Lima Barreto
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Certamente há de ser impressão particular minha não encontrar no cemitério municipal de Inhaúma aquele ar de recolhimento, de resignada tristeza, de imponderável poesia do Além, que encontro nos outros. Acho-o feio, sem compunção com um ar momo de repartição pública; mas se o cemitério me parece assim, e não me interessa, os enterros que lá vão ter, todos eles, aguçam sempre a minha atenção quando os vejo passar, pobres ou não, a pé ou em coche-automóvel.
A pobreza da maioria dos habitantes dos subúrbios ainda mantém neles esse costume rural de levar a pé, carregados a braços, os mortos queridos.
É um sacrifício que redunda num penhor de amizade em uma homenagem das mais sinceras e piedosas que um vivo pode prestar a um morto.
Vejo-os passar e calculo que os condutores daquele viajante para tão longínquas paragens, já andaram alguns quilômetros e vão carregar o amigo morto, ainda durante cerca de uma légua. Em geral assisto a passagem desses cortejos fúnebres na rua José Bonifácio canto da Estrada Real. Pela manhã gosto de ler os jornais num botequim que há por lá. Vejo os órgãos, quando as manhãs estão límpidas, tintos com a sua tinta especial de um profundo azul-ferrete e vejo uma velha casa de fazenda que se ergue bem próximo, no alto de uma meia laranja, passam carros de bois, tropas de mulas com sacas de carvão- nas cangalhas, carros de bananas, pequenas manadas de bois, cujo campeiro cavalga atrás sempre com o pé direito embaralhado em panos.
Em certos instantes, suspendo mais demoradamente a leitura do jornal, e espreguiço o olhar por sobre o macio tapete verde do capinzal intérmino que se estende na minha frente.
Sonhos de vida roceira me vêm; suposições do que aquilo havia sido, ponho-me a fazer. Índios, canaviais, escravos, troncos, reis, rainhas, imperadores – tudo isso me acode à vista daquelas coisas mudas que em nada falam do passado.
De repente, tilinta um elétrico, buzina um- automóvel chega um caminhão carregado de caixas de garrafas de cerveja; então, todo o bucolismo do local se desfaz, a emoção das priscas eras em que os coches de Dom João VI transitavam por ali, esvai-se e ponho-me a ouvir o retinir de ferro malhado, uma fábrica que se constrói bem perto.
Vem porém o enterro de uma criança; e volto a sonhar.
São moças que carregam o caixão minúsculo; mas assim mesmo, pesa. Percebo-o bem, no esforço que fazem.
Vestem-se de branco e calçam sapatos de salto alto. Sopesando o esquife, pisando o mau calçamento da rua, é com dificuldade que cumprem a sua piedosa missão. E eu me lembro que ainda têm de andar tanto! Contudo, elas vão ficar livres de um suplício; é o do calçamento da rua do Senador José Bonifácio. É que vão entrar na Estrada Real; e, naquele trecho, a prefeitura só tem feito amontoar pedregulhos, mas tem deixado a vetusta via pública no estado de nudez virginal em que nasceu. Isto há anos que se verifica.
Logo que as portadoras do defunto pisam o barro unido do velho trilho, adivinho que elas sentem um grande alívio dos pés à cabeça. As fisionomias denunciam. Atrás, seguem outras moças que as auxiliarão bem depressa, na sua tocante missão de levar um mortal à sua última morada neste mundo; e, logo após, graves cavalheiros de preto, com o chapéu na mão, carregando palmas de flores naturais, algumas com aspecto silvestre, e baratas e humildes coroas artificiais fecham o cortejo.
Este calçamento da rua Senador José Bonifácio, que deve datar de uns cinqüenta anos é feito de pedacinhos de seixos mal ajustados e está cheio de depressões e elevações imprevistas. É mau para os defuntos; e até já fez um ressuscitar.
Conto-lhes. O enterro era feito em coche puxado por muares. Vinha das bandas do Engenho Novo, e tudo corria bem. O carro mortuário ia na frente, ao trote igual das bestas. Acompanhavam-no seis ou oito caleças, ou meias caleças, com os amigos do defunto. Na altura da estação de Todos os Santos, o cortejo deixa a rua Arquias Cordeiro e toma perpendicularmente, à direita, a de José Bonifácio. Coche e caleças põem-se logo a jogar como navios em alto-mar tempestuoso. Tudo dança dentro deles. O cocheiro do carro fúnebre mal se equilibra na boléia alta. Oscila da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, que nem um mastro de galera debaixo de tempestade braba. Subitamente, antes de chegar aos “Dois Irmãos”, o coche cai num caldeirão, pende violentamente para um lado; o cocheiro é cuspido ao solo, as correias que prendem o caixão ao carro, partem-se, escorregando a jeito e vindo espatifar-se de encontro às pedras; e – oh! terrível surpresa! do interior do esquife, surge de pé – lépido, vivo, vivinho, o defunto que ia sendo levado ao cemitério a enterrar. Quando ele atinou e coordenou os fatos não pôde conter a sua indignação e soltou uma maldição: “Desgraçada municipalidade de minha terra que deixas este calçamento em tão mal estado! Eu que ia afinal descansar, devido ao teu relaxamento volto ao mundo, para ouvir as queixas da minha mulher por causa da carestia da vida, de que não tenho culpa alguma; e sofrer as impertinências do meu chefe Selrão, por causa das suas hemorróidas, pelas quais não me cabe responsabilidade qualquer! Ah! Prefeitura de uma figa, se tivesses uma só cabeça havias de ver as forças das minhas munhecas! Eu te esganava, maldita, que me trazes de novo à vida!”
A este fato, eu não assisti, nem ao menos morava naquelas paragens, quando aconteceu; mas pessoas dignas de toda a confiança me garantem a autenticidade dele. Porém, um outro muito interessante aconteceu com um enterro quando eu já morava por elas, e dele tive notícias frescas, logo após o sucedido, por pessoas que nele tomaram parte.
Tinha morrido o Felisberto Catarino, operário, lustrador e empalhador numa oficina de móveis de Cascadura. Ele morava no Engenho de Dentro, em casa própria, com razoável quintal, onde havia, além de alguns pés de laranjeiras, uma umbrosa mangueira, debaixo da qual, aos domingos, reunia colegas e amigos para bebericar e jogar a bisca.
Catarino gozava de muita estima, tanto na oficina como na vizinhança.
Como era de esperar, o seu enterro foi muito concorrido e feito a pé, com um denso acompanhamento. De onde ele morava, até ao cemitério de Inhaúma, era um bom pedaço; mas os seus amigos a nada quiseram atender: Resolveram levá-lo mesmo a pé. Lá fora, e no trajeto, por tudo que era botequim e taverna por que passavam, bebiam o seu trago. Quando o caminho se tornou mais deserto até os condutores do esquife deixavam-no na borda da estrada e iam à taverna “desalterar”. Numa das últimas etapas do itinerário, os que carregavam, resolveram de mútuo acordo deixar o pesado fardo para os outros e encaminharam-se sub-repticiamente para a porta do cemitério. Tanto estes como os demais – é de toda a conveniência dizer – já estavam bem transtornados pelo álcool. Outro grupo concordou fazer o mesmo que tinham feito os carregadores dos despojos mortais de Catarino; um outro, idem; e, assim, todo o acompanhamento dividido em grupos, tomou o rumo do portão do campo-santo, deixando o caixão fúnebre com o cadáver de Catarino dentro abandonado à margem da estrada.
Na porta do cemitério, cada um esperava ver chegar o esquife pelas mãos de outros que não as deles; mas nada de chegar. Um, mais audaz, após algum tempo de espera, dirigindo-se a todos os companheiros, disse bem alto:
– Querem ver que perdemos o defunto?
– Como? perguntaram os outros, a uma voz.
– Ele não aprece e estamos todos aqui, refletiu o da iniciativa.
– É verdade, fez outro.
Alguém então aventou:
– Vamos procurá-lo. Não seria melhor?
E todos voltaram sobre os seus passos, para procurar aquela agulha em palheiro…
Tristes enterros de Inhaúma! Não fossem essas tintas pinturescas e pitorescas de que vos revestis de quando em quando de quanta reflexão acabrunhadora não havíeis de sugerir aos que vos vêem passar; e como não convenceríeis também a eles que a maior dor desta vida não é morrer…
Feiras e mafuás, 26-8-1922
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