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Tempo Angolano Em Itália (Fragmento)Terra autobiográfica (fragmento) |
Autobiografia
Não existe mais
a casa onde nasci
nem meu Pai
nem a mulembeira
da primeira sombra.
Não existe o pátio
o forno a lenha
nem os vasos e a casota do leão.
Nada existe
nem sequer ruínas
entulho de adobes e telhas
calcinadas.
Alguém varreu o fogo
a minha infância
e na fogueira arderam todos os ancestres.
Contratados
À hora de sol-posto
as rolas traçam
desenhos de feitiços sinuosos
caminhos sob a calma das mulembas
e abraços de segredos e silêncios.
… longe… muito longe
um risco brando
acorda os ecos dos quissanges
vermelho como o fogo das queimadas
com imagens de mucuisses e luar.
Canções que os velhos cantam
Murmurando.
… e nos homens cansados de lembrar
a distância vai calando mágoas
renasce em cada braço
a força de um secreto entendimento.
Dádiva
Sou mais forte que o silêncio dos muxitos
mas sou igual ao silêncio dos muxitos
nas noites de luar e sem trovões.
Tenho o segredo dos capinzais
soltando ais
ao fogo das queimadas de setembro
tenho a carícia das folhas novas
cantando novas
que antecedem as chuvadas
tenho a sede das plantas e dos rios
quando frios
crestam o ramos das mulembas.
…e quando chega o canto das perdizes
e nas anharas revive a terra em cor
sinto em cada flor
nos seus matizes
que és tudo o que a vida me ofereceu.
Instante
… e há sonhos para nunca mais realizados
tal é o instante
preciso
que antecede a bala.
A imagem longe do caminho
flutua sobre as ondas
duma qualquer recordação banal
O peso da arma aos ombros
a monotonia dos passos
o cansaço
as folhas secas
tudo mergulhou profundamente
no sono de algo bem amado;
os nervos que há momentos estavam tensos
lançando os olhos como setas
bússola dos ruídos
repousavam uns segundos
do tempo de poesia
no instante
preciso
que antecede a bala.
E quando a bala
feriu o silêncio carregado
prostrando o homem sobre a terra
não foram assassinos que o mataram.
O guerrilheiro também vive
um tempo de poesia
como a vida de uma bala
na emboscada dos murmúrios
apenas respirados.
O guerrilheiro é terra móvel
decisão de liberdade
na pátria raivosamente escrava.
Já não é…
Já não é a noite que promete algum desejo
e o amanhecer não reflecte mais quimeras
no olhar.
Aquilo que era sol em cada verso
são os caídos,
é a queda
de cada pedra companheira
movida ainda sabe-se lá por que impulsão
após a morte!
As palavras que prometem
vêm depois que silvam balas
e a decisão dos homens.
Restamos nós rochedos brutos da montanha
face voltada ao amanhã que sempre nos guiou.
Cairemos não importa.
Nós somos o carvão da luz futura.
Regresso
Andam no ar
Poemas negros
De cor amarga
Misturados à voz rouca
Dos camiões.
Desertas
Frias
Despidas
As cubatas esperam:
Mulheres e homens,
Nas cubatas,
Vozes
Riem
Escutam
Choram
Histórias iguais a muitas.
Nalgumas
O pranto
Inda é maior.
Tempo Angolano em Itália (Fragmento)
Não consegui dormir a noite inteira
o relógio só me falou das horas.
A alemã que sentava à minha frente
tinha os seios demasiadamente longos
olhos longos boca longa pernas longas
seios demasiadamente longos.
Fazia ginástica para adormecer
mas não dormia
era do cansaço
do Verão em Portugal.
Ao meu lado o padre brasileiro
dizia ao arquiteto:
“Lacerda é um homem inteligente
Jânio um visionário… Um comunista”
Não sei se o pensamento se os ouvidos ou os olhos
disseram qualquer coisa…
Foi quando reparei nos seios longos
da alemã sentada à minha frente. m
E todos reparamos que ela tinha seios longos
era alemã
cansada
do Verão.
O comboio escondia-se na noite
sempre mais profundamente como um verme
fazendo uma pasta escura da paisagem
sempre mais profundamente escura como um verme
que se rasgava com as lâmpadas
das estações em que parava ou não parava
o verme.
O relógio falou das dez-e-meia
e a insinuação às próximas duas da manhã
incomodou-me.
“…derrubou já dois governos…” (tinha sotaina preta)
Imbecil! Gritei dentro de mim.
Teria o arquiteto percebido?
O resto do compartimento era espanhol.
O velho era espanhol e tapava os olhos com a boina.
O construtor tinha cara de sapo e era sapo espanhol
(o pescoço não)
o resto era sapo, sapo e nada mais.
Nunca vi um homem tão sapo em minha vida.
Depois era a alemã dos seios longos
devia ter vinte e dois anos além dos seios longos
“…muita ordem, limpa a Avenida da Liberdade
não vi sinais de ditadura…” (sotaina limpa, um rosto frio d’Himler)
Pobres portugueses…. olhai quem vos visita e vos comenta…
Que vos falta? Armas? Coragem?
O atavismo dos povos que se iludem
à espera dos messias
gera impotências
e os próprios braços tombam sobre o corpo
lembram patas…
“…progresso, moeda forte…”
Pra não ouvi-lo mais quis perceber porque viera
a alemã a Portugal
Não é difícil. O nazismo e o fascismo têm vida
aqui.
O arquiteto olhou para mim de novo.
Fiquei desconfiado! Um verme penetrando meus receios e segredos.
E o relógio não perdeu a ocasião de lembrar-me o tempo.
Oh! Daria tudo para ver além da madrugada
e de que lado veria então a mancha escura da paisagem.
Estava molhada a carta adesivada às minhas costas.
E se me não deixam sair?
Mas eu tinha tudo em ordem
Passaporte… isenção do serviço militar…
matrícula na Escola…
O suor já tinha conquistado o meu casaco, rasgado a carta
ameaçava transformar em barro os meus cabelos térreos.
E se me não deixam sair?
Meu passaporte português
não esconde que nasci no Huambo.
É temporário, tal com ser português e ter nascido no Huambo.
Toda a gente sabe disso.
Toda a gente sabe que só tenho passaporte português
por confusão, que faz do Huambo, no papel timbrado do fascismo,
terra portuguesa em África…
e se me não deixam sair?
Olhei os seios demasiadamente longos da alemã
a despontarem como gritos
da malha rosa que os cingia.
E se me não deixam sair?
É sádico este relógio! Não faz que lembrar-me
as horas.
A carta desenhou já na minha pele
as letras que trazia em si.
Sinto perfeitamente as teclas umedecidas
tatuando-me as costas:
(…que se lembrem de nós
também somos Angola…
…foi preso e não tarda que entrem outros,
eu estou na lista…)
E se me não deixam sair?
Os poemas? Os estatutos?
E se me despem?
“…na Guanabara…”
Que pouca sorte a minha? Este tipo não cala mais!
O construtor coaxava no seu canto
a mulher muito apertada a ele não era rã,
tinha um ar feliz de quarenta anos, casada nesse ano.
A alemã tinha os seios demasiadamente longos.
Tinham todos a certeza de sair.
Por que é que o arquiteto olha assim pra mim?
Os próprios seios da alemã
dentro de horas estariam ferindo o ar de Espanha.
Saturada de negrura a mancha escura da paisagem.
E o tempo não parava como um verme
mas caminhava tão lento como um verme
que parecia torturar-me e torturava como um verme, psicológico,
policial.
E se me não deixam sair?
Calma? E se me não deixam sair?
Amanhã? Hoje? O relógio esquecera a meia-noite
E se me não deixam sair?
Voltarei como um relógio?
Preciso de sair desta prisão de morte
e desta morte!
Abriram-se os olhos todos na cabine.
Os seios longos da alemã
certos de viver em qualquer tempo
na própria certeza de viver nos olhos que os olhassem
murmurava… depois sorriram
E se me não deixam sair?
“Os passaportes fazem favor!”
Não era frio ou medo o que sentia agora.
Pensava no Viriato (a carta esta desfeita)
Se não falo com eles? Do Zé, do Necas, que farão? E os
que ficaram
De mim? Se me não deixam sair? A morte…
Surgiu meu Pai e minha Mãe… sorriam calmos.
Estavas tu também junto de mim querida.
Sorrias calma… teu sorriso calmo e claro
da esperança que nos move até aos mortos.
Finalmente o sol da terra amargurada de Castela
rasgava agora de cores várias a paisagem
viu-me…
sorriu como quem lembra coisas felizes
coisas passadas há mais de vinte e cinco anos.
Terra autobiográfica (Fragmento)
A
Não existe mais
a casa onde nasci
nem meu Pai
nem a mulembeira
da primeira sombra.
Não existe o pátio
o forno a lenha
nem os vasos e a casota do leão.
Nada existe
nem sequer ruínas
entulho de adobes e telhas
calcinadas.
Alguém varreu a fogo
a minha infância
e na fogueira arderam todos os ancestres.
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