertava as correias da maleta; ao fundo do
corredor, a rebeca atacara o Carnaval de Veneza; e atravez das janellas fechadas
sentia-se o grande ar, a frescura, a paz dos campos, todo o verde d’abril.
Villaça, sem oculos, um pouco arripiado, passava a ponta da toalha
molhada pelo pescoço, por traz da orelha, e ia dizendo:
– Então, o nosso Carlinhos não gosta de esperar, hein? Já
se sabe, é elle quem governa… Mimos e mais mimos, naturalmente…
Mas o Teixeira muito grave, muito serio, desilludiu o sr. administrador. Mimos
e mais mimos, dizia s. s.ª? Coitadinho d’elle, que tinha sido educado
com uma vara de ferro! Se elle fosse a contar ao sr. Villaça! Não
tinha a creança cinco annos já dormia n’um quarto só,
sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro d’uma tina
d’agua fria, ás vezes a gear lá fóra… E outras barbaridades.
Se não se soubesse a grande paixão do avô pela creança,
havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, elle, Teixeira, chegara
a pensal-o… Mas não, parece que era systema inglez! Deixava-o correr,
cair, trepar ás arvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho
de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de
certas cousas… E ás vezes a creancinha, com os olhos abertos, a aguar!
Muita, muita dureza.
E o Teixeira accrescentou:
– Emfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nós approvassemos
a educação que tem levado, isso nunca approvámos, nem
eu, nem a Gertrudes.
Olhou outra vez o relogio, preso por uma fita negra sobre o collete branco,
deu alguns passos lentos pelo quarto: depois, tomando de sobre a cama a sobrecasaca
do procurador, foi-lhe passando a escova pela gola, de leve e por amabilidade,
em quanto dizia, junto ao toucador onde o Villaça acamava as duas longas
repas sobre a calva:
– Sabe v. s.ª, apenas veiu o mestre inglez, o que lhe ensinou? A remar!
A remar, sr. Villaça, como um barqueiro! Sem contar o trapesio, e as
habilidades de palhaço; eu n’isso nem gosto de fallar… Que eu sou
o primeiro a dizel-o: o Brown é boa pessoa, calado, asseado, excellente
musico. Mas é o que eu tenho repetido á Gertrudes: póde
ser muito bom para inglez, não é para ensinar um fidalgo portuguez…
Não é. Vá v. s.ª fallar a esse respeito com a sr.ª
D. Anna Silveira…
Bateram de manso á porta, o Teixeira emmudeceu. Um escudeiro entrou,
fez um signal ao mordomo, tirou-lhe do braço respeitosamente a sobrecasaca,
e ficou com ella junto do toucador, onde o Villaça, vermelho e apressado,
luctava ainda com as repas rebeldes.
O Teixeira, da porta, disse com o relogio na mão:
– É o jantar. Tem v. s.ª dois minutos, sr. Villaça.
E o administrador d’ahi a um momento abalava tambem, abotoando ainda o casaco
pelas escadas.
Os senhores já estavam todos na sala. Junto do fogão, onde as
achas consumidas morriam na cinza branca, o Brown percorria o Times. Carlos,
a cavallo nos joelhos do avô, contava-lhe uma grande historia de rapazes
e de bulhas; e ao pé o bom abbade Custodio, com o lenço de rapé
esquecido nas mãos, escutava, de bocca aberta, n’um riso paternal e
terno.
– Olhe quem alli vem, abbade, disse-lhe Affonso.
O abbade voltou-se, e deu uma grande palmada na côxa:
– Esta é nova! Então é o nosso Villaça? E não
me tinham dito nada! Venham de lá esses ossos, homem!…
Carlos pulava nos joelhos do avô, muito divertido com aquelles longos
abraços que juntavam as duas cabeças dos velhos – uma com as
repas achatadas sobre a calva, outra com uma grande corôa aberta n’uma
matta de cabello branco. E como elles, de mãos dadas, continuavam a
admirar-se, a estudarem um no outro as rugas dos annos, Affonso disse:
– Villaça! a sr.ª viscondessa…
O administrador porém procurou-a debalde, com os olhos abertos pela
sala. Carlos ria, batendo as mãos: – e Villaça descobriu-a emfim
a um canto, entre o aparador e a janella, sentada n’uma cadeirinha baixa,
vestida de preto, timida e queda, com os braços rechonchudos pousados
sobre a obesidade da cinta. O rosto anafado e molle, branco como papel, as
roscas do pescoço, cobriram-se-lhe subitamente de rubor; não
achou uma palavra para dizer ao Villaça, e estendeu-lhe a mão
papuda e pallida, com um dedo embrulhado n’um pedaço de seda negra.
Depois ficou a abanar-se com um grande leque de lentejoulas, o seio a arfar,
os olhos no regaço, como exhausta d’aquelle esforço.
Dois escudeiros tinham começado a servir a sopa, o Teixeira esperava,
perfilado por traz do alto espaldar da cadeira de Affonso.
Mas Carlos cavalgava ainda o avô, querendo acabar outra historia. Era
o Manuel, trazia uma pedra na mão… Elle primeiro pensára ir
ás boas; mas os dois rapazes começaram a rir… De maneira que
os correu a todos…
– E maiores que tu?
– Tres rapagões, vôvô, póde perguntar á tia
Pedra… Ella viu, que estava na eira. Um d’elles trazia uma foice…
– Está bom, senhor, está bom, ficamos inteirados… Vá,
desmonte, que está a sopa a esfriar. Upa! upa!
E o velho, com o seu aspecto resplandecente de patriarcha feliz, veiu sentar-se
ao alto da meza, sorrindo e dizendo:
– Já se vae fazendo pesado, já não está para collo…
Mas reparou então no Brown, e tornando a erguer-se fez a apresentação
do procurador.
– O sr. Brown, o amigo Villaça… Peço perdão, descuidei-me,
foi culpa d’aquelle cavalheiro lá ao fundo da meza, o sr. D. Carlos
de mata-sete!
O perceptor, solidamente abotoado na sua longa sobrecasaca militar, deu toda
a volta á meza, rigido e teso, para vir sacudir o Villaça n’um
tremendo shake-hands; depois, sem uma palavra, reoccupou o seu logar, desdobrou
o guardanapo, cofiou os formidaveis bigodes, e foi então que disse
ao Villaça, com o seu forte accento inglez:
– Muito bello dia… glorioso!
– Tempo de rosas, respondeu o Villaça, comprimentando, intimidado diante
d’aquelle athleta.
Naturalmente, n’esse dia, fallou-se da jornada de Lisboa, do bom serviço
da malla-posta, do caminho de ferro que se ia abrir… O Villaça já
viera no comboyo até ao Carregado.
– De causar horror, hein? perguntou o abbade, suspendendo a colher que ia
levar á bocca.
O excellente homem nunca saira de Resende; e todo o largo mundo, que ficava
para além da penumbra da sua sachristia e das arvores do seu passal,
lhe dava o terror d’uma Babel. Sobre tudo essa estrada de ferro, de que tanto
se fallava…
– Faz arripiar um bocado, affirmou com experiencia Villaça. Digam o
que disserem, faz arripiar!
Mas o abbade assustava-se sobre tudo com as inevitaveis desgraças d’essas
machinas!
O Villaça então lembrou os desastres da mala-posta. No de Alcobaça,
quando tudo se virou, ficaram esmagadas duas irmãs de caridade! Emfim
de todos os modos havia perigos. Podia-se quebrar uma perna a passear no quarto…
O abbade gostava do progresso… Achava até necessario o progresso.
Mas parecia-lhe que se queria fazer tudo á lufa-lufa… O paiz não
estava para essas invenções; o que precisava eram boas estradinhas…
– E economia! disse o Villaça, puxando para si os pimentões.
– Bucellas? murmurou-lhe sobre o hombro o escudeiro.
O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe á luz a
côr rica, provou-o com a ponta do labio, e piscando o olho para Affonso:
– É do nosso!
– Do velho, disse Affonso. Pergunte ao Brown… Hein, Brown, um bom nectar?
– Magnificente! exclamou o perceptor com uma energia fogosa.
Então Carlos, estendendo o braço por cima da meza, reclamou
tambem Bucellas. E a sua razão era haver festa por ter chegado o Villaça.
O avô não consentiu; o menino teria o seu calice de Collares,
como de costume, e um só. Carlos crusou os braços sobre o guardanapo
que lhe pendia do pescoço, espantado de tanta injustiça! Então
nem para festejar o Villaça poderia apanhar uma gotinha de Bucellas?
Ahi estava uma linda maneira de receber os hospedes na quinta… A Gertrudes
dissera-lhe que como viera o sr. administrador, havia de pôr á
noite para o chá o fato novo de velludo. Agora observavam-lhe que não
era festa, nem caso para Bucellas… Então não entendia.
O avô, que lhe bebia as palavras, enlevado, fez subitamente um carão
severo.
– Parece-me que o senhor está palrando de mais. As pessoas grandes
é que palram á meza.
Carlos recolheu-se logo ao seu prato, murmurando muito mansamente:
– Está bom, vôvô, não te zangues. Esperarei para
quando for grande…
Houve um sorriso em volta da meza. A propria viscondessa, deleitada, agitou
preguiçosamente o leque: o abbade, com a sua boa face banhada em extasi
para o menino, apertava as mãos cabelludas contra o peito, tanto aquillo
lhe parecia engraçado: e Affonso tossia por traz do guardanapo, como
limpando as barbas – a esconder o riso, a admiração que lhe
brilhava nos olhos.
Tanta vivacidade surprehendeu tambem Villaça. Quiz ouvir mais o menino,
e pousando o seu talher:
– E diga-me, Carlinhos, já vae adiantado nos seus estudos?
O rapaz, sem o olhar, repoltreou-se, mergulhou as mãos pelo cós
das flanellas, e respondeu com um tom superior:
– Já faço ladear a Brigida.
Então o avô, sem se conter, largou a rir, cahido para o espaldar
da cadeira:
– Essa é boa! Eh ! Eh! Já faz ladear a Brigida! E é verdade,
Villaça, já a faz ladear… Pergunte ao Brown; não é
verdade, Brown? E a eguasita é uma piorrita, mas fina…
– Oh vôvô, gritou Carlos já excitado, dize ao Villaça,
anda. Não é verdade que eu era capaz de governar o dog-cart?
Affonso reassumio um ar severo.
– Não o nego… Talvez o governasse, se lh’o consentissem. Mas faça-me
favor de se não gabar das suas façanhas, porque um bom cavalleiro
deve ser modesto… E sobre tudo não enterrar assim as mãos
pela barriga abaixo…
O bom Villaça, no entanto, dando estalinhos aos dedos, preparava uma
observação. Não se podia de certo ter melhor prenda que
montar a cavallo com as regras… Mas elle queria dizer se o Carlinhos já
entrava com o seu Phedro, o seu Tito Liviosinho…
– Villaça, Villaça, advertiu o abbade, de garfo no ar e um sorriso
de santa malicia, não se deve fallar em latim aqui ao nosso nobre amigo…
Não admitte, acha que é antigo… Elle, antigo é…
– Ora sirva-se d’esse fricassé, ande abbade, disse Affonso, que eu
sei que é o seu fraco, e deixe lá o latim…
O abbade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico os bons pedaços
de ave, ia murmurando:
– Deve-se começar pelo latimsinho, deve-se começar por lá…
É a base; é a basesinha!
– Não! latim mais tarde! exclamou o Brown, com um gesto possante. Prrimeiro
forrça! Forrça! Musculo…
E repetio, duas vezes, agitando os formidaveis punhos:
– Prrimeiro musculo, musculo!…
Affonso appoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um
luxo d’erudito… Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma creança
n’uma lingua morta quem foi Fabio, rei dos Sabinos, o caso dos Grachos, e
outros negocios d’uma nação extincta, deixando-o ao mesmo tempo
sem saber o o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que
come, e todas as outras cousas do Universo em que vive…
– Mas emfim os classicos, arriscou timidamente o abbade.
– Qual classicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é
necessario ser são, e ser forte. Toda a educação sensata
consiste n’isto: crear a saude, a força e os seus habitos, desenvolver
exclusivamente o animal, armal’o d’uma grande superioridade physica. Tal qual
como se não tivesse alma. A alma vem depois… A alma é outro
luxo. É um luxo de gente grande…
O abbade coçava a cabeça, com o ar arripiado.
– A instrucçãosinha é necessaria, disse elle. Você
não acha, Villaça? Que v. ex.ª, sr. Affonso da Maia, tem
visto mais mundo do que eu… Mas emfim a instrucçãosinha…
– A instrucção para uma creança não é recitar
Tityre, tu patulae recubans… É saber factos, noções,
cousas uteis, cousas praticas…
Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, n’um signal ao Villaça,
mostrou-lhe o neto que palrava inglez com o Brown. Eram de certo feitos de
força, uma historia de briga com rapazes que elle lhe estava a contar,
animado e jogando com os punhos. O perceptor approvava, retorcendo os bigodes.
E á mesa os senhores com os garfos suspensos, por traz os escudeiros
de pé e guardanapo no braço, todos, n’um silencio reverente,
admiravam o menino a fallar inglez.
– Grande prenda, grande prenda, murmurou Villaça, inclinando-se para
a Viscondessa.
A excellente senhora córou, atravez d’um sorriso. Parecia assim mais
gorda, toda acaçapada na cadeira, silenciosa, comendo sempre; e, a
cada gole de Bucellas, refrescava-se languidamente com o seu grande leque
negro e lentejoulado.
Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Affonso fez uma saude ao Villaça.
Todos os copos se ergueram n’um rumor de amizade. Carlos quiz gritar Hurrah!
O avô, com um gesto reprehensivo, immobilisou-o; e na pausa satisfeita
que se fez, o pequeno disse com uma grande convicção:
– Oh avô, eu gosto do Villaça. O Villaça é nosso
amigo.
– Muito, e ha muitos annos, meu senhor! exclamou o velho procurador, tão
commovido que mal podia erguer o calice na mão.
O jantar findava. Fóra, o sol deixára o terrasso e a quinta
verdejava na grande doçura do ar tranquillo, sob o azul ferrete. Na
chaminé só restava uma cinza branca: os lilazes das jarras exhalavam
um aroma vivo, a que se misturava o do creme queimado, tocado de um fio de
limão: os creados, de colletes brancos, moviam o serviço d’onde
se escapava algum som argentino: e toda a alva toalha adamascada desapparecia
sob a confusão da sobremesa onde os tons dourados do vinho do Porto
brilhavam entre as compoteiras de crystal. A Viscondessa affogueada abanava-se.
Padre Custodio enrolava devagar o guardanapo, a sua batina coçada luzia
nas pregas das mangas.
Então Affonso, sorrindo ternamente, fez a ultima saude.
– Viva v. s.ª, snr. Carlos de Matta-sete!
– Sr. Vôvô! dizia o pequeno escorropichando o copo. A cabeçinha
de cabellos negros, a velha face de barbas de neve, saudavam-se das extremidades
da mesa – em quanto todos sorriam, no enternecimento d’aquella cerimonia.
Depois o abbade, de palito na bocca, murmurou as graças. A Viscondessa,
cerrando os olhos, juntou tambem as mãos. E Villaça que tinha
crenças religiosas não gostou de vêr Carlos, sem se importar
com as graças, saltar da cadeira, vir atirar-se ao pescoço do
avô, fallar-lhe ao ouvido.
– Não senhor! não senhor! dizia o velho.
Mas o rapaz, abraçando-o mais forte, dava-lhe grandes razões,
n’um murmurio de mimo dôce como um beijo, que ia pondo na face do velho
uma fraqueza indulgente.
– É por ser festa, disse elle emfim vencido. Mas veja lá, veja
lá…
O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou Villaça pelos braços,
fêl-o redomoinhar, e foi cantando n’um rythmo seu:
– Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!… Vou buscar a Therezinha, inha, inha,
inha!
– É a noiva, disse o avô, erguendo-se da mesa. Já tem
amores, é a pequena das Silveiras… O café para o terraço,
Teixeira.
O dia fóra convidava, adoravel, d’um azul suave, muito puro e muito
alto, sem uma nuvem. Defronte do terraço os geranios vermelhos estavam
já abertos; as verduras dos arbustos, muito tenras ainda, d’uma delicadeza
de renda, pareciam tremer ao menor sopro; vinha por vezes um vago cheiro de
violetas, misturado ao perfume adocicado das flôres do campo; o alto
repuxo cantava; e nas ruas do jardim, bordadas de buxos baixos, a areia fina
faiscava de leve áquelle sol timido de primavera tardia, que ao longe
envolvia os verdes da quinta, adormecida a essa hora de sesta n’uma luz fresca
e loura.
Os tres homens sentaram-se á mesa do café. Defronte do terraço,
o Brown, de bonet escossez posto ao lado e grande cachimbo na bocca, puchava
ao alto a barra do trapezio para Carlos se balouçar. Então o
bom Villaça pedio para voltar as costas. Não gostava de vêr
gymnasticas; bem sabia que não havia perigo; mas mesmo nos cavallinhos,
as cabriolas, os arcos, atordoavam-n’o; sahia sempre com o estomago embrulhado…
– E parece-me imprudente, sobre o jantar…
– Qual! é só balouçar-se… Olhe para aquillo!
Mas Villaça não se moveu, com a face sobre a chavena.
O abbade, esse, admirava, de labios entreabertos, e o pires cheio de café
esquecido na mão.
– Olhe para aquillo Villaça, repetio Affonso. Não lhe faz mal,
homem!
O bom Villaça voltou-se, com esforço. O pequeno muito alto no
ar, com as pernas retesadas contra a barra do trapezio, as mãos ás
cordas, descia sobre o terraço, cavando o espaço largamente,
com os cabellos ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo em pleno
sol; todo elle sorria; a sua blusa, os calções enfunavam-se
á aragem; e via-se passar, fugir, o brilho dos seus olhos muito negros
e muito abertos.
– Não está mais na minha mão, não gosto, disse
o Villaça. Acho imprudente!
Então Affonso bateu as palmas, o abbade gritou bravo, bravo. Villaça
voltou-se para applaudir, mas Carlos tinha já desapparecido; o trapezio
parava, em oscillações lentas; e o Brown, retomando o Times
que pozera ao lado sobre o pedestal d’um busto, foi descendo para a quinta
envolvido n’uma nuvem de fumo do cachimbo.
– Bella cousa, a gymnastica! exclamou Affonso da Maia, accendendo com satisfação
outro charuto.
Villaça já ouvira que enfraquecia muito o peito. E o abbade,
depois de dar um sorvo ao café, de lamber os beiços, soltou
a sua bella phrase, arranjada em maxima:
– Esta educação faz athletas mas não faz christãos.
Já o tenho dito..
– Já o tem dito abbade, já! exclamou Affonso alegremente. Diz-m’o
todas as semanas… Quer você saber, Villaça? O nosso Custodio
matta-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A cartilha!…
Custodio ficou um momento a olhar Affonso, com uma face desconsolada e a caixa
de rapé aberta na mão; a irreligião d’aquelle velho fidalgo,
senhor de quasi toda a freguezia, era uma das suas dôres:
– A cartilha, sim meu senhor, ainda que v. ex.ª o diga assim com esse
modo escarnica… A cartilha. Mas já não quero fallar na cartilha…
Ha outras cousas. E se o digo tantas vezes, sr. Affonso da Maia, é
pelo amor que tenho ao menino.
E recomeçou a discussão, que voltava sempre ao café,
quando Custodio jantava na quinta.
O bom homem achava horroroso que n’aquella edade um tão lindo moço,
herdeiro d’uma casa tão grande, com futuras responsabilidades na sociedade,
não soubesse a sua doutrina. E narrou logo ao Villaça a historia
da D. Cecilia Macedo: esta virtuosa senhora, mulher do escrivão, tendo
passado deante do portão da quinta, avistara o Carlinhos, chamara-o,
carinhosa e amiga de creanças como era, e pedira-lhe que lhe dissesse
o acto de contricção. E que respondeu o menino? Que nunca em
tal ouvira fallar! Estas cousas entristeciam. E o sr. Affonso da Maia achava-lhe
graça, ria-se! Ora alli estava o amigo Villaça que podia dizer
se era caso para jubilar. Não, o sr. Affonso da Maia tinha muito saber,
e correra muito mundo; mas d’uma cousa não o podia convencer, a elle
pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, é que houvesse felicidade
e bom comportamento na vida sem a moral do cathecismo.
E Affonso da Maia respondia com bom humor:
– Então que lhe ensinava você, abbade, se eu lhe entregasse o
rapaz? Que se não deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir,
nem maltratar os inferiores, por que isso é contra os mandamentos da
lei de Deus, e leva ao inferno, hein? É isso?…
– Ha mais alguma cousa…
– Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não deve
fazer, por ser um peccado que offende a Deus, já elle sabe que se não
deve praticar, por que é indigno d’um cavalheiro e d’um homem de bem…
– Mas, meu senhor…
– Ouça abbade. Toda a differença é essa. Eu quero que
o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas
não por medo ás
caldeiras de Pero Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do céu…
E accrescentou, erguendo-se e sorrindo:
– Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abbade, é quando vem, depois
de semanas de chuva, um dia d’estes, ir respirar pelos campos e não
estar aqui a discutir moral. Portanto arriba! e se o Villaça não
está muito cançado, vamos dar ahi um giro pelas fazendas…
O abbade suspirou como um santo que vê a negra impiedade dos tempos
e Belzebut arrebatando as melhores rezes do rebanho; depois olhou a chavena
e sorveu com delicias o resto do seu café.
Quando Affonso da Maia, Villaça e o abbade recolheram do seu passeio
pela freguezia, escurecera, havia luzes pelas salas, e tinham chegado já
as Silveiras, senhoras ricas da quinta da Lagoaça.
D. Anna Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da familia,
e era em pontos de doutrina e de etiqueta uma grande auctoridade em Resende.
A viuva, D. Eugenia, limitava-se a ser uma excellente e pachorrenta senhora,
de agradavel nutrição, trigueirota e pestanuda; tinha dois filhos,
a Theresinha, a noiva de Carlos, uma rapariguinha magra e viva com cabellos
negros como tinta, e o morgadinho, o Eusebiosinho, uma maravilha muito fallada
n’aquelles sitios.
Quasi desde o berço este notavel menino revelara um edificante amor
por alfarrabios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e já
a sua alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embrulhado n’um cobertor,
folheando in-folios, com o craneosinho calvo de sabio curvado sobre as lettras
garrafaes de boa doutrina: depois de crescidinho tinha tal proposito que permanecia
horas immovel n’uma cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca
appetecera um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o
precoce letrado, entre o pasmo da mamã e da titi, passava dias a traçar
algarismos, com a lingoasinha de fora.
Assim na familia tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro
bacharel, e depois desembargador. Quando vinha a Santa Olavia, a tia Annica
installava-o logo á mesa, ao pé do candieiro, a admirar as pinturas
d’um enorme e rico volume, os Costumes de todos os povos do Universo. Já
lá estava essa noite, vestido como sempre de escossez, com o plaid
de flamejante xadrez vermelho e negro posto a tiracollo e preso ao hombro
por uma dragona; para que conservasse o ar nobre d’um Stuart, d’um valoroso
cavalleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam o bonet onde se arqueava com
heroismo uma rutilante penna de gallo; e nada havia mais melancolico que a
sua facesinha trombuda, a que o excesso
de lombrigas dava uma molleza e uma amarellidão de manteiga, os seus
olhinhos vagos e azulados, sem pestanas como se a sciencia lh’as tivesse já
consummido, pasmando com sisudez para as camponesas da Sicilia, e para os
guerreiros ferozes do Montenegro appoiados a escupetas, em pincaros de serranias.
Deante do canapé das senhoras lá se achava tambem o fiel amigo,
o dr. delegado, grave e digno homem, que havia cinco annos andava ponderando
e meditando o casamento com a Silveira viuva, sem se decidir – contentando-se
em comprar todos os annos mais meia duzia de lençoes, ou uma peça
mais de bretanha, para arredondar o bragal. Estas compras eram discutidas
em casa das Silveiras, á brazeira: e as allusões recatadas,
mas inevitaveis, ás duas fronhasinhas, ao tamanho dos lençoes,
aos cobertores de papa para os conchegos de janeiro – em logar de inflammar
o magistrado, inquietavam-n’o. Nos dias seguintes apparecia preoccupado –
como se a perspectiva da santa consummação do matrimonio lhe
désse o arrepio de uma façanha a emprehender,o ter de agarrar
um toiro, ou nadar nos cachões do Douro. Então, por qualquer
rasão especiosa, adiava-se o casamento até ao S. Miguel seguinte.
E alliviado, tranquillo, o respeitavel Dr. continuava a acompanhar as Silveiras
a chás, festas de egreja ou pezames, vestido de preto, affavel, serviçal,
sorrindo a D. Eugenia, não desejando mais prazeres que os d’essa convivencia
paternal.
Apenas Affonso entrou na sala deram-lhe logo noticia do contratempo: o dr.
juiz de direito e a senhora não podiam vir, por que o magistrado tivera
a dôr; e as Brancos tinham mandado recado a desculpar-se, coitadas,
que era dia de tristeza em casa, por fazer desesete annos que morrera o mano
Manuel…
– Bem, disse Affonso, bem. A dôr, a tristeza, o mano Manuel… Fazemos
nós um voltaretesinho de quatro. Que diz o nosso dr. delegado?
O excellente homem dobrou a sua fronte calva, murmurando que «estava
ás ordens.»
– Então ao dever, ao dever! exclamou logo o abbade, esfregando as mãos,
no ardor já da partida.
Os parceiros dirigiram-se á saleta do jogo – que um reposteiro de damasco
separava da sala, franzido agora, deixando ver a mesa verde, e nos circulos
de luz que cahiam dos abat-jour os baralhos abertos em leque. D’ahi a um momento
o dr. delegado voltou, risonho, dizendo que «os deixara para um roquesinho
de tres»; e retomou o seu logar ao lado de D. Eugenia, cruzando os pés
debaixo da cadeira e as mãos em cima do ventre. As senhoras estavam
fallando da dôr do dr. juiz de direito. Costumava dar-lhe todos os tres
mezes: e era condemnavel a sua teima em não querer consultar medicos.
Quanto mais que elle andava acabado, ressequindo, amarellando – e a D. Augusta,
a mulher, a nutrir á larga, a ganhar côres!… A Viscondessa,
enterrada em toda a sua gordura ao canto do canapé, com o leque aberto
sobre o peito, contou que em Hespanha vira um caso egual: o homem chegara
a parecer um esqueleto, e a mulher uma pipa; e ao principio fôra o contrario;
até sobre isso se tinham feito uns versos…
– Humores, disse com melancolia o dr. delegado.
Depois fallou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manuel Branco, coitadinho,
na flor de idade! E que perfeição de rapaz! E que rapaz de juizo!
D. Anna Silveira não se esquecera, como todos os annos, de lhe accender
uma lamparina por alma, e de lhe resar tres padre-nossos. A viscondessa pareceu
toda afflicta por se não ter lembrado… E ella que tinha o proposito
feito!
– Pois estive para t’o mandar dizer! exclamou D. Anna. E as Brancos que tanto
o agradecem, filha!
– Ainda está a tempo, observou o magistrado.
D. Eugenia deu uma malha indolente no crochet de que nunca se separava, e
murmurou com um suspiro:
– Cada um tem os seus mortos.
E no silencio que se fez, saiu do canto do canapé outro suspiro, o
da viscondessa, que de certo se recordára do fidalgo d’Urigo de la
Sierra, e murmurava:
– Cada um tem os seus mortos…
E o digno dr. delegado terminou por dizer egualmente, depois de passar reflectidamente
a mão pela calva:
– Cada um tem os seus mortos!
Uma somnolencia ia pesando. Nas serpentinas douradas, sobre as consoles, as
chammas das velas erguiam-se altas e tristes. Eusebiosinho voltava com cautella
e arte as estampas dos Costumes de todos os Povos. E na saleta de jogo, atravez
do reposteiro aberto, sentia-se a voz já arrenegada do abbade, rosnando
com um rancor tranquillo, «passo, que é o que tenho feito toda
a santa noite!»
N’esse momento Carlos arremettia pela sala dentro arrastando a sua noiva,
a Theresinha, toda no ar e vermelha de brincar; e logo a grulhada das suas
vozes reanimou o canapé dormente.
Os noivos tinham chegado d’uma pittoresca e perigosa viagem, e Carlos parecia
descontente de sua mulher; comportara-se d’uma maneira atroz; quando elle
ia governando a mala-posta, ella quizera empoleirar-se ao pé d’elle
na almofada… Ora senhoras não viajam na almofada.
– E elle atirou-me ao chão, titi!
– Não é verdade! De mais a mais é mentirosa! Foi como
quando chegámos á estalagem… Ella quiz-se deitar, e eu não
quiz… A gente, quando se apeia de viagem, a primeira cousa que faz é
tratar do gado… E os cavallos vinham a escorrer…
A voz de D. Anna interrompeu, muito severa:
– Está bom, está bom, basta de tolices! Já cavallaram
bastante. Senta-te ahi ao pé da sr.ª Viscondessa, Thereza… Olhe
essa travessa do cabello… Que desproposito!
Sempre detestára ver a sobrinha, uma menina delicada de dez annos,
brincar assim com o Carlinhos. Aquelle bello e impetuoso rapaz, sem doutrina
e sem proposito, aterrava-a; e pela sua imaginação de solteirona
passavam sem cessar idéas, suspeitas de ultrages que elle poderia fazer
á menina. Em casa, ao agasalhal-a antes de vir para Sta. Olavia, recommendava-lhe
com força que não fosse com o Carlos para os recantos escuros!
que o não deixasse mecher-lhe nos vestidos!… A menina, que tinha
os olhos muito langorosos, dizia: «Sim, titi.» Mas, apenas na
quinta, gostava de abraçar o seu maridinho. Se eram casados, por que
não haviam de fazer néné, ou ter uma loja e ganharem
a sua vida aos beijinhos? Mas o violento rapaz só queria guerras, quatro
cadeiras lançadas a galope, viagens a terras de nomes barbaros que
o Brown lhe ensinava. Ella, despeitada, vendo o seu coração
mal comprehendido, chamava-lhe arrieiro; elle ameaçava boxal-a, á
ingleza; – e separavam-se sempre arrenegados.
Mas quando ella se accomodou ao lado da Viscondessa, gravesinha e com as mãos
no regaço – Carlos veiu logo estirar-se ao pé d’ella, meio deitado
para as costas do canapé, bamboleando as pernas.
– Vamos, filho, tem maneiras, rosnou-lhe muito secca D. Anna.
– Estou cançado, governei quatro cavallos, replicou elle, insolente
e sem a olhar.
De repente porém, d’um salto, precipitou-se sobre o Eusebiosinho. Queria-o
levar á Africa, a combatter os selvagens: e puchava-o já pelo
seu bello plaid de cavalleiro d’Escossia, quando a mamã accudiu atterrada.
– Não, com o Eusebiosinho não, filho! Não tem saude para
essas cavalladas… Carlinhos, olhe que eu chamo o avô!
Mas o Eusebiosinho, a um repellão mais forte, rolara no chão,
soltando gritos medonhos. Foi um alvoroço, um levantamento. A mãe,
tremula, agachada junto d’elle, punha-o de pé sobre as perninhas molles,
limpando-lhe as grossas lagrimas, já com o lenço, já
com beijos, quasi a chorar tambem. O delegado, consternado, apanhara o bonet
escossez, e cofiava melancolicamente a bella pena de gallo. E a Viscondessa
apertava ás mãos ambas o enorme seio, como se as palpitações
a suffocassem.
O Eusebiosinho foi então preciosamente collocado ao lado da titi; e
a severa senhora, com um fulgôr de colera na face magra, apertando o
leque fechado como uma arma, preparava-se a repellir o Carlinhos que, de mãos
atraz das costas e aos pulos em roda do canapé, ria, arreganhando para
o Eusebiosinho um labio feroz. Mas n’esse momento davam nove horas, e a desempenada
figura do Brown appareceu á porta.
Apenas o avistou, Carlos correu a refugiar-se por detraz da Viscondessa, gritando:
– Ainda é muito cedo, Brown, hoje é festa, não me vou
deitar!
Então Affonso da Maia, que se não movera aos uivos lacinantes
do Silveirinha, disse de dentro, da mesa do voltarete, com severidade:
– Carlos, tenha a bondade de marchar já para a cama.
– Oh vôvô, é festa, que está cá o Villaça!
Affonso da Maia pousou as cartas, atravessou a sala sem uma palavra, agarrou
o rapaz pelo braço, e arrastou-o pelo corredor – em quanto elle, de
calcanhares fincados no soalho, resistia, protestando com desespero:
– É festa, vôvô… É uma maldade!… O Villaça
póde-se escandalisar… Oh vovô, eu não tenho somno!
Uma porta fechando-se abafou-lhe o clamor. As senhoras censuraram logo aquella
rigidez: ahi estava uma cousa incomprehensivel; o avô deixava-lhe fazer
todos os horrores, e recusava-lhe então o bocadinho da soirée…
– Oh sr. Affonso da Maia, por que não deixou estar a creança?
– É necessario methodo, é necessario methodo, balbuciou elle,
entrando, todo pallido do seu rigor.
E á mesa do voltarete, apanhando as cartas com as mãos tremulas,
repetia ainda:
– É necessario methodo. Creanças á noite dormem.
D. Anna Silveira voltando-se para o Villaça – que cedera o seu lugar
ao dr. delegado e vinha palestrar com as senhoras – teve aquelle sorriso mudo
que lhe franzia os labios, sempre que Affonso da Maia fallava em «methodos.»
Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e abrindo o leque, declarou,
a transbordar d’ironia, que, talvez por ter a intelligencia curta, nunca comprehendera
a vantagem dos «methodos»… Era á ingleza, segundo diziam:
talvez provassem bem em Inglaterra; mas ou ella estava enganada, ou Sta. Olavia
era no reino de Portugal…
E como Villaça inclinava timidamente a cabeça, com a sua pitada
nos dedos, a esperta senhora, baixo para que Affonso dentro não ouvisse,
desabafou. O sr. Villaça naturalmente não sabia, mas aquella
educação do Carlinhos nunca fôra approvada pelos amigos
da casa. Já a presença do Brown, um heretico, um protestante,
como perceptor na familia dos Maias, causara desgosto em Resende. Sobretudo
quando o sr. Affonso tinha aquelle santo do abbade Custodio, tão estimado,
homem de tanto saber… Não ensinaria á creança habilidades
de acrobata; mas havia de lhe dar uma educação de fidalgo, preparal-o
para fazer boa figura em Coimbra.
N’esse momento, o abbade, suspeitando uma corrente d’ar, erguera-se da mesa
de jogo a fechar o reposteiro: então, como Affonso já não
podia ouvir, D. Anna ergueu a voz:
– E olhe que o Custodio teve desgosto, sr. Villaça. Que o Carlinhos,
coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina… Sempre lhe quero contar o
que succedeu com a Macedo.
Villaça já sabia.
– Ah já sabe? Lembras-te viscondessa? Com a Macedo, do acto de contricção…
A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo ao ceu atravez do tecto.
– Horroroso! continuou D. Anna. A pobre mulher chegou lá a nossa casa
embuchada… E eu fez-me impressão. Até sonhei com aquillo tres
noites a fio…
Calou-se um momento. Villaça, embaraçado, acanhado, fazia girar
a caixa de rapé nos dedos, com os olhos postos no tapete. Outro langor
de somnolencia passou na sala; D. Eugenia, com as palpebras pesadas, fazia
de vez em quando uma malha molle no crochet; e a noiva de Carlos, estirada
para o canto do sophá, já dormia, com a boquinha aberta, os
seus lindos cabellos negros caindo-lhe pelo pescoço.
D. Anna, depois de bocejar de leve, retomou a sua idéa:
– Sem contar que o pequeno está muito atrazado. A não ser um
bocado de inglez, não sabe nada… Nem tem prenda nenhuma!
– Mas é muito esperto, minha rica senhora! accudiu Villaça.
– É possivel, respondeu seccamente a intelligente Silveira.
E, voltando-se para Euzebiosinho, que se conservava ao lado d’ella, quieto
como se fosse de gesso:
– Oh filho, dize tu aqui ao sr. Villaça aquelles lindos versos que
sabes… Não sejas atado, anda!… Vá, Euzebio, filho, sê
bonito…
Mas o menino, mollengão e tristonho, não se descollava das saias
da titi: teve ella de o pôr de pé, amparal-o, para que o tenro
prodigio não alluisse sobre as perninhas flacidas; e a mamã
prometteu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ella…
Isto decidio-o: abrio a bocca, e como d’uma torneira lassa veio de lá
escorrendo, n’um fio de voz, um recitativo lento e babujado:
É noite, o astro saudoso
Rompe a custo um plumbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, humido véo…
Disse-a toda – sem se mexer, com as mãosinhas pendentes, os olhos
mortiços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com a agulha
do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada
no langor da melopea, ia cerrando as palpebras.
– Muito bem, muito bem! exclamou o Villaça, impressionado, quando o
Euzebiosinho findou coberto de suor. Que memoria! Que memoria! É um
prodigio!…
Os creados entravam com o chá. Os parceiros tinham findado a partida;
e o bom Custodio, de pé, com a sua chavena na mão, queixava-se
amargamente da maneira porque aquelles senhores o tinham esfolado.
Como ao outro dia era domingo, e havia missa cedo, as senhoras retiraram-se
ás nove e meia. O serviçal dr. delegado dava o braço
a D. Eugenia; um creado da quinta allumiava adiante com o lampeão;
e o moço das Silveiras levava ao collo o Eusebiosinho que parecia um
fardo escuro, abafado em mantas, com um chale amarrado na cabeça.
Depois da ceia Villaça acompanhou ainda um momento Affonso da Maia
á livraria, onde, antes de recolher, elle tomava sempre á ingleza
o seu cognac e soda.
O aposento, a que as velhas estantes de pau preto davam um ar severo, estava
adormecido tepidamente, na penumbra suave, com as cortinas bem fechadas, um
resto de lume na chaminé, e o globo do candieiro pondo a sua claridade
serena na mesa coberta de livros. Em baixo, os repuchos cantavam alto no silencio
da noite.
Emquanto o escudeiro rolava para o pé da poltrona de Affonso, n’uma
mesa baixa, os crystaes e as garrafas de soda, Villaça, com as mãos
nos bolsos, de pé e pensativo, olhava a braza da acha que morria na
cinza branca. Depois ergueu a cabeça, para murmurar, como ao acaso:
– Aquelle rapazito é esperto…
– Quem? O Euzebiosinho? disse Affonso, que se accomodava junto ao fogão,
enchendo alegremente o cachimbo. Eu tremo de o ver cá, Villaça!
O Carlos não gosta d’elle, e tivemos ahi um desgosto horroroso… Foi
já ha mezes. Havia uma procissão e o Eusebiosinho ia de anjo…
As Silveiras, excellentes mulheres, coitadas, mandaram-n’o cá para
o mostrar á viscondessa, já vestido de anjo. Pois senhores,
distrahimo-nos, e o Carlos que o andava a rondar apodera-se d’elle, leva-o
para o sotão, e, meu caro Villaça… Em primeiro logar ia-o
matando porque embirra com anjos… Mas o peior não foi isso. Imagine
você o nosso terror, quando nos apparece o Eusebiosinho aos berros pela
titi, todo desfrizado, sem uma aza, com a outra a bater-lhe os calcanhares
dependurada de um barbante, a corôa de rosas enterrada até ao
pescoço, e os galões de ouro, os tulles, as lentejoulas, toda
a vestimenta celeste em frangalhos!… Emfim, um anjo depennado e sovado…
Eu ia dando cabo do Carlos.
Bebeu metade da sua soda, e passando a mão pelas barbas, accrescentou,
com uma satisfação profunda:
– É levado do diabo, Villaça!
O administrador, sentado agora á borda de uma cadeira, esboçou
uma risadinha muda; depois ficou calado, olhando Affonso, com as mãos
nos joelhos, como esquecido e vago. Ia abrir os labios, hesitou ainda, tossio
de leve; e continuou a seguir pensativamente as faiscas que erravam sobre
as achas.
Affonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeçara
a fallar do Silveirinha. Tinha tres ou quatro mezes mais que Carlos, mas estava
enfesado, estiolado, por uma educação á portugueza: d’aquella
edade ainda dormia no chôco com as criadas, nunca o lavavam para o não
constiparem, andava couraçado de rolos de flanellas! Passava os dias
nas saias da titi a decorar versos, paginas inteiras do Cathecismo de Perseverança.
Elle por curiosidade um dia abrira este livreco e vira lá, «que
o sol é que anda em volta da terra (como antes de Galileu), e que Nosso
Senhor todas as manhãs dá as ordens ao sol, para onde ha d’ir
e onde ha de parar etc., etc.» E assim lhe estavam arranjando uma almasinha
de bacharel…
Villaça teve outra risadinha silenciosa. Depois, como subitamente decidido,
ergueu-se, fez estalar os dedos, disse estas palavras:
– V. Ex.ª sabe que appareceu a Monforte?
Affonso, sem mover a cabeça, reclinado para as costas da poltrona,
perguntou tranquillamente, envolvido no fumo do cachimbo:
– Em Lisboa?
– Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar, esse rapaz que escreve,
e que era muito de Arroios… Esteve até em casa d’ella.
E ficaram calados. Havia annos que entre elles se não pronunciara o
nome de Maria Monforte. Ao principio, quando se retirara para Santa Olavia,
a preoccupação ardente de Affonso da Maia fôra tirar-lhe
a filha que ella levara. Mas a esse tempo ninguem sabia onde Maria se refugiara
com o seu principe: nem pela influencia das legações, nem pagando
regiamente a policia secreta de Paris, de Londres, de Madrid, se poude descobrir
a «toca da fera» como disia então o Villaça. Ambos
decerto tinham mudado de nome; e, dadas essas naturezas bohemias, quem sabe
se não errariam agora pela America, pela India, em regiões mais
exoticas? Depois, pouco a pouco, Affonso da Maia descorçoado com aquelles
esforços vãos, todo occupado do neto que crescia bello e forte
ao seu lado, no enternecimento continuo que elle lhe dava foi esquecendo a
Monforte e a sua outra neta, tão distante, tão vaga, a quem
ignorava as feições, de quem mal sabia o nome. E agora de repente
a Monforte apparecia outra vez em Paris! e o seu pobre Pedro estava morto!
e aquella creança que dormia ao fundo do corredor nunca vira sua mãe…
Erguera-se, passeiava na livraria, pesado e lento, com a cabeça baixa.
Junto á mesa, ao pé do candieiro, o Villaça ia percorrendo
um a um os papeis da sua carteira.
– E está em Paris com o italiano? perguntou Affonso do fundo sombrio
do aposento.
O Villaça ergueu a cabeça de sobre a carteira, e disse:
– Não senhor, está com quem lhe paga.
E como Affonso se aproximava da mesa, sem uma palavra, Villaça, dando-lhe
um papel dobrado, accrescentou:
– Todas estas cousas são muito graves, sr. Affonso da Maia, e eu não
quiz fiar-me só na minha memoria. Por isso pedi ao Allencar, que é
um excellente rapaz, que me escrevesse n’uma carta tudo o que me contou. Assim
temos um documento. Eu não sei mais do que ahi está escripto.
Póde V. Ex.ª ler…
Affonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma historia simples, que o
Alencar, o poeta das Vozes d’Aurora, o estylista de Elvira, ornára
de flores e de galões dourados como uma capella em dia de festa.
Uma noite, ao sahir da Maison d’Or, elle vira a Monforte saltar d’um coupé
com dois homens de gravata branca; tinham-se logo reconhecido: e um momento
ficaram hesitando, um defronte do outro, debaixo do candieiro do gaz, no trottoir.
Foi ella que, muito decidida, rindo, estendeu a mão ao Alencar, pediu-lhe
que a visitasse, deu-lhe a adresse, o nome por que devia perguntar: Mme. de
l’Estorade. E no seu boudoir, na manhã seguinte a Monforte fallou largamente
de si: vivera tres annos em Vienna d’Austria com Tancredo, e com o papá
que se lhes fôra reunir – e que lá continuava de certo, como
em Arroios, refugiando-se pelos cantos das salas, pagando as toilettes da
filha, e dando palmadinhas ternas no hombro do amante como outr’ora no hombro
do marido. Depois tinham estado em Monaco; e ahi, dizia o Alencar, «n’um
drama sombrio de paixão que ella me fez entrever» o napolitano
fora morto em duello. O papá morrera tambem n’esse anno, deixando apenas
da sua fortuna uns magros contos de réis, e a mobilia da casa em Vienna:
o velho arruinara-se com o luxo da filha, com as viagens, com as perdas de
Tancredo ao baccarat. Passára então um tempo em Londres: e d’ahi
viera habitar Paris, com Mr. de l’Estorade, um jogador, um espadachim, que
acabou de a arrasar, e que a abandonou legando-lhe esse nome de l’Estorade,
que lhe era a elle d’ora em diante inutil porque passava a adoptar outro mais
sonoro de Vicomte de Manderville. Emfim, pobre, formosa, doida, excessiva,
lançara-se na existencia d’aquellas mulheres de quem, dizia o Alencar,
«a pallida Margarida Gautier, a gentil Dama das Camelias é o
typo sublime, o symbolo poetico, a quem muito será perdoado porque
muito amaram.» E o poeta terminava: «ella está ainda no
esplendor da belleza, mas as rugas virão, e então que avistará
em redor de si? As rosas seccas e ensanguentadas da sua coroa de esposa. Sahi
d’aquelle boudoir perfumado, com a alma dilacerada, meu Villaça! Pensava
no meu pobre Pedro, que lá jaz sob o raio de luar, entre as raizes
dos cyprestes. E, desilludido d’esta cruel vida, vim pedir ao absintho, no
boulevard, uma hora de esquecimento.»
Affonso da Maia deu um repellão á carta, menos enojado das torpezas
da historia, que d’aquelles lyrismos relambidos.
E recomeçou a passear, emquanto o Villaça recolhia religiosamente
o documento que tinha relido muitas vezes, na admiração do sentimento,
do estylo, do ideal d’aquella pagina.
– E a pequena? perguntou Affonso.
– Isso não sei. O Alencar não lhe fallaria na filha, nem elle
mesmo sabe que ella a levou. Ninguem o sabe em Lisboa. Foi um detalhe que
passou desapercebido no grande escandalo. Mas emquanto a mim, a pequena morreu.
Senão, siga V. Ex.ª o meu raciocinio… Se a menina fosse viva,
a mãe podia reclamar a legitima que cabe á creança…
Ella sabe a casa que V. Ex.ª tem; ha de haver dias, e são frequentes
na vida d’essas mulheres, em que lhe falte uma libra… Com o pretexto da
educação da menina, ou de alimentos, já nos tinha importunado…
Escrupulos não tem ella. Se o não faz é que a filha morreu.
Não lhe parece a V. Ex.ª?
– Talvez, disse Affonso.
E accrescentou, parando deante de Villaça – que olhava outra vez a
braza morta tirando estalinhos dos dedos:
– Talvez… Sopônhamos que morreram ambas, e não se falle mais
n’isso.
Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se. E durante os dias que
Villaça passou em Sta. Olavia não se proferiu mais o nome de
Maria Monforte.
Mas, na vespera da partida do administrador para Lisboa, Affonso subio ao
quarto d’elle, a entregar-lhe as amendoas da Paschoa que Carlos mandava a
Villaça Junior, um alfinete de peito com uma magnifica saphira – e
disse-lhe em quanto o outro, sensibilisado, balbuciava os agradecimentos:
– Agora outra cousa, Villaça. Tenho estado a pensar. Vou escrever a
meu primo Noronha, ao André que vive em Paris como você sabe,
pedir-lhe que procure essa creatura, e que lhe offereça dez ou quinze
contos de réis, se ella me quizer entregar a filha… No caso, está
claro, que esteja viva… E quero que você saiba d’esse Alencar a morada
da mulher em Paris.
O Villaça não respondeu, occupado a metter entre as camisas,
bem no fundo da maleta, a caixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou
deante d’Affonso, a coçar reflectidamente o queixo.
– Então que lhe parece, Villaça?
– Parece-me arriscado.
E deu as suas razões. A menina devia ir nos seus treze annos. Estava
uma mulher, com o seu temperamento formado, o caracter feito, talvez os seus
habitos… Nem fallaria o portuguez. As saudades da mãe haviam de ser
terriveis… Emfim, o sr. Affonso da Maia trazia uma extranha para casa…
– Você tem rasão, Villaça. Mas a mulher é uma prostituta,
e a pequena é do meu sangue.
N’esse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vôvô,
precipitou-se no quarto, esguedelhado, escarlate como uma romã. – O
Brown tinha achado uma corujasinha pequena! Queria que o vôvô
viesse ver, andara a buscal-o por toda a casa… Era de morrer a rir… Muito
pequena, muito feia, toda pellada, e com dois olhos de gente grande! E sabiam
onde havia o ninho…
– Vem depressa, ó vôvô! Depressa, que é necessario
ir pol-a no ninho, por causa da coruja velha que se póde affligir…
O Brown está-lhe a dar azeite. Oh Villaça vem ver! Ó
vôvô, pelo amor de Deus! Tem uma cara tão engraçada!
Mas depressa, depressa, que a coruja velha póde dar pela falta!…
E impaciente com a lentidão risonha do vôvô, tanta indifferença
pela inquietação da coruja velha, abalou atirando com a porta.
– Que bom coração! exclamou o Villaça commovido. A pensar
nas saudades da coruja… A mãe d’elle é que não tem
saudades! Sempre o disse, é uma fera!
Affonso encolheu tristemente os hombros. Iam já no corredor quando
elle, parando um momento, baixando a voz:
– Tem-me esquecido de lhe contar, Villaça, o Carlos sabe que o pae
que se matou…
Villaça arredondou os olhos d’espanto. Era verdade. Uma manhã
entrara-lhe pela livraria, e dissera-lhe: – ó vôvô, o papá
matou-se com uma pistola! – Naturalmente algum creado que lh’o contara…
– E vossa excellencia?
– Eu… Que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho obedecido ao
que Pedro me pediu, n’essas quatro ou cinco linhas da carta que me deixou.
Quiz ser enterrado em Sta. Olavia, ahi está. Não queria que
o filho jámais soubesse da fuga da mãe; e por mim, de certo,
nunca o saberá. Quiz que dois retratos que havia d’ella em Arroios
fossem destruidos; como você sabe, obtiveram-se e destruiram-se. Mas
não me pedio que occultasse ao rapaz o seu fim. E por isso, disse ao
pequeno a verdade: disse-lhe que n’um momento de loucura, o papá tinha
dado um tiro em si…
– E elle?
– E elle, replicou Affonso sorrindo, perguntou-me quem lhe tinha dado a pistola,
e torturou-me toda uma manhã para lhe dar tambem uma pistola… E ahi
está o resultado d’essa revelação: é que tive
de mandar vir do Porto uma pistola de vento…
Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo avô, os dois apressaram-se
a ir admirar a corujazinha.
Villaça ao outro dia partiu para Lisboa.
Passadas duas semanas, Affonso recebia uma carta do administrador, trasendo-lhe,
com a adresse da Monforte, uma revelação imprevista. Tinha voltado
a casa do Alencar; e o poeta, recordando outros incidentes da sua visita a
Mme. de l’Estorade, contara-lhe que no boudoir d’ella havia um adoravel retrato
de creança, de olhos negros, cabello d’azeviche, e uma pallidez de
nacar. Esta pintura ferira-o, não só por ser d’um grande pintor
inglez, mas por ter, pendente sob o caixilho como um voto funerario, uma linda
coroa de flores de cera brancas e roxas. Não havia outro quadro no
boudoir: e elle perguntara á Monforte se era um retrato ou uma phantasia.
Ella respondera que era o retrato da filha que lhe morrera em Londres. «Estão
assim dissipadas todas as duvidas, accrescentava o Villaça. O pobre
anjinho está n’uma patria melhor. E para ella, bem melhor!»
Affonso, todavia, escreveu a André de Noronha. A resposta tardou. Quando
o primo André procurara Mme.de l’Estorade, havia semanas que ella partira
para Allemanha, depois de vender mobilia e cavallos. E no Club Imperial, a
que elle pertencia, um amigo que conhecia bem Mme. de l’Estorade e a vida
galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com um certo Catanni, acrobata
do Circo d’Inverno nos campos Elyseos, homem de fórmas magnificas,
um Appolo de feira, que todas as cocottes se disputavam e que a Monforte empolgára.
Naturalmente corria agora a Allemanha com a companhia de cavallinhos.
Affonso da Maia, enojado, remetteu esta carta ao Villaça sem um commentario.
E o honrado homem respondeu: «Tem V. Ex.ª rasão, é
atroz: e mais vale suppor que todos morreram, e não gastar mais cera
com tão ruins defuntos…» E depois n’um post-scriptum accrescentava:
«Parece certo abrir-se em breve o caminho de ferro até ao Porto:
em tal caso, com permissão de V. Ex.ª, ahi irei e o meu rapaz
a pedirmos-lhe alguns dias d’hospitalidade.»
Esta carta foi recebida em Sta. Olavia um domingo, ao jantar. Affonso lera
alto o P.S. Todos se alegraram,na esperança de ver o bom Villaça
em breve
na quinta; e fallou-se mesmo em arranjar um grande pic-nic, rio acima.
Mas, terça feira á noite, chegava um telegramma de Manuel Villaça
annunciando que o pae morrera, n’essa manhã, d’uma apoplexia: dois
dias depois vinham mais longos e tristes pormenores. Fora depois do almoço
que, de repente, Villaça se sentira muito suffocado e com tonturas:
ainda tivera forças d’ir ao quarto respirar um pouco d’ether: mas ao
voltar á sala cambaleava, queixava-se de vêr tudo amarello, e
caiu de bruços, como um fardo, sobre o canapé. O seu pensamento,
que se extinguia para sempre, ainda n’esse momento se occupou da casa que
ha trinta annos administrava: balbuciou, a respeito d’uma venda de cortiça,
recomendações que o filho já não poude perceber:
depois deu um grande ai; e só tornou a abrir os olhos, para murmurar
no derradeiro sopro estas derradeiras palavras: Saudades ao patrão!
Affonso da Maia ficou profundamente affectado, e em Sta. Olavia, mesmo entre
os creados, a morte de Villaça foi como um lucto domestico. Uma d’essas
tardes, o velho, muito melancolico, estava na livraria com um jornal esquecido
nas mãos, os olhos cerrados – quando Carlos, que ao lado rabiscava
carantonhas num papel, veio passar-lhe um braço pelo pescoço,
e como comprehendendo os seus pensamentos perguntou-lhe se o Villaça
não voltaria a vel-os á quinta.
– Não filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a vêr.
O pequeno, entre os joelhos e os braços do velho, olhava o tapete,
e, como recordando-se, murmurou tristemente:
– O Villaça, coitado… Dava estalinhos com os dedos… Oh vôvô,
para onde o levaram?
– Para o cemiterio, filho, para debaixo da terra.
Então Carlos desprendeu-se devagar do abraço do avô, e
muito sério, com os olhos n’elle:
– Ó vôvô! porque não lhe mandas fazer uma capellinha
bonita, toda de pedra, com uma figura, como tem o papá?
O velho achegou-o ao peito, beijou-o, commovido:
– Tens razão, filho. Tens mais coração que eu!
Assim o bom Villaça teve no cemiterio dos Prazeres o seu jazigo – que
fôra a alta ambição da sua existencia modesta.
Outros annos tranquillos passaram sobre Santa Olavia.
Depois uma manhã de julho, em Coimbra, Manuel Villaça (agora
administrador da casa) trepava as escadas do Hotel Mondego, onde Affonso se
hospedára com o neto, e entrava-lhe pela sala, vermelho, suando, berrando:
– Neminè! Neminè!
Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame! Teixeira que tinha acompanhado
os senhores de Santa Olavia correu á porta, abraçou-se quasi
chorando no menino, agora mais alto que elle, e muito formoso na sua batina
nova.
Em cima no quarto, Manuel Villaça, soprando ainda, limpando as bagas
de suor, exclamava:
– Ficou tudo espantado, snr. Affonso da Maia! Os lentes até estavam
commovidos. Ih Jesus! que talento! Vem a ser um grande homem, é o que
todo o mundo disse… E que faculdade vai elle seguir, meu senhor?
Affonso, que passeava, todo tremulo, respondeu com um sorriso:
– Não sei, Villaça… Talvez nos formemos ambos em Direito.
Carlos assomou á porta, radiante, seguido do Teixeira e do outro escudeiro
– que trazia champagne n’uma salva.
– Então venha cá, seu maroto, disse Affonso muito branco, com
os braços abertos. Bom exame, hein?… Eu…
Mas não pôde proseguir: as lagrimas, duas a duas, corriam-lhe
pela barba branca.
Capítulo IV
Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia o dr. Trigueiros houvera sempre
n’aquelle menino realmente uma «vocação para Esculapio».
A «vocação» revelára-se bruscamente um dia
que elle descobriu no sotão, entre rumas de velhos alfarrabios, um
rolo manchado e antiquado de estampas anatomicas; tinha passado dias a recortal-as,
pregando pelas paredes do quarto figados, liaças de intestinos, cabeças
de perfil «com o recheio á mostra». Uma noite mesmo rompera
pela sala em triumpho, a mostrar ás Silveiras, ao Euzebio, a pavorosa
lithographia de um feto de seis mezes no utero materno. D. Anna recuou, com
um grito, collando o leque á face: e o dr. delegado, escarlate tambem,
arrebatou prudentemente Euzebiosinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face
com a mão. Mas o que escandalisou mais as senhoras foi a indulgencia
de Affonso.
– Então que tem, então que tem? dizia elle sorrindo.
– Que tem, snr. Affonso da Maia!? exclamou D. Anna. São indecencias!
– Não ha nada indecente na natureza, minha rica senhora. Indecente
é a ignorancia… Deixar lá o rapaz. Tem curiosidade de saber
como é esta pobre machina por dentro, não ha nada mais louvavel…
D. Anna abanava-se, suffocada. Consentir taes horrores nas mãos da
criança!… Carlos começou a apparecer-lhe como um libertino
«que já sabia coisas»; e não consentiu mais que
a Therezinha brincasse só com elle pelos corredores de Santa Olavia.
As pessoas sérias porém, o dr. juiz de direito, o proprio abbade,
lamentando, sim, que não houvesse mais recato, concordavam que aquillo
mostrava no pequeno uma grande queda para a medicina.
– Se péga, dizia então com um gesto prophetico o dr. Trigueiros,
temos d’alli coisa grande!
E parecia pegar.
Em Coimbra, estudante do Lyceu, Carlos deixava os seus compendios de logica
e rhetorica para se occupar de anatomia: n’umas ferias, ao abrir das malas,
a Gertrudes fugiu espavorida vendo alvejar entre as dobras d’um casaco o riso
d’uma caveira: e se algum criado da quinta adoecia, lá estava Carlos
logo revolvendo o caso em velhos livros de medicina da livraria, sem lhe largar
a beira do catre, fazendo diagnosticos que o bom dr. Trigueiros escutava respeitoso
e pensativo. Diante do avô já chamava mesmo ao menino «o
seu talentoso collega».
Esta inesperada carreira de Carlos (pensára-se sempre que elle tomaria
capello em Direito) era pouco approvada entre os fieis amigos de Santa
Olavia. As senhoras sobretudo lamentavam que um rapaz que ia crescendo tão
formoso, tão bom cavalleiro, viesse a estragar a vida receitando emplastros,
e sujando as mãos no jorro das sangrias. O dr. juiz de direito confessou
mesmo um dia a sua descrença de que o snr. Carlos da Maia quizesse
«ser medico a sério».
– Ora essa! exclamou Affonso. E porque não ha de ser medico a sério?
Se escolhe uma profissão é para a exercer com sinceridade e
com ambição, como os outros. Eu não o educo para vadio,
muito menos para amador; educo-o para ser util ao seu paiz…
– Todavia, arriscou o dr. juiz de direito com um sorriso fino, não
lhe parece a v. exc.ª que ha outras coisas, importantes tambem, e mais
proprias talvez, em que seu neto se poderia tornar util?…
– Não vejo, replicou Affonso da Maia. N’um paiz em que a occupação
geral é estar doente, o maior serviço patriotico é incontestavelmente
saber curar.
– V. exc.ª tem resposta para tudo, murmurou respeitosamente o magistrado.
E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida «a sério»,
pratica e util, as escadas de doentes galgadas á pressa no fogo de
uma vasta clinica, as existencias que se salvam com um golpe de bisturí,
as noites veladas á beira de um leito, entre o terror de uma familia,
dando grandes batalhas á morte. Como em pequeno o tinham encantado
as fórmas pittorescas das visceras – attrahiam-no agora estes lados
militantes e heroicos da sciencia.
Matriculou-se realmente com enthusiasmo. Para esses longos annos de quieto
estudo o avô preparára-lhe uma linda casa em Cellas, isolada,
com graças de cottage inglez, ornada de persianas verdes, toda fresca
entre as arvores. Um amigo de Carlos (um certo João da Ega) poz-lhe
o nome de «Paços de Cellas», por causa de luxos então
raros na Academia, um tapete na sala, poltronas de marroquim, panoplias d’armas,
e um escudeiro de libré.
Ao principio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgotes, mas suspeito
aos democratas; quando se soube porém que o dono d’estes confortos
lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer, e considerava tambem o paiz
uma choldra ignobil – os mais rigidos revolucionarios começaram a vir
aos Paços de Cellas tão familiarmente como ao quarto do Trovão,
o poeta bohemio, o duro socialista, que tinha apenas por mobilia uma enxerga
e uma Biblia.
Ao fim d’alguns mezes, Carlos, sympathico a todos, conciliára Dandys
e Philosophos: e trazia muitas vezes no seu break, lado a lado, o Serra Torres,
um monstro que já era addido honorario em Berlim e todas as noites
punha casaca, e o famoso Craveiro que meditava a Morte de Satanaz, encolhido
no seu gabão d’Aveiro, com o seu grande barrete de lontra.
Os Paços de Cellas, sob a sua apparencia preguiçosa e campestre,
tornaram-se uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se uma gymnastica
scientifica. Uma velha cozinha fôra convertida em sala d’armas – porque
n’aquelle grupo a esgrima passava como uma necessidade social. Á noite,
na sala de jantar, moços sérios faziam um whist sério:
e no salão, sob o lustre de crystal, com o Figaro, o Times e as Revistas
de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao piano tocando Chopin
ou Mozart, os litteratos estirados pelas poltronas – havia ruidosos e ardentes
cavacos, em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado,
Bismark, o Amor, Hugo e a Evolução, tudo por seu turno flammejava
no fumo do tabaco, tudo tão ligeiro e vago como o fumo. E as discussões
metaphysicas, as proprias certezas revolucionarias adquiriam um sabor mais
requintado com a presença do criado de farda desarrolhando a cerveja,
ou servindo croquettes.
Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas mesas, com as folhas
intactas, os seus expositores de medicina. A Litteratura e a Arte, sob todas
as fórmas, absorveram-no deliciosamente. Publicou sonetos no Instituto
– e um artigo sobre o Parthenon: tentou, n’um atelier improvisado, a pintura
a oleo: e compoz contos archeologicos, sob a influencia da Salammbô.
Além d’isso todas as tardes passeava os seus dois cavallos. No segundo
anno levaria um R se não fosse tão conhecido e rico. Tremeu,
pensando no desgosto do avô: moderou a dissipação intellectual,
acantoou-se mais na sciencia que escolhera: immediatamente lhe deram um accessit.
Mas tinha nas veias o veneno do dilettantismo: e estava destinado, como dizia
João da Ega, a ser um d’esses medicos litterarios que inventam doenças
de que a humanidade papalva se presta logo a morrer!
O avô, ás vezes, vinha passar uma, duas semanas a Cellas. Nos
primeiros tempos a sua presença, agradavel aos cavalheiros da partilha
de whist, desorganisou o cavaco litterario. Os rapazes mal ousavam estender
o braço para o copo da cerveja; e os vossa excellencia isto, vossa
excellencia aquillo, regelavam a sala. Pouco a pouco, porém, vendo-o
apparecer em chinelas e de cachimbo na boca, estirar-se na poltrona com ares
sympathicos de patriarcha bohemio, discutir arte e litteratura, contar anecdotas
do seu tempo d’Inglaterra e d’Italia, começaram a consideral-o como
um camarada de barbas brancas. Diante d’elle já se fallava de mulheres
e de estroinices. Aquelle velho fidalgo, tão rico, que lêra Michelet
e o admirava – chegou mesmo a enthusiasmar os democratas. E Affonso gozava
alli tambem horas felizes, vendo o seu Carlos centro d’aquelles moços
de estudo, de ideal e de veia.
Carlos passava as ferias grandes em Lisboa, ás vezes em Paris ou Londres;
mas por Nataes e Pascoas vinha sempre a Santa Olavia, que o avô mais
só se entretinha a embellezar com amor. As salas tinham agora soberbos
pannos d’Arraz, paizagens de Rousseau e Daubigny, alguns moveis de luxo e
d’arte. Das janellas a quinta offerecia aspectos nobres de parque inglez:
através dos macios taboleiros de relva, davam curvas airosas as ruas
areadas: havia marmores entre as verduras; e gordos carneiros de luxo dormiam
sob os castanheiros. Mas a existencia n’este meio rico não era agora
tão alegre: a viscondessa, cada dia mais nutrida, cahia em somnos congestivos
logo depois do jantar; o Teixeira primeiro, a Gertrudes depois, tinham morrido,
ambos de pleurizes, ambos no entrudo: e já se não via tambem
á mesa a bondosa face do abbade, que lá jazia sob uma cruz de
pedra, entre os goivos e as rosas de todo o anno. O dr. juiz de direito com
a sua concertina passára para a Relação do Porto; D.
Anna Silveira, muito doente, nunca sahia; a Therezinha fizera-se uma rapariguinha
feia, amarella como uma cidra; o Euzebiosinho, mollengão e tristonho,
já sem vestigios sequer do seu primeiro amor aos alfarrabios e ás
letras, ia casar na Regoa. Só o dr. delegado, esquecido n’aquella comarca,
estava o mesmo, mais calvo talvez, sempre affavel, amando sempre a pachorrenta
Eugenia. E quasi todas as tardes, o velho Trigueiros se apeava da sua egoa
branca ao portão para vir cavaquear com o collega.
As ferias, realmente, só eram divertidas para Carlos quando trazia
para a quinta o seu intimo, o grande João da Ega, a quem Affonso da
Maia se affeiçoára muito, por elle e pela sua originalidade,
e por ser sobrinho d’André da Ega, velho amigo da sua mocidade e, muitas
vezes outr’ora, hospede tambem em Santa Olavia.
Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pausadamente – ora reprovado,
ora perdendo o anno. Sua mãi, rica, viuva e beata, retirada n’uma quinta
ao pé de Celorico de Basto com uma filha, beata, viuva e rica tambem,
tinha apenas uma noção vaga do que o Joãozinho fizera,
todo esse tempo, em Coimbra. O capellão affirmava-lhe que tudo havia
de acabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o papá
e como o titi: e esta promessa bastava á boa senhora, que se occupava
sobretudo da sua doença de entranhas e dos confortos d’esse padre Seraphim.
Estimava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures, longe da quinta,
que elle escandalisava com a sua irreligião e as suas facecias hereticas.
João da Ega, com effeito, era considerado não só em Celorico,
mas tambem na Academia que elle espantava pela audacia e pelos ditos, como
o maior atheu, o maior demagogo, que jámais apparecera nas sociedades
humanas. Isto lisonjeava-o: por systema exagerou o seu odio á Divindade,
e a toda a Ordem social: queria o massacre das classes-médias, o amor
livre das ficções do matrimonio, a repartição
das terras, o culto de Satanaz. O esforço da intelligencia n’este sentido
terminou por lhe influenciar as maneiras e a physionomia; e, com a sua figura
esgrouviada e sêcca, os pêllos do bigode arrebitados sob o nariz
adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito – tinha realmente alguma
coisa de rebelde e de satanico. Desde a sua entrada na Universidade renovára
as tradições da antiga Bohemia: trazia os rasgões da
batina cozidos a linha branca; embebedava-se com carrascão; á
noite, na Ponte, com o braço erguido, atirava injurias a Deus. E no
fundo muito sentimental, enleado sempre em amores por meninas de quinze annos,
filhas de empregados, com quem ás vezes ia passar a soirée,
levando-lhes cartuchinhos de dôce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o
appetecido nas familias.
Carlos escarnecia estes idyllios futricas; mas tambem elle terminou por se
enredar n’um episodio romantico com a mulher d’um empregado do governo civil,
uma lisboetasinha, que o seduziu pela graça d’um corpo de boneca e
por uns lindos olhos verdes. A ella o que a fantisára fôra o
luxo, o groom, a egoa ingleza de Carlos. Trocaram-se cartas; e elle viveu
semanas banhado na poesia aspera e tumultuosa do primeiro amor adultero. Infelizmente
a rapariga tinha o nome barbaro de Hermengarda; e os amigos de Carlos, descoberto
o segredo, chamavam-lhe já Eurico o presbytero, dirigiam para Cellas
missivas pelo correio com este nome odioso.
Um dia Carlos, andava tomando o sol na Feira, quando o empregado do governo
civil passou junto d’elle com o filhinho pela mão. Pela primeira vez
via tão de perto o marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado e macilento.
Mas o pequerrucho era adoravel, muito gordo, parecendo mais roliço
por aquelle dia de janeiro sob os agasalhos de lã azul, tremelicando
nas pobres perninhas roxas de frio, e rindo na clara luz – rindo todo elle,
pelos olhos, pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas das faces. O pae amparava-o;
e o encanto, o cuidado com que o rapaz ia assim guiando os passos do seu filho,
impressionou Carlos. Era no momento em que elle lia Michelet – e enchia-lhe
a alma a veneração litteraria da santidade domestica. Sentiu-se
canalha em andar alli de cima do seu dog-cart, a preparar friamente a vergonha,
e as lagrimas d’aquelle pobre pae tão inofensivo no seu paletot coçado!
Nunca mais respondeu ás cartas em que Hermengarda lhe chamava seu ideal.
Decerto a rapariga se vingou, intrigando-o; porque o empregado do governo
civil, d’ahi por diante, dardejava sobre elle olhares sangrentos.
Mas a grande «topada sentimental de Carlos», como disse o Ega,
foi quando elle, ao fim d’umas ferias, trouxe de Lisboa uma soberba rapariga
hespanhola, e a installou n’uma casa ao pé de Cellas. Chamava-se Encarnacion.
Carlos alugou-lhe ao mez uma vittoria com um cavallo branco e Encarnacion
fanatisou Coimbra como a apparição d’uma Dama das Camelias,
uma flôr de luxo das civilisações superiores. Pela Calçada,
pela estrada da Beira, os rapazes paravam, pallidos de emoção,
quando ella passava, reclinada na vittoria, mostrando o sapato de setim, um
pouco da meia de sêda, languida e desdenhosa, com um cãosinho
branco no regaço.
Os poetas da Academia fizeram-lhe versos em que Encarnacion foi chamada Lirio
d’Israel, Pomba da Arca, e Nuvem da Manhã. Um estudante de theologia,
rude e sebento transmontano, quiz casar com ella. Apesar das instancias de
Carlos, Encarnacion recusou; e o theologo começou a rondar Cellas,
com um navalhão, para «beber o sangue» ao Maia. Carlos
teve de lhe dar bengaladas.
Mas a creatura, desvanecida, tornou-se intoleravel, fallando sem cessar d’outras
paixões que inspirára em Madrid e em Lisboa, do muito que lhe
dera o conde de tal, o marquez sicrano, da grande posição da
sua familia ainda aparentada com os Medina-Coeli: os seus sapatos de setim
verde eram tão antipathicos como a sua voz estridula: e quando tentava
elevar-se ás conversações que ouvia, rompia a chamar
ladrões aos republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua
gracia, o seu salero – sendo muito conservadora como todas as prostitutas.
João da Ega odiava-a. E Craveiro declarou que não voltava aos
Paços de Cellas emquanto por lá apparecesse aquelle montão
de carne, pago ao arratel, como a de vacca.
Emfim, uma tarde Baptista, o famoso criado de quarto de Carlos surprehendeu-a
com um Juca que fazia de dama no Theatro Academico. Ahi estava, emfim, um
pretexto! E, convenientemente paga, a parenta dos Medina-Coeli, o Lirio d’Israel,
a admiradora dos Bourbons, foi recambiada a Lisboa e á rua de S. Roque,
seu elemento natural.
Em agosto, no acto da formatura de Carlos, houve uma alegre festa em Cellas.
Affonso viera de Santa Olavia, Villaça de Lisboa; toda a tarde no quintal,
d’entre as acacias e as bella-sombras, subiram ao ar mólhos de foguetes;
e João da Ega, que levára o seu ultimo R no seu ultimo anno,
não descansou, em mangas de camisa, pendurando lanternas venezianas
pelos ramos, no trapesio e em roda do poço, para a illuminacão
da noite. Ao jantar, a que assistiam lentes, Villaça, enfiado e tremulo,
fez um speech; ia citar o nosso immortal Castilho quando sob as janellas rompeu,
a grande ruido de tambor e pratos, o Hymno Academico. Era uma serenata. –
Ega, vermelho, de batina desabotoada, a luneta para traz das costas, correu
á sacada, a perorar:
– Ahi temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab Maia, começando a sua
gloriosa carreira, preparado para salvar a humanidade enferma – ou acabar
de a matar, segundo as circumstancias! A que parte remota d’estes reinos não
chegou já a fama do seu genio, do seu dog-cart, do sebaceo accessit
que lhe ennodôa o passado, e d’este vinho do Porto, contemporaneo dos
heroes de 20, que eu, homem de revolução e homem de carraspana,
eu, João da Ega, Johanes ab Ega…
O grupo escuro em baixo desatou aos vivas. A philarmonica, outros estudantes,
invadiram os Paços. Até tarde, sob as arvores do quintal, na
sala atulhada de pilhas de pratos, os criados correram com salvas de dôce,
não cessou d’estalar o champagne. E Villaça, limpando a testa,
o pescoço, abafado de calor, ia dizendo a um, a outro, a si mesmo tambem:
– Grande coisa, ter um curso!
E então Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa.
Um anno passou. Chegára esse outono de 1875: e o avô installado
emfim no Ramalhete esperava por elle anciosamente. A ultima carta de Carlos
viera de Inglaterra, onde andava, dizia elle, a estudar a admiravel organização
dos hospitaes de crianças. Assim era: mas passeava tambem por Brighton,
apostava nas corridas de Goodwood, fazia um idyllio errante pelos lagos da
Escocia, com uma senhora hollandeza, separada de seu marido, veneravel magistrado
da Haya, uma Mme. Rughel, soberba creatura de cabellos d’ouro fulvo, grande
e branca como uma nympha de Rubens.
Depois começaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas successivas
de livros, outras de instrumentos e apparelhos, toda uma bibliotheca e todo
um laboratorio – que trazia o Villaça, manhãs inteiras, aturdido
pelos armazens da alfandega.
– O meu rapaz vem com grandes idéas de trabalho, dizia Affonso aos
amigos.
Havia quatorze mezes que elle o não via, o «seu rapaz»,
a não ser n’uma photographia mandada de Milão, em que todos
o acharam magro e triste. E o coracão batia-lhe forte, na linda manhã
de outono, quando do terraço do Ramalhete, de binoculo na mão,
viu assomar vagarosamente, por traz do alto predio fronteiro, um grande paquete
do Royal Mail que lhe trazia o seu neto.
Á noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho, o Villaça
– não se fartavam d’admirar «o bem que a viagem fizera a Carlos».
Que differença da photographia! Que forte, que saudavel!
Era decerto um formoso e magnifico moço, alto, bem feito, de hombros
largos, com uma testa de marmore sob os anneis dos cabellos pretos, e os olhos
dos Maias, aquelles irresistiveis olhos do pai, de um negro liquido, ternos
como os d’elle e mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanho-escura,
rente na face, aguçada no queixo – o que lhe dava, com o bonito bigode
arqueado aos cantos da boca, uma physionomia de bello cavalleiro da Renascença.
E o avô, cujo olhar risonho e humido transbordava d’emoção,
todo se orgulhava de o vêr, de o ouvir, n’uma larga veia, fallando da
viagem, dos bellos dias de Roma, do seu mau humor na Prussia, da originalidade
de Moscow, das paizagens da Hollanda…
– E agora? perguntou-lhe o Sequeira, depois de um momento de silencio em que
Carlos estivera bebendo o seu cognac e soda. Agora que tencionas tu fazer?
– Agora, general? respondeu Carlos, sorrindo e pousando o copo. Descançar
primeiro e depois passar a ser uma gloria nacional!
Ao outro dia, com effeito, Affonso veiu encontral-o na sala de bilhar – onde
tinham sido collocados os caixotes – a despregar, a desempacotar, em mangas
de camisa e assobiando com enthusiasmo. Pelo chão, pelos sophás,
alastrava-se toda uma litteratura em rumas de volumes graves; e aqui e além,
por entre a palha, através das lonas descozidas, a luz faiscava n’um
crystal, ou reluziam os vernizes, os metaes polidos de apparelhos. Affonso
pasmava em silencio para aquelle pomposo apparato do saber.
– E onde vaes tu accommodar este museo?
Carlos pensara em arranjar um vasto laboratorio alli perto no bairro, com
fornos para trabalhos chimicos, uma sala disposta para estudos anatomicos
e physiologicos, a sua bibliotheca, os seus apparelhos, uma concentração
methodica de todos os instrumentos de estudo…
Os olhos do avô illuminavam-se ouvindo este plano grandioso.
– E que não te prendam questões de dinheiro, Carlos! Nós
fizemos n’estes ultimos annos de Santa Olavia algumas economias…
– Boas e grandes palavras, avô! Repita-as ao Villaça.
As semanas foram passando n’estes planos de installação. Carlos
trazia realmente resoluções sinceras de trabalho: a sciencia
como mera ornamentação interior do espirito, mais inutil para
os outros que as proprias tapessarias do seu quarto, parecia-lhe apenas um
luxo de solitario: desejava ser util. Mas as suas ambições fluctuavam,
intensas e vagas; ora pensava n’uma larga clinica; ora na composição
macissa de um livro iniciador; algumas vezes em experiencias physiologicas,
pacientes e reveladoras… Sentia em si, ou suppunha sentir, o tumulto de
uma força, sem lhe discernir a linha d’applicação. «Alguma
cousa de brilhante,» como elle dizia: e isto para elle, homem de luxo
e homem d’estudo, significava um conjuncto de representação
social e de actividade scientifica; o remecher profundo de idéas entre
as influencias delicadas da riqueza; os elevados vagares da philosophia entremeados
com requintes de sport e de gosto; um Claude Bernard que fosse tambem um Morny…
No fundo era um dilletante.
Villaça fôra consultado sobre a localidade propria para o laboratorio;
e o procurador, muito lisongeado, jurou uma diligencia incançavel.
Primeira cousa a saber, o nosso doutor tencionava fazer clinica?…
Carlos não decidira fazer exclusivamente clinica: mas desejava de certo
dar consultas, mesmo gratuitas, como caridade e como pratica. Então
Villaça suggeriu que o consultorio estivesse separado do laboratorio.
– E a minha razão é esta: a vista de apparelhos, machinas, cousas,
faz esmorecer os doentes…
– Tem você razão, Villaça! exclamou Affonso. Já
meu pae dizia: poupe-se ao boi a vista do malho.
– Separados, separados, meu senhor, affirmou o procurador n’um tom profundo.
Carlos concordou. E Villaça bem depressa descobriu, para o laboratorio,
um antigo armazem, vasto e retirado, ao fundo de um pateo, junto ao largo
das Necessidades.
– E o consultorio, meu senhor, não é aqui, nem acolá;
é no Rocio, alli em pleno Rocio!
Esta idéa do Villaça não era desinteressada. Grande enthusiasta
da Fusão, membro do Centro progressista, Villaça Junior aspirava
a ser vereador da camara, e mesmo em dias de satisfação superior
(como quando o seu anniversario natalicio vinha annunciado no Illustrado,
ou quando no Centro citava com applauso a Belgica) parecia-lhe que tantas
aptidões mereciam do seu partido uma cadeira em S. Bento. Um consultorio
gratuito, no Rocio, o consultorio do dr. Maia, «do seu Maia» reluziu-lhe
logo vagamente como um elemento de influencia. E tanto se agitou, que d’ahi
a dois dias tinha lá alugado um primeiro andar d’esquina.
Carlos mobilou-o com luxo. N’uma antecamara, guarnecida de banquetas de marroquim,
devia estacionar, á franceza, um creado de libré. A sala de
espera dos doentes alegrava com o seu papel verde de ramagens prateadas, as
plantas em vasos de Rouen, quadros de muita côr, e ricas poltronas cercando
a jardineira coberta de collecções do Charivari, de vistas estereoscopicas,
d’albuns de actrizes semi-nuas; para tirar inteiramente o ar triste de consultorio
até um piano mostrava o seu teclado branco.
O gabinete de Carlos ao lado era mais simples, quasi austero, todo em velludo
verde-negro, com estantes de pau preto. Alguns amigos que começavam
a cercar Carlos, Taveira, seu contemporaneo e agora visinho do Ramalhete,
o Cruges, o marquez de Souzellas, com quem percorrera a Italia – vieram vêr
estas maravilhas. O Cruges correu uma escala no piano e achou-o abominavel;
Taveira absorveu-se nas photographias d’actrizes; e a unica approvação
franca veiu do marquez, que depois de contemplar o divan do gabinete, verdadeiro
movel de serralho, vasto, voluptuoso, fôfo, experimentou-lhe a doçura
das molas e disse, piscando o olho a Carlos:
– A calhar.
Não pareciam acreditar n’estes preparativos. E todavia eram sinceros.
Carlos até fizera annunciar o consultorio nos jornaes; quando viu porem
o seu nome em letras grossas, entre o de uma engommadeira á Boa Hora
e um reclamo de casa de hospedes, – encarregou Villaça de retirar o
annuncio.
Occupava-se então mais do laboratorio, que decidira installar no armazem,
ás Necessidades. Todas as manhãs, antes de almoço, ia
visitar as obras. Entrava-se por um grande pateo, onde uma bella sombra cobria
um poço, e uma trepadeira se mirrava nos ganchos de ferro que a prendiam
ao muro. Carlos já decidira transformar aquelle espaço em fresco
jardinete inglez; e a porta do casarão encantava-o, ogival e nobre,
resto de fachada d’ermida, fazendo um accesso veneravel para o seu sanctuario
de sciencia. Mas dentro os trabalhos arrastavam-se sem fim; sempre um vago
martellar preguiçoso n’uma poeira alvadia; sempre as mesmas coifas
de ferramentas jazendo nas mesmas camadas de aparas! Um carpinteiro esgouroviado
e triste parecia estar alli, desde seculos, aplainando uma taboa eterna com
uma fadiga langorosa; e no telhado os trabalhadores que andavam alargando
a claraboia, não cessavam de assobiar, no sol d’inverno, alguma lamuria
de fado.
Carlos queixava-se ao sr. Vicente, o mestre d’obras, que lhe asseverava invariavelmente
«como d’ahi a dois dias havia de s. ex.ª vêr a differença.»
Era um homem de meia edade, risonho, de fallar doce, muito barbeado, muito
lavado, que morava ao pé do Ramalhete, e tinha no bairro fama de republicano.
Carlos, por sympathia, como visinho, apertava-lhe sempre a mão: e o
sr. Vicente, considerando-o por isso um «avançado», um
democrata, confiava-lhe as suas esperanças. O que elle desejava primeiro
que tudo era um 93, como em França…
– O que, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca, honrada e roliça face
do demagogo.
– Não, senhor, um navio, um simples navio…
– Um navio?
– Sim, senhor, um navio fretado á custa da nação, em
que se mandasse pela barra fóra o rei, a familia real, a cambada dos
ministros, dos politicos, dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc.
Carlos sorria, ás vezes argumentava com elle.
– Mas está o sr. Vicente bem certo, que apenas a cambada, como tão
exactamente diz, desapparecesse pela barra fóra, ficavam resolvidas
todas as cousas e tudo atolado em felicidade?
Não, o sr. Vicente não era tão «burro» que
assim pensasse. Mas, supprimida a cambada, não via s. ex.ª? Ficava
o paiz desatravancado; e podiam então começar a governar os
homens de saber e de progresso…
– Sabe v. ex.ª qual é o nosso mal? Não é má
vontade d’essa gente; é muita somma de ignorancia. Não sabem.
Não sabem nada. Elles não são maus, mas são umas
cavalgaduras!
– Bem, então essas obras, amigo Vicente, dizia-lhe Carlos, tirando
o relogio e despedindo-se d’elle com um valente shakehands, veja se me andam.
Não lh’o peço como proprietario, é como correligionario.
– D’aqui a dois dias ha de v. ex.ª vêr a differença, respondia
o mestre d’obras, desbarretando-se.
No Ramalhete, pontualmente ao meio dia, tocava a sineta do almoço.
Carlos encontrava quasi sempre o avô já na sala de jantar, acabando
de percorrer algum jornal junto ao fogão, onde a tepida suavidade d’aquelle
fim de outono não permittia accender lume, mas verdejando todo de plantas
d’estufa.
Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam suavemente, no seu
luxo macisso e sobrio, as baixellas antigas; pelas tapeçarias ovaes
dos muros apainelados corriam scenas de ballada, caçadores medivaes
soltando o falcão, uma dama entre pagens alimentando os cysnes de um
lago, um cavalleiro de viseira callada seguindo ao longo d’um rio; e contrastando
com o tecto escuro de castanho entalhado a meza resplandecia com as flôres
entre os crystaes.
O reverendo Bonifacio, que desde que se tornara dignatario da Egreja comia
com os senhores, lá estava já, magestosamente sentado sobre
a alvura nevada da toalha, á sombra de algum grande ramo. Era alli,
no aroma das rosas, que o veneravel gato gostava de lamber, com o seu vagar
estupido, as sopas de leite servidas n’um covilhete de Strasburgo, depois
agachava-se, traçava por diante do peito a fofa pluma da sua cauda,
e, de olhos cerrados, os bigodes tesos, todo elle uma bola entufada de pello
branco malhado de ouro, gosava de leve uma sesta macia.
Affonso, – como confessava, sorrindo e humilhado – ía-se tornando com
a velhice um gourmet exigente; e acolhia, com uma concentração
de critico, as obras d’arte do chef francez que tinham agora, um cavalheiro
de mau genio, todo bonapartista, muito parecido com o imperador, e que se
chamava Mr. Theodore. Os almoços no Ramalhete eram sempre delicados
e longos; depois, ao café, ficavam ainda conversando; e passava da
uma hora, da hora e meia, quando Carlos, com uma exclamação,
precipitando-se sobre o relogio, se lembrava do seu consultorio. Bebia um
calice de Chartreuse, accendia á pressa um charuto:
– Ao trabalho, ao trabalho! exclamava.
E o avô, enchendo de vagar o seu cachimbo, invejava-lhe aquella occupação,
emquanto elle ficava alli a vadiar toda a manhã…
– Quando esse eterno laboratorio estiver acabado, talvez vá para lá
passar um bocado, occupar-me de chimica.
– E ser talvez um grande chimico. O avô tem já a feitio.
O velho sorria.
– Esta carcassa já não dá nada, filho. Está pedindo
eternidade!
– Quer alguma cousa da Baixa, de Babylonia? perguntava Carlos, abotoando á
pressa as suas luvas de governar.
– Bom dia de trabalho.
– Pouco provavel…
E no dog-cart, com aquella linda egoa, a Tunante ou no phaeton com que maravilhava
Lisboa, Carlos lá partia em grande estylo para a Baixa, para «o
trabalho.»
O seu gabinete, no consultorio, dormia n’uma paz tepida entre os espessos
velludos escuros, na penumbra que faziam as stores de seda verde corridas.
Na sala, porém, as tres janellas abertas bebiam á farta a luz;
tudo alli parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira estendiam os
seus braços, amaveis e convidativas; o teclado branco do piano ria
e esperava, tendo abertas por cima as Canções de Gounod; mas
não apparecia jámais um doente. E Carlos, – exactamente como
o creado que, na ociosidade da antecamara, dormitava sobre o Diario de Noticias,
acaçapado na banqueta – accendia um cigarro Laferme, tomava uma Revista,
e estendia-se no divan. A prosa porém dos artigos estava como embebida
do tedio moroso do gabinete: bem depressa bocejava, deixava cair o volume.
Do Rocio, o ruido das carroças, os gritos errantes de pregões,
o rolar dos americanos, subiam, n’uma vibração mais clara, por
aquelle ar fino de novembro: uma luz macia, escorregando docemente do azul
ferrete, vinha doirar as fachadas enxovalhadas, as cópas mesquinhas
das arvores de municipio, a gente vadiando pelos bancos: e essa sussurração
lenta de cidade preguiçosa, esse ar avelludado de clima rico, pareciam
ir penetrando pouco a pouco n’aquelle abafado gabinete e resvelando pelos
velludos pesados, pelo verniz dos moveis, envolver Carlos n’uma indolencia
e n’uma dormencia… Com a cabeça na almofada, fumando, alli ficava,
n’essa quietação de sesta, n’um scismar que se ía desprendendo,
vago e tenue, como o tenuo e leve fumo que se eleva d’uma brazeira meia apagada;
até que com um esforço sacudia este torpor, passeiava na sala,
abria aqui e além pelas estantes um livro, tocava no piano dois compassos
de walsa, espriguiçava-se – e, com os olhos nas flores do tapete, terminava
por decidir que aquellas duas horas de consultorio eram estupidas!
– Está ahi o carro? ía perguntar ao creado.
Accendia bem depressa outro charuto, calçava as luvas, descia, bebia
um largo sorvo de luz e ar, tomava as guias e largava, murmurando comsigo:
– Dia perdido!
Foi uma d’essas manhãs que preguiçando assim no sophá
com a Revista dos Dois Mundos na mão, elle ouviu um rumor na antecamara,
e logo uma voz bem conhecida, bem querida, que dizia por trás do reposteiro:
– Sua Alteza Real está visivel?
– Oh Ega! gritou Carlos, dando um salto do sophá.
E cahiram nos braços um do outro, beijando-se na face, enternecidos.
– Quando chegaste tu?
– Esta manhã. Caramba! exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos
hombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o emfim no olho. Caramba! Tu
vens esplendido d’esses Londres, d’essas civilisações superiores.
Estás com um ar Renascença, um ar Valois… Não ha nada
como a barba toda!
Carlos ria, abraçando-o outra vez.
– E d’onde vens tu, de Celorico?
– Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente… O figado, o baço,
uma infinidade de visceras compromettidas. Emfim, doze annos de vinhos e aguas
ardentes…
Depois fallaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em Lisboa…
Ega vinha para sempre. Tinha dito do alto da diligencia, ás varzeas
de Celorico, o adeus de eternidade.
– Imagina tu, Carlos, amigo, a historia deliciosa que me succede com minha
mãe… Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir
viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos. Qual, não
caíu! Fiquei na quinta, fazendo epigrammas ao padre Seraphim e a toda
a côrte do céu. Chega julho, e apparece nos arredores uma epidemia
de anginas. Um horror, creio que vocês lhe chamam diphtericas… A mamã
salta immediatamente á conclusão que é a minha presença,
a presença do atheo, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que offendeu
Nosso Senhor e attrahiu o flagello. Minha irmã concorda. Consultam
o padre Seraphim. O homem, que não gosta de me vêr na quinta,
diz que é possivel que haja indignação do Senhor – e
minha mãe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha
para Lisboa, que a arruine, mas que não esteja alli chamando a ira
divina. No dia seguinte bati para a Foz…
– E a epidemia…
– Desappareceu logo, disse o Ega, começando a puxar devagar dos dedos
magros uma longa luva cor de canário.
Carlos mirava aquellas luvas do Ega; e as polainas de casemira; e o cabello
que elle trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de setim
uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dandy, vistoso, paramentado,
artificial e com pó d’arroz – e Carlos deixou emfim escapar a exclama&ccedccedil;ão
impaciente que lhe bailava nos labios:
– Ega, que extraordinario casaco!
Por aquelle sol macio e morno de um fim de outono portuguez, o Ega, o antigo
bohemio de batina esfarrapada, trazia uma pelliça, uma sumptuosa pelliça
de principe russo, agasalho de trenò e de neve, ampla, longa, com alamares
trespassados á Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço
esganiçado e dos pulsos de thisico uma rica e fôfa espessura
de pelles de marta.
– É uma boa pelliça, hein? disse elle logo, erguendo-se, abrindo-a,
exhibindo a opulencia do forro. Mandei-a vir pelo Strauss… Beneficios da
epidemia.
– Como podes tu supportar isso?
– É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.
Tornou a recostar-se no sophá, adiantando o sapato de verniz muito
bicudo, e, de monocolo no olho, examinou o gabinete.
– E tu que fazes? conta-me lá… Tens isto explendido!
Carlos fallou dos seus planos, de altas idéas de trabalho, das obras
do laboratorio…
– Um momento, quanto te custou tudo isto? exclamou o Ega interrompendo-o,
erguendo-se para ir apalpar o velludo dos reposteiros, mirar os torneados
da secretária de pau preto.
– Não sei. O Villaça é que deve saber…
E Ega, com as mãos enterradas nos vastos bolsos da pelliça,
inventariando o gabinete, fazia considerações:
– O velludo dá seriedade… E o verde escuro é a côr suprema,
é a côr esthetica… Tem a sua expressão propria, enternece
e faz pensar… Gosto d’este divan. Movel de amor…
Foi entrando para a sala dos doentes, de vagar, de luneta no olho, estudando
os ornatos.
– Tu és o grandioso Salomão, Carlos! O papel é bonito…
E o cretonesinho agrada-me.
Apalpou-o tambem. Uma begonia, manchada da sua ferrugem de prata, n’um vaso
de Rouen, interessou-o. Queria saber o preço de tudo; e diante do piano,
olhando o livro de musica aberto, as Canções de Gounod, teve
uma surpreza enternecida:
– Homem, é curioso… Cá me apparece! A Barcarolla! É
deliciosa, hein?…
Dites, la jeune belle,
Ou voulez-vous aller?
La voile…
Estou um bocado rouco… Era a nossa canção na Foz!
Carlos teve outra exclamação, e crusando os braços diante
d’elle:
– Tu estás extraordinario, Ega! Tu és outro Ega!… A proposito
da Foz… Quem é essa Madame Cohen, que estava tambem na Foz, de quem
tu, em cartas successivas, verdadeiros poemas, que recebi em Berlin, na Haia,
em Londres, me fallavas como os arrobos do Cantico dos Canticos?
Um leve rubor subiu ás faces do Ega. E limpando negligentemente o monocolo
ao lenço de seda branca:
– Uma judia. Por isso usei o lyrismo biblico. É a mulher do Cohen,
has de conhecer, um que é director do Banco Nacional… Démos-nos
bastante. É sympathica… Mas o marido é uma besta… Foi uma
flitartion de praia. Voila tout.
Isto era dito aos bocados, passeiando, puchando o lume ao charuto, e ainda
córado.
– Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocês no Ramalhete? O avô
Affonso? Quem vae por lá?…
No Ramalhete, o avô fazia o seu whist com os velhos parceiros. Ia o
D. Diogo, o decrepito leão, sempre de rosa ao peito, e frisando ainda
os bigodes… Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estoirar de sangue,
á espera da sua apoplexia… Ia o conde de Steinbroken…
– Não conheço. Refugiado?… Polaco?…
– Não, ministro da Filandia… Queria-nos alugar umas cocheiras e complicou
esta simples transacção com tantas finuras diplomaticas, tantos
documentos, tantas cousas com o sello real da Filandia, que o pobre Villaça
aturdido, para se desembaraçar, remetteu-o ao avô. O avô,
desnorteado tambem, offereceu-lhe as cocheiras de graça. Steinbroken
considera isto um serviço feito ao rei da Filandia, á Filandia,
vae visitar o avô, em grande estado, com o secretario da legação,
o consul, o vice-cousul…
– Isso é sublime!
– O avô convida-o a jantar… E como o homem é muito fino, um
gentleman, enthusiasta da Inglaterra, grande entendedor de vinhos, uma auctoridade
no whist, o avô adopta-o. Não sae do Ramalhete.
– E de rapazes?
De rapazes, apparecia Taveira, sempre muito correcto, empregado agora no Tribunal
de Contas: um Cruges, que o Ega não conhecia, um diabo adoidado, maestro,
pianista, com uma pontinha de genio; o marquez de Souzellas…
– Não ha mulheres?
– Não ha quem as receba. É um covil de solteirões. A
viscondessa, coitada…
– Bem sei. Um apopleté…
– Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos tambem o Silveirinha, chegou-nos
ultimamente o Silveirinha…
– O de Resende, o cretino?
– O cretino. Euviuvou, vem da Madeira, ainda um bocado thisico, todo carregado
de luto… Um funebre.
O Ega, repoltreado, com aquelle ar de tranquilla e solida felicidade que Carlos
já notara, disse puchando lentamente os punhos:
– É necessario reorganisar essa vida. Precisamos arranjar um cenaculo,
uma bohemiasinha dourada, umas soirées de inverno, com arte, com litteratura…
Tu conheces o Craft?
– Sim, creio que tenho ouvido fallar…
Ega teve um grande gesto. Era indispensavel conhecer o Craft! O Craft era
simplesmente a melhor cousa que havia em Portugal…
– É um inglez, uma especie de doido?…
Ega encolheu os hombros. Um doido!… Sim, era essa a opinião da rua
dos Fanqueiros; o indigena, vendo uma originalidade tão forte como
a de Craft, não podia explical-a senão pela doidice. O Craft
era um rapaz extraordinario!… Agora tinha elle chegado da Suecia, de passar
tres mezes com os estudantes de Upsala. Estava tambem na Foz… Uma individualidade
de primeira ordem!
– É um negociante do Porto, não é?
– Qual negociante do Porto! exclamou o Ega erguendo-se, franzindo a face,
enojado de tanta ignorancia. O Craft é filho d’um clergiman da egreja
ingleza do Porto. Foi um tio, um negociante de Calcutá ou d’Australia,
um Nababo, que lhe deixou a fortuna. Uma grande fortuna. Mas não negoceia,
nem sabe o que isso é. Dá largas ao séu temperamento
byroneano, é o que faz. Tem viajado por todo o universo, collecciona
obras d’arte, bateu-se como voluntario na Abyssinia e em Marrocos, emfim vive,
vive na grande, na forte, na heroica accepção da palavra. É
necessario conhecer o Craft. Vaes-te babar por elle… Tens razão,
caramba, está calor.
Desembaraçou-se da opulenta pelliça, e appareceu em peitilho
de camisa.
– O que! tu não trazias nada por baixo? exclamou Carlos. Nem collete?
– Não; então não a podia aguentar… Isto é para
o effeito moral, para impressionar o indigena… Mas, não ha negal-o,
é pesada!
E immediatamente voltou á sua idéa: apenas Craft chegasse do
Porto relacionavam-se, organisava-se um Cenaculo, um Decameron d’arte e dilletantismo,
rapazes e mulheres – tres ou quatro mulheres para cortarem, com a graça
dos decotes, a severidade das philosophias…
Carlos ria-se d’esta idéa do Ega. Tres mulheres de gosto e de luxo,
em Lisboa, para adornar um cenaculo! Lamentavel illusão de um homem
de Celorico! O marquez de Souzella tinha tentado, e para uma vez só,
uma cousa bem mais simples – um jantar no campo com actrizes. Pois fôra
o escandalo mais engraçado e mais caracteristico: uma não tinha
creada e queria levar comsigo para a festa uma tia e cinco filhos; outra temia
que, acceitando, o brazileiro lhe tirasse a mezada; uma consentiu, mas o amante,
quando soube, deu-lhe uma cóça. Esta não tinha vestido
para ir; aquella pretendia que lhe garantissem uma libra; houve uma que se
escandalisou com o convite como com um insulto. Depois, os chulos, os queridos,
os pôlhos, complicaram medonhamente a questão; uns exigiam ser
convidados, outros tentavam desmanchar a festa; houve partidos, fizeram-se
intrigas, – emfim esta cousa banal, um jantar com actrizes, resultou em o
Tarquinio do Gymnasio levar uma facada…
– E aqui tens tu Lisboa.
– Emfim, exclamou o Ega, se não apparecerem mulheres, importam-se,
que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo.
Leis, idéas, philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias,
estylo, industrias, modas, maneiras, pilherias, tudo nos vem em caixotes pelo
paquete. A civilisação custa-nos carissima com os direitos da
alfandega: e é em segunda mão, não foi feita para nós,
fica-nos curta nas mangas… Nós julgamo-nos civilisados como os negros
de S. Thomé se suppõem cavalheiros, se suppõem mesmo
brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão… Isto
é uma choldra torpe. Onde puz eu a charuteira?
Desembaraçado da magestade que lhe dava a pelissa o antigo Ega reapparecia,
perorando com os seus gestos aduncos de Mephistopheles em verve, lançando-se
pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes phrases, n’uma lucta
constante com o monocolo, que lhe caía do olho, que elle procurava
pelo peito, pelos hombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como
mordido por bichos. Carlos animava-se tambem, a fria sala aquecia; discutiam
o Naturalismo, Gambetta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e á uma,
malharam sobre o paiz…
Mas o relogio ao lado bateu quatro horas; immediatamente Ega saltou sobre
a pelissa, sepultou-se n’ella, aguçou o bigode ao espelho, verificou
a pose, e, encouraçado nos seus alamares, sahio com um arsinho de luxo
e d’aventura.
– John, disse Carlos que o achava esplendido e o ia seguindo ao patamar, onde
estás tu?
– No Universal, esse sanctuario!
Carlos abominava o Universal, queria que elle viesse para o Ramalhete.
– Não me convém…
– Em todo o caso vaes hoje lá jantar, ver o avô.
– Não posso. Estou compromettido com a besta do Cohen… Mas vou lá
ámanhã almoçar.
Já nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monocolo, gritou para
cima:
– Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!
– O quê! está prompto? exclamou Carlos, espantado.
– Está esboçado, á brocha larga…
O Livro do Ega! Fôra em Coimbra, nos dois ultimos annos, que elle começára
a fallar do seu livro, contando o plano, soltando titulos de capitulos, citando
pelos cafés phrases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega
discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela fórma
e pela idéa, uma evolução litteraria. Em Lisboa (onde
elle vinha passar as ferias e dava ceias no Silva) o livro fôra annunciado
como um acontecimento. Bachareis, contemporaneos ou seus condiscipulos, tinham
levado de Coimbra, espalhado pelas provincias e pelas ilhas a fama do livro
do Ega. Já de qualquer modo essa noticia chegára ao Brazil…
E sentindo esta ansiosa espectativa em torno do seu livro – o Ega decidira-se
emfim a escrevel-o.
Devia ser uma epopêa em prosa, como elle dizia, dando, sob episodios
symbolicos, a historia das grandes phases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se
Memorias d’um Atomo, e tinha a fórma d’uma autobiographia. Este atomo
(o atomo do Ega, como se lhe chamava a serio em Coimbra) apparecia no primeiro
capitulo, rolando ainda no vago das Nebuloses primitivas: depois vinha embrulhado,
faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: emfim,
fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda molle do
globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações
da substancia, o atomo do Ega entrava na rude structura do Orango, pae da
humanidade – e mais tarde vivia nos labios de Platão. Negrejava no
burel dos santos, refulgia na espada dos heroes, palpitava no coração
dos poetas. Gota de agua nos lagos de Galiléa, ouvira o fallar de Jesus,
aos fins da tarde, quando os apostolos recolhiam as redes; nó de madeira
na tribuna da Convenção, sentira o frio da mão de Robespierre.
Errara nos vastos anneis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-n’o orvalhado,
petala resplandecente de um dormente e languido lyrio. Fôra omnipresente,
era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da penna do Ega, e cançado
d’esta jornada atravez do Ser, repousava – escrevendo as suas Memorias…
Tal era este formidavel trabalho – de que os admiradores do Ega, em Coimbra,
diziam, pensativos e como esmagados de respeito:
– É uma Biblia!
Capítulo V
No escriptorio de Affonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a partida
de whist. A mesa estava ao lado da chaminé, onde a chamma morria nos
carvões escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo
japonez, por causa da bronchite de D. Diogo e do seu horror ao ar.
Esse velho dandy, – a quem as damas de outras eras chamavam o «Lindo
Diogo», gentil toureiro que dormira n’um leito real – acabava justamente
de ter um dos seus accessos de tosse, cavernosa, aspera, dolorosa, que o sacudiam
como uma ruina, que elle abafava no lenço, com as veias inchadas, rôxo
até á raiz dos cabellos.
Mas passára. Com a mão ainda tremula, o decrepito leão
limpou as lagrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compoz a rosa
de musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua agua chasada, e
perguntou a Affonso, seu parceiro, n’uma voz rouca e surda:
– Paus, hein?
E de novo, sobre o panno verde, as cartas foram cahindo n’um d’aquelles silencios
que se seguiam ás tosses de D. Diogo. Sentia-se só a respiração
assobiada, quasi silvante, do general Sequeira, muito infeliz essa noite,
desesperado com o Villaça seu parceiro, resingão, e com todo
o sangue na face.
Um tom fino retiniu, o relogio Luiz XV foi ferindo alegremente, vivamente,
a meia noite; – depois a toada argentina do seu minuete vibrou um momento
e morreu. Houve de novo um silencio. Uma renda vermelha recobria os globos
de dois grandes candieiros Carcel; e a luz assim coada, cahindo sobre os damascos
vermelhos das paredes, dos assentos, fazia como uma doce refracção
côr de rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava e dormia:
só, aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das estantes, rebrilhava
em silencio o ouro d’um Sèvres, uma pallidez de marfim, ou algum tom
esmaltado de velha majolica.
– O que! ainda encarniçados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro,
entrava, e com elle o rumor distante de bolas de bilhar.
Affonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeça, a perguntar
com interesse:
– Como vae ella? Está socegada?
– Está muito melhor!
Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem alsacianna,
casada com o Marcellino padeiro, muito conhecida no bairro pelos seus bellos
cabellos, loiros, e penteados sempre em tranças soltas. Tinha estado
á morte com uma pneumonia; e apesar de melhor, como a padaria ficava
defronte, Carlos ainda ás vezes á noite atravessava a rua para
a ir vêr, tranquillisar o Marcellino, que, defronte do leito e de gabão
pelos hombros, suffocava soluços d’amante, escrevinhando no livro de
contas.
Affonso interessara-se anciosamente por aquella pneumonia; e agora estava
realmente agradecido á Marcellina por ter sido salva por Carlos. Fallava
d’ella commovido; gabava-lhe a linda figura, o aceio alsacianno, a prosperidade
que trouxera á padaria… Para a convalescença, que se approximava,
já lhe mandára até seis garrafas de Chateau-Margaux.
– Então fóra de perigo, inteiramente fóra de perigo?
– perguntou Villaça, com os dedos na caixa do rapé, sublinhando
muito a sua sollicitude.
– Sim, quasi rija – disse Carlos, que se approximara da chaminé, esfregando
as mãos, arrepiado.
É que a noite, fóra, estava regelada! Desde o anoitecer geava,
d’um céu fino e duro, transbordando de estrellas que rebrilhavam como
pontas afiadas d’aço; e nenhum d’aquelles cavalheiros, desde que se
entendia, conhecera jámais o thermometro tão baixo. Sim, Villaça
lembrava-se d’um janeiro peor no inverno de 64…
– É necessario carregar no punch, hein, general! – exclamou Carlos,
batendo galhofeiramente nos hombros macissos do Sequeira.
– Não me opponho, rosnou o outro, que fixava com concentração
e rancor um valete de copas sobre a meza.
Carlos, ainda com frio, remexeu, esfuracou os carvões: uma chuva d’oiro
cahiu por baixo, uma chamma mais forte ressaltou, rugiu, alegrando tudo, avermelhando
em redor as pelles de urso onde o Reverendo Bonifacio, espapado, torrava ao
calor, ronronava de gôso.
– O Ega deve estar radiante, dizia Carlos com os pés á chamma.
Tem, emfim, justificada a pellissa. A proposito, algum dos senhores tem visto
o Ega estes ultimos dias?
Ninguem respondeu, no interesse subito que causava a cartada. A longa mão
de D. Diogo recolhia de vagar a vasa – e languidamente, no mesmo silencio,
soltou uma carta de paus.
– Ó Diogo! ó Diogo! gritou Affonso, estorcendo-se, como se o
trespassasse um ferro.
Mas conteve-se. O general, cujos olhos despediam faiscas, collocou o seu valete;
Affonso, profundamente infeliz, separou-se do rei de paus; Villaça
bateu de estalo com o az. E immediatamente foi em redor uma discussão
tremenda sobre a puchada de D. Diogo – em quanto Carlos, a quem as cartas
sempre enfastiavam, se debruçava a coçar o ventre fofo do veneravel
Reverendo.
– Que perguntavas tu, filho? disse emfim Affonso erguendo-se, ainda irritado,
a buscar tabaco para o cachimbo, sua consolação nas derrotas.
O Ega? Não, ninguem o viu, não tornou a apparecer! Está
tambem um bom ingrato, esse John…
Ao nome do Ega, Villaça, parando de baralhar as cartas, erguera a face
curiosa:
– Então sempre é certo que elle vae montar casa?
Foi Affonso que respondeu, sorrindo e accendendo o cachimbo:
– Montar casa, comprar coupé, deitar libré, dar soirées
litterarias, publicar um poema, o diabo!
– Elle esteve lá no escriptorio, dizia Villaça recomeçando
a baralhar. Esteve lá a indagar o que tinha custado o consultorio,
a mobilia de velludo, etc. O velludo verde deu-lhe no gôto… Eu, como
é um amigo da casa, lá lhe prestei informações,
até lhe mostrei as contas. – E respondendo a uma pergunta do Sequeira:
– Sim, a mãe tem dinheiro, e creio que lhe dá o bastante. Que
em quanto a mim, elle vem-se metter na politica. Tem talento, falla bem, o
pae já era muito regenerador… Alli ha ambição.
– Alli ha mulher, disse D. Diogo, collocando com peso esta decisão
e accentuando-a com uma caricia languida á ponta frisada dos bigodes
brancos. Lê-se-lhe na cara, basta vêr-lhe a cara… Alli ha mulher.
Carlos sorria, gabando a penetração de D. Diogo, o seu fino
olho á Balzac; e Sequeira, logo, franco como velho soldado, quiz saber
quem era a Dulcinea. Mas o velho dandy declarou, da profundidade da sua experiencia,
que essas cousas nunca se sabiam, e era preferivel não se saberem.
Depois passando os dedos magros e lentos pela face, deixou cahir d’alto e
com condescendencia este juizo:
– Eu gosto do Ega, tem apresentação; sobretudo tem degagè…
Tinham recebido as cartas, fez-se um silencio na meza. O general, vendo o
seu jogo, soltou um grunhido surdo, arrebatou o cigarro do cinzeiro, e puxou-lhe
uma fumaça furiosa.
– Os senhores são muito viciosos, vou vêr a gente do bilhar,
disse Carlos. Deixei o Steinbroken engalfinhado com o marquez, a perder já
quatro mil réis. Querem o punch aqui?
Nenhum dos parceiros respondeu.
E em torno do bilhar Carlos encontrou o mesmo silencio de solemnidade. O marquez,
estirado sobre a tabella, com a perna meia no ar, o começo de calva
alvejando á luz crua que cahia dos abat-jours de porcelana, preparava
a carambola decisiva. Cruges, que apostára por elle, deixára
o divan, o cachimbo turco, e, coçando com um gesto nervoso a grenha
crespa que lhe ondeava até á gola do jaquetão, vigiava
a bola inquieto, com os olhinhos piscos, o nariz espetado. Do fundo da sala,
destacando em preto, o Silveirinha, o Eusebiosinho de Sta. Olavia, estendia
tambem o pescoço, affogado n’uma gravata de viuvo de merino negro e
sem collarinho, sempre macambuzio, mais mollengo que outr’ora, com as mãos
enterradas nos bolsos – tão funebre que tudo n’elle parecia complemento
do luto pesado, até o preto do cabello chato, até o preto das
lunetas de fumo. Junto ao bilhar, o parceiro do marquez, o conde Steinbroken,
esperava: e apesar do susto, da emoção d’homem do norte aferrado
ao dinheiro, conservava-se correcto, encostado ao taco, sorrindo, sem desmanchar
a sua linha britanica, – vestido como um inglez, inglez tradicional d’estampa,
com uma sobrecasaca justa de manga um pouco curta, e largas calças
de xadrez sobre sapatões de tacão raso.
– Hurrah! gritou de repente Cruges. Os dez tostõesinbos para cá,
Silveirinha!
O marquez carambolára, ganhando a partida, e triumphava tambem:
– Você trouxe-me a sorte, Carlos!
Steinbroken depozera logo o taco, e alinhava já sobre a tabella, lentamente,
uma a uma, as quatro placas perdidas.
Mas o marquez, de giz na mão, reclamava-o para outras refregas, esfaimado
d’ouro filandez.
– Nada mach!… Vôcê hoje ‘stá têrivêl! dizia
o diplomata, no seu portuguez fluente, mas de accento barbaro.
O marquez insistia, plantado diante d’elle, de taco ao hombro como uma vara
de campino, dominando-o com a sua macissa, desempenada estatura. E ameaçava-o
de destinos medonhos n’uma voz possante habituada a ressoar nas lezirias;
queria-o arruinar ao bilhar, forçal-o a empenhar aquelles bellos anneis,
leval-o elle, ministro da Filandia e representante d’uma raça de reis
fortes, a vender senhas á porta da Rua dos Condes!
Todos riam; e Steinbroken tambem, mas com um riso franzido e difficil, fixando
no marquez o olhar azul-claro, claro e frio, que tinha no fundo da sua myopia
a dureza d’um metal. Apesar da sua sympathia pela illustre casa de Souzella,
achava estas familiaridades, estas tremendas chalaças, incompativeis
com a sua dignidade e com a dignidade da Filandia. O marquez, porém,
coração d’ouro, abraçava-o já pela cinta, com
expansão:
– Então se não quereis mais bilhar, um bocadinho de canto, Steinbroken
amigo!
A isto o ministro accedeu, affavel, preparando-se logo, dando caricias ligeiras
ás suissas, e aos anneis do cabello d’um loiro de espiga desbotada.
Todos os Steinbrokens, de paes a filhos (como elle dissera a Affonso) eram
bons barytonos: e isso trouxera á familia não poucos proventos
sociaes. Pela voz captivara seu pae o velho rei Rudolpho III, que o fizera
chefe das caudelarias, e o tinha noites inteiras nos seus quartos, ao piano,
cantando psalmos lutheranos, coraes escolares, sagas da Dallecarlia – em quanto
o taciturno monarcha cachimbava e bebia, até que saturado de emoção
religiosa, saturado de cerveja preta, tombava do sophá, soluçando
e babando-se. Elle mesmo, Steinbroken, levara parte da sua carreira ao piano,
já como addido, já como segundo secretario. Feito chefe de missão,
absteve-se: foi só quando vio o Figaro celebrar repetidamente as walsas
do principe Artoff, embaixador da Russia em Paris, e a voz de basso do conde
de Baspt, embaixador d’Austria em Londres, que elle, seguindo tão altos
exemplos, arriscou, aqui e alem, em soirées mais intimas, algumas melodias
filandezas. Emfim cantou no Paço. E desde então exerceu com
zelo, com formalidades, com praxes, o seu cargo de «barytono plenipotenciario,»
como dizia o Ega. Entre homens, e com os reposteiros corridos, Steinbroken
não duvidava todavia cantarolar o que elle chamava «cançonetas
brejêras» – o Amant d’Amanda, ou uma certa ballada ingleza:
On the Serpentine,
Oh my Caroline…
Oh!
Este oh! como elle o expellia, gemido, bem puxado, n’um movimento de batuque,
expressivo e todavia digno… Isto entre rapazes e com os reposteiros fechados.
N’essa noite, porém, o marquez, que o conduzia pelo braço á
sala do piano, exigia uma d’aquellas canções da Filandia, de
tanto sentimento e que lhe faziam tão bem á alma…
– Uma que tem umas palavrinhas de que eu gosto, frisk, gluzk… La ra lá,
lá, lá!
– A Primavera, disse o diplomata sorrindo.
Mas antes de entrar na sala, o marquez soltou o braço de Steinbroken,
fez um signal ao Silveirinha para o fundo do corredor – e ahi, sob um sombrio
painel de Santa Magdalena no deserto penitenciando-se e mostrando nudezas
ricas de nympha lubrica, interpellou-o quasi com aspereza:
– Vamos nós a saber. Então, decide-se ou não?
Era uma negociação que havia semanas se arrastava entre elles,
a respeito d’uma parelha d’egoas. Silveirinha nutria o desejo de montar carruagem;
e o marquez procurava vender-lhe umas egoas brancas, a que elle dizia «ter
tomado enguiço, apesar de serem dois nobres animaes». Pedia por
ellas um conto e quinhentos mil réis. Silveirinha fôra avisado
pelo Sequeira, por Travassos, por outros entendedores, que era uma espiga:
o marquez tinha a sua moral propria para negocios de gado, e exultaria em
intrujar um pichote. Apesar de advertido, Eusebio cedendo á influencia
da grossa voz do marquez, da robustez do seu phisico, da antiguidade do seu
titulo, não ousava recusar. Mas hesitava; e n’essa noite deu a resposta
usual de forreta, coçando o queixo, cosido ao muro:
– Eu verei, marquez… Um conto e quinhentos é dinheiro…
O marquez ergueu dois braços ameaçadores como duas trancas:
– Homem, sim ou não! Que diabo… Dois animaes que são duas
estampas… Irra ! Sim ou não!
Eusebio ageitou as lunetas, rosnou:
– Eu verei… Elle é dinheiro. Sempre é dinheiro…
– Queria você, talvez, pagal-as com feijões? Voce leva-me a commetter
um excesso!
O piano resoou, em dois accordes cheios, sob os dedos do Cruges; e o marquez,
baboso por musica, immediatamente largou a questão das egoas, recolheu
em pontas de pés. Eusebiosinho ainda ficou a remoer, a coçar
o queixo; emfim, ás primeiras notas de Steinbroken, veiu pousar como
uma sombra silenciosa entre a hombreira e o reposteiro.
Afastado do piano segundo o seu costume, curvado, com a cabelleira como pousada
ás costas, Cruges feria o acompanhamento, d’olhos cravados no livro
de Melodias Filandezas. Ao lado, empertigado, quasi official, com o lenço
de seda na mão, a mão fincada contra o peito, Steinbroken soltava
um canto festivo, n’um movimento de tarantella triumphante, em que passavam,
como um entrechocar de seixos, esses bocados de palavras de que o marquez
gostava, frisk, slécht, clikst, glukst. Era a Primavera – fresca e
silvestre, primavera do norte em paiz de montanhas, quando toda uma aldêa
dança em córos sob os fuscos abetos, a neve se derrete em cascatas,
um sol pallido avelluda os musgos, e a brisa traz o aroma das resinas… Nos
graves e cheios, as cantoneiras de Steinbroken ruborisavam-se, inchavam. Nos
tons agudos todo elle se ía alçando sobre a ponta dos pés,
como levado no compasso vivo; despegava então a mão do peito,
alargava um gesto, as bellas joias dos seus anneis faiscavam.
O marquez, com as mãos esquecidas nos joelhos, parecia beber o canto.
Na face de Carlos passava um sorriso enternecido pensando em Madame Rughel,
que viajara na Filandia, e cantava ás vezes aquella Primavera nas suas
horas de sentimentalismo flamengo…
Steinbroken soltou um stacato agudo, isolado como uma voz n’um alto, – e immediatamente,
afastando-se do piano, passou o lenço sobre as fontes, sobre o pescoço,
rectificou com um puchão a linha da sobrecasaca, e agradeceu o acompanhamento
ao Cruges n’um silencioso shake-hands.
– Bravo! bravo! berrava o marquez, batendo as mãos como malhos.
E outros applausos resoaram á porta, dos parceiros do whist, que tinham
findado a partida. Quasi immediatamente os escudeiros entravam com um serviço
frio de croquettes e sandwiches, offerecendo St. Emilion ou Porto; e sobre
uma meza, entre os renques de calices, a puncheira fumegou n’um aroma doce
e quente de cognac e limão.
– Então, meu pobre Steinbroken, exclamou Affonso, vindo-lhe bater amavelmente
no hombro, ainda dá d’esses bellos cantos a estes bandidos, que o maltratam
assim ao bilhar?
– Fui essfôladito, si, essfôladito. Agradecido, nô, prefiro
um copita Porto…
– Hoje fomos nós as victimas, disse-lhe o general respirando com delicia
o seu punch.
– Você tãbem, meu genêral?
– Sim, senhor, tambem me cascaram…
E que dizia o amigo Steinbroken ás noticias da manhã? perguntava
Affonso. A queda de Mac-Mahon, a eleição de Grevy… O que o
alegrava n’isto, era o desapparecimento definitivo do antipathico senhor de
Broglie e da sua clique. A impertinencia d’aquelle academico estreito, querendo
impôr a opinião de dois ou tres salões doutrinarios á
França inteira, a toda uma Democracia! Ah, o Times cantava-lh’as!
– E o Punch? Não viu o Punch? Oh, delicioso!…
O ministro pousara o calice, e esfregando cautelosamente as mãos disse
n’uma meia voz grave a sua phrase, a phrase definitiva com que julgava todos
os acontecimentos que apparecem em telegrammas :
– É gràve… É eqsessivemente gràve…
Depois fallou-se de Gambetta; e como Affonso lhe attribuia uma dictadura proxima,
o diplomata tomou mysteriosamente o braço de Sequeira, murmurou a palavra
suprema com que definia todas as personalidades superiores, homens d’estado,
poetas, viajantes ou tenores.
– É um homè mûto forte. É um homè eqsessivemente
forte!
– O que elle é, é um ronha! exclamou o general, escorropichando
o seu calice.
E todos tres deixaram a sala, discutindo ainda a republica – em quanto Cruges
continuava ao piano, vagueando por Mendelsshon e por Choppin, depois de ter
devorado um prato de croquettes.
O marquez e D. Diogo, sentados no mesmo sophá, um com a sua chasada
d’invalido, outro com um copo de St. Emilion, a que aspirava o bouquet, fallavam
tambem de Gambetta. O marquez gostava de Gambetta: fôra o unico que
durante a guerra mostrara ventas de homem; lá que tivesse «comido»
ou que «quizesse comer» como diziam, – não sabia nem lhe
importava. Mas era teso! E o sr. Grevy tambem lhe parecia um cidadão
serio, optimo para chefe do Estado…
Homem de sala? perguntou languidamente o velho leão.
O marquez só o vira na Assembléa, presidindo e muito digno…
D. Diogo murmurou, com um melancolico desdem na voz, no gesto, no olhar:
– O que eu queria a toda essa canalha era a saude, marquez!
O marquez consolou-o, galhofeiro e amavel. Toda essa gente, parecendo forte
por se occupar de cousas fortes, no fundo tinha asthma, tinha pedra, tinha
gota… E o Dioguinho era um Hercules…
– Um Hercules! O que é, é que você apaparica-se muito…
A doença é um mau habito em que a gente se põe. É
necessario reagir… Você devia fazer gymnastica, e muita agua fria
por essa espinha. Você, na realidade, é de ferro!
– Enferrujadote, enferrujadote… – replicou o outro, sorrindo e desvanecido.
– Qual enferrujadote! Se eu fosse cavallo ou mulher, antes o queria a você
que a esses badamecos que por ahi andam meio podres… Já não
ha homens da sua tempera, Dioguinho!
– Já não ha nada, disse o outro grave e convencido, e como o
derradeiro homem nas ruinas d’um mundo.
Mas era tarde, ia-se agasalhar, recolher, depois de acabar a sua chasada.
O marquez ainda se demorou, preguiçando no sophá, enchendo lentamente
o cachimbo, dando um olhar áquella sala que o encantava com o seu luxo
Luiz XV, os seus floridos e os seus dourados, as cerimoniosas poltronas de
Beauvais feitas para a amplidão das anquinhas, as tapeçarias
de Gobelins de tons desmaiados, cheias de galantes pastoras, longes de parques,
laços e lãs de cordeiros, sombras d’idyllios mortos, transparecendo
n’uma trama de seda… Áquella hora, no adormecimento que ía
pesando, sob a luz suave e quente das velas que findavam, havia ali a harmonia
e o ar de um outro seculo: e o marquez reclamou do Cruges um minuete, uma
gavotta, alguma cousa que evocasse Versalhes, Maria Antonietta, o rythmo das
bellas maneiras e o aroma dos empoados. Cruges deixou morrer sob os dedos
a melodia vaga que estava diluindo em suspiros, preparou-se, alargou os braços
– e atacou, com um pedal solemne, o Hymno da Carta. O marquez fugiu.
Villaça e Euzebiozinho conversavam no corredor, sentados n’uma das
arcas baixas de carvalho lavrado.
– A fazer politica? perguntou-lhes o marquez ao passar.
Ambos sorriram; Villaça respondeu jocosamente:
– É necessario salvar a patria!
Eusebio pertencia tambem ao centro progressista, aspirava a influencia eleitoral
no circulo de Resende, e alli ás noites no Ramalhete faziam conciliabulos.
N’esse momento porém fallavam dos Maias: Villaça não
duvidava confiar ao Silveirinha, homem de propriedade, visinho de Sta. Olavia,
quasi creado com Carlos, certas cousas que lhe desagradavam na casa, onde
a auctoridade da sua palavra parecia diminuir; assim, por exemplo, não
podia approvar o ter Carlos tomado uma frisa de assignatura.
– Para que, exclamava o digno procurador, para que, meu caro senhor? Para
lá não pôr os pés, para passar aqui as noites…
Hoje diz que ha enthusiasmo, e elle ahi esteve. Tem ido lá, eu sei?
duas ou tres vezes… E para isto dá cá uns poucos de centos
de mil réis. Podia fazer o mesmo com meia duzia de libras! Não,
não é governo. No fim a frisa é para o Ega, para o Taveira,
para o Cruges… Olhe, eu não me utiliso d’ella; nem o amigo. É
verdade, que o amigo está de luto.
Eusebio pensou, com despeito, que se podia metter para o fundo da frisa –
se tivesse sido convidado. E murmurou, sem conter um sorriso molle:
– Indo assim, até se podem encalacrar…
Uma tal palavra, tão humilhante, applicada aos Maias, á casa
que elle administrava, escandalisou Villaça. Encalacrar! Ora essa!
– O amigo não me comprehendeu… Ha despezas inuteis, sim, mas, louvado
Deus, a casa póde bem com ellas! É verdade que o rendimento
gasta-se todo, até o ultimo ceitil; os cheques voam, voam, como folhas
seccas; e até aqui o costume da casa foi pôr de lado, fazer bolo,
fazer reserva. Agora o dinheiro derrete-se…
Eusebio rosnou algumas palavras sobre os trens de Carlos, os nove cavallos,
o cocheiro inglez, os grooms… O procurador acudiu:
– Isso, amigo, é de razão. Uma gente d’estas deve ter a sua
representação, as suas cousas bem montadas. Ha deveres na sociedade…
É como o sr. Affonso… Gasta muito, sim, come dinheiro. Não
é com elle, que lhe conheço aquelle casaco ha vinte annos…
Mas são esmolas, são pensões, são emprestimos
que nunca mais vê…
– Desperdicios…
– Não lh’o censuro… É o costume da casa; nunca da porta dos
Maias, já meu pae dizia, sahiu ninguem descontente… Mas uma frisa,
de que ninguem usa! só para o Cruges, só para o Taveira!…
Teve de se callar. Justamente ao fundo do corredor assomava o Taveira, abafado
até aos olhos na gola d’uma ulster, d’onde sahiam as pontas d’um cachenez
de seda clara. O escudeiro desembaraçou-o dos agasalhos; e elle, de
casaca e collete branco, limpando o bonito bigode humido da geada, veiu apertar
a mão ao caro Villaça, ao amigo Eusebio, arrepiado, mas achando
o frio elegante, desejando a neve e o seu chic…
– Nada, nada, dizia Villaça todo amavel, cá o nosso solzinho
portuguez sempre é melhor…
E foram entrando no fumoir, onde se ouviam as vozes do marquez, de Carlos,
n’uma das suas sabias e prolixas cavaqueiras sobre cavallos e sport.
– Então? que tal? A mulher? foi a interrogação que acolheu
o Taveira.
Mas antes de dar noticia da estreia da Morelli, a dama nova, Taveira reclamou
alguma cousa quente. E enterrado n’uma poltrona junto do fogão, com
os sapatos de verniz estendidos para as brazas, respirando o aroma do punch,
saboreando uma cigarette, declarou emfim que não tinha sido um fiasco.
– Que ella, a meu vêr, é uma insignificancia, não tem
nada, nem voz, nem escola. Mas, coitada, estava tão atrapalhada, que
nos fez pena. Houve indulgencia, deram-se-lhe umas palmas… Quando fui ao
palco, ella estava contente…
– Vamos a saber, Taveira, que tal é ella? inquiria o marquez.
– Cheia, dizia o Taveira collocando as palavras como pinceladas; alta; muito
branca; bons olhos; bons dentes…
– E o pésinho? – E o marquez, já com os olhos accesos, passava
de vagar a mão pela calva.
Taveira não reparara no pé. Não era amador de pés…
– Quem estava? perguntou Carlos, indolente e bocejando.
– A gente do costume… É verdade, sabes quem tomou a frisa ao lado
da tua? Os Gouvarinhos. Lá appareceram hoje…
Carlos não conhecia os Gouvarinhos. Em redor explicaram-lhe: o conde
de Gouvarinho, o par do reino, um homem alto, de lunetas, poseur… E a condessa,
uma senhora inglesada, de cabello côr de cenoura, muito bem feita…
Emfim, Carlos não conhecia.
Villaça encontrava o conde no centro progressista, onde elle era uma
columna do partido. Rapaz de talento, segundo o Villaça. O que o espantava
é que elle podesse ter assim frisa de assignatura, atrapalhado como
estava: ainda não havia tres mezes lhe tinham protestado uma letra
de oitocentos mil réis, no tribunal do commercio…
– Um asno, um caloteiro! disse o marquez com nojo.
– Passa-se lá bem, ás terças feiras… – disse Taveira,
mirando a sua meia de seda.
Depois fallou-se do duello do Azevedo da Opinião com o Sá Nunes,
auctor d’El-Rei Bolacha, a grande magica da Rua dos Condes, e ultimamente
ministro da marinha: tinham-se tratado furiosamente nos jornaes de pulhas
e de ladrões: e havia dez interminaveis dias que estavam desafiados
e que Lisboa, em pasmaceira, esperava o sangue. Cruges ouvira que Sá
Nunes não se queria bater, por estar de luto por uma tia; dizia-se
tambem que o Azevedo partira precipitadamente para o Algarve. Mas a verdade,
segundo Villaça, era que o ministro do reino, primo do Azevedo, para
evitar o recontro, conservava a casa dos dois cavalheiros bloqueada pela policia…
– Uma canalha! exclamou o marquez com um dos seus resumos brutaes que varriam
tudo.
– O ministro não deixa de ter razão, observou Villaça.
Isto ás vezes, em duellos, póde bem succeder uma desgraça…
Houve um curto silencio. Carlos, que caía de somno, perguntou ao Taveira,
atravez doutro bocejo, se vira o Ega no theatro.
– Podera! La estava de serviço, no seu posto, na frisa dos Cohens,
todo puxado…
– Então essa cousa do Ega com a mulher do Cohen, disse o marquez, parece
clara…
– Transparente, diaphana! um crystal!…
Carlos, que se erguera a accender uma cigarette para despertar, lembrou logo
a grande maxima de D. Diogo: essas cousas nunca se sabiam, e era preferivel
não se saberem! Mas o marquez, a isto, lançou-se em considerações
pesadas. Estimava que o Ega se atirasse; e via ahi um facto de represalia
social, por o Cohen ser judeu e banqueiro. Em geral não gostava de
judeus; mas nada lhe ofendia tanto o gosto e a razão como a especie
banqueiro. Comprehendia o salteador de clavina, n’um pinheiral; admittia o
communista, arriscando a pelle sobre uma barricada. Mas os argentarios, os
Fulanos e Cas. faziam-n’o encavacar… E achava que destruir-lhes a paz domestica
era acto meritorio!
– Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relogio. E eu aqui,
empregado publico, tendo deveres para com o Estado, logo ás dez horas
da manhã.
– Que diabo se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaquea-se?
– Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo… Até contas!
Affonso da Maia já estava recolhido. Sequeira e Steinbroken tinham
partido; e D. Diogo, no fundo da sua velha traquitana, lá fôra
tambem a tomar ainda gemada, a pôr ainda o emplastro, sob o olho solicito
da Margarida, sua cozinheira e seu derradeiro amor. E os outros não
tardaram a deixar o Ramalhete. Taveira, de novo sepultado na ulster, trotou
até casa, uma vivendasinha perto com um bonito jardim. O marquez conseguiu
levar Cruges no coupé, para lhe ir fazer musica a casa, no orgão,
até ás tres ou quatro horas, musica religiosa e triste, que
o fazia chorar, pensando nos seus amores e comendo frango frio com fatias
de salame. E o viuvo, o Eusebiosinho, esse, batendo o queixo, tão morosa
e soturnamente como se caminhasse para a sua propria sepultura, lá
se dirigiu ao lupanar onde tinha uma paixão.
O laboratorio de Carlos estava prompto – e muito convidativo, com o seu soalho
novo, fornos de tijolo fresco, uma vasta meza de marmore, um amplo divan de
clina para o repouso depois das grandes descobertas, e em redor, por sobre
peanhas e prateleiras, um rico brilho de metaes e crystaes; mas as semanas
passavam, e todo esse bello material de experimentação, sob
a luz branca da claraboia, jazia virgem e ocioso. Só pela manhã
um servente ia ganhar o seu tostão diario, dando lá uma volta
preguiçosa com um espanador na mão.
Carlos realmente não tinha tempo de se occupar do laboratorio; e deixaria
a Deus mais algumas semanas o privilegio exclusivo de saber o segredo das
cousas – como elle dizia rindo ao avô. Logo pela manhã cedo ía
fazer as suas duas horas d’armas com o velho Randon; depois via alguns doentes
no bairro onde se espalhara, com um brilho de legenda, a cura da Marcellina
– e as garrafas de Bordeus que lhe mandara Affonso. Começava a ser
conhecido como medico. Tinha visitas no consultorio – ordinariamente bachareis,
seus contemporaneos, que sabendo-o rico o consideravam gratuito, e lá
entravam, murchos e com má cara, a contar a velha e mal disfarçada
historia de ternuras funestas. Salvara d’um garrotilho a filha d’um brazileiro,
ao Aterro – e ganhara ahi a sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho
ganhava um homem da sua familia. O dr. Barbedo convidara-o a assistir a uma
operação ovariotomica. E emfim (mas esta consagração
não a esperava realmente Carlos tão cedo) alguns dos seus bons
collegas, que até ahi, vendo-o só a governar os seus cavallos
inglezes, fallavam do «talento do Maia» – agora percebendo-lhe
estas migalhas de clientella, começavam a dizer «que o Maia era
um asno.» Carlos já fallava a serio da sua carreira. Escrevera,
com laboriosos requintes d’estylista, dois artigos para a Gazeta Medica; e
pensava em fazer um livro d’idéas geraes, que se devia chamar Medicina
Antiga e Moderna. De resto occupava-se sempre dos seus cavallos, do seu luxo,
do seu bric-a-brac. E atravez de tudo isto, em virtude d’essa fatal dispersão
de curiosidade que, no meio do caso mais interessante de pathologia, lhe fazia
voltar a cabeça, se ouvia fallar d’uma estatua ou d’um poeta, attrahia-o
singularmente a antiga idéa do Ega, a creação d’uma Revista,
que dirigisse o gosto, pezasse na politica, regulasse a sociedade, fosse a
força pensante de Lisboa…
Era porém inutil lembrar ao Ega este bello plano. Abria um olho vago,
respondia:
– Ah, a Revista… Sim, está claro, pensar n’isso! Havemos de fallar,
eu apparecerei…
Mas não apparecia no Ramalhete, nem no consultorio; apenas se avistavam,
ás vezes, em S. Carlos, onde o Ega, todo o tempo que não passava
no camarote dos Cohens, vinha invariavelmente refugiar-se no fundo da frisa
de Carlos, por trás de Taveira ou do Cruges; d’onde podesse olhar de
vez em quando Rachel Cohen – e ali ficava, silencioso, com a cabeça
appoiada ao tabique, repousando e como saturado de felicidade…
O dia (dizia elle) tinha-o todo tomado: andava procurando casa, andava estudando
mobilias… Mas era facil encontral-o pelo Chiado e pelo Loreto, a rondar
e a farejar – ou então no fundo de tipoias de praça, batendo
a meio galope, n’um espalhafato de aventura.
O seu dandysmo requintava; arvorara, com o desplante soberbo d’um Brummel,
casaca de botões amarellos sobre collete de setim branco; e Carlos
entrando uma manhã cedo no Universal, deu com elle pallido de colera,
a despropositar com um creado, por causa d’uns sapatos mal envernisados. Os
seus companheiros constantes, agora, eram um Damaso Salcede, amigo do Cohen,
e um primo da Rachel Cohen, mocinho imberbe, d’olho esperto e duro, já
com ares de emprestar a trinta por cento.
Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-se ás vezes
Rachel, e as opiniões discordavam. Taveira achava-a «deliciosa!»
– e dizia-o rilhando o dente: ao marquez não deixava de parecer appetitosa,
para uma vez, aquella carnezinha faisandée de mulher de trinta annos:
Cruges chamava-lhe uma «lambisgoia relamboria». Nos jornaes, na
secção do High-life, ella era «uma das nossas primeiras
elegantes»: e toda a Lisboa a conhecia, e a sua luneta d’ouro presa
por um fio d’ouro, e a sua caleche azul com cavallos pretos. Era alta, muito
pallida, sobre tudo ás luzes, delicada de saude, com um quebranto nos
olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance
e de lyrio meio murcho: a sua maior belleza estava nos cabellos, magnificamente
negros, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ella deixava
habilmente cahir n’uma massa meia solta sobre as costas, como n’um desalinho
de nudez. Dizia-se que tinha litteratura, e fazia phrases. O seu sorriso lasso,
pallido, constante, dava-lhe um ar de insignificancia. O pobre Ega adorava-a.
Conhecera-a na Foz, na Assembléa; n’essa noite, cervejando com os rapazes,
ainda lhe chamou camelia melada; dias depois já adulava o marido; e
agora esse demagogo, que queria o massacre em massa das classes medias, soluçava
muita vez por causa d’ella, horas inteiras, cahido para cima da cama.
Em Lisboa, entre o Gremio o a Casa Havaneza, já se começava
a fallar «do arranjinho do Ega». Elle todavia procurava pôr
a sua felicidade ao abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas
precauções tanta sinceridade como prazer romantico do mysterio:
e era nos sitios mais desageitados, fóra de portas, para os lados do
Matadouro, que ia furtivamente encontrar a creada que lhe trazia as cartas
d’ella… Mas em todos os seus modos (mesmo no disfarce affectado com que
espreitava as horas) transbordava a immensa vaidade d’aquelle adulterio elegante.
De resto sentia bem que os seus amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam
em pleno drama: era mesmo talvez por isso, que, diante de Carlos e dos outros,
nunca até ahi mencionara o nome d’ella, nem deixara jámais escapar
um lampejo de exaltação.
Uma noite, porém, acompanhando Carlos até ao Ramalhete, noite
de lua calma e branca, em que caminhavam ambos callados, Ega, invadido decerto
por uma onda interior de paixão, soltou desabafadamente um suspiro,
alargou os braços, declamou com os olhos no astro, um tremor na voz:
Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l’amour c’est la vie!
Isto fugira-lhe dos labios como um começo de confissão; Carlos
ao lado não disse nada, soprou ao ar o fumo do charuto.
Mas Ega sentiu-se decerto ridiculo, porque se calmou, refugiou-se immediatamente
no puro interesse litterario:
– No fim de contas, menino, digam lá o que disserem, não ha
senão o velho Hugo…
Carlos, comsigo, lembrava furores naturalistas do Ega, rugindo contra Hugo,
chamando-lhe «saco-roto de espiritualismo», «boca-aberta
de sombra», «avôsinho lyrico», injurias peiores.
Mas n’essa noite o grande phraseador continuou:
– Ah o velho Hugo! o velho Hugo é o campeão heroico de verdades
eternas… É necessario um bocado d’ideal, que diabo!… De resto o
ideal póde ser real…
E foi, com esta palinodia, acordando os silencios do Aterro.
Dias depois Carlos, no consultorio, acabava de despedir um doente, um Viegas,
que todas as semanas vinha alli fazer a fastidiosa chronica da sua dyspepsia
– quando do reposteiro da sala d’espera lhe surgiu o Ega, de sobrecasaca azul,
luva gris-perle e um rolo de papel na mão.
– Tens que fazer, doutor?
– Não, ía a sahir, janota!
– Bem. Venho-te impingir prosa… Um bocado do Atomo… Senta-te ahi. Ouve
lá.
Immediatamente abancou, afastou papeis e livros, desenrolou o manuscripto,
espalmou-o, deu um puxão ao collarinho – e Carlos, que se pousara á
borda do divan, com a face espantada e as mãos nos joelhos, achou-se
quasi sem transição transportado dos rugidos do ventre do Viegas
para um rumor de populaça, n’um bairro de judeus, na velha cidade de
Heidelberg.
– Mas espera lá! exclamou elle. Deixa-me respirar. Isso não
é o começo do livro! Isso não é o cahos…
Ega então recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou tambem.
– Não, não é o primeiro episodio… Não é
o cahos. É já no seculo XV… Mas n’um livro d’estes póde-se
começar pelo fim… Conveiu-me fazer este episodio: chama-se a Hebrea.
A Cohen! pensou Carlos.
Ega tornou a alargar o collarinho – e foi lendo, animando-se, ferindo as palavras
para as fazer viver, soltando grandes cheios de voz nas sonoridades finaes
dos periodos. Depois da sombria pintura d’um bairro medival de Heidelberg,
o famoso Atomo, o Atomo do Ega, apparecia alojado no coração
do esplendido principe Franck, poeta, cavalleiro, e bastardo do imperador
Maximiliano. E todo esse coração de heroe palpitava pela judia
Esther, perola maravilhosa do Oriente, filha do velho rabbino Salomão,
um grande doutor da Lei, perseguido pelo odio theologico do Geral dos Dominicanos.
Isto contava-o o Atomo n’um monologo, tão recamado d’imagens como um
manto da Virgem está recamado d’estrellas – e que era uma declaração
d’elle, Ega, á mulher do Cohen. Depois abria-se um intermedio pantheista:
rompiam coros de flores, coros de astros, cantando na linguagem da luz, ou
na eloquencia dos perfumes, a belleza, a graça, a pureza, a alma celeste
de Esther – e de Rachel… Emfim, chegava o negro drama da perseguição:
a fuga da familia hebraica, atravéz de bosques de bruxas e brutas aldêas
feudaes; a apparição, n’uma encrusilhada, do principe Franck
que vem proteger Esther, de lança alta, no seu grande corcel; o tropel
da turba fanatica, correndo a queimar o rabbino e os seus livros herejes;
a batalha, e o principe atravessado pelo chuço d’um reitre, indo morrer
no peito d’Esther, que morre com elle n’um beijo. Tudo isto se precipitava
como um sonoro e tumultuoso soluço; e era tratado com as maneiras modernas
d’estylo, o esforço atormentado inchando a expressão, as camadas
de côr atiradas á larga para fazer ressaltar o tom de vida…
Ao findar o Atomo exclamava, com a vasta solemnidade d’um cheio d’orgão:
– «assim arrefeceu, parou, aquelle coração de heroe que
eu habitava; e evaporado o principio de vida, eu, agora livre, remontei aos
astros, levando comigo a essencia pura d’esse amor immortal.»
– Então?… disse Ega, esfalfado, quasi tremulo.
Capítulo XI
Carlos só poude responder:
– Está ardente.
Depois elogiou a serio alguns lances, o coro das florestas, a leitura do Ecclesiastes,
de noite, entre as ruinas da torre d’Othon, certas imagens d’um grande vôo
lyrico.
Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o manuscripto, reabotoou a sobrecasaca,
e já de chapéu na mão:
– Então, parece-te apresentavel?…
– Vaes publicar?
– Não, mas emfim… – e ficou n’esta reticencia, fazendo-se corado.
Carlos comprehendeu tudo dias depois, encontrando na Gazeta do Chiado uma
descripção «da leitura feita em casa do exmo. sr. Jacob
Cohen, pelo nosso amigo João da Ega, de um dos mais brilhantes episodios
do seu livro – As memorias d’um atomo.» E o jornalista accrescentava,
dando a sua impressão pessoal: «é uma pintura dos soffrimentos
porque passaram, nos tempos da intolerancia religiosa, aquelles que seguem
a Lei d’Israel. Que poder de imaginação! Que fluencia d’estylo!
O effeito foi extraordinario, e quando o nosso amigo fechou o manuscripto
ao succumbir da protagonista – vimos lagrimas em todos os olhos da numerosa
e estimavel colonia hebraica!»
Oh, furor do Ega! Rompeu n’essa tarde pelo consultorio, pallido, desorientado…
– Estas bestas! Estas bestas d’estes jornalistas! Leste? Lagrimas em todos
os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica! Faz cahir a cousa em ridiculo…
E depois a fluencia d’estylo. Que burros! Que idiotas!
Carlos, que cortava as folhas d’um livro, consolou-o. Aquella era a maneira
nacional de fallar d’obras d’arte… Não valia a pena bramar…
– Não, palavra, tinha vontade de quebrar a cara áquelle folliculario!
– E porque lh’a não quebras?
– É um amigo dos Cohens.
E foi grunhindo improperios contra a imprensa, a passos de tigre pelo gabinete.
Por fim irritado com a indifferença de Carlos:
– Que diabo estás tu ahi a ler? Nature parasitaire des accidents de
l’impaludisme… Que blague, a medicina! Dize-me uma cousa. Que diabo serão
umas picadas que me veem aos braços, sempre que vou a adormecer?…
– Pulgas, bichos, vermina… – murmurou Carlos com os olhos no livro.
– Animal! rosnou Ega, arrebatando o chapéu.
– Vaes-te, John?
– Vou, tenho que fazer! – E junto do reposteiro, ameaçando o céu
com o guarda-chuva, chorando quasi de raiva: – Estes burros d’estes jornalistas!
São a escoria da sociedade!
D’ahi a dez minutos reappareceu, bruscamente: e já com outra voz, n’um
tom de caso serio:
– Ouve cá. Tinha-me esquecido. Tu queres ser apresentado aos Gouvarinhos?
– Não tenho um interesse especial, respondeu Carlos, erguendo os olhos
do livro, depois de um silencio. Mas não tenho tambem uma repugnancia
especial.
– Bem, disse Ega. Elles desejam conhecer-te, sobretudo a condessa faz empenho…
Gente intelligente, passa-se lá bem… Então, decidido.! Terça
feira vou-te buscar ao Ramalhete, e vamo-nos gouvarinhar.
Carlos ficou pensando n’aquella proposta do Ega, na maneira como elle sublinhára
o empenho da condessa. Lembrava-se agora que ella era muito intima da Cohen:
e ultimamente, em S. Carlos, n’aquella facil visinhança de frisa, surprehendera
certos olhares d’ella… Mesmo, segundo o Taveira, ella realmente fazia-lhe
um olhão. E Carlos achava-a picante, com os seus cabellos crespos e
ruivos, o narizinho petulante, e os olhos escuros, d’um grande brilho, dizendo
mil cousas. Era deliciosamente bem feita – e tinha uma pelle muito clara,
fina e doce á vista, a que se sentia mesmo de longe o setim.
Depois d’aquelle dia tristônho de aguaceiros, elle resolvera passar
um bom serão de trabalho, ao canto do fogão, no conforto do
seu robe-de-chambre. Mas, ao café, os olhos da Gouvarinho começaram
a faiscar-lhe por entre o fumo do charuto, a fazer-lhe um olhão, collocando-se
tentadoramente entre elle a sua noite d’estudo, pondo-lhe nas veias um vivo
calor de mocidade… Tudo culpa do Ega, esse Mephistopheles de Celorico!
Vestiu-se, foi a S. Carlos. Ao sentar-se porém á boca da frisa,
preparado, de collete branco e perola negra na camisa, – em logar dos cabellos
crespos e ruivos, avistou a carapinha retinta de um preto, um preto de doze
annos, trombudo e lusidio, de grande collarinho á mamã sobre
uma jaqueta de botões amarellos; ao lado outro preto, mais pequeno,
com o mesmo uniforme de collegio, enterrava pela venta aberta o dedo calçado
de pellica pranca. Ambos elles lhe relancearam os olhos bogalhudos, côr
de prata embaciada. A pessoa que os acompanhava, escondida para o fundo, parecia
ter um catharro ascoroso.
Dava-se a Lucia em beneficio, com a segunda dama. Os Cohens não tinham
vindo – nem o Ega. Muitos camarotes estavam desertos, em toda a tristeza do
seu velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com um bafo de sudoeste, parecia
penetrar alli, derramando o seu pesadume, a morna sensação da
sua humidade. Nas cadeiras, vasias, havia uma mulher solitaria, vestida de
setim claro; Edgardo e Lucia desafinavam; o gaz dormia, e os arcos das rebecas,
sobre as cordas, pareciam ir adormecendo tambem.
– Isto está lugubre, disse Carlos ao amigo Cruges, que occupava o escuro
da frisa.
Cruges, amodorroado n’um accesso de spleen, com o cotovello sobre as costas
da cadeira, os dedos por entre a cabelleira, todo elle embrulhado em crepes
sobrepostos de melancolia, respondeu, como do fundo d’um sepulchro:
– Pesadote.
Por indolencia, Carlos ficou. E pouco a pouco, aquelle preto de que os seus
olhos se não podiam despegar, alli enthronisado na poltrona de reps
verde da Gouvarinho, com a manga da jaqueta plantada no rebordo onde costumava
alvejar um lindo braço, – foi-lhe arrastando, a seu pesar, a imaginação
para a pessoa d’ella; relembrou toilettes com que ella alli estivera; e nunca
lhe pareceram tão picantes, como agora que os não via, os seus
cabellos ruivos, côr de braza ás luzes, d’um encrespado forte,
como crestados da chamma interna. A carapinha do preto, essa, em logar de
risca tinha um sulco cavado á thesoura na massa de lã espessa.
Quem seriam, por que estavam alli, aquelles africanos de perfil trombudo?
– Tu já reparaste n’esta extraordinaria carapinha, Cruges?
O outro, que se não mexera da sua attitude de estatua tumular, grunhiu
da sombra um monossyllabo surdo.
Carlos respeitou-lhe os nervos.
De repente, ao desafinar mais aspero d’um coro, Cruges deu um salto.
– Isto só a pontapé… Que empreza esta! rugio elle, envergando
furiosamente o paletot.
Carlos foi leval-o no coupé á rua das Flores, onde elle morava
com a mãe e uma irmã; e até ao Ramalhete não cessou
de lamentar comsigo o seu serão d’estudo perdido.
O creado de Carlos, o Baptista, (familiarmente, o Tista) esperava-o, lendo
o jornal, na confortavel antecamara dos «quartos do menino», forrada
de velludo cor de cereja, ornada de retratos de cavallos e panoplias de velhas
armas, com divans do mesmo velludo, e muito allumiada a essa hora por dois
candieiros de globo pousados sobre columnas de carvalho, onde se enrolavam
lavores de ramos de vide.
Carlos tinha desde os onze annos este creado de quarto, que viera com o Brown
para Sta. Olavia, depois de ter servido em Lisboa, na Legação
ingleza, e ter acompanhado o ministro, sir Hercules Morrisson, varias vezes
a Londres. Foi em Coimbra, nos Paços de Cellas, que Baptista começou
a ser um personagem: Affonso correspondia-se com elle de Sta. Olavia. Depois
viajou com Carlos; enjoaram nos mesmos paquetes, partilharam dos mesmos sandwiches
no buffete das gares; Tista tornou-se um confidente. Era hoje um homem de
cincoenta annos, desempenado, robusto, com um collar de barba grisalha por
baixo do queixo, e o ar excessivamente gentleman. Na rua, muito direito na
sua sobrecasaca, com o par de luvas amarellas espetado na mão, a sua
bengala de cana da India, os sapatos bem envernisados, tinha a consideravel
apparencia de um alto funccionario. Mas conservava-se tão fino e tão
desembaraçado, como quando em Londres aprendera a walsar e a boxar
na rude balburdia dos salões-dançantes, ou como quando mais
tarde, durante as ferias de Coimbra, acompanhava Carlos a Lamego e o ajudava
a saltar o muro do quintal do sr. escrivão de fazenda – aquelle que
tinha uma mulher tão garota.
Carlos foi buscar um livro ao gabinete d’estudo, entrou no quarto, estendeu-se,
cansado, n’uma poltrona. Á luz opalina dos globos, o leito entre-aberto
mostrava, sob a seda dos cortinados, um luxo effeminado de bretanhas, bordados
e rendas.
– Que ha hoje no Jornal da Noite? perguntou elle bocejando, em quanto Baptista
o descalçava.
– Eu li-o todo, meu senhor, e não me pareceu que houvesse cousa alguma.
Em França continúa socego… Mas a gente nunca póde saber,
porque estes jornaes portuguezes imprimem sempre os nomes estrangeiros errados.
– São umas bestas. O sr. Ega hoje estava furioso com elles…
Depois, em quanto Baptista preparava com esmero um grog quente, Carlos já
deitado, aconchegado, abriu preguiçosamente o livro, voltou duas folhas,
fechou-o, tomou uma cigarette, e ficou fumando com as palpebras cerradas,
n’uma immensa beatitude. Atravéz das cortinas pesadas sentia-se o sudoeste
que batia o arvoredo, e os aguaceiros alagando os vidros.
– Tu conheces os srs. condes de Gouvarinho, Tista?
– Conheço o Pimenta, meu senhor, que é creado de quarto do sr.
conde… Creado de quarto e serve a meza.
– E que diz então esse Tormenta? perguntou Carlos, n’uma voz indolente,
depois d’um silencio.
– Pimenta, meu senhor! O Manuel é Pimenta. O sr. Gouvarinho chama-lhe
Romão, por que estava acostumado ao outro creado que era Romão.
E já isto não é bonito, porque cada um tem o seu nome.
O Manuel é Pimenta. O Pimenta não está contente…
E Baptista, depois de collocar junto da cabeceira a salva com o grog, o assucareiro,
as cigarettes, transmittiu as revelações do Pimenta. O conde
de Gouvarinho, além de muito massador e muito pequinhento, não
tinha nada de cavalheiro: dera um fato de cheviot claro ao Romão (ao
Pimenta), mas tão coçado e tão cheio de riscas de tinta,
de limpar a penna á perna e ao hombro, que o Pimenta deitou o presente
fóra. O conde e a senhora não se davam bem: já no tempo
do Pimenta, uma occasião, á mesa, tinham-se pegado de tal modo
que ella agarrou do copo e do prato, e esmigalhou-os no chão. E outra
qualquer teria feito o mesmo; por que o sr. conde, quando começava
a repisar, a remoer, não se podia aturar. As questões eram sempre
por causa de dinheiro. O Tompson velho estava farto de abrir os cordões
á bolsa…
– Quem é esse Tompson velho, que nos apparece agora, a esta hora da
noite? perguntou Carlos, a seu pesar interessado.
– O Tompson velho é o pae da sr.ª condessa. A sr.ª condessa
era uma miss Tompson, dos Tompson do Porto… O sr. Tompson não tem
querido ultimamente emprestar nem mais um real ao genro: de sorte que, uma
vez, já no tempo do Pimenta tambem, o sr. conde, furioso, disse á
senhora que ella e o pae se deviam lembrar que eram gente de commercio e que
fora elle que fizera d’ella uma condessa; e com perdão de v. ex.ª,
a senhora condessa ali mesmo á mesa mandou o condado á tabúa…
Estas cousas não estão no genero do Pimenta.
Carlos bebeu um gole de grog. Bailava-lhe nos labios uma pergunta, mas hesitava.
Depois reflectiu na puerilidade de tão rigidos escrupulos, a respeito
d’uma gente, que ao jantar, diante do escudeiro, quebrava a porcelana, mandava
á tabua o titulo dos antepassados. E perguntou:
– Que diz o sr. Pimenta da senhora condessa, Baptista? Ella diverte-se?
– Creio que não, meu senhor. Mas a creada de confiança d’ella,
uma escosseza, essa é desobstinada. E não fica bem á
senhora condessa ser assim tão intima com ella…
Houve um silencio no quarto, a chuva cantou mais forte nos vidros.
– Passando a outro assumpto, Baptista. Vamos a saber, ha quanto tempo, não
escrevo eu a madame Rughel?
Baptista tirou do bolso interior da sua casaca um livro de apontamentos, aproximou-se
da luz, encavalou a luneta no nariz, e verificou, com methodo, estas datas:
– «Dia 1 de janeiro, telegramma expedido com felicitações
do começo d’anno a madame Rughel, Hotel d’Albe, Champs Élyseés,
Paris. Dia 3, telegramma recebido de madame Rughel, reciprocando comprimentos,
exprimindo amizade, annunciando partida para Hamburgo. Dia 15, carta lançada
ao correio, para madame Rughel, William-Strasse, Hamburgo, Allemagne. Depois
– mais nada. De modo que havia já cinco semanas que o menino não
escrevia a madame Rughel…
– É necessario escrever ámanhã, disse Carlos.
Baptista tomou uma nota.
Depois, entre uma fumaça languida, a voz de Carlos ergueu-se de novo
na paz dormente do quarto:
– Madame Rughel era muito bonita, não é verdade, Baptista? É
a mulher mais bonita que tu tens visto na tua vida!
O velho creado metteu o livro no bolso da casaca, e respondeu, sem hesitar,
muito certo de si:
– Madame Rughel era uma senhora de muita vista. Mas a mulher mais linda em
que tenho posto os olhos, se o menino dá licença, era aquella
senhora do coronel de hussards que vinha ao quarto do hotel em Vienna.
Carlos atirou a cigarette para a salva – e escorregando pela roupa abaixo,
todo invadido por uma onda de recordações alegres, exclamou
da profundidade do seu conforto, no antigo tom de emphase bohemia dos Paços
de Cellas.
– O sr. Baptista não tem gosto nenhum! Madame Rughel era uma nympha
de Rubens, senhor! Madame Rughel tinha o explendor d’uma deusa da Renascença,
senhor! Madame Rughel devia ter dormido no leito imperial de Carlos Quinto…
– Retire-se, senhor!
Baptista entalou mais o couvre-pieds, relanceou pelo quarto um olhar solicito,
e, contente da ordem em que as cousas adormeciam, saíu, levando o candieiro.
Carlos não dormia: e não pensava na coronela de hussards, nem
em madame Rughel. A figura que no escuro dos cortinados lhe apparecia, n’um
vago dourado que provinha do reflexo de seus cabellos soltos, era a Gouvarinho
– a Gouvarinho que não tinha o explendor d’uma deusa da Renascença
como madame Rughel, nem era a mulher mais linda em que Baptista pozera os
seus olhos como a coronela de hussards: mas, com o seu nariz petulante e a
sua boca grande, brilhava mais e melhor que todas na imaginação
de Carlos – porque elle esperara-a essa noite e ella não tinha apparecido.
Na terça-feira promettida Ega não veiu buscar Carlos para se
irem gouvarinhar. E foi Carlos que d’ahi a dias, entrando como por acaso no
Universal, perguntou rindo ao Ega:
– Então quando nos gouvarinhamos?
N’essa noite, em S. Carlos, n’um entre-acto dos Huguenotes, Ega apresentou-o
ao Sr. conde de Gouvarinho, no corredor das frizas. O conde, muito amavel,
lembrou logo que já tivera, mais de uma vez, o prazer de passar pela
porta de Sta. Olavia, quando ía vêr os seus velhos amigos, os
Tedins, a Entre-Rios – uma formosa vivenda tambem. Fallaram então do
Douro, da Beira, compararam outras paisagens. Para o conde, nada havia, no
nosso Portugal, como os campos do Mondego: mas a sua parcialidade era perdoavel,
pois n’esses ferteis vales nascera e se creara: e fallou um momento de Formozelha,
onde tinha casa, onde vivia edosa e doente sua mãe, a sr.ª condessa
viuva…
Ega, que affectara beber as palavras do conde, começou então
uma controversia, sustentando como se se tratasse dos dogmas d’uma fé,
a belleza superior do Minho, «esse paraiso idillico.» O conde
sorria: via ali, como elle observou a Carlos, batendo amavelmente no hombro
do Ega, a rivalidade das duas provincias. Emulação fecunda,
de resto, no seu pensar…
– Ahi está, por exemplo, dizia elle, o ciume entre Lisboa e Porto.
É uma verdadeira dualidade como a que existe entre a Hungria e a Austria…
Ouço por ali lamental-a. Pois bem, eu, se fosse poder, instigal-a-hia,
acirral-a-hia, se v. exas. me permittem a expressão. N’esta lucta das
duas grandes cidades do reino, podem outros vêr despeitos mesquinhos,
eu vejo elementos de progresso. Vejo civilisação!
Proferia estas cousas como do alto d’um pedestal, muito acima dos homens,
deixando-as providamente caír dos thesouros do seu intellecto á
maneira de dons inestimaveis. A voz era lenta e rotunda; os cristaes da sua
luneta d’ouro faiscavam vistosamente; e no bigode encerado, na pera curta,
havia ao mesmo tempo alguma cousa de doutoral e de casquilho.
Carlos dizia: «Tem v. ex.ª razão, sr. conde.» O Ega
dizia: «Você vê essas cousas d’alto, Gouvarinho».
Elle cruzara as mãos por baixo das abas da casaca – e estavam todos
tres muito serios.
Depois o conde abriu a porta da friza, Ega desappareceu. E d’ahi a um momento,
Carlos, apresentado como «visinho de camarote», recebia da sr.ª
condessa um grande shake-hand, em que tilintaram uma infinidade d’aros de
prata e de blangles indios sobre a sua luva preta de doze botões.
A sr.ª condessa, um pouco corada, ligeiramente nervosa, lembrou logo
a Carlos que o vira no verão passado em Paris, no salão baixo
do Café Inglez: até por signal estava n’essa noite um velho
abominavel com duas garrafas vazias diante de si, e contando alto, para uma
meza defronte, historias horrorosas do sr. Gambetta: um sujeito ao lado protestou;
o outro não fez caso, era o velho duque de Grammont. O conde passou
os dedos lentos pela testa, com um ar quasi angustioso: não se lembrava
de nada d’isso! Queixou-se logo amargamente da sua falta de memoria. Uma cousa
tão indispensavel em quem segue a vida publica, a memoria! e elle desgraçadamente,
não possuia nem um atomo. Por exemplo, lera (como todo o homem devia
lêr) os vinte volumes da Historia Universal de Cesar Cantu; lêra-os
com attenção, fechado no seu gabinete, absorvendo-se na obra.
Pois, senhores, escapara-lhe tudo – e ali estava sem saber historia!
– V. ex.ª tem boa memoria, sr. Maia?
– Tenho uma rasoavel memoria.
– Inapreciavel bem de que goza!
A condessa voltara-se para a platéa, coberta com o leque, com o ar
constrangido, como se aquellas palavras pueris do marido a diminuissem, a
desfeiassem… Carlos então fallou da opera. Que bello escudeiro huguenote
fazia o Pandolli! A condessa não aturava o Corcelli, o tenor, com as
suas notas asperas e aquella obesidade que o tornava buffo. Mas tambem (lembrava
Carlos) onde havia hoje tenores? Passara essa grande raça dos Marios,
homens de belleza, de inspiração, realisando os grandes typos
lyricos. Nicolini era já uma degeneração… Isto fez
lembrar a Patti. A condessa adorava-a, e a sua graça de fada, e a sua
voz semelhante a uma chuva d’ouro!…
Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil cousas; em certos movimentos, o cabello
crespamente ondeado, tomava tons de oiro vermelho: e em torno d’ella errava,
no calor do gaz e da enchente, um aroma exagerado de verbena. Estava de preto,
com uma gargantilha de rendas negras, á Valois, affogando-lhe o pescoço
onde pousavam duas rosas escarlates. E toda a sua pessoa tinha um arsinho
de provocação e de ataque. De pé, callado, grave, o conde
batia a coxa com a claque fechada.
O quarto acto começara, Carlos ergueu-se; e os seus olhos encontraram
defronte, na frisa do Cohen, o Ega, de binoculo, observando-o, mirando a condessa
e fallando a Rachel, que sorria, movia o leque com um ar dolente e vago.
– Nós recebemos ás terças feiras, disse a condessa a
Carlos – e o resto da phrase perdeu-se n’um murmurio e n’um sorriso.
O conde acompanhou-o fóra, ao corredor.
– É sempre uma honra para mim, dizia elle caminhando ao lado de Carlos,
fazer o conhecimento das pessoas que valem alguma cousa n’este paiz… V.
ex.ª é d’esse numero, bem raro infelizmente.
Carlos protestou, risonho. E o outro, na sua voz lenta e rotunda:
– Não o lisongeio. Eu nunca lisongeio… Mas a v. ex.ª podem-se
dizer estas cousas, porque pertence á elite: a desgraça de Portugal
é a falta de gente. Isto é um paiz sem pessoal. Quer-se um bispo?
Não ha um bispo. Quer-se um economista? Não ha um economista.
Tudo assim! Veja v. ex.ª mesmo nas profissões subalternas. Quer-se
um bom estofador? Não ha um bom estofador…
Um cheio de instrumentos e vozes, d’um tom sublime, passando pela porta da
frisa entreaberta, cortou-lhe umas ultimas palavras sobre a defficiencia dos
photographos… Escutou, com a mão no ar:
– É o coro dos punhaes, não? Ah vamos a ouvir… Ouve-se sempre
isto com proveito. Ha philosophia n’esta musica… É pena que lembre
tão vivamente os tempos da intolerancia religiosa, mas ha alli incontestavelmente
philosophia!
Capítulo VII
No Ramalhete, depois do almoço, com as tres janellas do escriptorio
abertas bebendo a tepida luz do bello dia de março, Affonso da Maia
e Craft jogavam uma partida de xadrez ao pé da chaminé já
sem lume, agora cheia de plantas, fresca e festiva como um altar domestico.
N’uma facha obliqua de sol, sobre o tapete, o Reverendo Bonifacio, enorme
e fôfo, dormia de leve a sua sesta.
Craft tornara-se, em poucas semanas, intimo no Ramalhete. Carlos e elle, tendo
muitas similitudes de gosto e de idéas, o mesmo fervor pelo bric-a-brac
e pelo bibelot, o uso apaixonado da esgrima, egual dillettantismo d’espirito,
uniram-se immediatamente em relações de superficie, faceis e
amaveis. Affonso, por seu lado começara logo a sentir uma estima elevada
por aquelle gentleman de boa raça ingleza, como elle os admirava, cultivado
e forte, de maneiras graves, de habitos rijos, sentindo finamente e pensando
com rectidão. Tinham-se encontrado ambos enthusiastas de Tacito, de
Macaulay, de Burke, e até dos poetas lakistas; Craft era grande no
xadrez; o seu carater ganhara nas longas e trabalhadas viagens a rica solidez
d’um bronze; para Affonso da Maia «aquillo era deveras um homem».
Craft, madrugador, sahia cedo dos Olivaes a cavallo, e vinha assim ás
vezes almoçar de surpreza com os Maias; por vontade de Affonso jantaria
lá sempre; – mas ao menos as noites passava-as invariavelmente no Ramalhete,
tendo emfim, como elle dizia, encontrado em Lisboa um recanto onde se podia
conversar bem sentado, no meio de idéas, e com boa educação.
Carlos sahia pouco de casa. Trabalhava no seu livro. Aquella revoada de clientella
que lhe dera esperanças d’uma carreira cheia, activa, tinha passado
miseravelmente, sem se fixar; restavam-lhe tres doentes no bairro; e sentia
agora que as suas carruagens, os cavallos, o Ramalhete, os habitos de luxo,
o condemnavam irremediavelmente ao dillettantismo. Já o fino dr. Theodosio
lhe dissera um dia, francamente: «você é muito elegante
p’ra medico! As suas doentes, fatalmente, fazem-lhe olho! Quem é o
burguez que lhe vae confiar a esposa dentro d’uma alcova?… Você aterra
o pater-familias!» O laboratorio mesmo prejudicara-o. Os collegas diziam
que o Maia, rico, intelligente, avido de innovações, de modernismos,
fazia sobre os doentes experiencias fataes. Tinha-se troçado muito
a sua idéa, apresentada na Gazeta Medica, a prevenção
das epidemias pela inoculação dos virus. Consideravam-no um
phantasista. E elle, então, refugiava-se todo n’esse livro sobre a
medicina antiga e moderna, o seu livro, trabalhado com vagares d’artista rico,
tornando-se o interesse intellectual de um ou dous annos.
N’essa manhã, em quanto dentro proseguia grave e silenciosa a partida
de xadrez, Carlos no terrasso, estendido n’uma vasta cadeira india de bambu,
á sombra do toldo, acabava o seu charuto, lendo uma Revista ingleza,
banhado pela caricia tepida d’aquelle bafo de primavera que avelludava o ar,
fazia já desejar arvores e relvas…
Ao lado d’elle, n’uma outra cadeira de bambu, tambem de charuto na boca, o
sr. Damaso Salcede percorria o Figaro. De perna estirada, n’uma indolencia
familiar, tendo o amigo Carlos ao seu lado, vendo junto ao terrasso as rosas
das roseiras de Affonso, sentindo por trás, atravez das janellas abertas,
o rico e nobre interior do Ramalhete – o filho do agiota saboreava alli uma
d’essas horas deliciosas que ultimamente encontrava na intimidade dos Maias.
Logo na manhã seguinte ao jantar do Central, o sr. Salcede fôra
ao Ramalhete deixar os seus bilhetes, objectos complicados e vistosos, tendo
ao angulo, n’uma dobra simulada, o seu retratosinho em photographia, um capacete
com plumas por cima do nome – DAMASO CANDIDO DE SALCEDE, por baixo as suas
honras – COMMENDADOR DE CHRISTO, ao fundo a sua adresse – Rua de S. Domingos,
á Lapa; mas esta indicação estava riscada, e ao lado,
a tinta azul, esta outra mais apparatosa – GRAND HOTEL, BOULEVARD DES CAPUCINES,
CHAMBRE N.º l03. Em seguida procurou Carlos no consultorio, confiou ao
creado outro cartão. Emfim, uma tarde, no Aterro, vendo passar Carlos
a pé, correu para elle, pendurou-se d’elle, conseguiu acompanhal-o
ao Ramalhete.
Ahi, logo desde o pateo, rompeu em admirações extaticas, como
dentro d’um museu, lançando, diante dos tapetes, das faienças
e dos quadros, a sua grande phrase – «chic a valer!» Carlos levou-o
para o fumoir, elle aceitou um charuto; e começou a explicar, de perna
traçada, algumas das suas opiniões e alguns dos seus gostos.
Considerava Lisboa chinfrin, e só estava bem em Paris – sobre tudo
por causa do genero «femea» de que em Lisboa se passavam fomes:
ainda que n’esse ponto a Providencia não o tratava mal. Gostava tambem
do bric-a-brac; mas apanhava-se muita espiga, e as cadeiras antigas, por exemplo,
não lhe pareciam commodas para a gente se sentar. A leitura entretinha-o,
e ninguem o pilhava sem livros á cabeceira da cama; ultimamente andava
ás voltas com Daudet, que lhe diziam ser muito chic, mas elle achava-o
confusote. Em rapaz perdia sempre as noites, até ás quatro ou
cinco da madrugada, no delirio! Agora não, estava mudado e pacato;
emfim, não dizia que de vez em quando não se abandonasse a um
excessozinho; mas só em dias duples… E as suas perguntas foram terriveis.
O sr. Maia achava chic ter um cab inglez? Qual era mais elegante, assim para
um rapaz de sociedade que quizesse ir passar o verão lá fóra,
Nice ou Trouville?… Depois ao sahir, muito serio, quasi commovido, perguntou
ao sr. Maia (se o sr.Maia não fazia segredo) quem era o seu alfaiate.
E desde esse dia, não o deixou mais. Se Carlos apparecia no theatro,
Damaso immediatamente arrancava-se da sua cadeira, ás vezes na solemnidade
d’uma bella aria, e pisando os botins dos cavalheiros, amarrotando a compostura
das damas, abalava, abria d’estalo a claque, vinha-se installar na frisa,
ao lado de Carlos, com a bochecha corada, camelia na casaca, exhibindo os
botões de punho que eram duas enormes bolas. Uma ou duas vezes que
Carlos entrara casualmente no Gremio, Damaso abandonou logo a partida, indifferente
á indignação dos parceiros, para se
vir collar á ilharga do Maia, offerecer-lhe marrasquino ou charutos,
seguil-o de sala em sala como um rafeiro. N’uma d’essas occasiões,
tendo Carlos soltado um trivial gracejo, eis o Damaso rompendo em risadas
soluçantes, rebolando-se pelos sophás, com as mãos nas
ilhargas, a gritar que rebentava! Juntaram-se socios; elle, suffocado, repetia
a pilheria; Carlos fugiu vexado. Chegou a odial-o; respondia-lhe só
com monossyllabos; dava voltas perigosas com o dog-cart se lhe avistava de
longe a bochecha, a coxa roliça. Debalde: Damaso Candido Salcede filara-o,
e para sempre.
Depois, um dia, Taveira appareceu no Ramalhete com uma extraordinaria historia.
Na vespera, no Gremio (tinham-lhe contado, elle não presenceara) um
sujeito, um Gomes, n’um grupo onde se commentavam os Maias, erguera a voz,
exclamara que Carlos era um asno! Damaso, que estava ao lado mergulhado na
Illustração, levantou-se, muito pallido, declarou que, tendo
a honra de ser amigo do sr. Carlos da Maia, quebrava a cara com a bengala
ao sr. Gomes se elle ousasse babujar outra vez esse cavalheiro; e o sr. Gomes
tragou, com os olhos no chão, a affronta, por ser rachitico de nascença
– e porque era inquilino de Damaso e andava muito atrasado na renda. Affonso
da Maia achou este feito brilhante: e foi por desejo seu que Carlos trouxe
o sr. Salcede uma tarde a jantar ao Ramalhete.
Este dia pareceu bello a Damaso como se fosse feito de azul e oiro. Mas melhor
ainda foi a manhã em que Carlos, um pouco incommodado e ainda deitado,
o recebeu no quarto, como entre rapazes… D’ahi datava a sua intimidade:
começou a tratar Carlos por você. Depois, n’essa semana, revelou
aptidões uteis. Foi despachar á alfandega (Villaça achava-se
no Alemtejo) um caixote de roupa para Carlos. Tendo apparecido n’um momento
em que Carlos copiava um artigo para a Gazeta Medica offereceu a sua boa letra,
letra prodigiosa, de uma belleza lithographica; e d’ahi por diante passava
horas á banca de Carlos, applicado e vermelho, com a ponta da lingua
de fóra, o olho redondo, copiando apontamentos, transcripções
de Revistas, materiaes para o livro… Tanta dedicação merecia
um tu de familiaridade. Carlos deu-lh’o.
Damaso, no entanto, imitava o Maia com uma minuciosidade inquieta, desde a
barba que começava agora a deixar crescer até á forma
dos sapatos. Lançara-se no bric-a-brac. Trazia sempre o coupé
cheio de lixos archeologicos, ferragens velhas, um bocado de tijolo, a aza
rachada de um bule… E se avistava um conhecido, fazia parar, entreabria
a portinhola como um addito de sacrario, exhibia a preciosidade:
– Que te parece? Chic a valer!… Vou mostral-a ao Maia. Olha-me isto, hein!
Pura meia edade, do reinado de Luiz XIV. O Carlos vae-se roer de inveja!
N’esta intimidade de rosas havia todavia para Damaso horas pesadas. Não
era divertido assistir em silencio, do fundo d’uma poltrona, ás infindaveis
discussões de Carlos e de Craft sobre arte e sobre sciencia. E, como
elle confessou depois, chegara a encavacar um pouco quando o levaram ao laboratorio
para fazer no seu corpo experiencias de electricidade… – «Pareciam
dois demonios engalphinhados em mim, disse elle á sr.ª condessa
de Gouvarinho; e eu então que embirro com o spiritismo!…»
Mas tudo isto ficava regiamente compensado, quando á noite, n’um sophá
do Gremio, ou ao chá n’uma casa amiga, elle podia dizer, correndo a
mão
pelo cabello:
– Passei hoje um dia divino com o Maia. Fizemos armas, bric-a-brac, discutimos…
Um dia, chic! Ámanhã tenho uma manhã de trabalho com
o Maia… Vamos ás colxas.
N’esse domingo, justamente, deviam ir ás colxas, ao Lumiar. Carlos
concebera um boudoir, todo revestido de colxas antigas de setim, bordadas
a dous tons especiaes, perola e botão d’ouro. O tio Abrahão
esquadrinhava-as por toda a Lisboa e pelos suburbios; e n’essa manhã
viera annunciar a Carlos a existencia de duas preciosidades, so beautiful!
oh! so lovely! em casa de umas senhoras Medeiros que esperavam o sr. Maia
ás duas horas…
Já tres vezes Damaso tossira, olhara o relogio, – mas, vendo Carlos
confortavelmente mergulhado na Revista, recahia tambem na sua indolencia de
homem chic, investigando o Figaro. Emfim, dentro, o relogio Luiz XV cantou
argentinamente as duas…
– Esta é boa, exclamou Damaso ao mesmo tempo, com uma palmada na coxa.
Olha quem aqui me apparece! A Suzanna! A minha Suzanna!
Carlos não despegara os olhos da pagina.
– Oh Carlos, accrescentou elle, fazes favor? Ouve. Ouve esta que é
boa. Esta Suzanna é uma pequena que eu tive em Paris… Um romance!
Apaixonou-se por mim, quiz-se envenenar, o diabo!… Pois diz aqui o Figaro
que debutou nas Folies-Bergeres. Falla n’ella… É boa, hein? E era
rapariguita chic… E o Figaro diz que ella teve aventuras, naturalmente sabia
o que se passou comigo… Todo o mundo sabia em Paris. Ora a Suzanna!… Tinha
bonitas pernas. E custou-me a vêr livre d’ella!
– Mulheres! murmurou Carlos, refugiando-se mais no fundo da Revista.
Damaso era interminavel, torrencial, inundante a fallar das «suas conquistas»,
n’aquella solida satisfação em que vivia de que todas as mulheres,
desgraçadas d’ellas, soffriam a fascinação da sua pessoa
e da sua toilette. E em Lisboa, realmente, era exacto. Rico, estimado na sociedade,
com coupé e parelha, todas as meninas tinham para elle um olhar doce.
E no démi-monde, como elle dizia, «tinha prestigio a valer.»
Desde moço fôra celebre, na capital, por pôr casas a hespanholas;
a uma mesmo dera carruagem ao mez; e este fausto excepcional tornara-o bem
depressa o D. João V dos prostibulos. Conhecia-se tambem a sua ligação
com a viscondessa da Gafanha, uma carcassa esgalgada, caiada, rebocada, gasta
por todos os homens validos do paiz: ía nos cincoenta annos, quando
chegou a vez do Damaso – e não era decerto uma delicia ter nos braços
aquelle esqueleto rangente e lubrico; mas dizia-se que em nova dormira n’um
leito real, e que augustos bigodes a tinham lambuzado; tanta honra fascinou
Damaso, e collou-se-lhe ás saias com uma fidelidade tão sabuja,
que a decrepita creatura, farta, enojada já, teve de o enxotar á
força e com desfeitas. Depois gozou uma tragedia: uma actriz do Principe
Real, uma montanha de carne, apaixonada por elle, n’uma noite de ciume e de
genebra, engoliu uma caixa de phosphoros; naturalmente d’ahi a horas estava
boa, tendo vomitado abominavelmente sobre o collete do Damaso que chorava
ao lado – mas desde então este homem de amor julgou-se fatal! Como
elle dizia a Carlos, depois de tanto drama na sua vida quasi tremia, tremia
verdadeiramente de fitar uma mulher…
– Passaram-se scenas com esta Suzanna! mumurou elle depois de um silencio
em que estivera catando pelliculas nos beiços.
E, com um suspiro, retomou o Figaro. Houve outra vez um silencio no terrasso.
Dentro, a partida continuava. Para lá da sombra do toldo, agora, o
sol ía aquecendo, batendo a pedra, os vasos de louça branca,
n’uma refracção d’ouro claro em que palpitavam as azas das primeiras
borboletas voando em redor dos craveiros sem flor: em baixo, o jardim verdejava,
immovel na luz, sem um bolir de ramo, refrescado pelo cantar do repuxo, pelo
brilho liquido da agoa do tanque, avivado, aqui e além, pelo vermelho
ou o amarello das rosas, pela carnação das ultimas camelias…
O bocado de rio que se avistava entre os predios era azul ferrete como o céu:
e entre rio e céu o monte punha uma grossa barra verde-escura, quasi
negra no resplendor do dia, com os dois moinhos parados no alto, as duas casinhas
alvejando em baixo, tão luminosas e cantantes que pareciam viver. Um
repouso dormente de domingo envolvia o bairro: e, muito alto, no ar, passava
o claro repique d’um sino.
– O duque de Norfolk chegou a Paris, disse Damaso n’um tom entendido e traçando
a perna. O duque de Norfolk é chic, não é verdade, ó
Carlos?
Carlos, sem erguer os olhos, lançou para os céus um gesto, como
exprimindo o infinito do chic!
Damaso largara o Figaro para metter um charuto na boquilha; depois desapertou
os ultimos botões do collete, deu um puchão á camisa
para mostrar melhor a marca que era um S enorme sob uma corôa de conde,
e de palpebra cerrada, com o beiço trombudo, ficou mamando gravemente
a boquilha…
– Tu estás hoje em belleza, Damaso, disse-lhe Carlos que deixara tambem
a Revista e o contemplava com melancolia.
Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao verniz dos sapatos, á
meia côr de carne, e revirando para Carlos o bogalho azulado da orbita:
– Eu agora ando bem… Mas, muito blazè.
E foi realmente com um ar blazè que se ergueu a ir buscar a uma mesa
de jardim, ao lado, onde estavam jornaes e charutos, a Gazeta Illustrada,
«para vêr o que ia pela patria.» Apenas lhe deitou os olhos
soltou uma exclamação.
– Outro debute? perguntou Carlos.
– Não, é a besta do Castro Gomes!
A Gazeta Illustrada annunciava que «o sr. Castro Gomes, o cavalheiro
brasileiro que no Porto fôra victima da sua dedicação
por occasião da desgraça occorrida na Praça Nova, e de
que o nosso correspondente J. T. nos deu uma descripção tão
opulenta de colorido realista, acha-se restabelecido e é hoje esperado
no Hotel Central. Os nossos parabens ao arrojado gentleman.»
– Ora está s. ex.ª restabelecida! exclamou Damaso, atirando para
o lado o jornal. Pois deixa estar, que agora é a occasião de
lhe dizer na cara o que penso… Aquelle pulha!
– Tu exageras, murmurou Carlos, que se apoderara vivamente do jornal, e relia
a noticia.
– Ora essa! exclamou Damaso, erguendo-se. Ora essa! Queria vêr, se fosse
comtigo… É uma besta! É um selvagem!
E repetiu mais uma vez a Carlos essa historia que o magoava. Desde a sua chegada
de Bordeus, logo que o Castro Gomes se installara no Hotel Central, elle fôra
deixar-lhe bilhetes duas vezes – a ultima na manhã seguinte ao jantar
do Ega. Pois bem, s. ex.ª não se dignara agradecer a visita! Depois
elles tinham partido para o Porto; fôra ahi que, passeiando só
na Praça Nova, vendo a parelha de uma caleche desbocada, duas senhoras
em gritos, Castro Gomes se lançára ao freio dos cavallos – e,
cuspido contra as grades, tinha deslocado um braço. Teve de ficar no
Porto, no Hotel, cinco semanas. E elle immediatamente (sempre com o olho na
mulher) mandara-lhe dois telegrammas: um de sentimento, lamentando, outro
de interesse, pedindo noticias. Nem a um, nem a outro, o animal respondeu!
– Não, isso – exclamava Salcede, passeiando pelo terraço, e
recordando estas injurias – hei de lhe fazer uma desfeita!… Não pensei
ainda o quê, mas ha de amargar-lhe… Lá isso, desconsiderações
não admitto a ninguem! a ninguem!
Arredondava o olho, ameaçador. Desde o seu feito no Gremio, quando
o rachitico apavorado emmudecera diante d’elle, Damaso ia-se tornando feroz.
Pela menor cousa fallava em «quebrar caras.»
– A ninguem! repetia elle, com puxões ao collete. Desconsiderações,
a ninguem!
N’esse momento ouviu-se dentro, no escriptorio, a voz rapida do Ega – e quasi
immediatamente elle appareceu, com um ar de pressa, e atarantado.
– Olá, Damasosinho!… Carlos, dás-me aqui em baixo uma palavra?
Desceram do terraço, penetraram no jardim, até junto de duas
olaias em flôr.
– Tu tens dinheiro? – foi ahi logo a exclamação anciosa do Ega.
E contou a sua terrivel atrapalhação. Tinha uma letra de noventa
libras que se vencia no dia seguinte. Além d’isso, vinte e cinco libras
que devia ao Eusebiosinho, e que elle lhe reclamara n’uma carta indecente:
e era isto que desesperava o Ega…
– Quero pagar a esse canalha, e quando o vir collar-lhe a carta á cara
com um escarro. Além d’isso a letra! E tenho para tudo isto quinze
tostões…
– O Eusebiosinho é homem de ordem… Emfim, queres cento e quinze libras,
disse Carlos.
Ega hesitou, com uma côr no rosto. Já devia dinheiro a Carlos.
Estava-se sempre dirigindo áquella amisade, como a um cofre inexgotavel…
– Não, bastam-me oitenta. Ponho o relogio no prego, e a pelissa, que
já não faz frio…
Carlos sorriu, subiu logo ao quarto a escrever um cheque – em quanto Ega procurava
cuidadosamente um bonito botão de rosa para florir a sobrecasaca. Carlos
não tardou, trazendo na mão o cheque, que alargara até
cento e vinte libras, para o Ega ficar armado…
– Seja pelo amor de Deus, menino! disse o outro, embolsando o papel, com um
bello suspiro de allivio.
Immediatamente trovejou contra o Eusebiosinho, esse villão! Mas tinha
já uma vingança. Ia remetter-lhe a somma toda em cobre, n’um
sacco de carvão, com um rato morto dentro, e um bilhete, começando
assim: – ascorosa lombriga e immunda osga, ahi te atiro ao focinho, etc….
– Como tu podes consentir aqui, usando as tuas cadeiras, respirando o teu
ar, aquelle ser repulsivo!…
Mas era até sujo mencionar o Eusebiosinho!… Quiz saber dos trabalhos
de Carlos, do grande livro. Fallou tambem do seu Atomo: – e, por fim, n’uma
voz diferente, applicando o monocolo a Carlos:
– Dize-me outra cousa. Porque não tens tu voltado aos Gouvarinhos?
Carlos tinha só esta rasão: não se divertia lá.
Ega encolheu os hombros. Parecia-lhe aquillo uma puerilidade…
– Tu não percebeste nada, exclamou elle. Aquella mulher tem uma paixão
por ti… Basta que se pronuncie o teu nome, sobe-lhe todo o sangue á
cara.
E como Carlos ria, incredulo, Ega, muito grave, deu a sua palavra de honra.
Ainda na vespera, estava-se fallando de Carlos, e elle espreitara-a. Sem ser
um Balzac, nem uma broca de observação, tinha a visão
correcta: pois bem, lá lhe vira na face, nos olhos, toda a expressão
de um sentimento sincero…
– Não estou a fazer romance, menino… Gosta de ti, palavra! Tenl-a
quando quiseres.
Carlos achava deliciosa aquella naturalidade mephistophelica com que Ega o
induzia a quebrar uma infinidade de leis religiosas, moraes, sociaes, domesticas…
– Ah bem, exclamou Ega, se tu me vens com essa blague da cartilha e do codigo,
então não fallemos mais n’isso! Se apanhaste a sarna da virtude,
com comichões por qualquer cousa, então era uma vez um homem,
vae para a Trappa commentar o Ecclesiastes..
– Não – disse Carlos, sentando-se n’um banco sob as arvores, ainda
com uns restos da preguiça do terraço – o meu motivo não
é tão nobre. Não vou lá, porque acho o Gouvarinho
um massador.
Ega teve um sorriso mudo.
– Se a gente fosse a fugir das mulheres que tem maridos massadores…
Sentou-se ao lado de Carlos, começou a riscar em silencio o chão
areado; e sem erguer os olhos, deixando cahir as palavras, uma a uma, com
melancolia:
– Antes de hontem, toda a noite, a pé firme, das dez á uma,
estive a ouvir a historia da demanda do Banco Nacional!
Era quasi uma confidencia, e como o desabafo dos tedios secretos em que se
debatia, n’aquelle mundo dos Cohens, o seu temperamento de artista. Carlos
enterneceu-se.
– Meu pobre Ega, então toda a demanda?
– Toda! E a leitura do relatorio da assembléa geral! E interessei-me!
E tive opiniões!… A vida é um inferno.
Subiram ao terraço. Damaso reoccupara a sua cadeira de vime, e, com
um canivetesinho de madreperola, estava tratando das unhas.
– Então decidiu-se? perguntou elle logo ao Ega.
– Decidiu-se hontem! Não ha cotillon.
Tratava-se de uma grande soirée mascarada que íam dar os Cohens,
no dia dos annos de Rachel. A idéa d’esta festa sugerira-a o Ega, ao
principio com grandes proporções de gala artistica, a ressurreição
historica de um sarau no tempo de D. Manuel. Depois viu-se que uma tal festa
era irrealisavel em Lisboa – e desceu-se a um plano mais sobrio, um simples
baile costumé, a capricho…
– Tu, Carlos, já decidiste como vaes?
– De dominó, um severo dominó preto, como convém a um
homem de sciencia…
– Então, exclamou Ega se se trata de sciencia, vae de rabona e chinellas
de ourello!… A sciencia faz-se em casa e de chinellas… Nunca ninguem descobriu
uma lei do Universo mettido dentro de um dominó… Que sensaboria,
um dominó!…
Justamente a sr.ª D. Rachel desejava evitar, no seu baile, essa monotonia
dos dominós. E em Carlos não havia desculpa. Não o prendiam
vinte ou trinta libras; e, com aquelle esplendido physico de cavalleiro da
Renascença, devia ornar a sala pelo menos com um soberbo Francisco
I.
– É n’isto, ajuntava elle com fogo, que está a belleza de uma
soirée de mascaras! Não lhe parece você, Damaso? Cada
um deve aproveitar a sua figura… Por exemplo, a Gouvarinho vae muito bem.
Teve uma inspiração: com aquelle cabello ruivo, o nariz curto,
as maçãs do rosto salientes, é Margarida de Navarra…
– Quem é Margarida de Navarra? perguntou Affonso da Maia, apparecendo
no terraço com Craft.
– Margarida, a duqueza d’Angouleme, a irmã de Francisco I, a Margarida
das Margaridas, a perola dos Valois, a padroeira da Renascença, a sr.ª
condessa de Gouvarinho!…
Rio muito, foi abraçar Affonso, explicou-lhe que se discutia o baile
dos Cohens. E appellou logo para elle, para o Craft tambem, ácerca
do nefando dominó de Carlos. Não estava aquelle mocetão,
com os seus ares de homem d’armas, talhado para um soberbo Francisco I, em
toda a gloria de Marignan?
O velho deu um olhar enternecido á belleza do neto.
– Eu te digo, John, talvez tenhas razão; mas Francisco I, rei de França,
não se póde apear de uma tipoia e entrar n’uma sala, só.
Precisa côrte, arautos, cavalleiros, damas, bobos, poetas… Tudo isso
é difficil.
Ega curvou-se. Sim senhor, d’accordo! Alli estava uma maneira intelligente
de comprehender o baile dos Cohens!
– E tu, de que vaes? perguntou-lhe Affonso.
Era um segredo. Tinha a theoria de que, n’aquellas festas, um dos encantos
consistia na surpreza: dois sujeitos por exemplo que tendo jantado juntos,
de jaquetão, no Bragança, se encontram á noite, um na
purpura imperial de Carlos V, outro com a escopeta de bandido da Calabria…
– Eu cá não faço segredo, disse ruidosamente Damaso.
Eu cá vou de selvagem.
– Nú?
– Não. De Nelusko na Africana. Oh sr. Affonso da Maia, que lhe parece?
Acha chic?
– Chic não exprime bem, disse Affonso sorrindo. Mas grandioso, é,
decerto.
Quizeram então saber como ía Craft. Craft não ía
de cousa nenhuma; Craft ficava nos Olivaes, de robe de chambre.
Ega encolheu os hombros com tedio, quasi com colera. Aquellas indiferenças
pelo baile dos Cohens feriam-n’o como injurias pessoaes. Elle estava dando
a essa festa o seu tempo, estudos na bibliotheca, um trabalho fumegante de
imaginação; e pouco a pouco ella tomava aos seus olhos a importancia
de uma celebração d’arte, provando o genio de uma cidade. Os
«dominós», as abstenções, pareciam-lhe evidencias
de inferioridade de espirito. Citou então o exemplo do Gouvarinho:
alli estava um homem de occupações, de posição
politica, nas vesperas de ser ministro, que não só ía
ao baile, mas estudara o seu costume: estudara, e ía muito bem, ía
de marquez de Pombal!
– Reclame para ser ministro, disse Carlos.
– Não o precisa, exclamou Ega. Tem todas as condições
para ser ministro: tem voz sonora, leu Mauricio Block, está encalacrado,
e é um asno!…
E no meio das risadas dos outros, elle, arrependido de demolir assim um cavalheiro
que se interessava pelo baile dos Cohens, acudiu logo:
– Mas é muito bom rapaz, e não se dá ares nenhuns! É
um anjo!
Affonso reprehendia-o, risonho e paternal:
– Ora tu, John, que não respeitas nada…
O desacato é a condição do progresso, sr. Affonso da
Maia. Quem respeita decahe. Começa-se por admirar o Gouvarinho, vae-se
a gente esquecendo, chega a reverenciar o monarcha, e quando mal se precata
tem descido a venerar o Todo-Poderoso!… É necessario cautela!
– Vae-te embora, John, vae-te embora! Tu és o proprio Anti-Christo…
Ega ía responder, exhuberante e em veia – mas dentro o tinir argentino
do relogio Luiz XV, com o seu gentil minuete, emmudeceu-o.
– O que? quatro horas!
Ficou aterrado, verificou no seu proprio relogio, deu em redor rapidos, silenciosos
apertos de mão, desappareceu como um sopro.
Todos de resto estavam pasmados de ser tão tarde! E assim passara a
hora de ir ao Lumiar vêr as colxas antigas das senhoras Medeiros…
– Quer você então meia hora de florete, Craft? perguntou Carlos.
– Seja: e é necessario dar a lição ao Damaso…
– É verdade, a lição… – murmurou Damaso sem enthusiasmo,
com um sorriso murcho.
A sala de esgrima era uma casa terrea, debaixo dos quartos de Carlos, com
janellas gradeadas para o jardim, por onde resvalava, atravez das arvores,
uma luz esverdinhada. Em dias enevoados era neccessario accender os quatro
bicos de gaz. Damaso seguiu, atraz dos dois, com uma lentidão de rez
desconfiada.
Aquellas lições, que elle sollicitara por amor do chic, íam-se-lhe
tornando odiosas. E n’essa tarde como sempre, apenas se enchumaçou
com o plastrão d’anta, se cobriu com a caraça de arame, começou
a transpirar, a fazer-se branco. Diante d’elle Craft de florete na mão,
parecia-lhe cruel e bestial, com aquelles seus hombros de Hercules sereno,
o olhar claro e frio. Os dois ferros rasparam. Damaso estremeceu todo.
– Firme, gritou-lhe Carlos.
O desgraçado equilibrava-se sobre a perna roliça; o florete
de Craft vibrou, rebrilhou, voou sobre elle; Damaso recuou, suffocado, cambaleando
e com o braço frouxo…
– Firme! berrava-lhe Carlos.
Damaso, exhausto, abaixou a arma.
– Então que querem vocês, é nervoso! É por ser
a brincar… Se fosse a valer, vocês veriam.
Assim acabava sempre a lição; e ficava depois abatido sobre
uma banqueta de marroquim, arejando-se com o lenço, pallido como a
cal dos muros.
– Vou-me até casa, disse elle d’ahi a pouco, fatigado de tanto crusar
de ferro. Queres alguma cousa, Carlinhos?
– Quero que venhas cá jantar ámanhã… Tens o marquez.
– Chic a valer… Não faltarei.
Mas faltou. E, como toda essa semana aquelle moço ponctual não
appareceu no Ramalhete, Carlos sinceramente inquieto, julgando-o moribundo,
foi uma manhã a casa d’elle, á Lapa. Mas ahi, o creado (um gallego
achavascado e triste, que, desde as suas relações com os Maias,
Damaso trazia entalado n’uma casaca e mortalmente aperreado em sapatos de
verniz) affirmou-lhe que o sr. Damasosinho estava de boa saude, e até
sahira a cavallo. Carlos veiu então ao tio Abrahão; o tio Abrahão
tambem não avistara, havia dias, aquelle bom senhor Salcede, that beautiful
gentleman! A curiosidade de Carlos levou-o ao Gremio: no Gremio nenhum creado
vira ultimamente o sr. Salcede. «Está por ahi de lua de mel com
alguma bella andaluza» pensou Carlos.
Chegara ao fim da rua do Alecrim quando viu o conde de Steinbroken que se
dirigia ao Aterro, a pé, seguido da sua vittoria a passo. Era a segunda
vez que o diplomata fazia exercicio depois do seu desgraçado ataque
de entranhas. Mas não tinha já vestigios da doença: vinha
todo rosado e loiro, muito solido na sua sobrecasaca, e com uma bella rosa
de chá na botoeira. Declarou mesmo a Carlos que estava «mais
forrte». E não lamentava os soffrimentos, porque elles lhe tinham
dado o meio de apreciar as sympathias que gosava em Lisboa. Estava enternecido.
Sobretudo o cuidado de S. M. – o augusto cuidado de S. M. – fizera-lhe melhor
que «todos os drogues de botique»! Realmente nunca as relações
entre esses dois paizes, tão estreitamente alliados, Portugal e Filandia,
tinham sido «màs firmes, pur assi dizerre màs intimes,
que durrante seu ataque de intestinaes»!
Depois, travando do braço a Carlos, alludiu commovido ao offerecimento
de Affonso da Maia, que pozera á sua disposição Sta.
Olavia, para elle se restabelecer n’esses ares fortes e limpos do Douro. Oh
esse convite tocara-o au plus profond de son coeur. Mas, infelizmente, Sta.
Olavia era longe, tão longe!… Tinha de se contentar com Cintra, d’onde
podia vir todas as semanas, uma, duas vezes, vigiar a Legação.
C’était ennuyeux, mais… A Europa estava n’um d’esses momentos de
crise, em que homens d’estado, diplomatas, não podiam affastar-se,
gosar as menores ferias. Precisavam estar alli, na brecha, observando, informando…
– C’est très grave, murmurou elle, parando, com um pavor vago no olhar
azulado… C’est excessivement grave!
Pediu a Carlos que olhasse em torno de si para a Europa. Por toda a parte
uma confusão, um gachis. Aqui a questão do Oriente; alem o socialismo;
por cima o Papa, a complicar tudo… Oh, très grave!
– Tenez, la France, par exemple… D’abord Gambetta. Oh, je ne dis pas non,
il est très fort, il est excessivement fort… Mais… Voilá!
C’est très grave…
Por outro lado os radicaes, les nouvelles couches… Era excessivamente grave…
– Tenez, je vais vous dire une chose, entre nous!
Mas Carlos não escutava, nem sorria já. Do fim do Aterro approximava-se,
caminhando depressa, uma senhora – que elle reconheceu logo, por esse andar
que lhe parecia de uma deusa pisando a terra, pela cadellinha côr de
prata que lhe trotava junto ás saias, e por aquelle corpo maravilhoso,
onde vibrava, sob linhas ricas de marmore antigo, uma graça quente,
ondeante e nervosa. Vinha toda vestida de escuro, n’uma toilette de serge
muito simples que era como o complemento natural da sua pessoa, collando-se
bem sobre ella, dando-lhe, na sua correcção, um ar casto e forte;
trazia na mão um guarda-sol inglez, apertado e fino como uma cana;
e toda ella, adiantando-se assim no luminoso da tarde, tinha, n’aquelle caes
triste de cidade antiquada, um destaque estrangeiro, como o requinte raro
de civilisações superiores. Nenhum véo, n’essa tarde,
lhe assombreava o rosto. Mas Carlos não poude detalhar-lhe as feições;
apenas d’entre o esplendor eburneo da carnação sentiu o negro
profundo de dois olhos que se fixaram nos seus. Insensivelmente deu um passo
para a seguir. Ao seu lado Steinbroken, sem vêr nada, estava achando
Bismarch assustador. Á maneira que ella se affastava, parecia-lhe maior,
mais bella: e aquella imagem falsa e litteraria de uma deusa marchando pela
terra prendia-se-lhe á imaginação. Steinbroken ficara
aterrado com o discurso do Chanceller no Reichstag… Sim, era bem uma deusa.
Sob o chapéo n’uma fórma de trança enrolada, apparecia
o tom do seu cabello castanho, quasi louro á luz; a cadellinha trotava
ao lado, com as orelhas direitas.
– Evidentemente, disse Carlos, Bismarck é inquietador…
Steinbroken porém já deixara Bismark. Steinbroken agora atacava
lord Beaconsfield.
– Il est très fort… Oui, je vous l’accorde, il est excessivement
fort… Mais voilà… Où va-t-il?
Carlos olhava para o caes de Sodré. Mas tudo lhe parecia deserto. Steinbroken
antes de adoecer, justamente, tinha dito ao ministro dos negocios estrangeiros
aquillo mesmo: lord Beaconsfield é muito forte, mas para onde vae elle?
O que queria elle?… E s. ex.ª tinha encolhido os hombros… S. ex.ª
não sabia…
– Eh, oui! Beaconsfield est très fort… Vous avez lu son speech chez
le Lord-Maire? Epatant, mon cher, epatant!… Mais voilà… Où
va-t-il?
– Steinbroken, não me parece que seja prudente deixar-se estar aqui
a arrefecer no Aterro…
– Devérras? exclamou o diplomata, passando logo a mão rapidamente
pelo estomago e pelo ventre.
E não se quiz demorar um instante mais! Como Carlos ía recolher
tambem, offereceu-lhe um logar na vittoria até ao Ramalhete.
– Venha então jantar comnosco, Steinbroken.
– Charmé, mon cher, charmé…
A vittoria partiu. E o diplomata agazalhando as pernas e o estomago n’um grande
plaid escossez:
– Pôs, Maia, fezemos um bello passêo… Mas este Atêrro
no é deverrtido.
Não era divertido o Aterro!… Carlos achara-o n’essa tarde o mais
delicioso logar da terra!
Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas dera alguns passos entre as arvores,
viu-a logo. Mas não vinha só; ao seu lado o marido, esticado,
apurado n’uma jaqueta de casimira quasi branca, com uma ferradura de diamantes
no setim negro da gravata, fumava, indolente e languido, e trazia a cadellinha
debaixo do braço. Ao passar, deu um olhar surprehendido a Carlos –
como descobrindo emfim entre os barbaros um ser de linha civilisada, e disse-lhe
algumas palavras baixo, a ella.
Carlos encontrara outra vez os seus olhos, profundos e serios: mas não
lhe parecera tão bella; trazia uma outra toilette menos simples, de
dois tons, côr de chumbo e côr de creme, e no chapéo, d’abas
grandes á ingleza, vermelhava alguma cousa, flôr ou penna. N’essa
tarde não era a deusa descendo das nuvens d’ouro que se enrolavam alem
sobre o mar; era uma bonita senhora estrangeira que recolhia ao seu hotel.
Voltou ainda tres vezes ao Aterro, não a tornou a vêr; e então
envergonhou-se, sentiu-se humilhado com este interesse romanesco que o trazia
assim n’uma inquietação de rafeiro perdido, farejando o Aterro,
da rampa de Santos ao caes de Sodré, á espera de uns olhos negros
e de uns cabellos louros de passagem em Lisboa, e que um paquete da Royal
Mail levaria uma d’essas manhãs…
E pensar que toda essa semana deixara o seu trabalho abandonado sobre a meza!
E que todas as tardes, antes de sahir, se demorava ao espelho, estudando a
gravata! Ah, miseravel, miseravel natureza.
Ao fim d’essa semana, Carlos estava no consultorio, já para sahir,
calçando as luvas, quando o creado entreabriu o reposteiro, e murmurou
com alvoroço:
– Uma senhora!
Appareceu um menino muito pallido, de caracoes louros, vestido de velludo
preto – e atraz uma mulher, toda de negro, com um véo justo e espesso
como uma mascara.
– Creio que vim tarde, disse ella, hesitando, junto da porta. O sr. Carlos
da Maia ia sahir…
Carlos reconheceu a Gouvarinho.
– Oh senhora condessa!
Desembaraçou logo o divan dos jornaes e das brochuras; ella olhou um
momento, como indecisa, aquelle amplo e molle assento de serralho; depois
sentou-se á borda e de leve, com o pequeno junto de si.
– Venho trazer-lhe um doente, disse ella sem erguer o véu, como fallando
do fundo d’aquella toilette negra que a dissimulava. Não o mandei chamar,
por que realmente pouco é, e tinha hoje de passar por aqui… Além
d’isso, o meu pequeno é muito nervoso; se vê entrar o medico,
parece-lhe que vae morrer. Assim é como uma visita que se faz… E
não tens medo, não é verdade, Charlie?
O pequeno não respondeu; de pé, quedo ao lado da mamã;
mimoso e debil sob os caracoes d’anjo que lhe cahiam até aos hombros,
devorava Carlos com uns grandes olhos tristes.
Carlos poz um interesse quasi terno na sua pergunta:
– Que tem elle?
Havia dias, apparecera-lhe uma empigem no pescoço. Além d’isso,
por traz da orelha, tinha como uma dureza de caroço. Aquillo inquietava-a.
Ella era forte, de uma boa raça, que dera athletas e velhos de grande
edade. Mas na familia do marido, em todos os Gouvarinhos, havia uma anemia
hereditaria. O conde mesmo, com aquella solida apparencia, era um achacado.
E ella, receiando que a influencia debilitante de Lisboa não conviesse
a Charlie, estava com o vago projecto de lhe fazer ir passar algum tempo ao
campo, em Formoselha, a casa da avó.
Carlos, approximando ligeiramente a cadeira, estendeu os braços a Charlie:
– Ora venha cá o meu lindo amigo, para vermos isso. Que magnifico cabello
elle tem, senhora condessa!…
Ella sorrio. E Charlie, seriosinho, bem ensinado, sem aquelle terror do medico
de que fallara a mamã veio logo, desapertou delicadamente o seu grande
collarinho, e, quasi entre os joelhos de Carlos, dobrou o pescoço macio
e alvo como um lyrio.
Carlos vio apenas uma pequena mancha côr de rosa desvanecendo-se; do
«caroço» não havia vestigio; e então uma
ligeira vermelhidão subiu-lhe ao rosto, procurou vivamente os olhos
da condessa, como comprehendendo tudo, querendo vêr n’elles a confissão
do sentimento que a trouxera alli com um pretexto pueril, sob aquella toilette
negra, aquelles véus que a mascaravam…
Mas ella permaneceu impenetravel, sentada á borda do divan, com as
mãos crusadas, attenta, como esperando as suas palavras, n’um vago
susto de mãe.
Carlos abotoou o collarinho do pequeno, e disse:
– Não é absolutamente nada, minha senhora.
No entanto, fez perguntas de medico sobre o regimen e a natureza de Charlie.
A condessa, n’um tom pesaroso, queixou-se de que a educação
da creança não fosse, como ella desejava, mais forte e mais
viril; mas o pae oppunha-se ao que elle chamava «a aberração
ingleza», a agua fria, os exercicios a todo o ar, a gymnastica…
– A agoa fria e a gymnastica, disse Carlos sorrindo, teem melhor reputação
do que merecem…
É o seu unico filho, senhora condessa?
– É, tem os mimos de morgado, disse ella passando a mão pelos
cabellos louros do pequeno.
Carlos assegurou-lhe que, apezar do seu aspecto nervoso e delicado, Charlie
não devia dar-lhe cuidado; nem havia necessidade de o exilar para os
ares de Formoselha… Depois ficaram um momento callados.
– Não imagina como me tranquillisou, disse ella, erguendo-se, dando
um geito ao veu. De mais a mais é um gosto vir consultal-o… Não
ha aqui o menor ar de doença, nem de remedios… E realmente tem isto
muito bonito… – accrescentou, dando um olhar lento em redor aos velludos
do gabinete.
– Tem justamente esse defeito, exclamou Carlos rindo. Não inspira nenhum
respeito pela minha sciencia… Eu estou com idêas d’alterar tudo, pôr
aqui um crocodilho empalhado, corujas, retortas, um esqueleto, pilhas d’in-folios…
– A cella de Fausto.
– Justamente, a cella de Fausto.
– Falta-lhe Mephistopheles, disse ella alegremente, com um olhar que brilhou
sob o véo.
– O que me falta é Margarida!
A senhora condessa, com um lindo movimento, encolheu os hombros, como duvidando
discretamente; depois tomou a mão de Charlie, e deu um passo lento
para a porta, puxando outra vez o véo.
– Como v. ex.ª se interessa pela minha installação, acudiu
Carlos querendo retel-a, deixe-me mostrar-lhe a outra sala.
Correu o reposteiro. Ella approximou-se, murmurou algumas palavras, approvando
a frescura dos cretones, a harmonia dos tons claros: depois o piano fel-a
sorrir.
– Os seus doentes dançam quadrilhas?
– Os meus doentes, senhora condessa, respondeu Carlos, não são
bastante numerosos para formar uma quadrilha. Raras vezes mesmo tenho dois
para uma valsa… O piano está simplesmente alli para dar idêas
alegres; é como uma promessa tacita de saude, de futuras soirées,
de bonitas arias do Trovador, em familia…
– É engenhoso, disse ella dando familiarmente alguns passos na sala,
com Charlie collado aos vestidos.
E Carlos, caminhando ao lado d’ella:
– V. ex.ª não imagina como eu sou engenhoso!
– Já n’outro dia me disse… Como foi que disse? Ah! que era muito
inventivo quando odiava.
– Muito mais quando amo, disse elle rindo.
Mas ella não respondeu: parára junto do piano, remexeu um momento
as musicas espalhadas, feriu duas notas no teclado.
– É um chocalho.
– Oh, senhora condessa!
Ella seguiu, foi examinar um quadro a oleo, copiado de Landseer – um focinho
de cão de S. Bernardo, macisso e bonacheirão, adormecido sobre
as patas. Quasi roçando-lhe o vestido, Carlos sentia o fino perfume
de verbena que ella usava sempre exageradamente: e, entre aquelles tons negros
que a cobriam, a sua pelle parecia mais clara, mais doce á vista, e
attrahindo como um setim.
– Este é um horror, murmurou ella, voltando-se; mas disse-me o Ega
que ha quadros lindos no Ramalhete… Fallou-me sobretudo d’um Greuze e d’um
Rubens… É pena que se não possam vêr essas maravilhas.
Carlos lamentava tambem que uma existencia de solteirões lhes impedisse,
a elle e ao avô, de receberem senhoras. O Ramalhete estava tomando uma
melancolia de mosteiro. Se assim continuassem mais alguns mezes, sem que se
sentisse alli um calor de vestido, um aroma de mulher, vinha a nascer a herva
pelos tapetes.
– É por isso, accrescentou elle muito serio, que eu vou obrigar o avô
a casar-se.
A condessa riu, os seus lindos dentes miudinhos alvejaram na sombra do véo.
– Gosto da sua alegria, disse ella.
– É uma questão de regimen. V. ex.ª não é
alegre?
Ella encolheu os hombros, sem saber… Depois, batendo com a ponta do guarda-sol
na sua botina de verniz que brilhava sobre o tapete claro, murmurou com os
olhos baixos, deixando ir as palavras, n’um tom d’intimidade e de confidencia:
– Dizem que não, que sou triste, que tenho spleen…
O olhar de Carlos seguira o d’ella, pousara-se na botina de verniz que calçava
delicadamente um pé fino e comprido: Charlie, entretido, mexia nas
teclas do piano – e elle baixou a voz para lhe dizer:
– É que a senhora condessa tem um mau regimen. É necessario
tratar-se, voltar aqui, consultar-me… Tenho talvez muito que lhe dizer!
Ella interrompeu-o vivamente, erguendo para elle os olhos, d’onde se escapou
um clarão de ternura e de triumpho:
– Venha-m’o antes dizer um d’estes dias, tomar chá comigo, ás
cinco horas… Charlie!
O pequeno veiu logo dependurar-se-lhe do braço.
Carlos, acompanhando-a abaixo á rua, lamentava a fealdade da sua escada
de pedra:
– Mas vou mandar tapetar tudo para quando a senhora condessa volte a dar-me
a honra de me vir consultar…
Ella gracejou, toda risonha:
Ah não! O sr. Carlos da Maia prometteu-nos a todos a saude… E naturalmente
não espera que seja eu que venha cá tomar chá comsigo…
– Oh, minha senhora, eu quando começo a esperar, não ponho limites
nenhuns ás minhas esperanças…
Ella parou, com o pequeno pela mão, olhou para elle, como pasmada,
encantada com aquella grandiosa certeza de si mesmo.
– Então vae por ahi além, por ahi além…?
– Vou por ahi além, por ahi além, minha senhora!
Estavam no ultimo degrau, diante da claridade e do rumor da rua.
– Mande-me chegar um coupé.
Um cocheiro, ao aceno de Carlos, lançou logo a tipoia.
– E agora, disse ella sorrindo, mande-o ir á egreja da Graça.
– A senhora condessa vai beijar o pé do Senhor dos Passos?
Ella corou de leve, murmurou:
– Ando fazendo as minhas devoções…
Depois saltou ligeiramente para o coupé – deixando Charlie, que Carlos
ergueu nos braços e lhe collocou ao lado, paternalmente.
– Que Deus a leve em sua santa guarda, senhora condessa!
Ella agradeceu com um olhar, um movimento de cabeça – ambos tão
doces como caricias.
Carlos subio: e, sem tirar o chapéo, ficou ainda enrolando uma cigarrette,
passeando n’aquella sala sempre deserta, sempre fria, onde ella deixara agora
alguma cousa do seu calor e do seu aroma…
Realmente gostava d’aquella audacia d’ella – ter vindo assim ao consultorio,
toda escondida, quasi mascarada n’uma grande toilette negra, inventando um
caroço no pescocinho são de Charlie, para o vêr, para
dar um nó brusco e mais apertado n’aquelle leve fio de relações
que elle tão negligentemente deixara cahir e quebrar…
O Ega d’esta vez não phantasiara: aquelle bonito corpo offerecia-se,
tão claramente como se se despisse. Ah! se ella fosse de sentimentos
errantes e faceis – que bella flôr a colher, a respirar, a deitar fóra
depois! Mas não: como dizia o Baptista, a senhora condessa nunca se
tinha divertido. E o que elle não queria era achar-se envolvido n’uma
paixão ciosa, uma d’essas ternuras tumultuosas de mulher de trinta
annos, de que depois se desembaraçaria difficilmente… Nos braços
d’ella o seu coração ficaria mudo: e apenas esgotada a primeira
curiosidade, começaria o tedio dos beijos que se não desejam,
a horrivel massada do prazer a frio. Depois, teria de ser intimo da casa,
receber pelo hombro as palmadas do senhor conde, ouvir-lhe a voz morosa distillando
doutrina… Tudo isto o assustava… E, todavia, gostara d’aquella audacia!
Havia ali uma pontinha de romantismo, muito irregular, e picante… E devia
ser deliciosamente bem feita… A sua imaginação despia-a, enrolava-se-lhe
no setim das fórmas onde sentia ao mesmo tempo alguma cousa de maduro
e de virginal… E outra vez, como nas primeiras noites que os vira em S.
Carlos, aquelles cabellos tentavam-n’o, assim avermelhados, tão crespos
e quentes…
Sahiu. E dera apenas alguns passos na rua Nova do Almada, quando avistou o
Damaso, n’um coupé lançado a grande trote, que o chamava, mandava
parar, com a face á portinhola, vermelho e radiante:
– Não tenho podido lá ir, exclamou elle, apoderando-se-lhe da
mão, apenas Carlos se approximou, e apertando-lh’a com enthusiasmo.
Tenho andado n’um turbilhão!… Eu te contarei! Um romance divino…
Mas eu te contarei!… Tem cuidado com a roda! Bate lá, ó Calção!
A parelha abalou; elle ainda se debruçou da portinhola, agitou a mão,
gritou no rumor da rua:
– Um romance divino, chic a valer!
Justamente, dias depois, no Ramalhete, na sala de bilhar, Craft que acabava
de «bater» o marquez, perguntou, pousando o taco e accendendo
o cachimbo:
– E noticias do nosso Damaso? Já se esclareceu esse lamentavel desapparecimento?…
Carlos então contou como o encontrára, afogueado e triumphante,
atirando-lhe da portinhola do coupé, em plena rua Nova do Almada, a
noticia de um romance divino!
– Bem sei, disse o Taveira.
– Como sabes?… exclamou Carlos.
Taveira vira-o na vespera, n’um grande landeau da Companhia, com uma esplendida
mulher, muito elegante e que parecia estrangeira…
– Ora essa! gritou Carlos. E com uma cadelinha escoceza?
– Exactamente, uma cadelinha escoceza, um griffon côr de prata… Quem
são?
– E um rapaz magro, de barba muito preta, com um ar inglezado?
– Justamente… Muito correcto, um ar sport… Que gente é?
– Uma gente brazileira, penso eu.
Eram os Castros Gomes, de certo! Isto parecia-lhe espantoso. Havia apenas
duas semanas que no terraço o Damaso, de punhos fechados, bramara contra
os Castro Gomes e as suas «desconsiderações»! Ia
pedir outros pormenores ao Taveira – mas o marquez ergueu a voz do fundo da
poltrona onde se estirára, e quiz saber a opinião de Carlos
sobre o grande acontecimento d’essa manhã na Gazeta Illustrada. – Na
Gazeta Illustrada?… Carlos não sabia, essa manhã não
vira jornal nenhum.
– Então não lhe digam nada, gritou o marquez. Venha a surpreza!
Cá ha a Gazeta? Manda buscar a Gazeta!
Taveira puxou o cordão da campanhia; – e quando o escudeiro trouxe
a Gazeta, elle apoderou-se d’ella, quiz fazer uma leitura solemne.
– Deixa-lhe vêr primeiro o retrato, berrou o marquez, erguendo-se.
– Primeiro o artigo! exclamava o Taveira, defendendo-se, com o jornal atraz
das costas.
Mas cedeu, e poz o papel deante dos olhos de Carlos, largamente, como um sudario
desdobrado. Carlos reconheceu logo o retrato do Cohen… E a prosa que se
alastrava em redor, encaixilhando a face escura de suissas retintas, era um
trabalho de seis columnas, em estylo emplumado e cantante, celebrando até
aos céus as virtudes domesticas do Cohen, o genio financeiro do Cohen,
os ditos d’espirito do Cohen, a mobilia das salas do Cohen; havia ainda um
paragrapho alludindo á festa proxima, ao grande sarau de mascaras do
Cohen. E tudo isto vinha assignado – J. da E. – as iniciaes de João
da Ega!
– Que tolice! exclamou Carlos, com tedio, atirando o jornal para cima do bilhar.
– É mais que tolice, observou Craft; é uma falta de senso moral.
O marquez protestou. Gostava do artigo. Achava-o brilhante, e de velhaco!…
E de resto em Lisboa quem dava por uma falta de senso moral?…
– Você, Craft, não conhece Lisboa! Todo o mundo acha isto muito
natural. É intimo da casa, celebra os donos. É admirador da
mulher, lisongea o marido. Está na logica cá da terra… Você
verá que successo isto vae ter… E lá que o artigo está
lindo, isso está!
Tomou-o de cima do bilhar, leu alto o trecho sobre o boudoir côr de
rosa de madame Cohen: «respira-se alli (dizia o Ega) alguma cousa de
perfumado, intimo e casto, como se todo aquelle côr de rosa exhalasse
de si o aroma que a rosa tem»!
– Isto, caramba, é lindo em toda a parte! exclamou o marquez. Tem muito
talento, aquelle diabo! Tomara eu ter o talento que elle tem!…
– Nada d’isso impede, repetiu Craft, cachimbando tranquillamente, que seja
uma extraordinaria falta de senso moral.
– Pura e simplesmente insensato! disse Cruges, desenroscando-se do canto d’um
sophá, para deixar cahir ás syllabas esta pesada opinião.
O marquez investiu com elle.
– Que entende você d’isso, seu maestro? O artigo é sublime! E
saiba mais: é de finorio!
O maestro, com preguiça de argumentar, foi-se enroscar em silencio
ao outro canto do sophá.
E então o marquez, de pé e bracejando, appellou para Carlos,
e quiz saber o que é que Craft em principio entendia por senso moral.
Carlos, que dava pela sala passos impacientes, não respondeu, tomou
o braço do Taveira, levou-o para o corredor.
– Dize-me uma cousa: onde viste tu o Damaso, com essa gente? Para que lado
iam?
– Iam pelo Chiado abaixo; ante-hontem, ás duas horas… Estou convencido
que iam para Cintra. Levavam uma maleta no landau, e atraz ia uma criada n’um
coupé com uma mala maior… Aquillo cheirava a ida a Cintra. E a mulher
é divina! Que toilette, que ar, que chic!.. É uma Venus, menino!…
Como conheceria elle aquillo?…
– Em Bordeus, n’um paquete, não sei onde!
– Eu do que gostei foi dos ares que elle se ia dando por aquelle Chiado! Cumprimento
para a direita, cumprimento para a esquerda… A debruçar-se, a fallar
muito baixo para a mulher, com olho terno, alardeando conquista…
– Que besta! exclamou Carlos, batendo com o pé no tapete.
– Chama-lhe besta, disse o Taveira. Vem a Lisboa, por acaso, uma mulher civilisada
e decente, e é elle que a conhece, e é elle que vae com ella
para Cintra! Chama-lhe besta!… Anda d’ahi, vamos á partidinha de
dominó.
Taveira ultimamente introduzira o dominó no Ramalhete – e havia agora
alli, ás vezes, partidas ardentes, sobretudo quando apparecia o marquez.
Porque a paixão do Taveira era bater o marquez.
Mas foi necessario que o marquez acabasse de bracejar, de desenrolar o arrazoado
com que estava acabrunhando o Craft – que do fundo da poltrona, de cachimbo
na mão e com um ar de somno, respondia por monossyllabos. Era ainda
a proposito do artigo do Ega, da definição de senso moral. Já
tinha fallado de Deus, de Garibaldi, até do seu famoso perdigueiro
Finorio; e agora definia a Consciencia…. Segundo elle, era o medo da policia.
Tinha o amigo Craft visto já alguem com remorsos? Não, a não
ser no theatro da Rua dos Condes, em dramalhões…
– Acredite você uma cousa, Craft – terminou elle por dizer, cedendo
ao Taveira que o puchava para a meza – isto de consciencia é uma questão
de educação. Adquire-se como as boas maneiras; soffrer em silencio
por ter trahido um amigo, aprende-se exactamente como se aprende a não
metter os dedos no nariz. Questão d’educação… No resto
da gente é apenas medo da cadeia, ou da bengala… Ah! vocês
querem levar outra sova ao dominó como a de sabbado passado? Perfeitamente,
sou todo vosso…
Carlos, que estivera passando de novo os olhos pelo artigo do Ega, approximou-se
tambem da meza. E estavam sentados, remexiam as pedras – quando á porta
da sala appareceu o conde de Steinbroken, de casaca e crachá, gran-cruz
sobre o colete branco, loiro como uma espiga, esticado e resplandecente. Tinha
jantado no Paço, e vinha acabar no Ramalhete a sua soirée, em
familia…
Então o marquez que o não via desde o famoso ataque de intestinos,
abandonou o dominó, correu a abraçal-o ruidosamente – e sem
o deixar sequer sentar, nem estender a mão aos outros, implorou-lhe
logo uma das suas bellas canções filandezas, uma só,
d’aquellas que lhe faziam tão bem á alma!…
– Só a Ballada, Steinbroken… Eu tambem não me posso demorar,
que tenho aqui a partida á espera. Só a Ballada!… Vá,
salta lá para dentro para o piano, Cruges…
O diplomata sorria, dizia-se cançado, tendo já feito musica
deliciosa no Paço com Sua Magestade. Mas nunca sabia resistir áquelle
modo folgazão do marquez – e lá foram para a sala do piano,
de braço dado, seguidos pelo Cruges, que levara uma eternidade a desenroscar-se
do canto do sophá. E d’ahi a um momento, atravez dos resposteiros meio
corridos, a bella voz de barytono do diplomata espalhava pelas salas, entre
os suspiros do piano, a emballadora melancolia da Ballada, com a sua lettra
traduzida em francez, que o marquez adorava, e em que se fallava das nevoas
tristes do Norte, de lagos frios e de fadas loiras…
Taveira e Carlos, no entanto, tinham começado uma grande partida de
dominó, a tostão o ponto. Mas Carlos n’essa noite não
se interessava, jogando distrahido, a cantarolar tambem baixo bocados tristes
da Ballada: depois, quando já Taveira tinha só uma pedra diante
de si, e elle estava comprando interminavelmente as que restavam, voltou-se
para o lado, para o Craft, a perguntar se o hotel da Lawrence, em Cintra,
estava aberto todo o anno…
– A ida do Damaso para Cintra deu-te no goto, rosnou Taveira impaciente. Anda,
joga!
Carlos, sem responder, pousou mollemente uma pedra.
– Dominó! gritou Taveira.
E em triumpho, aos pulos, contou elle mesmo os sessenta e oito pontos que
Carlos perdia.
Justamente o marquez entrava, e a victoria de Taveira indignou-o.
– Agora nós, exclamou elle, puxando vivamente uma cadeira. Oh Carlos,
deixe-me você dar aqui uma sova n’este ladrão. Depois jogamos
de tres… Como queres tu isto, Taveirete? A dous tostões o ponto?
Ah, queres só a tostão… Muito bem, eu te ensinarei. Anda,
desembaraça-te já d’esse dôble-seis, miseravel…
Carlos ficou ainda um momento olhando o jogo, com uma cigarette apagada nos
dedos, o mesmo ar distrahido: de repente, pareceu tomar uma decisão,
atravessou o corredor, entrou na sala de musica. Steinbroken fôra ao
escriptorio vêr Affonso da Maia, e a partida de whist; e Cruges só,
entre as duas vélas do piano, com os olhos errantes pelo tecto, improvisava
para si, melancolicamente.
– Dize cá, Cruges, perguntou-lhe Carlos, queres vir ámanhã
a Cintra?
O teclado callou-se, o maestro ergueu um olhar espantado. Carlos nem o deixou
falar.
– Está claro que queres, não te faz senão bem vir a Cintra…
Ámanhã lá estou á porta, com o break.
Mette sempre uma camisa n’uma maleta, que talvez passemos lá a noite…
Ás oito em ponto, hein?… E não digas nada lá dentro.
Carlos voltou para a sala, ficou a olhar a partida de dominó. Agora
havia um largo silencio. O marquez e Taveira moviam lentamente as pedras,
sem uma palavra, com um ar de rancor surdo. Em cima do pano verde do bilhar
as bolas brancas dormiam juntas, sob a luz que cahia dos abat-jours de porcelana.
Um som de piano, dolente e vago, passava por vezes. E Craft, com o braço
descahido ao longo da poltrona, dormitava, beatificamente.
Capítulo VIII
Na manhã seguinte, ás oito horas pontualmente, Carlos parava
o break na rua das Flores, diante do conhecido portão da casa do Cruges.
Mas o trintanario, que elle mandara acima bater á campainha do terceiro
andar, desceu com a estranha nova de que o Sr. Cruges já não
morava ali. Onde diabo morava então o sr. Cruges? A criada dissera
que o Sr. Cruges vivia agora na rua de S. Francisco, quatro portas adiante
do Gremio. Durante um momento, Carlos, desesperado, pensou em partir só
para Cintra. Depois lá largou para a rua de S. Francisco, amaldiçoando
o maestro, que mudara de casa sem avisar, sempre vago, sempre tenebroso!…
E era em tudo assim. Carlos nada sabia do seu passado, do seu interior, das
suas affeições, dos seus habitos. O marquez uma noite levara-o
ao Ramalhete, dizendo ao ouvido de Carlos que estava alli um genio. Elle encantara
logo todo o mundo pela modestia das suas maneiras e a sua arte maravilhosa
ao piano: e todo o mundo no Ramalhete começou a tratar Cruges por maestro,
a fallar tambem do Cruges como de um genio, a declarar que Choppin nunca fizera
obra egual á Meditação de Outono do Cruges. E ninguem
sabia mais nada. Fôra pelo Damaso que Carlos conhecera a casa do Cruges
e soubera que elle vivia lá com a mãe, uma senhora viuva, ainda
fresca, e dona de predios na Baixa.
Ao portão da rua de S. Francisco, Carlos teve de esperar um quarto
de hora. Primeiro appareceu furtivamente ao fundo da escada uma criada em
cabello, que espreitou o break, os criados de farda, e fugiu pelos degraus
acima. Depois veiu um creado em mangas de camisa trazer a maleta do senhor
e um chaile-manta. Emfim, o maestro desceu, a correr, quasi aos trambulhões,
com um cache-nez de seda na mão, o guarda-chuva debaixo do braço,
abotoando atarantadamente o paletot.
Quando vinha pulando os ultimos degraus, uma voz esganiçada de mulher
gritou-lhe de cima:
– Olha não te esqueçam as queijadas!
E Cruges subiu precipitadamente para a almofada, para o lado de Carlos, rosnando
que, com a preoccupação de se levantar tão cedo, tivera
uma insomnia abominavel…
– Mas que diabo de idéa é essa de mudar de casa, sem avisar
a gente, homem? – exclamou Carlos, atirando-lhe para cima dos joelhos um bocado
do plaid que o agasalhava, porque o maestro parecia arrepiado.
– É que esta casa tambem é nossa, disse simplesmente Cruges.
– Está claro, ahi está uma razão! murmurou Carlos rindo
e encolhendo os hombros.
Partiram.
Era uma manhã muito fresca, toda azul e branca, sem uma nuvem, com
um lindo sol que não aquecia, e punha nas ruas, nas fachadas das casas,
barras alegres de claridade dourada. Lisboa acordava lentamente: as saloias
ainda andavam pelas portas com os seus ceirões d’hortaliças:
varria-se de vagar a testada das lojas: no ar macio morria a distancia um
toque fino de missa.
Cruges, tendo acabado de arranjar o cache-nez e de abotoar as luvas, estendeu
um olhar á esplendida parelha baia reluzindo como um setim sob o faiscar
de prata dos arreios, aos criados com os seus ramos nas librés, a todo
aquelle luxo correcto e rolando em cadencia – onde fazia mancha o seu paletot:
mas o que o impressionou foi o aspecto resplandecente de Carlos, o olhar acceso,
as bellas côres, o bello riso, o quer que fosse de vibrante e de luminoso,
que, sob o seu simples veston de xadrezinho castanho, n’aquella almofada burgueza
de break, lhe dava um arranque
de heroe jovial, lançando o seu carro de guerra… Cruges farejou uma
aventura, soltou logo a pergunta que desde a vespera lhe ficara nos labios.
– Com franqueza, aqui para nós, que idéa foi esta de ir a Cintra?
Carlos gracejou. O maestro jurava o segredo pela alma melodiosa de Mozart,
e pelas fugas de Bach? Pois bem, a idéa era vir a Cintra, respirar
o ar de Cintra, passar o dia em Cintra… Mas, pelo amor de Deus, que o não
revelasse a ninguem!
E accrescentou, rindo:
– Deixa-te levar, que não te has de arrepender…
Não, Cruges não se arrependia. Até achava delicioso o
passeio, gostara sempre muito de Cintra… Todavia não se lembrava
bem, tinha apenas uma vaga idéa de grandes rochas e de nascentes d’aguas
vivas… E terminou por confessar que desde os nove annos não voltara
a Cintra.
O que! o maestro não conhecia Cintra?… Então era necessario
ficarem lá, fazer as peregrinações classicas, subir á
Pena, ir beber agua á Fonte dos Amores, barquejar na varzea…
– A mim o que me está a appetecer muito é Sitiaes; e a manteiga
fresca.
– Sim, muita manteiga, disse Carlos. E burros, muitos burros… Emfim, uma
ecloga!
O break rodava na estrada de Bemfica: iam passando muros enramados de quintas,
casarões tristonhos de vidraças quebradas, vendas com o seu
masso de cigarros á porta dependurado de uma guita: e a menor arvore,
qualquer bocado de relva com papoulas, um fugitivo longe de collina verde,
encantavam Cruges. Ha que tempos elle não via o campo!
Pouco a pouco o sol elevara-se. O maestro desembaraçou-se do seu grande
cache-nez. Depois, encalmado, despiu o paletot – e declarou-se morto de fome.
Felizmente estavam chegando á Porcalhota.
O seu vivo desejo seria comer o famoso coelho guisado, – mas, como era cedo
para esse acepipe, decidiu-se, depois de pensar muito, por uma bella pratada
de ovos com chouriço. Era uma cousa que não provava havia annos,
e que lhe daria a sensação de estar na aldêa… Quando
o patrão, com um ar importante e como fazendo um favor, pousou sobre
a meza sem toalha a enorme travessa com o petisco, Cruges esfregou as mãos,
achando aquillo deliciosamente campestre.
– A gente em Lisboa estraga a saude! disse elle, puxando para o prato uma
montanha de ovo e chouriço. Tu não tomas nada?…
Carlos, para lhe fazer companhia, acceitou uma chavena de café.
D’ahi a pouco Cruges, que devorava, exclamou com a bocca cheia:
– O Rheno tambem deve ser magnifico!
Carlos olhou-o espantado e rindo. A que vinha agora alli o Rheno?… É
que o maestro, desde que sahira as portas, estava cheio de idéas de
viagens e de paisagens; queria vêr as grandes montanhas onde ha neve,
os rios de que se falla na Historia. O seu ideal seria ir á Allemanha,
percorrer a pé, com uma mochilla, aquella patria sagrada dos seus deuses,
de Beethoven, de Mozart, de Wagner…
– Não te appetecia mais ir á Italia? perguntou Carlos accendendo
o charuto.
O maestro esboçou um gesto de desdem, teve uma das suas phrases sybillinas:
– Tudo contradanças!…
Carlos então fallou de um certo plano de ir á Italia, com o
Ega, no inverno. Ir á Italia, para o Ega, era uma hygiene intellectual:
precisava calmar aquella imaginação tumultuosa de nervoso peninsular
entre a placida magestade dos marmores…
– O que elle precisava antes de tudo era chicote, rosnou o Cruges.
E voltou a fallar do caso da vespera, do famoso artigo da Gazeta. Achava aquillo,
como elle dissera, pura e simplesmente insensato, e de uma sabujice indecorosa.
E o que o affligia é que o Ega, com aquelle talento, aquella verve
fumegante, não fizesse nada…
– Ninguem faz nada, disse Carlos espreguiçando-se. Tu, por exemplo,
que fazes?
Cruges, depois de um siléncio, rosnou encolhendo os hombros:
– Se eu fizesse uma boa opera, quem é que m’a representava?
– E se o Ega fizesse um bello livro, quem é que lh’o lia?
O maestro terminou por dizer:
– Isto é um paiz impossivel… Parece-me que tambem vou tomar café.
Os cavallos tinham descançado, Cruges pagou a conta, partiram. D’ahi
a pouco entravam na charneca que lhes pareceu infindavel. D’ambos os lados,
a perder de vista, era um chão escuro e triste; e por cima um azul
sem fim, que n’aquella solidão parecia triste tambem. O trote compassado
dos cavallos batia monotonamente a estrada. Não havia um rumor: por
vezes um passaro cortava o ar, n’um vôo brusco, fugindo do ermo agreste.
Dentro do break um dos criados dormia; Cruges, pesado dos ovos com chouriço,
olhava, vaga e melancolicamente, as ancas lustrosas dos cavallos.
Carlos, no entanto, pensava no motivo que o trazia a Cintra. E realmente não
sabia bem porque vinha: mas havia duas semanas que elle não avistava
certa figura que tinha um passo de deusa pisando a terra, e que não
encontrava o negro profundo de dois olhos que se tinham fixado nos seus: agora
suppunha que ella estava em Cintra, corria a Cintra. Não esperava nada,
não desejava nada. Não sabia se a veria, talvez ella tivesse
já partido. Mas vinha: e era já delicioso o pensar n’ella assim
por aquella estrada fóra, penetrar, com essa doçura no coração,
sob as
bellas arvores de Cintra… Depois, era possivel que d’ahi a pouco, na velha
Lawrence, elle a cruzasse de repente no corredor, roçasse talvez o
seu vestido, ouvisse talvez a sua voz. Se ella lá estivesse, decerto
viria jantar á sala, aquella sala que elle conhecia tão bem,
que já lhe estava appetecendo tanto, com as suas pobres cortininhas
de cassa, os ramos toscos sobre a meza, e os dois grandes candieiros de latão
antigo… Ella entraria alli, com o seu bello ar claro de Diana loira; o bom
Damaso, apresentaria o seu amigo Maia; aquelles olhos negros que elle vira
passar de longe como duas estrellas, pousariam mais de vagar nos seus; e,
muito simplesmente, á ingleza, ella estender-lhe-hia a mão…
– Ora até que finalmente! exclamou Cruges, com um suspiro de allivio
e respirando melhor.
Chegavam ás primeiras casas de Cintra, havia já verduras na
estrada, e batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte e fresco da serra.
E a passo, o break foi penetrando sob as arvores do Ramalhão. Com a
paz das grandes sombras, envolvia-os pouco a pouco uma lenta e emballadora
sussurração de ramagens, e como o diffuso e vago murmurio de
agoas correntes. Os muros estavam cobertos de heras e de musgos: atravez da
folhagem, faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e avelludado circulava,
rescendendo ás verduras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios,
passaros chilreavam de leve; e n’aquelle simples bocado de estrada, todo salpicado
de manchas do sol, sentia-se já, sem se vêr, a religiosa solemnidade
dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza
que cae das penedias e o repouso fidalgo das quintas de verão… Cruges
respirava largamente, voluptuosamente.
– A Lawrence onde é? Na serra? – perguntou elle com a idéa repentina
de ficar alli um mez n’aquelle paraiso.
– Nós não vamos para a Lawrence, disse Carlos sahindo bruscamente
do seu silencio, e espertando os cavallos. Vamos para o Nunes, estamos lá
muito melhor!
Era uma idéa que lhe viera de repente, apenas passara as primeiras
casas de S. Pedro, e o break começara a rolar n’aquellas estradas onde
a cada momento elle a poderia encontrar. Tomara-o uma timidez, a que se misturava
um laivo de orgulho, o receio melindrado de ser indiscreto, seguindo-a assim
a Cintra, ainda que ella o não reconhecesse, indo installar-se sob
as mesmas telhas, apoderando-se de um logar á mesma meza… E ao mesmo
tempo repugnou-lhe a idéa de lhe ser apresentado pelo Damaso: via-o
já, bochechudo e vestido de campo, a esboçar um gesto de ceremonia,
a mostrar o seu amigo Maia, a tratal-o por tu, affectando intimidades com
ella, cocando-a com um olho terno… Isto seria intoleravel.
– Vamos para o Nunes, que se come melhor!
Cruges não respondeu, mudo, enlevado, recebendo como uma impressão
religiosa de todo aquelle esplendor sombrio de arvoredo, dos altos fragosos
da serra entrevistos um instante lá em cima nas nuvens, d’esse aroma
que elle sorvia deliciosamente, e do sussurro doce de aguas descendo para
os valles…
Só ao avistar o Paço descerrou os labios:
– Sim senhor, tem cachet!
E foi o que mais lhe agradou – este macisso e silencioso palacio, sem florões
e sem torres, patriarchalmente assentado entre o casario da villa, com as
suas bellas janellas manuelinas que lhe fazem um nobre semblante real, o valle
aos pés, frondoso e fresco, e no alto as duas chaminés collossaes,
disformes, resumindo tudo, como se essa residencia fosse toda ella uma cosinha
talhada ás proporções de uma gula de Rei que cada dia
come todo um Reino…
E apenas o break parou á porta do Nunes, foi-lhe ainda dar um olhar,
timido e de longe – receiando alguma palavra rude da sentinella.
Carlos no entanto, saltando logo da almofada, tomou á parte o criado
do hotel, que descera a recolher as maletas.
– Vossê conhece o sr. Damaso Salcede? Sabe se elle está em Cintra?
O creado conhecia muito bem o sr. Damaso Salcede. Ainda na vespera pela manhã
o vira entrar defronte, no bilhar, com um sujeito de barbas pretas… Devia
estar na Lawrence, porque só com raparigas e em pandiga é que
o sr. Damaso vinha para o Nunes.
– Então, depressa, dous quartos! exclamou Carlos, com uma alegria de
creança, certo agora que ella estava em Cintra. E uma sala particular,
só para nós, para almoçarmos!
Cruges, que se approximava, protestou contra esta sala solitaria. Preferia
a meza redonda. Ordinariamente na meza redonda encontram-se typos…
– Bem, exclamou Carlos, rindo e esfregando as mãos, põe o almoço
na sala de jantar, põe-n’o até na Praça… E muita manteiga
fresca para o sr. Cruges!
O cocheiro levou o break, o creado sobraçou as maletas. Cruges, enthusiasmado
com Cintra, rompeu pela escada acima, a assobiar – conservando aos hombros
o chaile-manta, de que se não queria separar, porque lh’o emprestara
a mamã. E apenas chegou á porta da sala de jantar, estacou,
ergueu os braços, teve um grito.
– Oh Euzebiosinho!
Carlos correu, olhou… Era elle, o viuvo, acabando de almoçar, com
duas raparigas hespanholas.
Estava no topo da meza, como presidindo, diante de uns restos de pudim e de
pratos de fructa, amarellado, despenteado, carregado de luto, com a larga
fita das lunetas pretas passada por traz da orelha, e uma rodela de taffetá
negro sobre o pescoço tapando alguma espinha rebentada.
Uma das hespanholas era um mulherão trigueiro, com sygnaes de bexigas
na cara; a outra muito franzina, de olhos meigos, tinha uma roseta de febre,
que o pó de arroz não desfarçava. Ambas vestiam de setim
preto, e fumavam cigarro. E na luz e na frescura que entrava pela janella,
pareciam mais gastas, mais molles, ainda pegajosas da lentura morna dos colxões,
e cheirando a bafio de alcova. Pertencendo á sucia havia um outro sujeito,
gordo, baixo, sem pescoço, com as costas para a porta e a cabeça
sobre o prato, babujando uma metade de laranja.
Durante um momento, Euzebiosinho ficou interdito, com o garfo no ar; depois
lá se ergueu, de guardanapo na mão, veiu apertar os dedos aos
amigos, balbuciando logo uma justificação embrulhada, a ordem
do medico para mudar de ares, aquelle rapaz que o acompanhara, e que quizera
trazer raparigas… E nunca parecera tão funebre, tão relles,
como resmungando estas cousas hypocritas, encolhido á sombra de Carlos.
– Fizeste muito bem, Eusebiosinho, disse Carlos por fim, batendo-lhe no hombro.
Lisboa está um horror, e o amor é cousa doce.
O outro continuava a justificar-se. Então a hespanhola magrita, que
fumava, afastada da meza e com a perna traçada, elevou a voz, perguntou
ao Cruges se elle não lhe fallava. O maestro affirmou-se um momento,
e partiu de braços abertos para a sua amiga Lolla. E foi, n’esse canto
da meza, uma grulhada em hespanhol, grandes apertos de mão, e hombre,
que no se le ha visto! e mira, que me he accordado de ti! e caramba, que reguapa
estas… Depois a Lolla, tomando um arsinho espremido, apresentou o outro
mulherão, la señorita Concha…
Vendo isto, impressionado com tanta familiaridade – o sujeito obeso, que apenas
levantara um instante a cabeça do prato, decidiu-se a examinar mais
attentamente os amigos do Euzebio: crusou o talher, limpou com o guardanapo
a bocca, a testa e o pescoço, encavallou laboriosamente no nariz uma
grande luneta de vidros grossos, e erguendo a face larga, balofa e côr
de cidra, examinou detidamente Cruges, e depois Carlos, com uma impudencia
tranquilla.
Eusebiosinho apresentou o seu amigo Palma: e o seu amigo Palma, ouvindo o
nome conhecido de Carlos da Maia, quiz logo mostrar diante de um gentleman,
que era um gentleman tambem. Arrojou para longe o guardanapo, arredou para
fóra a cadeira; e de pé, estendendo a Carlos os dedos molles
e de unhas roidas, exclamou, com um gesto para os restos da sobremeza:
– Se v. ex.ª é servido, é sem ceremonia… Que isto quando
a gente vem a Cintra, é para abrir o appetite e fazer bem á
barriga…
Carlos agradeceu, e ia retirar-se. Mas Cruges, que se animava e gracejava
com a Lolla, fez tambem do outro lado da meza a sua apresentação:
– Carlos, quero que conheças aqui a lindissima Lolla, relações
antigas, e a señorita Concha, que eu tive agora o prazer…
Carlos saudou respeitosamente as damas.
O mulherão da Concha rosnou seccamente os buenos dias: parecia de mau
humor, pesada do almoço, amodorrada para alli, sem dizer uma palavra,
com os cotovellos fincados na meza, os olhos pestanudos meio cerrados, ora
fumando, ora palitando os dentes. Mas a Lolla foi amavel, fez de senhora,
ergueu-se, offereceu a Carlos a mãosita suada. Depois retomando o cigarro,
dando um geito ás pulseiras de ouro, declarou com um requebro d’olhos,
que conhecia de ha muito Carlos…
– No ha estado ustêd con Encarnacion?
Sim, Carlos tivera essa honra… E que era feito d’ella, d’essa bella Encarnacion?
A Lolla sorriu com finura, tocou no cotovello do maestro. Não acreditava
que Carlos ignorasse o que era feito da Encarnacion… Emfim, terminou por
dizer que a Encarnacion estava agora com o Saldanha.
– Mas olhe que não é com o duque de Saldanha! exclamou Palma,
que se conservara de pé, com a bolsa do tabaco aberta sobre a meza,
fazendo um
grande cigarro.
A Lolita, com um modo secco, replicou que o Saldanha não seria duque,
mas era um chico muy decente…
– Olha, disse o Palma lentamente, de cigarro na bocca e tirando a isca da
algibeira, duas boas bofetadas na cara lhe dei eu ainda não ha tres
semanas… Pergunta ao Gaspar, o Gaspar assistiu… Foi até no Montanha…
Duas bofetadas que lhe foi logo o chapéo parar ao meio da rua… O
sr. Maia ha de conhecer o Saldanha… Ha de conhecer, que elle tambem tem
um carrito e um cavallo.
Carlos fez um gesto indicando que não; e despedia-se de novo, saudando
as damas, quando Cruges o chamou ainda, retendo-o mais um instante, em quanto
satisfazia uma curiosidade: queria saber qual d’aquellas meninas era a esposa
do amigo Eusebio.
Assim interpellado, o viuvo encordoou, rosnou com uma voz morosa, sem erguer
as lunetas da laranja que descascava, que estava alli de passeio, não
tinha esposa, e ambas aquellas meninas pertenciam ao amigo Palma…
E ainda elle mascava as ultimas palavras, quando Concha, que digeria de perna
estendida, se endireitou bruscamente como se fosse saltar, atirou um murro
á borda da meza, e com os olhos chammejantes, desafiou o Eusebio a
que repetisse aquillo! Queria que elle repetisse! Queria que dissesse se tinha
vergonha d’ella, e de dizer que a tinha trazido a Cintra!… E como o Eusebio,
já enfiado, tentava gracejar, fazer-lhe uma festa – ella despropositou,
atirou-lhe os peiores nomes, dando sempre punhadas na meza, com uma furia
que lhe torcia a bocca, lhe punha duas
manchas de sangue no carão trigueiro. A Lolita, vexada, puchava-lhe
pelo braço: a outra deu-lhe um repellão; e, mais excitada com
a estridencia da propria voz, esvasiou-se de toda a bilis, chamou-lhe porco,
accusou-o de forreta, usou-o como um trapo vil.
Palma afflicto, debruçado sobre a meza, exclamava n’um tom ancioso:
– Ó Concha, escuta lá!… Ouve lá!… Concha, eu te explico…
De repente, ella ergueu-se, a cadeira tombou para o lado: e o mulherão
abalou pela sala fóra, a grande cauda de setim varreu desabridamente
o soalho, ouviu-se dentro estalar uma porta. No chão ficara cahido
um pedaço da mantilha de renda.
O creado que entrava do outro lado com a cafeteira estacou, afiando o olho
curioso, farejando o escandalo; depois, calado e seccamente, foi servindo
em roda o café.
Durante um momento houve um silencio. Apenas porém o criado sahiu –
a Lolita e o Palma, agitados mas abafando a voz, atacaram o Eusebiosinho.
Elle portara-se muito mal! Aquillo não fôra de cavalheiro! Tinha
trazido a rapariga a Cintra, devia-a respeitar, não a ter renegado
assim, á bruta, diante de todos…
– Esto no se hace, dizia a Lolita, de pé, gesticulando, com os olhos
brilhantes, voltada para Carlos, ha sido una cosa muy fêa!…
E como o Cruges lamentava, sorrindo, ter sido a causa involuntaria da catastrophe
– ella baixou a voz, contou que a Concha era uma furia, viera a Cintra com
pouca vontade, e desde manhã estava de muy malo humor… Pero lo de
Silbeira habia sido una gran pulhice…
Elle, coitado, com a cabeça cahida e as orelhas em braza, remexia desoladamente
o seu café; não se lhe viam os olhos escondidos pelas lunetas
pretas, mas percebia-se-lhe o grosso soluço que lhe affogava a garganta.
Então Palma pouzou a chavena, lambeu os beiços, e de pé
no meio da sala, com a face luzidia, o collete desabotoado, fez n’um tom entendido
o resumo d’aquelle desgosto.
– Tudo provém d’isto, e desculpe-me você dizel-o, Silveira: é
que você não sabe tratar com hespanholas!
A esta cruel palavra o viuvo succumbiu. A colher cahiu-lhe dos dedos. Ergueu-se,
acercou-se de Carlos e de Cruges, como refugiando-se n’elles, vindo reconfortar-se
ao calor da sua amizade, – e desabafou, estas palavras angustiosas escaparam-se-lhe
dos labios:
– Vejam vocês! vem a gente a um sitio d’estes para gosar um bocado de
poesia, e no fim é uma d’estas!…
Carlos bateu-lhe melancolicamente no hombro:
– A vida é assim, Eusebiosinho.
Cruges fez-lhe uma festa nas costas:
– Não se póde contar com prazeres, Silveirinha.
Mas Palma, mais pratico, declarou que era forçoso arranjarem-se as
cousas. Virem a Cintra, para questões e amuos, isso não! N’aquellas
pandegas queria-se harmonia, chalaça, e gosar. Couces, não.
Então ficava-se em Lisboa, que era mais barato.
Chegou-se a Lolla, passou-lhe os dedos pela face, com amor:
– Anda Lolita, vae tu lá dentro á Concha, dize-lhe que se não
faça tola, que venha tomar café… Anda, que tu sabe-l’a levar…
Dize-lhe que peço eu!
Lolita esteve um momento escolhendo duas boas laranjas, foi dar um geito ao
cabello diante do espelho, apanhou a cauda – e sahiu, atirando a Carlos, ao
passar, um olhar e um sorrisinho.
Apenas ficaram sós, Palma voltou-se para o Eusebio, e deu-lhe conselhos
muito serios sobre o systema de tratar hespanholas. Era necessario leval-as
por bons modos; por isso é que ellas se pellavam por portuguezes, porque
lá em Hespanha era á bordoada… Emfim, elle não dizia
que em certos casos, duas boas bolachas, mesmo um bom par de bengaladas, não
fossem uteis… Sabiam, por exemplo, os amigos, quando se devia bater? Quando
ellas não gostavam da gente, e se faziam ariscas. Então, sim.
Então zás, tapona, que ellas ficavam logo pelo beiço…
Mas depois bons modos, delicadeza, tal qual como com francezas…
– Acredite você isto, Silveira. Olhe que eu tenho experiencia. E o sr.
Maia que lhe diga se isto não é verdade, elle que tem tambem
experiencia e sabe viver com hespanholas!
E isto foi dito com tanto calor, tanto respeito – que Cruges desatou a rir,
fez rir Carlos tambem.
O sr. Palma, um pouco chocado, compoz mais as lunetas, e olhou para elles:
– Os senhores riem-se? Imaginam que eu que estou a mangar? Olhem que eu comecei
a lidar com hespanholas aos quinze annos! Não, escusam de rir, que
n’isso ninguem me ganha! Lá o que se chama ter geito para hespanholas,
cá o meco! E, vamos lá, que não é facil! É
necessario ter um certo talento!… Olhem, o Herculano é capaz de fazer
bellos artigos e estylo catita… Agora tragam-n’o cá para lidar com
hespanholas e veremos! Não dá meia…
Eusebiosinho no entanto fôra duas vezes escutar á porta. Todo
o hotel cahira n’um grande silencio, a Lolita não voltava. Então
Palma aconselhou um grande passo:
– Vá você lá dentro, Silveira, entre pelo quarto, e assim
sem mais nem menos, chegue-se ao pé d’ella…
– E tapona? perguntou Cruges, muito seriamente, gosando o Palma.
– Qual tapona! Ajoelhe e peça perdão… N’este caso é
pedir perdão… E como pretexto, Silveira, leve-lhe você mesmo
o café.
Eusebiosinho, com um olhar ancioso e mudo, consultou os seus amigos. Mas o
seu coração já decidira: e d’ahi a um momento, com o
pedaço de mantilha n’uma das mãos, a chavena de café
na outra, enfiado e commovido, lá partia a passos lentos pelo corredor
a pedir perdão á Concha.
E, logo atraz d’elle, Carlos e Cruges deixaram a sala, sem se despedirem do
sr. Palma – que de resto, indifferente tambem, já se accommodara á
meza a preparar regaladamente o seu grog.
Eram duas horas quando os dous amigos sahiram emfim do hotel, a fazer esse
passeio a Sitiaes – que desde Lisboa tentava tanto o maestro. Na praça,
por defronte das lojas vasias e silenciosas, cães vadios dormiam ao
sol: atravez das grades da cadêa os presos pediam esmola. Creanças,
enxovalhadas e em farrapos, garotavam pelos cantos; e as melhores casas tinham
ainda as janellas fechadas, continuando o seu somno de inverno, entre as arvores
já verdes. De vez em quando apparecia um bocado da serra, com a sua
muralha de ameias correndo sobre as penedias, ou via-se o castello da Pena,
solitario, lá no alto. E por toda a parte o luminoso ar de abril punha
a doçura do seu velludo.
Defronte do hotel da Lawrence, Carlos retardou o passo, mostrou-o ao Cruges.
– Tem o ar mais sympathico, disse o maestro. Mas valeu muito a pena ir para
o Nunes, só para vêr aquella scena… E então com quê
o sr. Carlos da Maia tem experiencia de hespanholas?
Carlos não respondeu, os seus olhos não se despegavam d’aquella
fachada banal, onde só uma janella estava aberta com um par de botinas
de duraque seccando ao ar. Á porta, dous rapazes inglezes, ambos de
knicker-bokers, cachimbavam em silencio; e defronte, sentados sobre um banco
de pedra, dous burriqueiros ao lado dos burros, não lhes tiravam o
olho de cima, sorrindo-lhes, cocando-os como uma presa.
Carlos ia seguir, mas pareceu-lhe ouvir, distante e melancolico, sahindo do
silencio do hotel, um vago som de flauta; e parou ainda, remexendo as suas
recordações, quasi certo de Damaso lhe ter dito que a bordo
Castro Gomes tocava flauta…
– Isto é sublime! exclamou do lado o Cruges, commovido.
Parara diante da grade d’onde se domina o valle. E d’ali olhava, enlevadamente,
a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só se veem os cimos
redondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro, e tendo
áquella distancia, n’o brilho da luz, a suavidade macia de um grande
musgo escuro. E n’esta espessura verde-negra havia uma frontaria de casa que
o interessava, branquejando, affogada entre a folhagem, com um ar de nobre
repouso, debaixo de sombras seculares… Um momento teve uma idéa de
artista: desejou habital-a com uma mulher, um piano e um cão da Terra-nova.
Mas o que o encantava era o ar. Abria os braços, respirava a tragos
deliciosos:
– Que ar! Isto dá saude, menino! Isto faz reviver!…
Para o gosar mais docemente, sentou-se adiante, n’um bocado de muro baixo,
defronte de um alto terraço gradeado, onde velhas arvores assombreiam
bancos de jardim, e estendem sobre a estrada a frescura das suas ramagens,
cheias do piar das aves. E como Carlos lhe mostrava o relogio, as horas que
fugiam para ir vêr o palacio, a Pena, as outras bellezas de Cintra –
o maestro declarou que preferia estar ali, ouvindo correr a agua, a vêr
monumentos caturras…
– Cintra não são pedras velhas, nem cousas gothicas… Cintra
é isto, uma pouca de agua, um bocado de musgo… Isto é um paraiso!…
E, n’aquella satisfação que o tornava loquaz, acrescentou, repetindo
a sua chalaça:
– E v. ex.ª deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiencia de hespanholas!…
– Poupa-me, respeita a natureza, murmurou Carlos, que riscava pensativamente
o chão com a bengala.
Ficaram callados. Cruges agora admirava o jardim, por baixo do muro em que
estavam sentados. Era um espesso ninho de verdura, arbustos, flores e arvores,
suffocando-se n’uma prodigalidade de bosque silvestre, deixando apenas espaço
para um tanquesinho redondo, onde uma pouca de agua, immovel e gelada, com
dous ou tres nenufares, se esverdinhava sob a sombra d’aquella ramaria profusa.
Aqui e alem, entre a bella desordem da folhagem, distinguiam-se arranjos de
gosto burguez, uma volta de ruasita estreita como uma fita, faiscando ao sol,
ou a banal palidez de um gesso. N’outros recantos, aquelle jardim de gente
rica, exposto ás vistas, tinha retoques pretenciosos de estufa rara,
aloes e cactos, braços
aguardasolados de auraucarias erguendo-se d’entre as agulhas negras dos pinheiros
bravos, laminas de palmeira, com o seu ar triste de planta exilada, roçando
a rama leve e perfumada das olaias floridas de côr de rosa. A espaços,
com uma graça discreta, branquejava um grande pé de margaridas;
ou em torno de uma rosa, solitaria na sua haste, palpitavam borboletas aos
pares.
– Que pena que isto não pertença a um artista! murmurou o maestro.
Só um artista saberia amar estas flores, estas arvores, estes rumores…
Carlos sorriu. Os artistas, dizia elle, só amam na natureza os effeitos
de linha e côr; para se interessar pelo bem-estar de uma tulipa, para
cuidar de que um craveiro não soffra sede, para sentir magoa de que
a geada tenha queimado os primeiros rebentões das acacias – para isso
só o burguez, o burguez que todas as manhãs desce ao seu quintal
com um chapéo velho e um regador, e vê nas arvores e nas plantas
uma outra familia muda, por que elle é tambem responsavel…
Cruges, que escutara distrahidamente, exclamou:
– Diabo! É necessario que não me esqueçam as queijadas!
Um som de rodas interrompeu-os, uma caleche descoberta desembocou a trote
do lado de Sitiaes. Carlos ergueu-se logo, certo de que era ella, e que elle
ia vêr os seus bellos olhos brilhar e fugir como duas estrellas. A caleche
passou, levando um ancião de barbas de patriarcha, e uma velha ingleza
com o regaço cheio de flores e o véo azul fluctuando ao ar.
E logo atraz, quasi no pó que as rodas tinham erguido, appareceu, caminhando
pensativamente, de mãos atraz das costas, um homem alto, todo de preto,
com um grande chapéo Panamá sobre os olhos. Foi Cruges que reconheceu
os longos bigodes romanticos, que gritou:
– Olha o Alencar! Oh! grande Alencar!…
Durante um momento, o poeta ficou assombrado, com os braços abertos,
no meio da estrada. Depois, com a mesma effusão ruidosa, apertou Carlos
contra o coração, beijou o Cruges na face – porque conhecia
Cruges desde pequeno, Cruges era para elle como um filho. Caramba! Eis ahi
uma surpreza que elle não trocava pelo titulo de duque! Ora o alegrão
de os vêr ali! Como diabo tinham elles vindo ali parar?
E não esperou a resposta, contou elle logo a sua historia. Tivera um
dos seus ataques de garganta, com uma ponta de febre, e o Mello, o bom Mello,
recommendara-lhe mudança d’ares. Ora elle, bons ares, só comprehendia
os de Cintra: porque alli não eram só os pulmões que
lhe respiravam bem, era tambem o coração, rapazes!… De sorte
que viera na vespera, no omnibus.
– E onde estás tu, Alencar? perguntou logo Carlos.
– Pois onde queres tu que eu esteja, filho? Lá estou com a minha velha
Lawrence. Coitada! está bem velha! mas para mim é sempre uma
amiga, é quasi uma irmã!… E vocês, que diabo? Para onde
vão vocês com essas flores nas lapellas?
– A Sitiaes… Vou mostrar Sitiaes ao maestro.
Então tambem elle voltava a Sitiaes! Não tinha nada que fazer
senão sorver bom ar, e scismar… Toda a manhã andara alli,
vagamente, pendurando sonhos dos ramos das arvores. Mas agora já os
não largava; era mesmo um dever ir elle proprio fazer ao maestro as
honras de Sitiaes…
– Que aquillo é sitio muito meu, filhos! Não ha alli arvore
que me não conheça… Eu não vos quero começar
já a impingir versos; mas emfim, vocês lembram-se de uma cousa
que eu fiz a Sitiaes, e de que por ahi se gostou…
Quantos luares eu lá vi!
Que doces manhãs d’abril!
E os ais que soltei alli
Não foram sete, mas mil!
Pois então já vocês vêem, rapazes, que tenho razão
para conhecer Sitiaes…
O poeta lançou ao ar um vago suspiro, e durante um instante caminharam
todos tres callados.
– Dize-me uma cousa, Alencar, perguntou Carlos baixo, parando, e tocando no
braço do poeta. O Damaso está na Lawrence?
Não, que elle o tivesse visto. Verdade seja que na vespera, apenas
chegara, fôra-se deitar, fatigado; e n’essa manhã almoçara
só com dois rapazes inglezes. O unico animal que avistara fôra
um lindo cãosinho de luxo, ladrando no corredor…
– E vocês onde estão?
– No Nunes.
Então o poeta parando de novo, contemplando Carlos com sympathia:
– Que bem que fizeste em arrastar cá o maestro, filho!… Quantas vezes
eu tenho dito áquelle diabo, que se mettesse no omnibus, viesse passar
dous dias a Cintra. Mas ninguem o tira de martelar o piano. E olha tu que
mesmo para a musica, para compor, para entender um Mozart, um Choppin, é
necessario ter visto isto, escutado este rumor, esta melodia da ramagem…
Baixou a voz, apontando para o maestro, que caminhava adiante, enlevado:
– Tem muito talento, tem muita idéa melodica!… Olha que andei com
aquillo ás cabritas… E a mãe, menino, foi muitissimo boa mulher.
– Vejam vocês isto! gritou Cruges que parara, esperando-os. Isto é
sublime.
Era apenas um bocadito d’estrada, apertada entre dous velhos muros cobertos
d’hera, assombreada por grandes arvores entrelaçadas, que lhe faziam
um toldo de folhagem aberto á luz como uma renda: no chão tremiam
manchas de sol: e, na frescura e no silencio, uma agoa que se não via
ia fugindo e cantando.
– Se tu queres sublime, Cruges, exclamou Alencar, então tens de subir
á serra. Ahi tens o espaço, tens a nuvem, tens a arte…
– Não sei, talvez goste mais d’isto, murmurou o maestro.
A sua natureza de timido preferiria, de certo, estes humildes recantos, feitos
de uma pouca de folhagem fresca e de um pedaço de muro musgoso, logares
de quietação e de sombra, onde se aninha com um conforto maior
o scismar dos indolentes…
– De resto, filho, continuou Alencar, tudo em Cintra é divino. Não
ha cantinho que não seja um poema… Olha, alli tens tu, por exemplo,
aquella linda florinha azul… – e, ternamente, apanhou-a.
– Vamos andando, vamos andando, murmurou Carlos impaciente, e agora, desde
que o poeta fallara do cãosinho de luxo, mais certo de que ella estava
na Lawrence, e que a ía brevemente encontrar.
Mas, ao chegar a Sitiaes, Cruges teve uma desillusão diante d’aquelle
vasto terreiro coberto de herva, com o palacete ao fundo, enxovalhado, de
vidraças partidas, e erguendo pomposamente sobre o arco, em pleno ceu,
o seu grande escudo de armas. Ficara-lhe a idéa, de pequeno, que Sitiaes
era um montão pittoresco de rochedos, dominando a profundidade de um
valle; e a isto misturava-se vagamente uma recordação de luar
e de guitarras… Mas aquillo que elle alli via era um desapontamento.
– A vida é feita de desapontamentos, disse Carlos. Anda para diante!
E apressou o passo atravez do terreiro, em quanto o maestro, cada vez mais
animado, lhe gritava a chalaça do dia:
– E v. ex.ª deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiencia de hespanholas!…
Alencar, que se demorara atraz a accender o cigarro, estendeu o ouvido, curioso,
quiz saber o que era isso de hespanholas? O maestro contou-lhe o encontro
no Nunes e os furores da Concha.
Iam ambos caminhando por uma das alamedas lateraes, verde e fresca, de uma
paz religiosa, como um claustro feito de folhagem. O terreiro estava deserto;
a herva que o cobria, crescia ao abandono, toda estrellada de botões
de ouro brilhando ao sol, e de malmequersinhos brancos. Nenhuma folha se movia:
atravez da ramaria ligeira o sol atirava mólhos de raios de ouro. O
azul parecia recuado a uma distancia infinita, repassado de silencio luminoso;
e só se ouvia, ás vezes, monotona e dormente, a voz de um cuco
nos castanheiros.
Toda aquella vivenda, com a sua grade enferrujada sobre a estrada, os seus
florões de pedra roídos da chuva, o pesado brazão rococó,
as janellas cheias de teias de aranha, as telhas todas quebradas, parecia
estar-se deixando morrer voluntariamente n’aquella verde solidão, –
amuada com a vida, desde que d’alli tinham desapparecido as ultimas graças
do tricorne e do espadim, e os derradeiros vestidos de anquinhas tinham roçado
essas relvas… Agora Cruges ía descrevendo ao Alencar a figura do
Eusebiosinho, com a chavena de café na mão, a ir pedir perdão
á Concha; e a cada momento o poeta, com o seu grande chapéo
panamá, se agachava a colher florinhas silvestres.
Quando passaram o Arco, encontraram Carlos sentado n’um dos bancos de pedra,
fumando pensativamente a sua cigarette. O palacete deitava sobre aquelle bocado
de terraço a sombra dos seus muros tristes; do valle subia uma frescura
e um grande ar; e algures, em baixo, sentia-se o prantear de um repuxo. Então
o poeta, sentando-se ao lado do seu amigo, fallou com nojo do Eusebiosinho.
– Ahi está uma torpeza que elle nunca commettera, trazer meretrizes
a Cintra! Nem a Cintra, nem a parte nenhuma… Mas muito menos a Cintra! Sempre
tivera, todo o mundo devia ter, a religião d’aquellas arvores e o amor
d’aquellas sombras…
– E esse Palma, accrescentou elle, é um traste! Eu conheço-o;
elle teve uma especie de jornal, e já lhe dei muita bofetada na rua
do Alecrim. Foi uma historia curiosa… Ora eu t’a conto, Carlos… Aquelle
canalha! quando me lembro!… Aquella vil bolinha de materia putrida!… Aquelle
chouricinho de pus!
Levantou-se, passando a mão nervosa sobre os bigodes, já excitado
pela lembrança d’aquella velha desordem, vergastando o Palma com nomes
ferozes, todo n’uma d’essas fervuras de sangue que eram a sua desgraça.
Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grande planicie de lavoura
que se estendia em baixo, rica e bem trabalhada, repartida em quadrados verde-claros
e verde-escuros, que lhe faziam lembrar um panno feito de remendos assim que
elle tinha na meza do seu quarto. Tiras brancas de estradas serpeavam pelo
meio: aqui e além, n’uma massa de arvoredo, branquejava um casal: e
a cada passo, n’aquelle solo onde as aguas abundam, uma fila de pequenos olmos
revelava algum fresco ribeiro, correndo e reluzindo entre as hervas. O mar
ficava ao fundo, n’uma linha unida, esbatida na tenuidade diffusa da bruma
azulada: e por cima arredondava-se um grande azul lustroso como um bello esmalte,
tendo apenas, lá no alto, um farraposinho de nevoa, que ficara alli
esquecido, e que dormia enovellado e suspenso na luz…
– Tive nojo! exclamava o Alencar, rematando fogosamente a sua historia. Palavra
que tive nojo! Atirei-lhe a bengala aos pés, crusei os braços
e disse-lhe: ahi tem você a bengala, seu covarde, a mim bastam-me as
mãos!
– Que diabo, não me hão de esquecer as queijadas! murmurou Cruges,
para si mesmo, affastando-se do parapeito.
Carlos erguera-se tambem, olhava o relogio. Mas antes de deixar Sitiaes, Cruges
quiz explorar o outro terraço ao lado: e, apenas subira os dous velhos
degraus de pedra, soltou de lá um grito alegre:
– Bem dizia eu! cá estão elles… E vocês a dizer que
não!
Foram-n’o encontrar triumphante, diante de um montão de penedos, polidos
pelo uso, já com um vago feitio de assentos, deixados ali outr’ora,
poeticamente, para dar ao terraço uma graça agreste de selva
brava. Então, não dizia elle? Bem dizia elle que em Sitiaes
havia penedos!
– Se eu me lembrava perfeitamente! Penedo da Saudade, não é
que se chama, Alencar?
Mas o poeta não respondeu. Diante d’aquellas pedras crusara os braços,
sorria dolorosamente; e immovel, sombrio no seu fato negro, com o panamá
carregado para a testa, envolveu todo aquelle recanto n’um olhar lento e triste.
Depois, no silencio, a sua voz ergueu-se, saudosa e dolente:
– Vocês lembram-se, rapazes, nas Flôres e Martyrios, de uma das
cousas melhores que lá tenho, em rimas livres, chamada 6 de Agosto?
Não se lembram talvez… Pois eu vol-a digo, rapazes!
Machinalmente tirara do bolso o lenço branco. E com elle fluctuante
na mão, puxando Carlos para junto de si, chamando do outro lado o Cruges,
baixou a voz como n’uma confidencia sagrada, recitou, com um ardor surdo,
mordendo as syllabas, tremulo, n’uma paixão ephemera de nervoso:
Vieste! Cingi-te ao peito.
Em redor que noite escura!
Não tinha rendas o leito,
Nem tinha lavores na barra
Que era só a rocha dura…
Muito ao longe uma guitarra
Gemia vagos harpejos…
(Vê tu que não me esqueceu)…
E a rocha dura aqueceu
Ao calor dos nossos beijos!
Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras brancas batidas do sol, atirou
para lá um gesto triste, e murmurou:
– Foi alli.
E affastou-se, alquebrado sob o seu grande chapéo panamá, com
o lenço branco na mão. Cruges, que aquelles romantismos impressionavam,
ficou a olhar para os penedos como para um sitio historico. Carlos sorria.
E quando ambos deixaram esse recanto do terraço – o poeta, agachado
junto do arco, estava apertando o atilho da ceroula.
Endireitou-se logo, já toda a emoção o deixara, mostrava
os maus dentes n’um sorriso amigo, e exclamou, apontando para o arco:
– Agora, Cruges, filho, repara tu n’aquella tela sublime.
O maestro embasbacou. No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura
de pedra, brilhava, á luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de
uma composição quasi phantastica, como a illustração
de uma bella lenda de cavallaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro,
deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarellos; ao fundo,
o renque cerrado de antigas arvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo
da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente d’essa
copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando
vigorosamente n’um relevo nitido sobre o fundo de céu azul claro, o
cume airoso da serra, toda côr de violeta escura, coroada pelo castello
da Pena, romantico e solitario no alto, com o seu parque sombrio aos pés,
a torre esbelta perdida no ar, e as cupulas brilhando ao sol como se fossem
feitas de ouro…
Cruges achou aquelle quadro digno de Gustavo Doré. Alencar teve uma
bella phrase sobre a imaginação dos arabes. Carlos, impaciente,
foi-os apressando para diante.
Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo de subir á Pena.
Alencar, por si, ía tambem com prazer. A Pena para elle era outro ninho
de recordações. Ninho? Devia antes dizer cemiterio… Carlos
hesitava, parado junto da grade. Estaria ella na Pena? E olhava a estrada,
olhava as arvores, como se podesse adivinhar pelas pegadas no pó, ou
pelo mover das folhas, que direcção tinham tomado os passos
que elle seguia… Por fim teve uma idéa.
– Vamos indo primeiro á Lawrence. E depois se quizermos ir á
Pena, arranjam-se lá os burros…
E nem mesmo quiz escutar o Alencar, que tivera tambem uma idéa, fallava
de Collares, de uma visita ao seu velho Carvalhosa; accelerou o passo para
a Lawrence, emquanto o poeta tornava a arranjar o atilho da ceroula, e o maestro,
n’um enthusiasmo bucolico, ornava o chapéo de folhas de hera.
Defronte da Lawrence, os dois burriqueiros, de cigarro na bocca, não
tendo podido apoderar-se dos inglezes, preguiçavam ao sol.
– Vocês sabem, perguntou-lhes Carlos, se uma familia, que está
aqui no hotel, foi para a Pena?…
Um dos homens pareceu adivinhar, exclamou logo, desbarretando-se.
– Sim, senhor, foram para lá ha bocado, e aqui está o burrinho
tambem para v. ex.ª, meu amo!
Mas o outro, mais honesto, negou. Não senhor, a gente que fôra
para a Pena estava no Nunes…
– A familia que o senhor diz foi agora ali para baixo, para o palacio…
– Uma senhora alta?
– Sim senhor.
– Com um sujeito de barba preta?
– Sim senhor.
– E uma cadellinha?
– Sim senhor.
– Tu conheces o sr. Damaso Salcede?
– Não senhor… É o que tira retratos?
– Não, não tira retratos… Tomae lá.
Deu-lhes uma placa de cinco tostões; e voltou ao encontro dos outros,
declarando que realmente era tarde para subirem á Pena.
– Agora o que tu deves vêr, Cruges, é o palacio. Isso é
que tem originalidade e cachet! Não é verdade, Alencar?…
– Eu vos digo, filhos, começou o auctor de Elvira, historicamente fallando…
– E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou Cruges.
– Justamente! exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas; é necessario
não perder tempo; a caminho!
Deixou os outros ainda indecisos, abalou para o palacio, em quatro largas
passadas estava lá. E logo da praça avistou, saindo já
o portão, passando rente da sentinella, a famosa familia hospedada
na Lawrence e a sua cadellinha de luxo. Era, com effeito, um sujeito de barba
preta, e de sapatos de lona branca; e, ao lado d’elle, uma matrona enorme,
com um mantelete de seda, cousas de ouro pelo pescoço e pelo peito,
e o cãosinho felpudo ao collo. Vinham ambos rosnando o quer que fosse,
com mau modo um para o outro, e em hespanhol.
Carlos ficou a olhar para aquelle par com a melancolia de quem contempla os
pedaços d’um bello marmore quebrado. Não esperou mais pelos
outros, nem os quiz encontrar. Correu á Lawrence por um caminho differente,
avido de uma certeza: – e ahi, o criado que lhe appareceu, disse-lhe que o
sr. Salcede e os srs. Castro Gomes tinham partido na vespera para Mafra…
– E de lá?…
O criado ouvira dizer ao sr. Damaso que de lá voltavam a Lisboa.
– Bem, disse Carlos atirando o chapéo para cima da meza, traga-me você
um calice de cognac, e uma pouca d’agua fresca.
Cintra, de repente, pareceu-lhe intoleravelmente deserta e triste. Não
teve animo de voltar ao palacio, nem quis sahir mais d’ali; e arrancando as
luvas, passeiando em volta da meza de jantar, onde murchavam os ramos da vespera,
sentia um desejo desesperado de galopar para Lisboa, correr ao Hotel Central,
invadir-lhe o quarto, vêl-a, saciar os seus olhos n’ella!… Porque,
o que o irritava agora era não poder encontrar, na pequenez de Lisboa,
onde toda a gente se acotovella, aquella mulher que elle procurava anciosamente!
Duas semanas farejara o Aterro como um cão perdido: fizera perigrinações
ridiculas de theatro em theatro: n’uma manhã de domingo percorrera
as missas! E não a tornara a vêr. Agora sabia-a em Cintra, voava
a Cintra, e não a via tambem. Ella cruzava-o uma tarde, bella como
uma deusa transviada no Aterro, deixava-lhe cahir n’alma por accaso um dos
seus olhares negros, e desapparecia, evaporava-se, como se tivesse realmente
remontado ao céo, d’ora em diante invisivel e sobrenatural: e elle
ali ficava, com aquelle olhar no coração, perturbando todo o
seu ser, orientando surdamente os seus pensamentos, desejos, curiosidades,
toda a sua vida interior, para uma adoravel desconhecida, de quem elle nada
sabia senão que era alta e loira, e que tinha uma cadellinha escosseza…
Assim acontece com as estrellas d’acaso! Ellas não são d’uma
essencia differente, nem contéem mais luz que as outras: mas, por isso
mesmo que passam fugitivamente e se esvaem, parecem despedir um fulgor mais
divino, e o deslumbramento que deixam nos olhos é mais perturbador
e mais longo… Elle não a tornara a vêr. Outros viam-n’a. O
Taveira vira-a. No Gremio, ouvira um alferes de lanceiros fallar d’ella, perguntar
quem era, porque a encontrava todos os dias. O alferes encontrava-a todos
os dias. Elle não a via, e não socegava…
O criado trouxe o cognac. Então Carlos, preparando vagarosamente o
seu refresco, conversou com elle, fallou um momento dos dois rapazes inglezes,
depois da hespanhola obesa… Emfim, dominando uma timidez, quasi córando,
fez, atravez de grandes silencios, perguntas sobre os Castro Gomes. E cada
resposta lhe parecia uma acquisição preciosa. A senhora era
muito madrugadora, dizia o criado: ás sete horas tinha tomado banho,
estava vestida, e sahia só. O sr. Castro Gomes, que dormia n’um quarto
separado, nunca se mexia antes do meio dia; e, á noite, ficava uma
eternidade á meza, fumando cigarettes e molhando os beiços em
copinhos de cognac e agua. Elle e o sr. Damaso jogavam o dominó. A
senhora tinha montões de flôres no quarto; e tencionavam ficar
até domingo, mas fôra ella que apressára a partida…
– Ah, disse Carlos depois de um silencio, foi a senhora que apressou a partida?…
– Sim, senhor, com cuidado na menina que tinha ficado em Lisboa… V. ex.ª
toma mais cognac?
Com um gesto Carlos recusou, e veiu sentar-se no terraço. A tarde descia,
calma, radiosa, sem um estremecer de folhagem, cheia de claridade dourada,
n’uma larga serenidade que penetrava a alma. Elle tel-a-hia pois encontrado,
ali mesmo n’aquelle terraço, vendo tambem cahir a tarde – se ella não
estivesse impaciente por tornar a vêr a filha, algum bébésinho
loiro que ficára só com a ama. Assim, a brilhante deusa era
tambem uma boa mamã; e isto dava-lhe um encanto mais profundo, era
assim que elle gostava mais d’ella, com este terno estremecimento humano nas
suas bellas fórmas de marmore.
Agora, já ella estava em Lisboa; e imaginava-a nas rendas do seu peignoir,
com o cabello enrolado á pressa, grande e branca, erguendo ao ar o
bébé nos seus explendidos braços de Juno, e fallando-lhe
com um riso d’ouro. Achava-a assim adoravel, todo o seu coração
fugia para ella… Ah! poder ter o direito de estar junto d’ella, n’essas
horas d’intimidade, bem junto, sentindo o aroma da sua pelle, e sorrindo tambem
a um bébé. E, pouco a pouco, foi-lhe surgindo na alma um romance,
radiante e absurdo: um sopro de paixão, mais forte que as leis humanas,
enrolava violentamente, levava juntos o seu destino e o d’ella; depois, que
divina existencia, escondida n’um ninho de flôres e de sol, longe, n’algum
canto da Italia…
E, toda a sorte de idéas d’amor, de devoção absoluta,
de sacrificio, invadiam-n’o deliciosamente – emquanto os seus olhos se esqueciam,
se perdiam, enlevados na religiosa solemnidade d’aquelle bello fim da tarde.
Do lado do mar subia uma maravilhosa côr d’ouro pallido, que ia no alto
diluir o azul, dava-lhe um branco indeciso e opalino, um tom de desmaio doce;
e o arvoredo cobria-se todo de uma tinta loura, delicada e dormente. Todos
os rumores tomavam uma suavidade de suspiro perdido. Nenhum contorno se movia
como na immobilidade de um extase. E as casas, voltadas para o poente, com
uma ou outra janella accesa em braza, os cimos redondos das arvores apinhadas,
descendo a serra n’uma espessa debandada para o valle, tudo parecera ficar
de repente parado n’um recolhimento melancolico e grave, olhando a partida
do sol, que mergulhava lentamente no mar…
– Oh Carlos, tu estás ahi?
Era em baixo, na estrada, a voz grossa do Alencar gritando por elle. Carlos
appareceu á varanda do terraço.
– Que diabo estás tu ahi a fazer, rapaz? exclamou Alencar, agitando
alegremente o seu panamá. Nós lá estivemos á espera,
no covil real… Fomos ao Nunes… Iamos agora procurar-te á cadeia!
E o poeta riu largamente da sua pilheria – emquanto Cruges, ao lado, de mãos
atraz das costas, e a face erguida para o terraço, bocejava desconsoladamente.
– Vim refrescar, como tu dizes, tomar um pouco de cognac, que estava com sêde.
Cognac? eis ahi o mimo por que o pobre Alencar estivera anciando toda a tarde,
desde Sitiaes. E galgou logo as escadas do terraço – depois de ter
gritado para dentro, para a sua velha Lawrence, que lhe mandasse acima meia
da fina.
– Viste o Paço, hein, Cruges? perguntou Carlos ao maestro, quando elle
appareceu, arrastando os passos. Então, parece-me que o que nos resta
a fazer é jantar, e abalar…
Cruges concordou. Voltava do palacio com um ar murcho, fatigado d’aquelle
vasto casarão historico, da voz monotona do cicerone mostrando a cama
de S. M. El-Rei, as cortinas do quarto de S. M. a Rainha, «melhores
que as de Mafra,» o tira-botas de S. A.; e trazia de lá uma pouca
d’essa melancolia que erra, como uma atmosphera propria, nas residencias reaes.
E aquella natureza de Cintra, ao escurecer, dizia elle, começava a
entristecel-o.
Então concordaram em jantar ali, na Lawrence, para evitar o espectaculo
torpe do Palma e das damas, mandar vir á porta o break, e partir depois
ao nascer do luar. Alencar, aproveitando a carruagem, recolhia tambem a Lisboa.
– E, para ser festa completa, exclamou elle, limpando os bigodes do cognac,
enquanto vocês vão ao Nunes pagar a conta, e dar ordens para
o break, eu vou-me entender la abaixo á cosinha com a velha Lawrence,
e preparar-vos um bacalhau á Alencar, recipe meu… E vocês verão
o que é um bacalhau! Porque, lá isso, rapazes, versos os farão
outros melhor; bacalhau, não!
Atravessando a praça, Cruges pedia a Deus que não encontrassem
mais o Eusebiosinho. Mas, apenas pozeram os pés nos primeiros degraus
do Nunes, ouviram em cima o chalrar da sucia. Estavam na ante-sala, já
todos reconciliados, a Concha contente – e installados aos dois cantos d’uma
meza, com cartas. O Palma, munido d’uma garrafa de genebra, fazia uma batotinha
para o Eusebio; e as duas hespanholas, de cigarro na bocca, jogavam languidamente
a bisca.
O viuvo, enfiado, perdia. No monte, que começára miseravelmente
com duas corôas, já luzia ouro; e Palma triumphava, chalaceiando,
dando beijocas na sua moça. Mas, ao mesmo tempo, fazia de cavalheiro,
fallava de dar a desforra, ficar ali, sendo necessario, até de madrugada.
– Então vv. exas. não se tentam? Isto é para passar o
tempo… Em Cintra tudo serve… Valete! Perdeu você outro mico no rei.
Deve a libra mais quinze tostões, sô Silveira!
Carlos passára, sem responder, seguido pelo criado – no momento em
que Euzebiosinho, furioso, já desconfiado, quiz verificar, com as lunetas
negras sobre o baralho, se lá estavam todos os reis.
Palma alastrou as cartas largamente, sem se zangar. Entre amigos, que diabo,
tudo se admittia! A sua hespanhola, essa sim, escandalisou-se, defendendo
a honra do seu homem: então Palmita havia de ter empalmado o rei? Mas,
a Concha, zelava o dinheiro do seu viuvo, exclamava que o rei podia estar
perdido… Os reis estavam lá.
Palma atirou um calice de genebra ás goelas, e recomeçou a baralhar
magestosamente.
– Então v. ex.ª não se tenta? repetia elle para o maestro.
Cruges, com effeito, parára, roçando-se pela meza, com o olho
nas cartas e no ouro do monte, já sem força, remexendo o dinheiro
nas algibeiras. Subitamente um az decidiu-o. Com a mão nervosa, escorregou-lhe
uma libra por baixo, jogando cinco tostões, e de porta. Perdeu logo.
Quando Carlos voltou do quarto com o criado que descia as malas, o maestro
estava em pleno vicio, com a libra entalada, os olhos accezos, o ar esguedelhado.
– Então tu?… exclamou Carlos com severidade.
– Já desço, rosnou o maestro.
E, á pressa, foi á paz da libra, n’um terno contra o rei. Cartada
de colicas! como disse o Palma: e foi com emoção que elle começou
a puxar as cartas, espremendo-as uma a uma, n’um vagar mortal. A apparição
de um bico arrancou-lhe uma praga. Era apenas um duque, Eusebiosinho perdia
mais uma placa. Palma teve um suspirinho de alivio; e, escondendo com ambas
as mãos o baralho, erguendo as lunetas faiscantes para o maestro:
– Então, sempre continúa toda a libra?…
– Toda.
Palma teve outro suspiro, d’anciedade; e, mais pallido, voltou bruscamente
as cartas.
– Rei! gritou elle, empolgando o ouro.
Era o rei de paus, a sua hespanhola bateu as palmas, o maestro abalou furioso.
Na Lawrence o jantar prolongou-se até ás oito horas, com luzes;
– e o Alencar fallou sempre. Tinha esquecido n’esse dia as desillusões
da vida, todos os rancores litterarios, estava n’uma veia excellente; e foram
historias dos velhos tempos de Cintra, recordações da sua famosa
ida a Paris, cousas picantes de mulheres, bocados da chronica intima da Regeneração…
Tudo isto com estridencias de voz, e filhos isto! e rapazes aquillo! e gestos
que faziam oscillar as chamas das vellas, e grandes copos de Collares emborcados
de um trago. Do outro lado da meza, os
dois inglezes, correctos nos seus fraques negros, de cravos brancos na botoeira,
pasmavam, com um ar embaraçado a que se misturava desdem, para esta
desordenada exhuberancia de meridional.
A apparição do bacalhau foi um triumpho: – e a satisfação
do poeta tão grande, que desejou mesmo, caramba, rapazes, que ali estivesse
o Ega!
– Sempre queria que elle provasse este bacalhau! Já que me não
aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto é um
bacalhau de artista em toda a parte!… N’outro dia fil-o lá em casa
dos meus Cohens; e a Rachel, coitadinha, veiu para mim e abraçou-me…
Isto, filhos, a poesia e a cozinha são irmãs! Vejam vocês
Alexandre Dumas… Dirão vocês que o pae Dumas não é
um poeta… E então d’Artagnan? D’Artagnan é um poema… É
a faisca, é a phantasia, é a inspiração, é
o sonho, é o arrobo! Então, pôço, já vêem
vocês, que é poeta!… Pois vocês hão-de vir um
dia d’estes jantar commigo, e ha-de vir o Ega, e hei-de-vos arranjar umas
perdizes á hespanhola, que vos hão-de nascer castanholas nos
dedos!… Eu, palavra, gosto do Ega! Lá essas cousas de realismo e
romantismo, historias… Um lyrio é tão natural como um persevejo…
Uns preferem fedôr de sargeta; perfeitamente, destape-se o cano publico…
Eu prefiro pós de marechala n’um seio branco; a mim o seio, e, lá
vae á vossa. O que se quer, é coração. E o Ega
tem-n’o. E tem faisca, tem rasgo, tem estylo… Pois, assim é que elles
se querem, e, lá vae á saude do Ega!
Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou mais baixo:
– E, se aquelles inglezes continuam a embasbacar para mim, vae-lhes um copo
na cara, e é aqui um vendaval, que ha-de a Gran-Bretanha ficar sabendo
o que é um poeta portuguez!…
Mas não houve vendaval, a Gran-Bretanha ficou sem saber o que é
um poeta portuguez, e o jantar terminou n’um café tranquillo. Eram
nove horas, fazia luar, quando Carlos subiu para a almofada do break.
Alencar, embuçado num capote, um verdadeiro capote de padre de aldêa,
levava na mão um ramo de rosas: e agora, guardara o seu panamá
na maleta, trazia um bonet de lontra. O maestro, pesado do jantar, com um
começo de spleen, encolheu-se a um canto do break, mudo, enterrado
na gola do paletot, com a manta da mamã sobre os joelhos. Partiram.
Cintra ficava dormindo ao luar.
Algum tempo o break rodou em silencio, na belleza da noite. A espaços,
a estrada apparecia banhada d’uma claridade quente que faiscava. Fachadas
de casas, caladas e pallidas, surgiam, d’entre as arvores com um ar de melancolia
romantica. Murmurios de agoas perdiam-se na sombra; e, junto dos muros enramados,
o ar estava cheio d’aroma. Alencar accendera o cachimbo, e olhava a lua.
Mas, quando passaram as casas de S. Pedro, e entraram na estrada, silenciosa
e triste, Cruges mexeu-se, tossiu, olhou tambem para a lua, e murmurou d’entre
os seus agasalhos:
– Oh Alencar, recita para ahi alguma cousa…
O poeta condescendeu logo – apesar de um dos criados ir ali ao lado d’elles,
dentro do break. Mas, que havia elle de recitar, sob o encanto da noite clara?
Todo o verso parece frouxo, escutado diante da lua! Emfim, ía dizer-lhe
uma historia bem verdadeira e bem triste… Veiu sentar-se ao pé do
Cruges, dentro do seu grande capotão, esvaziou os restos do cachimbo,
e, depois de acariciar algum tempo os bigodes, começou, n’um tom familiar
e simples:
Era o jardim d’uma vivenda antiga,
Sem arrebiques d’arte ou flôres de luxo;
Ruas singellas d’alfazema e buxo,
Cravos, roseiras…
– Com mil raios! exclamou de repente o Cruges, saltando de dentro da manta,
com um berro que emmudeceu o poeta, fez voltar Carlos na almofada, assustou
o trintanario.
O break parára, todos o olhavam suspensos; e, no vasto silencio da
charneca, sob a paz do luar, Cruges, succumbido, exclamou:
– Esqueceram-me as queijadas!
Capítulo IX
O dia famoso da soirée dos Cohens, ao fim d’essa semana tão
luminosa e tão doce, amanheceu enevoado e triste. Carlos, abrindo cedo
a janella sobre o jardim, vira um céu baixo que pesava como se fosse
feito de algodão em rama enxovalhado: o arvoredo tinha um tom arripiado
e humido; ao longe o rio estava turvo, e no ar molle errava um halito morno
de sudoeste. Decidira não sahir – e desde as nove horas, sentado á
banca, embrulhado no seu vasto robe-de-chambre de velludo azul, que lhe dava
o bello ar de um principe artista da Renascença, tentava trabalhar:
mas, apesar de duas chavenas de café, de cigarettes sem fim, o cerebro,
como o céu fóra, conservava-se-lhe n’essa manhã afogado
em nevoas. Tinha d’estes dias terriveis; julgava-se então «uma
besta»; e a quantidade de folhas de papel, dilaceradas, amarfanhadas,
que lhe juncavam o tapete
aos pés, davam-lhe a sensação de ser todo elle uma ruina.
Foi realmente um allivio, uma tregoa n’aquella lucta com as idéas rebeldes,
quando Baptista annunciou Villaça, que lhe vinha fallar de uma venda
de montados no Alemtejo, pertencentes á sua legitima.
– Negociosinho, disse o administrador, pousando o chapéo a um canto
da mesa e dentro um rolo de papeis, que lhe mette na algibeira para cima de
dois contos de réis… E não é mau presente, logo assim
pela manhã…
Carlos espreguiçou-se, crusando fortemente as mãos por trás
da cabeça:
– Pois olhe, Villaça, preciso bem de dous contos de réis, mas
preferia que me trouxesse ahi alguma lucidez de espirito… Estou hoje d’uma
estupidez!
Villaça considerou-o um momento, com malicia.
– Quer v. ex.ª dizer que antes queria escrever uma bonita pagina do que
receber assim perto de quinhentas libras? São gostos, meu senhor, são
gostos… Elle é bom sahir-se a gente um Herculano ou um Garrett, mas
dous contos de réis, são dous contos de réis… Olhe
que sempre valem um folhetim. Emfim, o negocio é este.
Explicou-lh’o, sem se sentar, apressado, emquanto Carlos, de braços
cruzados, considerava quanto era medonho o alfinete de peito que Villaça
trazia (um macacão de coral comendo uma pera de ouro) e distinguia
vagamente, atravez da sua neblina mental, que se tratava de um visconde de
Torral e de porcos… Quando Villaça lhe apresentou os papeis, assignou-os
com um ar moribundo.
– Então não fica para almoçar, Villaça? disse
elle, vendo o procurador metter o seu rolo de papeis debaixo do braço.
– Muito agradecido a v. exa. Tenho de me encontrar com o nosso amigo Eusebio…
Vamos ao ministerio do reino, elle tem lá uma pertenção…
Quer a commenda da Conceição… Mas este governo está
desgostoso com elle.
– Ah, murmurou Carlos com respeito e atravez d’um bocejo, o governo não
está contente com o Eusebiosinho?
– Não se portou bem nas eleições. Ainda ha dias, o ministro
do reino me dizia, em confidencia: «O Eusebio é rapaz de merecimento,
mas atravessado…» V. Ex.ª n’outro dia, disse-me o Cruges, encontrou-o
em Cintra.
– Sim, lá estava a fazer jus á commenda da Conceição.
Quando Villaça saiu Carlos retomou lentamente a penna, e ficou um momento,
com os olhos na pagina meio-escripta, coçando a barba, desanimado e
esteril. Mas quasi em seguida appareceu Affonso da Maia, ainda de chapéo,
á volta do seu passeio matinal no bairro, e com uma carta na mão,
que era para Carlos, e que elle achara no escriptorio misturada ao seu correio.
Além d’isso, esperava encontrar ali o Villaça.
– Esteve ahi, mas deitou a correr, para ir arranjar uma commenda para o Eusebiosinho
– disse Carlos, abrindo a carta.
E teve uma surpreza, vendo no papel – que cheirava a verbena como a condessa
de Gouvarinho – um convite do conde para jantar no sabbado seguinte, feito
em termos de sympathia tão escolhidos que eram quasi poeticos; tinha
mesmo uma phrase sobre a amisade, fallava dos atomos em gancho de Descartes.
Carlos desatou a rir, contou ao avô que era um par do reino que o convidava
a jantar, citando Descartes…
– São capazes de tudo, murmurou o velho.
E dando um olhar risonho aos manuscriptos espalhados sobre a banca:
– Então, aqui, trabalha-se, hein?
Carlos encolheu os hombros:
– Se é que se póde chamar a isto tabalhar… Olhe ahi para o
chão. Veja esses destroços… Em quanto se trata de tomar notas,
colligir documentos, reunir materiaes, bem, lá vou indo. Mas quando
se trata de pôr as idéas, a observação, n’uma fórma
de gosto e de symetria, dar-lhe côr, dar-lhe relevo, então…
Então foi-se!
– Preoccupação peninsular, filho, disse Affonso, sentando-se
ao pé da mesa, com o seu chapéo desabado na mão. Desembaraça-te
d’ella. É o que eu dizia n’outro dia ao Craft, e elle concordava…
O portuguez nunca póde ser homem de idéas, por causa da paixão
da fórma. A sua mania é fazer bellas phrases, vêr-lhes
o brilho, sentir-lhes a musica. Se fôr necessario falsear a idéa,
deixal-a incompleta, exageral-a, para a phrase ganhar em belleza, o desgraçado
não hesita… Vá-se pela agoa abaixo o pensamento, mas salve-se
a bella phrase.
– Questão de temperamento, disse Carlos. Ha sêres inferiores,
para quem a sonoridade de um adjectivo é mais importante que a exactidão
de um systema… Eu sou d’esses monstros.
– Diabo! então és um rhetorico…
– Quem o não é? E resta saber por fim se o estylo não
é uma disciplina do pensamento. Em verso, o avô sabe, é
muitas vezes a necessidade de uma rima que produz a originalidade de uma imagem…
E quantas vezes o esforço para completar bem a cadencia de uma phrase,
não poderá trazer desenvolvimentos novos e inesperados de uma
idéa… Viva a bella phrase!
– O sr. Ega annunciou o Baptista, erguendo o reposteiro, quando começava
justamente a tocar a sineta do almoço.
– Fallae na phrase… – disse Affonso, rindo.
– Hein? Que phrase? O que?… – exclamou Ega, que rompeu pelo quarto, com
o ar estonteado, a barba por fazer, a gola do paletot levantada. Oh! por aqui
a esta hora sr. Affonso da Maia! Como está v. ex.ª? Dize-me cá,
Carlos, tu é que me podes tirar d’uma atrapalhação…
Tu terás por acaso uma espada que me sirva?
E, como Carlos o olhava assombrado, acrescentou, já impaciente:
– Sim, homem, uma espada! Não é para me batter, estou em paz
com toda a humanidade… É para esta noute, para o fato de mascara.
O Mattos, aquelle animal, só na vespera lhe dera o costume para o baile:
e, qual é o seu horror, ao vêr que lhe arranjara, em logar de
uma espada artistica, um sabre da guarda municipal! Tivera vontade de lh’o
passar atravez das entranhas. Correu ao tio Abrahão, que só
tinha espadins de côrte, reles e pelintras como a propria côrte!
Lembrara-se do Craft e da sua collecção; vinha de lá;
mas ahi eram uns espadões de ferro, catanas pesando arrobas, as durindanas
tremendas dos brutos que conquistaram a India… Nada que lhe servisse. Fôra
então que lhe tinham vindo á idéa as panóplias
antigas do Ramalhete.
– Tu é que deves ter… Eu preciso uma espada longa e fina, com os
copos em concha, d’aço rendilhado, forrados de velludo escarlate. E
sem cruz, sobretudo sem cruz!
Affonso, tomando logo um interesse paternal por aquella difficuldade do John,
lembrou que havia no corredor, em cima, umas espadas hespanholas…
– Em cima, no corredor? exclamou Ega, já com a mão no reposteiro.
Inutil precipitar-se, o bom John não as poderia encontrar. Não
estavam á vista, arranjadas em panoplia, conservavam-se ainda nos caixões
em que tinham vindo de Bemfica.
– Eu lá vou, homem fatal, eu lá vou, disse Carlos, erguendo-se
com resignação. Mas olha que ellas não têem bainhas.
Ega ficou succumbido. E foi ainda Affonso que achou uma idéa, o salvou.
– Manda fazer uma simples bainha de velludo negro; isso faz-se n’uma hora.
E manda-lhe cozer ao comprido rodellas de velludo escarlate…
– Explendido, gritou Ega: o que é ter gosto!
E apenas Carlos sahiu, trovejou contra o Mattos.
– Veja v. ex.ª isto, um sabre da guarda municipal! E é quem faz
ahi os fatos para todos os theatros! Que idiota!… E é tudo assim,
isto é um paiz insensato!…
– Meu bom Ega, tu não queres tornar de certo Portugal inteiro, o Estado,
sete milhões d’almas, responsaveis por esse comportamento do Mattos?
– Sim senhor, exclamava o Ega passeiando pelo gabinete, com as mãos
enterradas nos bolsos do paletot; sim senhor, tudo isso se prende. O costumier
com um fato do seculo XIV manda um sabre da guarda municipal; por seu lado
o ministro, a proposito de impostos, cita as Meditações de Lamartine;
e o litterato, essa besta suprema…
Mas calou-se, vendo a espada que Carlos trazia na mão, uma folha do
seculo XVI, de grande tempera, fina e vibrante, com copos trabalhado como
uma renda – e tendo gravado no aço o nome illustre do espadeiro, Francisco
Ruy de Toledo.
Embrulhou-a logo n’um jornal, recusou á pressa o almoço que
lhe ofereciam, deu dous vivos shake-hands, atirou o chapéu para a nuca,
ia abalar, quando a voz de Affonso o deteve:
– Ouve la, John, dizia o velho alegremente, isso é uma espada cá
da casa, que nunca brilhou sem gloria, creio eu… Vê como te serves
d’ella!
Ao pé do resposteiro, Ega voltou-se, exclamou, apertando contra o peito
do paletot o ferro, enrolado no Jornal do Commercio:
– Não a sacarei sem justiça, nem a embainharei sem honra. Au
revoir!
– Que vida, que mocidade! murmurou Affonso. Muito feliz é este John!…
Pois vae-te arranjando filho, que já tocou a primeira vez para o almoço.
Carlos ainda se demorou um instante a reler, com um sorriso, a apparatosa
carta do Gouvarinho; e ia emfim chamar o Baptista para se vestir, quando em
baixo, á entrada particular, o timbre electrico começou a vibrar
violentamente. Um passo ancioso ressoou na ante-camara, o Damaso appareceu
esbaforido, d’olho esgazeado, com a face em braza. E, sem dar tempo a que
Carlos exprimisse a surpreza de o ver emfim no Ramalhete, exclamou, lançando
os braços ao ar:
– Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que venhas d’ahi, que me venhas
ver um doente… Eu te explicarei… É aquella gente brazileira. Mas
pelo amor de Deus, vem depressa, menino!
Carlos erguera-se, pallido:
– É ella?
– Não, é a pequena, esteve a morrer… Mas veste-te, Carlinhos,
veste-te, que a responsabilidade é minha!
– É um bébé, não é?
– Qual bébé!… É uma pequena crescida, de seis annos…
Anda d’ahi!
Carlos, já em mangas de camisa, estendia o pé ao Baptista, que,
com um joelho em terra, apressado tambem, quasi fez saltar os botões
da bota. E Damaso, de chapéu na cabeça, agitava-se, exagerando
a sua impaciencia, a estalar de importancia.
– Sempre a gente se vê em coisas!… Olha que responsabilidade a minha!
Vou visital-os, como costumo ás vezes, de manhã… E vae, tinham
partido
para Queluz.
Carlos voltou-se, com a sobrecasaca meia vestida:
– Mas então?…
– Escuta, homem! Foram para Queluz, mas a pequena ficou com a governanta…
Depois do almoço deu-lhe uma dôr. A governante queria um medico
inglez, porque não falla senão inglez… Do hotel foram procurar
o Smith, que não appareceu… E a pequena a morrer!… Felizmente,
cheguei eu, e lembrei-me logo de ti… Foi sorte encontrar-te, caramba!
E acrescentou, dando um olhar ao jardim:
– Tambem, irem a Queluz com um dia d’estes! Hão-de-se divertir… Estás
prompto, hein? Eu tenho lá em baixo o coupé… Deixa as luvas,
vaes muito bem sem luvas!
– O avô que não me espere para almoçar, gritou Carlos
ao Baptista, já do fundo da escada.
Dentro do coupé, um ramo enorme enchia quasi o assento.
– Era para ella, disse o Damaso, pondo-o sobre os joelhos. Pela-se por flores.
Apenas o coupé partiu, Carlos cerrando a vidraça, fez a pergunta
que desde a apparição do Damaso lhe faiscava nos labios.
– Mas então tu, que querias quebrar a cara a esse Castro Gomes?…
O Damaso contou logo tudo, triumphante. Fôra tudo um equivoco! Ah, as
explicações do Castro Gomes tinham sido d’um gentleman. Senão
quebrava-lhe a cara. Isso não, desconsiderações, a ninguem!
a ninguem! Mas fôra assim: os bilhetes de visita que elle lhe deixara
conservavam o seu adresse do Grand Hotel em Paris. E o Castro Gomes, suppondo
que elle vivia lá, obdecendo á indicação, mandara
para lá os seus cartões! Curioso, hein? E de estupido… E a
falta de resposta aos telegrammas fôra culpa de Madame, descuido, n’aquelle
momento de afflicção, vendo o marido com o braço escavacado…
Ah, tinham-lhe dado satisfações humildes. E agora eram intimos,
estava lá quasi sempre…
– Emfim, menino, um romance… Mas isso é para mais tarde!
O coupé parara á porta do Hotel Central. Damaso saltou, correu
ao guarda portão.
Mandou o telegramma, Antonio?
– Já lá vae…
– Tu comprehendes, dizia elle a Carlos, galgando as escadas, mandei-lhes logo
um telegramma para o hotel em Queluz. Não estou para ter mais responsabilidades!…
No corredor, defronte do escriptorio, um criado passava, com um guardanapo
debaixo do braço:
– Como está a menina? gritou-lhe o Damaso.
O criado encolheu os hombros, sem comprehender.
Mas Damaso já trepava o outro lanço de escada, soprando, gritando:
– Por aqui Carlos, eu conheço isto a palmos! Numero 26!
Abriu com estrondo a porta do numero 26. Uma criada, que estava á janella,
voltou-se.
Ah bonjour, Melanie! exclamava Damaso, no seu extraordinario francez. A creança
estava melhor? l’enfant etait meilleur? Ali lhe trazia o doutor, monsieur
le docteur Maia.
Melanie, uma rapariga magra e sardenta, disse que Mademoiselle estava mais
socegada, e ella ia avisar miss Sarah, a governanta. Passou o espanador pelo
marmore d’uma console, ageitou os livros sobre a meza, e sahiu, dardejando
a Carlos um olhar vivo como uma faisca.
A sala era espaçosa, com uma mobilia de réps azul, e um grande
espelho sobre a console dourada, entre as duas janellas: a meza estava coberta
de jornaes, de caixas de charutos, e de romances de Cappendu; sobre uma cadeira,
ao lado, ficára enrolado um bordado.
– Esta Melanie, esta desleixada, murmurava o Damaso, fechando a janella com
um esforço sobre o feixo perro. Deixar assim tudo aberto! Jesus, que
gente!
– Este cavalheiro é bonapartista, disse Carlos, vendo sobre a meza
os numeros do Pays.
– Isso, temos questões terriveis! exclamou o Damaso. E eu enterro-o
sempre… É bom rapaz, mas tem pouco fundo.
Melanie voltou pedindo a Monsieur le Docteur para entrar um instante no gabinete
de toilette. E ahi, depois de apanhar uma toalha cahida, de dardejar a Carlos
outro olharsinho petulante, disse que Miss Sarah vinha immediatamente, e retirou-se
na ponta dos sapatos. Fóra, na sala, ergueu-se logo a voz do Damaso,
fallando a Melanie de sa responsabilité, et que il etait très
affligé.
Carlos ficou só, na intimidade d’aquelle gabinete de toilette, que
n’essa manhã ainda não fôra arrumado. Duas malas, pertencentes
de certo a Madame, enormes, magnificas, com fecharias e cantos de aço
polido, estavam abertas: d’uma trasbordava uma cauda rica, de seda forte côr
de vinho: e na outra era um delicado alvejar de roupa branca, todo um luxo
secreto e raro de rendas e baptistes, d’um brilho de neve, macio pelo uso
e cheirando bem. Sobre uma cadeira alastrava-se um monte de meias de seda,
de todos os tons, unidas, bordadas, abertas em renda, e tão leves,
que uma aragem as faria voar; e, no chão corria uma fila de sapatinhos
de verniz, todos do mesmo estylo, longos, com o tacão baixo, e grandes
fitas de laçar. A um canto estava um cesto acolchoado de seda côr
de rosa, onde de certo viajara a cadellinha.
Mas o olhar de Carlos prendia-se sobre tudo a um sophá onde ficára
estendido, com as duas mangas abertas, á maneira de dous braços
que se offerecem, o casaco branco de velludo lavrado de Genova com que elle
a vira, a primeira vez, apear-se á porta do hotel. O forro, de setim
branco, não tinha o menor acolxoado, tão perfeito devia ser
o corpo que vestia: e assim, deitado sobre o sophá, n’essa attitude
viva, n’um desabotoado de semi-nudez, adiantando em vago relevo o cheio de
dois seios, com os braços alargando-se, dando-se todos, aquelle estofo
parecia exhalar um calor humano, e punha ali a fórma d’um corpo amoroso,
desfallecendo n’um silencio d’alcova. Carlos sentiu bater o coração.
Um perfume indefinido e forte de jasmim, de marechala, de tanglewood, elevava-se
de todas aquellas cousas intimas, passava-lhe pela face com um bafo suave
de caricia…
Então desviou os olhos, approximou-se da janella, que tinha por perspectiva
a fachada enxovalhada do hotel Shneid. Quando se voltou, miss Sarah estava
diante d’elle, vestida de preto e muito córada: era uma pessoa sympathica,
redondinha e pequena, com um ar de rola farta, os olhos sentimentaes, e uma
testa de virgem sob bandós lisos e louros. Balbuciava umas palavras
em francez, em que Carlos só percebeu docteur.
– Yes, I am the doctor, disse elle.
A face da boa ingleza illuminou-se. Oh! era tão bom, ter emfim com
quem se entender! A menina estava muito melhor! Oh, o doutor vinha livral-
a d’uma responsabilidade!…
Abriu o reposteiro, fêl-o penetrar n’um quarto com as janellas todas
cerradas, onde elle apenas distinguiu a fórma d’um grande leito e o
brilho de cristaes n’um toucador. Perguntou para que eram aquellas trevas?
Miss Sarah pensara que a escuridão faria bem á menina, e a adormeceria.
E trouxera-a ali para o quarto da mamã, por ser mais largo e mais arejado.
Carlos fez abrir as janellas: e, quando a grande luz entrou, ao avistar a
pequena no leito, sob os cortinados abertos, não conteve a sua admiração.
– Que linda creança!
E ficou um instante a contemplal-a, n’um enlevo d’artista, pensando que os
brancos mais mimosos, mais ricos, sob a mais sabia combinação
de luz, não egualariam a pallidez eburnea d’aquella pelle maravilhosa:
e esta adoravel brancura era ainda realçada por um cabello negro, tenebroso,
forte, que reluzia sob a rede. Os seus por dois olhos grandes, d’um azul profundo
e liquido, pareciam n’esse instante maiores, muito serios, e muito abertos
para elle.
Estava encostada a um grande travesseiro, toda quieta, com o susto ainda da
dôr, perdida n’aquelle vasto leito, e apertando nos braços uma
enorme boneca paramentada, de pello riçado, d’olhos tambem azues e
arregalados tambem.
Carlos tomou-lhe a mãosinha e beijou-lh’a, – perguntando se a boneca
tambem estava doente.
– Cri-cri tambem teve dôr, respondeu ella muito séria, sem tirar
d’elle os seus magnificos olhos. Eu já não tenho…
Estava com effeito fresca como uma flor, com a lingoasinha muito rosada, e
a sua vontade já de lunchar.
Carlos tranquillisou miss Sarah. Oh, ella via bem que mademoiselle estava
boa. O que a assustara fôra achar-se ali só, sem a mamã,
com aquella responsabilidade. Por isso a tinha deitado… Oh se fosse uma
creança ingleza saía com ella para o ar… Mas estas meninas
estrangeiras, tão debeis, tão delicadas… E o labiosinbo gordo
da ingleza trahia um desdem compassivo por estas raças inferiores e
deterioradas.
– Mas a mamã não é doente?
Oh, não! Madame era muito forte. O senhor, esse sim, parecia mais fraco…
– E, como se chama a minha querida amiga? perguntou Carlos, sentado á
cabeceira do leito.
– Esta é Cri-cri, disse a pequena, apresentando outra vez a boneca.
Eu chamo-me Rosa, mas o papá diz que eu que sou Rosicler.
– Rosicler? realmente? disse Carlos sorrindo d’aquelle nome de livro de cavallaria,
rescendente a torneios, e a bosques de fadas.
Então, como colhendo simplesmente informações de medico,
perguntou a miss Sarah se a menina sentira a mudança de clima. Habitavam
ordinariamente Paris, não é verdade?
Sim, viviam em Paris no inverno, no parque Monceaux; de verão iam para
uma quinta da Touraine, ao pé mesmo de Tours, onde ficavam até
ao começo da caça; e iam sempre passar um mez a Dieppe. Pelo
menos fora assim, nos ultimos tres annos, desde que ella estava com Madame.
Emquanto a ingleza fallava, Rosa, com a sua boneca nos braços, não
cessava de olhar Carlos gravemente e como maravilhada. Elle, de vez em quando,
sorria-lhe, ou acariciava-lhe a mãosinha. Os olhos da mãe eram
negros: os do pae d’azeviche e pequeninos: quem herdara ella aquellas maravilhosas
pupillas d’um azul tão rico, liquido e doce.
Mas a sua visita de medico findara, ergueu-se para receitar um calmante. Emquanto
a ingleza preparava muito cuidadosamente o papel, e experimentava a pena,
elle examinou um momento o quarto. N’aquella installação banal
d’hotel, certos retoques d’uma elegancia delicada revelavam a mulher de gosto
e de luxo: sobre a commoda e sobre a meza havia grandes ramos de flores: os
travesseiros e os lençoes não eram do
hotel, mas proprios, de bretanha fina, com rendas e largos monogrammas bordados
a duas côres. Na poltrona que ella usava uma cachemira de Tarnah disfarçava
o medonho reps desbotado.
Depois, ao escrever a receita, Carlos notou ainda sobre a meza alguns livros
de encadernações ricas, romances e poetas inglezes: mas destoava
ali, estranhamente, uma brochura singular – o Manual de interpretação
dos sonhos. E ao lado, em cima do toucador, entre os marfins das escovas,
os cristaes dos frascos, as tartarugas finas, havia outro objecto estravagante,
uma enorme caixa de pó de arroz, toda de prata dourada, com uma magnifica
safira engastada na tampa dentro d’um circulo de brilhantes miudos, uma joia
exagerada de cocotte, pondo ali uma dissonancia audaz de explendor brutal.
Carlos voltou junto do leito, e pediu um beijo a Rosicler: ella estendeu-lhe
logo a boquinha fresca como um botão de rosa; elle não ousou
beijal-a assim n’aquelle grande leito da mãe, e tocou-lhe apenas na
testa.
– Quando vens tu outra vez? perguntou ella agarrando-o pela manga do casaco.
– Não é necessario vir outra vez, minha querida. Tu estás
boa, e Cri-cri tambem.
– Mas eu quero o meu lunch… Dize a Sarah que eu posso tomar o meu lunch…
E Cri-cri tambem.
– Sim já podeis ambas petiscar alguma cousa…
Fez as suas recommendações á mestra, e depois, apertando
a mãosinba da pequena:
– E agora adeus, minha linda Rosicler, uma vez que és Rosicler…
E não quiz ser menos amavel com a boneca, deu-lhe tambem um shake-hands.
Isto pareceu captivar Rosa ainda mais. A ingleza, ao lado, sorria, com duas
covinhas na face.
Não era necessario, lembrou Carlos, conservar a creança na cama,
nem tortural-a com cautellas exageradas…
– Oh, nò, sir!
E se a dôr reapparecesse, ainda que ligeira, mandal-o logo chamar…
– Oh yes, sir!
E ali deixava o seu bilhete, com a sua adresse.
– Oh thank you, sir!
Ao voltar á sala, o Damaso saltou do sophá, onde percorria um
jornal, como uma féra a quem se abre a jaula.
– Credo, imaginei que ias lá ficar toda a vida! Que estivestes tu a
fazer? Irra, que estopada!
Carlos, calçando as luvas, sorria, sem responder.
– Então, é cousa de cuidado?
– Não tem nada. Tem uns lindos olhos… E um nome extraordinario.
– Ah, Rosicler, murmurou Damaso, agarrando o chapéo com mau modo; muito
ridiculo, não é verdade?
A creada franceza appareceu outra vez a abrir a porta da sala, – dardejando
para Carlos o mesmo olhar quente e vivo. Damaso recommendou-lhe muito que
dissesse aos senhores, que elle tinha vindo logo com o medico; e que havia
de voltar á noite para lhes fazer uma surpreza, e para saber se tinham
gostado de Queluz – si ils avaient aimè Queluz.
Depois, ao passar diante do escriptorio, metteu a cabeça, para dizer
ao guarda-livros, que a menina estava boa, tudo ficava em socego.
O guarda livros sorrio e cortejou.
– Queres que te vá levar a casa? perguntou elle a Carlos, em baixo,
abrindo a porta do coupé, ainda com um resto de mau humor.
Carlos preferia ir a pé.
– E acompanha-me tu um bocado, Damaso, tu agora não tens que fazer.
Damaso hesitou, olhando o céu aspero, as nuvens pesadas de chuva. Mas
Carlos tomara-lhe o braço, arrastava-o, amavel e gracejando.
– Agora que te tenho aqui, velhaco, homem fatal, quero o romance… Tu disseste
que tinhas um romance. Não te largo. És meu. Venha o romance.
Eu sei que os tens sempre bons. Quero o romance!
Pouco a pouco Damaso sorria, as bochechas esbrazeavam-se-lhe de satisfação.
– Vae-se fazendo pela vida, disse elle a estoirar de jactancia.
– Vocês estiveram em Cintra?…
– Estivemos, mas isso não foi divertido… O romance é outro!
Desprendeu-se do braço de Carlos, fez um signal ao cocheiro para que
os seguisse, e regalou-se pelo Aterro fóra de contar o seu romance.
– A coisa é esta… O marido d’aqui a dias vai para o Brazil, tem lá
negocíos. E ella fica! Fica com as criadas e com a pequena, á
espera, dois ou tres mezes. Diz que já andaram até a vêr
casas mobiladas, que ella não quer estar no hotel… E eu, intimo,
a unica pessoa que ella conhece, mettido de dentro… Hein, percebes agora?
– Perfeitamente, disse Carlos, arrojando para longe o charuto, com um gesto
nervoso. E de certo, a pobre creatura já está fascinada! Já
lhe déste, como costumas, um beijo ardente entre duas portas! Já
a desgraçada se surtiu da caixa de phosphoros, para mais tarde quando
a abandonares!
Damaso enfiava.
– Não venhas já tu com o espirito e com a chufasinha… Não
lhe dei beijos que ainda não houve occasião… Mas, o que te
posso dizer, é que tenho mulher!
– Pois já era tempo, exclamou Carlos, sem conter um gesto brusco, e
atirando-lhe as palavras como chicotadas. Já era tempo! Andavas ahi
mettido com umas creaturas ignobeis, uma ralé de lupanar… Emfim,
agora ha progresso. E eu gosto que os meus amigos vivam n’uma ordem de sentimentos
decentes… Mas vê lá… Não sejas o costumado Damaso!
Não te vás pôr a alardear isso pelo Gremio e pela casa
Havaneza!
D’esta vez Damaso estacou, suffocado, sem comprehender aquelle modo, semelhante
azedume. E terminou por balbuciar, livido:
– Tu podes entender muito de medicina e de bric-a-brac, mas lá a respeito
de mulheres, e da maneira de fazer as cousas, não me dás licções…
Carlos olhou-o, com um desejo brutal de o espancar. E de repente, sentio-o
tão innofensivo, tão insignificante, com o seu ar bochechudo,
e molle, que se envergonhou do surdo despeito que o atravessara, tomou-lhe
o braço, teve duas palavras amaveis.
– Damaso, tu não me comprehendeste. Eu não te quiz fazer zangar…
É para teu bem… O que eu receava é que tu, imprudente, arrebatado,
apaixonado, fosses perder essa bella aventura por uma indiscríção…
E o outro ficou logo contente, sorrindo já, abandonando-se ao braço
do seu amigo, certo que o desejo do Maia era que elle tivesse uma amante chic.
Não, elle não se tinha zangado, nunca se zangava com os intimos…
Comprehendia bem que o que Carlos dizia era por amisade…
– Mas tu, ás vezes, tens essa cousa que te pegou o Ega, gostas do teu
bocadinho de espirito…
E então tranquillisou-o. Não, por imprudencia não havia
elle de «perder a cousa». Aquillo ia com todas as regras. Lá
n’isso sobrava-lhe experiencia. A Melanie já a tinha na mão;
já lhe dera duas libras.
– Isto de mais a mais é uma cousa muito seria… Ella conhece meu tio,
é intima d’elle desde pequena, tratam-se até por tu…
– Que tio?
– Meu tio Joaquim… Meu tio Joaquim Guimarães. Mr. de Guimaran, o
que vive em Paris, o amigo de Gambetta…
– Ah sim, o communista…
– Qual communista, até tem carruagem!
Subitamente lembrou-lhe outra cousa, um ponto de toilette em que queria consultar
Carlos.
– Ámanhã vou jantar com elles, e vão tambem dois brazileiros,
amigos d’elle, que chegaram ahi ha dias, e que partem pelo mesmo paquete…
Um é chic, é da Legação do Brazil em Londres.
De maneira que é jantar de ceremonia. O Castro Gomes não me
disse nada; mas que te parece, achas que vá de casaca?…
– Sim, atira-lhe casaca, e uma boa rosa na lapella.
O Damaso olhou-o, pensativo.
– A mim tinha-me lembrado o habito de Christo.
– O habito de Christo… Sim, põe o habito de Christo ao pescoço,
e põe a rosa na botoeira.
– Será talvez de mais, Carlos!
– Não, fica bem ao teu typo.
Damaso fizera parar o coupé que os tinha seguido a passo. E no ultimo
aperto de mão a Carlos:
– Tu sempre vaes á noite, aos Cohens, de dominó? O meu fato
de selvagem ficou divino. Eu venho mostral-o á noite á brazileira…
Entro no Hotel embrulhado n’um capote, e appareço-lhes de repente na
sala, de selvagem, de Nelusko, a cantar:
Alerta, marinari,
Il vento cangia…
Chic a valer!… Good bye!
Ás dez horas Carlos vestia-se para o baile dos Cohens. Fóra,
a noite fizera-se tenebrosa, com lufadas de vento, pancadas d’agoa, que a
cada instante batiam agrestemente o jardim. Ali, no gabinete de toilette,
errava no ar tepido um vago aroma de sabonete e de bom charuto. Sobre duas
commodas de pau preto, marchetadas a marfim, duas serpentinas de velho bronze
erguiam os seus molhos de vellas accezas, pondo largos reflexos doces sobre
a seda castanha das paredes. Ao lado do alto espelho-psyché alastrava-se,
em cima d’uma poltrona, o dominó de já setim negro com um grande
laço azul-claro.
Baptista, com a casaca na mão, esperava que Carlos acabasse a chavena
de chá preto que elle estava bebendo aos golos, de pé, em mangas
de camisa, e de gravata branca.
De repente, o timbre electrico da porta particular reteniu, apressado e violento.
– Talvez outra surpreza, murmurou Carlos, hoje é o dia das surprezas…
Baptista sorriu, ia pousar a casaca para abrir – quando em baixo vibrou outro
repique brutal, d’uma impaciencia phrenetica.
Então Carlos, curioso, sahiu á ante-camara: e ahi, á
meia luz das lampadas Carcel, ainda quebrantada pelo tom dos velludos côr
de cereja, viu, ao abrir-se a porta por onde entrou um sopro aspero da noite,
apparecer vivamente uma fórma esguia e vermelha, com um confuso tinir
de ferro. Depois, pela escada acima, duas pennas negras de gallo ondearam,
um manto escarlate esvoaçou – e o Ega estava diante d’elle, caracterisado,
vestido de Mephistopheles!
Carlos apenas poude dizer bravo – o aspecto do Ega emmudeceu-o. Apezar dos
toques de caracterisação que quasi o mascaravam, sobrancelhas
de diabo, guias de bigode ferozmente exageradas – sentia-se bem a afflicção
em que vinha, com os olhos injectados, perdido, n’uma terrivel pallidez. Fez
um gesto a Carlos, arremessou-se pelo gabinete dentro. Baptista, logo, discretamente,
retirou-se cerrando o reposteiro.
Estavam sós. Então Ega, apertando desesperadamente as mãos,
n’uma voz rouca e d’agonia:
– Tu sabes o que me succedeu, Carlos?
Mas não poude dizer mais, suffocado, tremendo todo; e diante d’elle,
devorando-o com os olhos, Carlos tremia tambem, enfiado.
– Cheguei a casa dos Cohens, continuou Ega por fim com esforço e quasi
balbuciando, mais cedo, como tinhamos combinado. Ao entrar na sala, já
estavam duas ou tres pessoas… Elle vem direito a mim, e diz-me: «Você,
seu infame, ponha-se já no meio da rua… Já no meio da rua
senão, diante d’esta gente, corro-o a pontapés!» E eu,
Carlos…
Mas a colera outra vez abafou-lhe a voz. E esteve um momento mordendo os beiços,
recalcando os soluços, com os olhos reluzentes de lagrimas.
Quando as palavras voltaram, foi uma explosão selvagem:
– Quero-me batter em duello com aquelle malvado, a cinco passos, metter-lhe
uma bala no coração!
Outros sons estrangulados escaparam-se-lhe da garganta; e, batendo furiosamente
o pé, esmurrando o ar, berrava, sem cessar, como cevando-se na estridencia
da propria voz.
– Quero matal-o! Quero matal-o! Quero matal-o!
Depois, allucinado, sem ver Carlos, rompeu a passear desabridamente pelo quarto,
ás patadas, com o manto deitado para traz, a espada mal afivelada batendo-lhe
as canellas escarlates.
– Então descobriu tudo, murmurou Carlos.
– Está claro que descobriu tudo! exclamou o Ega, no seu passear arrebatado,
atirando os braços ao ar. Como descobriu, não sei. Sei isto,
já não é pouco. Poz-me fóra!… Hei-de-lhe metter
uma bala no corpo! Pela alma de meu pae, hei-de-lhe varar o coração!…
Quero que vás lá logo pela manhã com o Craft… E as
condições são estas: á pistolla, a quinze passos!
Carlos, agora outra vez sereno, acabava a sua chavena de chá. Depois
disse muito simplesmente:
– Meu querido Ega, tu não podes mandar desafiar o Cohen.
O outro estacou de repellão, atirando pelos olhos dois relampagos d’ira
– a que as medonhas sobrancelhas de crepe, as duas pennas de gallo ondeando
na gorra, davam uma ferocidade theatral e comica.
– Não o posso mandar desafiar?
– Não.
– Então põe-me fóra de casa…
– Estava no seu direito.
– No seu direito!… Diante de toda a gente?…
– E tu, não eras amante da mulher diante de toda a gente?…
O Ega ficou a olhar um momento para Carlos, como atordoado. Depois fez um
grande gesto:
– Não se trata da mulher!… não se fallou da mulher!… É
uma questão d’honra para mim, quero mandal-o desafiar, quero matal-o…
Carlos encolheu os hombros.
– Tu não estás em ti. Tens só uma coisa a fazer; é
ficar ámanhã em casa, a vêr se elle te manda desafiar
a ti…
– O que, o Cohen! exclamou Ega. É um covarde, é um canalha!…
Ou o mato, ou lhe rasgo a cara com um chicote. Desafiar-me! Olha quem… Tu
estás doido…
E recomeçou o seu passear desabalado do espelho para a janella, soprando,
rilhando os dentes, com repellões para traz ao manto que faziam oscillar,
nas serpentinas, as chammas altas das vellas.
Carlos não dizia nada, de pé junto da meza, enchendo lentamente
de novo a sua chavena. Tudo aquillo começava a parecer-lhe pouco serio,
pouco digno, as ameaças de pontapés do marido, os furores melodramaticos
do Ega: – e mesmo não podia deixar de sorrir diante d’aquelle Mephistopheles
esgouroviado, espalhando pelo quarto o brilho escarlate do seu manto de velludo,
e a fallar furiosamente d’honra e de morte, com sobrancelhas postiças,
e escarcella de coiro á cinta.
– Vamos fallar ao Craft! exclamou de repente Ega, parando, com esta brusca
resolução. Quero vêr o que diz o Craft. Tenho lá
em baixo uma tipoia, estamos lá n’um instante!
– Ir agora á quinta, aos Olivaes? disse Carlos, olhando o relogio.
– Se és meu amigo, Carlos!…
Carlos immediatamente, sem chamar o Baptista, acabou de se vestir.
Ega, no entanto, ia preparando uma chavena de chá, deitando-lhe rhum,
ainda tão nervoso, que mal podia segurar a garrafa. Depois, com um
grande suspiro, accendeu uma cigarrete. Carlos entrára na alcova de
banho, ao lado, allumiada por um forte jacto de gaz que assobiava. Fóra,
a chuva continuava seguida e monotona, as goteiras escoavam-se no chão
molle do jardim.
– Achas que a tipoia aguentará? perguntou Carlos de dentro.
– Aguenta, é o Canhôto, disse Ega.
Agora reparara no dominó, fôra erguel-o, examinava-lhe o setim
rico, o bello laço azul claro. Depois, tendo encontrado diante de si
o grande espelho-psyché, entalou o monoculo no olho, recuou um passo,
contemplou-se d’alto a baixo; – e terminou por pousar uma das mãos
na cinta, appoiar a outra, galhardamente, sobre os copos da espada.
– Eu não estava mal, oh Carlos, hein?
– Estavas explendido, respondeu o outro de dentro da alcova. Foi pena estragar-se
tudo… Como estava ella?
– Devia estar de Margarida.
– E elle?
– A besta? De beduino.
E continuou ao espelho, gosando a sua figura esguia, as pennas da gorra, os
sapatos bicudos de velludo, e a ponta flamante da espada erguendo o manto
por traz, n’uma prega fidalga.
– Mas então, disse Carlos, apparecendo a enxugar as mãos, tu
não fazes idéa do que se passou, o que elle diria á mulher,
o escandalo…
– Não faço idéa nenhuma, disse o Ega, agora mais sereno.
Quando entrei na primeira sala estava elle, de beduino; estava um outro sujeito
d’urso, e uma senhora não sei de que, de Tyrollesa creio eu… Elle
veiu para mim, e disse-me aquillo: ponha-se fóra! Não sei mais
nada… Nem posso perceber… O canalha, se descobriu, naturalmente, para
não estragar a festa, não disse nada a Rachel… Depois é
que ellas são!
Ergueu as mãos para o ceu, murmurou:
– É horroroso!
Deu ainda uma volta pelo quarto, e depois n’uma outra voz, franzindo a face:
– Não sei que diabo aquelle Godefroy me deu para collar as sobrancelhas,
que me picam que tem diabo!
– Tira-as…
Deante do espelho, Ega hesitava em desmanchar o seu semblante feroz de Santanaz.
Mas arrancou-as por fim – e a gorra emplumada, muito justa, que lhe escaldava
a cabeça. Então Carlos lembrou-lhe que, para ir a casa do Craft,
se desembaraçasse do manto e da espada, se agasalhasse n’um paletot
d’elle. Ega deu ainda um longo e mudo olhar ao seu flamejante traje infernal,
e com um profundo suspiro começou a desafivelar o talim. Mas o paletot
era muito largo, muito comprido; teve de lhe dar uma dobra nas mangas. Depois
Carlos metteu-lhe um bonet escossez na cabeça. – E assim arranjado,
com as canellas vermelhas de diabo apparecendo sob o paletot, a gargantilha
escarlate á Carlos IX emergindo da gola, a velha casqueta de viagem
na nuca, o pobre Ega tinha o ar lamentavel d’um Satanaz pelintra, agasalhado
pela caridade d’um gentleman, e usando-lhe o fato velho.
Baptista allumiou, grave e discreto. Ega ao passar por elle, murmurou:
– Isto vae mal, Baptista, isto vae mal…
O velho creado teve um movimento triste d’hombros, como significando que nada
no mundo ia bem.
Na rua negra, a parelha quieta dobrava a cabeça sob a chuva. O Canhoto,
ao ouvir fallar d’uma gorgeta de libra, fez um grande espalhafato, rompeu
ás chicotadas; e a velha traquitana lá partiu a galope, a escorrer
d’agua, atroando a calçada.
Por vezes um coupé particular crusava-os, os casacos de gutta-perche
dos criados branquejavam á luz das lanternas. Então a idéa
da festa que devia agora resplandecer; Margarida ignorando tudo, walsando
nos braços d’outros, anciosa, á espera d’elle; a ceia depois,
o champagne, as cousas brilhantes que elle teria dito – todas estas delicias
perdidas se vinham cravar no coração do pobre Ega, arrancavam-lhe
pragas surdas, Carlos fumava silenciosamente, com o pensamento no Hotel Central.
Depois de Santa Apolonia a estrada começou, infindavel, desabrigada,
batida pelo ar agreste do rio. Nenhum dizia uma palavra, cada um para o seu
canto, arripiados na friagem que entrava pelas gretas da tipoia. Carlos não
cessava de vêr o casaco branco de velludo, com as duas mangas abertas,
como dois braços que se offereciam…
Passava da uma hora quando chegaram á quinta: a sineta do portão,
aos puxões do cocheiro encharcado, retumbou lugubre n’aquelle silencio
escuro
de aldeia. Um cão ladrou furiosamente: outros latidos ao longe responderam;
e ainda esperaram muito, antes que um creado, somnolento e resmungão,
apparecesse com uma lanterna. Uma rua d’acacias conduzia á casa: o
Ega praguejava, enterrando os seus bellos sapatos de velludo no chão
lamacento.
Craft, surprehendido com aquelle tumulto, veiu-lhes ao encontro no corredor,
de robe-de-chambre, e a Revista dos Dois Mundos debaixo do braço. Percebeu
logo que havia desastre. Levou-os em silencio para o seu gabinete onde um
bom lume de carvão na chaminé aquecia, alegrava o aposento todo
estofado de cretones claros. Ambos foram direitos ao lume.
Ega rompera logo a contar o seu caso – emquanto Craft, sem espanto nem exclamações,
ia preparando methodicamente sobre a meza tres grogs de cognac e limão.
Carlos, sentado ao pé do fogão, aquecia os pés: e Craft
veiu acabar de ouvir o Ega, accomodando-se tambem na sua poltrona, do outro
lado da chaminé, com o seu cachimbo na bocca.
– Emfim, exclamou Ega, de pé, cruzando os braços, que me aconselhas
tu agora?
– Tens a fazer só isto, disse Craft: esperar ámanhã em
casa que elle te mande os seus padrinhos… Que tenho a certeza que não
manda… E depois, se vos baterdes, deixar-te ferir ou matar.
– Perfeitamente o que eu disse, murmurou Carlos, provando o seu grog.
Ega olhou-os a ambos, successivamente, petrificado. E logo, n’um fluxo de
palavras desordenadas, queixou-se de não ter amigos. Ali estava, n’aquella
crise, a maior da sua vida: e em logar de encontrar, nos seus camaradas de
infancia e de Coimbra, apoio, solidariedade, lealdade à tort et à
travers, abandonavam-n’o, pareciam querer enterral-o, e expol-o a irrisões
maiores… Ia-se commovendo; os olhos vermelhejavam-lhe sob as lagrimas. E
quando algum d’elles ia interrompel-o, n’uma palavra de senso, batia o pé,
persistia na sua teima – um desafio, matar o Cohen, vingar-se! Tinha sido
insultado. Não existia outra cousa. Não se tinha fallado na
mulher. Era elle que devia primeiro mandar padrinhos, lavar a sua honra. Havia
pessoas na sala, quando o outro o insultou. Havia um urso, e uma tyrolesa…
E emquanto a deixar-se varar por uma bala, não! Tinha mais direito
a viver que o Cohen, que era um burguez, e um agiota… E elle era um homem
de estudo e de arte! Tinha na cabeça livros, idéas, cousas grandes.
Devia-se ao paiz, á civilisação!… Se fosse ao campo,
era para fazer a sua pontaria, e abater o Cohen, ali, como uma besta immunda…
– Mas o que é, é que não tenho amigos! gritou elle exhausto
por fim, cahindo para o canto d’um sophá.
Craft bebia em silencio, e aos golos, o seu cognac.
Foi Carlos que se ergueu, serio e aspero. Elle não tinha direito de
duvidar da sua amisade. Quando lhe tinha ella faltado? Mas era necessario
não ser pueril, nem theatral… A questão estava simplesmente
em que o Cohen o surprehendera, amando-lhe a mulher. Logo, podia matal-o,
podia entregal-o aos tribunaes, podia escavacal-o na sala a pontapés…
– Ou peor, interrompeu Craft. Mandar-te a senhora, com este bilhetinho: «Guarde-a».
– Ou isso! continuava Carlos. Não, senhor: limita-se a prohibir-te
a entrada em casa, um pouco asperamente, sim, mas indicando que, depois de
ter feito isto, não quer nada mais violento, nem mais dramatico. Teve
portanto um acto de moderação. E tu queres mandal-o desafiar
por isso?…
Mas Ega revoltou-se outra vez, deu um pulo, disparatou pela sala, sem paletot
agora, esguedelhado, parecendo mais phantastico n’aquelle simples gibão
escarlate, com os sapatos de velludo enlameados, as longas pernas de cegonha
cobertas de malha de seda vermelha. E teimava que se não tratava d’isso!
Não, não se tratava da mulher! A questão era outra…
Carlos então zangou-se.
– Para que diabo te expulsou elle de casa então? Não disparates,
homem! Nós estamos-te a dizer o que faz um homem de senso. E é
triste, que te custe tanto a perceber o que manda o senso. Trahiste um amigo
teu… Nada de equivocos! tu declaravas bem alto a tua amisade pelo Cohen.
Trahistel-o, tens de acceitar a lei: se elle te quizer matar tens de morrer.
Se elle não quizer fazer nada, tens de ficar de braços cruzados.
Se elle te quizer chamar ahi por essas ruas um infame, tens de baixar a cabeça,
e reconhecer-te infame…
– Então tenho de engolir a affronta?
Os dois amigos explicaram-lhe que aquelle fato de Satanaz lhe perturbava a
lucidez do criterio mundano – e que chegava a ser torpe fallar elle, Ega,
de affronta.
Ega, outra vez acabrunhado sobre o sophá, conservou um momento a cabeça
enterrada nas mãos.
– Eu já nem sei, disse elle por fim. Vocês devem ter rasão…
Eu estou-me a sentir idiota… Então, vamos, que hei de eu fazer?
– Vocês teem a tipoia á espera? perguntou tranquillamente Craft.
Carlos mandara desapparelhar, recolher o gado esfalfado.
– Excellente! Então, meu caro Ega, tens outra cousa a fazer, antes
de morrer ámanhã talvez, é cear esta noite. Eu ia ceiar,
e por motivos longos d’explicar, ha n’esta casa um peru frio. E ha-de haver
uma garrafa de Bourgonhe…
D’ahi a pouco estavam á mesa – n’aquella bella sala de jantar do Craft,
que encantava sempre Carlos, com as suas tapeçarias ovaes representando
bocados solitarios d’arvoredo, as severas faenças da Persia, e a sua
original chaminé flanqueada por duas figuras negras de Nubios com olhos
rutilantes de crystal. Carlos, que se declarara esfomeado, trinchava já
o perú, emquanto Craft, desarrolhava, com veneração,
duas garrafas do seu velho Chambertin, para reconfortar Mephistopheles.
Mas Mephistopheles, sombrio e com os olhos avermelhados, repelliu o prato,
desviou o copo. Depois, sempre condescendeu em provar o Chambertin.
Pois eu, dizia Craft empunhando o talher, quando vocês chegaram, estava
a lêr um artigo interessante sobre a decadencia do protestantismo em
Inglaterra…
– Que é aquillo, além, n’aquella lata? perguntou Ega, com uma
voz moribunda.
Um pâté de foie-gras. Mephistopheles escolheu com tedio uma trufa.
– Bem bom, este teu Chambertin, suspirou elle.
– Anda come e bebe com franqueza, gritou-lhe Craft. Não te romantises.
Tu o que tens é fome. Todas as tuas idéas esta noite se ressentem
da debilidade!
Então Ega confessou que devia estar fraco. Com aquella excitação
do seu trage de Satanaz nem jantára, contando ceiar bem em casa do
outro… Sim, com effeito, tinha appetite! Excellente foie-gras…
E d’ahi a pouco devorava: foram talhadas de perú, uma porção
immensa de lingua d’Oxford, duas vezes presunto d’York, todas aquellas boas
cousas inglezas que havia sempre em casa do Craft. E elle só bebeu
quasi toda uma garrafa de Chambertin.
O escudeiro fôra preparar o café: e, no entanto, ia-se discutindo,
em todas as hypotheses, a attitude provavel do Cohen com a mulher. Que faria
elle? Talvez lhe perdoasse. Ega affirmava que não: era vaidoso, e de
rancores longos! N’um convento tambem não a fechava, sendo judia…
– Talvez a mate, disse Craft, com toda a seriedade. Ega, já com os
olhos brilhantes do Bourgogne, declarou tragicamente que elle então
entrava n’um mosteiro. Os dois gracejaram, sem piedade. Em que mosteiro queria
elle entrar? Nenhum era congenere com o Ega! Para dominicano era muito magro,
para trapista muito lascivo, muito palrador para jesuita, e para benedictino
muito ignorante… Era necessario crear uma ordem para elle! Craft lembrou
a Santa Blague!
– Vocês não teem coração, exclamou Ega, enchendo
outro grande copo. Vocês não sabem, eu adorava aquella mulher!
Então largou a fallar de Rachel. E teve alli, de certo, os momentos
melhores de toda aquella paixão, – porque poude, sem escrupulo, fazer
reluzir a sua aureola de amante, banhar-se no mar de leite das confidencias
vaidosas. Começou por contar o encontro com ella na Foz – emquanto
Craft, sem perder uma palavra, como quem se instrue, se erguera a abrir uma
garrafa de Champagne. Disse depois os passeios na Cantareira; as cartinhas
ainda hesitantes e platonicas, trocadas entre folhas de livros emprestados,
em que ella se assignava Violetta de Parma; o primeiro beijo, o melhor, surripiado
entre duas portas, emquanto o marido correra acima a buscar-lhe charutos especiaes;
os rendez-vous no Porto, no Cemiterio do Repouso, as pressões ardentes
de mãos á sombra dos cyprestes, e os planos de voluptuosidade
combinados entre as lapides funebres…
– Muito curioso! dizia o Craft.
Mas Ega teve de se calar, o criado entrava com o café. Emquanto se
enchiam as chavenas, e Craft fôra buscar uma caixa de charutos, elle
acabou a garrafa de Champagne, já pallido, com o nariz afilado.
O criado sahiu, correndo o reposteiro de tapeçaria: e logo Ega, com
o calice de cognac ao lado, recomeçou as confidencias, contou a volta
a Lisboa, a Villa Balzac, as manhãs deliciosas passadas lá com
ella no calor d’um ninho d’amor…
Mas agora interrompia-se, vago e com os olhos turvos, enterrando um momento
a cabeça entre os punhos. Depois lá vinha outro detalhe, os
nomes lubricos que ella lhe dava, uma certa coberta de seda preta onde ella
brilhava como um jaspe… Duas lagrimas embaciaram-lhe os olhos, jurou que
queria morrer!
– Se vocês soubessem que corpo de mulher! gritou elle de repente. Oh
meninos, que corpo de mulher… Imaginem vocês um peito…
– Não queremos saber, disse Carlos. Cala-te, tu estás bebado,
miseravel!
Ega ergueu-se, retezando a perna, arrimado de lado á meza.
Bebado! Elle? Ora essa!… Era cousa que não podia, era empiteirar-se.
Tinha feito o possivel, bebido tudo, até agua raz. Nunca! Não
podia…
– Olha, vou pôr aquella garrafa á boca, tu verás… E
fico frio, fico impassivel. A discutir philosophia… Queres que te diga o
que penso de Darwin? É uma besta… Ora ahi tens. Dá cá
a garrafa.
Mas Craft recusou-lh’a; e, um momento Ega ficou oscillando, a olhar para elle,
com a face livida.
– Ou me dás a garrafa… ou me dás a garrafa, ou te metto uma
bala no coração… Não, nem vales a bala… Vou-te dar
uma bolacha!
De repente os olhos cerraram-se-lhe, abatteu-se sobre a cadeira, d’ahi sobre
o chão, como um fardo.
– Terra! disse tranquillamente Craft.
Tocou a campainha, o escudeiro entrou, apanharam João da Ega. E emquanto
o levavam para o quarto dos hospedes e lhe despiam o fato de Satanaz,
não cessou de choramingar, dando beijos babosos pelas mãos de
Carlos, balbuciando:
– Rachelsinha!… Racaqué, minha Raquesinha! gostas do teu bibichinho?…
Quando Carlos partiu na tipoia para Lisboa, não chovia, um vento frio
ia varrendo o ceu, já clareava a alvorada.
Ao outro dia, ás dez horas, Carlos voltou aos Olivaes. Achou Craft
dormindo, e subiu ao quarto do Ega. As janellas tinham ficado abertas, um
largo raio de sol dourava o leito; e elle ressonava ainda, no meio d’aquella
aureola, deitado de lado, com os joelhos contra o estomago, o nariz dentro
dos lençoes.
Quando Carlos o sacudio, o pobre John abriu um olho triste, e bruscamente
ergueu-se sobre o cotovello, espantado para o quarto, para os cortinados de
damasco verde, para um retrato de dama empoada que lhe sorria de dentro da
sua moldura dourada. De certo as memorias da vespera o assaltaram, porque
se enterrou para baixo, com os lençoes até ao queixo; e a sua
face esverdeada, envelhecida, exprimiu a desconsolação de deixar
aquelles fofos colxões, a paz confortavel da quinta – para ir affrontar
a Lisboa toda a sorte de cousas amargas.
– Está frio lá fóra? perguntou elle melancholicamente.
– Não, está um dia adoravel. Mas levanta-te, depressa! Se lá
fôr alguem da parte do Cohen, podem imaginar que fugiste…
Ega deu immediatamente um pulo da cama, e atordoado, esguedelhado, procurava
a roupa, com as canellas nuas, tropeçando contra os moveis. Só
achou o gibão de Satanaz. Chamaram o criado, que trouxe umas calças
de Craft. Ega enfiou-as á pressa: e sem se lavar, com a barba por fazer,
a gola do paletot erguida, enterrou emfim na cabeça o bonet escossez,
voltou-se para Carlos, disse com um ar tragico:
– Vamos a isso!
Craft, que se erguera, foi acompanhal-os ao portão, onde esperava o
coupé de Carlos. Na alameda de acacias, tão tenebrosa na vespera
sob a chuva, cantavam agora os passaros. A quinta, fresca e lavada, verdejava
ao sol. O grande Terra-nova do Craft pulava em roda d’elles.
– Doe-te a cabeça, Ega? perguntou Craft.
– Não, respondeu o outro, acabando de abotoar o paletot. Eu hontem
não estava bebado… O que estava era fraco.
Mas, ao entrar para o coupé, fez, com um ar profundo e philosophico,
esta reflexão:
– O que é a gente beber bons vinhos… Estou como se não fosse
nada!
Craft recommendou que, se houvesse novidade, lhe mandassem um telegramma;
fechou a portinhola, o coupé partiu.
Durante a manhã não veiu telegramma á quinta; e quando
Craft appareceu na Villa Balzac, onde uma carruagem de Carlos esperava á
porta, já escurecera, duas vélas ardiam na triste sala verde.
Carlos, estirado no sophá, dormitava, com um livro aberto sobre o estomago:
e Ega passeiava d’um lado para outro, todo vestido de preto, pallido, com
uma rosa na botoeira. Tinham estado alli na sala, n’aquella sécca,
esperando todo o dia as testemunhas do Cohen.
– Que te dizia eu? Não ha nada, nem podia haver, murmurou Craft.
Mas Ega, agora agitado de idéas negras, temia que elle tivesse assassinado
a mulher! O sorriso sceptico de Craft indignou-o. Quem conhecia melhor o Cohen
do que elle? Sob a apparencia burgueza, era um monstro! Tinha-lhe visto matar
um gato, só por capricho de derramar sangue…
– Tenho um presentimento de desgraça, balbuciou elle aterrado.
E logo n’esse momento a campainha retiniu. Ega acordou precipitadamente Carlos,
empurrou os dois amigos para o quarto de cama. Craft ainda lhe disse que,
áquella hora, não podiam ser os amigos do Cohen. Mas elle queria
estar só na sala: e lá ficou, mais pallido, rigido, muito abotoado
na sobrecasaca, com os olhos cravados na porta.
– Que massada! dizia Carlos dentro, tenteando a escuridão do quarto.
Craft accendeu no toucador um resto de vella. Uma luz triste espalhou-se,
tudo appareceu n’um desarranjo: no meio do chão estava cahida uma camisa
de dormir; a um canto ficara a bacia de banho com agoa de sabão; e,
no centro, o enorme leito, envolto nas suas cortinas de seda vermelha, conservava
uma magestade de tabernaculo.
Um momento estiveram callados. Craft methodico, e como quem se instrue, examinava
o toucador, onde havia um maço de ganchos de cabello, uma liga com
o fecho quebrado, um ramo de violetas murchas. Depois foi olhar o marmore
da commoda; ahi ficara um prato com ossos de frango, e ao lado uma meia folha
de papel escripta a lapis, toda emendada, de certo trabalho litterario do
Ega. Elle achava tudo isto muito curioso.
Da sala, no entanto, vinha um ciciar de vozes subtil e intimo. Carlos escutando,
julgou sentir uma falla abafada de mulher… Impaciente, foi á cozinha.
A criada estava sentada á meza, com a mão mettida pelos cabellos,
sem fazer nada, a olhar para a luz: o pagem, espaparrado n’uma cadeira, chupava
o seu cigarro.
– Quem foi que entrou? perguntou Carlos.
– Foi a criada do sr. Cohen, disse o garoto, escondendo o cigarro atraz das
costas.
Carlos voltou ao quarto, annunciando:
– É a confidente. As cousas terminam amavelmente.
– E como queria você que terminassem? disse Craft. O Cohen tem o seu
Banco, os seus negocios, as suas letras a vencer, o seu credito, a sua respeitabilidade,
todo um arranjo de cousas a que não convém um escandalo… É
isto que calma os maridos. Além d’isso, já se satisfez, já
lhe offereceu pontapes…
N’esse instante houve um rumor na sala, Ega abriu violentamente a porta.
– Não ha nada, exclamou elle, deu-lhe uma coça, e vão
ámanhã para Inglaterra!
Carlos olhou para o Craft – que movia a cabeça, como vendo todas as
suas previsões realisadas, e approvando plenamente.
– Uma coça, dizia o Ega, com os olhos chammejantes e n’uma voz que
sibillava. E depois fizeram as pazes… Vem ainda a ser um menage modelo!
A
bengala purifica tudo… Que canalha!
Estava furioso. N’esse momento odiava Rachel – não perdoando ao seu
idolo ter-se deixado desfazer á paulada. Lembrava-se justamente da
bengala do Cohen, um junco da India, com uma cabeça de galgo por castão.
E aquillo zurzira as carnes que elle tinha apertado com paixão! Aquillo
pozera vergões roxos onde os seus labios tinham avivado signaes côr
de rosa! E tinham feito as pazes. E assim terminava, relles e chinfrim, o
romance melhor da sua vida! Preferiria sabel-a morta, a sabel-a espancada.
Mas não! levava a sova, deitava-se depois com o marido, e elle mesmo,
decerto arrependido, chamando-lhe nomes doces, a ajudava, em ceroulas, a fazer
as applicações de arnica! Aquillo acabava em arnica!
– Entre vocemecê para aqui, sr.ª Adelia, gritou elle para a sala,
entre para aqui! Aqui só ha amigos. O segredo acabou, o pudor acabou!
Isto são amigos! Somos tres, mas somos um! Tem vocemecê diante
de si o grande mysterio da Santissima Trindade. Sente-se, sr.ª Adelia,
sente-se… Não faça ceremonia… E póde contar…. Aqui
a sr.ª Adelia, meninos, viu tudo, viu a coça!
A sr.ª Adelia, uma moça gordinha e baixa, de bonitos olhos, com
um chapéo de flôres vermelhas, veiu logo da sala rectificando.
Não, ella não vira… Então o sr. Ega não tinha
percebido bem… Ella só ouvira.
– Aqui está como foi, meus senhores… Eu tinha ficado a pé,
naturalmente, até ao fim do baile, que estava que nem me tinha nas
pernas. Era já dia claro, quando o senhor, ainda vestido de moiro,
se fechou no quarto com a senhora. Eu fiquei na cozinha com o Domingos á
espera que elles tocassem a campainha. De repente ouvimos gritos!… Eu fiquei
estarrecida, pensei até que eram ladrões. Corremos, eu e o Domingos,
mas a porta do quarto estava fechada, e os dois estavam por dentro, lá
para o fundo da alcova. Eu ainda puz o olho á fechadura, mas não
pude vêr nada… Lá o estalar de bofetadas, e trambulhões,
e sons de bengalada, isso sim, isso ouvia-se perfeitamente; e os gritos. Eu
disse logo ao Domingos «ai que é uma questão, ai que lá
se foi tudo.» Mas de repente, silencio geral! Nós voltámos
para a cozinba; d’ahi a pouco o sr. Cohen appareceu, todo esguedelhado, em
mangas de camisa, a dizer que nos podiamos deitar, que elles não precisavam
nada, e que ámanhã fallariamos!… Depois lá ficaram
toda a noite, e pela manhã parece que estavam muito amiguinhos… Que
eu não puz os olhos na senhora. O sr. Cohen, apenas se levantou, veiu
á cozinha, fez-me elle as contas, e pôz-me fóra; muito
mal creado, até me ameaçou com a policia… Foi pelo Domingos,
que eu soube agora, quando fui buscar o bahú com um gallego, que o
sr. Cohen ía com a senhora para Inglaterra. Emfim, um chinfrim… Eu
até tenho estado todo o dia com o estomago embrulhado.
A sr.ª Adelia com um suspiro, pondo os olhos no chão, calou-se.
Ega, com os braços cruzados, olhava amargamente para os seus amigos.
Que lhes parecia aquillo? Uma coça!… Se um covarde d’aquelles não
merecia uma bala no coração! Mas ella tambem, deixar-se tocar,
não ter fugido, consentir ainda depois em dormir com elle!… Tudo
uma corja!
– E a sr.ª Adelia, perguntava Craft, não tem idéa de como
elle descobriu?…
– Isso é que é prodigioso! gritou Ega, apertando as mãos
na cabeça.
Sim, prodigioso! Não fôra carta apanhada: elles não se
escreviam. Não podia ter surprehendido as visitas á Villa Balzac:
as cousas estavam combinadas com uma arte muito subtil, perfeitamente impenetraveis.
Para vir ali, nunca ella commettera a indiscripção de se servir
da sua carruagem. Nunca ella claramente entrara pela porta. Os criados d’elle
nunca a tinham visto, não sabiam quem era a senhora que o visitava…
Tantos cuidados, e tudo estragado!
– Estranho, estranho! murmurava Craft.
Houve um silencio. A sr.ª Adelia terminara por descançar familiarmente
n’uma cadeira, com a sua trouxasinha no regaço.
– Pois olhe, sr. Ega, disse ella, depois de reflectir, creia então
uma cousa, é que foi em sonhos. Já tem acontecido… Foi a senhora
que sonhou alto com v. ex.ª, disse tudo, o sr. Cohen ouviu, ficou de
pedra no sapato, espreitou-a, e descobriu a marosca… E eu sei que ella sonha
alto.
Ega, diante da sr.ª Adelia, percorria-a desde as flôres do chapéo
até á roda das saias, com os olhos faiscantes.
– Como é possivel que elle ouvisse? Se elles tinham quartos separados!…
Eu sei que tinham.
A sr.ª Adelia baixou as palpebras, acariciou com os dedos calçados
de luvas pretas a sua trouxasinha redonda, e disse mais baixo estas palavras:
– Não tinham, não senhor. Nem a senhora consentia em tal arranjo…
A senhora gosta muito do marido, e tem muitos ciumes d’elle.
Houve um silencio embaraçado e desagradavel. Sobre o toucador o resto
da vella acabava, com uma luz lugubre. E Ega, que affectara sorrir, encolher
os hombros, dava pelo quarto passos lentos e murchos, triturando o bigode
com a mão tremula.
Então Carlos enojado, cançado d’aquelle episodio que durava
desde a vespera, e onde constantemente se remexera em lodo, declarou que era
necessario findar! Eram oito horas, e elle queria jantar…
– Sim, vamos todos jantar, murmurou o Ega, com o ar confuso e embaçado.
De repente fez um signal á sr.ª Adelia, arrastou-a para a sala,
fechou-se lá outra vez.
– Você não está farto d’isto, Craft? exclamou Carlos,
desesperado.
– Não. Acho um estudo curioso.
Esperaram ainda dez minutos. Subitamente a vella extinguiu-se. Carlos, furioso,
gritou pelo pagem. E o garoto entrava com um immundo candieiro de petroleo
– quando Ega, mais composto, voltou da sala. Tudo acabara, a sr.ª Adelia
partira.
– Vamos lá jantar, disse elle. Mas aonde, a esta hora?
E elle mesmo lembrou o André, ao Chiado. Em baixo, alem do coupé
de Carlos, esperava a tipoia do Craft. As duas carruagens partiram. A Villa
Balzac ficava apagada, muda, d’ora em diante inutil.
No André tiveram de esperar muito tempo, n’um gabinete triste, com
um papel de estrellinhas douradas, cortininhas de cassa barata sob sanefas
de reps azul, e dois bicos de gaz que silvavam. Ega, enterrado no sophá
de mollas gastas e lassas, cerrara os olhos, parecia exhausto. Carlos ía
contemplando as gravuras pela parede, todas relativas a hespanholas: uma saíndo
da egreja; outra saltando uma pocinha de agua; outra, de olhos baixos, escutando
os conselhos de um canonico. Craft, já á meza, com a cabeça
entre os punhos, percorria um Diario da Manhã, que o criado offerecera
para os senhores se entreterem.
De repente o Ega deu um murro no sophá, que rangeu lamentavelmente.
– Eu o que não percebo, gritou elle, é como aquelle malvado
descobriu!…
– A hypothese da sr.ª Adelia, disse Craft erguendo os olhos do jornal,
parece provavel. Ou em sonhos, ou acordada, a pobre senhora descahiu-se. Ou
talvez uma denuncia anonyma. Ou talvez apenas um acaso… O facto é
que o homem desconfiou, espreitou-a, e apanhou-a.
Ega erguera-se:
– Eu não vos quiz dizer diante da Adelia, que não estava no
segredo todo. Mas vocês sabem a casa defronte da minha, do outro lado
da viella, uma casa com um grande quintal? Ahi mora uma tia do Gouvarinho,
a D. Maria Lima, uma pessoa respeitavel. A Rachel ía vêl-a de
vez em quando. São intimas, a D. Maria Lima é intima de todo
o mundo. Depois sahia por uma portinha do quintal, atravessava a viella, e
estava á porta da minha casa, á porta escusa, á porta
da escada que vae ter ao cacifro de banho. Já vocês vêem…
Os criados nem a avistavam. Quando ella lá lunchava, o lunch estava
já posto no meu quarto, as portas fechadas. Mesmo se alguem visse,
era uma senhora com um véo preto, que vinha de casa da Lima… Como
podia o homem apanhal-a?… Além d’isso, em casa da Lima, ella mudava
de chapéo, e punha um waterproof…
Craft cumprimentou.
– É brilhante! Parece de Scribe.
– Então, disse Carlos sorrindo, essa respeitavel fidalga…
– A D. Maria, coitada… Eu te digo, é uma excellente velha, recebida
em toda a parte, mas pobre, e faz d’estes favores… Ás vezes mesmo
em casa d’ella.
– Leva caro por esses serviços? perguntou tranquillamente Craft, que
em todo aquelle caso procurava instruir-se.
– Não, coitada, disse o Ega. Dão-se-lhe de vez em quando cinco
libras.
O criado entrava com uma travessa de camarões, os tres em silencio
accommodaram-se á meza.
Depois do jantar recolheram ao Ramalhete. Ega ía lá dormir,
receiando, com os nervos tão excitados, a solidão da villa Balzac.
Partiram, de charutos accesos, n’uma caleche descoberta, sob a noite estrellada
e doce.
Felizmente não estava ninguem no Ramalhete; Ega, cançado, poude
retirar-se logo para o seu quarto, um aposento d’hospedes no segundo andar,
onde havia um bello leito antigo de pau preto. Ahi, apenas o criado o deixou,
Ega approximou-se do tremó onde ardiam as luzes, e tirou do pescoço,
de sob a camiza, um medalhão de ouro. Tinha dentro uma photographia
de Rachel: – e a sua intenção agora era queimal-a, deitar ao
balde das agoas sujas as cinzas d’aquella paixão. Mas, ao abrir o medalhão,
a face bonita, banhada n’um sorriso, sob o vidro oval, pareceu olhar para
elle com uma tristeza no velludo das pupillas languidas… A photographia
mostrava apenas a cabeça, com uma abertura de decote no começo
do vestido: e as recordações de Ega alargaram aquelle decote
uma vez mais, revendo o collo, o extraordinario setim da pelle, o signalsinho
sobre o seio esquerdo… O sabor dos seus beijos passou-lhe de novo nos labios,
sentiu n’alma outra vez como o ecco dos suspiros cançados que ella
soltara nos seus braços. E ella ia-se embora, nunca mais a veria! Esta
desolada amargura do nunca mais revolveu-o todo – e com a face enterrada no
travesseiro, o pobre demagogo, o grande phraseador soluçou muito tempo
no segredo da noite.
Toda essa semana foi dolorosa para o Ega. Logo ao outro dia Damaso apparecera
no Ramalhete, e por elle ouviram os rumores de Lisboa. Já se sabia
no Gremio, no Chiado, por toda a parte, que elle fôra expulso da casa
dos Cohens. O urso, a pastora do Tyrol, testemunhas do episodio, tinham-n’o
badallado com enthusiasmo. Dizia-se mesmo que o Cohen lhe dera um pontapé.
Os amigos da casa, esses, sobretudo o Alencar, prégavam com fervor
a innocencia da sr.ª D. Rachel. O Alencar contava publicamente que o
Ega, provinciano inexperiente e leão de Celorico, tendo tomado por
evidencias de paixão os sorrisos de amabilidade de uma senhora que
recebe, – escrevera á sr.ª D. Rachel uma carta quasi obscena,
que ella, coitadinha, toda em lagrimas, viera mostrar ao marido.
– Então dão-me para baixo, hein, Damaso? murmurou Ega que, no
gabinete de Carlos, embrulhado n’uma velha ulster, e encolhido n’uma poltrona,
escutava estas cousas com um ar cançado e doente.
Damaso confessou que na sociedade lhe davam para baixo.
Ah, elle sabia-o bem! Tinha antipathias em Lisboa. Ninguem lhe perdoara ainda
a pelissa. A sua verve, toda em sarcasmos, offendia. E era desagradavel para
muita gente que um homem, com esse espirito tão perigoso de ferro em
braza, tivesse uma mãe rica, e fosse independente.
Depois, no sabbado seguinte, Carlos, ao voltar do jantar dos Gouvarinhos –
que fôra excellente – contou-lhe a conversa que tivera com a sr.ª
condessa. A condessa fallara-lhe muito livremente, como um homem, d’aquelle
desastre do Ega. Tinha-se affligido muito, não só pela Rachel,
coitada, de quem era amiga, mas pelo Ega, que ella apreciava tanto, tão
interessante, tão brilhante, e que sahia de tudo aquillo enxovalhado!
O Cohen dizia a todos (dissera-o ao Gouvarinho) que ameaçára
o Ega de pontapés, por elle ter escripto a sua mulher uma carta immunda.
Os que não sabiam nada, como o Gouvarinho, acreditavam, apertavam as
mãos na cabeça; e os que sabiam, os que havia seis mezes sorriam
da intimidade do Ega com os Cohens, affectavam tambem acreditar, cerravam
os punhos de indignação. O Ega era odiado. E a pequena Lisboa,
que vive entre o Gremio e a casa Havaneza, folgava em «enterrar»
o Ega.
Ega, com effeito, sentia-se «enterrado». E n’essa noite declarou
a Carlos que decidira recolher-se á quinta da mãe, passar lá
um anno a acabar as Memorias d’um Atomo, e reapparecer em Lisboa com o seu
livro publicado, triumphando sobre a cidade, esmagando os mediocres. Carlos
não perturbou esta radiante illusão.
Mas quando Ega, antes de partir, foi a recapitular os seus negocios de casa,
de dinheiro, encontrou-se diante de cousas abominaveis. Devia a todo o mundo,
desde o estofador até ao padeiro; tinha tres letras a vencer; aquellas
dividas, se as deixasse, soltas e ladrando, juntar-se-iam, na tagarallice
publica, ao caso dos Cohens – e elle seria, além do amante ameaçado
de pontapés, o pelintra perseguido pelos credores! Que havia de fazer,
senão valer-se de Carlos? Carlos, para regular tudo, emprestou-lhe
dois contos de réis.
Depois, tendo despedido os criados da Villa Balzac, surgiram-lhe outras complicações.
A mãe do pagem veiu d’ahi a dias ao Ramalhete, muito insolente, gritando
que o filho lhe desapparecera! E era exacto: o famoso pagem, pervertido pela
cozinheira, sumira-se com ella para as viellas da Mouraria, a começar
ahi uma divertida carreira de faia.
Ega recusou-se a attender ás reclamações da matrona.
Que diabo tinha elle com essas torpezas?
Então o amante da creatura interveiu, ameaçadoramente. Era um
policia, um esteio da ordem: e deu a entender que lhe seria facil provar como
na Villa Balzac se passavam «cousas contra a natureza», e que
o pagem não era só para servir á meza… Nauseado até
á morte, Ega pacteou com a intrugice, largou cinco libras ao policia.
Quando n’essa noite, uma noite triste d’agoa, Carlos e Craft o acompanharam
a Santa Apolonia, elle disse-lhes na carruagem estas palavras, triste resumo
d’um amor romantico:
– Sinto-me como se a alma me tivesse cahido a uma latrina! Preciso um banho
por dentro!
Affonso da Maia ao saber este desastre do Ega, tinha dito a Carlos, com tristeza:
– Má estreia, filho, pessima estreia!
E n’essa noite, depois de voltar de Santa Apolonia, Carlos pensava n’estas
palavras, dizia tambem comsigo: – Pessima estreia!… E nem só a estreia
do Ega era pessima; tambem a sua. E talvez, por pensar n’isso, as palavras
do avô tinham tido aquella tristeza. Pessimas estreias! Havia seis mezes
que o Ega chegara de Celorico, embrulhado na sua grande pellissa, preparado
a deslumbrar Lisboa com as Memorias d’um Atomo,
a dominal-a com a influencia de uma Revista, a ser uma luz, uma força,
mil outras cousas… E agora, cheio de dividas e cheio de ridiculo, lá
voltava para Celorico, escorraçado. Pessima estreia! Elle, por seu
lado, desembarcara em Lisboa, com idéas collossaes de trabalho, armado
como um luctador: era o consultorio, o laboratorio, um livro iniciador, mil
cousas fortes… E, que tinha feito? Dois artigos de jornal, uma duzia de
receitas, e esse melancolico capitulo da Medicina entre os Gregos. Pessima
estreia!
Não, a vida não lhe parecia promettedora, n’esse instante, passeiando
na sala de bilhar com as mãos nos bolsos, emquanto ao lado os amigos
conversavam, e fóra uivava o sudoeste. Pobre Ega, que infeliz elle
iria, encolhido ao canto do seu wagon!… Mas os outros, ali, não estavam
mais alegres. Craft e o Marquez tinham começado uma conversa sobre
a vida, soturna e desconsoladora. De que servia viver, dizia Craft, não
se sendo um Livingstone ou um Bismark? E o Marquez, com um ar philosophico,
achava que o mundo se ia tornando estupido. Depois chegou o Taveira com a
historia horrivel d’um collega d’elle, cujo filho cahira pela escada, se despedaçara,
no momento em que a mulher estava a morrer d’uma pleurisia. Cruges resmungou
o quer que fosse sobre suicidio. As palavras arrastavam-se, melancolicas.
Instinctivamente, Carlos, de vez em quando, ia despertar as lampadas.
Mas tudo lhe pareceu resplandecer, quando d’ahi a instantes Damaso chegou,
e lhe disse que o Castro Gomes estava incommodado, e de cama.
– Naturalmente, accrescentou o Damaso, mandam-te chamar, por teres já
visto a pequena…
Carlos ao outro dia não sahiu de casa, esperando um recado, faiscando
d’impaciencia. Nenhum recado veiu. E, duas tardes depois, ao descer para o
Aterro – o primeiro encontro que teve, ás Janellas Verdes, foi o Castro
Gomes, de caleche descoberta, com a mulher ao lado, e a cadellinha no collo.
Ella passou, sem o vêr. E logo ali Carlos decidiu findar aquella tortura,
pedir muito simplesmente ao Damaso que o apresentasse ao Castro Gomes, antes
d’elle partir para o Brazil… Não podia mais, precisava ouvir a voz
d’ella, vêr o que os seus olhos diziam quando eram interrogados de perto.
Mas toda essa semana achou-se, constantemente, sem saber como, na companhia
dos Gouvarinhos. Começou por encontrar o conde, que lhe travou do braço,
arrastou-o á rua de S. Marçal, installou-o n’uma poltrona, no
seu escriptorio, e leu-lhe um artigo que destinava ao Jornal do Commercio
sobre a situação dos partidos em Portugal: depois convidou-o
a jantar. Na tarde seguinte elles tinham uma partida de croquet. Carlos foi.
E, a uma janella, aberta sobre o jardim, teve um momento de intimidade com
a condessa, contou-lhe, rindo, como os cabellos d’ella o tinham encantado,
a primeira vez que a vira. N’essa noite, ella fallou d’um livro de Tennyson,
que não lera; Carlos offereceu-lh’o, foi-lh’o levar ao outro dia, de
manhã. Encontrou-a só, toda vestida de branco: e riam, baixavam
já a voz, as duas cadeias estavam mais juntas – quando o escudeiro
annunciou a sr.ª D. Maria da Cunha. Era uma cousa tão extraordinaria,
a D. Maria da Cunha áquella hora! Carlos, de resto, gostava muito da
D. Maria da Cunha, uma velha engraçada, toda bondade, cheia de sympathia
por todos os peccados – e ella mesma muito peccadora quando era a linda Cunha.
D. Maria era muito falladora, parecia ter que dizer em particular á
condessa; e Carlos deixou-as, promettendo voltar uma d’essas tardes tomar
chá, e fallar de Tennyson.
Na tarde em que elle se vestia para lá ir, Damaso appareceu-lhe no
quarto, a dar-lhe uma novidade que o enchia de desgosto e de «ferro».
O telhudo do Castro Gomes mudára de idéa, já não
ia ao Brazil! Ficava ali, no Central, até ao meiado do verão!
De sorte que estava tudo estragado…
Carlos pensou logo em fallar da sua apresentação ao Castro Gomes.
Mas, como em Cintra, sem saber porquê, veiu-lhe uma repugnancia de a
conhecer por meio do Damaso. E foi-se vestindo em silencio.
Damaso no entanto maldizia a sua chance:
– E eu que tinha mulher, eu que a tinha, se houvesse occasião. Mas
que diabo queres tu, assim?…
Queixou-se então do Castro Gomes. Em resumo, era um telhudo. E a vida
d’aquelle homem era mysteriosa… Que diabo estava elle a fazer em Lisboa?
Ali havia difficuldades de dinheiro… E elles não se davam bem. Na
vespera houvera de certo questão. Quando elle entrara, ella estava
com os olhos vermelhos, e enfiada; e elle, nervoso, a passeiar pela sala,
a retorcer a barba… Ambos contrafeitos, uma palavra cada quarto d’hora…
– Sabes tu? exclamou elle. Tenho minha vontade de os mandar á fava.
Queixou-se tambem d’ella. Era sobretudo muito desegual. Ora bom modo, ora
regelada; e, ás vezes, elle dizia qualquer cousa muito natural, d’estas
cousas de conversa de sociedade, e ella punha-se a rir. Era de encavacar,
hein? Emfim, gente muito exquisita.
– Onde vaes tu? disse elle, com um suspiro de aborrecimento, vendo Carlos
pôr o chapeu.
Ia tomar chá com a Gouvarinho.
– Pois olha, vou comtigo… Estou d’uma secca! Carlos hesitou um instante,
terminou por dizer:
– Vem, fazes-me até favor…
A tarde estava lindissima, Carlos ia no dog-cart.
– Ha que tempos que não damos assim um passeio juntos, disse Damaso.
– Tu andas lá mettido com estrangeiros!…
Damaso deu outro suspiro, e não tornou a dizer mais nada. Depois, á
porta dos Gouvarinhos, quando soube que a sr.ª condessa recebia, resolveu
subitamente não entrar. Não, não entrava. Estava muito
estupido, incapaz de achar uma palavra…
– Ah, e outra cousa que me lembrou agora, exclamou elle, demorando ainda Carlos
diante do portão. O Castro Gomes, hontem, perguntou-me o que te havia
de mandar pela visita á pequena… Eu disse que tu tinhas ido lá
por favor, como meu amigo. E elle disse que te havia de vir deixar um bilhete…
Naturalmente vens a conhecel-os.
Não era, pois, necessario que Damaso o apresentasse!
– Apparece á noite, Damasosinho, vai lá jantar ámanhã!
exclamou Carlos, subitamente radiante, dando um ardente aperto de mão
ao seu amigo.
Quando entrou na sala, um escudeiro acabava de servir chá. A sala,
forrada d’um papel severo, verde e ouro, com retratos de familia em caixilhos
pesados, abria por duas varandas sobre a folhagem do jardim. Em cima das mezas
havia cestos de flôres. No sophá, duas senhoras de chapeu, ambas
de preto, conversavam, com a chavena na mão. A condessa, ao estender
os dedos a Carlos, ficara tão côr de rosa – como a seda acolchoada
da cadeira em que estava recostada, ao pé d’um velador de pau santo.
Notou logo, sorrindo, o ar radiante de Carlos. Que
lhe tinha acontecido de bom? Carlos sorriu tambem, disse que não era
possivel entrar ali com outro ar. Depois perguntou pelo conde…
O conde ainda não apparecera, detido de certo na camara dos pares,
onde se discutia o projecto sobre a Reforma da Instrucção Publica.
Uma das senhoras de preto fazia votos para que se alliviassem os estudos.
As pobres creanças succumbiam verdadeiramente á quantidade exaggerada
de materias, de cousas a decorar: o d’ella, o Joãosinho, andava tão
pallido e tão desfigurado, que ella ás vezes tinha vontade de
o deixar ficar ignorante de todo. A outra senhora pousou a chavena sobre um
console ao lado, e passando sobre os labios a renda do lenço, queixou-se
sobretudo dos examinadores. Era um escandalo as exigencias, as difficuldades
que punham, só para poder deitar RR… Ao pequeno d’ella tinham feito
as perguntas mais estupidas, as mais reles; assim, por exemplo, o que era
o sabão, porque lavava o sabão?…
A outra senhora e a condessa apertaram as mãos contra o peito, consternadas.
E Carlos, muito amavel, concordou que era uma abominação. O
marido d’ella – continuava a dama de preto – ficara tão desesperado
que, encontrando o examinador no Chiado, o ameaçou de lhe dar bengaladas.
Uma imprudencia, de certo; mas, emfim, o homem fôra malvado!… Não
havia verdadeiramente senão uma cousa digna de se estudar, eram as
linguas. Parecia insensato que se torturasse uma creança com botanica,
astronomia, physica… Para que? Cousas inuteis na sociedade. Assim, o pequeno
d’ella, agora, tinha lições de chimica… Que absurdo! Era o
que o pae dizia – para que, se elle o não queria para boticario?
Depois d’um silencio, as duas senhoras ergueram-se ao mesmo tempo; e houve
um murmurio de beijos, um frou-frou de sedas.
Carlos ficou só com a sr.ª condessa, que reoccupara a sua cadeira
côr de rosa.
Immediatamente ella perguntou pelo Ega.
– Coitado, lá está para Celorico.
Ella protestou, com um lindo riso, contra aquella phrase tão feia «lá
está para Celorico» Não, não queria… Coitado
do Ega! Merecia uma melhor oração funebre. Celorico era horrivel
para um fim de romance…
– De certo, exclamou Carlos, rindo tambem, era mais bello dizer-se: lá
está para Jerusalem!
N’esse momento o criado annunciou um nome, e appareceu o amigo Telles da Gama,
um intimo da casa. Quando soube que o conde devia estar ainda batalhando sobre
a Reforma da Instrucção, levou as mãos á cabeça
como lamentando um tão feio desperdicio de tempo, e não se quiz
demorar. Não, nem mesmo o excellente chá da sr.ª condessa
o tentava. A verdade era que estava tão abandonado da graça
de Deus, perdera de tal modo o sentimento das cousas bellas, que entrara,
não para vêr a sr.ª condessa – mas simplesmente fallar ao
conde. Então ella teve um bonito ar de princeza offendida, perguntou
a Carlos se uma tão rude sinceridade de montanhez não fazia
saudades das maneiras polidas do antigo regimen. E Telles da Gama, gingando
de leve, declarava-se democrata, homem da natureza, com um riso que lhe mostrava
dentes magnificos. Depois, ao sair, dando um shake-hands ao amigo Maia, quiz
saber quando o principe de Sta. Olavia lhe dava emfim a honra de vir jantar
com elle. A sr.ª condessa indignou-se. Não, era realmente de mais!
Fazer convites, na sua sala, diante d’ella, – um homem que fallava tanto da
sua cozinheira allemã, e nem sequer lhe offerecera jámais um
prato de chou-crôute!
Telles da Gama, rindo sempre e gingando, jurou que andava a arranjar a sua
sala de jantar para dar á sr.ª condessa uma festa, que havia de
ficar nos annaes do reino! Agora com o Maia era differente: jantavam ambos
na cozinha, com os pratos sobre os joelhos. E abalou, gingando sempre, rindo
ainda da porta, mostrando os dentes magnificos.
– Muito alegre, este Gama, não é verdade? disse a condessa.
– Muito alegre, disse Carlos.
Então a condessa olhou o relogio. Eram cinco e meia, áquella
hora ella já não recebia: podiam, emfim, conversar um momento,
em boa camaradagem. E, o que houve, foi um silencio lento, em que os olhos
de ambos se encontraram. Depois Carlos perguntou por Charlie, o seu lindo
doente. Não estava bem, com uma ligeira tosse apanhada no passeio da
Estrella. Ah, aquella creança nunca deixava de lhe dar o cuidado! Ficou
callada, com o olhar esquecido no tapete, movendo languidamente o leque: tinha
n’essa tarde uma toilette exaggerada, d’um tom de folha de outono amarellada,
d’uma seda grossa, que ao menor movimento fazia um ruge-ruge de folhas seccas.
– Que lindo tempo tem feito! exclamou ella de repente, como acordando.
– Lindo! disse Carlos. Eu estive ha dias em Cintra, e não imagina…
Era d’uma belleza de idyllio.
E immediatamente arrependeu-se, quiz-se mal por ter fallado da sua ida a Cintra,
n’aquella sala.
Mas a condessa mal o escutára. Tinha-se erguido, fallando de algumas
canções que essa manhã recebera de Inglaterra, as novidades
frescas da season. Depois, sentou-se ao piano, correu os dedos no teclado,
perguntou a Carlos se conhecia aquella melodia – The pale star. Não,
Carlos não conhecia. Mas todas essas canções inglezas
se parecem, sempre do mesmo tom dolente, romanesco, e muito miss. E trata-se
sempre d’um parque melancolico, um regato lento, um beijo sob os castanheiros…
Então a condessa leu alto a letra da Pale star. E era a mesma cousa,
uma estrellinha de amor palpitando no crepusculo, um lago pallido, um timido
beijo sob as arvores…
– É sempre o mesmo, disse Carlos, e é sempre delicioso.
Mas a condessa atirou o papel para o lado, achando aquillo estupido. Começou
a remexer entre os papeis de musica, nervosa, e com um olhar que escurecia.
Para quebrar o silencio, Carlos gabou-lhe as suas lindas flores.
– Ah, vou-lhe dar uma rosa! exclamou ella logo, deixando as musicas.
Mas, a flôr que ella lhe queria dar estava no boudoir, ao lado. Carlos
seguiu a sua grande cauda, onde corria um reflexo dourado de folhagem de outono
batida do sol. Era um gabinete forrado de azul, com um bonito tremó
do seculo XVIII, e sobre um forte pedestal de carvalho, o busto em barro do
conde, na sua expressão de orador, a fronte erguida, a gravata desmanchada,
o labio fremente…
A condessa escolheu um botão com duas folhas, e ella mesmo lhe veiu
florir a sobrecasaca. Carlos sentia o seu aroma de verbena, o calor que subia
do seu seio arfando com força. E ella não acabava de prender
a flôr, com os dedos tremulos, lentos, que pareciam collar-se, deixar-se
adormecer sobre o panno…
– Voila! murmurou emfim, muito baixo. Ahi está o meu bello cavalleiro
da Rosa Vermelha… E agora, não me agradeça!
Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os labios nos labios
d’ella. A seda do vestido roçava-lhe, com um fino ruge-ruge entre os
braços; – e ella pendia para traz a cabeça, branca como uma
cera, com as palpebras docemente cerradas. Elle deu um passo, tendo-a assim
enlaçada, e como morta; o seu joelho encontrou um sophá baixo,
que rolou e fugiu. Com a cauda de seda enrolada nos pés, Carlos seguiu,
tropeçando, o largo sophá, que rolou, fugiu ainda, até
que esbarrou contra o pedestal onde o sr. conde erguia a fronte inspirada.
E um longo suspiro morreu, n’um rumor de saias amarrotadas.
D’ahi a um momento estavam ambos de pé: Carlos, junto do busto, coçando
a barba, com o ar embaraçado, e já vagamente arrependido: ella,
diante do tremó Luiz XV, compondo, com os dedos tremulos, o frisado
do cabello. De repente, na antecamara, ouviu-se a voz do conde. Ella, bruscamente,
voltou-se, correu a Carlos, e, com os longos dedos cobertos de pedrarias,
agarrou-lhe o rosto, atirou-lhe dois beijos faiscantes ao cabello e aos olhos.
Depois, sentou-se largamente no sophá – e estava fallando de Cintra,
rindo alto, quando o conde entrou, seguido de um velho calvo, que se vinha
a assoar a um enorme lenço de seda da India.
Ao vêr Carlos no boudoir, o conde teve uma bella surpreza, esteve-lhe
apertando as mãos muito tempo, com calor, assegurando-lhe que ainda
n’essa manhã, na camara, se lembrara d’elle…
– Então, por que vieram tão tarde? exclamou a condessa, que
se apoderara logo do velho, rindo, mexendo-se, animada, amavel.
– O nosso conde fallou! disse o velho, ainda com o olho brilhante de enthusiasmo.
– Fallaste? exclamou ella, voltando-se com um interesse encantador.
É verdade, fallara; e desprevenido! Quando ouvira porém o Torres
Valente (homem de litteratuta, mas um doido, sem senso pratico) quando o ouvira
defender a gymnastica obrigatoria nos collegios – erguera-se. Mas não
imaginasse o amigo Maia, que elle tinha feito um discurso.
– Ora essa! exclamou o velho, agitando o lenço. E um dos melhores que
eu tenho ouvido na camara! Dos de arromba!
O Conde modestamente protestou. Não: tinha simplesmente lançado
uma palavra de bom senso, e de bom principio. Perguntara apenas ao seu illustre
amigo, o sr. Torres Valente, se na sua idéa, os nossos filhos, os herdeiros
das nossas casas, estavam destinados para palhaços!…
– Ah, esta piada, sr.ª condessa! exclamou o velho. Eu só queria
que v. ex.ª ouvisse esta piada… E como elle a disse! com um chic!
O conde sorriu, agradeceu para o lado, ao velho. Sim, dissera-lhe aquillo.
E, respondendo a outras reflexões do Torres Valente, que não
queria nos lyceus, nem nos collegios, um ensino «todo impregnado de
cathecismo», elle lançara-lhe uma palavra cruel.
– Terrivel, exclamou o velho n’um tom cavo, preparando o lenço para
se assoar outra vez.
– Sim, terrivel… Voltei-me para elle, e disse-lhe isto… «Creia o
digno par, que nunca este paiz retomará o seu logar á testa
da civilisação, se, nos lyceus, nos collegios, nos estabelecimentos
de instrucção, nós outros os legisladores formos, com
mão impia, substituir a cruz pelo trapezio…
– Sublime, rosnou o velho, dando um ronco medonho dentro do lenço.
Carlos, erguendo-se, declarou aquillo d’uma ironia adoravel.
E o conde, quando elle se despediu, não se contentou com um simples
aperto de mão, passou-lhe o braço pela cinta, chamou-lhe o seu
querido Maia. A condessa sorria, com o olhar ainda humido, um resto de pallidez,
movendo o leque languidamente, recostada em duas almofadas do sophá
– debaixo do busto do marido que erguia a fronte inspirada.
Capítulo X
Tres semanas depois, por uma tarde quente, com um ceu triste de trovoada,
e no momento em que estavam cahindo algumas gotas grossas de chuva, – Carlos
apeava-se d’um coupé de praça, que viera parar, de vagar, á
esquina da Patriarchal, com os stores verdes mysteriosamente corridos. Dous
sujeitos que passavam sorriram-se, como se o vissem escoar-se desgeitosamente
d’uma portinha suspeita. E com effeito a velha traquitana de rodas amarellas
acabava de ser uma alcova d’amor, perfumada de verbena, durante as duas horas
que Carlos rolara dentro d’ella, pela estrada de Queluz, com a sr.ª condessa
de Gouvarinho.
A condessa tinha descido no largo das Amoreiras. E Carlos aproveitara a solidão
da Patriarchal para se desembaraçar do calhambeque d’assento duro,
onde durante a ultima hora suffocára, sem ousar descer as vidraças,
com as pernas adormecidas, enfastiado de tantas sedas amarrotadas e dos beijos
interminaveis que ella lhe dava na barba…
Até ahi, durante essas tres semanas, tinham-se encontrado n’uma casa
da rua de Santa Izabel, pertencente a uma tia da condessa que fôra para
o Porto com a criada, deixando-lhe a chave da casa e o cuidado do gato. A
boa titi, uma velha pequenina, chamada miss Jones, era uma santa, uma apostola
militante da Egreja Anglicana, missionaria da Obra da Propaganda; e todos
os mezes fazia assim uma viagem de cathechisação á provincia,
distribuindo Biblias, arrancando almas á treva catholica, purificando
(como ella dizia) o tremedal papista… Já na escada havia um cheirinho
adocicado e triste a devoção e a virgem velha: e no patamar
pendia um largo cartão, com um distico em letras de ouro entrelaçadas
de lyrios roxos, rogando aos que entravam que preserverassem nas vias do Senhor!
Carlos entrou, tropeçando logo n’um montão de Biblias. O quarto
todo era um ninho de Biblias; havia-as ás pilhas por cima dos moveis,
transbordando de velhas chapelleiras, misturadas a pares de galochas, cahidas
para o fundo da bacia d’assento, todas do mesmo formato, entaladas n’uma encadernação
negra como n’uma armadura de combate, carrancudas e aggressivas! As paredes
resplandeciam, forradas de cartonagens impressas em lettras de côr,
irradiando versiculos duros da Biblia, asperos conselhos de moral, gritos
dos psalmos, ameaças insolentes do inferno… E no meio d’esta religiosidade
anglicana, á cabeceira d’um leitosinho de ferro, rigido e virginal,
duas garrafas quasi vasias de cognac e de gin. Carlos bebeu o gin da santa;
e o leito rigido ficou revolto como um campo de batalha.
Depois a condessa começou a ter medo d’uma visinha, uma Borges, que
visitava a titi, e era viuva de um antigo procurador dos Gouvarinhos. Uma
occasião em que, no casto leito de miss Jones, elles fumavam languidamente
cigarrilhas, tres enormes argoladas á porta atroaram a casa. A pobre
condessa quasi desmaiou; Carlos, correndo á janella, viu um homem que
se affastava, com uma estatueta de gesso na mão, outras dentro d’um
cesto. Mas a condessa jurava que fôra a Borges quem mandára o
italiano das imagens atirar-lhes para dentro aquellas aldrabadas, como tres
avisos, tres rebates da Moral… Não quizera voltar mais ao beatifico
cuté da titi. E n’essa tarde, como não havia ainda outro escondrijo,
tinham abrigado os
seus amores dentro d’aquella tipoia de praça.
Mas Carlos vinha de lá enervado, amollecido, sentindo já na
alma os primeiros bocejos da saciedade. Havia tres semanas apenas que aquelles
braços perfumados de verbena se tinham atirado ao seu pescoço,
– e agora, pelo passeio de S. Pedro d’Alcantara, sob o ligeiro chuvisco que
batia as folhagens da alameda, elle ía pensando como se poderia desembaraçar
da sua tenacidade, do seu ardor, do seu peso… É que a condessa ía-se
tornando absurda com aquella determinação anciosa e audaz de
invadir toda a sua vida, tomar n’ella o logar mais largo e mais profundo –
como se o primeiro beijo trocado tivesse unido não só os labios
de ambos um momento, mas os seus destinos tambem e para sempre. N’essa tarde
lá tinham voltado as palavras que ella balbuciava, cahida sobre o seu
peito, com os olhos affogados n’uma ternura supplicante: Se tu quizesses!
que felizes que seriamos! que vida adoravel! ambos sós!… E isto era
claro – a condessa concebera a idéa extravagante de fugir com elle,
ir viver n’um sonho eterno de amor lyrico, n’algum canto do mundo, o mais
longe possivel da rua de S. Marçal! Se tu quizesses! Não, com
mil demonios, não queria fugir com a sr.ª condessa de Gouvarinho!…
E não era só isto – mas ainda exigencias, egoismos, explosões
tumultuosas d’um temperamento cioso: já mais de uma vez, n’essas duas
curtas semanas, por pieguices, ella despropositára, fallara de morrer,
debulhada em lagrimas… Ah! nas lagrimas havia ainda uma voluptuosidade,
faziam parecer mais tenro o setim do seu collo! O que o inquietava eram certos
clarões que lhe sulcavam o rosto, um dardejar nervoso dos olhos seccos,
revelando a paixão que se accendera n’aquelles nervos de mulher de
trinta e tres annos, e a queimava até ás profundidades do seu
ser… Certamente este amor punha na sua vida um luxo mais, e um perfume.
Mas o seu encanto estava em conservar-se facil, sereno, sem penetrar mais
fundo que a epiderme. Se ella, por qualquer cousa, tinha os olhos turvos d’agua,
e fallava em morrer, e torcia os braços, e queria fugir com elle –
então adeus! Tudo estava estragado; e a sr.ª condessa com a sua
verbena, os seus cabellos côr de braza, e o seu pranto, era apenas um
trambolho!
O chuveiro parara, um bocado d’azul lavado appareceu entre nuvens. E Carlos
descia a rua de S. Roque – quando encontrou o marquez, sahindo d’uma confeitaria,
tristonho, com um embrulho na mão, e o pescoço abafado n’um
enorme cache-nez de seda branca.
– Que é isso? Constipação? perguntou Carlos.
– Tudo, disse o marquez, pondo-se a caminhar ao lado d’elle com uma lentidão
de moribundo. Deitei-me tarde. Cançasso. Oppressão no peito.
Pigarreira. Dôres no lado. Um horror… Levo já aqui rebuçados.
– Não seja piegas, homem! Você o que precisa é roast-beef
e uma garrafa de Borgonha… Não é hoje que você janta
lá no Ramalhete?… É, até tem lá o Craft e o
Damaso… Então descemos por essa rua do Alecrim, que já não
chove, depois pelo Aterro fóra, a passo gymnastico, e em chegando lá
você está curado.
O pobre marquez encolheu os hombros. Apenas sentia o menor encommodo, uma
dôr, um arrepio, considerava-se logo, como elle dizia, liquidado. O
mundo começava a findar para elle: tomavam-no terrores catholicos,
uma preoccupação angustiosa da Eternidade. N’esses dias fechava-se
no quarto com o padre capellão – com quem ás vezes, todavia,
terminava por jogar as damas.
– Em todo o caso, disse elle, tirando cautelosamente o chapeu ao passar pela
porta aberta da egreja dos Martyres, deixe-me você ir primeiro ao Gremio…
Quero escrever á Manoeleta que não conte comigo esta noite…
Depois, distrahida e melancolicamente, perguntou noticias d’esse devasso do
Ega. Esse devasso do Ega lá estava em Celorico, na quinta materna,
ouvindo arrotar o padre Seraphim, e refugiando-se, segundo dizia, na grande
arte: andava a compor uma comedia em cinco actos, que se devia chamar o Lodaçal
– escripta para se vingar de Lisboa.
– O peor, murmurou o marquez, depois de um silencio, e abafando-se mais no
cache-nez, é se eu estou assim no domingo para as corridas!
– O quê! exclamou Carlos, então as corridas são já
no domingo?
O marquez foi-lhe explicando, em quanto desciam o Chiado, que as corridas
se tinham apressado a pedido do Clifford, o grande sportman de Cordova, que
devia trazer dois cavallos inglezes… Era um bocado humilhante depender do
Clifford. Mas emfim o Clifford era um gentleman e com os seus cavallos de
raça, os seus jockeys inglezes, constituia a unica feição
séria do Hyppodromo de Belem. Sem o Clifford aquillo era uma brincadeira
de pilecas e d’abas…
– Você não conhece o Clifford?… Bello rapaz! Um pouco poseur,
mas oiro de lei.
Tinham entrado no pateo do Gremio, o marquez estendeu o braço a Carlos.
– Veja esse pulso!
– O pulso está excellente… Vá você dar lá esse
golpe á Manoela, que eu fico aqui á espera.
No domingo pois, d’ahi a cinco dias, eram as corridas… E ella estaria lá,
elle ia conhecel-a, emfim! Durante essas tres ultimas semanas vira-a duas
vezes: uma occasião, estando a conversar com o Taveira á porta
do hotel Central, ella chegara a uma das varandas, de chapeu, calçando
uma grande luva preta; d’outra vez, havia dias, por uma tarde de chuva, ella
viera parar á porta do Mourão, ao Chiado, n’um coupé
da Companhia, e ficara esperando emquanto o trintanario levava dentro á
loja um embrulho que tinha a fórma d’um cofre, apertado com uma fita
vermelha.
D’ambas as vezes ella vira-o, demorara os olhos n’elle um momento: e parecera
a Carlos que o ultimo olhar se prolongara mais, como abandonando-se, humedecendo-se,
n’uma leve doçura, ao pousar no seu… Era talvez uma illusão;
mas isto decidiu-o, na sua impaciencia, a realisar a antiga idéa (ainda
que desagradavel) de ser apresentado pelo Damaso ao Castro Gomes. O pobre
Damaso, ao principio, diante d’esta exigencia, ficou perturbado; e com um
ar de cão que defende o seu osso, lembrou logo a Carlos o deploravel
comportamento do Castro Gomes, que não viera como lh’o annunciara,
havia tres semanas, deixar o seu cartão ao Ramalhete… Mas Carlos
desdenhava essas formalidades estreitas entre rapazes: o Castro Gomes parecia-lhe
um homem de gosto e de sport; nem todos os dias apparecia em Lisboa quem soubesse
dar com correcção o nó da gravata; e seria agradavel,
mesmo para elle Damaso, reunirem-se todos de vez em quando, com o Craft, com
o marquez, a fumar um charuto e a fallar de cavallos. Isto decidiu Damaso,
que terminou por propôr a Carlos o leval-o uma tarde ao hotel Central.
Carlos porém não queria entrar pelo hotel dentro, de chapeu
na mão, atraz do Damaso. Resolveram então esperar pelas corridas,
onde os Castro Gomes tencionavam ir. «Ahi, no recinto da pesagem, disse
o Damaso, a apresentação é mais chic… É mesmo
pôdre de chic.»
– Deus queira com effeito que não chova no domingo, murmurou Carlos
quando o marquez desceu, mais tristonho, mais abafado no seu cache-nez.
Foram seguindo pelo meio da rua, em direcção ao Ferregial. Adiante
do Gremio, encostado ao passeio, estava um coupé da Companhia, com
um trintanario de luvas brancas esperando junto ao portal. Carlos olhou, casualmente;
e viu, debruçado á portinhola, um rosto de creança, d’uma
brancura adoravel, sorrindo-lhe, com um bello sorriso que lhe punha duas covinhas
na face. Reconheceu-a logo. Era Rosa, era Rosicler: e ella não se contentou
em sorrír, com o seu doce olhar azul fugindo todo para elle, – deitou
a mãosinha de fóra, atirou-lhe um grande adeus. No fundo do
coupé, forrado de negro, destacava um perfil claro d’estatua, um tom
ondeado de cabello louro. Carlos tirou profundamente o chapeu, tão
perturbado, que os seu passos hesitaram. Ella abaixou a cabeça, de
leve; alguma cousa de luminoso, um confuso rubor d’emoção, espalhou-se-lhe
no rosto. E fugitivamente foi como se, da mãe e da filha, ao mesmo
tempo, viesse para elle uma suave e quente emanação de sympathia.
– Caramba, aquillo pertence-lhe? perguntou o marquez, que notara a impressão
de Madame Gomes.
Carlos córou.
– Não, é uma senhora brazileira a quem eu curei aquella pequerrucha…
– Irra! que gratidão! rosnou o outro de dentro das dobras do seu cachenez.
Caminhando em silencio pelo Ferregial, Carlos revolvia uma idéa que
lhe viera de repente, ao receber aquelle doce olhar. Por que é que
Damaso não levaria uma manhã o Castro Gomes aos Olivaes, a vêr
as collecções do Craft?… Elle estaria lá, abria-se
uma garrafa de Champagne, discutiam bric-à-brac. Depois, muito naturalmente,
elle convidava Castro Gomes a almoçar no Ramalhete, para lhe mostrar
o grande Rubens, e as suas velhas colxas da India. E assim, já antes
das corridas existiria entre elles uma camaradagem, talvez um tratamento de
você.
No Aterro, temendo o ar do rio, o marquez quiz tomar uma tipoia; e, até
ao Ramalhete, continuaram callados. O marquez, outra vez inquieto, apalpava
a garganta. Carlos discutia complicadamente comsigo aquella lenta inclinação
de cabeça, o olhar d’ella, o vivo rubor fugitivo… Ella até
ahi não o conhecia talvez. Mas, depois de atirar o seu grande adeus,
Rosa, ainda sorrindo, voltara-se para a mãe, a dizer-lhe decerto que
aquelle era o medico que a curara, a ella e á boneca… E então
a linda côr que lhe enternecera o rosto tomava uma significação
mais profunda – era como a surpreza feliz, o enleio casto, ao saber que o
homem que ella notára já de algum modo tinha penetrado na sua
intimidade, beijara a sua filha, se tinha mesmo sentado á beira do
seu leito…
Depois ia refazendo o plano da visita aos Olivaes, mais largo agora, mais
brilhante. Porque não iria ella tambem vêr as curiosidades do
Craft? Que tarde encantadora, que festa, que lindo idyllio! O Craft arranjava
um lunch delicado no seu velho serviço de Wedgewood. Elle ficava á
meza junto d’ella. Depois iam vêr o jardim já em flôr;
ou tomavam chá no pavilhão japonez, forrado de esteiras. Mas,
o que mais lhe appetecia era percorrer com ella as duas salas de Craft, parando
ambos diante d’uma bella faiença ou d’um movel raro, e sentindo, atravez
da concordancia dos seus gostos, subir, como um perfume, a sympathia dos seus
corações… Nunca a vira tão formosa como n’essa tarde,
dentro do coupé forrado de escuro, onde brilhava mais puramente a brancura
do seu perfil. Sobre o regaço do vestido negro pousava o tom claro
das suas luvas; e no chapéo frisava-se a ponta de uma penna cor de
neve.
A tipoia parara ao portão do Ramalhete, estavam agora entre as silenciosas
tapessarias da ante-camara.
– Como é que ella conhece os Cruges? perguntou de repente o marquez,
com um tom desconfiado, desembaraçando-se do cache-nez.
Carlos olhou para elle, como mal acordado.
– Ella quem? Aquella senhora? Como conhece o Cruges?… Homem, sim, tem você
razão!… Aquella era a casa do Cruges! a carruagem estava parada á
porta do Cruges!… Talvez alguem que móre n’outro andar.
– Não móra ninguem, disse o marquez, dando um passo para o corredor.
Em todo o caso, é um mulherão.
Carlos achou a palavra odiosa.
Do corredor ouvia-se já no escriptorio de Affonso, atravez da porta
aberta, a voz petulante do Damaso fallando alto d’handicap e de dead-beat…
E foram-n’o encontrar discursando sobre as corridas, com convicção,
com auctoridade, como membro do Jockey-Club. Affonso, na sua velha poltrona,
escutava-o, cortez e risonho, com o reverendo Bonifacio no collo. Ao canto
do sophá, Craft folheava um livro.
E o Damaso appellou logo para o marquez. Não era verdade, como elle
estivera dizendo ao sr. Affonso da Maia, que iam ser as melhores corridas
que se tinham feito em Lisboa? Só para o grande premio nacional de
seiscentos mil réis havia oito cavallos inscriptos! E, além
d’isso, o Clifford trazia a Mist.
– Ah, é verdade, oh marquez, é necessario que você appareça
sexta-feira á noite no Jockey-Club, para acabarmos o handicap!
O marquez arrastara uma cadeira para o pé de Affonso, para lhe fazer
a confidencia dos seus achaques; mas como Damazo se mettia entre elles, fallando
ainda da Mist, decidindo que a Mist era chic, querendo apostar cinco libras
pela Mist contra o campo – o marquez terminou por se voltar, enfastiado, dizendo
que o sr. Damazosinho se estava a dar ares patuscos… Apostar pela Mist!
Todo o patriota devia apostar pelos cavallos do visconde de Darque, que era
o unico criador portuguez!…
– Pois não é verdade, sr. Affonso da Maia?
O velho sorrio, amaciando o seu gato.
– O verdadeiro patriotismo talvez, disse elle, seria, em logar de corridas,
fazer uma boa tourada.
Damazo levou as mãos á cabeça. Uma tourada! Então
o sr. Affonso da Maia preferia touros a corridas de cavallos? O sr. Affonso
da Maia, um inglez!…
– Um simples beirão, sr. Salcede, um simples beirão, e que faz
gosto n’isso; se habitei a Inglaterra é que o meu rei, que era então,
me pôz fóra do meu paiz… Pois é verdade, tenho esse
fraco portuguez, prefiro touros. Cada raça possue o seu sport proprio,
e o nosso é o toiro: o toiro com muito sol, ar de dia santo, agua fresca,
e foguetes… Mas sabe o sr. Salcede qual é a vantagem da toirada?
É ser uma grande escola de força, de coragem e de destreza…
Em Portugal não ha instituição que tenha uma importancia
egual á tourada de curiosos. E acredite uma cousa: é que se
n’esta triste geração moderna ainda ha em Lisboa uns rapazes
com certo musculo, a espinha direita, e capazes de dar um bom socco, deve-se
isso ao touro e á tourada de curiosos…
O marquez enthusiasmado bateu as palmas. Aquillo é que era fallar!
Aquillo é que era dar a philosophia do toiro! Está claro que
a tourada era uma grande educação phisica! E havia imbecis que
fallavam em acabar com os touros! Oh, estupidos, acabaes então com
a coragem portuguesa!…
– Nós não temos os jogos de destresa das outras nações,
exclamava elle, bracejando pela sala e esquecido dos seus males. Não
temos o cricket, nem o football, nem o running, como os inglezes; não
temos a gymnastica como ella se faz em França; não temos o serviço
militar obrigatorio que é o que torna o allemão solido… Não
temos nada capaz de dar a um rapaz um bocado de fibra. Temos só a tourada…
Tirem a tourada, e não ficam senão badamecos derreados da espinha,
a mellarem-se pelo Chiado! Pois você não acha, Craft?
Craft, do canto do sophá, onde Carlos se fôra sentar e lhe fallava
baixo, respondeu, convencido:
– O que, o touro? Está claro! o touro devia ser n’este paiz como o
ensino é lá fóra: gratuito e obrigatorio.
Damazo no entanto jurava a Affonso compenetradamente que gostava tambem muito
de touros. Ah, lá n’essas cousas de patriotismo ninguem lhe levava
a palma… Mas as corridas tinham outro chic! Aquelles Bois de Boulogne, n’um
dia de Grand-Prix, hein!… Era de embatucar!
– Sabes o que é pena? exclamou elle voltando-se de repente para Carlos.
É que tu não tenhas um four-in-hand, um mail coach. Iamos todos
d’aqui, cahia tudo de chic!
Carlos pensou tambem comsigo que era uma pena não ter um four-in-hand.
Mas gracejou, achando mais em harmonia com o Jockey Club da travessa da Conceição
irem todos dentro d’um omnibus.
Damazo voltou-se para o velho, deixando cahir os braços, descorçoado:
– Ahi está, sr. Affonso da Maia! Ahi está por que em Portugal
nunca se faz nada em termos! É por que ninguem quer concorrer para
que as cousas saiam bem… Assim não é possivel! Eu cá
entendo isto: que n’um paiz, cada pessoa deve contribuir, quanto possa, para
a civilisação.
– Muito bem, sr. Salcede! disse Affonso da Maia. Eis ahi uma nobre, uma grande
palavra!
– Pois não é verdade? gritou Damazo, triumphante, a estoirar
de goso. Assim eu, por exemplo…
– Tu, o quê? exclamaram dos lados. Que fizeste tu pela civilisação?…
– Mandei fazer para o dia das corridas uma sobrecasaca branca… E vou de
véo azul no chapéo!
Um escudeiro entrou com uma carta para Affonso, n’uma salva. O velho, sorrindo
ainda das idéas de Damaso sobre a civilisação, puxou
a luneta, leu as primeiras linhas; toda a alegria lhe morreu no rosto, ergueu-se
logo, tendo depositado cuidadosamente sobre a sua almofada o pesado Bonifacio.
– Isto é que é ter gosto, isto é que é comprehender
as cousas! exclamava o Damaso, agitando os braços para Carlos, quando
o velho desappareceu
atravez do reposteiro de damasco. Este teu avô, menino, é podre
de chic!…
– Deixa lá o chic do avô… Anda cá, que te quero dizer
uma cousa.
Abriu uma das janellas do terraço, levou para lá o Damaso, e
disse-lhe ahi, á pressa, o seu plano da visita aos Olivaes, e a linda
tarde que poderiam passar na quinta com os Castro Gomes… Elle já
fallara ao Craft, que estava de accordo, achava delicioso, ia encher tudo
de flores. E agora só restava que Damaso amigo, como amabilidade sua,
convidasse os Castro Gomes…
– Caramba! murmurou Damaso desconfiado, estás com furor de a conhecer!
Mas emfim concordou que era chic a valer! E via ahi uma bella occasião
para elle!… Em quanto Carlos e Craft andassem mostrando as curiosidades
ao Castro Gomes e lhe fallassem de cavallos, elle, zás, ia para a quinta
passear com ella… A calhar!
– Pois vou ámanhã já fallar-lhes… Estou convencido
que aceitam logo. Ella pela-se por bric-a-brac!
– E vens dizer-me se acceitaram ou não…
– Venho dizer-te… Tu vaes gostar d’ella; tem lido muito, entende tambem
de litteratura; e olha que ás vezes a conversar atrapalha…
O marquez veiu chamal-os para dentro, impaciente, querendo fechar a porta
envidraçada, outra vez preoccupado com a garganta. E desejava antes
de jantar ir ao quarto de Carlos gargarejar com agua e sal…
– E é isto um portuguez forte! exclamou Carlos, travando-lhe alegremente
do braço.
– Eu sou piegas na garganta, replicou logo o marquez, desprendendo-se d’elle
e olhando-o com ferocidade. E você é-o no sentimento. E o Craft
é-o na respeitabilidade. E o Damasosinho é-o na tolice. Em Portugal
é tudo Pieguice e Companhia!
Carlos rindo, arrastou-o pelo corredor. E de repente, ao entrarem na ante-camara,
deram com Affonso fallando a uma mulher, carregada de luto, que lhe beijava
a mão, meia de joelhos, suffocada de lagrimas: e ao lado outra mulher,
com os olhos turvos d’agua tambem, embalava dentro do chaile uma criancinha
que parecia doente e gemia. Carlos parara embaraçado; o marquez instinctivamente
levou a mão á algibeira. Mas o velho, assim surprehendido na
sua caridade, foi logo empurrando as duas mulheres para a escada: ellas desciam,
encolhidas, abençoando-o, n’um murmurio de soluços; e elle voltando-se
para Carlos, quasi se desculpou n’uma voz que ainda tremia:
– Sempre estes peditorios… Caso bem triste todavia… E o que é peior
é que por mais que se dê nunca se dá bastante. Mundo muito
mal feito, marquez.
– Mundo muito mal feito, sr. Affonso da Maia, respondeu o marquez commovido.
No domingo seguinte, pelas duas horas, Carlos no seu phaeton de oito molas,
levando ao lado Craft que durante os dois dias de corridas se installara no
Ramalhete, parou ao fim do largo de Belem, no momento em que para o lado do
Hyppodromo estavam já estalando foguetes. Um dos criados desceu a comprar
o bilhete de pesagem para o Craft, n’uma tosca guarita de madeira, armada
alli de vespera, onde se mexia um homemsinho de grandes barbas grisalhas.
Era um dia já quente, azul ferrete, com um d’esses rutilantes soes
de festa que enflammam as pedras da rua, doiram a poeirada baça do
ar, poem fulgores d’espelho pelas vidraças, dão a toda a cidade
essa branca faiscação de cal, d’um vivo monotono e implacavel,
que na lentidão das horas de verão cança a alma, e vagamente
entristece. No largo dos Jeronymos silencioso, e a escaldar na luz, um omnibus
esperava, desatrelado, junto ao portal da Egreja. Um trabalhador com o filho
ao collo, e a mulher ao lado no seu chaile de ramagens, andava alli, pasmando
para a estrada, pasmando para o rio, a gosar ociosamente o seu domingo. Um
garoto ia apregoando desconsoladamente programmas das corridas que ninguem
comprava. A mulher da agua fresca, sem freguezes, sentara-se com a sua bilha
á sombra, a catar um pequeno. Quatro pesados municipaes a cavallo patrulhavam
a passo aquella solidão. E a distancia, sem cessar, o estalar alegre
de foguetes morria no ar quente.
No entanto o trintanario continuava debruçado na guarita, sem poder
arranjar lá dentro o troco d’uma libra. Foi necessario Craft saltar
da almofada, ir lá parlamentar – emquanto Carlos, impaciente, raspando
com o chicote as ancas das egoas, luzidias como um setim castanho, riscava
no largo uma volta brusca e nervosa. Desde o Ramalhete viera assim governando,
irritadamente, sem descerrar os labios. É que toda aquella semana,
desde a tarde em que combinara com o Damaso a visita aos Olivaes, fôra
desconsoladora. O Damaso tinha desapparecido, sem mandar a resposta dos Castro
Gomes. Elle, por orgulho, não procurara o Damaso. Os dias tinham passado,
vazios; não se realisara o alegre idyllio dos Olivaes; ainda não
conhecia Madame Gomes; não a tornara a ver; não a esperava nas
corridas. E aquelle domingo de festa, o grande sol, a gente pelas ruas, vestida
de casimiras e de sedas de missa, enchiam-n’o de melancolia e de malestar.
Uma caleche de praça passou, com dous sujeitos de flores ao peito,
acabando de calçar as luvas; depois um dog-cart, governado por um homem
gordo, de lunetas pretas, quasi foi esbarrar contra o Arco. Emfim, Craft voltou
com o seu bilhete, tendo sido descomposto pelo homem de barbas propheticas.
Para além do arco, a poeira suffocava. Pelas janellas havia senhoras
debruçadas, olhando por debaixo de sombrinhas. Outros municipaes, a
cavallo, atravancavam a rua.
Á entrada para o hyppodromo, abertura escalavrada n’um muro de quintarola,
o phaeton teve de parar atráz do dog-cart do homem gordo – que não
podia tambem avançar porque a porta estava tomada pela caleche de praça,
onde um dos sujeitos de flor ao peito berrava furiosamente com um policia.
Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O sr. Savedra, que era do Jockey
Club, tinha-lhe dito que elle podia entrar sem pagar a carruagem! Ainda lho
disséra na vespera, na botica do Azevedo! Queria que se fosse chamar
o sr. Savedra! O policia bracejava, enfiado. E o cavalleiro, tirando as luvas,
ia abrir a portinhola, esmurrar o homem – quando, trotando na grande horsa,
um municipal de punho alçado correu, gritou, injuriou o cavalleiro
gordo, fez rodar para óra a caleche. Outro municipal entrometteu-se,
brutalmente. Duas senhoras, agarrando os vestidos, fugiram para um portal,
espavoridas. E atravez do reboliço, da poeira, sentia-se adiante, melancolicamente,
um realejo tocando a Traviata.
O phaeton entrou – atraz do dog-cart, onde o homem gordo, a estoirar de furia,
voltava ainda para traz a face escarlate, jurando dar parte do municipal.
– Tudo isto está arranjado com decencia, murmurou Craft.
Diante d’elles, o hyppodromo elevava-se suavemente em colina, parecendo, depois
da poeirada quente da calçada e das cruas reverberações
da cal, mais fresco, mais vasto, com a sua relva já um pouco crestada
pelo sol de junho, e uma ou outra papoula vermelhejando aqui e além.
Uma aragem larga e repousante chegava vagarosamente do rio.
No centro, como perdido no largo espaço verde, negrejava, no brilho
do sol, um magote apertado de gente, com algumas carruagens pelo meio, d’onde
sobresahiam tons claros de sombrinhas, o faiscar d’um vidro de lanterna, ou
um casaco branco de cocheiro. Para além, dos dois lados da tribuna
real forrada de um baetão vermelho de mesa de Repartição,
erguiam-se as duas tribunas publicas, com o feitio de traves mal pregadas,
como palanques d’arraial. A da esquerda vasia, por pintar, mostrava á
luz as fendas do taboado. Na da direita, bezuntada por fóra d’azul
claro, havia uma fila de senhoras quasi todas de escuro encostadas ao rebordo,
outras espalhadas pelos primeiros degraus; e o resto das bancadas permanecia
deserto e desconsolado, d’um tom alvadio de madeira, que abafava as côres
alegres dos raros vestidos de verão. Por vezes a briza lenta agitava
no alto dos dois mastros o azul das bandeirolas. Um grande silencio caía
do ceu faiscante.
Em volta do recinto da tribuna, fechado por um tapume de madeira, havia mais
soldados de infanteria, com as bayonetas lampejando ao sol. E no homem triste
que estava á entrada, recebendo os bilhetes, mettido dentro d’um enorme
collete branco, reteso de gomma, e que lhe chegava até aos joelhos
– Carlos reconheceu o servente do seu laboratorio.
Apenas tinham dado alguns passos encontraram Taveira á porta do buffete
onde se estivera reconfortando com uma cerveja. Tinha um molho de cravos amarellos
ao peito, polainas brancas, – e queria animar as corridas. Já vira
a Mist, a egoa de Clifford, e decidira apostar pela Mist. Que cabeça
d’animal, meninos, que finura de pernas!…
– Palavra que me enthusiasmou! E está decidido, um dia não são
dias, é necessario animar isto! Aposto trez mil réis. Quer você
Craft?
– Pois sim, talvez, depois… Vamos primeiro vêr o aspecto geral.
No recinto em declive, entre a tribuna e a pista, havia só homens,
a gente do Gremio, das Secretarias e da Casa Havaneza; a maior parte á
vontade, com jaquetões claros, e de chapéo côco; outros
mais em estilo, de sobrecasaca e binoculo a tiracollo, pareciam embaraçados
e quasi arrependidos do seu chic. Fallava-se baixo, com passos lentos pela
relva, entre leves fumaraças de cigarro. Aqui e além um cavalheiro,
parado, de mãos atraz das costas, pasmava languidamente para as senhoras.
Ao lado de Carlos dois brazileiros queixavam-se do preço dos bilhetes,
achando aquillo «uma semsaboria de rachar.»
Defronte a pista estava deserta, com a relva pisada, guardada por soldados:
e junto á corda, do outro lado, apinhava-se o magote de gente, com
as carruagens pelo meio, sem um rumor, n’uma pasmaceira tristonha, sob o peso
do sol de junho. Um rapazote, com uma voz dolente, apregoava agua fresca.
Lá ao fundo o largo Tejo faiscava, todo azul, tão azul como
o ceu, n’uma pulverisação fina de luz.
O visconde de Darque, com o seu ar placido de gentleman louro que começa
a engordar, veio apertar a mão a Carlos e a Craft. E mal elles lhe
fallaram dos seus cavallos (Rabbino, o favorito, e o outro potro) encolheu
os hombros, cerrou os olhos, como um homem que se sacrifica. Então,
que diabo, os rapazes tinham querido!… Mas elle, realmente, não podia
apresentar um cavallo decente, com as suas côres, senão d’ahi
a quatro annos. De resto não apurava cavallos para aquella melancolia
de Belem, não imaginassem os amigos que elle era tão patriota:
o seu fim era ir a Hespanha, bater os cavallos de Caldillo…
– Emfim, vamos a vêr… Dê você cá lume. Isto está
um horror. E depois, que diabo, para corridas é necessario cocottes
e Champagne. Com esta gente seria, e agua fresca, não vae!
N’esse momento um dos commissarios das corridas, um rapagão sem barba,
vermelho como uma papoula, a pingar de suor sob o chapéo branco deitado
para a nuca, veio arrebatar o Darque, «que era muito preciso, lá
na pesagem, para uma duvidasinha.»
– Eu sou o diccionario, dizia o Darque, tornando a encolher os hombros resignadamente.
De vez em quando vem um d’estes senhores do Jockey-Club, e folheia-me… Veja
você, Maia, em que estado eu fico depois das corridas! Ha-de ser necessario
encadernar-me de novo…
E lá foi, rindo da sua pilheria – empurrado para diante pelo commissario,
que lhe dava palmadas familiares nas costas, e lhe chamava catita.
– Vamos nós vêr as mulheres, disse Carlos.
Seguiram devagar ao comprido da tribuna. Debruçadas no rebordo, n’uma
fila muda, olhando vagamente, como d’uma janella em dia de procissão,
estavam ali todas as senhoras que vêem no high-life dos jornaes, as
dos camarotes de S. Carlos, as das terças-feiras dos Gouvarinhos. A
maior parte tinha vestidos serios de missa. Aqui e além um d’esses
grandes chapéos emplumados á Gainsborough, que então
se começavam a usar, carregava d’uma sombra maior o tom trigueiro d’uma
carinha miuda. E na luz franca da tarde, no grande ar da collina descoberta,
as pelles appareciam murchas, gastas, molles, com um baço de pó
de arroz.
Carlos cumprimentou as duas irmãs do Taveira, magrinhas, loirinhas,
ambas correctamente vestidas de xadrezinho: depois a viscondessa d’Alvim,
nedia e branca, com o corpete negro reluzente de vidrilhos, tendo ao lado
a sua terna inseparavel, a Joaninha Villar, cada vez mais cheia, com um quebranto
cada vez mais doce nos olhos pestanudos. Adiante eram as Pedrosos, as banqueiras,
de côres claras, interessando-se pelas corridas, uma de programma na
mão, a outra de pé e de binoculo estudando a pista. Ao lado,
conversando com Steinbroken, a condessa de Soutal, desarranjada, com um ar
de ter lama nas saias. N’uma bancada isolada, em silencio, Villaça
com duas damas de preto.
A condessa de Gouvarinho ainda não viera. E não estava tambem
aquella que os olhos de Carlos procuravam, inquietamente e sem esperança.
– É um canteirinho de camelias meladas, disse o Taveira, repetindo
um dito do Ega.
Carlos, no entanto, fôra fallar á sua velha amiga D. Maria da
Cunha que, havia momentos, o chamava com o olhar, com o leque, com o seu sorriso
de bôa mamã. Era a unica senhora que ousara descer do retiro
ajanellado da tribuna, e vir sentar-se em baixo, entre os homens: mas, como
ella disse, não aturara a séca de estar lá em cima perfilada,
á espera da passagem do Senhor dos Passos. E, bella ainda sob os seus
cabellos já grisalhos, só ella parecia divertir-se alli, muito
á vontade, com os pés pousados na travessa d’uma cadeira, o
binoculo no regaço, cumprimentada a cada instante, tratando os rapazes
por meninos… Tinha comsigo uma parenta que apresentou a Carlos, uma senhora
hespanhola, que seria bonita se não fossem as olheiras negras, cavadas
até ao meio da face. Apenas Carlos se sentou ao pé d’ella, D.
Maria perguntou-lhe logo por esse aventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse
Carlos, estava em Celorico compondo uma comedia para se vingar de Lisboa,
chamada o Lodaçal…
– Entra o Cohen? perguntou ella, rindo.
– Entramos todos, sr.ª D. Maria. Todos nós somos lodaçal…
N’esse momento, por traz do recinto, rompia, com um taran-tan-tan mollengão
de tambores e pratos, o hymno da Carta, a que se misturou uma voz de official
e o bater de coronhas. E, entre dourados de dragonas, El-rei appareceu na
tribuna, sorrindo, de quinzena de velludo, e chapéo branco. Aqui e
além, raros sujeitos cumprimentaram, muito de leve: a senhora hespanhola,
essa, tomou o oculo do regaço de D. Maria, e de pé, muito descançadamente,
poz-se a examinar o rei. D. Maria achava ridicula a musica, dando ás
corridas um ar de arraial… Além d’isso, que tolice, o hymno, como
n’um dia de parada!
– E este hymno, então, que é medonho, dizia Carlos. A sr.ª
D. Maria não sabe a definição do Ega, e a sua theoria
dos hymnos? Maravilhosa!
– Aquelle Ega! dizia ella sorrindo, já encantada.
– O Ega diz que o hymno é a definição pela musica do
caracter d’um povo. Tal é o compasso do hymno nacional, diz elle, tal
é o movimento moral da nação. Agora veja a sr.ª
D. Maria os differentes hymnos, segundo o Ega. A Marselheza avança
com uma espada núa. O God save the queen adianta-se, arrastando um
manto real…
– E o hymno da Carta?
– O hymno da Carta ginga, de rabona.
E D. Maria ria ainda, quando a hespanhola, sentando-se e repousando-lhe tranquillamente
o binoculo no regaço, murmurou:
– Tiene cara de buena persona.
– Quem, o rei? exclamaram a um tempo D. Maria e Carlos. Excellente!
No entanto uma sineta tocava, perdida no ar. E no quadro indicador subiram
os numeros dos dois cavallos que corriam o primeiro premio dos Productos.
Eram o n.º1 e o n.º 4. D. Maria Telles quiz-lhe saber os nomes,
com o appetite de apostar e ganhar cinco tostões a Carlos. E como Carlos
se erguia para arranjar um programma:
– Deixe estar o menino, disse ella, tocando-lhe no braço. Ahi vem o
nosso Alencar, com o programma… Olhe para aquillo! Veja se ainda hoje os
ha por ahi com aquelle ar de sentimento e de poesia…
Com um fato novo de cheviote claro que o remoçava, de luvas gris-perle,
o seu bilhete de pezagem na botoeira, o poeta vinha-se abanando com o programma,
e já de longe sorrindo á sua boa amiga D. Maria. Quando chegou
junto d’ella, descoberto, bem penteado n’esse dia, com um lustre d’oleo na
grenha, levou-lhe a mão aos labios, fidalgamente.
D. Maria fôra uma das suas lindas contemporaneas. Tinham dançado
muita ardente mazurka nos salões de Arroios. Ella tratava-o por tu.
Elle dizia sempre boa amiga, e querida Maria.
– Deixa vêr os nomes d’esses cavallos, Alencar… Senta-t’ahi, anda,
faze companhia.
Elle puchou uma cadeira, rindo do interesse que ella tomava pelas corridas.
E elle que a conhecera sempre uma enthusiasta de toiros!… Pois os nomes
dos cavallos eram Jupiter e Escossez…
– Nenhum d’esses nomes me agrada, não aposto. E então que te
parece tudo isto, Alencar?… A nossa Lisboa vae-se sahindo da concha…
Alencar, pousando o chapéo sobre uma cadeira, e passando a mão
pela sua vasta fronte de bardo, confessou que aquillo tinha realmente um certo
ar de elegancia, um perfume de côrte… Depois, lá em baixo,
aquelle maravilhoso Tejo… Sem fallar na importancia do apuramento das raças
cavallares…
– Pois não é verdade, meu Carlos? Tu que entendes superiormente
d’isso, que és um mestre em todos os sports, sabes bem que o apuramento…
– Sim, com effeito, o apuramento, muito importante… – disse Carlos, vagamente,
erguendo-se a olhar outra vez a tribuna.
Eram quasi tres horas, e agora, de certo, ella já não vinha:
e a condessa de Gouvarinho não apparecia tambem… Começava
a invadil-o uma grande lassitude. Respondendo, com um leve movimento de cabeça,
ao sorriso doce que lhe dava da tribuna a Joaninha Villar, pensava em voltar
para o Ramalhete, acabar tranquillamente a tarde dentro do seu robe-de-chambre,
com um livro, longe de todo aquelle tédio.
No entanto, ainda entravam senhoras. A menina Sá Videira, filha do
rico negociante de sapatos d’ourello, passou pelo braço do irmão,
abonecada, com o arsinho petulante e enojado de tudo, fallando alto inglez.
Depois foi a ministra da Baviera, a baroneza de Craben, enorme, empavoada,
com uma face macissa de matrona romana, a pelle cheia de manchas côr
de tomate, a estalar dentro d’um vestido de gorgorão azul com riscas
brancas: e atraz o barão, pequenino, amavel, aos pulinhos, com um grande
chapéo de palha.
D. Maria da Cunha erguera-se para lhes fallar: e durante um momento ouviu-se,
como um glou-glou grosso de perú, a voz da baroneza achando que c’était
charmant, c’était très beau. O barão, aos pulinhos, aos
risinhos, trouvait ça ravissant. E o Alencar, diante d’aquelles estrangeiros
que o não tinham saudado, apurava a sua attitude de grande homem nacional,
retorcendo a ponta dos bigodes, alçando mais a fronte núa.
Quando elles seguiram para a tribuna, e a boa D. Maria se tornou a sentar,
o poeta, indignado, declarou que abominava allemães! O ar de sobranceria
com que aquella ministra, com feitio de barrica, deixando sahir o cebo por
todas as costuras do vestido, o olhára, a elle! Ora, a insolente baleia!
D. Maria sorria, olhando com sympatia o poeta. E voltando-se de repente para
a senhora hespanhola:
– Concha, deja-me presentar-te D. Thomaz de Alencar, nuestro gran poeta lyrico…
N’esse momento, alguns dos rapazes mais amadores, dos que traziam binoculos
a tiracollo, apressaram o passo para a corda da pista. Dois cavallos passavam
n’um galope sereno, quasi juntos, sob as vergastadas estonteadas de dois jockeys
de grande bigode. Uma voz erguendo-se disse que tinha ganhado Escossez. Outros
affirmavam que fôra Jupiter. E no silencio que se fez, de lassidão
e de desapontamento, ondeou mais viva no ar, lançada pelos flautins
da banda, a valsa de madame Angot. Alguns sujeitos tinham-se conservado de
costas para a pista, fumando, olhando a tribuna – onde as senhoras continuavam
debruçadas no parapeito, á espera do Senhor dos Passos. Ao lado
de Carlos, um cavalheiro resumiu as impressões, dizendo que tudo aquillo
era uma intrujice.
E quando Carlos se ergueu para ir procurar o Damaso, Alencar, muito animado
com a hespanhola, fallava de Sevilha, de malagueñas e do coração
d’Espronceda.
O desejo de Carlos agora era achar Damazo, saber porque falhara a visita aos
Olivaes – e depois ir-se embora para o Ramalhete, esconder aquella melancolia
que o enevoava, estranha e pueril, misturada de irritabilidade, fazendo-lhe
detestar as vozes que lhe fallavam, os rantatans da musica, até a belleza
calma da tarde… Mas ao dobrar a esquina da tribuna, topou com Craft, que
o deteve, o apresentou a um rapaz loiro e forte com quem estava fallando alegremente.
Era o famoso Clifford, o grande sportman de Cordova. Em redor sujeitos tinham
parado, embasbacados para aquelle inglez legendario em Lisboa, dono de cavallos
de corridas, amigo do Rei d’Hespanha, homem de todos os chics. Elle, muito
á vontade, um pouco poseur, com um simples veston de flanella azul
como no campo, ria alto com o Craft do tempo em que tinham estado no collegio
de Rugby. Depois pareceu-lhe reconhecer Carlos, amavelmente. Não se
tinham encontrado havia quasi um anno, em Madrid, n’um jantar, em casa de
Pancho Calderon? E assim era. O aperto de mão que repetiram foi mais
intimo – e Craft quiz que fossem regar aquella flor d’amisade com uma garrafa
de mau Champagne. Em roda crescera a pasmaceira.
O buffete estava installado debaixo da tribuna, sob o taboado nú, sem
sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo corria uma prateleira de taberna
com garrafas e pratos de bolos. E, no balcão tosco, dois criados, estonteados
e sujos, achatavam á pressa as fatias de sandwiches com as mãos
humidas da espuma da cerveja.
Quando Carlos e os seus amigos entraram, havia junto d’um dos barrotes que
especavam os degraus da tribuna, n’um grupo animado, com copos de champagne
na mão, o marquez, o visconde de Darque, o Taveira, um rapaz pallido
de barba preta, que tinha debaixo do braço enrolada a bandeira vermelha
de Starter, e o commissario imberbe, com o chapéo branco cada vez mais
atirado para a nuca, a face mais esbrazeada, o collarinho já molle
de suor. Era elle que offerecia o champagne; e apenas viu entrar Clifford,
rompeu para elle, de taça no ar, fez tremer as vigas, soltando o seu
vozeirão:
– Á saude do amigo Clifford! o primeiro sportman da península,
e rapaz cá dos nossos!… Hip hip, hurrah!
Os copos ergueram-se, n’um clamor d’hurrahs, onde destacou, vibrante e enthusiasta,
a voz do starter. Clifford agradecia, risonho, tirando lentamente as luvas
– em quanto o marquez, puxando Carlos pelo braço para o lado, lhe apresentava
rapidamente o commissario, seu primo D. Pedro Vargas.
– Muito gosto em conhecer…
– Qual historias! Eu é que fazia furor! exclamou o commissario. Cá
a rapaziada do sport deve-se conhecer toda… Porque isto cá é
a confraria, e todo o resto é chinfrinada!
E immediatamente arrebatou o copo ao ar, berrou com um impeto que lhe trazia
mais sangue á face:
– Á saude de Carlos da Maia, o primeiro elegante cá da patria!
a melhor mão de redea… Hip, hip, hurrah…
– Hip, hip, hip… Hurrah!
E foi ainda a voz do starter que deu o hurrah mais vibrante e mais enthusiasta.
Um empregado assomou á porta do buffete, e chamou o sr. commissario.
O Vargas atirou uma libra para o balcão, abalou, gritando já
de fóra, com o olho acceso:
– Isto vae-se animando, rapazes! Caramba! É carregar no liquido! E
você, oh lá de baixo, o patrão, sô Manuel, mande
vir esse gelo… Está a gente aqui a tomar a bebida quente… Despache
um proprio, vá você, rebente! Irra!
No entanto em quanto se desarrolhava o champagne de Craft, Carlos tinha convidado
Clifford a jantar n’essa noite no Ramalhete. O outro acceitou, molhando os
labios no copo, achando excellente que se continuasse a tradição
de jantarem juntos, sempre que se encontravam.
– Olá! o general por aqui! exclamou Craft.
Os outros voltaram-se. Era o Sequeira, com a face como um pimentão,
entalado n’uma sobrecasaca curta que o fazia mais atarracado, de chapeu branco
sobre o olho, e grande chicote debaixo do braço.
Acceitou um copo de Champagne, e teve muito prazer em conhecer o sr. Clifford…
– E que me diz você a esta semsaboria? exclamou elle logo, voltando-se
para Carlos.
Em quanto a si estava contente, pulava… Aquella corrida insipida, sem cavallos,
sem jockeys, com meia duzia de pessoas a bocejar em roda, dava-lhe a certeza
que eram talvez as ultimas, e que o Jockey-Club rebentava… E ainda bem!
Via-se a gente livre d’um divertimento que não estava nos habitos do
paiz. Corridas era para se apostar. Tinha-se apostado? Não, então
historias!… Em Inglaterra e em França, sim! Ahi eram um jogo como
a roletta, ou como o monte… Até havia banqueiros, que eram os bookmakers…
Então já viam!
E como o marquez, pousando o copo, e querendo calmar o general, fallava do
apuramento das raças, e da remonta, – o outro ergueu os hombros, com
indignação:
– Que me está você a cantar! Quer você dizer que se apura
a raça para a remonta da cavallaria?… Ora vá lá montar
o exercito com cavallos de corridas!… Em serviço o que se quer não
é o cavallo que corra mais, é o cavallo que aguente mais…
O resto é uma historia… Cavallos de corridas são phenomenos!
São como o boi com duas cabeças… Então historias!…
Em França até lhe dão Champagne, homem!… Então
veja lá!…
E a cada phrase, sacudia os hombros, furiosamente. Depois, d’um trago, esvasiou
o seu copo de Champagne, repetiu que tinha muito prazer em conhecer o sr.
Clifford, rodou sobre os tacões, sahiu, bufando, entalando mais debaixo
do braço o chicote – que tremia na ponta como avido de vergastar alguem.
Craft sorria, batia no hombro de Clifford.
– Veja você! cá nós, velhos portuguezes, não gostamos
de novidades, e de sports… Somos pelo toiro…
– Com razão, dizia o outro, serio e aprumando-se sobre o collarinho.
Ainda ha dias me contava na Granja, o Rei de Hespanha…
De repente, fóra, houve um reboliço, e vozes sobresaltadas gritando
ordem! Uma senhora, que atravessava com um pequenito, fugiu para dentro do
buffete, enfiada. Um policia passou, correndo.
Era uma desordem!
Carlos e os outros, sahindo á pressa, viram ao pé da tribuna
real um magote de homens – onde bracejava o Vargas. Do largo da pesagem, os
rapazes corriam com curiosidade, já excitados, apinhando-se, alçando-se
em bicos de pés; do recinto das carruagens acudiam outros, saltando
as cordas da pista, apesar dos repellões dos policias: – e agora era
uma massa tumultuosa de chapéos altos, de fatos claros, empurrando-se
contra as escadas da tribuna real, onde um ajudante d’el-rei, reluzente de
agulhetas e em cabello, olhava tranquillamente.
E Carlos, furando, poude emfim avistar no meio do montão um dos sujeitos
que correra no premio dos Productos, o que montava Jupiter, ainda de botas,
com um paletot alvadio por cima da jaqueta de jockey, furioso, perdido, injuriando
o juiz das corridas, o Mendonça, que arregalava os olhos, aturdido
e sem uma palavra. Os amigos do jockey puxavam-n’o, queriam que elle fizesse
um protesto. Mas elle batia o pé, tremulo, livido, gritando que não
se importava nada com protestos! Perdera a corrida por uma pouca vergonha!
O protesto alli era um arrocho! Porque o que havia n’aquelle hyppodromo era
compadrice e ladroeira!
Individuos, mais serios, indignaram-se com esta brutalidade.
– Fóra! Fóra!
Alguns tomavam o partido do jockey; já aos lados outras questões
surgiam, desabridas. Um sujeito vestido de cinzento berrava que o Mendonça
decidira pelo Pinheiro, que montava Escossez, por ser intimo d’elle; outro
cavalheiro, de binoculo a tiracollo, achava aquella insinuação
infame; e os dois, frente a frente, com os punhos fechados, tratavam-se furiosamente
de pulhas.
E, todo este tempo, um homem baixote, de grandes collarinhos de pintinhas,
procurava romper, erguia os braços, exclamava, n’uma voz supplicante
e rouca:
– Por quem são, meus senhores… Um momento… Eu tenho experiencia…
Eu tenho experiencia!
De repente o vozeirão do Vargas dominou tudo, como um urro de toiro.
Diante do jockey, sem chapéo, com a face a estoirar de sangue, gritava-lhe
que era indigno de estar alli, entre gente decente! Quando um gentleman duvida
do juiz da corrida, faz um protesto! Mas vir dizer que ha ladrões,
era só d’um canalha e d’um fadista, como elle, que nunca devia ter
pertencido ao Jockey-Club! – O outro, agarrado pelos amigos, esticando o pescoço
magro como para lhe morder, atirou-lhe um nome sujo. Então o Vargas,
com um encontrão para os lados, abriu espaço, repuxou
as mangas, berrou:
– Repita lá isso! repita lá isso!
E immediatamente aquella massa de gente oscillou, embateu contra o taboado
da tribuna real, remoinhou em tumulto, com vozes de ordem e morra, chapéos
pelo ar, baques surdos de murros.
Por entre o alarido vibravam, furiosamente, os apitos da policia; senhoras,
com as saias apanhadas, fugiam atravez da pista, procurando espavoridamente
as carruagens; – e um sopro grosseiro de desordem relles passava sobre o hyppodromo,
desmanchando a linha postiça de civilisação e a attitude
forçada de decoro…
Carlos achou-se ao pé do marquez, que exclamava, pallido:
– Isto é incrivel, isto é incrivel!…
Carlos, pelo contrario, achava pittoresco.
– Qual pittoresco, homem! É uma vergonha, com todos esses estrangeiros!
No entanto a massa de gente dispersava, lentamente, obedecendo ao official
de guarda, um moço pequenino mas decidido, que, em bicos de pés,
aconselhava para os lados, n’uma voz de orador, «cavalheirismo»
e «prudencia…» O jockey de paletot alvadio affastou-se, apoiado
ao braço d’um amigo, cocheando, com o nariz a pingar sangue: e o commissario
desceu para a pista, com um cortejo atraz, triumphante, sem collarinho, arranjando
o chapéo achatado n’uma pasta. A musica tocava a marcha do Propheta;
em quanto o desgraçado juiz das corridas, o Mendonça, encostado
á tribuna real, com os braços cahidos, aparvalhado, balbuciava
n’um resto d’assombro:
– Isto só a mim! Isto só a mim!
O marquez, n’um grupo a que se juntára o Clifford, Craft, e Taveira,
continuava a vociferar:
– Então, estão convencidos? Que lhes tenho eu sempre dito? Isto
é um paiz que só supporta hortas e arraiaes… Corridas, como
muitas outras coisas civilisadas lá de fóra, necessitam primeiro
gente educada. No fundo todos nós somos fadistas! Do que gostamos é
de vinhaça, e viola, e bordoada, e viva lá seu compadre! Ahi
está o que é!
Ao lado d’elle Clifford, que no meio d’aquelle desmancho todo esticava mais
correctamente a sua linha de gentleman, mordia um sorriso, assegurando, com
um ar de consolação, que conflictos eguaes succedem em toda
a parte… Mas no fundo parecia achar tudo aquillo ignobil. Dizia-se mesmo
que elle ia retirar a Mist. E alguns davam-lhe razão. Que diabo! Era
aviltante para um bello animal de raça correr n’um hyppodromo sem ordem
e sem decencia, onde a todo o momento podiam reluzir navalhas.
– Ouve cá, tu viste por acaso esse animal do Damaso? perguntou Carlos,
chamando para o lado o Taveira. Ha uma hora que ando a farejal-o…
– Estava ainda ha pouco do outro lado, no recinto das carruagens, com a Josephina
do Salazar… Anda extraordinario, de sobrecasaca branca, e de véo
no chapéo!
Mas, quando d’ahi a pouco, Carlos quiz atravessar, a pista estava fechada.
Ia-se correr o Grande premio nacional. Os numeros já tinham subido
ao indicador, um tom de sineta morria no ar. Um cavallo do Darque, o Rabbino,
com o seu jockey de encarnado e branco, descia, trazido á redea por
um groom e acompanhado pelo Darque: alguns sujeitos paravam a examinar-lhe
as pernas, com o olho serio, affectando entender. Carlos demorou-se um momento
tambem, admirando-o: era d’um bonito castanho escuro, nervoso e ligeiro, mas
com o peito estreito.
Depois, ao voltar-se, viu de repente a Gouvarinho, que acabava de certo de
chegar, e conversava de pé com D. Maria da Cunha. Estava com uma toilette
ingleza, justa e simples, toda de cazimira branca, d’um branco de creme, onde
as grandes luvas negras á mosqueteira punham um contraste audaz: e
o chapéo preto tambem desapparecia sob as pregas finas d’um véo
branco, enrolado em volta da cabeça, cobrindo-lhe metade do rosto,
com um ar oriental que não ía bem ao seu narizinho curto, ao
seu cabello côr de braza. Mas em redor os homens olhavam para ella como
para um quadro.
Ao avistar Carlos, a condessa não conteve um sorriso, um brilho de
olhos que a illuminou. Instinctivamente deu um passo para elle: e ficaram
um instante isolados, fallando baixo, em quanto D. Maria os observava, sorrindo,
cheia já de benevolencia, prompta já a abençoal-os maternalmente.
– Estive para não vir, dizia a condessa, que parecia nervosa. O Gastão
fez-se tão desagradavel hoje! E naturalmente tenho d’ir ámanhã
para o Porto.
– Para o Porto?…
– O papá quer que eu lá vá, são os annos d’elle…
Coitado, vae-se fazendo velho, escreveu-me uma carta tão triste…
Ha dois annos que me não vê…
– O conde vae?
– Não.
E a condessa, depois de dar um sorriso ao ministro da Baviera, que a cumprimentava
de passagem, aos pulinhos, acrescentou, mergulhando o olhar nos olhos de Carlos:
– E quero uma coisa.
– O que?
– Que venhas tambem.
Justamente n’esse instante, Telles da Gama, de programma e lapis na mão,
parou junto d’elles:
– Você quer entrar n’uma poule monstro, Maia? Quinze bilhetes, dez tostões
cada um… Lá em cima ao canto da tribuna está-se apostando
ferozmente… A desordem fez bem, sacudiu os nervos, todo o mundo acordou…
Quer v. ex.ª tambem, sr.ª condessa?
Sim, a condessa tambem entrava na poule. Telles da Gama inscreveu-a, e abalou
atarefado. Depois foi Steinbroken que se acercou, todo florído, de
chapéo branco, ferradura de rubis na gravata, mais esticado, mais loiro,
mais inglez, n’este dia solemne de sport official.
– Ah, comme vous êtes belle, comtesse!… Voilá une toilette
merveilleuse, n’est ce pas, Maia?… Est ce que nous n’allons pas parier quelque
chose?
A condessa contrariada, querendo fallar a Carlos, risonha todavia, lamentou-se
de ter já uma fortuna compromettida… Emfim sempre apostava cinco
tostões com a Filandia. Que cavallo tomava elle?
– Ah, je ne sais pas, je ne connais pas les chevaux… D’abord, quand on parie…
Ella, impaciente, offereceu-lhe Vladimiro. E teve de estender a mão
a outro filandez, o secretario de Steinbroken, um moço loiro, lento,
languido, que se curvara em silencio diante d’ella, deixando escorregar do
olho claro e vago o seu monoculo d’ouro. Quasi immediatamente Taveira excitado
veiu dizer que Clifford retirara a Mist.
Vendo-a assim cercada, Carlos affastou-se. Justamente o olhar de D. Maria,
que o não deixara, chamava-o agora, mais carinhoso e vivo. Quando elle
se chegou, ella puxou-lhe pela manga, fel-o debruçar, para lhe murmurar
ao ouvido, deliciada:
– Está hoje tão galante!
– Quem?
D. Maria encolheu os hombros, impaciente.
– Ora quem! Quem ha-de ser? O menino sabe.
– Muito galante, com effeito, disse Carlos friamente.
De pé, junto de D. Maria, tirando de vagar uma cigarrette, elle ruminava,
quasi com indignação, as palavras da condessa. Ir com ella para
o Porto!… E via alli outra exigencia audaz, a mesma tendencia impertinente
a dispôr do seu tempo, dos seus passos, da sua vida! Tinha um desejo
de voltar junto d’ella, dizer-lhe que não, seccamente, desabridamente,
sem motivos, sem explicações, como um brutal.
Acompanhada em silencio pelo esguio secretario de Steinbroken, ella vinha
agora caminhando lentamente para elle: e o olhar alegre com que o envolvia
irritou-o mais, sentindo no seu brilho sereno, no sorrir calmo, quanto ella
estava certa da sua submissão.
E estava. Apenas o filandez se affastou languidamente – ella, muito tranquilla,
alli mesmo junto de D. Maria, fallando em inglez, e apontando para a pista
como se commentasse os cavallos do Darque, explicou-lhe um plano que imaginara,
encantador. Em logar de partir na terça feira para o Porto – ia na
segunda á noite, só com a criada escocessa, sua confidente,
n’um compartimento reservado. Carlos tomava o mesmo comboio. Em Santarem,
desciam ambos, muito simplesmente, e iam passar a noite ao hotel. No dia seguinte
ella seguia para o Porto, elle recolhia a Lisboa…
Carlos abria os olhos para ella, assombrado, emmudecido. Não esperava
aquella extravagancia. Suppozera que ella o queria no Porto, escondido no
Francfort, para passeios romanticos á Foz, ou visita furtivas a algum
casebre da Aguardente… Mas a idéa d’uma noite, n’um hotel, em Santarem!
Terminou por encolher os hombros, indignado. Como queria ella, n’uma linha
de caminho de ferro em que se encontra constantemente gente conhecida, apear-se
com elle na estação de Santarem, dar-lhe o braço, maritalmente,
e enfiarem para uma estalagem? Ella, porém, pensára em todos
os detalhes. Ninguem a conheceria, disfarçada n’um grande water-proof,
e com uma cabelleira postiça.
– Com uma cabelleira!?
– O Gastão! murmurou ella de repente.
Era o conde, por traz d’elle, abraçando-o ternamente pela cintura.
E quiz logo saber a opinião do amigo Maia sobre as corridas. Bastante
animação, não é verdade? E bonitas toilettes,
certo ar de luxo… Emfim, não envergonhavam. E ahi estava provado
o que elle sempre dissera, que todos os requintes da civilisação
se aclimatavam bem em Portugal…
– O nosso solo moral, Maia, como o nosso solo physico, é um solo abençoado!
A condessa voltara para o pé de D. Maria. E Telles da Gama, passando
de novo, n’aquella faina ruidosa em que o trazia a formação
da sua poule, chamou Carlos para a tribuna, para elle tirar o seu bilhete,
e apostar com as senhoras…
– Oh Gouvarinho! venha tambem d’ahi, homem! exclamou elle. Que diabo! É
necessario animar isto, é até patriotico.
E o conde condescendeu, por patriotismo.
– É bom, dizia elle, travando do braço de Carlos, fomentar os
divertimentos elegantes. Já uma vez o disse na camara: o luxo é
conservador.
Em cima, a um canto, n’um grupo de senhoras, foram com effeito encontrar uma
animação – que quasi fazia escandalo n’aquella tribuna silenciosa
e á espera do Senhor dos Passos. A viscondessa de Alvim dobrava atarefadamente
os bilhetes da poule: uma secretariasinha da Russia, de bonitos olhos garços,
apostava desesperadamente placas de cinco tostões, estonteada, já
embrulhada, rabiscando com phrenesi o seu programma. A Pinheiro, a mais magra,
com um vestido leve de raminhos Pompadour que lhe fazia covas nas claviculas,
dava opiniões pretenciosas sobre os cavallos, em inglez: emquanto o
Taveira, de olhos humidos no meio de todas aquellas saias, fallava de arruinar
as senhoras, de viver á custa das senhoras… E todos os homens, acotovelando-se,
queriam fazer uma aposta com a Joanninha Villar, que, de costas contra o rebordo
da tribuna, gordinha e languida, sorrindo, com a cabeça deitada para
traz, as pestanas mortas, parecia offerecer a todas aquellas mãos,
que se estendiam gulosamente para ella, o seu appetitoso peito de rola.
Telles da Gama, no entanto, ia organisando a confusão alegre. Os bilhetes
estavam dobrados, era necessario um chapéo… Então os cavalheiros
affectaram um amor desordenado pelos seus chapéos, não os querendo
confiar ás mãos nervosas das senhoras; um rapaz, todo de luto,
excedeu-se mesmo, agarrando as abas do seu, com ambas as mãos, aos
gritos.
A secretariasinha da Russia, impaciente, terminou por offerecer o barrete
de marujo do seu pequeno – uma creança obesa, pousada alli para um
lado como uma trouxa. Foi a Joanninha Villar que levou em roda os bilhetes,
rindo e chocalhando-os preguiçosamente; emquanto o secretario de Steinbroken,
grave, como exercendo uma funcção, recolhia no seu grande chapéo
as placas cahindo uma a uma com um som argentino. E a tiragem foi o lindo
divertimento da poule. Como estavam só quatro cavallos inscriptos,
e as entradas eram quinze, havia onze bilhetes brancos que aterravam. Todos
ambicionavam tirar o numero tres, o de Rabbino, o cavallo de Darque, favorito
do Premio Nacional. Assim cada mãosinha soffrega que se demorava no
fundo do barrete, remexendo, tenteando os papeis, causava uma indignação
folgasã, n’um exagero de risos.
– A sr.ª viscondessa procura de mais!… E dobrou os numeros, conhece-os…
É necessario probidade, sr.ª viscondessa!
– Oh, mon Dieu, j’ai Minhoto, cette rosse!
– Je vous l’achette, madame!
– Ó sr.ª D. Maria Pinheiro, v. ex.ª leva dous numeros!…
– Ah! je suis perdue… Blanc!
– E eu! É necessario fazer outra poule! Vamos fazer outra poule!
– Isso! Outra poule, outra poule!
No entanto a enorme baroneza de Craben, n’um degrau mais elevado, que ella
occupava só, como um throno, erguera-se, com o seu bilhete na mão.
Tinha tirado Rabbino: e affectava superiormente não comprehender esta
fortuna, perguntava o que era Rabbino. Quando o conde de Gouvarinho lhe explicou
muito serio a importancia de Rabbino, e que Rabbino era quasi uma gloria publica,
ella mostrou a dentuça, condescendeu em rosnar do fundo do papo que
c’etait charmant. Todo o mundo a invejava; e a vasta baleia alastrou-se de
novo sobre o seu throno, abanando-se, com magestade.
E subitamente houve uma surpreza: em quanto elles tiravam os bilhetes, os
cavallos tinham partido, passavam juntos diante da tribuna. Todos se ergueram,
de binoculos na mão. O starter ainda estava na pista, com a bandeira
vermelha inclinada ao chão: e as ancas de cavallos fugiam
na curva, lustrosos á luz, sob as jaquetas enfunadas dos jockeys.
Então todo o rumor de vozes caíu; e no silencio a bella tarde
pareceu alargar-se em redor, mais suave e mais calma. Atravez do ar sem poeira,
sem a vibração dos raios fortes, tudo tomava uma nitidez delicada:
defronte da tribuna, na collina, a relva era d’um louro quente: no grupo de
carruagens scintillava por vezes o vidro de uma lanterna, o metal de um arreio,
ou de pé, sobre uma almofada, destacava em escuro alguma figura de
chapeo alto; e pela pista verde, os cavallos corriam, mais pequenos, finamente
recortados na luz. Ao fundo, a cal das casas cobria-se de uma leve agoada
côr de rosa: e o distante horizonte resplandecia, com dourados de sol,
brilhos de po vidrado, fundindo-se n’uma nevoa luminosa, onde as collinas,
nos seus tons azulados, tinham quasi transparencia, como feitas d’uma substancia
preciosa…
– É Rabbino! exclamou por traz de Carlos, um sugeito, de pé
n’um degrau.
As côres encarnadas e brancas do Darque corriam com effeito na frente.
Os dous outros cavallos iam juntos; e, o ultimo, n’um galope que adormecia,
era Vladimiro, outro potro do Darque, baio-claro, quasi louro á luz.
Então, a secretaria da Russia bateu as palmas, interpellou Carlos,
que justamente tirara na poule o numero de Vladimiro. A ella coubera Minhoto,
uma pileca melancolica do Manoel Godinho; e tinham feito sobre os dous cavallos
uma aposta complicada de uvas e de amendoas. Já umas poucas de vezes
os seus lindos olhos garços tinham procurado os de Carlos; e agora
tocava-lhe no braço com o leque, gracejava, triumphava…
– Ah, vous avez perdu, vous avez perdu! Mais c’est un vieux cheval de fiacre,
vôtre Vladimir.
Como um cavallo de fiacre? Vladimiro era o melhor potro do Darque! Talvez
ainda viesse a ser a unica gloria de Portugal, como outr’ora o Gladiador era
a unica gloria da França! Talvez ainda substituisse Camões…
– Ah, vous plaisantez…
Não, Carlos não gracejava. Estava até prompto a apostar
tudo por Vladimiro.
– Você aposta por Vladimiro? gritou Telles da Gama, voltando-se vivamente.
Carlos, por divertimento, sem mesmo saber por quê, declarou que tomava
Vladimiro. Então, em roda, foi uma surpreza; e todo o mundo quiz apostar,
aproveitar-se d’aquella phantasia de homem rico, que sustentava um potro verde,
de tres quartos de sangue, a que o proprio Darque chamava pileca. Elle sorria,
aceitava; terminou ate por erguer a voz, proclamar Vladimiro contra o campo.
E de todos os lados o chamavam, n’uma sofreguidão de saque.
– Mr. de Maia, dix tostons.
– Parfaitement, madame.
– Oh Maia, você quer meia libra?
– Ás ordens.
– Maia, tambem eu! Ouça lá… Tambem eu!… Dous mil réis.
– Ó sr. Maia, eu vou dez tostões…
– Com o maior prazer, minha senhora…
Ao longe os cavallos davam a volta, na subida do terreno. Rabbino já
desapparecera, – e Vladimiro n’um galope a que se sentia o cançasso,
corria só na pista. Uma voz elevou-se, dizendo que elle manquejava.
Então Carlos, que continuava a tomar Vladimiro contra o campo, sentiu
que lhe puxavam de vagar pela manga; voltou-se; era o secretario de Steinbroken,
chegando subtilmente a tomar tambem parte no saque á bolsa do Maia,
propondo dous soberanos, em seu nome e em nome do seu chefe, como uma aposta
collectiva da legação, a aposta do reino da Filandia.
– C’est fait, monsieur! exclamou Carlos, rindo.
Agora começava a divertir-se. Apenas vira de relance Vladimiro, e gostara
da cabeça ligeira do potro, do seu peito largo e fundo; mas apostava
sobre tudo para animar mais aquelle recanto da tribuna, ver brilhar gulosamente
os olhos interesseiros das mulheres. Telles da Gama ao lado approvava-o, achava
aquillo patriotico e chic.
– É Minhoto! gritou de repente Taveira.
Na volta, com effeito, fizera-se uma mudança. Subitamente Rabbino perdera
terreno, resistindo á subida, com o folego curto. E agora era Minhoto,
o cavallicoque obscuro de Manuel Godinho, que se arremessava para a frente,
vinha devorando a pista, n’um esforço continuo, admiravelmente montado
por um jockey hespanhol. E logo atraz vinham as côres escarlates e brancas
de Darque: ao principio ainda pareceu que era Rabbino: mas, apanhado de repente
n’um raio obliquo de sol, o cavallo cobriu-se de tons lustrosos de baio claro,
e foi uma surpreza ao reconhecer-se que era Vladimiro! A corrida travava-se
entre elle e Minhoto.
Os amigos de Godinho, precipitando-se para a pista, bradavam, de chapéos
no ar:
– Minhoto, Minhoto!
E, em redor de Carlos, os que tinham apostado pelo campo contra Vladimiro
faziam tambem votos por Minhoto, em bicos de pés, junto do parapeito
da tribuna, estendendo o braço para elle, enimando-o:
– Anda Minhoto!… Isso, assim!…. Aguenta, rapaz!… Bravo!… Minhoto!
Minhoto!
A russa, toda nervosa, na esperança de ganhar a poule, batia as palmas.
Até a enorme Craben se erguera, dominando a tribuna, enchendo-a com
os seus gorgorões azues e brancos:- em quanto que, ao lado d’ella,
o conde de Gouvarinho, tambem de pé, sorria, contente no seu peito
de patriota, vendo n’aquelles jockeys à desfilada, nos chapéos
que se agitavam, brilhar civilisação…
De repente, de baixo, d’ao pè da tribuna, d’entre os rapazes que cercavam
o Darque, uma exclamação partiu.
-Vladimiro ! Vladimiro!
Com um arranque desesperado o potro viera juntar-se a Minhoto: e agora chegavam
furiosamente, com brilhos vivos de côres claras, os focinhos juntos,
os olhos esbugalhados, sob uma chuva de vergastas.
Telles da Gama, esquecido da sua aposta, todo pelo Darque, seu intimo, berrava
por Vladimiro. A russa, de pé n’um degrau, apoiada sobre o hombro de
Carlos, pallida, excitada, animava Minhoto com gritinhos, com pancadas de
leque. A agitação d’aquelle canto da tribuna estendera-se em
baixo ao recinto – onde se via uma linha de homens, contra a corda da pista,
bracejando. Do outro lado, era uma fila de rostos pallidos, fixos n’uma curta
anciedade. Algumas senhoras tinham-se posto de pé nas carruagens. E
atravez da collina, para ver a chegada, dous cavalleiros, segurando com as
mãos os chapéos baixos, corriam á desfilada.
– Vladimiro! Vladimiro! foram de novo os gritos isolados, aqui, além.
Os dous cavallos approximavam-se, com um som surdo das patas, trazendo um
ar de rajada.
– Minhoto! Minhoto!
– Vladimiro! Vladimiro!
Chegavam… De repente o jockey inglez de Vladimiro, todo em fogo, levantando
o potro que lhe parecia fugir d’entre as pernas, esticado e lustroso, fez
silvar triumphantemente o chicote, e d’um arremesso directo lançou-o
além da meta, duas cabeças adiante de Minhoto, todo coberto
d’espuma.
Então em volta de Carlos foi uma desconsolação, um longo
murmurio de lassidão. Todos perdiam; elle apanhava a poule, ganhava
as apostas, empolgava tudo. Que sorte! Que chance! Um addido italiano, thesoureiro
da poule, empallideceu ao separar-se do lenço cheio de prata: e de
todos os lados mãosinhas calçadas de gris-perle, ou de castanho,
atiravam-lhe com um ar amuado as apostas perdidas, chuva de placas que elle
recolhia, rindo, no chapéo.
– Ah, monsieur, exclamou a vasta ministra da Baviera, furiosa, mefiez-vous…
Vous connaissez le proverbe: heureux au jeu…
– Helas! madame! disse Carlos, resignado, estendendo-lhe o chapéo.
E outra vez um dedo subtil tocou-lhe no braço. Era o secretario de
Steinbroken, lento e silencioso, que lhe trazia o seu dinheiro e o dinheiro
do seu chefe, a aposta do reino da Filandia.
– Quanto ganha você? exclamou Telles da Gama, assombrado.
Carlos não sabia. No fundo do chapéo já reluzia ouro.
Telles contou, com o olho brilhante.
– Você ganha doze libras! disse elle maravilhado, e olhando Carlos com
respeito.
Doze libras! Esta somma espalhou-se em redor, n’um rumor de espanto. Doze
libras! Em baixo os amigos de Darque, agitando os chapéos, davam ainda
hurrahs. Mas uma indifferença, um tedio lento, ia pesando outra vez,
desconsoladoramente. Os rapazes vinham-se deixar cahir nas cadeiras, bocejando,
com um ar exhausto. A musica, desanimada tambem, tocava cousas plangentes
da Norma.
Carlos, no entanto, n’um degrau da tribuna, com a idéa de descobrir
o Damaso, sondava de binoculo o recinto das carruagens. A gente, agora, ia
dispersando pela collina. As senhoras tinham retomado a immobilidade melancolica,
no fundo das caleches, de mãos no regaço. Aqui e além
um dog-cart, mal arranjado, dava um trote curto pela relva. N’uma vittoria
estavam as duas hespanholas do Eusebiosinho, a Concha e a Carmen, de sombrinhas
escarlates. E sujeitos, de mãos atrás das costas, pasmavam para
um char-à-bancs a quatro attrelado á Daumont onde, entre uma
familia triste, uma ama de lenço de lavradeira dava de mamar a uma
creança cheia de rendas. Dous garotos esganiçados passeavam
bilhas d’agua fresca.
Carlos descia da tribuna, sem ter descoberto o Damaso – quando deu justamente
de frente com elle, dirigindo-se para a escada, affogueado, flamante, na sua
famosa sobrecasaca branca.
– Onde diabo tens tu estado, creatura?
O Damaso agarrou-o pelo braço, alçou-se em bicos de pés,
para lhe contar ao ouvido que tinha estado do outro lado com uma gaja divina,
a Josephina do Salazar… Chic a valer! lindamente vestida! parecia-lhe que
tinha mulher!
– Ah, Sardanapalo!…
– Faz-se pela vida… Volta cá acima á tribuna, anda. Eu ainda
hoje não pude cavaquear com o high-life!… Mas estou furioso, sabes?
Implicaram com o meu veo azul. Isto é um paiz de bestas! Logo troça,
e olhe não creste a pelle, e onde mora, ó catitinha? e chalaça…
Uma canalha! Tive de tirar o veo… Mas já resolvi. Para as outras
corridas venho nú. Palavra, venho nú! Isto é a vergonha
da civilisação, esta terra! Não vens d’ahi? Então
até já.
Carlos deteve-o.
– Escuta lá homem, tenho que te dizer… Então, essa visita
aos Olivaes?… Nunca mais appareceste… tinhamos combinado que fosses convidar
o Castro Gomes, que viesses dar a resposta… Não vens, não
mandas… O Craft á espera… Emfim um procedimento de selvagem.
Damaso atirou os braços ao ar. Então Carlos não sabia?
Havia grandes novidades! Elle não voltara ao Ramalhete, como estava
combinado, porque o Carlos Gomes não podia ir aos Olivaes. Ia partir
para o Brazil. Já partira mesmo, na quarta feira. A coisa mais extraordinaria…
Elle chega lá, para fazer o convite, e s. ex.ª declara-lhe que
sente muito, mas que parte no dia seguinte para o Rio… E já de mala
feita, já alugada uma casa para a mulher ficar aqui á espera
tres mezes, já a passagem no bolso. Tudo de repente, feito de sabbado
para segunda feira… Telhudo, aquelle Castro Gomes.
– E lá partiu, exclamou elle, voltando-se a cumprimentar a viscondessa
d’Alvim e Joanninha Villar que desciam das tribunas. Lá partiu, e ella
já está installada. Até já antes de hontem a fui
visitar, mas não estava em casa… Sabes do que tenho medo? É
que ella, n’estes primeiros tempos, por causa da visinhança, como está
só, não queira que eu lá vá muito… Que te parece?
– Talvez… E onde mora ella?
Em quatro palavras, Damaso explicou a installação de madame.
Era muito engraçado, morava no predio do Cruges! A mamã Cruges,
havia já annos, alugava aquelle primeiro andar mobilado: o inverno
passado estivera lá o Bertonni, o tenor, com a familia. Casa bem arranjada,
o Castro Gomes tinha tido dedo…
– E para mim, muito commodo, alli ao pé do Gremio… Então não
voltas cá acima, a cavaquear com o femeaço? Até logo…
Está hoje chic a valer a Gouvarinho! E está a pedir homem! Good-bye.
Defronte de Carlos a condessa de Gouvarinho, no grupo de D. Maria a que se
viera juntar a Alvim e Joanninha Villar, não cessava de o chamar com
o olhar inquieto, turturando o seu grande leque negro. Mas elle não
obedeceu logo, parado ao pé dos degraus da tribuna, accendendo vagamente
uma cigarrette, perturbado por todas aquellas palavras do Damaso que lhe deixavam
n’alma um sulco luminoso. Agora que a sabia só em Lisboa, vivendo na
mesma casa do Cruges, parecia-lhe que já a conhecia, sentia-se muito
perto d’ella – podendo assim a todo o momento entrar os hombraes da sua porta,
pisar os degraus que ella pisava. Na sua imaginação transluziam
já possibilidades d’um encontro, alguma palavra trocada, cousas pequeninas,
subtis como fios, mas por onde os seus destinos se começariam a prender…
E immediatamente veio-lhe a tentação pueril de ir lá,
logo n’essa mesma tarde, n’esse instante, gosar como amigo do Cruges o direito
de subir a escada d’ella, parar diante da porta d’ella – e surprehender uma
voz, um som de piano, um rumor qualquer da sua vida.
O olhar da condessa não o deixava. Elle approximou-se, emfim, contrariado:
ella ergueu-se logo, deixou o seu grupo, e dando alguns passos com elle pela
relva, recomeçou a fallar na ida a Santarem. Carlos, então,
muito seccamente, declarou toda essa invenção insensata.
– Porque?…
Ora porque! Por tudo. Pelo perigo, pelos desconfortos, pelo ridiculo… Emfim,
a ella como mulher ficava-lhe bem ter phantasias pittorescas de romance; mas
a elle competia-lhe ter bom senso.
Ella mordia o beiço, com todo o sangue na face.E não via alli
bom senso. Via só frieza. Quando ella arriscava tanto, elle podia bem,
por uma
noite, affrontar os desconfortos da estalagem…
– Mas não é isso!…
Então que era? Tinha medo? Não havia mais perigo do que nas
idas a casa da titi. Ninguem a podia conhecer, com outra côr de cabello,
toda a sorte de véos, disfarçada n’um grande water-proof. Chegavam
de noite, entravam para o quarto, d’onde não sahiam mais, servidos
apenas pela escosseza. No dia seguinte, no comboio da noite, ella seguia para
o Porto, tudo acabava… E n’aquella insistencia ella era o homem, o seductor,
com a sua vehemencia de paixão activa, tentando-o, soprando-lhe o desejo;
emquanto elle parecia a mulher, hesitante e assustada. E Carlos sentia isto.
A sua resistencia a uma noite de amor, prolongando-se assim, ameaçava
ser grotesca: ao mesmo tempo o calor de voluptuosidade que emanava d’aquelle
seio, arfando junto d’elle e por elle, ia-o amollecendo lentamente. Terminou
por a olhar de certo modo; e, como se o desejo se lhe accendesse emfim de
repente á curta chamma que faiscava nas pupillas d’ella, negras, humidas,
avidas, promettendo mil cousas, disse, um pouco pallido:
– Pois bem, perfeitamente… Ámanhã á noite, na estação.
N’esse momento, em redor, romperam exclamações de troça:
era um cavallo solitario que chegava, n’um galope pacato, passava a meta sem
se apressar, como se descesse uma avenida do Campo Grande n’uma tarde de domingo.
E em redor perguntava-se que corrida era aquella d’um cavallo só –
quando ao longe, como sahindo da claridade loura do sol que descia sobre o
rio, appareceu uma pobre pileca branca, empurrando-se, arquejando, n’um esforço
doloroso, sob as chicotadas atarantadas d’um jockey de roxo e preto. Quando
ella chegou, emfim, já o outro gentleman-rider voltara da meta, a passo,
pachorrentamente, – e estava conversando com os amigos, encostado á
corda da pista.
Todo o mundo ria. E a corrida do Premio d’El-rei terminou assim, grotescamente.
Ainda havia o Premio de Consolação – mas agora desapparecera
todo o interesse ficticio pelos cavallos. Perante a calma e radiante belleza
da tarde, algumas senhoras, imitando a Alvim, tinham descido para a pesagem,
cançadas da immobilidade da tribuna. Arranjaram-se mais cadeiras: aqui
e além, sobre a relva pisada, formavam-se grupos alegrados por algum
vestido claro ou por uma pluma viva de chapéo: e palrava-se, como n’uma
sala de inverno, fumando-se familiarmente. Em redor de D. Maria e da Alvim
projectava-se um grande pic-nic a Queluz. Alencar e o Gouvarinho discutiam
a reforma de instrucção. A horrivel Craben, entre outros diplomatas
e moços de binoculo a tiracolo, dava do fundo grosso do papo, opiniões
sobre Daudet, que elle achava très agreable. E, quando Carlos emfim
abalou, o recinto, esquecidas as corridas, tomava um tom de soirée,
no ar claro e fresco da collina, com o murmurio de vozes, um mover de leques,
e ao fundo a musica tocando uma valsa de Strauss.
Carlos, depois de procurar muito Craft, encontrou-o no buffete com o Darque,
com outros, bebendo mais champagne.
– Eu tenho de ir ainda a Lisboa, disse-lhe elle, e vou no phaeton. Abandono
torpemente. Você vá para o Ramalhete como poder…
– Eu o levo! gritou logo o Vargas, que tinha já a gravata toda desmanchada.
Levo-o no dog-cart. Eu me encarrego d’elle… O Craft fica por minha conta…
É necessario recibo? Á saude do Craft, inglez cá dos
meus… Hurrah!
– Hurrah! Hip, hip, hurrah!
D’ahi a pouco, a trote largo no phaeton, Carlos descia o Chiado, dava a volta
para a rua de S. Francisco. Ia n’uma perturbação deliciosa e
singular, com aquella certeza de que ella estava só na casa do Cruges:
o ultimo olhar que ella lhe déra parecia ir adiante d’elle, chamando-o:
e um despertar tumultuoso de esperanças sem nome atirava-lhe a alma
para o azul.
Quando parou diante do portão – alguem, por dentro das janellas d’ella,
ía correndo lentamente os stores. Na rua silenciosa cahia já
uma sombra de crepusculo. Atirou as redeas ao cocheiro, atravessou o pateo.
Nunca viera visitar o Cruges, nunca subira esta escada; e pareceu-lhe horrorosa,
com os seus frios degraus de pedra, sem tapete, as paredes nuas e enxovalhadas
alvejando tristemente no começo de escuridão. No patamar do
primeiro andar parou. Era alli que ella vivia. E ficou olhando, com uma devoção
ingenua, para as tres portas pintadas d’azul: a do centro estava inutilisada
por um banco comprido de palhinha, e na do lado direito pendia, com uma enorme
bola, o cordão da campainha. De dentro não vinha um rumor: –
e este pesado silencio, juntando-se ao movimento de stores que elle vira fechar-se,
parecia cercar as pessoas que alli viviam de solidão e de impenetrabilidade.
Uma desconsolação passou-lhe na alma. Se ella agora, só,
sem o marido, começasse uma vida reclusa e solitaria? Se elle não
tornasse mais a encontrar os seus olhos?
Foi subindo de vagar até ao andar do Cruges. E mal sabia o que havia
de dizer ao maestro para explicar aquella visita extranha, deslocada… Foi
um allivio quando a criadita lhe veiu dizer que o menino Victorino tinha sahido.
Em baixo, Carlos tomou as redeas, e foi levando lentamente o phaeton até
ao largo da Bibliotheca. Depois retrocedeu, a passo. Agora, por traz do store
branco, havia uma vaga claridade de luz. Elle olhou-a como se olha uma estrella.
Voltou ao Ramalhete. Craft, coberto de pó, estava-se justamente apeando
de uma calecha de praça. Um momento ficaram alli á porta, em
quanto Craft, procurando troco para o cocheiro, contava o final das corridas.
No Premio de Consolação, um dos cavalleiros tinha cahido, quasi
ao pé da meta, sem se magoar: e, por ultimo, já á partida,
o Vargas, que ia na sua terceira garrafa de champagne, esmurrara um criado
do buffete, com ferocidade.
– Assim, disse Craft completando o seu troco, estas corridas foram boas pelo
velho principe Shakespereano de que tudo é bom quanto acaba bem.
– Um murro, disse Carlos rindo, é com effeito um bello ponto final.
No peristillo, o velho guarda-portão esperava, descoberto, com uma
carta na mão para Carlos. Um criado tinha-a trazido, instantes antes
de s. ex.ª chegar.
Era uma letra ingleza de mulher, n’um enveloppe largo, lacrado com um sinete
d’armas. Carlos alli mesmo abriu-a: e, logo á primeira linha, teve
um movimento tão vivo, de tão bella surpreza, illuminando-se-lhe
tanto o rosto, que Craft do lado perguntou sorrindo:
– Aventura? Herança?…
Carlos, vermelho, metteu a carta no bolso, e murmurou:
– Um bilhete apenas, um doente…
Era apenas um doente, era apenas um bilhete, mas começava assim: –
«Madame Castro Gomes apresenta os seus respeitos ao sr. Carlos da Maia,
e roga-lhe o obsequio…» – depois, em duas breves palavras, pedia-lhe
para ir ver na manhã seguinte, o mais cedo possivel, uma pessoa de
familia, que se achava incommodada.
– Bem, eu vou-me vestir, disse Craft… Jantar ás sete e meia, hein?
– Sim, o jantar… – respondeu Carlos, sem saber o quê, banhado todo
n’um sorriso, como em extase.
Correu aos seus aposentos: e junto da janella, sem mesmo tirar o chapéo,
leu uma vez mais o bilhete, outra
vez ainda, contemplando enlevadamente a forma da letra, procurando voluptuosamente
o perfume do papel.
Era datada d’esse mesmo dia á tarde. Assim, quando elle passara defronte
da sua porta, já ella a escrevera, já o seu pensamento se demorara
n’elle – quando mais não fosse senão ao traçar as lettras
simples do seu nome. Não era ella que estava doente. Se fosse Rosa,
ella não diria tão friamente «uma pessoa de familia.»
Era talvez o esplendido preto de carapinha grisalha. Talvez miss Sarah, abençoada
fosse ela para sempre, que queria um medico que entendesse inglez… Emfim
havia lá uma pessoa n’uma cama, junto da qual ella mesma o conduziria,
atravez dos corredores interiores d’aquella casa – que havia apenas instantes
sentira tão fechada, e como impenetravel para sempre!… E depois este
adorado bilhete, este delicioso pedido para ir a sua casa, agora que ella
o conhecia, que vira Rosa atirar-lhe um grande adeus – tomava uma significação
profunda, perturbadora…
Se ella não quizesse comprehender, nem acceitar o distante amor que
os seus olhos lhe tinham offerecido claramente, o mais luminosamente que tinham
podido, n’esses fugitivos instantes que se tinham cruzado com os d’ella –
então poderia ter mandado chamar outro medico, um clinico qualquer,
um estranho. Mas não: o seu olhar respondera ao d’elle, e ella abria-lhe
a sua porta… – E o que sentia a esta idéa era uma gratidão
ineffavel, um impulso tumultuoso de todo o seu ser a cahir-lhe aos pés,
ficar-lhe beijando a orla do vestido, devotamente, eternamente, sem querer
mais nada, sem pedir mais nada…
Quando Craft d’alli a pouco desceu, de casaca, fresco, alvo, engommado, correcto
– achou Carlos, ainda com toda a poeira da estrada, de chapéo na cabeça,
passeando o quarto, n’esta agitação radiante.
– Você está a faiscar, homem! disse Craft, parando deante d’elle,
com as mãos nos bolsos, e contemplando-o um instante do alto do seu
resplandecente collarinho. Você flameja!… Você parece que tem
uma auréola na nuca!… Você succedeu-lhe o quer que seja de
muito bom!
Carlos espreguiçou-se, sorrindo. Depois olhou para Craft um momento,
em silencio, encolheu os hombros, e murmurou:
– A gente, Craft, nunca sabe se o que lhe succede é, em definitivo,
bom ou mau.
– Ordinariamente é mau, disse o outro friamente, aproximando-se do
espelho a retocar com mais correcçccedil;ão o nó da gravata
branca.
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