Os Homens Bons

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Crônica do Viver Baiano Seiscentista

Senhor, bem-vinda seja Vossa Senhoria

Eu sou aquele que os passados anos

Cantei na minha lira maldizente

Torpezas do Brasil, vícios e enganos

Que néscio que eu era então.

1 – PESSOAS MUITO PRINCIPAIS

… certa pessoa muito principal …

Manuel Pereira Rabelo, licenciado
do Céu toda a Majestade
em tão pequeno distrito.

SALVE RAINHA A VIRGEM SANTÍSSIMA

Salve, Celeste Pombinha,
Salve, divina Beleza,
Salve, dos Anjos Princesa,
e dos céus, Salve Rainha.

Sois graça, luz, e concórdia
entre os maiores horrores,
sois guia de pecadores,
Madre de Misericórdia
Sois divina Formosura,
sois entre as sombras da morte
o mais favorável Norte,
e sois da vida Doçura
Sois a peregrina Ave,
pois minha fé vos alcança
sois pois ditosa esperança
Esperança nossa Salve
Vosso favor invocamos
como remédio mais raro,
não nos falte vosso amparo,
e vede, que a vós bradamos
Os da Pátria desterrados
viver na pátria desejam;
quereis vós, que dela sejam
deste mundo os degradados?
De Jesus tanto agrado leva
de com os homens viver,
nós somos, bem podeis ver,
os mesmos Filhos de Eva.
Humildes vos invocamos
com rogos enternecidos,
e desse amparo rendidos,
Senhora, a vós supiramos.
Se Deus nos perdoa, quando
a nossa culpa é chorada,
estamos por ser perdoada
aqui gemendo, e chorando.
Mas vós, por quem mais se vale,
Lírio do Vale, chorais,
e o vosso pranto val mais
neste de Lágrimas Vale
Já que tão piedosa sois
não tardeis com vosso rogo,
alcançai o perdão logo,
apressai-vos eia pois.

Porque desde agora possa
triunfar qualquer de nós
de inimigo tão atroz
pedi advogada nossa.

E enquanto nestes abrolhos
do mundo postos estamos,
de nós, que o caminho erramos
não tireis os vossos olhos.

Sejam sempre piedosos
para nos favorecer,
e para nos socorrer
sejam misericordiosos.

Favorecer-nos quereia,
de vossos olhos co’a guia,
gloriosa Virgem Maria
sempre eles a nós volvéi
Livrai-nos de todo erro
para que assim consigamos
graça enquanto aqui andamos
e depois deste desterro
Pois vosso Filho é a luz
e alumiar-nos quereis,
para que esta mostreis
nos amostrai a Jesus
E se como raio bruto
o fruto vemos vedado
noutro paraíso dado
veremos o bento Fruto
Em nossos corações entre
seu amor, pois é razão,
seja meu de coração,
o que foi do vosso ventre
De Jericó melhor Rosa,
puro, e cândido Jasmim,
quereis vós, que seja assim
ó clemente, ó piedosa.

Tenhamos esta alegria,
esta doçura tenhamos,
pois que tanta em vós achamos,
ó doce Virgem Maria
Pois quem mais pode, sois vós,
chegando a Deus a pedir
para melhor vos ouvir,
pedi, e rogai por nós.
Que então os favores seus
muito melhor seguramos,
pois que neles empenhamos
a Santa Madre de Deus.

Fazei-nos sempres benignos
entre deste mundo os sustos
para que sejamos justos
para que sejamos dignos
E se nos concedeis isto,
que vos pede o nosso rogo
mui dignos nos fareis logo
ser das promessas de Cristo
Seja pois, divina luz,
melhor Estrela, assim seja
para que por nós se veja
Vosso amparo. Amém Jesus

A N. SENHORA DA MADRE DE DEOS INDO LÁ O POETA

Venho, Madre de Deus, ao Vosso monte

E reverente em vosso altar sagrado,

Vendo o Menino em berço argenteado

O sol vejo nascer desse Horizonte.

Oh quanto o verdadeiro Faetonte

Lusbel, e seu exército danado

Se irrita, de que um braço limitado

Exceda na soltura a Alcidemonte.

Quem vossa devoção não enriquece?

A virtude, Senhora. é muito rica,

E a virtude sem vós tudo empobrece.

Não me espanto, que quem vos sacrifica

Essa hóstia do altar, que vos ofrece,

Que vós o enriqueçais, se a vós a aplica.

AO MENINO JESUS DE N. SENHORA DAS MARAVILHAS,
A QUEM INFIÉIS DESPEDAÇARAM ACHANDO-SE A PARTE DO PEYTO.

Entre as partes do todo a melhor parte

Foi a parte, em que Deus pôs o amor todo

Se na parte do peito o quis pôr todo

O peito foi foi do todo a melhor parte.

Parta-se pois de Deus o corpo em parte,

Que a parte, em que Deus ficou o amor todo

Por mais partes, que façam deste todo

De todo fica intacta essa só parte.

O peito já foi parte entre as do todo,

Que tudo mais rasgaram parte a parte;

Hoje partem-se as partes deste todo

Sem que do peito todo rasguem parte,

Que lá quis dar por partes o amor todo,

E agora o quis dar todo nesta parte.

AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS QUANDO APPARECEO.

O todo sem a parte não é todo,

A parte sem o todo não é parte,

Mas se a parte o faz todo, sendo parte,

Não se diga, que é parte, sendo todo.

Em todo o sacramento está Deus todo,

E todo assiste inteiro em qualquer parte,

E feito em partes todo em toda a parte,

Em qualquer parte sempre fica o todo.

O braço de Jesus não seja parte,

Pois que feito Jesus em partes todo

Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,

Um braço, que lhe acharam, sendo parte,

Nos disse as partes todas deste todo.

AO MENINO JESUS DO COADJUTOR DE S. ANTÔNIO QUE SENDO ANTIGO HE
MUYTO BELLO.

Oh, quanta divindade, oh quanra graça,

Menino, em vosso vulto sacro, e belo

Infunde a mão de tal gentil modelo,

Inspira o Autor de tão divina traça!

Se o tempo aos mais vultos desengraça

Na vossa Imagem não deslustra um pêlo:

Reverente o tratou com tal desvelo,

Que o que eleva menino, velho embaça.

Quanto a idade usurpa de beleza

Nos que somos mortais, paga em respeito,

Venerações, que atrai a antiguidade.

Mas de vossa escultura a gentileza

Tem trocado do tempo o edaz efeito

Venera-se a beleza, ama-se a idade.

A N. SENHOR JESUS CHRISTO COM ACTOS DE ARREPENDIDO
E SUSPIROS DE AMOR.

Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade,

É verdade, meu Deus, que hei delinqüido,

Delinqüido vos tenho, e ofendido,

Ofendido vos tem minha maldade.

Maldade, que encaminha à vaidade,

Vaidade, que todo me há vencido;

Vencido quero ver-me, e arrependido,

Arrependido a tanta enormidade.

Arrependido estou de coração,

De coração vos busco, dai-me os braços,

Abraços, que me rendem vossa luz.

Luz, que claro me mostra a salvação,

A salvação pertendo em tais abraços,

Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus.

A CHRISTO S. N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA
ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA

Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,

Em cuja lei protesto viver,

Em cuja santa lei hei de morrer

Animoso, constante, firme, e inteiro.

Neste lance, por ser o derradeiro,

Pois vejo a minh vida anoitecer,

É, meu Jesus, a hora de se ver

A brandura de um Pai manso Cordeiro.

Mui grande é vosso amor, e meu delito,

Porém pode ter fim todo o pecar,

E não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,

Que por mais que pequei, neste conflito

Espero em vosso amor de me salvar.

AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO.

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,

Da vossa piedade me despido,

Porque quanto mais tenho delinqüido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,

A abrandar-nos sobeja um só gemido,

Que a mesma culpa, que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada

Glória tal, e prazer tão repentino

vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada

Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.

AO SANCTISSIMO SACRAMENTO ESTANDO PARA COMUNGAR.

Tremendo chego, meu Deus

Ante vossa divindade,

que a fé é muito animosa,

mas a culpa mui cobarde.

À vossa mesa divina

como poderei chegar-me,

se é triaga da virtude

e veneno da maldade?

Como comerei de um pão,

que me dais, porque me salve?

um pão, que a todos dá vida,

e a mim temo, que me mate.

Como não hei de ter medo

de um pão, que tão formidável

vendo, que estais todo em tudo,

e estais todo em qualquer parte?

Quanto a que o sangue vos beba,

isso não, e perdoai-me:

como quem tanto vos ama,

há de beber-vos o sangue?

Beber o sangue do amigo

é sinal de inimizade;

pois como quereis, que o beba,

para confirmarmos pazes?

Senhor, eu não vos entendo;

vossos preceitos são graves,

vossos juízos são fundos,

vossa idéia inescrutável.

Eu confuso neste caso

entre tais perplexidades

de salvar-me, ou de perder-me,

só sei, que importa salvar-me.

Oh se me déreis tal graça,

que tenho culpas a mares,

me virá salvar na tábua

de auxílios tão eficazes!

E pois já à mesa cheguei,

onde é força alimentar-me

deste manjar, de que os Anjos

fazem seus prórios manjares:

Os Anjos, meu Deus, vos louvem,

que os vossos arcanos sabem,

e os Santos todos da glória,

que, o que vos devem, vos paguem.

Louve-vos minha rudeza,

por mais que sois inefável,

porque se os brutos vos louvam,

será a rudeza bastante.

Todos os brutos vos louvam,

troncos, penhas, montes, vales,

e pois vos louva o sensível,

louve-vos o vegetável.

ACTO DE CONTRIÇÃO O QUE FÊZ DEPOIS DE SE CONFESSAR.

Meu amado Redentor,

Jesu Cristo soberano

Divino Homem, Deus Humano,

da terra, Deus criador:

por seres, quem sois, Senhor,

e porque muito vos quero,

me pesa com rigor fero

de vos haver ofendido,

do que agora arrependido,

meu Deus, o perdão espero.

Bem sei, meu Pai soberano,

que na obstinação sobejo

corri sem temor, nem pejo

pelos caminhos do engano:

bem sei também, que o meu dano

muito vos tem agravado,

porém venho confiado

em vossa graça, e amor,

que também sei, é maior,

Senhor, do que meu pecado.

Bem não vos amo, confesso,

várias juras cometi,

missa inteira nunca ouvi,

a meus Pais não obedeço:

matar alguns apeteço,

luxurioso pequei,

bens do próximo furtei,

falsos levantei às claras,

desejei mulheres raras,

cousas de outrem cobicei.

Para lavar culpas tantas,

e ofensas, Senhor,tão feias

são fortes de graça cheias

essas chagas sacrossantas:

sobre mim venham as santas

correntes do vosso lado;

para que fique lavado,

e limpo nessas correntes,

comunica-me as enchentes

da graça, meu Deus amado.

Assim, meu Pai, há de ser,

e proponho, meu Senhor,

com vossa graça, e amor

nunca mais vos ofender:

prometo permanecer

em vosso amor firmemente,

para que mais nunca intente

ofensas contra meu Deus,

a quem os sentidos meus

ofereço humildemente.

Humilhado desta sorte,

meu Deus do meu coração,

vos peço ansioso o perdão

por vossa paixão, e morte:

à minha alma em ânsia forte

perdão vossas chagas dêem,

e com o perdão também

espero o prêmio dos Céus,

não pelos méritos meus,

mas do vosso sangue: amém.

A HUMAS CANTIGAS, QUE COSTUMAVAM CANTAR OS CHULOS
NAQUELLE TEMPO:’BANGUÉ, QUE SERÁ DE TI?" E OUTROS
MAIS PIEDOSOS CANTAVÃO: "MEU DEOS, QUE SERÁ DE MIM?"
O QUE O POETA GLOZOU ENTRE A ALMA CHRISTÃ RESISTlNDO
ÀS TENTAÇÕES DIABOLICAS.

MOTE

Meu Deus, que será de mim?
Bangüê, que será de ti?

Alma Se o descuido do futuro,
e a lembrança do presente

é em mim tão continente,

como do mundo murmuro?

Será, porque não procuro

temer do princípio o fim?

Será, porque sigo assim

cegamente o meu pecado?

mas se me vir condenado,

Meu Deus, que será de mim?

Demônio Se não segues meus enganos,

e meus deleites não segues,

temo, que nunca sossegues

no florido dos teus anos:

vê, como vivem ufanos

os descuidados de si;

canta, baila, folga, e ri,

pois os que não se alegraram.

dous infernos militaram.

Bangüê, que será de ti?

Alma Se para o céu me criastes,

Meu Deus, à imagem vossa,

como é possível, que possa

fugir-vos, pois me buscastes:

e se para mim tratastes

o melhor remédio, e fim,

eu como ingrato Caim

deste bem tão esquecido

tenho-vos tão ofendido:

Meu Deus, que será de mim?

Demônio Todo o cantar alivia,

e todo o folgar alegra

toda a branca, parda e negra

tem sua hora de folia:

só tu na melancolia

tens alívio? canta aqui,

e torna a cantar ali,

que desse modo o praticam,

os que alegres pronosticam,

Bangüê, que será de ti?

Alma Eu para vós ofensor,

vós para mim ofendido?

eu já de vós esquecido,

e vós de mim redentor?

ai como sinto, Senhor,

de tão mau princípio o fim:

se não me valeis assim,

como àquele, que na cruz

feristes com vossa luz,

Meu Deus, que será de mim?

Demônio Como assim na flor dos anos

colhes o fruto amargoso?

não vês, que todo o penoso

é causa de muitos danos?

deixa, deixa desenganos,

segue os deleites, que aqui

te ofereço: porque ali

os mais, que cantando vão,

dizem na triste canção,

Bangüê que será de ti?

Alma Quem vos ofendeu, Senhor?

Uma criatura vossa?

como é possível, que eu possa

ofender meu Criador?

triste de mim pecador,

se a glória, que dais sem fim

perdida num serafim

se perder em mim também!

Se eu perder tamanho bem,

Meu Deus, que será de mim?

Demônio Se a tua culpa merece

do teu Deus a esquivança

a folga no mundo, e descansa,

que o arrepender aborrece:

se o pecado te entristece,

como já em outros vi,

te prometo desde aqui,

que os mais da tua facção,

e tu no inferno dirão,

Bangüê, que será de ti?

AO MISTERIOSO EPÍLOGFOLOGO DOS INSTRUUMENTOS DA PAYXAO
RECOPILADO NA FLOR DO MARACUJÁ.

Divina flor, se en essa pompa vana

Los martirios ostentas reverente,

Corona con los clavos a tu frente,

Pues brillas con las llagas tan losana.

Venera essa corona altiva, y ufana,

Y en tus garbos te ostenta floreciente:

Los clavos enarbola eternamente,

Pues Dios com sus heridas se te hermana.

Si flor nasciste para mas pomposa

Desvanecer floridos crescimientos

Ya, flor, te reconocen mas dichosa.

Que el cielo te ha gravado en dos tormentos

En clavos la corona mas gloriosa,

Y en llagas sublimados luzimientos.


RENDE-SE A PESSOA DE BERNARDO VIEYRA RAVASCO?
NESTE SONETO, PELOS MESMOS CONSOANTES DE OUTRO FEITO À FLOR
DO MARACUJÁ PARA CONSTAR DO DITO QUE ERAM ESTAS
RESPOSTAS DO NOSSO POETA.



Ya rendida, y prostrada mas que vana

A vuestros pies mi Musa reverente

Por coronar com ellos a su frente

Del suelo sube al cielo mas losana.

Por convencido ostenta gloria ufana,

Que tiene por corona floreciente

El quedar-se rendida eternamente,

Porque humilhada al triumpho se germana.

Rendimiento fiel haze pomposa,

Que en beber los castalios crescimientos

Se adquire la ventura mas dichosa.

A que Phenix nos causa mil tormentos

Ver, que triumpha humilhada, y tan gloriosa

Por ser rendida a vuestro luzimiento.


AFIRMA QUE A FORTUNA, E O FADO NÃO É OUTRA
COUSA MAIS QUE A PROVIDENCIA DIVINA.

Isto, que ouço chamar por todo o mundo

Fortuna, de uns cruel, d’outros impia,

É no rigor da boa teologia

Providência de Deus alto, e profundo.

Vai-se com temporal a Nau ao fundo

carregada de rica mercancia,

Queixa-se da Fortuna, que a envia,

E eu sei, que a submergiu Deus iracundo.

Mas se faz tudo a alta Providência

De Deus, como reparte justamente

À culpa bens, e males à inocência?

Não sou tão perspicaz, nem tão ciente,

Que explique arcanos d’alta Inteligência,

Só vos lembro, que é Deus o providente.

NO SERMÃO QUE PREGOU NA MADRE DE DEOS D. JOÃO FRANCO
DE OLIVEYRA PONDERA O POETA A FRAGILIDADE HUMANA.

Na oração, que desaterra…………………………………………….aterra

Quer Deus, que, a quem está o cuidado………………………….dado

Pregue, que a vida é emprestado…………………………………..estado

Mistérios mil, que desenterra………………………………………..enterra.

Quem não cuida de si, que é terra………………………………….erra

Que o alto Rei por afamado…………………………………………..amado,

E quem lhe assiste ao desvelado …………………………………..lado

Da morte ao ar não desaferra…………………………………………aferra.

Quem do mundo a mortal loucura……………………………………cura,

A vontade de Deus sagrada…………………………………………..agrada,

Firmar-lhe a vida em atadura………………………………………….dura.

Ó voz zelosa, que dobrada…………………………………………….brada,

Já sei, que a flor da formosura………………………………………..usura

Será no fim desta jornada………………………………………………nada.

CONTINUA O POETA COM ESTE ADMIRAVEL A QUARTA FEYRA DE CINZAS.

Que és terra Homem, e em terra hás de tornar-te,

Te lembra hoje Deus por sua Igreja,

De pó te faz espelho, em que se veja

A vil matéria, de que quis formar-te.

Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te,

E como o teu baixel sempre fraqueja

Nos mares da vaidade, onde peleja,

Te põe à vista a terra, onde salvar-te.

Alerta, alerta pois, que o vento berra,

E se assopra a vaidade, e incha o pano,

Na proa a terra tens, amaina, e ferra.

Todo o lenho mortal, baixel humano

Se busca a salvação, tome hoje terra,

Que a terra de hoje é porto soberano.


CONSIDERA O POETA ANTES DE CONFESSAR-SE NA ESTREYTA
CONTA, E VIDA RELAXADA.



Ai de mim! Se neste intento,

e costume de pecar

a morte me embaraçar

o salvar-me, como intento?

que mau caminho freqüento

para tão estreita conta;

oh que pena, e oh que afronta

será, quando ouvir dizer:

vai, maldito, a padecer,

onde Lucifer te aponta.

Valha-me Deus, que será

desta minha triste vida,

que assim mal logro perdida,

onde, Senhor, parará?

que conta se me fará

lá no fim, onde se apura

o mal, que sempre em mim dura,

o bem, que nunca abracei,

os gozos, que desprezei,

por uma eterna amargura.

Que desculpa posso dar,

quando ao tremendo juízo

for levado de improviso,

e o demônio me acusar?

Como me hei de desculpar

sem remédio, e sem ventura,

se for para aonde dura

o tormento eternamente,

ao que morre impenitente

sem confissão, nem fé pura.

Nome tenho de cristão,

e vivo brutualmente,

comunico a tanta gente

sem ter, quem me dê a mão:

Deus me chama co perdão

por auxílios, e conselhos,

eu ponho-me de joelhos

e mostro-me arrependido;

mas como tudo é fingido,

não me valem aparelhos.

Sempre que vou confessar-me,

digo, que deixo o pecado;

porém torno ao mau estado,

em que é certo o condenar-me:

mas lá está quem há de dar-me

o pago do proceder:

pagarei num vivo arder

de tormentos repetidos

sacrilégios cometidos

contra quem me deu o ser.

Mas se tenho tempo agora,

e Deus me quer perdoar,

que lhe hei de mais esperar,

para quando? ou em qual hora?

que será, quando traidora

a morte me acometer,

e então lugar não tiver

de deixar a ocasião,

na extrema condenação

me hei de vir a subverter.


AO DIA DO JUIZO.

O alegre do dia entristecido,

O silêncio da noite perturbado

O resplandor do sol todo eclipsado,

E o luzente da lua desmentido!

Rompa todo o criado em um gemido,

Que é de ti mundo? onde tens parado?

Se tudo neste instante está acabado,

Tanto importa o não ser, como haver sido.

Soa a trombeta da maior altura,

A que a vivos, e mortos traz o aviso

Da desventura de uns, d’outros ventura.

Acabe o mundo, porque é já preciso,

Erga-se o morto, deixe a sepultura,

Porque é chegado o dia do juízo.


A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSIMA.



Para Mãe, para Esposa, Templo, e Filha

Decretou a Santíssima Trindade

Lá da sua profunda eternidade

A Maria, a quem fez com maravilha.

E como esta na graça tanto brilha,

No cristal de tão pura claridade

A segunda Pessoa humanidade

Pela culpa de Adão tomar se humilha

Para que foi aceita a tal Menina?

Para emblema do Amor, obra piedosa

Do Padre, Filho, e Pomba essência trina:

É logo conseqüência esta forçosa,

Que Estrela, que fez Deus tão cristalina

Nem por sombras da sombra a mancha goza.

A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSINA

Como na cova tenebrosa, e escura,

A quem abriu o Original pecado,

Se o próprio Deus a mão vos tinha dado;

Podíeis vós cair, ó virgem pura?

Nem Deus, que o bem das almas só procura,

De todo vendo o mundo arruinado,

Permitira a desgraça haver entrado,

Donde havia sair nova ventura.

Nasce a rosa de espinhos coroada

Mas se é pelos espinhos assistida,

Não é pelos espinhos magoada.

Bela Rosa, ó virgem esclarecida!

Se entre a culpa se vê, fostes criada,

Pela culpa não fosse ofendida.

AO MESMO ASSUMPTO.

Antes de ser fabricada

do mundo a máquina digna,

já lá na mente divina,

Senhora, estáveis formada:

com que sendo vós criada

então, e depois nascida

(como é cousa bem sabida)

não podíeis, (se esta sois)

na culpa, que foi depois,

nascer, Virgem, comprendida

Entre os nascidos só vós

por privilégio na vida

fostes, Senhora, nascida

isenta da culpa atroz:

mas se Deus (sabemos nós)

que pode tudo, o que quer,

e vos chegou a eleger

para Mãe sua tão alta,

impureza, mancha, ou falta

nunca em vós podia haver.

Louvem-vos os serafins,

que nessa Glória vos vêem,

e todo o mundo também

por todos os fins dos fins:

Potestades, querubins,

e enfim toda a criatura,

que em louvar-vos mais se apura,

confessem, como é razão,

que foi vossa conceição

sacra, rara, limpa, e pura.

0 Céu para coroar-vos

estrelas vos oferece,

o sol de luzes vos tece

a gala, com que trajar-vos:

a lua para calçar-vos

dedica o seu arrebol,

e consagra o seu farol,

porque veja o mundo todo,

que brilham mais deste modo

Céu. estrelas, lua, e sol.

A N. SENHORA DO ROSARIO.

A Rainha celestial,

venceu o seu contrário,

nosso pobre cabedal

hoje do Santo Rosário

lhe faz um arco triunfal.

O arco é de paz, e guerra,

com que sempre há de triunfar,

e tal virtude em si encerra,

que por ele hei de chegar

ao alto céu desde a terra.

Este é o arco dos céus,

que sobre as nuvens se vê,

dado para nós por Deus,

por cujo meio com fé

teremos grandes troféus.

Porque o rosário rezado

quando a alma em graça está,

é sinal, que Deus tem dado,

de que não me afogará

no dilúvio do pecado.

Este é o arco triunfal,

por onde a alma gloriosa

livre do corpo mortal

vai aos céus a ser esposa

do Príncipe celestial.

Tem o homem seu contrário

dentro em sua mesma terra,

que lhe vence de Ordinário,

e a Virgem por esta guerra

dá-lhes as contas do Rosário.

Esta é boa artilharia

para o justo, e pecador,

tirai a alma em pontaria

co fogo do vosso amor,

e co’as balas de Maria.

Toda alma, que fizer conta

de si, e sua salvação,

ouça, o que a Virgem lhe aponta:

suba, que em sua oração

será degrau cada conta.

AS LAGRIMAS QUE SE DIZ, CHOROU N. SENHORA DE MONSARRATE.

Temor de um dano, de uma oferta indício

Pronta em divina Origem desatado,

Que tendo por horrível ao pecado

Sois a Deus agradável sacrifício.

Esperança da fé, terror do vício,

Enigma em dois assuntos decifrado,

Que pareceis castigo ameaçado

E sois executado benefício.

Duas cousas qualquer delas possível

Tendes, ó pranto, para ser forçoso,

e envolveis o prodígio para crível.

Tendo um motivo ingrato, outro piedoso,

Um na minha dureza aborrecível,

Outro no vosso amparo generoso.

A S. FRANCISCO TOMANDO O POETA O HABITO DE TERCEYRO.

Ó magno serafim, que a Deus voaste

Com asas de humildade, e paciência,

E absorto já nessa divina essência

Logras o eterno bem, a que aspiraste:

Pois o caminho aberto nos deixaste,

Para alcançar de Deus também clemência

Na ordem singular de penitência

Destes Filhos Terceiros, que criaste.

A Filhos, como Pai, olha queridos,

E intercede por nós, Francisco Santo,

Para que te sigamos, e imitemos.

E assim desse teu hábito vestidos

Na terra blasonemos de bem tanto,

E depois para o Céu juntos voemos.

AO GLORIOSO PORTUGUEZ SANTO ANTONIO

MOTE

Deus, que é vosso amigo d’alma,
na palma se vos vem pôr,
para mostrar, que de amor
só vós levastes a palma. Quando o livrinho perdestes

lá na mata do botão,

Antônio, grande aflição

dentro em vossa alma tivestes:

e se da dor, que vencestes

levastes vitória, e palma,

bem se colhe, que em tal calma

tal dor, e tal agonia

só aliviar-vos podia

Deus, que é vosso amigo d’alma.

Fez-vos Deus nessa ocasião

visita bem lisonjeira,

e por não puxar cadeira,

se sentou na vossa mão:

foi larga a conversação,

que o assunto foi de amor,

e porque um Frade menor,

(sendo menor que o Menino)

era de tal palma digno,

Na palma se vos vem pôr.

Convosco o Menino então

um jogo, Antônio, jogou:

ele a palma vos ganhou,

mas vós ganhastes por mão:

não jogou entonces não

com o seu Servo o Senhor

para mostrar, que o favor

nasceu da ociosidade,

senão por mais majestade

Para mostrar, que de amor.

Mostrou, que em quererdes bem

a um Deus, a quem imitastes,

não só premissas pagastes,

mas os dízimos também:

e por deixar em refém

deste amor a mais pura alma,

pois todas deixais em calma,

cantam os coros celestes,

que porque a palma a Deus destes

Só vos levastes a palma.

AO MESMO ASSUMPTO.


MOTE

Qual dos dois terá mor gosto,

Antônio em braços com Cristo,

ou Cristo em seus braços posto?

Gosta Cristo de mostrar

que é de Antônio amante fino,

por isso se faz menino,

para em seus braços estar:

mas quem poderá falar,

quando está de rosto a rosto

Cristo com Antônio posto,

Antônio com Cristo em braços

em tão amorosos laços

Qual dos dois terá mor gosto?

Mas sendo Cristo o que vem

para em seus braços se ver,

com razão se há de dizer,

que Cristo mor gosto tem:

mas se ainda houver alguém,

que duvide assim ser isto,

em seus braços bem se há visto

Cristo, porque quis mostrar,

que somente pode estar

Antônio em braços com Cristo.

Foi tão raro, e peregrino

este Santo Lusitano,

que mereceu, sendo humano,

adorações de divino:

finalmente foi tão digno

de excelências, que em seu rosto

realça de Cristo o gosto:

pois onde Cristo estiver,

logo Antônio se há de ver,

Ou Cristo em seus braços posto.

AO MESMO QUE LHE DERAM A GLOZAR.

MOTE

Bêbado está Santo Antônio

Entrou um bêbado um dia

pelo templo sacrossanto

do nosso Português Santo,

e para o Santo investia:

a gente, que ali assistia,

cuidando, tinha o demônio,

lhe acudiu a tempo idôneo,

gritando-lhe todos, tá,

tem mão, olha, que acolá,

Bêbado, está Santo Antônio.

A CANONIZAÇÃO DO BEATO STANISLAO KOSCA.

Na conceição o sangue esclarecido,

No nascimento a graça, consumada,

Na vida a perfeição mais regulada,

E na morte o triunfo mais devido.

O sangue mal na Europa competido,

A graça nas ações sempre admirada,

A profissão no breve confirmada,

O triunfo no eterno merecido.

Tudo se vincula ao ser profundo

De Estanislau, que a glória do seu norte

Foi ser portento ao céu, prodígio ao mundo.

Por isso teve a fama de tal sorte,

Que o fazem nela unidos sem segundo

Conceição, Nascimento, Vida, e Morte.

SOLILOQUIO DE Me. VIOLANTE DO CEO AO DIVINISSIMO
SACRAMENTO: GLOZADO PELO POETA,
PARA TESTEMUNHO DE SUA DEVOÇÃO, E CREDITO
DA VENERAVEL RELIGIOSA.

MOTE

Soberano Rei da Glória,
que nesse doce sustento
sendo todo entendimento
quisestes ficar memória.

Numa cruz vos exaltastes,

meu Deus, para padecer,

e nas ânsias de morrer

ao Eterno Pai clamastes:

sangue com água brotastes

do lado para memória,

e como consta da História,

quisestes morrer constante

por serdes tão fino amante,

Soberano Rei da Glória.

Se na glória, em que reinais,

amante vos concedeis

bem mostrais, no que fazeis,

que extremosamente amais:

mas se em pão vos disfarçais,

dando-vos por alimento,

pergunta o entendimento,

onde assistis com mais luz?

mas direis, doce Jesus

Que nesse doce sustento.

Sabendo enfim, que morríeis,

amante vos entregastes,

e no Horto, quando orastes

ânsias de morte sentíeis:

já, divino Amor, sabíeis,

da vossa morte o tormento,

e já desde o nascimento

todo o saber comprendestes,

porque, Senhor, já nascestes

Sendo todo entendimento.

Vivas lembranças deixastes

da vossa morte, Senhor,

e para maior amor

mesmo em lembrança ficastes:

numa ceia apresentastes

vosso corpo em tanta glória,

que para contar a história

da vossa morte, e tormento,

no divino Sacramento

Quisestes ficar memória.

MOTE

Sol, que estando abreviado
nesse cândido Oriente,
abonais o mais ardente,
ostentando o mais nevado.
Sendo Sol, que dominais

dos céus a máquina fera,

em tão limitada esfera,

como esse Sol ostentais?

creio, que a entender nos dais,

meu Redentor extremado,

que em lugar tão limitado

só o amor caber se atreve

como num círculo breve

Sol, que estando abreviado

Bem nesse lugar tão breve

vemos com tanto arrebol

abrasar-se tanto sol

nos epiciclos da neve:

muito a vosso amor se deve,

pois como Sol no nascente

pelo cristal transparente

divinamente ilustrais,

e todo vos abrasais

Nesse cândido Oriente.

Todo neve na brancura,

todo sol, no que brilhais,

como sol nos abrasais,

sendo neve na frescura:

mas tanto o divino apura

no cristal o transparente,

que ali fazendo patente

o quanto estais empenhado,

de fino amor abrasado

Abonais o mais ardente.

Nascem desempenhos tais

desses divinos primores,

que em requintados amores

todo a nós nos dedicais:

mas bem que vos empenhais,

vejo-vos mui bem trajado

nessa gala de encarnado,

que tomastes de Maria,

agora por bizarria

Ostentando o mais nevado.

MOTE

Emblema de amor mais puro,
enigna de amor mais raro,
que sendo à vista tão claro,
sois também à vista escuro.

Depois de crucificado

vos admirei, bom Senhor,

fino retrato do amor,

quando vos vi retratado:

então de um iluminado

sanguinosamente escuro,

se bem que estou mui seguro

das finezas do Calvário,

vos contemplei no sudário

Emblema de amor mais puro

E suposto o pensamento

se pasma do escuro enigma,

mais o mistério sublima

vendo-vos no Sacramento:

ali meu entendimento

conhecendo-vos tão claro,

melhor esforça o reparo

de que estais tão luzido,

quando melhor comprendido

Enigma de amor mais raro

Que no Sacramento estais

todo, e toda a divindade,

conheço com realidade,

suposto que o disfarçais:

para que vos ocultais

nesse mistério tão raro,

se a maravilha reparo,

penetrando-vos atento,

mais claroao entendimento,

Que sendo à vista tão claro?

Que se de neve coberto

fica o divino admirado,

bem se pode um disfarçado

conhecer melhor ao perto:

porém vós andais tão certo,

e tanto em recatos puro,

que se ver-vos me asseguro

nesse disfarce, em que andais,

inda que patente estais,

Sois também à vista escuro.

MOTE

Agora que entre candores
a vosso amor dais a palma,
escutai, Senhor, uma alma,
que por vós morre de amores. Todo amante, e todo digno

vos veio estar neste trono,

prestando ao amor de abono

quilates do ardor mais fino:

porém, Senhor, se contino

abrasado estais de amores,

entre tantos resplandores,

que por fineza ocultais,

vede, que nos abrasais

Agora, que entre candores.

De amor tão qualificado

digo, ó cordeiro bendito,

que vos aclame infinito

tanto espírito elevado:

que eu vos não louvo ajustado,

bem que supra afetos d’alma,

pois meu amor nesta calma,

sendo do vosso vencido,

reconheço, que subido

A vosso amor dais a palma.

Mas por amor tão subido

ouvi, como tenro amante,

este pecador constante,

que se chega arrependido:

seja de vós admitido

o pranto, em que se desalma

para crédito da palma,

que dais a vossos amores,

dos humildes pecadores

Escutai, Senhor, uma alma.

Ouvi desta alma humilhada,

Senhor, um fraco conceito,

e é, que entreis em meu peito

a fazer vossa morada:

achareis de boa entrada

tormentos, ânsias, e dores,

que deram os malfeitores

em toda a vossa paixão,

e vereis um coração,

Que por vós morre de amores.

MOTE

Escutai vossos efeitos
em grosseiras humildades
que para vós as verdades
têm mais valor, que os conceitos.

Já sei, meu Senhor, que vivo

depois que em meu peito entrastes,

porque logo me deixastes

ardendo em um fogo ativo:

agora tenho motivo

para melhorar conceitos,

quando dos vossos respeitos

palpita meu peito o ardor,

e para ver vosso amor

Escutai vossos efeitos

Mas se o infinito ardor

pode atalhar, quanto diga,

sempre o meu termo periga

nas eloqüências de amor:

cale-se a língua melhor

em tantas dificuldades,

vos intenta ponderar,

mil erros lhe haveis de achar

Em grosseiras humildades.

Quem, Senhor, na confissão

andara tão acertado,

que do mais leve pecado

soubera ter contrição:

que de todo o coração

com assaz de realidades

sentira essas propriedades

confessando, o que mandais,

pois sei, que não quereis mais

Que para vós as verdades.

Bem advertido, Senhor,

estou, que sois lince vós,

e que penetrais em nós

os movimentos de amor:

tanto conheceis a dor,

que temos em nossos peitos,

que sendo de amor efeitos

os verdadeiros sinais,

convosco verdades tais

Têm mais valor, que os conceitos.

MOTE

Exercite os mais subidos,
quem busca humanos agrados,
que sempre são levantados,
os que são de vós ouvidos.

Oh quem tivera empregados

em vós, meu Amor divino,

cuidados, que de contino

se multiplicam cuidados:

fazei, que a vós levantados

se acreditem de luzidos

pensamentos, que abatidos

seguem do mundo os enganos,

e que deixando os humanos,

Exercite os mais subidos.

Quem conquistando, Senhor,

vosso amor, perdera a vida,

porque a dá por bem perdida

quem a perde em vosso amor!

Se eu, terníssimo Pastor,

acudira a vossos brados,

então sim, que os meus cuidados

coroara de alta dita,

já que fino se acredita

Quem busca humanos agrados.

Porque aqueles, que vos amam,

e em tais delícias se enlevam,

o prêmio consigo levam,

e filhos vossos se aclamam:

que como no amor se inflamam,

os que são vossos amados,

sendo já purificados

por filhos do vosso amor,

quem há de negar, Senhor,

Que sempre são levantados?

Quem de contino a bradar

por vós no maior rigor

nas enchentes desse amor

não acha de graça um mar?

quero com ânsias mostrar

a dor, a pena, os gemidos;

pois sendo a vós repetidos,

serão de vós bem lembrados,

que são bem-aventurados

Os que são de vós ouvidos.

MOTE

Ai Senhor, quem alcançara
um bem tão alto, e divino,
que de meus ais o contino
a tais ouvidos chegara!

Ai meu Deus, quem merecera
trazer-vos tão dentro d’alma,

que abrasado em viva calma

do vosso amor falecera!

Ai Senhor, quem padecera

por vós, e só vos amara!

ai quem por vós desprezara

tanta enganosa ruína,

e vossa graça divina

Ai Senhor, quem alcançara.

Ai quem fora tão ditoso,

que soubera bem amar-vos,

e na ação de conquistar-vos

rejeitara o mais custoso!

quem, Senhor, tão sequioso

todo amante, e todo fino

elevara o seu destino

a beber da fonte clara,

que desta sorte lograra,

Um bem tão alto, e divino.

Quem disposto a padecer

por vós buscara os retiros.

onde com ais, e suspiros

soubera por vós morrer!

quem sabendo comprender

desse vosso amor o fino

se elevara peregrino

por um amor de tal porte,

que me dera a melhor sorte,

Que de meus ais o contino!

Só então fora feliz,

e fora então venturoso,

se conhecera ditoso,

que meus suspiros ouvis:

se minha dor admitis,

ditoso então me chamara;

oh se de uma dor tão rara

ouvísseis um só gernido,

e se um ai enternecido

A tais ouvidos chegara!

MOTE

Porém justamente espera
cada qual chegar-vos logo,
porque a suspiros de fogo
nunca nos negais esfera.

Esta alma, meu Redentor,

que vos busca peregrina,

por vossa grasa divina

suspira em contlnua dor:

diz, e protesta, Senhor,

que se mil vidas tivera,

todas por vós as perdera,

e não só não se embaraça

no pedir da vossa graça,

Porém justamente espera.

Espera, e não estranheis

o confiar de um preverso,

que pertende já converso,

que a todos, Senhor, salveis:

peço-vos, que nos livreis

desse dilúvio de fogo;

ouvi por todos meu rogo,

inda que vos não compete,

que todos juntos, promete

Cada qual chegar-vos logo.

Porque se abrasado o peito

vosso amor está chamando,

não é muito, que chorando

seja cada qual desfeito:

bem posso formar conceito

desta causa, Senhor, logo,

pois vós ouvistes meu rogo,

e atendeis à minha mágoa,

porque vós venceis com água

Porque a suspiros de fogo.

Arde meu peito em calor,

se bem estou anelando,

quando me estou abrasando

em tanto fogo de amor:

se se realça o ardor,

que um peito amante verbera

quem o favor não espera

de tanto carinho ao rogo,

se a chamas de ativo fogo

Nunca vos negais esfera?

MOTE

Ai meu bem! ai meu Esposo!
ai Senhor Sacramentado!
que mal pode o disfarçado
ocultar o poderoso.

Ai meu Deus, que já não sei

vendo, que vos ausentais,

dizer, como me deixais

neste abismo, em que fiquei

ai Senhor! e que farei

para alcançar venturoso,

o que por menos ditoso

perdi, ou talvez de indigno:

ai meu Redentor divino!

Ai meu bem! ai meu Esposo

Ai Senhor, que me deixais

nesta dura soledade

morto na realidade,

bem que vivo me vejais:

mistérios de amor guardais,

porque estais inda encerrado

em dar-me a vida empenhado,

e do vosso amor a palma:

ai amante da minha alma!

Ai Senhor Sacramentado!

Se nos disfarces metido

roubar as almas quereis,

que importa, vos disfarceis,

ficando à vista o vestido?

mas de que (já conhecido

pelo vestido encarnado)

vos importa o rebuçado:

pois conhecido o poder,

tanta luz escurecer

Que mal pode o disfarçado.

Diáfano, e transparente

esse cristal puro, e fino

com resguardar o divino

declara o onipotente:

tanto nele permanente

está sempre o majestoso,

que então brilha mais lustroso

pelas veias do cristal,

e oculta instrumento tal

Ocultar o poderoso.

MOTE

Ai que bem se deixa ver
nessa Hóstia, Rei Supremo,
que quanto é maior o extremo,
tanto é maior o poder.

Cuidei que não permitisse

vosso poder sublimado,

que estando assim disfarçado,

tão claramente vos visse:

mas porque bem arguísse,

qual seja o vosso poder,

breve cheguei a colher

pelo cristal transparente,

o que em vós como acidente

Ai que bem se deixa ver!

Bendito seja, e louvado,

pelo que tem de amoroso,

um Deus, que é tão poderoso,

um Senhor tão sublimado:

deixar de ser exaltado

poder tão grande, não temo,

pois se vê de extremo a extremo,

que a grandeza, que se sabe

cabendo em vós, toda cabe

Nessa Hóstia, Rei Supremo.

Exaltada a Majestade

seja de um Rei tão divino,

e louvada de contino

tão suprema divindade:

porque, Senhor, na verdade

dessas profundezas temo,

quando a razão, Rei Supremo,

responde à minha rudeza

(sobre o subir da grandeza)

Que quanto é maior o extremo.

E colhida a admiração

no Sacramento está visto

quando Pão, ser todo Cristo

quando Cristo, todo Pão

unido na Encarnação

ao divino e humano ser

e sendo imortal morrer

um Deus, que tanto se humilha

sendo grande a maravilha

Tanto é maior o poder

MOTE

Porque, quem em pão se encerra
Ser divino, e Ser humano,
que muito que soberano
fabricasse o céu, e a terra. Se no pão vos disfarçais,

por cobrir vossa grandeza,

já do pão na natureza

toda a grandeza expressais.

melhor no pão publicais

o poder a toda a terra,

pasme o mar, e trema a serra,

e reconheça o percito,

que o Pão é Deus infinito;

Porque quem em pão se encerra?

Neste Pão sacramentado,

que dos Anjos é sustento,

têm as almas grande alento

por meio de um só bocado:

perdoa a todo o pecado

por mais torpe, e desumano,

e eu me confesso tirano,

porque me não arrependo

se estou no Pão conhecendo

Ser divino, e ser humano.

Na Ceia se apresentou

o Senhor com realidade,

neste Pão da divindade,

que a todos sacramentou:

se a cada um transformou,

passando a divino o humano

que muito, que o desumano

pecador já convertido

seja aos Anjos preferido?

Que muito, que soberano?

Quem assim o permitiu

com tão alta onipotência,

que o pó da suma indigência

sobre as esferas subiu:

quem este pó preferiu

à luz, que luzes desterra,

que muito a contrária guerra

pacifique aos elementos?

que muito, que a seus intentos

Fabricasse o Céu, e a terra?

MOTE

Que muito, que vivo alento
desse a um barro insensível
um Deus, que lhe foi possível
dar-se a si mesmo em sustento.

De um barro frágil, e vil,

Senhor, o homem formastes,

cuja obra exagerastes

por engenhosa, e sutil:

graças vos dou mil a mil,

pois em conhecido aumento

tem meu ser o fundamento

na razão, em que se estriba,

se lhe infundis alma viva,

Que muito, que vivo alento.

Depois de feita a escultura,

e por um Deus acabada,

obra não houve extremada

como a humana criatura:

ali para mais ventura

(sendo o barro assaz terrível)

alma lhe deu infalível,

e me admira ver, que aquela

alma, que ali fez tão bela

Desse a um barro insensível.

Possível lhe foi fazer

este Arquiteto divino

participando do Trino

aquela alma a seu prazer:

para mais se engrandecer

engrandeceu o insensível,

desatando-se passível

daquele sagrado nó,

que apertava três, e só

Um Deus, que lhe foi possível.

Foi grandeza do poder

aquele querer mostrar

sendo divino encarnar

para humano vir nascer:

e foi grandeza o morrer

um Deus, que é todo portento;

e se bem no Sacramento

se adverte grande fineza,

de seu poder foi grandeza

Dar-se a si mesmo em sustento.

MOTE

Ó divina Onipotência!
Ó divina Majestade!
que sendo Deus na verdade
sois também Pão na aparência.

Já requintada a fineza

Nesse Pão sacramentado

temos, Senhor, ponderado

vossa inaudita grandeza:

mas o que apura a pureza

da vossa magnificência

é, quererdes, que uma ausência

não padeça, quem deixais,

pois que partindo ficais,

Ó divina Onipotência.

Permiti por vossa cruz,

por vossa morte, e paixão,

que entrem no meu coração

os raios da vossa luz:

clementíssimo Jesus

sol de imensa claridade,

sem vós a mesma verdade,

com que vos amo, periga;

guiai-me, porque vos siga,

Ó divina Majestade.

Na verdade esclarecida

do vosso trono celeste

toda a potência terrestre

de comprender-vos duvida:

porém na forma rendida

de um cordeiro a Majestade

aos olhos da humanidade

melhor a potência informa,

sendo cordeiro na forma,

Que sendo Deus na verdade.

Cá neste trono de neve,

onde humanado vos vejo,

melhor aspira o desejo,

melhor a vista se atreve:

aqui sabe, o que vos deve

(vencendo a maior ciência)

amor, cuja alta potência

adverte nesse distrito,

que sendo Deus infinito,

Sois também Pão na aparência.

MOTE

Ó Soberana Comida!
Ó maravilha excelente!
pois em vós é acidente,
o que em mim eterna vida.
À mesa do Sacramento

cheguei, e vendo a grandeza

admirei tanta beleza,

dei graças de tal portento:

com santo conhecimento

só então folguci ter vida,

pois vendo-a convosco unida

na flama de tanta calma

disse (recebendo-a n’alma)

Ó Soberana Comida!

Naquela mesa admirando

anda a graça tanto a rodo,

que dando-se a todos, todo

vos estais comunicando:

e de tal modo exaltando

vosso ser onipotente,

que quando estais tão patente

nessa nevada pastilha,

vos louvam por maravilha,

Ó maravilha excelente!

Como num excelso trono

realmente verdadeiro,

na Hóstia estais todo inteiro,

Senhor, por maior abono:

se por ser das almas dono

vos empenhais tão patente,

hei de apelidar contente

com a voz ao céu subida,

que esse Pão me seja vida,

Pois em vós é acidente.

Neste excesso do poder

só podia o majestoso

obrar ali de amoroso,

o que chegou a emprender:

eu, que venho a merecer

lograr a Deus por comida,

tenho por cousa sabida

neste excesso do Senhor

serem delíquios do amor,

O que em mim eterna vida.

MOTE

Ó poder sempre infinito,
que o céu admira suspenso,
pois se encerra um Deus imenso
em tão pequeno distrito.
Três vezes grande, Senhor,

o mesmo céu nos publica,

e este louvor multiplica

com repetido clamor:

não cessa o santo louvor,

porque não cessando o grito

de tanto elevado esprito,

isso mesmo é propriedade,

que defende a majestade

O poder sempre infinito.

Quem chegar a compreender

essa grande imensidade,

há de pasmar na verdade

reconhecido o poder:

porém eu hei de dizer,

que nesse globo in extenso

vejo aquele sol imenso,

que tantos pasmos conduz,

vejo aquela imensa luz,

que o Céu admira suspenso.

Tal a meus olhos exposto

vos vejo no Sacramento.

que supre esse entendimento

os delírios do meu gosto:

porém se encobris o rosto,

já desanimo suspenso,

e vós sabeis por extenso

da águia, que se vos aplica,

qual se desmaia, e qual fica,

Pois se encerra um Deus imenso.

Quando em partes dividido

vos creio nas partes todo,

e vos vejo em raro modo

todo nas partes unido:

e de empenho tão subido

a inteligência repito,

pois me informa o infinito,

que estar pode na verdade

do Céu toda a majestade

Em tão pequeno distrito.

MOTE

 

Com razão, divina neve,
a vós se prostram coroas,
pois inclue três pessoas
a partícula mais breve.

Sol de justiça divino

sois, Amor onipotente,

porque estais continuamente

no luzimento mais fino:

porém, Senhor, se o contino

resplandecer se vos deve,

fazendo um reparo breve

desse sol no luzimento,

sois sol, mas no Sacramento

Com razão divina neve.

Só em vós, meu Redentor,

S tanta grandeza se encerra:

porque dos céus, e da terra

sois absoluto Senhor:

da terra o poder maior

um tempo em ardentes loas

humilharam três pessoas,

prostrando-se ao vosso pé

bem advertidos, de que

A vós se prostram coroas.

Mas porém se o disfarçado

não diminui o valor,

como ocupais, meu Senhor,

um lugar tão limitado?

de maior porém penhado

nos dais advertências boas;

mas convencendo as coroas,

mostrais ao peito arrogante

que esse lugar é bastante,

Pois inclue três pessoas.

A maravilha maior,

que causa o vosso portento,

é, que estais no Sacramento

todo em partes por amor:

porém se o maior valor

ao mais humilde se deve,

e so quem menos se atreve,

esse voz goza, e vos prende,

com razão vos compreende

A partícula mais breve.

MOTE

 

Ora quereis doce Esposo,
quereis, luz dos meus sentidos,
que fiquemos sempre unidos
em um vínculo amoroso?

Agora, Senhor, espero,

que consintais, no que digo;

quereis vós ficar comigo,

que eu partir convosco quero?

que o permitais considero

fazendo-me a mim ditoso,

pois vos prezais de amoroso:

já quero as entranhas dar-vos,

e vede se assim tratar-vos,

Ora quereis, doce Esposo.

Já, Senhor, seguir-vos posso,

pois vosso amor me rendeu,

ser todo vosso, e não meu,

nada meu, e todo vosso:

permiti como Pai nosso,

não andemos divididos,

mas antes que muito unidos

estejamos entre nós,

porque eu já quero, o que vós

Quereis, luz dos meus sentidos.

Façamos, Senhor, um laço

entre nós tão apertado,

que de vós mais apartado

não possa mudar um passo:

porque com este embaraço

andemos tão prevenidos,

que não ousem meus sentidos

sair de vossos cuidados,

e de tal sorte ajustados,

Que fiquemos sempre unidos.

Seja pois este querer-nos

de tal sorte requintado,

que fique todo admirado,

quem assim chegar a ver-nos:

onde possa conhecer-nos

o mundo de curioso

me inveje pelo ditoso,

vendo, que comigo amante

vos ajustais mui constante

em um vínculo amoroso

MOTE

Levantai minha humildade
humilhai vossa grandeza,
porque em vós seja fineza,
o que em mim felicidade. Não é minha voz ousada

a pedir-vos mas prossigo,

que quoirais estar comigo,

inda que, Senhor, sou nada:

e se minha alma ilustrada

quereis, que fique em verdade,

pois que sem dificuldade

me podeis engrandecer,

ao auge do vosso ser

Levantai minha humildade.

Tenho, Senhor, no sentido

para duvidar de ousado,

que mal pode o desairado

pertender o esclarecido:

de minhas culpas tolhido

na abominável torpeza,

vendo em vós tanta beleza,

mal posso, Senhor, chegar-vos,

e para poder lograr-vos

Humilhai vossa grandeza.

Fazei por mim, meu Senhor,

tudo quanto possa ser,

e pois tendes tal poder

me podeis dar vosso amor:

uni o vosso valor

com a minha singeleza,

e fique a vossa grandeza

unida, Senhor, comigo;

fazei isto, que vos digo,

Porque em vós seja fineza.

Vosso corpo por inteiro

introduzi no meu peito,

porque assim ficarei feito

um sacrário verdadeiro:

ostentai, manso cordeiro,

com a minha indignidade

vossa grande Majestade,

suposto que o não mereça,

porque traça em vós pareça

O que em mim felicidade.

MOTE

Uni meu sujeito indigno
a esse objeto soberano,
fareis do divino humano,
fareis do humano divino. Mostrai, Senhor, a grandeza

de tão imenso poder,

unindo este baixo ser

a tão suprema beleza:

uni, Senhor, com firmeza

a este barro nada fino

o vosso ser tão divino,

ligai-vos comigo amante,

convosco em laço constante

Uni meu sujeito indigno.

Fazei, Senhor, com que fique

desta união tal memória,

que tão peregrina história

a vosso amor se dedique:

justo será, que publique

em seu pergaminho lhano

vossa glória o peito humano,

e que o mundo suspendido

vejo um pecador unido

A esse objeto soberano.

Como da vossa grandeza

não há mais onde subir,

será realce o vestir as túnicas da vileza:

muito o vosso amor se preza

de abater o soberano;

serei eu o Publicano

indigno do vosso amor:

vinde a meu peito, Senhor,

Fareis do divino humano.

Fareis humanado em mim

créditos à divindade,

porque o vosso incêndio há de

transformar-me em serafim:

fareis deste barro enfim

frágua de incêndio mais digno,

fareis do grosseiro o fino,

que isso é glória do saber

e por timbre do poder

Fareis do humano divino.

MOTE

Ai quem tal bem merecera!
que de vós não se apartara!
ai quem melhor vos amara!
ai quem só em vós vivera!

Ai quem bem considerara

na glória só de vos ver,

que abrasado em seu querer

salamandra vos buscara!

ai quem tanto vos amara,

que tudo por vós perdera!

ai quem por vós padecera!

ai quem já pudera ver-vos!

ai quem soubera queter-vos!

Ai quem tal bem merecera!

Quem bem convosco se unira,

meu Senhor, e por tal arte,

que juntos em qualquer parte

um, e outro amor se vira!

quem tanto bem conseguira,

e quem tanto vos amara,

que um instante não deixara

de assistir-vos cuidadoso!

e quem fora tão ditoso

Que de vós não se apartara!

Ai quem soubera adorar-vos

de tal sorte, meu Senhor,

que deixara o próprio amor

nas pertendências de amar-vos!

quem, a alma querendo dar-vos,

o coração não deixara,

que desse modo lograra

a glória, Senhor, de ver-vos!

ai quem soubera querer-vos!

Ai quem melhor vos amara!

Quem morto se imaginara

nas glórias da humana vida!

vida em bonanças perdida,

vida, que a morte prepara:

ai quem tão só vos buscara,

que para o mundo morrera!

quem por ganhar-vos perdera

todas as glórias do mundo!

ai quem morrera ao imundo!

Ai quem só em vós vivera!

MOTE

Ai quem soubera querer-vos!
ai quem soubera agradar-vos!
ai quem soubera explicar-vos!
quanto anela o bem de ver-vos.

Quem fora tão fino amante,

que mostrara a seu objeto

bem nas entranhas do afeto

prendas do amor palpitante:

quem nessa pira flamante

purificara o temer-vos!

ai quem temera ofender-vos

só por amor de agradar-vos!

ai quem soubera pagar-vos!

Ai quem soubera querer-vos!

Quem submergido na pena

prantos a mares vertera,

que outro Pedro parecera,

ou qual outra Madalena!

mas se contudo é pequena

para em justiça obrigar-vos

ai quem no rumo de amar-vos,

que de outro amor me desterra,

fora cos olhos na terra!

Ai quem soubera agradar-vos!

Se a vossa divina mão,

amantíssimo Pai nosso,

(como a de Tomé o vosso)

palpara o meu coração:

ai que delícias então

sentira a razão de amar-vos!

ai quem pudera mostrar-vos

o fino do meu amor!

e as circunstâncias da dor

Ai quem soubera explicar-vos!

Entrai, Senhor, no meu peito,

onde ao ver-vos retratado

causa sereis, meu amado,

inseparável do efeito:

entrai, que sois bem aceito,

pelo que sei já querer-vos,

e se dentro chego a ter-vos

desta minha indignidade

haveis de ver na verdade,

Quanto anela o bem de ver-vos.

MOTE

Mas se sois lince divino,
que o mais oculto estais vendo:
se estais, luz minha, sabendo
o mesmo, que eu imagino.

Bem sei, meu amado objeto,

fazendo um breve conceito,

que penetrais do meu peito

o mais oculto, e secreto:

bem vê meu constante afeto

da vossa potência o fino,

porque neste vidro indigno

raiando desse Oriente,

se sois sol, não só persente,

Mas se sois lince divino.

Deixo à parte haver gerado

vosso justo entendimento

os astros, o firmamento,

e todo o demais criado:

e fico como elevado

no poder, a que me rendo,

admirando: porém vendo

vossa grandeza, e poder,

quando chego a comprender,

Que o mais oculto estais vendo.

Quando isento o pensamento

de toda a minha maldade,

vós lá dessa imensidade

vedes também meu intento:

se um oculto movimento

patente, e claro estais vendo,

fico por fé conhecendo

desse poder penetrante,

que não obsta estar distante,

Se estais, luz minha, sabendo.

E posto encubrais o rosto

no acidental Sacramento,

mui bem vedes meu intento,

pois a tudo estais exposto:

muda a língua, e fixo o gosto

em vós, meu lince divino,

já reconheço, que o fino

deste arnor penetrareis,

porque, Senhor, bem sabeis

O mesmo, que eu imagino.

MOTE

Que importa, que meus cuidados
não sejam bem referidos,
se para serem sabidos
não dependem de explicados. Se todo a vós me dedico,
quando todo a mim vos dais,

porque vós em mim ficais,

eu também em vós me fico:

vosso querer justifico,

tendo em vós assegurados

afetos tão requintados;

e se amor é compaixão,

a culpa, meu coração,

que importa? que? meus cuidados.

Deus amado, e Deus amante,

oh quem trouxera ajustados

seus amorosos cuidados,

que sem vós nem um instante!

mas pois que o mundo inconstante

perturba amantes sentidos,

valham ardentes gemidos

de afetos interiores

pelo instante, em que os amores

não sejam bem referidos.

Fazei, que eu logre a vitória

de uns atrevidos cuidados,

que quando quero explicados

perturbam minha memória:

oh se me alcançara a glória

de ter estes atrevidos

na confissão oprimidos,

onde não posso explicar,

se os conduzo a castigar,

Se para serem sabidos.

Sempre nesta explicação

de meus cuidados secretos

quero mostrar uns afetos

de anelante coração:

vaidosa demonstração

de amores mal informados

que repetir meus cuidados

é nescedade de amor,

quando convosco, Senhor,

Não dependem de explicados.

MOTE

Assim pois vós sabeis tudo
ó diviníssimo objeto,
valha-se só meu afeto
de estilo, que fala mudo.

Nada, meu Senhor, vos digo,

nada quisera dizer-vos,

porque os atos de querer-vos,

têm pelas vozes perigo:

tanto, Senhor, que comigo

hei de acabar de ser mudo,

e de tal maneira rudo,

que quando me perguntares

responderei (se escutares)

Assim, pois vós sabeis tudo.

Porém calar-me não quero,

quero convosco explicar-me,

vede, se quereis levar-me,

onde louvar-vos espero:

porque se bem considero

distante o golpe secreto,

levando-me vós o afeto,

de que servem meus sentidos

prostrados, e desunidos,

Ó diviníssimo objeto

Convosco meu ser se abraça,

e não pareçam delírios

procurar cândidos lírios

da vossa divina graça:

pois neles a alma se enlaça,

e convosco, amado objeto,

diz, que quer ir em secreto

purificar seu valor:

aqui do vosso favor

Valha-se só meu afeto.

Finalmente os meus cuidados

ordenai, Amor, de sorte,

que aos círculos de seu norte

correspondam empenhados:

meus sentidos desvelados

com excesso sobreagudo

vos venerem mais que tudo

em finíssimos extremos:

porém, meu Senhor, mudemos

De estilo, que fala mudo.

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