PUBLICIDADE
Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado: |
||||
Brás, Bexiga Barra Funda
Assim como quem nasce homem de bem deve ter a fronte altiva, quem nasce jornal
deve ter artigo de fundo. A fachada explica o resto.
Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não
nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto
também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.
Brás, Bexiga e Barra Funda é o órgão dos ítalo-brasileiros
de São Paulo.
Durante muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de três raças
que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.
A primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente e desdenhosa
de "mostrar suas vergonhas". A segunda veio nas caravelas. Logo
os machos sacudidos desta se enamoraram das moças "bem gentis"
daquela, que tinham cabelos "mui pretos, compridos pelas espadoas".
E nasceram os primeiros mamalucos.
A terceira veio nos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e
servir a gente. Trazendo outras moças gentis, mucamas, mucambas, munibandas,
macumas.
E nasceram os segundos mamalucos.
E os mamalucos das duas fornadas deram o empurrão inicial no Brasil.
O colosso começou a rolar.
Então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças
aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou na terra paulista cantando e
na terra brotou e se alastrou como aquela planta também imigrante que
há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.
Do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio
da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamalucos.
Nasceram os intalianinhos.
O Gaetaninho.
A Carmela.
Brasileiros e paulistas. Até bandeirantes.
E o colosso continuou rolando.
No começo a arrogância indígena perguntou meio zangada:
Carcamano pé-de-chumbo
Calcanhar de frigideira
Quem te deu a confiança
De casar com brasileira?
O pé-de-chumbo poderia responder tirando o cachimbo da boca e cuspindo
de lado: A brasileira, per Bacco!
Mas não disse nada. Adaptou-se. Trabalhou. Integrou-se. Prosperou.
E o negro violeiro cantou assim:
Italiano grita
Brasileiro fala
Viva o Brasil
E a bandeira da Itália!
Brás, Bexiga e Barra Funda, como membro da livre imprensa que é,
tenta fixar tão somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima
e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É
um jornal. Mais nada. Notícia. Só. Não tem partido nem
ideal. Não comenta. Não discute. Não aprofunda.
Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra
uma única linha de doutrina. Tudo são fatos diversos. Acontecimentos
de crônica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnico-social
dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã
o seu historiador. E será então analisado e pesado num livro.
Brás, Bexiga e Barra Funda não é um livro.
Inscrevendo em sua coluna de honra os nomes de alguns ítalo-brasileiros
ilustres este jornal rende uma homenagem à força e às
virtudes da nova fornada mamaluca. São nomes de literatos, jornalistas,
cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais. Todos eles
figuram entre os que impulsionam e nobilitam neste momento a vida espiritual
e material de São Paulo.
Brás, Bexiga e Barra Funda não é uma sátira.
A REDAÇÃO
GAETANINHO
– Xi, Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele
não viu o Ford.
O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
– Eh! Gaetaninho! Vem prá dentro.
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão
feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
– Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno.
Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso
de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea
e varou pela esquerda porta adentro.
Êta salame de mestre!
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel
ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por
isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil.
Um sonho.
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade.
Mas como? Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá.
Assim também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a
tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério
noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro.
Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia:
ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa
marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica.
E ligas pretas segurando as meias. Que beleza rapaz! Dentro do carro o pai
os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha outro de gravata
verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas
e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Caetaninho.
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o
chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por
um instantinho só.
Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o "Ahi,
Mari!" todas as manhãs o acordou.
Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.
Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho.
Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família
alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa
nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor
da Companhia de Gás, Seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado
de doído.
Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar
de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos
de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar
de dar a vaca mesmo.
O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho
não estava ligando.
– Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
– Meu pai deu uma vez na cara dele.
– Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou indignado:
– Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de
responsabilidades.
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco
arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos
abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
– Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela
cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
– Vá dar tiro no inferno!
– Cala a boca, palestrino!
– Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou.
Pegou e matou.
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a noticia na noite.
– Sabe o Gaetaninho?
– Que é que tem?
– Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente
e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento.
Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima.
Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno
vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.
CARMELA
Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas
de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado.
A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado
de automóveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO
PAULO-PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as costureirinhas
que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras.
– Espia se ele está na esquina.
– Não está.
– Então está na Praça da República. Aqui tem
muita gente mesmo.
– Que fiteiro!
O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços
nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro
para os lábios dos amadores.
– Ai que rico corpinho!
– Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!
Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente
de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha,
por último as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas.
Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.
– Olha o automóvel do outro dia.
– O caixa-d’óculos?
– Com uma bruta luva vermelha.
O caixa-d’óculos pára o Buick de propósito na esquina
da praça.
– Pode passar.
– Muito obrigada.
Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.
– Não vira para trás, Bianca. Escandalosa!
Diante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo
Cuoco de sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste
tamanhinho, chapéu à Rodolfo Valentino, paletó de um
botão só, espera há muito com os olhos escangalhados
de inspecionar a Rua Barão de Itapetininga.
– O Ângelo!
– Dê o fora.
Bianca retarda o passo.
Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E o Ângelo
junta-se a ela. Também como se não houvesse nada. Só
que sorri.
– Já acabou o romance?
– A madama não deixa a gente ler na oficina.
– É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade.
– Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não segura no
braço!
– Enjoada!
Na Rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a passar.
– Quem é aquele cara?
– Como é que eu hei de saber?
– Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa!
Não olha pra ele que eu armo já uma encrenca!
Bianca rói as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick
guincham nas rodas e os pneumáticos deslizam rente à calçada.
E estacam.
– Boa tarde, belezinha…
– Quem? Eu?
– Por que não? Você mesma…
Bianca rói as unhas com apetite.
– Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira?
– Ao lado de minha casa.
– Onde é sua casa?
– Não é de sua conta.
O caixa-d’óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um
traquejado.
– Responda direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.
– Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida n.0 4. Carmela mora
com a família dela no 5.
– Ah! Chama-se Carmela… Lindo nome. Você é capaz de lhe dar
um recado?
Bianca rói as unhas.
– Diga a ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas,
na rua… na…. atrás da Igreja de Santa Cecília. Mas que ela
vá sozinha, hein? Sem você. O barbeirinho também pode
ficar em casa.
– Barbeirinho nada! Entregador da Casa Clark!
– É a mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã,
as oito horas, atrás da igreja.
– Vá saindo que pode vir gente conhecida.
Também o grilo já havia apitado.
– Ele falou com você. Pensa que eu não vi?
O Ângelo também viu. Ficou danado.
– Que me importa? O caixa-d’óculos disse que espera você amanhã
de noite, às oito horas, no Largo Santa Cecília. Atrás
da igreja.
– Que é que ele pensa? Eu não sou dessas. Eu não!
– Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta de você, sua boba.
– Ele disse?
– Gosta pra burro.
– Não vou na onda.
– Que fingida que você é!
– Ciao.
– Ciao.
Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro Carmela
abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a Desgraçada
ou A Odisséia de uma Virgem, fascículo 2.0
Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é
linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a íngreme
ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa disparada louca o fogoso
ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do castelão inimigo
de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do
ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola.
Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o castelo não
é mais um castelo mas uma igreja o tripeiro Giuseppe Santini berra
no corredor:
– Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa!
E – raatá! – uma cusparada daquelas.
– Eu só vou até a esquina da Alameda Glette. Já vou
avisando.
– Trouxa. Que tem?
No Largo Santa Cecília atrás da igreja o caixa-d’óculos
sem tirar as mãos do volante insiste pela segunda vez:
– Uma voltinha de cinco minutos só… Ninguém nos verá.
Você verá. Não seja má. Suba aqui.
Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois
a do esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo
a cinta. Bianca rói as unhas.
– Só com a Bianca…
– Não. Para quê? Venha você sozinha.
– Sem a Bianca não vou.
– Está bem. Não vale a pena brigar por isso.
– Você vem aqui na frente comigo. A Bianca senta atrás.
– Mas cinco minutos só. O senhor falou…
– Não precisa me chamar de senhor. Entrem depressa.
Depressa o Buick sobe a Rua Viridiana.
Só pára no Jardim América.
Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a penugenzinha que lhe
une as sobrancelhas com a navalha denticulada do tripeiro Giuseppe Santini.
– Xi, quanta cousa pra ficar bonita!
– Ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.
– Que é?
– Você hoje não vai com a gente no automóvel. Foi ele
que disse.
– Pirata!
– Pirata por quê? Você está ficando boba, Bianca.
– É. Eu sei porquê. Piratão. E você, Carmela, sim
senhora! Por isso é que o Ângelo me disse que você está
ficando mesmo uma vaca.
– Ele disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Não me conhece.
– Pode ser, não é? Mas namorado de máquina não
dá certo mesmo.
Saem à rua suja de negras e cascas de amendoim. No degrau de cimento
ao lado da mulher Giuseppe Santini torcendo a belezinha do queixo cospe e
cachimba, cachimba e cospe.
– Vamos dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca?
– Andiamo.
Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha
traseira do Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo bairro. Imaginando
cousas. Roendo as unhas. Nervosissima.
Logo encontra a Ernestina. Conta tudo ã Ernestina.
– E o Ângelo, Bianca?
– O Ângelo? O Ângelo é outra cousa. E pra casar.
– Há!…
TIRO DE GUERRA N0 35
No Grupo Escolar da Barra Funda Aristodemo Guggiani aprendeu em três
anos a roubar com perfeição no jogo de bolinhas (garantindo
o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da língua
que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais
belo e mais rico do mundo. O professor Seu Serafim todos os dias ao encerrar
as aulas limpava os ouvidos com o canivete (brinde do Chalé da Boa
Sorte) e dizia olhando o relógio:
– Antes de nos separarmos, meus jovens discentes, meditemos uns instantes
no porvir da nossa idolatrada pátria.
Depois regia o hino nacional. Em seguida o da bandeira. O pessoal entoava
os dois engolindo metade das estrofes. Aristodemo era a melhor voz da classe.
Berrando puxava o coro. A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela
Rua Albuquerque Lins vaiando Seu Serafim.
Saiu do Grupo e foi para a oficina mecânica do cunhado. Fumando Bentevi
e cantando a Caraboo. Mas sobretudo com muita malandrice. Entrou para o Juvenil
Flor de Prata F. C. (fundado para matar o Juvenil Flor de Ouro F. C.). Reserva
do primeiro quadro. Foi expulso por falta de pagamento. Esperou na esquina
o tesoureiro. O tesoureiro não apareceu. Estreou as calças compridas
no casamento da irmã mais moça (sem contar a Joaninha). Amou
a Josefina. Apanhou do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a
empastelar o Fanfulla que falou mal do Brasil. Teve ambições.
Por exemplo: artista do Circo Queirolo. Quase morreu afogado no Tietê.
E fez vinte anos no dia chuvoso em que a Tina (namorada do Lingüiça)
casou com um chofer de praça na policia.
Então brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia Autoviação
Gabrielle d’Annunzio. De farda amarela e polainas vermelhas.
Sua linha: Praça do Patriarca – Lapa. Arranjou logo uma pequena. No
fim da Rua das Palmeiras. Ela vinha à janela ver o Aristodemo passar.
O Evaristo era quem avisava por camaradagem tocando o cláxon do ônibus
verde. Aristodemo ficava olhando para trás até o Largo das Perdizes.
E não queria mesmo outra vida.
Um dia porém na seção "Colaboração
das Leitoras" publicou A Cigarra as seguintes linhas de Mlle Miosótis
sob o título de Indiscrições da Rua das Palmeiras:
"Por que será que o jovem A. G. não é mais visto
todos os dias entre vinte e vinte e uma horas da noite no portão da
casa da linda Senhorinha F. R. em doce colóquio de amor.? A formosa
Julieta anda inconsolável! Não seja assim tão mauzinho,
Seu A. G.! Olhe que a ingratidão mata…"
Fosse Mlle Miosótis (no mundo Benedita Guimarães, aluna mulata
da Escola Complementar Caetano de Campos) indagar do paradeiro de Aristodemo
entre os jovens defensores da pátria.
E saberia então que Aristodemo Guggiani para se livrar do sorteio
ostentava agora a farda nobilitante de soldado do Tiro-de-Guerra n.0 35.
– Companhia! Per… filar!
No Largo Municipal o pessoal evoluía entre as cadeiras do bar e as
costas protofônicas de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados
parados aos montinhos aqui, ali, à direita, à esquerda, lá,
atrapalhando.
– Meia volta! Vol… ver!
O sargento cearense clarinava as ordens de comando. Puxando pela rapaziada.
– Não está bom não! Vamos repetir isso sem avexame!
De novo não prestou.
– Firme!
Pareciam estacas.
– Meia volta!
Tremeram.
– Vol… ver!
Volveram.
– Abém!
Aristodemo era o base da segunda esquadra.
Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros, natural de São
Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza
da pátria arrebatava qualquer um.
Aristodemo só de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino. Aristóteles
escolheu-o para seu ajudante-de-ordens. Uma espécie de.
– Você conhece o hino nacional, criatura?
– Puxa, se conheço, Seu Sargento!
– Então você não esquece, não? Traz amanhã
umas cópias dele para o pessoal ensaiar para o Sete de Setembro? Abom.
Aristodemo deu folga no serviço. Também levou um colosso de
cópias.
E o primeiro ensaio foi logo à noite.
Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas…
– Parem que assim não presta não! Falta patriotismo. Vocês
nem parecem brasileiros. Vamos!
Ou-viram do I-piranga as margens plácidas
Da Inde-pendência o brado re-tumbante!
– Não é assim não. Retumbante tem que estalar, criaturas,
tem que retumbar! É palavra. Como é que se diz mesmo?… é
palavra… ah!… onomatopaica: RETUMBANTE!
E o hino rolou ribombando:
… a Inde-pendência o brado re-TUMBAN-te!
E o sol da li-berdade em raios ful…
De repente um barulho na segunda esquadra.
– Que isbregue é esse aí, criaturas?
Isbregue danado. O alemãozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou
todo o muque de que pôde dispor na hora o Aristodemo.
– Está suspenso o ensaio. Podem debandar.
– Eu dei mesmo na cara dele, Seu Sargento. Por Deus do céu! Um bruto
tapa mesmo. O desgraçado estava escachando com o hino do Brasil!
– Que é que você está me dizendo, Aristodemo?
– Escachando, Seu Sargento. Pode perguntar para qualquer um da esquadra.
Em vez de cantar ele dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva
e disse pra ele que ele tinha obrigação de cantar junto com
a gente também. Ele foi e respondeu que não cantava porque não
era brasileiro. Eu fui e disse que se ele não era brasileiro é
porque então era… um… eu chamei ele de… eu ofendi a mãe
dele, Seu Sargento! Ofendi mesmo. Por Deus do céu. Então ele
disse que a mãe dele não era brasileira para ele ser… o que
eu disse. Então eu fui. Seu Sargento, achei que era demais e estraguei
com a cara do desgraçado! Ali na hora.
– Vou ouvir as testemunhas do fato, Aristodemo. Depois procederei como for
de justiça. Fiat justitia como diziam os antigos romanos. Confie nela,
Aristodemo.
"Ordem do Dia
De conformidade com o ordenado pelo Ex.mo Sr. Dr. Presidente deste Tiro-de-Guerra
e depois de ouvir seis testemunhas oculares e auditivas acerca do deplorável
fato ontem acontecido nesta sede do qual resultou levar uma lapada na face
direita o inscrito Guilherme Schwertz, n.0 81, comunico que fica o citado
inscrito Guilherme Schwertz, n.0 81, desligado das fileiras do Exército,
digo, deste Tiro-de-Guerra visto ter-se mostrado indigno de ostentar a farda
gloriosa de soldado nacional Delas injúrias infamérrimas que
ousou levantar contra a honra imaculada da mulher brasileira e principalmente
da Mãe, acrescendo que cometeu semelhante ato delituoso contra a honra
nacional no momento sagrado em que se cantava nesta sede o nosso imortal hino
nacional. Comunico também que por necessidade de disciplina, que é
o alicerce em que se firma toda corporação militar, o inscrito
Aristodemo Guggiani, n.0 117, úuacute;nico responsável pela lapada
acima referida acompanhada de equimoses graves, fica suspenso por um dia a
partir desta data. Dura lex sed lex. Aproveito porém no entretanto
a feliz oportunidade para apontar como exemplo o supracitado inscrito Aristodemo
Guggiani, n.0 117, que deve ser seguido sob o ponto de vista do patriotismo,
embora com menos violência apesar da limpeza, digo, da limpidez das
intenções.
Aproveito ainda a oportunidade para declarar que fica expressamente proibido
no pátio desta sede o jogo de futebol. Aqui só devemos cuidar
da defesa da Pátria!
São Paulo, 23 de agosto de 1926.
(a) Sargento-Inspetor Aristóteles Camarão de Medeiros."
Aristodemo Guggiani logo depois apresentou sua demissão do cargo de
cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d’Anunuzio. Sob aplausos
e a conselho do Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros. Trabalha
agora na Sociedade de Transportes Rui Barbosa, Ltda.
Na mesma linha: Praça do Patriarca – Lapa.
Sua impressão: a rua é que andava, não ele. Passou entre
o verdureiro de grandes bigodes e a mulher de cabelo despenteado.
– Vá roubar no inferno, Seu Corrado!
Vá sofrer no inferno, Seu Nicolino! Foi o que ele ouviu de si mesmo.
– Pronto! Fica por quatrocentão.
– Mas é tomate podre, Seu Corrado!
Ia indo na manhã. A professora pública estranhou aquele ar
tão triste. As bananas na porta da QUITANDA TRIPOLI ITALIANA eram de
ouro por causa do sol. O Ford derrapou, maxixou, continuou bamboleando. E
as chaminés das fábricas apitavam na Rua Brigadeiro Machado.
Não adiantava nada que o céu estivesse azul porque a alma de
Nicolino estava negra.
– Ei, Nicolino! NICOLINO!
– Que é?
– Você está ficando surdo, rapaz! A Grazia passou agorinha mesmo.
– Des-gra-ça-da!
– Deixa de fita. Você joga amanhã contra o Esmeralda?
– Não sei ainda.
– Não sabe? Deixa de fita, rapaz! Você…
– Ciao.
– Veja lá, hein! Não vá tirar o corpo na hora. Você
é a garantia da defesa.
A desgraçada já havia passado.
Ao Barbeiro Submarino. Barba: 300 réis.
Cabelo: 600 Réis. Serviço Garantido.
– Bom dia!
Nicolino Fior d’Amore nem deu resposta. Foi entrando, tirando o paletó,
enfiando outro branco, se sentando no fundo a espera dos fregueses. Sem dar
confiança. Também Seu Salvador nem ligou.
A navalha ia e vinha no couro esticado.
– São Paulo corre hoje! É o cem contos!
O Temístocles da Prefeitura entrou sem colarinho.
– Vamos ver essa barba muito bem feita! Ai, ai! Calor pra burro. Você
leu no Estado o crime de Ontem, Salvador? Banditismo indecente.
– Mas parece que o moço tinha razão de matar a moça.
– Qual tinha razão nada, seu! Bandido! Drama de amor cousa nenhuma.
E amanhã está solto. Privações de sentidos. Júri
indecente, meu Deus do Céu! Salvador, Salvador… – cuidado aí
que tem uma espinha – … este país está perdido!
– Todos dizem.
Nicolino fingia que não estava escutando. E assobiava a Scugnizza.
As fábricas apitavam.
Quando Grazia deu com ele na calçada abaixou a cabeça e atravessou
a rua.
– Espera aí, sua fingida.
– Não quero mais falar com você.
– Não faça mais assim pra mim, Grazia. Deixa que eu vá
com você. Estou ficando louco, Grazia. Escuta. Olha, Grazia! Grazia!
Se você não falar mais comigo eu me mato mesmo. Escuta. Fala
alguma cousa por favor.
– Me deixa! Pensa que eu sou aquela fedida da Rua Cruz Branca?
– O quê?
– É isso mesmo.
E foi almoçar correndo.
Nicolino apertou o fura-bolos entre os dentes.
As fábricas apitavam.
Grazia ria com a Rosa.
– Meu irmão foi e deu uma bruta surra na cara dele.
– Bem feito! Você é uma danada, Rosa. Xi!…
Nicolino deu um pulo monstro.
– Você não quer mesmo mais falar comigo, sua desgraçada?
– Desista!
– Mas você me paga, sua desgraçada!
– Nã-ã-o!
A punhalada derrubou-a.
– Pega! Pega! Pega!
– Eu matei ela porque estava louco, Seu Delegado!
Todos os jornais registraram essa frase que foi dita chorando.
Eu estava louco —————
Seu Delegado! —————-
Matei por isso! —————- Bis
Sou um desgraçado! ——–
O estribilho do Assassino por amor (Canção da atualidade para
ser cantada coma música do "FUBÁ", letra de Spartaco
Novais Panini) causou furor na zona.
A SOCIEDADE
– Filha minha não casa com filho de carcamano!
A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse
isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas
com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José
Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando
o fraque.
O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe
Teresa Rita do escritório para o terraço.
O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada
cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia – uiiiia! Adriano MeIli
calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou
de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua.
Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já
sabe: uiiiiia-uiiiiia!
– O que você está fazendo aí no terraço, menina.
– Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?
Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo,
verde, grudado à pele, serpejando no terraço.
– Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!
– Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!
Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para
a Avenida Paulista.
Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra
para gritar:
Dizem que Cristo nasceu em Belém…
Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo
inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela
estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.
Os pares dançarmos maxixavam colados. No meio do salão eram
um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças
feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes
e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava
os passos.
– Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.
– Não!
– Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.
… mas a história se enganou!
As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios
de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava
Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!
– Meu pai quer fazer um negocio com o seu.
– Ah sim?
Cristo nasceu na Bahia, meu bem…
O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas
a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.
… e o baiano criou!
– Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de
Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?
– Já sei, mulher, já sei.
Mas era cousa muito diversa.
O Cav. Uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou
como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmcnte as
vantagens econômicas de sua proposta.
– O doutor…
– Eu não sou doutor, Senhor Melli.
– Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense
bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana,
quando quiser. lo resto à sua disposição. Ma pense bem!
Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía
uns terrenos em São Caetano. Cousas de herança. Não lhe
davam renda alguma. O Cav. Uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200
teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava
com os terrenos. O Cav. Uff. com o capital. Armavam os trinta alqueires e
vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro
certo, mais que certo, garantidíssimo.
– É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende
é impossível…
– Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor
entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.
O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando
a emoção. A negra de broche serviu o café.
– Dopo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem.
O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou
para um quadro.
– Bonita pintura.
Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.
– Francese? Não é feio non. Serve.
Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para
a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.
– Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade…
Sob a minha direção, si capisce.
– Sei, sei… O seu filho?
– Si. O Adriano. O doutor… mi pare… mi pare que conhece ele?
O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cav. Uff. na direção
da porta.
– Repito un’altra vez: O doutor pense bem.
O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.
– E então? O que devo responder ao homem?
– Faça como entender, Bonifácio…
– Eu acho que devo aceitar.
– Pois aceite.
E puxou o lençol.
A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.
O Conselheiro José Bonifácio ———-O Cav. Uff. Salvatore
Melli
de Matos e Arruda ————————————e——-
——–e —————————————-senhora
senhora ——————————————
têm a honra de participar ————– têm a honra de participar
a V. Ex.a e Ex.ma família o ————a V. Ex.a e Ex.ma família
o
contrato de casamento de sua —-contrato de casamento de seu
filha Teresa Rita com o Sr.——- filho Adriano com a Senhorinha
———Adriano Melli.—————Teresa Rita de Matos Arruda.
Rua da Liberdade, n.0 259-C. ——Rua da Barra Funda, n.0 427.
S. Paulo 19 de fevereiro de 1927.
No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente
recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe
vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase
sempre fiado e até sem caderneta.
LISETTA
Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo,
felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.
Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.
Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi
na boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O urso não
ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente nada. No colo
da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e
feliz.
– Olha o ursinho que lindo, mamãe!
– Stai zitta!
A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o
urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para
a esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta
acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito
perdeu definitivamente toda a importância.
Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem
umas nas outras.
– As patas também mexem, mamã. Olha lá!
– Stai ferma!
Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou
alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva,
fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara
cinqüenta mil-réis na Casa São Nicolau.
– Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?
– Ah!
– Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças
são muito levadas. Scusi. Desculpe.
A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da
filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele,
abriu a bolsa e olhou o espelho.
Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha:
– In casa me lo pagherai!
E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão
daqueles.
Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou.
Chorou. Soluçou. Falando sempre.
– Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que…ro o ur…so! O ur…so!
Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que…ro o… o… o… Hã!
Hã!
– Stai ferina o ti amazzo, parola d’onore!
– Um pou…qui…nho só! Hã! E… hã! E… hã!
Um pou…qui…
– Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!
Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou
o feio que Lisetta fez.
O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita,
para cima e para baixo.
– Non piangere più adesso!
Impossível.
O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de
má, antes de entrar no palacete estilo empreiteiro português,
voltou-se e agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu.
Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou,
seguiu. Dem-dem!
– Olha à direita!
Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona Mariana
(havia pago uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.
A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática
da família Garbone.
Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, Outro no corredor. Intervalo
de dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não
acabava mais.
O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios
de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.
Mas o Ugo chegou da oficina.
– Você assim machuca a menina, mamãe! Cotadinha dela!
Também Lisetta já não agüentava mais.
– Toma pra você. Mas não escache.
Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho
de um passarinho. Mas urso.
Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no
bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou
como uma desesperada:
– Ele é meu! O Ugo me deu!
Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.
CORINTHIANS (2) vs. PALESTRA (1)
Prrrrii!
– Aí, Heitor!
A bola foi parar na extrema esquerda. Melle desembestou com ela.
A arquibancada pôs-se em pé. Conteve a respiração.
Suspirou:
– Aaaah!
Miquelina cravava as unhas no braço gordo da Iolanda. Em torno do
trapézio verde a ânsia de vinte mi1 pessoas. De olhos ávidos.
De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.
Delírio futebolístico no Parque Antártica.
Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam, chocavam-se,
embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se, esfalfavam-se, brigavam.
Por causa da bola de couro amarelo que não parava, que não parava
um minuto, um segundo. Não parava.
– Neco! Neco!
Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu. Parou. Chutou.
– Gooool! Gooool!
Miquelina ficou abobada com o olhar parado. Arquejando. Achando aquilo um
desaforo, um absurdo.
Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá!
Hurra! Hurra! Corinthians!
Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam.
E as mãos batendo nas bocas:
– Go-o-o-o-o-o-ol!
Miquelina fechou os olhos de ódio.
– Corinthians! Corinthians!
Tapou os ouvidos.
– Já me estou deixando ficar com raiva!
A exaltação decresceu como um trovão.
– O Rocco é que está garantindo o Palestra. Aí, Rocco!
Quebra eles sem dó!
A Iolanda achou graça. Deu risada.
– Você está ficando maluca, Miquelina. Puxa! Que bruta paixão!
Era mesmo. Gostava do Rocco, pronto. Deu o fora no Biagio (o jovem e esperançoso
esportista Biagio Panaiocchi, diligente auxiliar da firma desta praça
G. Gasparoni & Filhos e denodado meia-direita do S. C. Corinthians Paulista,
campeão do Centenário) só por causa dele.
– Juiz ladrão, indecente! Larga o apito. gatuno!
Na Sociedade Beneficente e Recreativa do Bexiga toda a gente sabia de sua
história com o Biagio. Só porque ele era freqüentador dos
bailes dominicais da Sociedade não pôs mais os pés lá.
E passou a torcer para O Palestra. E começou a namorar o Rocco.
– O Palestra não dá pro pulo!
– Fecha essa latrina, seu burro!
Miquelina ergueu-se na ponta dos pés. Ergueu os braços. Ergueu
a voz:
– Centra, Matias! Centra, Matias!
Matias centrou. A assistência silenciou. Imparato emendou. A assistência
berrou.
– Palestra! Palestra! Aleguá-guá! Palestra Aleguá! Aleguá!
O italianinho sem dentes com um soco furou a palheta Ramenzoni de contentamento.
Miquelina nem podia falar. E o menino de ligas saiu de seu lugar. todo ofegante,
todo vermelho, todo triunfante, e foi dizer para os primos corinthianos na
última fileira da arquibancada:
– Conheceram, seus canjas?
O campo ficou vazio.
– Ó… lh’a gasosa!
Moças comiam amendoim torrado sentadas nas capotas dos automóveis.
A sombra avançava no gramado maltratado. Mulatas de vestidos azuis
ganham beliscões. E riam. Torcedores discutiam com gestos.
– Ó… lh’a gasosa!
Um aeroplano passeou sobre o campo.
Miquelina mandou pelo irmão um recado ao Rocco.
– Diga pra ele quebrar o Biagio que é o perigo do Corinthians.
Filipino mergulhou na multidão.
Palmas saudaram os jogadores de cabelos molhados.
Prrrrii!
– O Rocco disse pra você ficar sossegada.
Amilcar deu uma cabeçada. A bola foi bater em Tedesco que saiu correndo
com ela. E a linha toda avançou.
– Costura, macacada
Mas o juiz marcou um impedimento.
– Vendido! Bandido! Assassino!
Turumbamba na arquibancada. O refle do sargento subiu a escada.
– Não pode! Põe pra fora! Não pode!
Turumbamba na geral. A cavalaria movimentou-se.
Miquelina teve medo. O sargento prendeu o palestrino. Miquelina protestou
baixinho:
– Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi!
– Quantos minutos ainda?
– Oito.
Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando.
Assim, Biagio! Driblou um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava para
a vitória. Salame nele, Biagio! Arremeteu. Chute agora! Parou. Disparou.
Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio Biagio! Calculou. Agora! Preparou-se.
Olha o Rocco! É agora. Aí! Olha o Rocco! Caiu.
– CA-VA-LO!
Prrrrii!
– Pênalti!
Miquelina pôs a mão no coração. Depois fechou
os olhos. Depois perguntou:
– Quem é que vai bater, Iolanda?
– O Biagio mesmo.
– Desgraçado.
O medo fez silêncio.
Prrrrii!
Pan!
– Go-o-o-o-ol! Corinthians!
– Quantos minutos ainda?
Pri-pri-pri!
– Acabou, Nossa Senhora!
Acabou.
As árvores da geral derrubaram gente.
– Abr’a porteira! Rá! Fech’a porteira! Prá!
O entusiasmo invadiu o campo e levantou o Biagio nos braços.
– Solt’o rojão! Fiu! Rebent’a bomba! Pum! CORINTHIANS!
O ruído dos automóveis festejava a vitória. O campo
foi-se esvaziando como um tanque. Miquelina murchou dentro de sua tristeza.
– Que é – que é? É jacaré? Não é!
Miquelina nem sentia os empurrões.
– Que é – que é? É tubarão? Não é!
Miquelina não sentia nada.
– Então que é? CORINTHIANS!
Miquelina não vivia.
Na Avenida Água Branca os bondes formando cordão esperavam
campainhando o zé-pereira.
– Aqui, Miquelina.
Os três espremeram-se no banco onde já havia três. E gente
no estribo. E gente na coberta. E gente nas plataformas. E gente do lado da
entrevia.
A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando.
O mulato com a mão no guindaste é quem puxava a ladainha:
– O Palestra levou na testa!
E o pessoal entoava:
– Ora pro nobis!
Ao lado de Miquelina o gordo de lenço no pescoço desabafou:
– Tudo culpa daquela besta do Rocco!
Ouviu, não é Miquelina? Você ouviu?
– Não liga pra esses trouxas, Miquelina.
Como não liga?
– O Palestra levou na testa!
Cretinos.
– Ora pro nobis!
Só a tiro.
– Diga uma cousa, Iolanda. Você vai hoje na Sociedade?
– Vou com o meu irmão.
– Então passa por casa que eu também vou.
– Não!
– Que bruta admiração! Por que não?
– E o Biagio?
– Não é de sua conta.
Os pingentes mexiam com as moças de braço dado nas calçadas.
O coronel recusou a sopa.
– Que é isso, Juca? Está doente?
O coronel coçou o queixo. Revirou os olhos. Quebrou um palito. Deu
um estalo com a língua.
– Que é que você tem, homem de Deus?
O coronel não disse nada. Tirou uma carta do bolso de dentro. Pôs
os óculos. Começou a ler:
Ex.mo snr. coronel Juca.
– De quem é?
– Do administrador da Santa Inácia.
– Já sei. Geada?
– Escute. Ex.mo snr. coronel Juca. Rospeitosas Saudações. Em
primeiro lugar Saudo-vos. V. Ecia. e D. Nequinha. Coronel venho por meio desta
respeitosameute comunicar para V. E. que o cafezal novo agradeceu bastante
as chuvarada desta semana. E tal e tal e tal. Me acho doente diversos incomodos
divido o serviço.
– Coitado.
– Mas não é isso. O major Domingo Neto mandou buscar a vacca…
Oh senhor! Não acho…
– Na outra página, Juca.
– Está aqui. Vá escutando. Em último lugar, vos communico
que o seu comprade João Intaliano morreu…
– Meu Deus, não diga?!
– … morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. Por esses motivos
recolhi em casa o vosso afilhado e orpham Gennrinho. Pesso para V.E. que me
mande dizer o distino e tal. E agora, mulher?
Dona Nequinha suspirou. Bebeu um gole de água. Mandou levar a sopa.
– E então?
Dona Nequinha passou a língua nos lábios. Levantou a tampa
da farinheira. Arranjou o virote.
– E então? Que é que eu respondo?
Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou. E depois:
– Vamos pensar bem primeiro, Juca. Não coma o torresmo que faz mal.
Amanhã você responde. E deixe-se de extravagâncias.
Gennarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz escorrendo.
Todo chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. Rebocado
pelo filho mais velho do administrador. E com uma carta para o Coronel J.
Peixoto de Faria.
Tomou o coche Hudson que estava à sua espera.
Veio desde a estação até a Avenida Higienópolis
com a cabeça para fora do automóvel soltando cusparadas. Apertou
o dedo no portão. Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando.
– Tire o chapéu.
Tirou.
– Diga boa noite.
Disse.
– Beije a mão dos padrinhos.
Beijou.
– Limpe o nariz.
Limpou com o chapéu.
– Pronto, Nhãzinha. A telefonista cortou. Chegou anteontem. Espertinho
como ele só. Nem você imagina. Tem nove anos. É sim. Crescidinho.
Juca ficou com dó dele. Pois é. Coitadinho. Imagine. Pois é.
Faz de conta que é um filho. Já estou querendo bem mesmo. Gennarinho.
O quê? É sim. Nome meio esquisito. Também acho. O Juca
está que não pode mais de satisfeito. Ele que sempre desejou
ter tanto um filho, não é? Pois então. Nasceu no Brás.
O pai era não sei o quê. Estava na fazenda há cinco anos
já. Bom, Nhãzinha. O Juca está me chamando. Beijos na
Marianinha. Obrigada. O mesmo. Até amanhã. Ah! Ah! Ah Imagine!
Nesta idade!… Até amanhã, Nhãzinha. Que é que
você queria, Juca?
– Agora é tarde. Você não sabe o que perdeu.
– O Gennarinho, é?
– Diabinho de menino! Querendo a toda força levantar a saia da Atsué.
– Mas isso não está direito, Juca. Vou já e já…
– É. Direito não está mesmo. Mas é engraçado.
– … dar uns tapas nele.
– Não faça isso, ora essa! Dar à toa no menino!
– Não é à toa, Juca.
– Bom. Então dê. Olhe aqui: eu mesmo dou, sabe? Eu tenho mais
jeito.
Um dia na mesa o coronel implicou:
– Esse negócio de Gennarinho não está certo. Gennarinho
não é nome de gente. Você agora passa a se chamar Januário
que é a tradução. Eu já indaguei. Ouviu? Êta
menino impossível! Sente-se já aí direito! Você
passa a se chamar Januário. Ouviu?
– Ouvi.
– Não é assim que se responde. Diga sem se mexer na cadeira:
Ouvi, sim senhor.
– Ouvi, sim senhor coronel!
Dona Nequinha riu como uma perdida. Da resposta e da continência.
Uma noite na cama Dona Nequinha perguntou:
– Juca: você já pensou no futuro do menino?
O coronel estava dorme não dorme. Respondeu bocejando:
– Já-á-á!…
– Que é que você resolveu?
O coronel levou um susto.
– O quê? Resolveu o quê?
– O futuro do menino, homem de Deus!
– Hã!…
– Responda.
O coronel coçou primeiro o pescoço.
– Para falar a verdade, Nequinha, ainda não resolvi nada.
O suspiro desanimado da consorte foi um protesto contra tamanha indecisão.
– Mas você não há de querer que ele cresça um
vagabundo, eu espero.
– Pois está visto que não quero.
Aproveitando o silêncio o despertador bateu mais forte no criado-mudo.
Dona Nequinha ajeitou o travesseiro. São José dentro de sua
redoma espiou o vôo de dois pernilongos.
– Eu acho que… Apague a luz que está me incomodando.
– Pronto. Acho o quê?
– Eu acho que a primeira cousa que se deve fazer é meter o menino
num colégio.
– Num colégio de padres.
– É.
– Eu sou católica. Você também é. O Januário
também será.
– Muito bem…
– Você parece que está dizendo isso assim sem muito entusiasmo…
Era sono.
– Amanhã-ã-ã… ai! ai!… nós vemos isso direito,
Nequinha…
Até o coronel ajudou a aprontar o Januário. Foi quem pôs
ordem na cabelada cor de abóbora. Na terceira tentativa fez uma risca
bem no meio da cabeça.
– Agora só falta a merenda.
Dona Nequinha preparou logo. Pão francês. Goiabada Pesqueira.
Queijo Palmira.
– Diga pro Inácio tirar o automóvel. O fechado.
A comoção era geral. Dona Nequinha apertou mais uma vez a gravata
azul do Januário. O coronel deu uma escovadela, pensativo, no gorro.
Januário fez uma cara de vítima.
– Vamos indo que está na hora.
Dona Nequinha (o coronel já se achava no meio da escadaria de mármore
carregando a pasta colegial) beijou mais uma vez a testa do menino. Chuchurreadamente.
Maternalmente.
– Vá, meu filhinho. E tenha muito juízo, sim? Seja muito respeitador.
Vá.
Todo compenetrado, de pescoço duro e passo duro, Januário alcançou
o coronel.
A meninada entrava no Ginásio de São Bento em silêncio
e beijava a mão do Senhor Reitor. Depois disparava pelos corredores
jogando os chapéus no ar. As aulas de portas abertas esperavam de carteiras
vazias. O berreiro sufocava o apito dos vigilantes.
– Cumprimente o Senhor Reitor.
D. Estanislau deu umas palmadinhas na nuca do Januário. Januário
tremeu.
– Crescidinho já. Muito bem. Muito bem. Como se chama?
Januário não respondeu.
– Diga o seu nome para o Senhor Reitor.
– Januário.
– Ah! Muito bem. Januário. Muito bem. Januário de quê?
Januário estava louco para ir para o recreio. Nem ouviu.
– Diga o seu nome todo, menino!
Com os olhos no coronel:
– Januário Peixoto de Faria.
O porteiro apareceu com unia sineta na mão. Dlin-dlin! Dlin-dlin!
Dlin-dlin!
O coronel seguiu para o São Paulo Clube pensando em fazer testamento.
O MONSTRO DE RODAS
O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó.
– Ei, Pepino! Escuta só o frio!
Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aída achava que de tarde
ficava melhor. Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo Dona Mariângela
achava também. A fumaça do cachimbo do marido ia dançar
bem em cima do caixão.
– Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora
Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca.
– Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora.
Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de
laranja.
– Leva ela pra dentro!
– Não! Eu não quero! Eu… não… quero!…
Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando
para o quarto. Enxugaram-se lágrimas de dó.
– Coitada da Dona Nunzia!
A negra de sandália sem meia principiou a segunda volta do terço.
– Ave Maria, cheia de graça, o Senhor…
Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da Rua Sousa
Lima. Passavam cestas para a feira do Largo do Arouche. Garoava na madrugada
roxa.
– … da nossa morte. Amém. Padre Nosso que estais no Céu…
O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte.
Um bocejo. Dois bocejos. Três. Quatro.
– … de todo o mal. Amém.
A Aída levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho.
Cinco. Seis.
O violão e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente
na calçada.
Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Américo Zamponi
(SALÃO PALESTRA ITÁLIA – Engraxa-se na perfeição
a 200 réis) e o Tibúrcio (- O Tibúrcio… – O mulato?
– Quem mais há de ser?).
– Quero só ver daqui a pouco a noticia do Fanfulla. Deve cascar o
almofadinha.
– Xi, Pepino! Você é ainda muito criança. Tu é
ingênuo, rapaz. Não conhece a podridão da nossa imprensa.
Que o quê, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que nem a Light.
Pode matar sem medo. É ou não é, Seu Zamponi?
Seu Américo Zamponi soltou um palavrão, cuspiu, soltou outro
palavrão, bebeu, soltou mais outro palavrão, cuspiu.
– É isso mesmo, Seu Zamponi, é isso mesmo!
O caixãozinho cor-de-rosa com listas prateadas (Dona Nunzia gritava)
surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada
(a molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida
e da Linda.
– Não precisa ir depressa para as moças não ficarem
escangalhadas.
A Josefina na mão livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado
a Linda tinha a sombrinha verde, aberta. Vestidos engomados, armados, um branco,
um amarelo, um creme, um azul. O enterro seguiu.
O pessoal feminino da reserva carregava dálias e palmas-de-são-josé.
E na calçada os homens caminhavam descobertos.
O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de quinhentão.
– A gente vai contando os trouxas que tiram o chapéu até a
gente chegar no Araçá. Mais de cinqüenta você ganha.
Menos, eu.
Mas o Pepino não quis. E pegaram uma discussão sobre qual dos
dois era o melhor: Friedenreich ou Feitiço.
– Deixa eu carregar agora, Josefina?
– Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na Avenida
Angélica. Que mania de se mostrar, que você tem!
O grilo fez continência. Automóveis disparavam para o corso
com mulheres de pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam
dos ônibus, dos bondes. Sinais-da-santa-cruz. Gente parada.
Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já havia arranjado três
votos para as próximas eleições municipais.
– Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro, mamãe!
Aída voltou com a chave do caixão presa num lacinho de fita.
Encontrou Dona Nunzia sentada na beira da cama olhando o retrato que a Gazeta
publicara. Sozinha. Chorando.
– Que linda que era ela!
– Não vale a pena pensar mais nisso, Dona Nunzia…
O pai tinha ido conversar com o advogado.
ARMAZÉM PROGRESSO DE SÃO PAULO
O armazém do Natale era célebre em todo o Bexiga por causa
deste anúncio:
Aviso às Excelentissimas Mães de Família!
o
Armazém Progresso de São Paulo
DE
NATALE PIENOTTO
TEM ARTIGOS DE TODAS AS QUALIDADES
DÁ-SE UM CONTO DE RÉIS A QUEM PROVAR
O CONTRÁRIO
N. B. – Jogo de bocce com serviço de restaurante
nos fundos.
Isso em letras formidáveis na fachada e em prospectos entregues a
domicílio.
O filho do doutor da esquina, que era muito pândego e comprava cigarros
no armazém mandando-os debitar na conta do pai com outro nome bulia
todos os santos dias com o Natale:
– Seu Natale, o senhor tem pneumáticos-balão aí?
– Que negócio é esse?
– Ah, não tem? Então passe já para cá um conto
de réis.
– Você não vê logo, Zêzinho, que isso é só
para tapear os trouxas? Que é que você quer? Um maço de
Sudan Ovais? E como é na caderneta?
– Bote hoje uma Si-Si que é também pra tapear o trouxa.
O Natale achava uma graça imensa e escrevia:
Duas Si-Si pro Sr. Zézinho – 1$200.
O Armazém Progresso de São Paulo começou com uma porta
no lado par da Rua da Abolição. Agora tinha quatro no lado ímpar.
Também o Natale não despregava do balcão de madrugada
a madrugada. Trabalhava como um danado. E Dona Bianca suando firme na cozinha
e no bocce.
– Se não é essa cousa de imposto, puxa vida!
Mas a caderneta da Banca Francese ed Italiana per l’America del Sud ria dessa
cousa de imposto.
– Dá ai duzentão de cachaça!
O negro fedido bebeu de um gole só. Começou a cuspir.
No quintal o pessoal do bocce gritava que nem no futebol. Entusiasmos estalavam:
– Evviva il campioníssimo!
O Ferrúcio entrou de pé no chão e relógio-pulseira.
– Mais duas de Hamburguesa, Seu Natale.
Meninas enlaçadas passeavam na calçada. O lampião de
gás piscava pra elas. A locomotiva fumegando no carrinho de mão
apitava amendoim torrado. O Brodo passou cantando.
Natale veio à porta da rua estirar os braços. Em frente a Confeitaria
Paiva Couceiro expunha renques de cebola e a mulher do proprietário
grávida com um filhinho no colo. Esse espetáculo diário
era um gozo para o Natale. Cebola era artigo que estava por preço que
as excelentíssimas mães de família achavam uma beleza
de preço. E o mondrongo coitado tinha um colosso de cebolas galegas
empatado na confeitaria. Natale que não perdia tempo calculou logo
quanto poderia oferecer por toda aquela mercadoria (cebolas e o resto) no
leilão da falência: dez contos, talvez sete, quem sabe cinco.
O português não agüentaria mesmo o tranco por mais tempo.
– Dona Bianca está chamando o senhor depressa na cozinha.
Resolveu primeiro apertar o homem no vencimento da letra. E acendeu um Castro
Alves.
A roda de pizza chiava na panela.
– Con molte alici, eh dama Bianca!
– Si capisce, sor Luigi!
Natale entrou.
– Vem aqui no quarto.
Natale foi meio desconfiado.
– Que é?
Bianca quando dava para falar era aquela desgraça.
– José Espiridião, o mulato, o do Abastecimento, ora, o da
Comissão do Abastecimento…
– Já sei.
… estava ali no quintal assistindo a uma partida de bocce. Conversando
Com o Giribello, o sapateiro, o pai da Genoveva…
– Já sei.
Bianca foi levar lá um prato de não sei o quê e o sem-vergonha
do mulato até brincara com ela. Disse umas gracinhas. Mas ela não
ficou quieta não. Que esperança. Deu uma resposta até
que o Espiridião ficou até assim meio…
– Já sei.
Pois é. Ela ficou ali espiando o bocce porque era a vez do Nicola
jogar. E como o Nicola já sabe é o campeão e estava num
dia mesmo de…
– Sei!
Pois é. Ela ficou espiando. E também escutando o que o Espiridião
estava dizendo para o Giribello. Não é que ela fazia questão
de escutar o que ele falava. Não. Mas ela estava ali perto – não
é? – então..
– SEI!
O Espiridião falava assim para o Giribello que a crise era um fato,
que a cebola por exemplo ia ficar pela hora da morte. O pessoal da Comissão
do Abastecimento andava até…
– SEI!
Ela então não quis ouvir mais nada. Veio correndo e mandou
o Ferrucio chamá-lo para lhe dizer que desse um jeito com o português.
– Já sei…
Se não aproveitasse agora nunca mais. O homem que desse em pagamento
da letra as…
– Dona Bianca! Venha depressa que o Dino quer avançar nas comidas!
– Mais um copo, Seu Doutor.
José Espiridião aceitava o título e a cerveja.
– Pois é como estou lhe contando, Seu Natale. A tabela vai subir porque
a colheita foi fracota como o diabo. Ai, ai! Coitado de quem é pobre.
Natale abriu outra Antártica.
– Cebola até o fim do mês está valendo três vezes
mais. Não demora muito temos cebola aí a cinco mil-réis
o quilo ou mais. Olhe aqui, amigo Natale: trate de bancar o açambarcador.
Não seja besta. O pessoal da alta que hoje cospe na cabeça do
povo enriqueceu assim mesmo. Igualzinho.
Natale já sabia disso.
– Se o doutor me promete ficar quieto – compreende? – e o negócio
dá certo o doutor leva também as suas vantagens…
Espiridião já sabia disso.
Dona Bianca pôs o Nino na caminha de ferro. Ele ficou com uma perna
fora da coberta. Toda cheia de feridas.
Então o Natale entrou assobiando a Tosca. – A mulher olhou para ele.
Percebeu tudo. Perguntou por perguntar:
– Arranjou?
Natale segurou-a pelas orelhas, quase encostou o nariz no dela.
– Diga se eu tenho cara de trouxa!
Deu na Dona Bianca um empurrão contente da vida, deu uma volta sobre
os calcanhares, deu um soco na cômoda, saiu e voltou com meio litro
de Chianti Ruffino. Parou. Olhou para a garrafa. Hesitou. Saiu de novo. E
trouxe meia Pretinha.
Dona Bianca deitou-se sem apagar a luz. Olhou muito para o Dino que dormia
de boca aberta. Olhou muito para o Santo Antonio di Padova col Gesù
Bambino bem no meio da parede amarela. Mais uma vez olhou muito para o Dino
que mudara de posição. E fechou os olhos para se ver no palacete
mais caro da Avenida Paulista.
NACIONALIDADE
O barbeiro Tranquillo Zampinetti da Rua do Gasômetro n.0 224-B entre
um cabelo e uma barba lia sempre os comunicados de Guerra do Fanfulla. Muitas
vezes em voz alta até. De puro entusiasmo. La fulminante investita
dei nostri bravi bersaglieri ha ridotto le posizione nemiche in un vero amazzo
di rovine. Nel campo di battaglia sono restati circa cento e novanta nemici.
Dalla nostra parte abbiamo perduto due cavalli ed è rimasto ferito
un bravo soldato, vero eroe che si à avventurato troppo nella conquista
fatta da solo di una batteria nemica.
Comunicava ao Giacomo engraxate (SALÃO MUNDIAL) a nova vitória
e entoava:
Tripoli sarà italiana,
sarà italiana a rombo di cannone!
Nesses dias memoráveis diante dos fregueses assustados brandia a navalha
como uma espada:
– Caramba, come dicono gli spagnuoli!
Mas tinha um desgosto. Desgosto patriótico e doméstico. Tanto
o Lorenzo como o Bruno (Russinho para a saparia do Brás) não
queriam saber de falar italiano. Nem brincando. O Lorenzo era até irritante.
– Lorenzo! Tua madre ti chiama!
Nada.
– Tua madre ti chiama, ti dico!
Inútil.
– Per l’ultima volta) Lorenzo! Tua madre ti chiama, hai capito?
Que o quê.
– Stai attento que ti rompo la faccia, figlio d’un cane sozzaglione, che
non sei altro!
– Pode ofender que eu não entendo! Mamãe! MAMÃE! MAMÂE!
Cada surra que só vendo.
Depois do jantar Tranquillo punha duas cadeiras na calçada e chamava
a mulher. Ficavam gozando a fresca uma porção de tempo. Tranquillo
cachimbando. Dona Emília fazendo meias roxas, verdes, amarelas. Às
vezes o Giacomo vinha também carregando a sua cadeira de palha grossa.
Raramente abriam a boca. Quase que para cumprimentar só:
– Buona sera, Crispino.
– Tanti saluti a casa, sora Clementina.
Mas quando dava na telha do Carlino Pantaleoni, proprietário da QUITANDA
BELLA TOSCANA, de vir também se reunir ao grupo era uma vez o silêncio.
Falava tanto que nem parava na cadeira. Andava de um lado para outro. Com
grandes gestos. E era um desgraçado: citava Dante Alighieri e Leonardo
da Vinci. Só esses. Mas também sem titubear. E vinte vezes cada
dez minutos. Desgraçado.
O assunto já sabe: Itália. Itália e mais Itália.
Porque a Itália isto, porque a Itália aquilo. E a Itália
quer, a Itália faz, a Itália é, a Itália manda.
Giacomo era menos jacobino. Tranquillo era muito. Ficava quieto porém.
É. Ficava quieto. Mas ia dormir com aquela idéia na cabeça:
voltar para a pátria.
Dona Emília sacudia os ombros.
Um dia o Ferrucio candidato do governo a terceiro juiz de paz do distrito
veio cabalar o voto do Tranquillo. Falou. Falou. Falou. Tranquillo escanhoando
o rosto do político só escutava.
– Siamo intesi?
– No. Non sono elettore.
– Non è elettore? Ma perchè?
– Perchè sono italiano, mio caro signore.
– Ma che c’entra la nazionalità, Dio Santo? Pure io sono italiano
e farò il giudice!
– Stà bene, stà bene. Penserò.
E votou com outra caderneta.
Depois gostou. Alistou-se eleitor. E deu até para cabalar.
A guerra européia encontrou Tranquillo Zampinetti proprietário
de quatro prédios na Rua do Gasômetro, dois na Rua Piratininga,
cabo influente do Partido Republicano Paulista e dileto compadre do primeiro
subdelegado do Brás; o Lorenzo interessado da firma Vanzinello &
Cia. e noivo da filha mais velha do Major Antônio Del Piccolo, membro
do diretório governista do Bom Retiro; o Bruno vice-presidente da Associação
Atlética Pingue-Pongue e primeiranista do Ginásio do Estado.
Tranquillo agitou-se todo. Comprou um mapa das operações com
as respectivas bandeirinhas. Colocou no salão o retrato da família
real. Enfeitou o lustre com papel de seda tricolor.
– Questa volta Guglielmone avrà il suo!
Lorenzo noivava. Bruno caçoava.
Dona Clementina pouco ligava. Mas no dia em que o marido resolveu influenciado
pelo Carlino subscrever para o empréstimo de guerra protestou indignada.
Tranquillo deu dois gritos patrióticos. Dona Emília deu três
econômicos. Tranquillo cedeu. E mostrou ao Carlino como explicação
a sua caderneta de eleitor.
Aos poucos mesmo foi-se desinteressando da guerra. E chegou à perfeição
de ficar quieto na tarde em que o Bruno entrou pela casa adentro berrando
como um possesso:
Il General Cadorna
scrisse alla Regina:
Si vuol vedere Trieste
t’la mando in cartolina…
E o Bruno só para moer não cantou outra cousa durante três
dias.
Proprietário de mais dois prédios à Rua Santa Cruz da
Figueira Tranquillo Zampinetti fechou o salão (a mão já
lhe tremia um pouquinho) e entrou para sócio comanditário da
Perfumaria Santos Dumont.
Então já dizia em conversa no Centro Político do Brás:
– Do que a gente bisogna no Brasil, bisogna mesmo, é d’un buono governo,
mais nada!
E o único trabalho que tinha era fiscalizar todos os dias a construção
da capela da família no cemitério do Araçá.
Quando o Bruno bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Faculdade de Direito de São Paulo ao sair do salão nobre no
dia da formatura caiu nos seus braços Tranquillo Zampinetti chorou
como uma criança.
No pátio a banda da Força Pública (gentilmente cedida
pelo doutor Secretário da Justiça) terminava o hino acadêmico.
A estudantada gritava para os visitantes:
– Chapéu! Chapéu-péu-péu!
E maxixava sob as arcadas.
Tranquillo empurrou o filho com fraque e tudo para dentro do automóvel
no Largo de São Francisco e mandou tocar a toda para casa.
Dona Emília estava mexendo na cozinha quando o filho do Lorenzo gritou
no corredor:
– Vovó! Vovó! Venha ver o tio Bruno de cartola!
Tremeu inteirinha. E veio ao encontro do filho amparada pelo Lorenzo e pela
nora.
– Benedetto pupo mio!
Vendo os cinco chorando abraçados o filho do Lorenzo abriu também
a boca.
O primeiro serviço profissional do Bruno foi requerer ao Ex.mo Sr.
Dr. Ministro da Justiça e Negócios Interiores do Brasil a naturalização
de Tranquillo Zampinetti, cidadão italiano residente em São
Paulo.
Contos Avulsos
AS CINCO PANELAS DE OURO
Dona Esmeralda Foz era filha de Dona Gertrudes Lemos que em Jataí-Estação
muito fez pelo espiritismo. Tidoca Lemos morreu desprevenido, Dona Gertrudes
ficou nervosa com a incerteza do destino que tivera a alma do marido. Daí
o ter entrado para sócia contribuinte do Centro Espírita Amigos
de Jesus. Logo na primeira reunião Tidoca apareceu pigarreando seco
(velho cacoete dele), disse que estava bem, mandou lembranças para
os amigos, recomendou insistentemente à mulher que não deixasse
de pagar os vinte mil-réis que ele morreu devendo ao Tenente Euclides
(orador oficial do Centro), falou nos deveres de amor e caridade para com
o próximo e se despediu pigarreando seco. Dona Gertrudes virou espiritista
fanática. Porém não pagou os vinte mil-réis ao
Tenente Euclides. O que foi um dos motivos do cisma havido no Amigos de Jesus
e imediata fundação do Companheiros de Cristo com Dona Gertrudes
no cargo de primeira-secretária.
Por essa época Dona Esmeralda tinha seus dezesseis-dezessete anos
e já por qualquer coisa ria demais ou chorava demais. Ou ria depois
chorava, chorava depois ria. Diziam para ela: O Inacinho do Areão caiu
do cavalo. Ela ia e ria que era um despropósito. Acrescentavam: Bateu
com a cabeça numa pedra, morreu. Ela ia e desandava a chorar soluçado
de cortar o coração. Dá uma boa médium, pensou
Dona Gertrudes. E levou a filha no Centro.
Até então a médium preferida do Companheiros de Cristo
era a filha do presidente Maestro Angiolini. Chamada Celeste Aída.
Logo se estabeleceu uma rivalidade tremenda. Porque Angiolini achava ruinzinhas
as comunicações feitas por intermédio de Esmeralda. Espiritismo
é como música. Precisa coração. O coração
é que comanda. E a Esmeralda só tinha cabeça. Por seu
lado Dona Gertrudes atrapalhava com apartes caçoistas os discursos
que os espíritos ditavam para Celeste Aída. A diretoria aí
resolveu consultar Pai Jacob, protetor do Centro. Um médium de pencinê
veio especialmente de São Paulo. Pai Jacob entrou nele e decidiu a
questão a favor da filha do presidente. Dona Gertrudes protestou inflamada
dizendo que a coisa lhe cheirava a tribofe. Esmeralda principiou a chorar.
Dona Gertrudes agarrou na mão dela, antes de sair deu uma gargalhada
satânica, gritou para Salvini: – Você, seu carcamano, quando nasceu
te jogaram duas vezes na parede: uma vez grudou, outra não! Esmeralda
compreendeu, largou de chorar e riu até a mãe dizer chega com
dois beliscões.
Meses depois Dona Gertrudes se mudou para Jataí-Vila e casou a filha
com um moço muito bom, Nicolau Foz, empregado da Luz e Força
e oposicionista vermelho. Dias depois morreu de susto. Tarde da noite explodiu
perto da casa dela uma fábrica de fogos. Dona Gertrudes foi encontrada
já fria apertando contra o peito O Triunfo na Vida Terrena pelo Magnetismo
Pessoal do professor E. Bedlamite de Columbus, Ohio, U.S.A. Morreu de susto.
A filha sofreu muito. Gostava da mãe. E morta a mãe passou
a gostar do único bem do espólio: uma cachorrinha peluda. Muito
vagabunda mas muito célebre. Tinha sido presente de uma comadre da
de cujus. Dona Gertrudes a recebeu novinha com dias apenas. E já batizada
Goiabada. Nome horrível que Dona Gertrudes resolveu mudar. Consultou
a filha, a filha pediu um dia para pensar, pensou e sugeriu dois a escolher:
Florzinha e Violeta. Dona Gertrudes recusou, passou em revista outros e afinal
se decidiu por Dorotéia Cabral. Daí a celebridade. Toda gente
fez questão de conhecer Dorotéia Cabral. E Dona Gertrudes explicava:
– Os animais não são nossos irmãos inferiores? Pois então,
ué! Devem ter nome de gente! Por isso o genro se animou um dia a observar:
Se a cachorrinha tem direito a nome de gente tem direito a apelido. Dorotéia
Cabral é muito comprido: fica sendo Tetéia. Dona Gertrudes não
discordou. Fez porém uma restrição: – Não há
dúvida. Tetéia está bem. Mas só na intimidade.
Enquanto crescia o amor de Dona Esmeralda (que não tinha filhos) pela
Tetéia grandes sucessos modificavam a vida do país. E Jataí-Vila
(cidade, cabeça de comarca, mas sempre Jataí-Vila para distinguir
de Jataí-Estação onde passavam os trilhos da Boigiana)
foi teatro de muitos e variados acontecimentos. Com seus quatro mil e setecentos
vizinhos há muitos anos vivia empenhada em furiosa luta política:
de um lado os partidários de Zéquinha Silva desde cinco lustros
chefe do situacionismo, de outro os do Major Mourão (alentejano de
nascimento) e seu braço direito Nicolau Foz. Aqueles eram os perrepistas.
Estes os oposicionistas. Luta local só. Os antiperrepistas também
pertenciam incondicionalmente ao P. R. P. Mas ao P. R. P. estadual, ao governo.
Nunca ao de Zequinha Silva. A ambição deles era constituir um
dia com sua gente o P. R. P de Jataí-Vila. Obedeciam â orientação
de um deputado que em Jataí-Estação era situacionista,
em Jataí-Vila oposicionista. E tecia seus pauzinhos na Capital junto
aos chefões para derrubar o tiranete de Jatai-Vila que a oposição
não se cansava de apontar como indigno dos nossos foros de civilização
e cultura.
A coisa porém continuava no mesmo pé sem dar esperanças
de modificação próxima. Até que veio o movimento
revolucionário de outubro de 1930. Então principiou uma emulação
desesperada. Todas as provas iniludíveis de dedicação
à causa da legalidade (o que eqüivalia dizer à causa sagrada
do Brasil unido) foram dadas pelos dois partidos. Zéquinha Silva telegrafava
solidariedade aos Presidentes da República e do Estado, o Major Mourão
imediatamente fazia o mesmo. Fazia mais: estendia essa solidariedade inabalável
ao Ministro da Guerra ao Ministro da Marinha, ao Presidente da C. D do P.
R. P., ao Secretário da Justiça e ao Chefe de Policia do Estado.
E quando Zéquinha resolveu organizar um batalhão patriótico
a oposição anunciou a formação de dois: infantaria
e cavalaria. Porém Zéquinha Silva contava com maior número
de elementos. Trinta e dois sujeitos pegados à força pelo Subdelegado
Tolentino foram convenientemente calçados e seguiram logo sob o comando
do cabo do destacamento. Este levava uma carta do diretório para o
Secretário da Justiça pedindo que os voluntários de Jataí-Vila
fossem aproveitados na faxina dos quartéis da Capital "para sossego
de suas respeitáveis famílias. cujo patriotismo honra sobremaneira
as nossas gloriosas tradições bandeirantes". Passados uns
dias a Viúva Mané Bindão (inventora e fabricante única
de um doce chamado "beija-me-devagar") recebeu carta do filho dizendo
que a coisa em Itararé estava bem preta. A Viúva Mané
Bindão foi na casa do Zéquinha e amaldiçoou a família
Silva até a última geração. A oposição
pulou nas ruas de contentamento Pulou um dia só entretanto: o governo
mandou perguntar para o Major Mourão se os homens dele seguiam ou como
era. O major respondeu que estavam de partida. Foi uma vergonha. O Afonso
Henriques. filho do major, afundou no mato com dois primos. Antônio
Vicente de Camargo Júnior, um dos chefes oposicionistas. declarou que
não criara filho para carne de canhão. E assim todos. Até
que Nicolau teve uma idéia. Três léguas para o norte em
São Benedito do Alecrim, nas divisas de Minas, havia dois batalhões
em pé de guerra: um paulista aquartelado no Grupo Escolar Marechal
Deodoro, outro mineiro no Grupo Escolar Marechal Floriano. Os dois prédios
ficavam na mesma rua. Mas seus ocupantes trocavam gentilezas. Cada batalhão
só esperava a hora de aderir ao adversário. Pois então:
era comunicar para o governo que o pessoal oposicionista de Jataí-Vila
iria reforçar a tropa de São Benedito do Alecrim. E estava tudo
arranjado.
Não estava. O governo mandou ordem para os homens partirem sem demora
para a Capital. Aí seria resolvido o destino deles. Que remédio?
O Major Mourão recrutou três matadores profissionais, dois ladrões
de cavalos, um preto maluco que pensava que era relógio e vivia no
Largo da Matriz movendo os braços que nem ponteiros, um surdo-mudo
de nascença e um tal Chico Rosa mais conhecido por Chico Perna-de-Pau.
Os matadores e os ladrões custaram cem mil-réis por cabeça:
quinhentos mil-réis que o major desembolsou sem a mulher saber. A Filarmônica
Doutor Quirino tocou o Hino Nacional, Antônio Vicente fez um discurso
patriótico, os homens subiram num caminhão, o Laudelino Pinto
do Centro Cultural gritou: "Que cada um traga uma orelha do Bernardes,
são os meus votos sinceros!", e toca para Jataí-Estação
pegar o trem. A Filarmônica em outro caminhão e os chefes oposicionistas
num torpedo foram escoltados.
– Assim a gente tem a certeza de que os maganos embarcam – disse o major.
– Que não desertam antes de chegar na estação – corroborou
Nicolau.
– Eu sapeco outro discurso neles quando o trem chegar – prometeu Antônio
Vicente.
Seguiram já a noite vinha descendo. Daí a vinte minutos estavam
chegados. Estação pequetita, encheram a plataforma. A Filarmônica
iniciou imediatamente a Canção do Soldado Paulista. E o major
dava suas últimas instruções aos bravos de Jataí-Vila
quando o chefe da estação chegou todo transtornado.
– Seu major!
Seu major suspendeu as instruções, ficou esperando.
– Seu major! Deu-se!
– O quê?
– A coisa!
– Hein?
– A coisa! O Washington! Não percebo, homem!
– AREVOLUÇÂOVENCEU!
– Estás doido!
O chefe da estação ficou possesso:
– Eu, doido? O senhor é que está maluco! Se não é
analfabeto leia isto!
Tirou do bolso um papel, encostou na cara do major. O major pegou no papel,
deu para Nicolau ler. Nicolau leu:
– 5-0-9. 7-1-3. Centenas invertidas pelos cinco…
O chefe deu um pulo.
– Não é esse!
Arrancou o joguinho das mãos do Nicolau, meteu no bolso, puxou outro
papel, leu, deu para Nicolau ler. Nicolau leu três vezes. Ia ler outra
vez com os olhos cada vez mais esbugalhados mas o major não deixou.
– Dize lá do que se trata, vamos!
Nicolau devolveu a cópia do telegrama para o chefe, o chefe saiu correndo
para avisar outros. Nicolau puxou o major e Antônio Vicente de lado
e falou:
– A revolução venceu no Rio! O Washington fugiu!
O major rugiu:
– Lérias! Aquilo é um homem, homem! Não sabe o que é
fugir!
– Telegrama oficial, seu major!
– Pois se é oficial, a revolução não venceu!
Telegrama oficial só pode ser do governo! O governo está de
pé!
Antônio Vicente procurou chamar o major à razão. O maior
teimou. Começaram a discutir. O sino da estação anunciou
a saída do trem de Engenheiro Abrunhosa: daí a minutos estava
em Jataí. Um vivório se ouviu longe. Cousa indistinta. Os três
abriram bem os ouvidos.
– Júlio! – disse o major. – Que é que lhe dizia eu?
– Getúlio! – disse Nicolau. Ouvi perfeitamente.
– Escutem! suplicou Antônio Vicente.
O vivório foi se chegando. Começou o foguetório também.
– Júlio! – disse o major. – Não tem discussão!
– Getúlio! – disse Nicolau. – Getúlio Vargas!
– Esperem! – pediu Antônio Vicente.
Esperaram. O foguetório não deixava os três perceberem
bem o vivório. Mas de repente juntinho deles explodiu com tanta violência
um Viva o Doutor Getúlio Vargas que os três até recuaram
de susto. E Chico Perna-de-Pau repetiu o viva. O major indignado ia gritar
com o Chico mas os matadores profissionais e os ladrões de cavalo sacaram
das garruchas e deram de atirar para todos os lados. O major se agachou atrás
de um banco gritando:
– Não me matem que eu sou português!
Chico Perna-de-Pau perguntou:
– Quem é que é português?
Antônio Vicente subiu no banco e gritou desvairado:
– Abaixo a plutocracia!
Os voluntários de Jataí-Vila, esgotadas as munições,
corresponderam:
– Viva-a-a!
Antônio Vicente tornou a gritar:
– Abaixo os opressores do povo!
E os voluntários de Jataí-Vila delirantes:
– Viva-a-a!
A estação já estava cheia de revolucionários.
O trem chegou. Vivórios e mais vivórios. O trem partiu. O major
no meio do povo bradava:
– Que eu sabia que vinha lá isso sabia! Mas, caramba rapazes, nunca
pensei que viesse já! Viva Jataí-Vila!
– Morra! – berrou um mulato no ouvido do major. – Isto aqui não é
Jataí-Vila!
O major pediu muitas desculpas mas o mulato não queria desculpas.
Queria dez puas para beber à saúde do Isidoro. E exigia um viva
ao Isidoro.
– Viva – disse o major. – Toma lá cinco mil-réis que dez não
tenho.
O Nicolau conferenciava na sala do telegrafista com o Doutor Querido que
desde a monarquia era oposicionista na zona.
– Está feito!
Disse e saiu à procura dos companheiros. Arrancou o major das mãos
de um italiano recém-chegado da Penitenciária que já
obrigara o major a dar três morras (Morra Mussolini, Morra Matarazzo
e Morra D’Annunzio), interrompeu um discurso de Antônio Vicente sobre
a Revolução Francesa, arrebanhou com promessas os músicos
e os voluntários, saiu com eles da estação. Em dois tempos
conseguiu convencer todos a voltar imediatamente para Jataí-Vila tomar
conta do governo.
Com uma provisão de foguetes e bombas de parede chisparam na estrada.
E entraram em Jataí-Vila de escapamento aberto. No caminhão
da frente os voluntários soltavam foguetes e jogavam bombas. A seguir
no torpedo de capota descida os chefes da oposição vivavam a
democracia brasileira e gritavam para os que abriam bocas de espanto nas calçadas
e janelas: – Vencemos! Por último os músicos tocavam o Hino
a João Pessoa. Foram direito para o Largo da Matriz. Fez-se um ajuntamento
de uns trinta sujeitos. Antônio Vicente arengou. Enquanto ele arengava
o coronel chamou um negrinho:
– Corre lá em casa e dize a Emília que vencemos!
O negrinho voltou logo com a Emília. E a Emília louca de alegria:
– Já telegrafaste ao Senhor Doutor Washington com as nossas felicitações?
O major explicou. E ela rebentou:
– Tu mandas dizer-me que vencemos eu penso que venceram os legalistas! Agora
se é para perder de uma vez a vergonha viva esse tal de Getúlio
e mais a cambada toda.
Deu meia volta e se retirou muito digna. Deixando o major frio. Mas daí
a pouco chegou fardado o Coronel Cerqueira, veterano do Paraguai, com o peito
cheio de medalhas, imensamente comovido, derrubando lágrimas. Abraçou
o major dizendo:
– Um abraço, meu bravo! Conte comigo! Quando é que chega o
Imperador?
O major ficou sem saber o que responder, a filha do Coronel Cerqueira fez
uns sinais desesperados, o major compreendeu, respondeu:
– O Imperador? Ah, sim! Sua Majestade não demora está aí
para nossa felicidade! Eu aviso o dia exato da chegada! E agora vá
para casa que a noite está fria!
O coronel se retirou pelo braço da filha. Antônio Vicente alheio
ao que se passava em torno continuava arengando. Nicolau mandava recados.
E ia chegando gente, iam chegando moleques, todos os moleques de Jataí-Vila.
Nicolau contou por alto os presentes.
Cassou a palavra de Antônio Vicente (Me deixa ao menos meter a ronca
na Bastilha! Eu ainda não falei na Bastilha!) e gritou:
– Quem for brasileiro que me acompanhe!
Houve uma indecisão. Porém o Lázaro Turco da Verdadeira
Loja Síria falou:
– Como é, pessoal? Patriotismo!
E o pessoal acompanhou. Menos o Janjão porteiro do Grupo:
– Enquanto eu não ler isso no Correio Paulistano eu não acredito
mesmo!
Ocupada a cadeia (o delegado desaparecera vestido de mulher, disseram muitos
que juraram ter visto), os revolucionários soltaram dois negros desordeiros,
um leproso e a Mariazinha Louca que encontraram acorrentada anunciando para
breve o Juízo Final. Nicolau não queria libertar Mariazinha
antes de tirar uma fotografia para mostrar os métodos inquisitoriais
dos déspotas vencidos. Mas Antônio Vicente propôs coisa
melhor:
– A gente solta a peste e no lugar dela acorrenta o Zéquinha Silva
para ele ver se é bom.
A casa do Zéquinha Silva estava com a porta e as janelas de pau cerradas
quando o grupo parou em frente dando morras. Vai ver que já abriu o
chambre, pensou Nicolau. Bateram, ninguém veio abrir. Mas logo depois
os gritos de Arromba! Arromba! fizeram com que uma das janelas se abrisse
e espiasse uma pretinha de olho assustado. Antônio Vicente mandou:
– Vá chamar seu patrão!
– Sim senhor!
Demorou um instante, voltou.
– Dona Trindade manda dizer que o patrão não pode vir não
senhor porque a filha dele Dona Isolina está tendo filho.
– Mentira! – berrou Nicolau. Diga pra ele que venha senão nós
arrombamos a porta e fazemos uma gravata nele!
A negrinha foi dizer. E Nicolau não tinha acabado de explicar para
o major o que era uma gravata gaúcha quando a parteira Dona Gegé
apareceu na janela.
– Vão embora, seus vagabundos, seus covardes! A criança nem
bem nasceu e vocês já querem estragar a vida dela! Seus assassinos!
Houve um silêncio. E no silêncio se levantou a voz amável
do major:
– Ah? Nasceu mesmo? Pensamos que fosse broma! É homem ou mulher?
– Não é de sua conta! – disse Dona Gegê e bateu a janela
na cara dos patriotas.
Antônio Vicente falou:
– E agora?
O entusiasmo tinha esfriado. O major arriscou:
– Vamos todos para as nossas casas que o dia já foi muito bem ganho.
– Vão vocês – falou Nicolau. – Eu não durmo esta noite.
Não dormiu. Com três ou quatro mais dedicados passou a noite
inteira tomando providências. E o major acordou no outro dia presidente
da junta provisória de Jataí-Vila. O que reconciliou Dona Emília
com a revolução:
– Assim está conforme! Os valores pra frente, é o que se quer!
A junta Mourão-Nicolau-Vicente tomou conta de Jataí-Vila dois
dias com poderes discricionários. Na manhã do terceiro chegou
o delegado mandado de São Paulo: Doutor Santos Dumont Salomão.
A junta foi destituída e nomeado prefeito o agente da Ford, Idílio
Madeira. Despeitadíssimo o pessoal da ex-junta organizou o Bloco dos
Destemidos ou Os 18 de Copacabana. O Doutor Salomão se viu meio fraco,
procurou se chegar ao Zéquinha. Mandou dizer para ele que quando precisasse
de garantias de vida era só dar uma telefonada. Preparando terreno
para uma aliança no momento oportuno. Nicolau ficou fulo com tais manobras.
Telegrafou para São Paulo protestando mas São Paulo não
deu resposta. Recorreu então ao mimeógrafo da Papelaria Humaitá.
Todos os dias Jataí-Vila se enchia de manifestos xingando os usurpadores
adventícios: Doutor Santos Dumont Salomão ("filho de mascate
sírio com mulata sem-vergonha") e Idílio Madeira ("brasileiro,
sim, mas natural da terra de Calabar"). O Doutor Salomão reagiu
conservando 24 horas no xadrez o Afonso Henriques Mourão acusado de
ter desencaminhado uma menor três anos antes. E organizou o Bloco dos
Animosos ou Os Mártires da Clevelândia. Os Mártires se
reuniram à noitinha no Largo da Matriz e quando se sentiam de fato
Animosos marchavam para a casa do prefeito berrando: Nós queremos Madeira!
E merecem, escreveu Nicolau num de seus manifestos.
Então vendo as coisas assim malparadas o vigário resolveu pacificar
os espíritos. A matriz estava sendo reformada. Engrandecida até
com um altar dedicado a Santa Joana d’Arc.
A primeira quermesse tinha rendido pouco apesar dos esforços da comissão
presidida por Zéquinha Silva. Padre Zoroastro pensava realizar outra
com umas dez barraquinhas pelo menos. Bonito pretexto para a paz.
Padre Zoroastro foi falar com o Doutor Salomão. Provou para ele a
vantagem de uma concórdia e a oportunidade que para ela oferecia uma
obra de religião e caridade. Aparentemente ninguém cedia, ninguém
dava parte de fraco. Sobrevindo um motivo de ordem superior o acordo se fazia
para garantir à quermesse o êxito que não podia ter se
realizada num ambiente de ódios. Padre Zoroastro sabia convencer. E
tinha um modo de falar irresistível: falava baixinho, devagarzinho,
perguntava: não é? Se encontrava resistência ele mesmo
respondia: é, não ligava às objeções nem
estudava o que os outros diziam, continuava falando, caceteando, embalando
de mansinho, os outros concordavam cochilando já. Doutor Salomão
não fez exceção e disse:
– Pois sim.
Padre Zoroastro saiu da delegacia, foi para o escritório da Luz e
Força. Mas não contou para o Nicolau que já tinha estado
com o Doutor Salomão. Repetiu só o que havido falado pouco antes.
Naquele tonzinho sumido de confessionário. Sempre igual, sempre igual.
– Escute, Padre Zoroastro! – exclamava de vez em quando Nicolau.
Sem acrescentar palavra, Padre Zoroastro tinha lá falar, não
tinha ido ouvir. Isto é: tinha ido ouvir o sim, só o sim. Enquanto
esperava a hora do sim falava para impedir o não.
Nicolau disse o sim quando – depois do último não é?
é – Padre Zoroastro deu licença para ele dar um pio.
E o acordo se fez. O Doutor Salomão continuava na delegacia e o Idílio
na prefeitura prestigiados daí em diante pelos 18 de Copacabana.
Sob duas únicas condições: a prefeitura não dava
andamento aos executivos por impostos atrasados que tinha em juízo
contra Nicolau e a delegacia deixava sossegado o Chalé Felizardo de
que era proprietário um irmão do major.
Acordo que não agradou nada alguns dos 18 de Copacabana. No Bar Ideal
um descontente chegou a falar em traição na cara de Nicolau.
Nicolau ficou vermelho. E tratou de mudar de assunto. O descontente (cuja
brutalidade como centro-médio do Águia de Haia F. C. era famosa)
percebeu a fraqueza do chefe, tornou a falar em traição e de
mau começou a acariciar o gargalo da garrafa de cerveja Tip-Top. Nicolau
empalideceu, balbuciou uma desculpa boba, caiu na rua. Então ouviu
uma risada irritante.
Irritou-se. Seguiu para a delegacia e lá exigiu a remessa de um bilhete
azul para o descontente que era fiscal do serviço contra a broca do
café. O Doutor Salomão porém não concordou.
E Nicolau foi para casa se remoendo de raiva. De tanta assobiou uma hora
inteirinha o Miserere, do Trovador. Não assobiou mais porque Dona Esmeralda
veio chamar para dormir.
– Vá você. Eu vou depois.
– Logo hoje que eu estou tão nervosa, Nicolau! Você sabe que
eu não durmo sozinha quando estou nervosa!
– Então não dorme nunca. Nervosa por quê?
– Tetéia está passando muito mal.
– Que é que tem a excelentíssima?
– Não sei: uns tremores, uns vômitos, umas coisas esquisitas.
Foram ver a Dorotéia Cabral. Nicolau olhou bem para ela, depois disse:
– Está agonizando.
Dona Esmeralda pôs as mãos na cabeça e se encostou no
marido chorando.
– Ora, Esmeralda! Que é que significa isso? Não se pode mais
brincar então? Você não conhece a anedota do português?
Pensei que você conhecia. Por isso é que falei assim.
Esmeralda com a cabeça no peito de Nicolau engoliu umas lágrimas
e perguntou entre dois soluços horríveis:
– Que anedota, hein?
Nicolau contou fazendo cafuné na mulher:
– Eu acho que já contei pra você. Não se lembra? Aquele
português que estava muito doente e com um medo danado de morrer. Então
para levantar o ânimo dele chamaram um grande amigo que ele tinha. O
amigo veio, chegou perto da cama. sorriu para o doente e disse com jeito de
carinho: Agonizantezinho, hem?
Esmeralda se desprendeu do marido.
– Essa é formidável!
E rompeu numa gargalhada nervosa.
– Não ria tanto, Esmeralda! Faz mal pra você’.
Ela queria dizer que não fazia, mas não podia, se sacudia toda
de riso. Nicolau então pegou na Dorotéia Cabral com muito nojo
e levou para a cozinha. Deitada de lado perto do fogão Dorotéia
Cabral sacudiu as patas, vomitou, jogou a cabeça para trás,
morreu. Nicolau voltou para o quarto.
– Morreu, coitada.
Esmeralda pranteou a morte de Dorotéia Cabral (Ah minha mãe,
minha mãe! dizia) até cair de cansaço nos braços
de Nicolau.
– Vamos dormir para esquecer este dia. Dia mais desgraçado!
Foram dormir.
– Acenda a vela que no escuro eu não durmo. Nicolau acendeu a vela,
se deitou encolhido, cobriu a cabeça com o lençol.
– Não cubra a cabeça assim que eu fico com medo.
– Feche os olhos.
– Não posso.
Nicolau deu um suspiro, puxou o lençol para baixo, enterrou a cara
no travesseiro. Dona Esmeralda virava para a direita, dava com a chama da
vela, virava para a esquerda. não achava jeito, se impacientava.
– Nicolau! Passa a vela pro seu lado, faz favor!
Nicolau pegou no castiçal, pôs no criado-mudo dele. Sem dizer
palavra. Tornou a meter a cara no travesseiro. Fechou os olhos.
Aí viu a chama da vela. Apertou bem os olhos. A chama foi diminuindo,
diminuindo. morreu. O relógio da matriz bateu horas. Dona Esmeralda
contou: um, dois. E acrescentou: feijão com arroz. Continuou: três,
quatro feijão no prato. Está errado. Devia ser: uma, duas. Hora
é feminino. O professor da Escola 15 de Novembro, Seu Mesquita, que
sujeito engraçado. Que horas são? Meio-dia e meio. Ó
ignorância quadrúpeda!. Meio-dia e meio quer dizer seis horas
da tarde: meio-dia mais meio dia. Meio-dia e meia é que você
quer dizer, seu idiota. Quando o bispo de Samburá foi visitar a escola
Seu Mesquita se atrapalhou, gritou: – Viva o senhor doutor bispo! E a meninada
jogou pétalas de rosa.
Padre Dito quase estourou de rir. Que homem bom. Não quis ser bispo.
Dava tudo para os órfãos. Morreu a cavalo. Vinha do sítio.
Teve urna síncope, caiu pra frente mas não caiu do cavalo. Entrou
na cidade assim. Abraçando o pescoço do cavalo. E o cavalo andava
devagarzinho para não derrubar Padre Dito. Milagre verdadeiro. Aquele
sim: era um santo. Está enterrado – onde é que está enterrado
mesmo? – está enterrado aqui mesmo. E Dorotéia pobrezinha? A
gente enterra no quintal. Depois planta umas flores. Não precisa cruz.
Padre Dito parece que chegou a conhecer Tetéia? Chegou. Ele morreu
quando a torre da matriz caiu. Era um santo mesmo. Gostava muito de jardinar.
E que jardim bonito. Tem jasmim, tem perpétua, tem cravo-de-defunto,
tem camélia. Camélia é flor de muita estimação
mas só no pé. No vaso perde muito. Amarelece. Fica bom um pé
de camélia na sepultura de Tetéia. Que diabo. A modo que vem
gente. E olhe que vem mesmo. Bom dia, minha filha. A benção,
Padre Dito. Que é que você está fazendo no meu jardim,
Esmeralda? Estou escolhendo uma planta bonita para plantar na sepultura de
Dorotéia Cabral. Morreu? Morreu hoje. Mas isso é pecado, minha
filha. Não sabia. Deus não fez as flores para enfeitarem sepulturas
de animais. Não sabia: desculpe. Deus fez as flores para enfeitarem
os altares das igrejas. Eu vou enfeitar um, então. Diga antes como
vão as obras da matriz. Vão bem, muito obrigado, muito obrigado.
Não tenha medo de mim, Esmeralda. Tal seria, Padre Dito. Senta aqui
neste banco que eu quero contar um segredo pra você. Às ordens,
Padre Dito. Você conhece meu túmulo? Conheço, sim senhor.
No meu túmulo tem cinco panelas cheinhas de ouro. Sim senhor, Padre
Dito. Você vá lá, desenterre as panelas e dê para
a comissão das obras que o ouro é para acabar com a reforma
da matriz que já está demorando muito. Eu vou hoje mesmo, Padre
Dito. Vá com Deus, minha filha. E a Virgem Maria, Padre Dito. Deixa
te dar um beijo minha filha. O senhor disse um, Padre Dito. Eu não
sou o Padre Dito. Me larga que eu grito. Eu sou o Anticristo. Eu grito, eu
grito. Gritou. Nicolau acordou.
– Que é isso, minha filha?
– Não me chame de minha filha! Onde é que eu estou? Ai, eu
morro com esta aflição! Não se encoste em mim! Não
se encoste em mim! Ah minha mãe, minha mãe!
A aflição só passou com água de flor de laranja
tomada à força. Então Dona Esmeralda sorriu, beijou muito
o marido e contou o sonho.
– Ele disse cinco panelas só? Você tem certeza?
– Cinco: me lembro perfeitamente.
– Sei. Ele não disse que espécie de moedas era? Libras esterlinas
por exemplo? Ou dólares? Tem dólares de ouro se não me
engano…
– Isso ele não disse.
Nicolau desistiu de dormir o resto da madrugada. Preparou café forte,
bebeu duas xícaras, foi para a sala da frente, se estendeu no canapé,
deu de fumar. Pensando.
– Esmeralda! Você ainda está acordada?
– Que é?
– Você acredita em sonhos?
– Acredito sim.
– Está bem. Veja se dorme.
De barriga para o ar imaginava tão depressa, tão grandiosamente,
que lutava contra a imaginação. Deus existe. Se existe. A justiça
divina não falha. E vem mais depressa do que se pensa. Dormiu triste
e humilhado e acordou rico. Primeiro pagava os impostos. Não precisava
mais de esmolas. Depois São Paulo. Aplicava o cobre bem aplicado. Depois
Rio. Depois Europa. Não. Estados Unidos. Conhecer aquele colosso. Pára,
imaginação. O dinheiro é para as obras da matriz. Olhe
o castigo do céu. Mas não é justo isso. Quem tem o segredo
do tesouro é dono do tesouro. Depois não havia perigo. Ia de
noite no cemitério e desenterrava a dinheirama. Pára, imaginação.
O Crispim zelador já queimou uma madrugada os dois polacos da Colônia
Sobieski que queriam avançar nos florões de bronze dos túmulos.
Do Padre Dito mesmo. Subornar também não adianta. Quer dizer:
é impossível. Melhor é revelar o segredo. Falar com Padre
Zoroastro e revelar não: vender o segredo. Pára, imaginação.
Padre Zoroastro não acredita nessas coisas. Homem, arranjava um capanga,
matava o Crispim e pronto. Pára, excomungada. Bobagem. Aquele retrato
ali no Diário é da Greta Garbo. Ô boa. Onde será
que ela mora? Pára, sem-vergonha, cachorra, desgraçada. E o
Zéquinha Silva presidente da comissão? Desaforo. É preciso
arranjar outro presidente, outro tesoureiro: ele. Ai está. Regime novo:
gente nova.
E o cobre com o tesoureiro.
– Você já está acordada Esmeralda?
– Eu não dormi.
– Que maçada! Vamos enterrar a excelentíssima?
– Enterre você sozinho. Você sabe que eu não gosto de
ver enterro.
Dorotéia Cabral foi sepultada dentro de uma lata de gasolina e perto
de um mamoeiro. Nicolau tomou mais duas xícaras de café, se
arranjou e saiu. Foi para o escritório da Luz e Força. Não
parava sentado. Também não parava em pé. O gerente estranhou
tanto nervosismo. Perguntou:
– Que é que há?
– Osvaldo Aranha. Isto é. desculpe, nada. Dormi mal esta noite. A
Dorotéia Cabral morreu.
– Não diga! Dona Esmeralda deve ter ficado bem triste?
– Ficou. Está doente até. Se me der licença eu vou ver
como é que ela vai indo.
Padre Zoroastro não estava em casa. Nicolau ficou indeciso sem saber
se devia ou não procurá-lo na matriz. Talvez fosse melhor conversar
num lugar mais discreto. Porém a coisa era urgente. Era. Ia. Não
ia. Começou a andar. Foi andando. Foi. De repente apressou o passo
e tomou o caminho do cemitério.
Encontrou Crispim chupando num pito de barro perto do portão, ouvindo
as queixas de um coveiro despedido por não ter mentalidade revolucionária.
– Que é que vem fazer aqui, Seu Nicolau? Morte em casa, ainda que
mal pergunte?
– É. Morreu a Dorotéia Cabral. Mas não isso não.
– Morreu? De quê?
– Não sei. Doença de cachorro.
O túmulo do Padre Dito era logo na entrada. Olhou enviesado para ele.
– Estou pensando em mandar fazer um túmulo pra minha sogra.
Foi ver a sepultura da sogra. Era lá no fundo. Estavam abrindo uma
cova perto.
– Quem é que vai ser enterrado?
– O Bastião.
– O Bastião da Filarmônica?
– Não. O pegador de cachorro.
– É o mesmo.
– Terceiro cachaceiro que a gente enterra este mês.
Deu uns passos em torno da sepultura da sogra para fingir que tomava a medida.
E veio voltando. Bem devagarzinho. Olhando os túmulos. Aqui jaz o Doutor
Manuel Bacalhau. Esse também morreu de cachaça. A memória
de Dona Iracema Vaz de Castro Soares. Pra quê dona agora? Passou a vida
toda na cozinha. Viandante, pára! Aqui repousam os restos mortais de
Monsenhor Benedito Moura.
– Então, Crispim, não vieram mais roubar os bronzes do túmulo,
não?
– Que esperança! Eu tenho sono leve e pontaria certeira!
– Sei…
De cada lado do túmulo tinha um canteirinho de cravos. O anjo de mármore
jogava flores sobre a lousa. Já tinha jogado cinco. Faltava ainda jogar
três.
– O caixão está debaixo da terra?
– O senhor não esteve no enterro, Seu Nicolau? Está no gavetão.
Debaixo da terra está Nhá Belarmina. Faz uns vinte anos. O túmulo
foi feito por Padre Dito quando muito uns dois meses antes de morrer.
– Tem razão. Não me lembrava.
Túmulo sólido, pesado. Gavetão duro de abrir. Tampa
bem encaixada. Nem se perceberia que era tampa se não fosse o argolão
de bronze.
– Monsenhor Benedito de Moura. Homem bom. Um santo.
– Que dúvida! Cada vez que vinha aqui arranjar o jardinzinho…
– Que jardinzinho?
– Ué! O jardinzinho que tinha! Antes do túmulo só tinha
um jardinzinho e uma cruz no meio. Desse jardinzinho é que Padre Dito
cuidava todas as semanas que Deus dava. Quando podia ajudava ele. E ele já
sabe: me…
Nicolau disse de repente:
– Até outro dia, Crispim!
Não podia mais. Se ficava mais um minuto se traía contava tudo.
Mas meu Deus do céu, como é difícil a gente guardar um
segredo assim dentro da gente. Hoje mesmo precisava resolver tudo. Senão
não agüentava: morria de aflição. Agora é
ir almoçar que já são horas. Nem se discute: Padre Dito
com a desculpa de arranjar a sepultura da velha o que fazia era enterrar ouro
e mais ouro, o filho da m…
– Está falando sozinho, rapaz?
– Hein? Ah sim! Estava fazendo uns cálculos. Estou com muita pressa.
Lembranças em casa. Passar bem, Abílio. Apareça.
Depois do almoço mandou Dona Esmeralda dizer para o major e o Antônio
Vicente que estava doente sem poder sair de casa mas que queria muito conversar
com eles. Eles que viessem logo. E na reunião convenceu os companheiros
políticos de que era uma infâmia a permanência de perrepistas
na comissão das obras da matriz. Era preciso organizar outra com o
major na presidência e ele Nicolau feito tesoureiro.
Assentado isso Dona Esmeralda foi buscar Padre Zoroastro. Padre Zoroastro
foi dizendo que sim com a cabeça mas na hora de resolver a coisa falou:
– Está tudo muito certo. Porém não pode ser.
– Por que que não pode ser?
– Não pode ser porque Zéquinha Silva é pessoa – não
é – de muita confiança do bispo. É.
E não permitiu mais que Nicolau abrisse a boca. Não é?
é, os amigos bem compreendiam a situação. não
é? é, apertou a mão dos três, foi-se. Botando Nicolau
no auge da indignação. Começou a injuriar Padre Zoroastro,
a falar o diabo do bispo, a dizer coisas de Zéquinha Silva, da filha
de Zéquinha Silva. Insinuou mesmo que entre Dona Isolina e Padre Zoroastro
havia grossa patifaria. Então o major saiu de seu silêncio espantado:
– Mas afinal de contas, Nicolauzito dos meus pecados, o caso não tem
assim tanta importância. Não se trata de cargos políticos.
São cargos – como direi – são cargos… técnicos!
– Olha a grande besteira!
De seu lado Antônio Vicente não percebia também a causa
de tanto ódio. Está claro que seria melhor arranjar outra comissão
mas o bispo não querendo não valia a pena brigar com o bispo
por tão pouco.
– Eu acho assim. Com saias a gente não briga que saí perdendo
na certa.
Nicolau ia e vinha na sala bufando. Tapava os ouvidos quando os outros falavam,
dava murros na parede, dizia palavrões. E por fim estourou:
– Vocês querem saber o que há, não é verdade?
Vocês estão cheirando qualquer segredo, não é isso?
Pois têm toda a razão: há um segredo! Eu conto. Não
tenham medo não!
Contou à moda dele. E porque os outros assumiram uns ares incrédulos,
até caçoistas, contou, gritou duas, três, quatro vezes
o sonho da mulher.
– Caramba, carambolas! – disse o major. – É muito capaz de ser verdade
mesmo! E olhem que as ervas são muitas!
– Mas quatro quintas partes são pro Nicolau – disse Antônio
Vicente com um jeitinho malandro. – Quase tudo é pro Nicolau! E o resto
pra matriz!
– Naturalmente! – disse Nicolau.
O major coçou a nuca, fechou os olhos, pensou, depois falou:
– Mas o nosso Nicolau tem que ser cordato, tem que ser camarada. Que diabo!
A gente pode entrar aí num entendimentozinho… Hein? Que e que diz
a isso o nosso amigo?
Nicolau não disse nada. E começou a andar de novo pisando duro.
Houve um silêncio cacete. Antônio Vicente acabou com ele:
– Talvez… Eu também penso assim… A bolada é grande, dá
para satisfazer todos… Você não acha, Nicolau?
– Digam com franqueza! Vamos! Desembuchem! O que vocês querem é
ganhar no negócio, levar sua vantagenzinha, não é?
Os dois tentaram protestar mas Nicolau cortou a palavra deles:
– Pois muito bem! Eu já esperava isso! Quanto é que vocês
querem? Mas fiquem desde já sabendo que da minha parte eu não
cedo um tusta, ouviram bem? Agora na que é pras obras da matriz podem
avançar à vontade!
O acordo custou. Mais de uma vez Antônio Vicente pegou no chapéu
e ofendido ameaçou se retirar. O major porém não deixava.
– Senta-te aí, homem! Não saias que te arrependes logo!
E foi ele que disposto a não perder o negócio forçou
Nicolau a se contentar com sessenta por cento. Ele e Antônio Vicente
se comprometiam a auxiliar o amigo em qualquer terreno recebendo cada um quinze.
Os dez restantes seriam para as obras da matriz.
– Está bem. Mas não está de acordo com a vontade de
Padre Dito.
– Deixa-te de bobagens, homem! Tu modificas o sonho e acabou-se! Quem é
que vai provar que o padre disse coisa diversa à tua patroa? Olhe que
até me acode um trocadilho bem feliz: fica o dito do Padre Dito por
não dito e pronto! Otimíssimo, hem? Não há nada
como um bom negócio para pôr a gente alegre! Eu até sou
capaz de pagar uma cervejinha!
Nicolau recusou. E despediu os amigos. Precisava de sossego para estabelecer
um plano seguro a ser executado sem perda de tempo. Pensou o resto do dia,
pensou parte da noite e na manhã seguinte combinou a coisa com os sócios.
Os 18 de Copacabana foram convocados para as 19 horas em casa do major. Compareceram
dez. Nicolau arranjou mais uns malandros e marcharam todos incorporados para
casa de Zéquinha Silva. A fim de exigir a renúncia coletiva
da comissão. Ou ao menos a do presidente e tesoureiro que era o genro
do presidente. Mas Zéquinha Silva mandou dizer que não recebia
ninguém. E quando a coisa já estava quente chegaram Padre Zoroastro,
o Doutor Salomão e o Prefeito Idílio. Discutiram na rua mais
de meia hora. Afinal os 18 de Copacabana concordaram em que no dia seguinte
haveria uma reunião na Câmara Municipal a fim de se resolver
com calma e definitivamente o assunto, presentes as autoridades, interessados
e pessoas conspícuas de Jataí-Vila. Concordaram a muque (Paulista
não tem ânimo bélico! costumava afirmar o Prefeito Idílio)
porque o Doutor Salomão mandou chamar o destacamento.
Nicolau pensou a noite toda, gastou a manhã limpando o revólver,
encheu o tambor, pôs outras balas no bolso, beijou a mulher aflita,
respondeu carrancudo ao sorriso da vizinha sua comadre, tomou a Rua Siqueira
Campos (antiga Júlio Prestes), atravessou o Largo Juarez Távora
(antigo de São Paulo), deu um esbarrão distraído no Solicitador
Raimundo de Matos, não pediu desculpa, também não ouviu
o palavrão do solicitador, passou pelo Correio sem perguntar se havia
carta, entrou na Câmara Municipal com a braguilha da calça aberta.
– Abotoa aí! – disse o major.
A sala das sessões já estava apinhada. Padre Zoroastro na presidência
explicou os fins da reunião e deu a palavra para Antônio Vicente.
Este falou:
– Os que como nós costumam buscar no passado os ensinamentos para
o presente sabem que na Idade Média várias expedições
armadas chamadas Cruzadas deixaram a Europa para arrancar Jerusalém
das garras sacrílegas dos muçulmanos!
– Que é que nós temos com isso? – perguntou o genro de Zéquinha
Silva.
– Muita coisa! Vossa Excelência não me deixou terminar o paralelo
que pretendo esboçar! Com efeito, meus senhores, ao grito de Deus o
quer! os cristãos do Ocidente mais de uma vez se levantaram de armas
nas mãos para expulsar da Cidade Santa os infiéis do Oriente!
Pois bem! Nós, os fundadores da República Nova, também
nos levantamos ao grito de Revolução o quer! para exigir que
os membros da atual comissão das obras da matriz, infiéis de
24 de Outubro, sejam destituídos e imediatamente substituídos
pelos fiéis de Copacabana, pelos heróis…
Padre Zoroastro interrompeu:
– Eu acho que a discussão deve ser curta não é? – e
se cingir aos fatos. É. Devemos economizar nosso tempo.
– Também acho, excelentíssimo senhor presidente desta augusta
assembléia! E é por isso…
– O que o Senhor Antônio Vicente pede é a substituição
da comissão atual. Não é? E funda seu pedido no fato
do Senhor José Silva e demais membros da referida comissão não
serem revolucionários. Pois então. Já estamos cientes.
E eu vou dar a palavra ao Senhor José Silva para dizer o que julgar
conveniente a respeito. Fica bem assim. Não é? Tem a palavra
o Senhor José Silva.
Zéquinha Silva principiou dizendo que desconhecia revolucionários
em Jataí-Vila a não ser alguns de última hora. Colocava
pois a questão em outro terreno. Achava que se devia somente indagar
se a atual comissão era ou não composta de gente trabalhadeira
e honesta. Porque ser revolucionário só não adianta.
– Eu sou produto do meu trabalho honrado – gritou o major.
– Como é mesmo? – perguntaram.
– Ficam proibidos os apartes -~ falou Padre Zoroastro. – Não é
melhor? Continue, Seu Zéquinha.
Zéquinha provou documentadamente que a comissão presidida por
ele sempre se houve com diligência e probidade. Em todo o caso desistia,
por si e pelo genro, de continuar nela se a maioria dos presentes quisesse.
Mesmo porque confiança não se impõe.
Padre Zoroastro disse que era melhor recolher logo o voto dos presentes.
Os presentes (com exceção do major, Antônio Vicente e
Nicolau que queria a palavra para uma explicação pessoal) concordaram.
E Padre Zoroastro falou que antes de proceder à votação
desejava ler para governo de todos uma carta do bispo de Samburá. Na
carta do bispo dizia que, caso fosse destituída a comissão atual
que lhe merecia a mais absoluta confiança, não autorizaria outra
que se formasse a dirigir as obras da matriz e suspenderia estas até
melhores tempos.
– Ah! É assim? – berrou Nicolau. – O senhor, Padre Zoroastro, quer
fazer pressão? O senhor se engana! Não estamos mais sob o domínio
do perrepismo!
E a confusão se fez com injúrias pesadas. Mas Padre Zoroastro
ameaçou se retirar e conseguiu assim restabelecer a calma. Então
disse:
– Senhor Nicolau Foz, saiba que eu não fiz mais do que cumprir o meu
dever de pároco lendo a carta do excelentíssimo senhor bispo
desta diocese. Não é?
– Perfeitamente! – apoiaram.
– Mas se o senhor tem algum esclarecimento importante a dar e promete não
se exaltar eu lhe concedo a palavra por cinco minutos.
Nicolau de olhos fechados fungava forte entre o major e Antônio Vicente.
– Não tem nada a dizer? – perguntou Padre Zoroastro.
Nicolau abriu os olhos, viu o sorriso vitorioso de Zéquinha Silva,
pulou da cadeira, afirmou:
– Tenho! Tenho uma coisa a dizer!
– Não diga! – disse Antônio Vicente baixinho.
Nicolau se virou para o companheiro e falou:
– Digo!
– Diga de uma vez! – gritaram.
– Pois digo! Se a comissão atual não for destituída.
– Ela tem a seu favor a honestidade com que tem agido! aparteou o prefeito.
– Em face da revolução não há direitos adquiridos!
– berrou Antônio Vicente.
– Que asneira é essa? – falou o Doutor Salomão.
– Que que o senhor está dizendo? Asneira? São palavras textuais
do Ministro da Justiça!
– Está com a palavra o Senhor Nicolau Foz! – advertiu Padre Zoroastro.
– Se não destituírem a comissão do P.R.P. eu não
revelarei um segredo…
– Não revelaremos! – secundou o major excitadíssimo.
– … o qual segredo foi contado pelo falecido Padre Dito à minha
senhora!
E a confusão se fez de novo. E Padre Zoroastro de novo conseguiu restabelecer
a ordem.
– Temos o direito de saber, não é?
Então aos berros Nicolau soltou tudo menos o lugar onde se achava
escondido o tesouro. E Padre Zoroastro desistiu de restabelecer mais uma vez
a calma. Impossível. O genro de Zéquinha Silva subiu na cadeira
e começou a arengar sem ser ouvido. Antônio Vicente só
sabia dizer: Conheceram, papudos? Entre os que achavam que aquilo era uma
mistificação ignóbil e os que pensavam que por via das
dúvidas convinha verificar a coisa direito houve ameaças de
tiros. O turumbamba estava armado. Puxaram o genro de Zéquinha Silva
por uma perna, deram uns tabefes nele, ele rolou no chão gritando:
Basta assassinos! Padre Zoroastro com muito custo salvou o coitado e se retirou
com ele e Zéquinha abanando a cabeça.
– Sempre a maldita história do espiritismo estragando tudo! Não
é? A mãe, a sogra, a mãe de Esmeralda, a sogra do Nicolau,
já eram assim!
Aos poucos os mais chegados a Zéquinha Silva foram também saindo.
Disposto a aclarar o negócio do tesouro o Doutor Salomão em
pé na cadeira da presidência perguntou se estavam numa terra
de bugres. O silêncio respondeu que não. E o Doutor Salomão
se declarou pronto a servir de intermediário entre os grupos adversos
e fazer um acordo honroso.
– Não há acordo! – disse Nicolau.
Para o Doutor Salomão era chegada a hora de todos usarem da máxima
franqueza. O Senhor Nicolau Foz não queria fazer acordo. Prescindia
assim da colaboração alheia. Mas que essa colaboração
era indispensável para ele estava patente no fato do Senhor Nicolau
Foz, embora conhecendo o lugar onde se encontrava o tesouro, não haver
até então se apossado dele.
– Porque fui educado na escola da honestidade! Sou brasileiro legítimo!
De raça!
O Doutor Salomão insistiu em que a hora só admitia cartas na
mesa. A honestidade do Senhor Nicolau Foz estava acima de toda e qualquer
suspeita. Mas ele era de carne e osso como os outros. Se tivesse jeito de
se apossar sozinho do tesouro já teria feito. Achava pois conveniente
que antes de mais nada fosse revelado o lugar onde as cinco panelas de ouro
estavam escondidas. O que foi aprovado com calor. As considerações
do Doutor Salomão tinham abalado a assembléia. Nicolau sentia
sobre ele e através dele sobre o tesouro o olhar ávido dos dois
irmãos Tarantelli, do Tenente Messias Jesus Conrado, do Alcibíades
Valentim vulgo Ali-Babá, do Bibi, do Dadau, do Zizi, do Doutor Teotônio
de todos os presentes, de todos os ausentes. Canalhada. Felizmente estava
armado. Matava. Morria. Mas não dizia.
O Doutor Salomão sentara-se fixando Nicolau. A assembléia sentou-se
fixando Nicolau. O major se levantou:
– Somos todos pessoas de respeito e que se prezam, não é verdade?
Pois muitíssimo bem. O que há a fazer é entrar num entendimento
cordial com o nosso simpático amigo Nicolau a fim de que ele, certo
de que não será prejudicado, possa revelar o lugar em questão.
Pois não lhes parece assim?
– Compreendo – disse o Doutor Salomão. – O Senhor Nicolau impõe
condições.
– Condições não! – falou o major. – Ou melhor: existem
condições mas quem as impõe é o próprio
Padre Dito que Deus tenha.
– Que condições? – perguntou o Doutor Salomão.
– Razoáveis, muito razoáveis – disse o major.
– Justíssimas até. E é preciso que sejam respeitadas.
Está claro.
– Mas quais são elas? – insistiu o Doutor Salomão.
– O saudoso Padre Dito faz absoluta questão que noventa por cento
do dinheiro fique pertencendo ao nosso prestante amigo Nicolau empregando-se
os dez por cento restantes nas obras da matriz… Então? São
ou não…
– O quê?
– Está brincando!
– Bandalheira!
– Quanto leva no negócio?
– Que piratas!
– A assembléia gritava de pé. O Doutor Salomão tornou
a subir na cadeira, ameaçou dissolver a reunião com o destacamento,
pediu calma, obteve relativa. E falou:
– O Senhor Nicolau sustenta o que disse o Maior Mourão?
Nicolau disse:
– Sustento até morrer!
O major suspirou aliviado. O Doutor Teotônio disse:
– Eu proponho para harmonizar as coisas que o dinheiro seja todo entregue
ao benemérito governo provisório para ajudar o resgate da dívida
nacional!
Houve uma salva de palmas. Mas não unânime.
– Nunca! berrou Nicolau. – Ao menos cinqüenta por cento eu exijo pra
mim porque foi pra minha mulher que Padre Dito apareceu em sonho!
O major falou sincopado:
– Como? Cinqüenta por cento? Mas.. Ora essa! Cinqüenta por cento?
Não pode ser! Há aí engano! Não… não
é… não está certo!
Antônio Vicente se ergueu com altivez, foi até a porta, virou-se
antes de sair e disse:
– Com traidor eu não discuto!
O Prefeito Idílio disse:
– Eu proponho que cinqüenta por cento sejam para as obras da matriz
mesmo e cinqüenta por cento entregues à prefeitura para serviços
de utilidade pública!
– Nunca! – berrou Nicolau. – Cinqüenta por cento pra mim! O resto pode
ficar pro que quiserem!
Zizi disse:
– Eu proponho que o dinheiro inteirinho…
– Nunca! – berrou Nicolau. – A metade tem que ser pra mim!
O Tenente Messias disse engrossando a voz:
– Eu proponho que se obrigue o Nicolau a dizer já, mas já,
imediatamente, nem que seja à força, onde é que está
o cobre!
Nicolau quis falar mas não pôde. E os dois irmãos Tarantelli,
o Tenente Messias Jesus Conrado, o Alcibíades Valentim vulgo Ali-Babá,
o Bibi, o Dadau, o Zizi, o Doutor Teotónio, os outros, todos, até
o Doutor Salomão, até o Prefeito Idílio, até o
Major Mourão que já não sabia direito o que fazia, com
os punhos erguidos cercaram Nicolau. Aí Nicolau puxou o revólver.
– Cachorros! Ca… chorros!
Foi andando de costas até a porta, saiu correndo. Na rua o Afonso
Henriques esperava o pai de baratinha. Nicolau brandindo o revólver
entrou no auto. Mandou:
– Toca pro cemitério!
Afonso Henriques começou a chorar.
– Toca senão te mato!
O Ford pulava na Rua da Expiação. Afonso Henriques suplicava:
– Vamos… vamos voltar, Seu Nicolau! Por favor! O senhor está…
está tão nervoso!
Nicolau dizia:
– Toca, seu covarde!
Não esperou o Ford parar. Saltou, tropeçou, quase caiu, entrou
no cemitério de revólver na mão. Deu poucos passos, parou.
Estava tonto. Olhava de um lado para outro. Pensava: Que é que eu vim
fazer, meu Deus?
Com um enxadão Crispim surgiu por detrás da capela. Longe ainda.
Nicolau deu com ele, correu para o túmulo do Padre Dito, sem largar
o revólver começou a desmanchar um canteirinho. Crispim correu
também gritando:
– Que é isso, Seu Nicolau? Não faça isso!
Nicolau viu Crispim já perto, pulou na frente do túmulo, apontou
para o gavetão, atirou.
– Larga esse revólver, Seu Nicolau!
Nicolau enfrentou Crispim, disse com voz sumida:
– Me dá essa enxada!
– Eu dou se o senhor largar o revólver!
– Me dá essa enxada! Me dá essa enxada!
– Não se chegue, Seu Nicolau!
– Me dá essa enxada! Me dá essa enxada!
Nicolau ia avançando, Crispim recuando.
– Por que que o senhor quer?
– Me dá essa enxada!
A voz sumia cada vez mais, o revólver tremia, os olhos se enchiam
de lágrimas.
– Eu mato! Me dá essa enxada!
Mal podia suster o revólver, segurou com as duas mãos. Crispim
recuou até o túmulo do padre. Com o enxadão erguido.
– No túmulo do Padre Dito o senhor não toca, Seu Nicolau!
– Eu te mostro!
Mas antes de apertar o gatilho, levou com o enxadão no alto da cabeça,
caiu com os miolos de fora.
– Acuda! Acuda! – deu de gritar Crispim.
Foi quando no portão do cemitério pararam vários automóveis
e seguida dos dois irmãos Tarantelli, do Tenente Messias Jesus Conrado,
do Alcibíades Valentim vulgo Ali-Babá, do Bibi, do Dadau, do
Zizi, do Doutor Teotônio, todos, até o Prefeito Idílio
até o Doutor Salomão, até o Major Mourão com o
chapéu de Nicolau na mão (O doido esqueceu a cabeça!),
Dona Esmeralda entrou de carreira. Deu um grito, se jogou sobre o cadáver.
Mas não chamava pelo marido não. Dizia só:
– Ah minha mãe, minha mãe!
MISS CORISCO
Embora alguns nacionalistas teimassem em chamá-la de senhorita o título
oficial era Miss Corisco. Dez casas no bairro tomavam conta da igreja pobre
que primeiro nem caixa de esmolas tinha. Depois compraram unia caixa. Mas
nunca viu um tostão porque o dinheiro que havia se gastou todo com
ela. Miss Corisco foi eleita pelo sistema de exclusão. A filha do Bentinho
era sardenta. A irmã do João tinha um defeito nas cadeiras.
Logo de saída a Conceição se impôs: foi aclamada
Miss Corisco.
Aí deu uma entrevista para o O Cachoeirense. Perguntaram: Qual a maior
emoção de sua vida? Respondeu: Três: minha primeira comunhão.
uma fita do Rodolfo Valentino que eu vi na capital do meu querido Estado e…
não conto porque é segredo. Respeitamos o segredo (escreveu
o jornal) pois naturalmente encobria urna linda história de amor. Depois
perguntaram: Qual o seu maior desejo? Respondeu: Sempre ver o Brasil na vanguarda
de todos os empreendimentos. Resposta admirável (comentou O Cachoeirense)
que revela em Miss Corisco uma patriota digna de emparelhar com Clara Camarão,
Anita Garibaldi, Dona Margarida de Barros e outras heroínas da nacionalidade.
Finalmente perguntaram: O que pensa do amor? Respondeu: O amor, minha fraca
opinião, é uma cousa incompreensível mas que governa
o mundo. Palavras (acentuou o órgão) que encerram uma profunda
filosofia muito de admirar atentos o sexo e a juventude da encantadora Miss.
Miss Corisco foi retratada em várias posições: com um
cachorrinho no colo, apanhando rosas no jardim, as costas das mãos
sustentando o queixo. Deu também um autógrafo. Papel cor-de-rosa
de bordas douradas, risquinhos de lápis para sair bem direitinho e
as letras se equilibrando neles. O cunhado ditou. Os representantes do O Cachoeirense
se retiraram. Miss Corisco foi varrer a cozinha como era de sua obrigação
todos os dias inclusive domingos e feriados e na manhã seguinte tomou
a jardineira em companhia do irmão casado para comparecer na cidade
perante o júri estadual.
*
O Cine-Teatro Esmeralda estourava de tão cheio. No palco atrás
do júri a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini tocava
dobrados. De minuto em minuto a assistência entusiasmada erguia vivas
ao Brasil e à raça. As candidatas desfilaram vestidas com apurado
gosto. Os juizes eram cinco: um brasileiro, dois italianos, um filho de italiano
e um português. Predominava neles o espírito nacionalista. Queriam
escolher um tipo bem brasileiro. O Doutor Noé Cavalheiro desenhou em
dois traços incisivos o tipo-padrão: boca grande e olhos ternos.
Miss Corisco foi eleita Miss Paraíba do Sul por quatro votos.
Ouviu então o primeiro discurso que foi proferido com emoção
que lhe embargava a voz e lenço de seda na mão, pelo Doutor
Noé Cavalheiro, segundo promotor público. Principiou este fazendo
o elogio da beleza notadamente da beleza feminina. Falou do culto que na antiga
Grécia se votava à formosura física. Acentuou depois
a desvantagem de uma mens sana desde que não seja num corpore sano.
Disse que a beleza da mulher se tem provocado guerras e catástrofes
tem também mais de uma vez contribuído para o progresso geral
dos povos, citando vários exemplos históricos. Prosseguiu afirmando
que o Brasil deveu muito do amor que lhe dedicou Dom Pedro I à influência
benéfica da Marquesa de Santos. Referiu-se à competência
do júri, à sua isenção de ânimo e confessou
que a única nota dissonante tinha sido ele orador, o que provocou os
protestos unânimes da assistência. Perorando entoou um hino inflamado
à peregrina formosura de Miss Corisco. Disse então: Unindo à
beleza clássica da Vênus de Milo a sedução estonteante
da lendária rainha de Nínive, Miss Paraíba do Sul, maior
do que Beatriz e mais feliz do que Natércia, conquistou o coração
de toda uma região! A Pátria não é somente, como
soem pensar certos espíritos imbuídos de materialismo, a lei
que garante a propriedade privada! A Pátria é mais alguma cousa
de sublime e divino! A Pátria é a estrela que nos contempla
do céu e a mulher que nos santifica o lar! A Pátria sois vós,
Miss Paraiba do Sul, são os vossos olhos onde se espelham todas as
forças viris da nacionalidade! Para nós, patriotas conscientes
e eternos enamorados da Beleza, Miss Paraiba do Sul é neste momento
o Brasil! (Aplausos prolongados. O orador é vivamente cumprimentado.
Vozes sinceras gritam: Bis! Bis!)
Um a um os membros do júri beijaram as mãozitas róseas
e espirituais de Miss Paraíba do Sul enquanto a Corporação
Musical C. Gomes-G. Puccini, sob a regência do Maestro Pietro Zaccagna,
atacava vigorosamente a imortal protofonia do Guarani.
Muito vermelha e batendo com ar ingênuo as pálpebras aveludadas
Miss Paraíba do Sul concedeu então as primeiras entrevistas.
Externou sua opinião sobre a futura sucessão presidencial, a
cultura da laranja, a questão religiosa no México, Mussolini,
Padre Cícero, a estabilização cambial, Victor Hugo, Coelho
Neto, os perfumes nacionais, a sentença que absolveu Febrônio,
o diabo. No Grande Hotel Mundial era uma romaria de manhã à
noite. Muito afável Miss Paraíba do Sul recebia toda a gente
com um encantador sorriso brincando nos lábios purpurinos. O camareiro
do apartamento chegou a declarar quando entrevistado por um jornalista: É
de uma amabilidade extraordinária. Recebe todos. Quem bate no quarto
entra. Mas o irmão pelo sim pelo não caiu de bofetadas em cima
do camareiro. O caso foi parar na policia onde o prestígio de Miss
Paraíba do Sul conseguiu arranjar tudo do melhor modo possível.
Puseram à sua disposição um automóvel fechado,
uma máquina de escrever portátil e um binóculo de corridas.
Todos os dias choviam os presentes. O futuro arquiteto Barros Jandaia pôs
gratuitamente seus serviços profissionais às ordens de Miss
Paraíba do Sul. O cabeleireiro não lhe quis cobrar nada e ainda
por cima lhe deu vinte vales dando direito a outras tantas lavagens com Pixavon.
A Livraria Cosmopolita ofereceu um rico exemplar do Paraíso Perdido.
E assim por diante.
Miss Paraíba do Sul foi recebida em audiência especial pelo
Presidente do Estado, respondeu com muita graça às perguntas
de S. Exa. e distribuiu cigarros Petit Londrinos (ovalados) aos presos da
cadeia pública. Visitou também a Câmara Municipal. Aí
foi saudada por um vereador que a comparou a mimosa violeta dos nossos vergéis
que não só atrai pela beleza como prende pelo seu perfume e
conquista pela sua modéstia exemplar.
Foram quinze dias bem cheios. Repletos. Não houve um minuto de folga.
Miss Paraíba do Sul embora delicadamente deixou transparecer que a
glória era um fardo pesado demais para seus ombros frágeis.
E seguiu de vagão especial para a capital do país Todas as cidades
do percurso enviavam à estação o juiz de direito, o promotor,
o delegado, o prefeito, o coletor federal e o sacristão da matriz que
se incumbia dos foguetes. O trem apitava, as palmas estalavam com o vívório,
o trem seguia. Miss Paraíba do Sul chegou ao Rio com uma dor de cabeça
que não agüentava mesmo.
*
Começou a torcida brava. Para disfarçar, festas e mais festas.
E sonetos na seção livre dos jornais. E bilhetes de apaixonados
anônimos. E baile na torpedeira Paraíba do Sul. E retratos de
todo o jeito nas revistas. E chás com as rivais. E tesouradas gostosas
nas rivais. E entrevistas, entrevistas, entrevistas. Um repórter mais
audacioso penetrou no quarto de Miss Paraíba do Sul e tirou uma fotografia
muito original. Com efeito. No dia seguinte o povo carioca abrindo o jornal
deu de cara com um pé de sapato enquadrado pela seguinte nota: – Enquanto
Miss Paraíba do Sul jantava conseguimos penetrar no seu aposento e
cometemos a deliciosa maldade de fotografar um perfumado sapatinho que se
encontrava sobre o toucador. Levamos a nossa indiscrição ao
ponto de verificarmos o número; era trinta e três e meio! Para
encanto dos nossos leitores publicamos um clichê do sapatinho da nova
Maria Borralheira da Graça e da Beleza.
Cousas assim comovem. Miss Paraíba do Sul deu ao repórter como
lembrança o famoso sapatinho. Mesmo porque (observou muito bem o irmão
casado) já estava imprestável com a sola até fura-não-fura.
Enorme multidão teve a felicidade de vê-lo exposto na redação
do jornal. Não houve um parecer discordante: era de fato um amor de
sapatinho.
Enfim vieram as provas do concurso. Miss Paraíba do Sul passeou de
roupa de banho para os velhos do júri apreciarem bem as formas dela
e submeteu-se ao exame antropométrico no Museu Nacional. Sua ficha
foi discutida nas sociedades científicas, empolgou a imprensa, provocou
desinteligências entre pessoas que se davam desde os bancos escolares.
Tudo inútil porém. Miss Paraíba do Sul não foi
considerada a mais digna de representar o Brasil no torneio de Galveston.
Chorou é verdade. Não se pode negar. Chorou. Mas isso no hotel.
Em público não perdeu a linha. Era toda sorriso diante de Miss
Brasil. Entrevistada declarou que a escolha do júri tinha sido justa.
Admiradores seus protestaram com energia. Um grupo de estudantes deitou manifesto
a seu favor. Ela sorria agradecida e dizia cousas muito amáveis a respeito
de Miss Brasil. Foi consagrada a Miss Pindorama, a Miss Terra de Santa Cruz,
a Miss Simpatia Verde-Amarela. Todos reconheceram que a vitória moral
lhe pertencia. Era um consolo.
*
De volta à capital do seu Estado no entanto ela resolveu mudar de
atitude. Criticou duramente a decisão do júri. Miss Brasil?
Uma beleza sem dúvida. Mas beleza impassível. E que vale a formosura
sem a graça? Depois sem gosto algum. Cada vestido que só vendo.
Todos de carregação. E era visível nos seus traços
a ascendência estrangeira. O Brasil seria representado em Galveston.
A raça brasileira não. E por aí foi. Nem os organizadores
do concurso escaparam. Amáveis sim. Porém parciais. Um deles,
careca barbado, vivia amolando as candidatas com galanteios muito bobos. Por
isso mesmo levou um dia a sua. Uma das concorrentes lhe perguntou: Por que
não corta um pedaço da barba e gruda na cabeça para fingir
de cabelo? Disse isso sim. Como não. Na cara. Como não. E perto
de gente. Ora se. Ele ficou enfiado.
Corisco recebeu de luto na alma a sua Venus. O pai de Miss Paraíba
do Sul sacudiu a cabeça murmurando: Que injustiça! Que injustiça!
Inutilmente ela e o irmão casado falavam na vitória moral, na
simpatia do povo, nos protestos da imprensa. Ela contava: Uma vez quando saía
do hotel um popular me disse que eu era a eleita do coração
dos brasileiros! Então, papai, que tal?
Mas o velho não se convencia. É. Muito bonito. Realmente. Mas
os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Aí é que
está. Os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Injustiça.
Injustiça. O Brasil vai de mal a pior. Mas depois era preciso jurar
que não, que o Brasil ia muito bem, que a vitória moral era
mais que suficiente, que dinheiro não faz a felicidade de ninguém
porque Miss Corisco, Miss Paraíba do Sul, Miss Pindorama, Miss Terra
de Santa Cruz, Miss Simpatia Verde-Amarela começava a chorar.
Contos Avulsos
Em Caguaçu os revolucionários. Em São Tiago os legalistas.
Entre os dois indiferente o rio Jacaré. O delegado regional de Boniteza
mandara recolher as barcas e as margens só podiam mesmo estreitar relações
no infinito. De dia não acontecia nada. Os inimigos caçavam
jararacas esperando ataques que não vinham. Por isso esperavam sossegados.
Inutilmente os urubus no vôo lindo deles se cansavam indo e vindo de
bico esfomeado. Os guerreiros gozavam de perfeita saúde.
De noite tinha o silêncio. Qualquer barulho assustava. Os soldados
de guarda se preparavam para morrer no seu posto de honra. Mas era estalo
de árvores. Ou correria de bicho. A madrugada se levantava sem novidades.
Por isso a luta entre irmãos decorria verdadeiramente fraternal.
Porém uma manhã chegou a Boniteza a notícia de que do
lado de Caguaçu qualquer coisa de muito grave se preparava. Tropas
marchavam na direção do rio trazendo canhões, carros
de combate, grande provisão de gases asfixiantes comprada na Argentina,
aeroplanos, bombas de dinamite, granadas de mão e dinheiro, todos esses
elementos de vitória. Um engenheiro russo construiria em dois tempos
uma ponte sobre o Jacaré e o resto seria uma corrida fácil até
a capital do país. Desta vez a cousa iria mesmo.
Boniteza se surpreendeu mas não se acovardou. Com rapidez e entusiasmo
começou a preparar tudo para a defesa. Ao longo do rio se abriu uma
trincheira inexpugnável. Caminhões descarregaram tropas em todos
os pontos. As metralhadoras foram ajustadas, os fuzis engraxados, os caixotes
de munições abertos. Costureiras solícitas pregaram botões
nas fardas das praças mais relaxadas. Nas barbearias os vidros de loção
estrangeira se esvaziaram na cabeça dos sargentos. Era de guerra o
ar que se respirava.
A noite encontrou os combatentes a postos. Na trincheira eles velavam apoiados
nos fuzis. Sentinelas foram destacadas para vigiar a margem inimiga. Entre
elas o sorteado Leônidas Cacundeiro.
*
Era infeliz porque sofria de dor de dentes crônica, piscava sem parar
e gaguejava. Foi para o seu posto de observação, deitou-se de
barriga num cobertor velho. Só o busto meio erguido, ficou olhando
na frente dele de fuzil na mão. Tinha ordens severas: vulto que aparecesse
era mandar tiro nele. Sem discutir.
Leônidas Cacundeiro deu de pensar. Pensava uma cousa, o ventinho frio
jogava o pensamento fora, pensava outra. Tudo quieto. Ainda bem que havia
luar. Do alto da ribanceira ele examinava as águas do Jacaré.
Ou então erguia o olhar e descobria nas nuvens a cabeleira de um maestro,
um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas.
Agora o frio era o frio da madrugada. O Doutor Adelino costumava dizer: Quando
vocês sentirem frio pensem no Pólo Norte e sentirão logo
calor. Pensou no Pólo Norte. Lembranças vagas de uma fita vista
há muito tempo. Gelo e gelo e mais gelo. No meio do gelo um naviozinho
encalhado. Homens barbudos, jogando fumaça pela boca, encapotados e
enluvados, com cachorros felpudos. Duas barracas à esquerda. E aquela
branquidão. Forçou bem o olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas.
Um urso em pé com uma bandeirinha na pata direita, outra bandeirinha
na pata esquerda. Nenhuma arma.
Deu um berro: – Alto!
Ficou em posição de tiro. O soldado não podia mesmo
dar um passo à frente senão caía no rio. Começou
a mexer com os braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra, levantava
as duas.
*
Leônidas pensou: – Que negócio será aquele?
Foi chamar o sargento. O sargento veio, olhou muito, disse: – Que negócio
será aquele? Vá chamar o tenente!
Leônidas foi chamar o tenente, veio correndo com ele. O tenente limpou
os óculos com o lenço de seda, verificou se o revólver
estava armado, olhou muito, falou coçando a nuca: – Que negócio
será aquele? Vá chamar o major!
Leônidas partiu em busca do major. No acampamento não estava.
Foi até Boniteza. Encontrou um cabo. O cabo mandou Leônidas bater
na casa da viúva Dona Birigüi ao lado do Correio. O major apareceu
na janela com má vontade. Resmungou: – Já vou. Leônidas
comboiou o major até o rio, o major teve uma conferência com
o tenente, subiu num pé de pitanga, falou lá de cima: – Que
negócio será aquele? Vá chamar o comandante!
O anspeçada primeiro não queria acordar o comandante. Eram
ordens. Leônidas insistiu firme e o comandante teve de pular da cama.
Leônidas fazendo continência explicou o caso. O coronel disse:
– Às seis estou lá.
*
Eram cinco, Leônidas voltou com o recado. O major, o tenente, o sargento
estavam nervosos. De vez em quando um deles chegava mais perto da margem e
o soldado do outro lado recomeçava a ginástica: bandeirinha
na frente, bandeirinha atrás, bandeirinha apontando o céu, bandeirinha
apontando o chão. Ia repetindo com uma paciência desgraçada.
Então já havia passarinhos cantando, barulho de vida em Boniteza,
só a cara amarrotada dos insones não resplendia na luz da manhãzinha.
Toques de cometa chegavam de longe despedaçados. Na banda de lá
do Jacaré o homem da bandeirinha habitava sozinho a paisagem com uma
vontade louca de tomar café bem quente e bem forte. Era a hora da raiva
e todos se espreguiçavam com o sol que chegava.
O Coronel Jurupari ouviu calado a narração do estranho caso.
Fez em seguida duas ou três perguntas hábeis com o intuito de
esclarecê-lo tanto quanto possível. Chamou de lado o major e
o tenente, os três discutiram muito, emitiram suas opiniões sobre
assuntos de estratégia e balística que pareciam oportunos naquela
emergência, fumaram vários cigarros. Afinal o coronel entre o
major e o tenente avançou até a margem de binóculo em
punho. Assim que ele assentou o binóculo, da outra banda do Jacaré
recomeçou a dança das bandeirinhas. O coronel olhando. A sua
primeira observação foi: – É um cabo e não tem
má cara. Depois de uns minutos veio a segunda: – Hoje é dor
de cabeça na certa com este noroeste. A terceira alimentou ainda mais
a já angustiosa incerteza dos presentes: – Mas que negócio será
aquele? Daí a uns instantes repetiu: – Mas que diabo de negócio
será mesmo aquele? Porém acrescentou numa ordem para o Leônidas:
– Vá chamar o sinaleiro!
O sinaleiro veio chupando o nariz. Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel
e um lápis do bolso traseiro da calça, ajoelhou-se com uma perna
só, pôs o papel na coxa da outra, passou a ponta do lápis
na língua, começou a tomar nota. Dava uma espiada, as bandeirinhas
se mexiam, escrevia. O Coronel Jumpari, o major, o tenente, o sargento e o
sorteado Leônidas Cacundeiro esperavam o resultado de armas na mão
e ansiedade nos olhos.
O sinaleiro se levantou, ficou em posição de sentido e com
voz pausada e firme leu a mensagem enviada pelos revolucionários de
Caguaçu: Saúde e Fraternidade.
O coronel mandou responder agradecendo e retribuindo. Ex-corde.
APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA
O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belém.
Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas
na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De
vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava.
E os vagões no escuro.
Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes
de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma
chupada para fazer mais luz. Via mal-e~mal a data e ia guardando no bolso.
Havia sempre uns que gritavam:
– Vá pisar no inferno!
Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os
vagões sacolejando.
O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não
tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando
a escuridão conversavam e até gesticulavam por força
do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só
as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito.
Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante
as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém
estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já
estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari.
————
Porém aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco
do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego
baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um
concerto em Bragança. Parara em Maguari. Voltava para Belém
com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca guia dele só dava uma
folga no bocejo para cuspir.
Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário
e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então
principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo,
vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço
do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma cousa nele. Perguntou
para o rapaz:
– O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?
O rapaz respondeu:
– Não sei: nós estamos no escuro.
– No escuro?
– É.
Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem.
Perguntou de novo:
– Não tem luz?
Bocejo.
– Não tem.
Cuspada.
Matutou mais um pouco. Perguntou de novo:
– O vagão está no escuro?
– Está.
De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou
a grita dele assim:
– Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não
acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária!
A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz!
E a luz não foi feita. Continuou berrando:
– Luz! Luz! Luz! Só a escuridão respondia.
Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite:
– Que é que há?
Baiano velho trovejou:
– Não tem luz!
Vozes concordaram:
– Pois não tem mesmo.
*
Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho.
Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente
tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No
preço da passagem está incluída a luz. O governo não
toma providências? Não torna? A turba ignara fará valer
seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é
bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não.
Chega um dia e a cousa pega fogo.
Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs
que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:
– Ele é pobre como a gente.
Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música
e discursos.
– Foguetes também?
– Foguetes também.
– Be-le-za!
Mas João Virgulino observou:
– Isso custa dinheiro.
– Que é que se vai fazer então? Ninguém sabia. Isto
é: João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari,
tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha.
Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela
janela e disse:
– Dois quilos de lombo!
Cortou outro e disse:
– Quilo e meio de toicinho!
Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos
carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria.
Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens
partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.
– Quantas reses, Zé Bento?
– Eu estou na quarta, Zé Bento!
Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe
do trem correu quase que chorando.
– Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?
Baiano velho respondeu:
– É por causa das trevas!
O chefe do trem suplicava:
– Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas.
João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos.
– Aqui ainda tem uns três quilos de colchão-mole!
O chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando.
Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação
de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho
tocava a marcha de sua lavra chamada Às Armas Cidadãos! O taioquinha
embrulhava no jornal a faca surripiada na confusão.
Tocando a sineta o trem de Maguari fundou na estação de Belém.
Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair, foi
o chefe muito pálido.
*
Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes.
Era assim o titulo de um: Os Passageiros no Trem de Maguari Amotinaram-se
Jogando os Assentos ao Leito da Estrada. Mas foi substituído porque
se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das
famílias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre
populares.
Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para
apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes
da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros.
Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia
um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:
– Qual a causa verdadeira do motim?
O homem respondeu:
– A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.
O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:
– Quem encabeçou o movimento?
Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:
– Quem encabeçou o movimento foi um cego!
Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez
porque com a autoridade não se brinca.
Mana Maria
– Vá perguntar pra mana Maria.
Era assim desde que a mãe morrera. Era assim a propósito de
tudo. Mana Maria é que resolvia, mandava, punha e dispunha, fazia,
desfazia. E Ana Teresa obedecia.
Quando Dona Purezinha morreu, deixou Ana Teresa com dez anos. Tinha duas
tranças compridas e com uma delas quis enxugar as lágrimas diante
do cadáver da mãe. E foi ai que sentiu pela primeira vez a nova
autoridade. Mana Maria deu um puxão na trança e lhe pôs
um lenço na mão:
– Enxugue com o lenço.
Lenço seco.
De fato a coragem de mana Maria foi uma coisa que admirou toda a gente. Não
derramou uma lágrima. Não teve um gesto, uma expressão
de sofrimento. Ninguém esperava tanta fortaleza de ânimo num
corpo tão franzino.
Dona Purezinha agonizou seis meses com um cancro no piloro. Era gorda, foi
ficando magrinha. Também era boa, paciente, e foi ficando má,
impertinente. Parecia que tudo nela morria, menos os olhos que enxergavam
uma sombra de poeira na cômoda e os ouvidos que percebiam lá
longe, na cozinha, o bater de um prato na pia.
Em torno dela foi se fazendo um silêncio que já era de túmulo.
Primeiro se suprimiu o piano de Ana Teresa. Para ela foi uma alegria. Mesmo
a aula de Português, Aritmética, Geografia, História do
Brasil, Religião, Desenho e Caligrafia, tudo ensinado por Dona Mercedes,
passou para o porão.
No porão vivia. Subia para almoçar, lanchar. jantar, dormir.
Fora disso, mal punha os pés na escada que conduzia â copa, uma
criada, a irmã, o pai, alguém falava:
– Não venha que mamãe está doente.
Era o estribilho. Pegava no voador, rodava dez metros no cimento do jardim,
uma janela se abria:
– Não faça barulho! Mamãe está doente!
Na mesa, não queria sopa ou queria pão com manteiga e açúcar:
– Seja boazinha. Olhe que mamãe está doente.
Aos poucos se habituou. Ficava no quarto grande do porão horas e horas
vendo a arrumadeira passar roupa. Também ia visitar o galinho garnisé.
Corria atrás dele, ele não se deixava pegar, ela dizia:
– Não faça barulho que mamãe está doente.
Até que chegou também o dia do garnisé. O canto dele
incomodava Dona Purezinha. Foi para a faca. E Ana Teresa nem direito de chorar
teve porque mamãe estava doente.
Já era sossegada de natureza, ficou uma santinha na opinião
da cozinheira. Parecia gente grande. Amorteceram com algodão a campainha
da entrada, a campainha do telefone. Todos se entendiam por gestos. Joaquim
Pereira pensou até em imitar o vizinho senador que quando a mulher
esteve para morrer arranjou uns grilos que não deixavam os choferes
tocarem cláxon nas imediações. Mas desprovido de qualquer
influência política desistiu da idéia. Ana Teresa passou
a fazer parte do silêncio: se perturbava quando falavam perto dela.
Quase no ouvido da professora segredava as capitais dos Estados do Brasil.
E ficou com o hábito de responder movendo a cabeça, sacudindo
os ombros, movendo as mãos. A boniteza dela não entristeceu:
ficou indiferente, perdeu a vivacidade, ficou distante.
Uma madrugada mana Maria acordou Ana Teresa. Como estava, de camisola e descalça,
foi levada até o quarto de Dona Purezinha. O pai a ergueu nos braços,
molhou de lágrimas o rosto dela, abraçou forte, beijou muito
a filha. Depois falou:
– Venha beijar sua mãezinha que foi pro céu. No quarto estavam
um padre, o médico, a enfermeira, tio Laerte e a mulher dele, tia Carlota.
Ana Teresa sacudida pelo choro agarrou na mão da morta, deu um beijo.
Porém silencioso. Alguém falou: – "Pobrezinha". Com
certeza tia Carlota que a tirou do quarto. Ana Teresa viu no fundo do corredor
uma vela acesa nas mãos de mana Maria. Teve medo, dobrou o braço
no rosto. Voltou carregada pro seu quarto. Ainda ouviu mana Maria falar:
– É bom que tio Laerte vá encomendar o caixão.
Na hora do enterro é que mana Maria não a deixou enxugar os
olhos com a trança. Foi o primeiro gesto de mando. E por isso Ana Teresa
nunca mais esqueceu dele. Era um quadro que ela via sempre. Sobretudo de noite,
no escuro, de olhos fechados, na cama: a sala repleta, o caixão muito
alto e florido, a cara barbuda do pai, o jeito duro com que mana Maria lhe
puxou a trança, lhe deu o lenço. Lenço seco.
E três dias depois, logo de manhã cedo, Ana Teresa teve a revelação
física de mana Maria. Até então nunca reparara direito
na irmã. Quer dizer: reparara sim, mas sem compreender. Nessa manhã
ela principiou a compreender. Pela primeira vez a viu de óculos. E
isso já foi uma surpresa. Nunca suspeitara da existência daqueles
óculos de aros de tartaruga. Nunca, nunca mana Maria pusera os óculos
na presença dela. Pois mana Maria a recebeu assim, de óculos.
Estava com a costureira e mandara chamar Ana Teresa para tomar as medidas.
Ana Teresa ficou em pé, no meio do quarto, imóvel, com os olhos
nos óculos. A arrumadeira entrou, Ana Teresa olhou para ela e viu também
nos olhos dela a mesma surpresa dos óculos. Nunca, nunca mana Maria
aparecera de óculos para ninguém. Ana Teresa se deixou dominar
por aqueles vidros redondos, aqueles aros de tartaruga manchada. Sentiu a
autoridade daqueles óculos.
Aumentou nela o respeito que já tinha pela irmã mais velha
e que a levava instintivamente a chamá-la mana Maria. Não Maria
simplesmente. A irmã, quinze anos mais velha, impôs-se desde
logo ao respeito de Ana Teresa. E esse respeito se exprimiu como de regra
por um título: mana Maria valia por Doutora Maria, Excelentíssima
Senhora Baronesa Maria, Sua Majestade a Rainha Maria. Sempre a chamou assim.
Ana Teresa olhava os óculos. Depois disfarçou, olhou as mãos.
Mãos magras, unhas bem tratadas, mãos esquisitas. Magras demais.
Depois bruscas. Faziam tudo depressa. Ajeitavam o cabelo com um repelão.
Ana Teresa olhou os cabelos. Eram ondeados. Eram pretos. Pretos demais. E
não eram cortados. Todas as moças usavam os cabelos cortados.
Todas. Mana Maria não usava. Mana Maria enrolava os cabelos na nuca.
E o penteado quase cobria as orelhas. Só se viam os lóbulos.
As sobrancelhas eram grossas. Grossas demais. E o nariz também era
ossudo demais. E os dentes? Os dentes não se viam. Mana Maria falava
sem mostrar os dentes. Ana Teresa não achava mana Maria bonita.
Mas aqueles óculos, passada a surpresa, eram bonitos. Iam bem para
mana Maria. Ana Teresa não sabia direito o que era mas já agora
lhe parecia que mana Maria sempre usara aqueles óculos. E ficava melhor
assim. Ficava completa.
Mana Maria olhou num papelzinho, falou pra costureira:
– O uniforme pra sair tem gola branca.
Uniforme? Ana Teresa não compreendeu. Nem mana Maria lhe explicou
nada. Só dias depois é que o pai com ela no colo contou tudo:
– É muito bom. É o melhor colégio de São Paulo.
As internas são tratadas como filhas.
Falou outras coisas, reparou nas lágrimas da filha, enxugou, parecia
triste. E disse:
– Eu por mim não punha você interna. Mas sua irmã quer.
Ela é que é a mãezinha de meu bem agora. Precisa fazer
como ela quer, obedecer em tudo, ser bem boazinha pra ela. Como pra mamãe
antes de ir pro céu. Igualzinho.
Foi para o colégio. Mana Maria a deixou entre a madre superiora e
a madre prefeita no dia seguinte ao da missa de sétimo dia. Passaram
antes pelo cemitério. Colocaram umas flores entre as coroas murchas
do enterro, rezaram, tocaram para o colégio. Mana Maria corajosa como
sempre. Conversou com a superiora, pagou o primeiro semestre adiantado, virou-se
pra irmã:
– Então até domingo.
Ana Teresa com os olhos chorosos deixou-se beijar na testa, beijou mana Maria
no rosto, abraçaram-se. Mana Maria se desprendeu com uma recomendação:
– Tenha juízo.
No domingo voltou com o pai. Ana Teresa recebeu-os com uma reverência:
– Bonjour; mon cher papa. Bonjour, ma soeur.
– Já fala francês?
Joaquim Pereira ficou radiante. Mana Maria falou quase todo o tempo com a
superiora. Na saída disse para a irmã:
– Você precisa caprichar melhor no desenho.
Ana Teresa prometeu caprichar. E na despedida repetiu a reverência:
– Au revoir, mon cher Papa. Au revoir, ma soeur.
Voltando para casa mana Maria repetiu as informações da superiora:
ótimo comportamento e ótima aplicação, havendo
o que dizer somente quanto ao desenho. Joaquim Pereira se admirou:
– Por que que você não disse pra menina os elogios?
Mana Maria respondeu:
– Eu sei o que faço.
Joaquim Pereira reprovou em silêncio aquela dureza. E para dizer alguma
coisa:
– Que é que você acha de eu comprar um Ford?
Mana Maria perguntou:
– Pra quê?
– Que pergunta. Pra quê? Pra usar.
Mana Maria como que esboçou um sorriso. Joaquim Pereira não
disse mais nada.
2
Diante da mulher conservou sempre uma atitude de inferioridade. Morta a mulher
não teve dificuldade nenhuma em reconhecer na filha mais velha a herdeira
de Dona Purezinha, no governo doméstico.
Quando conheceu Dona Purezinha era terceiro-escriturário do Serviço
Sanitário. Seu pai, que era agente de seguros e juiz de paz da Consolação,
lhe arranjou esse emprego dias antes de morrer.
Joaquim herdou uma casa, uma caderneta da Caixa Econômica, acusando
um saldo de sete contos e coisinhas, um seguro de vinte contos e os nove volumes
encadernados da Genealogia Paulistana de Luís Gonzaga da Silva Leme.
O pai também enviuvara moço. Era homem austero e tratava o
único filho severamente.
Tinha dois orgulhos que manifestava cem vezes por dia, com e sem propósito:
– Você vem dizer isso a mim, descendente de bandeirantes? A mim, que
fui amigo do Coronel Mursa? Ora tire seu cavalo da chuva!
Joaquim guardava do pai uma lembrança nada afetuosa. Ela vinha sempre
com uma bofetada e uma desilusão. Bofetada, porque certa vez durante
o jantar se permitira com a ingenuidade dos dezesseis anos pôr em dúvida
a justiça de uma sentença de que o pai se vangloriava. O juiz
de paz estourou:
– Como, seu cachorrinho? Eu descendente de bandeirantes, amigo do Coronel
Mursa, receber lições de um frangote! Cale essa boca, já,
imediatamente!
Joaquim se dispôs a não dar um pio. Mas o pai continuou a falar,
a gritar, a invocar a sua progênie bandeirante e a sua amizade com o
Coronel Mursa, ele se irritou e disse muito atrevido:
– Ninguém nunca ouviu falar nesse Coronel Mursa que o senhor…
Aí levou a bofetada. Na boca. E foi trancafiado no quarto. Ouviu o
pai dar um berro com a criada. Depois as passadas dele pelo corredor indo
e vindo. Depois um silêncio. Passos de novo. Parou. Abriu a porta. Estava
mais calmo e estendeu ao filho uma folha de jornal amarelecida, com as marcas
das dobras bem acentuadas:
– Leia para se instruir. No fundo a culpa não é sua, mas dos
professores que não lhe ensinaram a história de sua terra.
O pai saiu sem fechar a porta à chave; Joaquim percorreu a folha encardida.
Na primeira página. o título do jornal e a data: São
Paulo, 20 de novembro de 1889. O resto era meio alegórico: uma mulher
com barrete frígio na cabeça segurava um ramo de café
com a mão direita e com a esquerda levantava um facho que iluminava
três medalhões com os retratos do Coronel Mursa, Prudente de
Morais e Rangel Pestana. Embaixo: Homenagem à Junta Provisória.
Em volta: leões deitados, pombas voando, ramalhetes de flores com laços
de fita, o Zé-Povinho de chapéu erguido. Na segunda página,
então, vinha o elogio do triunvirato, da República, da Democracia
e do Brasil. Joaquim leu com toda a atenção: "O Coronel
Mursa simboliza a espada gloriosa que fulgurou nas lutas da Independência,
combateu nas campanhas do Prata, venceu na Guerra do Paraguai e ajudou a implantar
a República." Virou a folha, se demorou na contemplação
do Coronel Mursa. Era aquele. Sim senhor. Simpaticão. No dia seguinte
quis devolver para o pai mas o pai falou:
– Guarde para você que eu tenho vários exemplares.
Joaquim guardou. Daí por diante cada vez que o pai falava na sua amizade
com o Coronel Mursa, o filho abaixava os olhos. No fundo tinha ódio
dessa amizade, por causa da bofetada. O que não impediu que num domingo
de tarde, queixando-se o pai de certo tenente do Exército que lhe devia
cem mil-réis e se recusava a pagar, o filho falasse:
– Se o Coronel Mursa fosse vivo o senhor falava com ele e arranjava tudo!
A coisa foi tão inesperada que o juiz de paz olhou desconfiado para
o filho. Mas Joaquim fitava o assoalho humildemente. E o velho exultou:
– Que dúvida! Homem de peso, homem de peso! Não há mais
disso hoje em dia!
Depois recapitulou com todos os detalhes a história da famosa amizade.
Depois (conversa puxa conversa) falou na sua progênie bandeirante. Disse:
– Eu estou morre não morre, você é menino, é bom
que saiba quem foram seus avós para amanhã, quando eu já
não estiver no mundo, não deixar ninguém pisar em você!
Foi no quarto, voltou com dois volumes da Genealogia Paulistana.
– Está vendo, Joaquim? Título Cordeiros de Paiva. Olhe aqui:
João Duarte Pereira Castro, irmão de um seu tio-avô, não,
tio-bisavô, casou com uma Cordeiro de Paiva. Nós somos primos
desses Cordeiros de Paiva, gente de tutano, uns leões. Mas tem mais.
Olhe aqui neste outro volume. Títulos Aguirre. Olhe: um Aguirre, João
Afonso, casou em segundas núpcias com a bisavó paterna de sua
mãe, sua tataravó, portanto, minha bisavó por afinidade.
Nunca se esqueça que você tem sangue de Aguirres nas veias e
é ligado com os Cordeiros de Paiva. Dois títulos. Há
pouco paulista hoje que se possa orgulhar de sua nobreza, como você.
Veja lá que responsabilidade.
Por fim deu uma nota de vinte mil-réis para o filho, já era
noite:
– Vá se divertir.
Joaquim beijou a mão do pai e foi se divertir no Cinema Bijou. Pina
Menichelli suicidou-se no sexto ato e ele na saída encontrou o Albertino.
O Albertino conhecia uma casa na Rua das Flores. Joaquim o acompanhou até
lá. Dona Filomena veio abrir a porta:
– Que é que querem? Ah! Albertino, como vai?
Albertino ficou conversando com Dona Filomena, Joaquim enfiou pelo corredor.
Uma voz de mulher falou:
– A senhora deixou a porta aberta! Faz favor de fechar, Dona Filomena!
Joaquim espiou e viu o pai sentado diante de uma garrafa de cerveja, com
uma gorda de cabelo vermelho no colo. A gorda gritou:
– Olha essa porta aberta, Dona Filomena!
Joaquim deu meia volta rápida, esbarrou em Dona Filomena que vinha
fechar a porta, disse para o Albertino:
– Vou me embora, estou me sentindo mal.
Albertino quis retê-lo pelo braço, ele se desenvencilhou brutalmente,
atravessou a rua, dobrou a esquina, passo apressado quase correndo. Sentia
uma precisão de chorar. Um homem como papai com uma vagabunda no colo.
É impossível. É impossível. Mas então…
Meu Deus é impossível, papai, papai num bordel. Mas então…
O pensamento dele ficava suspenso. Mas então… Mas então…
Não há nada. Não existe nada no mundo. Nada. E se lembrava
da mãe.
Tomou o bonde, foi para casa. Fechou-se no quarto, atirou-se na cama. Tinha
pena da mãe. Estendeu o braço, pegou o retrato no criado-mudo,
falou: Minha mãe! Coitada de minha mãe!
Beijou o retrato. Que coisa, meu Deus, meu Deus do céu! Pôs
o retrato no criado-mudo. Um homem que falava tanto na sua seriedade e mais
isto e mais aquilo. Descendente de bandeirante, amigo do Coronel Mursa. Levantou-se.
Abriu uma gaveta da cômoda. Tirou a folha de jornal. Amigo do Coronel
Mursa. Espera um pouco que já te mostro. Picou a folha em pedacinhos.
Jogou na latrina. Pôs a mão na chave da porta, se arrependeu:
o pai podia chegar, não queria ver o pai. Aí lhe deu uma curiosidade
má. A que horas ele voltaria? Passaria a noite no bordel? Abanava a
cabeça. Pensou: meu pai na putaria. Não. Não era bem
isso. Que coisa besta. Sorriu por dentro. Chorou. Apagou a luz, se jogou de
novo na cama. Mas não dormiu. Vinha um pensamento perverso, ele expulsava
com outro ainda mais perverso, e sofria. Pouco depois de meia-noite o pai
chegou e Joaquim dormiu mais aliviado.
Entretanto o respeito que até então tivera pelo pai não
diminuiu pelo menos exteriormente. O mal-estar que passou a sentir na presença
dele aumentava até a atitude humilde, cabeça baixa, olhos no
chão. Quando o juiz de paz falava nos avós bandeirantes ou na
sua histórica amizade com o Coronel Mursa Joaquim no fundo sentia uma
espécie de volúpia em apresentar aos seus botões o reverso
da medalha. O pai falava:
– Um paulista como eu, de autêntico sangue bandeirante…
E o filho continuava com o pensamento:
… e que freqüenta bordéis baratos…
O pai acrescentava:
… amigo inseparável do Coronel Mursa…
E o filho rematava:
… e bebedor de cerveja com polaca vagabunda no colo…
Até que meses depois, no dia de Finados, vendo o pai chorar diante
do túmulo da mulher, quinze anos já passados de sua morte, ele
começou a compreender esse dualismo em que ele próprio cairia
mais tarde.
O pai morreu com setenta e dois anos num dia de São João. E
no primeiro aniversário de sua morte já foi Purezinha que colocou
um ramo de cravos no túmulo e providenciou sobre a missa. Como também
foi Purezinha que arranjou com o parente deputado a promoção
do marido para segundo-escriturário, depois primeiro, depois chefe
de seção. E assumiu discricionariamente o governo do lar, cabeça
do casal, alugando a casa deixada pelo sogro, aplicando o dinheiro do seguro,
economizando, comprando o palacete em que Ana Teresa nasceu, emprestando dinheiro
sob hipoteca em pequenas parcelas para render juros mais altos, tudo, tudo.
Purezinha, coitada. Morrer daquele jeito. Felizmente deixava uma substituta,
sua filha de palavra medida e dura, gesto brusco e decidido, olhar firme,
direto, autoritário.
3
Por isso Joaquim Pereira não se atreveu a insistir na compra do Ford.
Paciência. Maria não aprovava, ele se conformava. Entretanto
era coisa que lhe apetecia bem, um Fordinho fechado. Satisfazia bem aquela
ânsia de gozo que se apoderara dele viúvo. Gozo da vida, das
coisas materialmente boas da vida. Daí a poucos anos se aposentaria.
E já tinha um plano de vida feito. Como o Ciancullo barbeiro que com
mais cinqüenta contos fechava o salão e ia fazer il signore. É
isso mesmo. Bancar o milionário. Inclusive e sobretudo no capítulo
das mulheres. Foi fiel, foi um cão de tão fiel, para Purezinha.
Mas ela morta, ele era moço ainda, ficava neste mundo miserável,
era disfarçar a miséria do mundo. Às vezes se lembrava
do pai e como que se revia (em lugar do juiz de paz) no quarto da Rua das
Flores com uma gorda de cabelo vermelho no colo que mandava dona Filomena
fechar a porta. Então sentia uma vergonha inexprimível de ser
homem, homem como o pai, seu herdeiro na contingência de semelhantes
fraquezas. Paciência. Não era o único. Como é que
havia de fazer? Casar? Ele já pensara nessa solução mas
esbarrava na oposição da filha mais velha, que ele sabia fatal,
e não tinha ânimo para enfrentar. Que esperança. Atentava
no jeito frio e agressivo da filha e desistia logo de qualquer idéia
a respeito de novo casamento. Nada disso. O melhor era fazer como todos os
homens, até casados, até recém-casados. O melhor era
fazer como, como, como o pai. Aí está. Joaquim por mais que
expulsasse a lembrança amarga daquela noite da Rua das Flores era constantemente
perseguido por ela. Daí a timidez de suas primeiras aventuras, nome
com que ele dourava a sentida sordidez dos coitos pagos à vista. Uma
aventura, uma conquista. Parecia um criminoso. Escolhia horas adiantadas da
noite, se exasperava quando custavam para abrir a porta e ele ficava sujeito
às olhadas dos transeuntes, exigia um quarto bem trancado, tapava o
buraco da fechadura. Inutilmente procurava se confortar com a idéia
de que não tinha filhos. Inutilmente. A lembrança da Rua das
Flores não o largava. Teve um sonho horrível em que o pai o
espiava como ele o vira.
Um dia se surpreendeu chamando a filha de mana Maria, tal e qual Ana Teresa.
E se arrependeu, quis corrigir logo em seguida, não teve jeito, deu
uma risadinha (a filha calma, olhando para ele), repetiu: mana Maria. A filha
disse:
– Eu o envelheço tanto assim?
Custou a compreender, compreendeu, falou:
– Não é isso!
Não era e a filha sabia que não era. Mas mesmo quando lhe agradavam
(e o pai chamando-a assim lhe agradara) ela dava um jeito pra responder com
uma bicada certeira.
O pai bandoleiro não parava mais em casa. Mana Maria só o via
durante as refeições. Tinha o estômago delicado, comia
sempre em casa, discutia negócios com ele. Por ocasião da partilha
no inventário de Purezinha, mana Maria fez questão de ficar
com a casa onde moravam. O pai objetou generosamente que não dava renda
pois era residência deles, era melhor que ficasse na sua meação,
a menos que a filha não concordasse em receber o aluguel. Mana Maria
respondeu:
– Eu quero morar na minha casa.
Repetiu, acentuando bem:
– Minha casa. E isso de aluguel é bobagem.
Joaquim acedeu:
– Como você quiser.
E acrescentou:
– Você é de fato a dona da casa, fica também dona do
prédio.
O olhar de mana Maria exprimiu a satisfação de quem se sente
bem compreendido. Discutia as questões do inventário com tanta
segurança que o pai um dia se espantou. Ela explicou:
– Conheço as leis de meu país.
Foi no quarto, voltou com um exemplar encadernado do Código Civil
Brasileiro. O pai estourava de admiração:
– Você é sua mãe escarradinha.
Porque Purezinha é que comprara o Código. Ele nem se lembrava
mais de que o tinha em casa. Pois mana Maria descobrira o Código, lia
o Código. Incrível. Definitivamente sumiu diante da filha. Ela
é que conversou com o advogado, estabeleceu os quinhões dela
e de Ana Teresa (favorecendo esta) e concluído o inventário
passou a tomar conta de todos os negócios. Do pai inclusive.
4
Nas férias de fim de ano Ana Teresa caiu doente de escarlatina. Joaquim
queria chamar o velho Dr. Tibúrcio que receitava calomelanos a três
por dois e já tratara da menina por ocasião de uma coqueluche.
Mas mana Maria telefonou para o Dr. Samuel Pinto, recém-chegado da
Europa, com prática dos hospitais de crianças de Berlim, Viena
e Paris.
Dr. Samuel chegou, mandou abrir as janelas do quarto. Ar, ar. Tratamento
moderno. A escarlatina cedeu. Ana Teresa se levantou.
Nada de excesso, recomendou o Dr. Samuel. Escarlatina é moléstia
traiçoeira, costuma deixar marca. Alimentação sadia,
ginástica, muita ventilação durante a noite.
Ana Teresa já estava perfeitamente boa e o médico prosseguia
nas visitas. Mana Maria estranhou.
– Médico moderno, você quis médico moderno, é
agüentar com a exploração – falou o pai.
Então mana Maria escreveu um cartãozinho para o Dr. Samuel
Pinto pedindo a conta. E ele a mandou bem módica. Joaquim comentou:
– Esquisito. Só se é para garantir o cliente. Deve ser isso.
Ana Teresa voltou para o colégio nem alegre, nem triste. Estava habituada
a obedecer. Recebia as coisas boas e más com a mesma mansidão.
Mana Maria resolvia por ela e ela aceitava a resolução. Nunca
lhe passou pela idéia discutir isto ou aquilo. exprimir suas preferências,
mostrar um tiquinho que fosse de vontade. Até nas coisas mínimas.
Aceitava sempre o que lhe ofereciam e quando lhe concediam o direito de escolha
se decidia sempre pela última oferecida. Mana Maria perguntava na mesa:
– Você quer banana ou laranja?
Ana Teresa respondia:
– Laranja.
Se a pergunta fosse laranja ou banana ela diria banana. Ainda quando houvesse
também pêra e esta lhe apetecesse mais.
Uma noite, já fazia quinze dias que Ana Teresa tinha ido para o colégio,
a criada anunciou o Dr. Samuel Pinto para mana Maria. Mana Maria tirou os
óculos, levantou o olhar do livro, fixou-o na criada. Pensou: – O que
será? Mas disse:
– Faça entrar.
Ficou um momento imaginando o que seria, passou diante do espelho sem nenhuma
olhadela e foi receber o médico. O Dr. Samuel falou logo:
– Desculpe não ter vindo mais cedo. Hoje foi um dia cheio de serviço.
E mana Maria muito calma:
– Mas deve haver engano. Daqui de casa não se fez nenhum chamado.
Dr. Samuel, sentado no sofá, com um livro na mão arregalou
os olhos num bruto espanto:
– Oh! mil desculpas, foi o recado que me deram.
Mana Maria imóvel, o olhar parado, as mãos paradas no colo,
considerava aquele moreno meio careca, subitamente ruborizado, que lastimava
o engano de sua enfermeira, uma alemã ainda não muito familiarizada
com a língua portuguesa. Estava mentindo. Era visível. Que é
que o teria levado ali? Impossível, mana Maria (Dr. Samuel agora se
estendia sobre os criados em geral, sua negligência, sua insolência
diante dos patrões) se decidia diante do menor gesto do intruso a dar
um grito que faria vir dos fundos da casa a copeira, a arrumadeira, a cozinheira.
Não. Ele não ousaria tanto. E se ousasse ela não apelaria
para ninguém. Sozinha, sem elevar a voz, talvez com um simples olhar,
poria o atrevido imediatamente no olho da rua.
Dr. Samuel perdia aos poucos o desembaraço dos primeiros instantes.
Já gaguejava, dizia o já dito procurava palavras. Mana Maria
reparou (como já fizera durante as visitas a Ana Teresa) na voz cantada
que abria as vogais, arrastava os erres, prolongava as tonais. Na terra dele
é que a gente ainda encontrava empregados como os de outrora, humildes
e fiéis. Mana Maria perguntou:
– Que terra?
– Sergipe.
Ela bem que estava percebendo. Dr. Samuel tinha saudades daquela terra. Estava
radicado em São Paulo. Mas pretendia (talvez em breve) voltar para
lá, rever o seu berço. Que é que deu em mana Maria? Ela
não sabia ou não queria saber. O fato e que disse:
– Com certeza deixou uma noiva lá?
Qualquer coisa iluminou os olhos miúdos do Dr. Samuel e ele readquiriu
a desenvoltura do princípio. As frases tornaram a sair fáceis,
redondas, descansadas. Que penetração psicológica a de
Dona Maria. Que extraordinário espírito observador. Como é
que adivinhara que ele era solteiro? Porque não usava anel? Não,
porque hoje em dia poucos maridos o usam. Não havia dúvida:
admirável espírito de observação. E esse dom aliado
à cultura, a uma educação perfeita, era a maior riqueza
a que o homem pode aspirar.
Dr. Samuel (como se percebesse o nojo nascente de mana Maria) cortou os elogios
e confessou que não tinha noiva. Mas pensava seriamente em casar, está
visto. Sentia até que precisava casar. O casamento era um ideal que
todos, todos, homens e mulheres, sem nenhuma exceção, deviam
acalentar. Pois não é exato? Mana Maria não disse nem
sim nem não.
Dr. Samuel esboçou um sorrisozinho. Naquele livro que ele tinha ali,
por exemplo, um romance francês, havia uma frase sobre o casamento,
que lhe parecia admirável. Ele ia traduzir. Não: traduzir é
trair, como dizem com acerto os italianos. Seria mesmo em francês. Mas
Dona Maria havia de prometer primeiro que não caçoaria do francês
dele. Mana Maria (tomada de uma idéia que ela pensava perversa) em
vez de prometer falou:
– Eu mesma leio. Com licença um segundo. Vou buscar meus óculos.
Foi. Veio com os óculos postos. Num átimo procurou ler no rosto
do Dr. Samuel a impressão produzida. Leu. Disse:
– Acho banal.
E devolveu o livro.
Dr. Samuel concordou em que não era coisa original mas não
é só o original que é admirável. Ou Dona Maria
por acaso seria adepta das idéias modernas, do futurismo?
Mana Maria, conservando os óculos, fez um gesto vago. E a copeira
(com quem ela trocara duas palavras rápidas quando foi buscar os óculos)
apareceu pra dizer que a pessoa que Dona Maria mandara chamar estava na cozinha
esperando. Mana Maria falou:
– Vou já.
E se levantou olhando o Dr. Samuel. Dr. Samuel tornou a perder o jeito. Levantou-se
também. sentia-se que ele levava consigo uma porção de
coisas que desejava falar, desculpou-se pelo incômodo que dera, lastimou
mais uma vez o equívoco da enfermeira e tomando coragem (falando, ele
tomava coragem) fez questão que Dona Maria ficasse com o romance. Ele
já tinha lido. Ou por outra: estava relendo.
Dona Maria veria que livro admirável era. Mana Maria recusou. Ele,
fazendo muitos gestos, com a voz meio alterada, pôs o livro na mesa.
Não, positivamente não levaria o livro. Ficava ali em ótimas
mãos. E Dona Maria que não se preocupasse em ler depressa. Lesse
com todo o vagar. Depois telefonasse que ele mandaria buscar. Já com
o chapéu na mão, hesitou um instante, acrescentou:
– Ou então, se a senhora me quiser dar a honra de trocar impressões
sobre ele, eu mesmo virei buscar. Sem incômodo nenhum. Só prazer,
imenso prazer.
Mana Maria lhe estendeu a mão.
5
Fechou a porta. E esta agora? Virou-se. Olhou o livro. Francamente. Deu uns
passos, pôs a mão no livro, pôs o olhar na Paisagem de
Outono da parede, tamborilou os dedos na capa amarela do romance. Mordeu o
lábio superior, o inferior, de novo o superior. Foi cerrando os olhos,
cerrando, cerrou. Então viu claro o que tinha a fazer. Pegou no livro,
pediu papel e barbante para a copeira (qualquer um serve!) embrulhou, amarrou
nervosamente. Escreveu: Ao Senhor Doutor Samuel Pinto. Procurou o endereço
na lista telefônica. Residência ou escritório? Mandava
para a residência. Teria telefone? Tinha. Apartamento. A palavra deflagrou
a imaginação de mana Maria. Apartamento, champanha e mulheres.
Um tango dizia assim. Todos os santos dias ouvia no rádio. Quero um
apartamento com champanha e mulheres. Champanha e mulheres. Mulheres. Escreveu
o endereço. Mandava levar amanhã cedo. Sem uma linha que fosse
de agradecimento? Agora ela não ia abrir o embrulho. Colocaria o cartão
por fora, entre o barbante e o papel. Não. Não colocaria nada.
O livro só. Para o atrevido compreender. Atrevido? Mana Maria pesou
a palavra, pesou-a bem, arrependeu-se. Afinal que atitude era aquela? Para
que ferir o moço com tamanha grosseria?
Mana Maria sentou-se diante da secretariazinha, tirou da gaveta um cartão
de luto, molhou a pena no tinteiro, escreveu por cima do nome: Com os melhores
agradecimentos de… Rasgou o cartão. Pegou outro. Escreveu: Com os
agradecimentos de… Leu uma porção de vezes: Com os agradecimentos
de Maria H. Pereira. Começou a pôr a data por baixo do nome.
Escreveu São Paulo e parou. Rasgou o cartão. Levantou-se, foi
até a janela, da janela até a porta que dava para o corredor,
deu duas voltas na chave, veio até o meio do quarto, parou, olhou para
o espelho. E deu um jeito no penteado. Foi para a escrivaninha de novo. Precisava
agradecer o livro, falar no livro. Senão um estranho que visse o cartão
não saberia que agradecimentos eram aqueles.
Agradecer o livro e dar o nome do livro. Assim afastaria todas as suspeitas
ruins. Levantou-se. Não. Ia ler o livro. Desfez o embrulho. Assim em
duas linhas daria sua impressão, ele não precisava aparecer
para perguntar. Mas também se desse ele seria capaz de aparecer para
discutir. Nunca hesitara assim. Nunca. Por que não ficava na primeira
idéia? Como sempre? Levantou-se. Diante do espelho passou os dedos
pelas sobrancelhas. O embrulho já estava desfeito, lia o livro. E amanhã
cedo mandava. Pronto. Estava resolvido o assunto.
Abriu a porta. O carrilhão da sala de jantar deu dez horas. Ela correu
a casa inteira para ver se a criada fechara todas as portas e janelas. Foi
para o banheiro. Furiosamente escovou os dentes. Como de costume: furiosamente.
Bochecho e gargarejo com água oxigenada.
Tinha a mania da higiene. Vivia lavando as mãos, escovando as unhas.
E nas coisas da casa exigia asseio e ordem. Queria tudo limpo e no seu lugar.
Andava sempre com um lenço na mão e não sentava numa
cadeira sem antes passar o lenço nela. Agora, no banheiro, continuava
a toalete rigorosa. E acabou deixando tudo como encontrara: cada coisa no
seu lugar.
Fechou-se no quarto. Deitou-se, abriu o livro. Dez e pouco. Antes da meia-noite
estava lido. Principiou pulando a descrição do parque porque
detestava descrições. Um parque: já se sabe o que é.
Ela e ele voltam de seu passeio a cavalo. São noivos. Conheceram-se
num baile. O pai dela estava na iminência de uma ruína. O pai
dele, em vez, era riquíssimo. Casamento de conveniência? O autor
dizia que sim e que não. Que sim na intenção do pai.
Que não porque ela gostava do feitio esportivo do noivo. Muito que
bem. Estão voltando do seu passeio matinal. De repente (na pagina 27)
Bismarck, o cão pastor alemão, pula diante dos cavalos. E o
dela se espanta, pula também, ela cai na areia branca da alameda. É
carregada sem sentidos para o castelo. Na página 43 o jovem médico
abana a cabeça e diz para o visconde:
– Fratura dupla no terço superior do fêmur.
O pai desesperado pergunta:
– Ficará defeituosa?
O jovem médico mais uma vez abana a cabeça:
– A ciência tudo fará para evitar tamanha desgraça.
Mas na página 98 a ciência depois de mil esforços inúteis
se declara vencida: aquela flor de uma estirpe milenar ficará com uma
perna mais curta que a outra. O visconde trata de apressar o casamento. E
há uma cena horrível em que a aleijadinha ignorante de seu defeito
faz um esforço supremo (quer receber o noivo levantada) deixa a cama,
o pé falseia, ela dá um grito e tomba sem sentidos. Agora, o
noivo mal disfarça sua repugnância. Enquanto que o médico
redobra sua dedicação. O choque moral é tremendo, bem
mais perigoso que o físico. A ciência vela. A ciência só?
O autor insinua que o amor, o amor também vela.
A página 167 é toda ela a transcrição da carta
em que o esportista rompe o noivado, triste documento de um invertebrado moral.
E como o visconde julga enojado. Mais nojo ainda lhe causa a insistência
dos credores cuja sanha o projetado casamento amenizara um pouco. Precipita-se
a catástrofe: a filha aleijada, o visconde arruinado, castelo, parque,
terras, tudo vendido em hasta pública. De que modo resistir a tamanha
dor e tamanha vergonha? Na sala dos retratos, onde lado a lado figuravam os
antepassados (quatro com o bastão de Marechal de França) o visconde
estoura os miolos no momento exato em que pisavam as escadarias do castelo
as autoridades judiciárias que iam proceder ao inventário dos
bens.
Mas o amor vela. E na página 233 um moço de ciência e
uma moça coxa (casados horas antes) pelo portão dos fundos deixam
o castelo (já propriedade de um fabricante de conhaque) para uma vida
modesta de trabalho e rica de afeição.
Meia-noite e um quarto. Joaquim Pereira entra em casa, bate na porta da filha.
– Ainda está acordada, mana Maria? Está sentindo alguma coisa?
– Nada disso. Estava lendo.
– Boa noite.
– Boa noite.
Apagou a luz. Virou do lado direito. Romance bobo. Um médico se casava
com uma aleijada. E agora um médico queria casar com uma, uma, uma
feia. Mas feia que sabia que era feia, não escondia sua fealdade, até
aumentava, aumentava de propósito. Por que motivo?
Mana Maria se revia indo para a Escola Normal com Dejanira e Alice. Ela saia
de casa, Dejanira já estava esperando na porta do n.0 53, se juntavam.
dobravam a esquerda, Alice estava esperando no n.0 17, tocavam para a Escola.
Com passagem forçada pelo Ginásio Piratininga. Onde as gracinhas
choviam. Tetéias, diziam. Tetéias. Dejanira e Alice fingiam
que não gostavam. Mana Maria gostava sem fingir que não. Aos
poucos porém foi percebendo que as tetéias eram duas com exclusão
sua. Dois ginasianos mais ousados passaram a se dirigir diretamente a Dejanira
e Alice. Mana Maria propôs:
– Vamos passar agora pela outra calçada.
Mas as amigas não concordaram. Mana Maria não insistiu. E se
remoeu de despeito.
Um dia não encontrou Dejanira na porta do 53. Tocou a campainha, a
mãe de Dejanira informou que ela já tinha saído. Dobrou
a esquina. não viu Alice no número 17. E a irmãzinha
informou que Alice já tinha saído. Na calçada do Ginásio
Piratininga os estudantes formavam grupinhos. Mana Maria passou por eles completamente
despercebida.
Junto de uma árvore, a um quarteirão da Escola, havia dois
casais parados. Mana Maria reconheceu logo os namorados. Sentiu um peso nas
pernas. Passava fingindo não ver? Passava. Com o rosto em fogo passou.
Dejanira chamou:
– Maria!
Nem se virou. E a explicação na Escola foi um sofrimento para
ela. Não tem importância, dizia. Na saída viu os dois
estudantes no mesmo ponto em que de manhã os descobrira com as amigas.
Disse para elas:
– Até logo!
E sem querer ouvir o que elas falavam passou pelos moços já
de chapéu na mão (era de ironia o olhar que lhe dirigiram, cachorros),
apressou cada vez mais o passo, chegou ofegante em casa. Daí por diante
ia sozinha para a Escola e sozinha voltava para casa. Pensou mil vinganças,
cartas anônimas avisando os pais por exemplo. Mas atentou na mesquinhez
delas e desistiu. Entretanto sua amizade com Dejanira e Alice esfriou. Mal
se cumprimentavam passados poucos dias. Deu então de reparar na atitude
indiferente dos homens para com ela. Indiferente – ou respeitosa? Dava no
mesmo. Quantas vezes ela andava, um, dois, três, quarteirões
atrás de uma saia qualquer, uma, italianinha suja, uma mulatinha até,
ouvindo os gracejos que dirigiam para a italianinha, para a vagabunda. Ela
não ouvia nenhum. E o mais esquisito é que quando mana Maria
se aproximava muitas vezes os gracejos dirigidos à italianinha ou à
mulatinha cessavam. Por respeito dela, mana Maria. Isso lhe dava um amargor
e ao mesmo tempo um orgulho indefiníveis. Era respeitada. Não
era desejada.
Foi ai que se tornou a primeira de sua classe. O que perdia por um lado,
queria ganhar por outro. E ganhava. Também se tornou severa para as
mulheres, no juízo e no trato. Umas levianas e umas idiotas. E se maltratava.
Até em frivolidades. Era Filha de Maria. Um pequeno sacrifício
por dia, aconselhava o vigário. Vontade de se olhar no espelho e não
se olhar, por exemplo. Mana Maria levava a coisa ao extremo: passava o dia
inteiro sem por os olhos num espelho, sem beber água, sem comer carne.
Veio nela o desejo de ser a primeira em tudo, um espírito de emulação
que a levava a passar na frente de todas as mulheres que encontrava na rua.
Apostava consigo mesma: Chego na esquina antes daquela gorda. E chegava. Aparentemente
se masculinizou: sapatos de salto baixo, abolição do decote,
supressão de jóias, mangas compridas.
Por ocasião das festas de formatura de normalista recebeu um golpe
doído com a sua escolha para fazer de pai da ingênua na comédia
Meia-noite e meia ou uma hora da madrugada já? Acendeu a luz, olhou
o relógio de cabeceira: uma e meia da madrugada. E ela sem sono. Apagou
a luz. E o Dr. Samuel com aquela visita inesperada. Mana Maria sorriu dentro
dela: chegou tarde. Mas uma revolta tomou-a toda e fez esta pergunta: por
que tarde? Então a primeira vez em que um homem dela se aproximava
com um sentimento que não era de indiferença, ela ia e o maltratava?
Aos poucos lhe veio uma doçura de pensar que um homem, em nada inferior
aos outros homens que conhecia, a desejava para mulher. Seu pensamento se
fixava aí: ela era desejada para mulher. E se deliciava. Por uma manobra
sutil desviava a questão que mais importava: a do casamento. Aceitava
o Dr. Samuel para marido? Que é que lhe fazia deixar em suspenso esta
pergunta como se fosse absurda? De repente lhe veio a idéia de vingança.
Recusando o casamento que lhe ofereciam ela se vingava da indiferença
com que os homens sempre a trataram. Uma bela vingança. Uma estúpida
vingança. Uma estupidez pura e simples, devia dizer. Recusando o casamento,
não se vingaria de ninguém. Pior: se maltratava. Não
há dúvida, mas era essa a sua volúpia. O abandono de
toda e qualquer vaidade feminina, aquela maneira deselegante de se vestir,
aquela mania de contrariar a moda, aquela dureza diante dos homens, tudo isso
não era natural. Ela sabia perfeitamente. Tudo isso era querido. E
de tudo isso ela tirava orgulho. Um orgulho besta (ela sabia). Mais: uma volúpia
(ela sentia). Havia momentos em que hesitava, quase se arrependia. Porém
dizia: eu quis assim. Tinha traçado uma linha de vida e dela nada a
afastaria. Nem o Dr. Samuel. Nem cem Drs. Samuéis. E lhe ficava (como
sempre) a volúpia de pensar: Eu poderia fazer assim, entretanto fiz
assado que era o mais difícil. Não me traí. E se me sacrifiquei
foi a mim mesma.
6
Levantou-se às mesmas horas do costume. Qualquer hora que dormisse
por mais tardia acordava sempre bem cedo. Não eram ainda oito horas
e ela já tinha o livro embrulhado. Com um cartão entre a capa
e o frontispício: "Maria H. Pereira, agradecida, devolve o romance
Le mariage d’Huguette que leu com interesse." Mandou levá-lo logo
depois do almoço. E avisou a copeira que não estava em casa
para o Dr. Samuel Pinto. Nem que fosse para falar no telefone.
Naquela tarde precisava falar com o advogado por causa de um inquilino atrasado.
Eram três horas quando ela perguntou para o empregado:
– O Dr. Tobias está?
Não estava, só voltava às cinco. Saiu. Em frente, o
Cine Universal engolia um homem de fraque. Olhou o cartaz: Greta Garbo em
Mulher Vendida. Detestava vampiros. Hesitou entre o cinema e uma volta vagabunda
pela cidade. Cinema. A indicadora mostrou com uma lâmpada o único
lugar vazio. Pescadores barbudos decepavam com um só golpe certeiro
a cabeça dos peixes prateados.
E a orquestra tocava a Serenata de Toselli. Luz. O cavalheiro à sua
esquerda murmurou: Perdão! E puxou a aba do fraque. Mana Maria se sentara
na aba do fraque. O homem do fraque. Usava pencine. No cabaré fumarento
Greta Garbo diante de um cálice vazio cismava com o olhar distante.
E uma sujeita de boina fazia o possível para desviar a atenção
do companheiro daquele olhar distante. Mana Maria percebeu a agitação
do homem do fraque se remexendo na poltrona. Justo no momento em que o olhar
distante como que por acaso se cruzou com o do seu admirador a mão
do homem do fraque se pousou com hesitação na perna de mana
Maria. Um pulo, um começo de escândalo e mana Maria precipitadamente
demandou a saída. Na rua se perguntou se fizera bem em não esbofetear
o imundo. E se respondeu que sim. Fizera bem. O que sentia era um misto de
indignação e de nojo. Uma vontade de bater. Mas fora melhor
assim. Cachorro. Um táxi passou. Tomou-o e mandou tocar para casa.
O advogado ficava para outro dia. Fechou-se no quarto pensando que devia ter
esbofeteado o cachorro.
Começou a andar (deu mais uma volta na chave do armário, endireitou
uma cadeira, o vaso de flores, as almofadas), sentou-se na cama. E sentiu
perfeitamente na perna esquerda um peso, uma pressão. Arrepiou-se,
se levantou. Não tinha ninguém. De repente lhe veio essa idéia.
Vivia sozinha. Vida estúpida de isolada. Não tinha mãe,
o pai na rua o dia inteiro, a irmã no colégio o ano todo, não
tinha amigas. Que coisa mais esquisita: não tinha amigas. Ia visitar
tia Carlota.
O telefone tocou, depois a criada bateu na porta. Era o advogado. Que quinze
dias de prazo, nada. Cinco no máximo. E se não pagasse, executasse.
Deixou o telefone mais calma. A criada informou que o Dr. Samuel Pinto já
telefonara duas vezes. Aí está. Tinha o Dr. Samuel Pinto. Dando
ordens na cozinha, mexendo no jardim, verificando a conta do empório,
não tirava o pensamento do Dr. Samuel Pinto.
Já não ia visitar tia Carlota. Já não se sentia
tão sozinha. Mas como sempre a hipótese de um casamento era
sumariamente afastada. Se contra a vontade atentava nela, todo o bem-estar
que lhe produzia (quisesse ou não quisesse) a certeza daquela inclinação
do Dr. Samuel desaparecia. Que esperança. Ainda que a mão fosse
do marido e o marido fosse o Dr. Samuel. Que esperança. Pensava que
não era bem isso. Não queria saber de homem e acabou-se. Nem
de homem nem de coisa nenhuma. Pois mais duas telefonadas inúteis deu
o Dr. Samuel aquele dia. E mana Maria cada vez mais calma, mais dona de sua
vontade, mais senhora de si, mais mana Maria, desviou seu pensamento do Dr.
Samuel Pinto, ouviu pacientemente a conversa inútil do pai, jantou
bem, concluiu uma blusa de tricô, dormiu sossegada.
7
Joaquim Pereira tirou o chapéu, estendeu o jornal para mana Maria:
– Tem uma notícia aí que interessa você.
E mostrou com o dedo. Mana Maria leu e fincando o olhar no pai:
– Interessa por quê?
Joaquim desconcertado por aquele olhar tão duro balbuciou:
– Por nada, ora! Por se tratar de seu médico moderno!
Mana Maria pôs o jornal na mesa, olhou de novo para o pai. Não.
Não havia segunda intenção nenhuma nas palavras dele.
E o olhar perdeu a dureza tranqüilizando o chefe de seção
do Serviço Sanitário que começou logo a alinhar as vantagens
de uma viagem de estudos aos Estados Unidos por conta da Missão Rockefeller.
Dr. Samuel Pinto fora escolhido entre muitos candidatos e isso demonstrava
o valor dele. Ia estudar a organização de hospitais de crianças.
Estava feito na vida. Naturalmente o governo, assim que ele voltasse o incumbiria
da fundação de hospitais, ou nomearia diretor-geral, o que o
Dr. Samuel quisesse. Quanto à clientela, nem era bom falar.
Mana Maria ouviu e comentou:
– Política.
E apesar dos protestos do pai não disse mais nada. Um momento ela
pensou na possibilidade de qualquer relação entre os propósitos
casamenteiros do médico e aquela viagem. Viagem de núpcias à
custa da Missão Rockefeller? Despeito por causa dela? O espírito
crítico em mana Maria era bem mais forte do que qualquer sentimento
de vaidade. Sem nenhuma emoção pendeu para a primeira hipótese.
Ficava o desejo dele de se casar com ela. E isso era coisa resolvida, morta,
não a preocupava mais. Não perdia tempo com coisas inúteis.
A pretensão do Dr. Samuel era coisa inútil.
Todos os santos dias o Dr. Samuel telefonava para ouvir da criada que Dona
Maria não estava em casa e nem dissera a que horas voltava. Até
que uma tarde Joaquim Pereira chegou em casa com a notícia de que o
Dr. Samuel estivera no Serviço Sanitário. Vinha encantado com
o Dr. Samuel. Que moço mais amável. E inteligente. Conversa
bonita. Dentro de três meses partia para os Estados Unidos. Estava aprendendo
inglês. Falara muito em Ana Teresa, em mana Maria. É verdade.
Ele não sabia que o Dr. Samuel tinha estado há pouco tempo com
mana Maria. Houve um equívoco e ele pensou que o tinham chamado. Joaquim
falou:
– Você não me contou nada. Ele me disse até que lhe emprestou
um livro, um romance ou não sei quê, em francês?
Mana Maria confirmou percorrendo o jornal da tarde que o pai trouxera. Dr.
Samuel fazia questão fechada de apresentar suas despedidas pessoalmente
para mana Maria. E Joaquim lembrou:
– Se a gente oferecesse um jantar para ele hem? Que tal?
Mana Maria detrás do jornal respondeu:
– Não.
Que diabo. Mana Maria parece que já estava implicando com o moço
que tratara tão bem de Ana Teresa e cobrara tão pouco. Não
custava nada dar um jantar.
Mana Maria pôs o jornal no colo:
– Não, papai.
Pela primeira vez diante da filha, Joaquim Pereira tentou uma resistência.
Pensasse bem. Ele se falava em jantar é porque o Dr. Samuel dera a
entender, quer dizer, ele era muito delicado, moço educado, não
falou claramente mas deixou perceber que teria grande prazer nisso e tal.
Mana Maria examinava as unhas. E ele – que é que havia de fazer? –
ele por sua vez prometera, quer dizer, não fizera um convite franco,
mas insinuara também que possivelmente jantariam juntos e tal. Logo.
Logo, porque o Dr. Samuel antes de embarcar para os Estados Unidos precisava
passar uns tempos no Rio e quem sabe mesmo dar um pulo até Sergipe.
Que diabo. Não custava nada fazer uma gentileza para o moço.
Mana Maria sem erguer o rosto virou os olhos na direção do
pai:
– Pois ofereça o senhor o jantar num restaurante.
Joaquim se queixou:
– Você me põe numa situação!
Durante algum tempo jantaram em silêncio. Houve um momento porém
em que Joaquim Pereira fez um gesto bem mal fingido de quem se lembra de repente:
– Que cabeça! Ele quer saber se você gostou do tal livro!
Mana Maria veio com outra pergunta:
– Ele, quem?
Joaquim se impacientou:
– Ora, quem! O Dr. Samuel!
Então mana Maria destacou as sílabas:
– De-tes-tei!
E a queixa voltou:
– Você me põe numa situação!
– Bem menos difícil do que o senhor pensa.
– Isso você diz. Agora eu tenho que dar uma resposta amanhã
para o moço! Imagine a minha cara! Eu não sei ser malcriado,
é uma coisa que não está em mim, que é que você
quer que eu faça?
– Nada.
– Como, nada?
– Mas, papai, o senhor está dando importância a uma coisa que
não tem nenhuma!
– Tem! Como é que não tem? Então o moço se desfaz
em gentilezas e eu vou ser grosseiro para ele?
– Mas o senhor não vai ser grosseiro. Depois, não vejo onde
estão as gentilezas do moço.
– Ah! bom! Você não vê as gentilezas! Ah! bom Então
não discuto mais!
– Mas quem é que está discutindo, papai? Que nervosismo é
esse? Homem!
– Sabe de uma coisa? Ele me pediu sua mão em casamento! Pronto! Acha
pouco?
– Acho idiota.
Pela primeira vez o pai chegara a enganá-la por uns instantes. Nem
ela podia imaginar que o Dr. Samuel Pinto ousasse tanto. Mesmo quando, com
o nervosismo do pai, percebeu claramente que sob aquela insistência
inacostumada havia uma intenção oculta não pensou num
pedido formal de casamento. Naturalmente o Dr. Samuel, elogiando-a, dissera
do seu desejo de constituir família, que nem falou para ela. E Joaquim
Pereira pegara logo a coisa no ar.
Agora o silêncio punha entre os dois uma distância imensa. Joaquim
acendeu um cigarro. Não compreendia aquela atitude da filha. Nunca
pensara na possibilidade de um casamento para mana Maria. Nunca a realizara
casada. Mas agora que uma oportunidade se oferecia todos os seus instintos
casamenteiros de pai acordavam. E se irritava diante da oposição
da filha.
Mana Maria aproximou o cinzeiro:
– Não derrube a cinza na toalha, papai.
Joaquim se levantou, deu alguns passos, parou ao lado da filha, teve um ímpeto
carinhoso de levantar a cabeça de mana Maria pelo queixo, reprimiu-o,
disse baixinho o que pensava:
– Mas eu não compreendo…
Mana Maria fingiu ajudar:
– O quê?
Essas interrupções (ela sabia) o desconcertavam sempre. Por
isso engoliu o resto:
– Nada. Uma coisa aqui que eu… Nada.
Mana Maria dobrou os guardanapos, pós as xícaras de café
na bandeja, saiu.
O pai pensou: – Vai escovar os dentes.
De fato: entrou no banheiro.
Aquela calma incrível o punha fora de si. Era pedida em casamento
e ia escovar os dentes. Como todos os dias, como se aquele dia fosse igual
aos outros. Uma calma irritante. Sua filha era um monstro. Pensou e se arrependeu
envergonhado. Que maçada. Que maçada. Puxou o relógio:
oito horas. Tinha um encontro na cidade às nove.
A copeira veio arranjar a sala, deu com ele, voltou. Mana Maria surgiu logo:
– Vamos para a saleta, papai, que a Ernestina; precisa acabar de tirar a
mesa.
Mana Maria sentou no sofá, Joaquim hesitou um pouco e sentou ao lado.
Pôs as mãos nos joelhos tomou coragem.
– Você pensou bem?
– Papai, é melhor dar por encerrado esse assunto. O senhor se irrita
e não adianta nada.
– Mas que é que eu vou dizer pro moço?
– Que o pedido não foi aceito.
– Mas não foi aceito por quê?
– Porque eu não pretendo me casar.
– Mas não pretende por quê?
– Porque não.
Joaquim teve um gesto de desanimo. Depois lhe veio uma idéia:
– Mana Maria, você ama alguém!
– Ora, papai, deixe disso.
O tom era tal que ele mudou de tática:
– Você já refletiu sobre sua vida? Você já pensou
na possibilidade de ficar só no mundo com Ana Teresa?
Mana Maria se contentou em sorrir. E ó pai (atentando no ridículo
do argumento aos olhos de quem sempre soube se governar por si) procurou corrigir:
– Eu sei que você não precisa dos conselhos da ajuda de ninguém
nesta vida. Mas um homem em casa sempre representa alguma coisa, que diabo!
Mana Maria com a boca semi-aberta sacudiu a cabeça primeiro, depois
fincou o olhar nas pupilas do pai:
– O senhor está falando sério?
Joaquim perdeu o jeito de uma vez. Só teve uma saída:
– Você é sua mãe escarrada, nunca vi!
E acendeu outro cigarro. Ficou com o fósforo apagado na mão,
quis guarda-lo na caixa, mana Maria apontou com o dedo:
– Olhe ali o cinzeiro.
Estava infeliz. Era inútil. Não podia com a filha. Mas lhe
custava se declarar vencido. Tudo nele se revoltava contra a decisão
de mana Maria. E por mais que se esforçasse não conseguia esconder
o que lhe ia por dentro. Arquitetava e destruía planos. E se amesquinhava
com a certeza humilhante de sua fraqueza. De repente lhe veio uma idéia.
Não deu a si mesmo tempo para arrepender e disse:
– Muito que bem. Não digo mais nada Mas também lavo as mãos
e não me meto mais nisso. Você que responda pro moço como
entender. E boa noite que preciso sair.
Deu dois passos na direção do guarda-chapéus. Mana Maria
falou devagarinho:
– Mas, papai, o senhor mesmo não sustentou há pouco a utilidade
de um homem em casa? E me incumbe de uma coisa que cabe ao senhor? Ao senhor
e mais ninguém?
Qual o quê. O melhor era se confessar mesmo vencido. Mana Maria reconheceu
imediatamente o Joaquim Pereira de sempre:
– Amanhã no almoço a gente continua isso.
E sem esperança nenhuma:
– Até lá, você pense melhor.
E com a mão no trinco:
– O travesseiro é bom conselheiro. Até amanhã.
Mana Maria falou:
– Até logo.
Já no terraço, antes de fechar a porta, Joaquim balbuciou:
– Quero dizer: até logo.
8
Tia Carlota vivia sorrindo e mostrava dentes bonitos. Mana Maria tinha um
fraco por ela. Só a presença de tia Carlota faz bem pra gente,
disse um dia. A mãe falou:
– Você também acha? Quando ela era moça toda gente dizia
isso. Os moços, então!
Purezinha não sabia que ainda depois de casada a irmã com sua
presença fazia bem aos homens. A ela, dava uma impressão de
desordem. E às outras mulheres, de perigo. Mana Maria, severa com as
mulheres (sobretudo do temperamento da tia), abria uma exceção
para aquela criatura alegre que a divertia, até a enternecia que nem
uma criança. E era mesmo uma criança.
– Deus não me deu filho (dizia tio Laerte) mas me deu uma mulher que
é uma menina perfeita: esposa e filha ao mesmo tempo.
Era quinze anos mais velho do que ela, sofria de asma e nunca soube o que
era trabalho.
Mana Maria (antes que a criada lhe anunciasse a visita) ouviu da copa o som
do piano: tia Carlota na certa. Tocava um tango à maneira dela: velozmente,
trepidamente. Assim executava tudo, fosse o que fosse. E nunca ia até
o fim. Mal percebeu a entrada de mana Maria, deu um soco no teclado (- É
uma lata este piano!), meia volta no tamborete e um pulo:
– Bom dia!
Sentaram-se no sofá.
– Tire o chapéu – disse mana Maria.
– Não, prefiro ficar com ele por causa da ondulação
– respondeu tia Carlota.
– Como queira.
– Não; é melhor tirar.
Tirou, abriu a bolsa, olhando o espelhinho ajeitou as ondas.
– Você não tem um espelho decente nesta sala? Então vou
no seu quarto.
Penteava, passava a escova, acariciava o cabelo com a mão, não
acabava mais.
– Para fazer a boca prefiro o da bolsa.
Perto da janela, com a bolsa aberta bem erguida na mão esquerda, o
lápis na direita, fez, desfez, fez, desfez, fez a boca.
– Agora um pouco de pó-de-arroz. Este nariz é a minha diferença.
Tenho horror de nariz vermelho! E você?
Mana Maria nem respondeu. Agora as pestanas. Molhava a escovinha na boca,
passava nas pestanas. Agora as sobrancelhas, dois fios. Agora de novo a boca.
E de novo o penteado. E mais um pouco de pó-de-arroz.
– Não se toma chá nesta casa?
– Toma-se!
– Então vá providenciar enquanto eu dou inspeção
nas unhas.
Um minuto depois mana Maria voltou encontrando tia Carlota bastante contrariada.
– Eu acabo não tocando mais piano por causa destas malditas unhas!
Não há dia que não lasque uma! Que horror! Que é
que tem para o chá? Uma porção de coisas gostosas? Ótimo.
Estou com uma fome! Você não pode imaginar como a Etelvina está
cozinhando mal! Quase não almocei. Também eu para dona de casa
não tenho jeito mesmo, é inútil! Você, sim, puxou
por sua mãe! Como vai Ana Teresa?
– Vai bem.
Tia Carlota tomou dois goles de chá, engoliu um pedacinho de bolo,
suspirou:
– Pronto! Já estou farta! Que será, hem, Maria? Em tudo eu
sou assim! Estou com fome, sento na mesa, perco a fome! Vejo um vestido bonito,
compro o vestido, me enjôo logo! Que será?
– Fartura.
– Fartura? É o que você pensa, minha filha!
Acendeu um cigarro, cruzou as pernas, estalou as unhas, demorou o olhar em
mana Maria:
– Vamos pra outra sala?
Tinha alguns livros sobre a mesinha redonda.
– Você está lendo livros comunistas, Maria?
– Estou.
– Que horror! Ali! é verdade! Seu pai me falou que você tem
um romance estupendo que um tal Dr. Pinto lhe deu! Você quer me emprestar?
– Já devolvi. Foi emprestado, não foi dado. E não tem
nada de estupendo.
– Seu pai que disse!
– Quando é que esteve com ele?
– Ontem. Achei ele preocupado!
Tia Carlota de repente pegou nas mãos de mana Maria:
– Vamos! Responda! Por que é que você não quer casar
com o Dr. Ismael Pinto?
– Não é Ismael: é Samuel.
– Isso mesmo: Samuel.
– Por quê? Papai é que lhe encomendou essa pergunta, está
visto!
– Foi ele sim. Mas isso não tem importância. Responda pra mim.
Por quê?
– Por que é que você casou com tio Laerte?
– Ora essa. Porque… porque gostava dele, porque queria casar.
– Pois é isso.
– Como isso?
– Não caso porque não gosto do médico e não quero
casar.
Tia Carlota esmagou o cigarro no cinzeiro (Abdulla tem esse defeito, queima
sozinho) tornou a pegar nas mãos da sobrinha, arranjou um ar grave:
– Sabe de uma coisa? Você faz muito bem! Não gosta dele, não
case! Depois, você tem dinheiro, não precisa de amparo de ninguém.
– Nem que precisasse.
– Ora essa. Ah! não! Isso não!
O protesto foi tão pronto, tão vivo, que mana Maria estranhou.
Tia Carlota percebeu a estranheza:
– Para que essa cara.
– Nada. Pensava que você não dava importância a dinheiro.
– Não dou mesmo. Gasto tudo quanto tenho. Desprezo dinheiro. Dinheiro
para um é lixo. Jogo fora logo. Mas não vale a pena falar em
coisas tristes.
Ergueu-se, foi até o porta-chapéus (- Você precisa reformar
estes móveis, não se usa mais porta-chapéus de gancho!)
olhou de perto a boca, olhou mais de longe os cabelos, suspirou.
– Bom. Vou dar o fora. Minha missão está cumprida.
Mas era evidente o desejo de ficar. Mana Maria sentia isso, percebia na tia
a vontade, talvez a necessidade de um desabafo.
– Fique mais um pouco falou.
– Está bem. Fico se você me deixar fumar um cigarro. Quem fuma
seus males espanta. Não sabia?
– Fico sabendo.
Aquela figura sentada no bordo do sofá, de pernas trançadas,
o busto inclinado para a frente, cotovelos fincados no regaço, a mão
que segurava o cigarro à altura da boca, mana Maria via sempre, igualzinha,
nos desenhos de capa de revista, nos retratos de estrelas cinematográficas.
Todos os gestos e atitudes de tia Carlota eram convencionalmente elegantes,
de tela.
– Que olhar é esse? Nunca me viu? Não gosto que olhem para
mim!
Mana Maria sempre pensou o contrário.
– Você se engana! Detesto que me olhem! Toda a gente me acha bonita.
Me dá uma raiva! Eu não me acho feia. Mas também essa
maravilha que dizem!…
Então se queixou da vida. Estava farta da vida, estava farta de ouvir
elogios. Só isso é que ouvia em toda a parte, a toda a hora.
E de repente:
– Você não sente às vezes vontade de fazer uma loucura?
Não sei bem dizer, uma coisa assim como se jogar pela janela, quebrar
tudo, apunhalar gente na rua? Eu sinto. Hoje estou nos meus dias. Briguei
com Laerte, gritei com os criados, pintei o sete! Este maldito cigarro, se
a gente não toma cuidado, queima os dedos. Também é a
última caixa…
– Por quê?
Fez um sorriso amargo.
– Por quê? Você quer saber por quê? Porque não há
mais dinheiro! Ah! Senhor! É melhor não ligar pra esta miséria
de vida!
Foi para o piano.
– Sabe que é isso?
– Viúva Alegre?
– Ainda não, infelizmente!
E riu. Mana Maria não achou graça.
– Você precisa arranjar uma ocupação qualquer, tia Carlota.
Uma coisa que lhe encha o tempo. Uma coisa séria. Um filho, por exemplo.
– Está doida! Basta o marido! Você ainda quer me dar um filho!
Deus me livre!
Largou o piano, acendeu mais um cigarro:
– Isso que eu disse é brincadeira minha. Você precisa se casar.
Então chegou a vez de mana Maria rir.
– Não ria não. É isso mesmo. Mulher foi feita para casar.
– E ter filhos.
– Isso não. Quer dizer: você por exemplo é o tipo da
mãe. Mas eu não. Não tenho saúde, não tenho
jeito e agora também já não tenho dinheiro.
Esse assunto de dinheiro não agradava mana Maria. Ia dirigir a conversa
para outro lado. Mas tia Carlota continuou:
– Se você soubesse a apertura em que nós estamos…
Não houve outro jeito senão falar:
– Não é possível.
– É sim.
E os olhos umedeceram logo porque em tia Carlota as lágrimas eram
fáceis como a alegria. Foi preciso ir para o quarto de mana Maria onde
havia deixado a bolsa com o lenço. De pé, virando a cabeça
de forma a concentrar as lágrimas no canto do olho para chupá-las
com a pontinha do lenço torcida, tia Carlota ia falando:
– Já há tempos eu via Laerte preocupado. Até que ontem
ele me contou a verdade. De forma que este inverno não podemos sair
de São Paulo. Veja você que situação!
Mana Maria sem dizer palavra esperava o momento da facada. Recusaria? Recusaria.
– E de vestidos, então, nem se fala! Aí mana Maria falou:
– Que criancice, tia Carlota! Para que mandar fazer mais vestidos? Você
já tem uma coleção enorme. E toda ela moderna. Esse de
hoje por exemplo é novo.
Tia Carlota guardou o lenço na bolsa, estava mesmo em frente do espelho
grande do guarda-roupa, aproximou-se, passou as mãos pelas cadeiras,
arqueou os braços, colocou-se de viés e sem tirar os olhos do
espelho:
– Você não acha que ele me engorda um pouco?
– Não. Vai muito bem para você.
Tia Carlota começou a pôr o chapéu.
– Se eu pudesse diminuir um pouquinho estes seios! Operação
eu não faço, tenho medo. Mas não são muito exagerados,
você não acha?
– Que idéia!
No jardim tia Carlota perguntou:
– Então, nada feito?
– Como, nada feito?
– Casamento? Seu pai na certa aparece hoje a noite para saber o resultado.
Não fale nada com ele, bem?
– Fique descansada.
– Nada feito?
– Nada.
Mana Maria acompanhou-a até o automóvel. Já o chofer
batera a porta quando tia Carlota se lembrou:
– É verdade! Vocês vão jantar comigo quinta-feira?
– Vamos!
– Não se esqueçam! Às oito horas!
Mana Maria fechando o portão pensava no presente de aniversário
para tia Carlota. Um vidro de perfume? É. Tabac Blond.
9
Joaquim Pereira ainda não eram sete horas e já atropelava a
filha:
– Você não vai se vestir?
– É cedo. Em cinco minutos eu me apronto.
– Está bem.
Mas positivamente não estava. Ia para o quarto, perfumava o lenço,
dava uma escovada no cabelo, voltava para a saleta onde a filha lia um jornal
da tarde.
– Olhe que já são sete horas!
Mana Maria pousou o jornal no colo:
– Mas, papai, que pressa é essa?
– Você sabe que eu gosto de comparecer na hora marcada. Acho uma falta
de educação a gente chegar tarde.
– Fique sossegado que nós chegaremos a tempo.
E chegaram. Joaquim se demorou pagando o táxi. Depois, como a filha
não se movesse da calçada, falou:
– Vá entrando, que eu tenho ainda de comprar cigarros na esquina.
Mana Maria entrou. E logo no hall, sentado entre tio Laerte e um irmão
deste, Major Nicolau, membro do Instituto Histórico e Geográfico,
deu com o Dr. Samuel Pinto. Instintivamente teve um movimento de recuo. Mas
foi um segundo. Tio Laerte veio ao seu encontro. Visivelmente contrafeito.
– O Joaquim?
– Vem já.
Mana Maria apertou a mão do major. O Dr. Samuel Pinto estendeu a sua.
– Já se conhecem, não é verdade? falou tio Laerte.
– Já. Boa noite, doutor.
E quando o médico afogueado e sorridente observava que há muito
não tinha o prazer de a ver, etc.:
– Com licença.
Tia Carlota estava na sala de jantar às voltas com um vaso de flores.
A mulher do Major Nicolau contava as graças do neto. Tia Carlota se
enrubesceu um instante. Mana Maria viu o rubor, falou entregando o presente:
– Para você perfumar seu aniversario.
– Ora, para que você foi se incomodar? Muito obrigada.
Esperava uma palavra de protesto, uma censura indignada. Mas a calma da sobrinha,
seu ar de indiferença, a fez pensar que vinha avisada pelo pai ou ao
menos com o espírito preparado. Antes assim. A presença do Dr.
Samuel lhe fora anunciada horas antes. Ela protestara a princípio.
Falou mesmo em indecência. Mas o marido, para sua grande surpresa, fincou
o pé. E ela cedeu certa de que a sobrinha se indignaria, faria um escândalo,
qualquer coisa assim. A responsabilidade não era dela. E isso mesmo
pretendia explicar para mana Maria.
– Venha tirar o chapéu.
Foram para o toucador.
– Olhe, Maria, eu lhe dou minha palavra de honra que o convite ao Dr. Samuel…
– Eu estou lhe perguntando alguma coisa?
– Não. Mas eu faço questão que você saiba…
– Eu não quero saber nada.
Tia Carlota ficou sem jeito.
– Ao menos você não está zangada com comigo?
– Zangada propriamente, não. Surpresa. Nem isso. Está tudo
certo.
E sorriu. O sorriso doeu em tia Carlota. Humilhou-a.
– Olhe, Maria, eu não sei o que você está pensando. Mas
eu juro para você que seu pai e Laerte é que arranjaram essa
embrulhada. Laerte só me avisou faz umas duas horas, se tanto. E me
proibiu que prevenisse você.
Era verdade. Mana Maria sentiu. Nunca a tia lhe falara naquele tom de sinceridade.
– Acredito. Fique descansada que isso não tem importância nenhuma.
Voltaram para a sala de jantar. Uma porta envidraçada separava-a do
hall. Tia Carlota falou:
– Façam o favor…
Joaquim foi o último a entrar. Parecia um menino chamado para receber
o castigo da travessura. Seu olhar se encontrou com o da filha. Um segundo.
Mas bastou para que ele percebesse o desastre. De forma que um mal-estar horrível
tomou conta dele. Sem saber bem o que fazia olhou o relógio. O Major
Nicolau caçoou:
– Que é isso? Está com pressa, homem? Quis dizer qualquer coisa,
não soube, sorriu desenxabido. Tia Carlota colocou o Dr. Samuel à
sua direita e para junto deste mana Maria se deixou empurrar por tio Laerte.
Do outro lado da mesa redonda bem em frente ficou o pai. Dona Ester, mulher
do Major Nicolau, perguntou para mana Maria:
– Ana Teresa como vai?
– Vai bem, obrigada.
– Já deve estar mocinha.
Dr. Samuel entrou na conversa:
– Guardo uma excelente impressão dela. Uma menina muito dócil,
muito bem-educada. Deve lhe dar muita satisfação, pois não?
Mana Maria não respondeu.
– Imagine! É como se fosse filha dela! – falou tia Carlota.
– Esta sopa é de milho verde?
– É. Você não gosta? perguntou tio Laerte. O major falou:
– Gosto muito. Parece espargo.
– É espargo que se diz? Sempre ouvi dizer aspargo.
O major deu duro na mulher:
– Espargo, sim senhora! Aspargo falam as cozinheiras. Delas é que
você ouviu dizer aspargo!
– Você está enganado! Ouvi dizer de muita gente boa.
– Ignorância.
– Mas que discussão! exclamou tia Carlota. Deixa isto para o Instituto
Histórico, Nicolau.
– Se o senhor gosta de História, Dr. Samuel, tem aqui um entendido.
– A História é mestra da vida, minha senhora. Quem sabe História
sabe o futuro.
– Bravos! aplaudiu o major.
– Para que saber o futuro, agora? Depois cartomante também sabe sem
estudar História. Estou brincando, Nicolau, não vá se
zangar.
O major arranjou um ar galante:
– Com você eu não me zango nunca.
O que amargou profundamente a mulher:
– Guarda toda a zanga para mim.
E começaram então a discutir, Dona Ester e tia Carlota atacando
os maridos que fora de casa vendem alegria e no lar implicam com tudo, num
mau humor constante. Dr. Samuel achou azado o momento para conversar em voz
baixa com mana Maria:
– Se não fosse esse jantar eu não teria com certeza o prazer
de cumprimentá-la antes de minha partida?
Mana Maria não abaixou a dela para responder:
– Com certeza não teria mesmo esse aborrecimento inútil.
– Aborrecimento? A senhora sabe perfeitamente que não seria.
Mana Maria com o olhar posto no pai, que desviara o seu, foi logo às
do cabo:
– Mas eu creio que lhe dei uma resposta bem clara ao seu pedido de há
dias. Só se não lhe transmitiram.
Insensivelmente abaixou a voz que tremeu um pouco. O Dr. Samuel sorriu amarelo:
– Transmitiram sem me tirar de todo a esperança. Depois, nós
do Norte somos tenazes. Não cedemos diante do primeiro obstáculo
não.
Mana Maria sentiu o rosto afogueado. Em torno dela era visível o mal-estar.
A discussão sobre os maridos mal-humorados havia cessado. A razão
daquela presença cerimoniosa, até então disfarçada,
se patenteava grosseiramente mesmo aos olhos desprevenidos do major e sua
mulher. Havia em todos um ar de condescendência contrafeita, de cumplicidade
acanhada.
Tia Carlota querendo salvar a situação, piorou-a dirigindo-se
ao cunhado:
– Que tristeza é essa, Joaquim? Não disse uma palavra até
agora.
A resposta saiu tímida, arrastada:
– Eu? Eu estou… ouvindo… Não tenho… motivo nenhum para tristeza.
– Muito ao contrário – pensou sublinhar com malícia o major.
Mana Maria foi ganhando um nojo enorme daquela comédia toda. E com
o nojo tinha pena do pai, do papel triste que ele fazia ali. Estava arrependido.
Era visível. E temia as conseqüências, o pedido de explicação
da filha, a censura fatal que o humilharia. Só o sentimento de sua
superioridade dava a mana Maria a calma necessária para não
estourar, acabar de uma vez com a farsa. Ela era a mais forte. E a consciência
disso tornava sem importância o resto. e jantar podia durar a noite
inteira, a vida inteira. Inutilmente. Ela era a mais forte.
Tia Carlota não tinha vontade nenhuma de conhecer os Estados Unidos.
– Aposto que o senhor vai se aborrecer, Dr. Samuel. É verdade que
o senhor vai estudar, não vai se divertir.
– A senhora prefere a Europa?
– Tenho uma vontade louca de conhecer a Europa. Mas Laerte não se
decide.
O olhar de tia Carlota era um olhar de subentendidos. Punha reticências,
segunda intenção, na frase mais banal. Olhar que encorajava.
Doutor Samuel aos poucos foi se entregando à sedução.
Como um derivativo. Mana Maria discutia educação infantil com
o major. Dona Ester contava graças do neto para o cunhado, tia Carlota
e o médico pegaram a conversar entre sorrisos. Joaquim, sem dizer palavra,
fingia prestar atenção a Dona Ester. Inteiramente voltada para
o major, seu vizinho da direita, mana Maria defendia a educação
religiosa. Até que uma risada mais alta e demorada de tia Carlota desviou
para ela a atenção de todos.
– Sabem o que o doutor acaba de me confessar?
Doutor Samuel ficou uma pinóia.
– Acredita ainda no teu amor e uma cabana!
Ninguém achou graça. E o mal-estar voltou. O médico
passou a odiar tia Carlota. Uma leviana. Uma mulher perigosa. Naturalmente
tinha amantes. Ou então era dessas que de repente cortam a ponte que
elas mesmas lançam. O major falou:
– Mas o Dr. Samuel tem toda razão, Carlota. O amor se contenta com
pouco.
– Só que o doutor se esqueceu dos filhos – disse Dona Ester. – Os
filhos completam a felicidade.
Tia Carlota estava de veneta:
– Que é que você entende por felicidade? Felicidade para mim
é não pôr desgraçados no mundo Aí está!
– Ah! Bom ! você pensa assim…
Dr. Samuel achou oportuno se dirigir a mana Maria:
– As crianças são o encanto do mundo, a senhora não
acha, Dona Maria?
Mas foi tia Carlota que respondeu:
– Para os médicos de crianças principalmente!
Então o Dr. Samuel, a princípio irritado, depois visivelmente
deliciado com as próprias palavras, fez o elogio da criança.
Para o Dr. Samuel, acreditassem, curar uma criança ele não poderia
dizer que era um prazer. Sim. Podia. Era um prazer. Isto é: não
era dos que curavam por obrigação, com mero fito de lucro. Não.
Ele punha na salvação do corpo o mesmo ardor que um sacerdote
poria na salvação da alma.
– Belas palavras, sim senhor ! – exclamou o major.
E partidas do coração, acreditassem. Do leito de uma criança
doente ele nunca se aproximou sem piedade e nunca se afastou sem proveito.
A infância e a velhice são as coisas mais sagradas deste mundo
porque são as que se encontram mais perto de Deus. Sobretudo a primeira.
Porque o velho vai para Deus purificar-se das misérias do mundo. E
a criança vem pura de Deus, livre ainda das misérias terrenas.
– Bravos, doutor ! Eu sempre pensei assim! – falou Dona Ester.
E com razão. Os povos de civilização superior têm
o culto da criança. Por quê? Porque a criança é
o futuro, é o que conforta e sustenta os homens, aquilo que os anima
ainda na hora da morte: a esperança.
– É isso mesmo! "Lasciate ogni speranza…" – aparteou tio
Laerte.
Sim. Na porta do inferno. Ele poderia citar mil casos de sua clínica
para provar a superioridade da criança. Mas seria repetir o que está
na consciência de todos. Contaria um fato só, bastante eloqüente.
Tratava ele uma menina, vítima de pertinaz moléstia infecciosa.
Era órfã. Mas tinha ao seu lado quem lhe fizesse as vezes de
mãe e de mãe extremosa. Um dia, examinando o termômetro,
verificou que a doentinha ainda estava com febre.
E ele ia comunicar isso àquela que dia e noite na cabeceira da criança
se desdobrava em desvelos verdadeiramente maternais, e que naquele momento
se achava de costas para o leito, quando seu olhar se encontrou com o da doentinha.
E naqueles olhos infantis de expressão puríssima, que a febre
tornara ardentes, ele leu claramente um pedido a que não pôde
deixar de se submeter: o pedido de não dizer nada, de não afligir
a enfermeira dedicada, com a notícia de que a febre ainda não
cedera. Só depois de se retirar do quarto, pondo seu dever de médico
acima de tudo, é que ele fizera a comunicação com tanta
grandeza de alma proibida pela criança.
– Lembra-se, Dona Maria?
Era a chave de ouro. Dona Ester emocionada quis falar:
– Meu netinho também…
Mas não pôde concluir. Porque o marido cobria sua voz:
– É o que eu sempre sustentei! Desses gestos só uma criança
é capaz! Admirável! Admirável! E sem saber bem o que
dizia:
– Meus cumprimentos, Joaquim! Também para você, Maria!
A admiração que sempre lhe causava a facilidade oratória
do Doutor Samuel quebrara o embaraço mudo do chefe de seção
do Serviço Sanitário:
– Sempre foi de fato uma menina de muitos sentimentos, Ana Teresa! Felizmente.
Mana Maria procurou uma saída para aquela cena ridícula. Falou
no ouvido do major:
– Creio que é hora da saúde.
– É? Você acha? Não terá champanhe? Eu não
vejo taça!
– É nesse copo comprido que servem.
O major observou:
– Futurismo.
E alto para o irmão:
– Como é, Seu Laerte, não tem champanhe para a saúde?
– Tem, como não!
De forma que depois de um ligeiro protesto de tia Carlota (para quem era
bobagem essa história de saúde) se fez um silêncio de
expectativa. A criada encheu os copos. Feito o quê, o major tomou a
palavra de copo erguido:
– Carlota, queira receber os nossos votos de muita felicidade! Ad multos
annos!
– Muito obrigada pela felicidade e pelo latim! É latim, não
é?
– Do bom! Daquele que se ensinava no meu tempo, não desse de hoje.
Mana Maria perguntou sorrindo:
– Tem diferença?
Mas não obteve resposta porque tio Laerte bebia à saúde
de Dona Ester, marido, filhos e netinhos. Pousados os copos, houve nova saúde
levantada pelo major que desejou muita prosperidade para o caro Joaquim e
suas gentilíssimas filhas. A criada surgiu com uma bandeja de sorvetes.
Tio Laerte falou:
– Espere um pouco. Tem ainda uma saúde. À felicidade do Doutor
Samuel e ao bom êxito de sua próxima viagem!
Dr. Samuel se declarou comovido no seu agradecimento. E reparou que mana
Maria mal ergueu o copo sem levá-lo aos lábios. O major achou
o sorvete ótimo. Joaquim e a filha concordaram. Dr. Samuel adiantou
que nunca tomara tão bom. Dona Ester em vez do esperado elogio perguntou:
– Sua cozinheira que fez?
Tia Carlota falou:
– Quem mais?
– Podia ser de confeitaria.
O major se zangou:
– Êta mulher, meu Deus! Quando é que confeitaria já fez
sorvete assim?
Dona Ester ostensivamente deixou o sorvete pela metade.
– Café aqui ou no hall?
– No hall – preferiu tio Laerte.
Tia Carlota se levantou. Sentada na cadeira de vime depois que o Dr. Samuel
lhe acendeu o cigarro compôs seu olhar mais perigoso e disse baixo:
– Perdoe a minha brincadeira de há pouco.
– Ora, minha senhora! Eu é que lhe peço perdão de contrariar
suas teorias amorosas. Naturalmente fruto de uma experiência que me
falta..
Era a vingança. Acadêmico na Bahia, o Dr. Samuel ganhara fama
de terrível ironista.
– Você acha?
Estranhou o você. Não. Com ironia não ia. Melhor ser
cínico. Tinha sempre na lembrança o que lhe dissera sua mãe
sobre as donas da alta sociedade: são as piores.
– Meu olho de clínico, minha senhora. Não falha.
Tia Carlota desviou o rosto, franziu as sobrancelhas, demorou o olhar na
sobrinha que conversava com Dona Ester, encarou o doutor, disse num sorrisozinho:
– Então é certo o que dizem? Os médicos só acertam
no diagnóstico e conseguem curar quando se trata de doença alheia?
Quando eles mesmos ficam doentes não sabem se tratar?
Com mulher daquele tipo ele não sabia lidar. Não era a primeira
vez que verificava isso.
– Que é que a senhora quer insinuar com isso?
Ela fingiu impaciência:
– Ora! Morda aqui! E a minha experiência amorosa onde é que
está? Se quiser eu lhe servirei de médico-assistente.
– Não se brinca assim com os sentimentos alheios, minha senhora!
– Mas eu não estou brincando. E francamente acho seu caso desesperador,
sem remédio…
Dr. Samuel ia ser malcriado. Positivamente. Com certeza tia Carlota percebeu
isso no jeito nervoso dele. A criada entrava com o café, ela disse:
– Em todo o caso experimente uma xícara de café. Quem sabe
fará bem…
Levantou-se, foi para junto da sobrinha. Então o major e Joaquim se
aproximaram do médico. O major desenvolvia um de seus temas históricos
prediletos: a vantagem que resultaria para o Brasil se tivesse vingado a colonização
holandesa. E era uma de suas manias: não dizia Holanda, dizia Batávia.
De forma que Joaquim concordava sem entender direito.
– Hein, doutor? Não é verdade? O Brasil colônia da Batávia!
Que colosso.
O Dr. Samuel não estava disposto a discutir o que quer que fosse naquele
momento. Sentia-se humilhado. Era homem que se humilhava com facilidade mas
não inutilmente. Então o seu orgulho doía.
– Sob o ponto de vista da eugenia, por exemplo. Que é que o senhor
acha?
O Dr. Samuel não quis achar nada:
– Não sei não. Seria um caso interessante a estudar.
– É um ignorante, pensou o major. E com redobrada segurança
prosseguiu em suas considerações. Enquanto o médico procurava
tomar uma resolução. Retirava-se. Despedia-se secamente e retirava-se.
Logo. Mas isso era abandonar a luta e não era de seu feitio abandonar
uma luta. Nem até então fora vencido em nenhuma. Quando Joaquim
timidamente, por meias palavras, lhe comunicou a resposta da filha ao pedido
de casamento, ele perguntara: O casamento é de seu gosto, pois não?
Joaquim pela milésima vez disse que sim. E Dr. Samuel, dominando â
vontade aquele homem sem nenhuma, obteve dele que arranjasse um encontro com
a filha: – Eu a convencerei, tenho certeza. Mas de que forma? – Joaquim não
descobria um jeito bom. Andava à procura dele quando lhe apareceu o
concunhado para pedir depois de uma conversa muito longa cinco contos de réis
por quinze dias. Cinco Joaquim não tinha. O que confessou sumamente
envergonhado. Tinha (ia dizer três) mas insensivelmente saiu um. Disse,
um, sentiu remorso, acrescentou: um e quinhentos. E ficou em paz com sua consciência.
Tio Laerte guardou o cheque e ouviu as queixas de Joaquim.
– Então não quer casar mesmo?
– Veja você. Recusar um partido dessa ordem!
– E ele continua firme? Firmíssimo.
– Ah! Então fique tranqüilo. A Maria acaba cedendo. Você
não conhece nortista.
A questão é que conhecia a filha. Contou o embaraço
em que estava. E foi então que tio Laerte sugeriu convidar o pretendente
para o jantar de aniversário da mulher. Esta ficaria por conta dele.
Joaquim (como sempre) relutou em aceitar a idéia. Mas o cunhado avocou
para si toda a responsabilidade:
– Se ela ficar zangada, você manda falar comigo.
Joaquim cedeu:
– Assim, sim.
Apertou agradecido a mão do concunhado (podia ter dito dois contos),
recusou os agradecimentos dele, comunicou logo o plano ao Dr. Samuel.
– Olhe que é a última tentativa que eu faço. Dr. Samuel
garantiu que nem era necessária outra. E entregava os pontos? Não
entregava.
– Já disse para os confrades do Instituto Histórico e estou
pronto a repetir onde e quando queiram: se o Brasil tivesse passado para o
domínio da Batávia seria hoje o primeiro país do mundo!
Joaquim arriscou uma pergunta tímida!
– Maior que a Inglaterra?
– Maior que a Inglaterra!
Tio Laerte perguntou:
– Que é que é maior que a Inglaterra, Nicolau?
E informado do que se tratava deixou o grupo das mulheres para discutir com
o irmão. O que ele fazia sempre para pôr em destaque os conhecimentos
históricos do major, sua grande admiração. Fazia umas
objeçõezinhas que ele mesmo sabia idiotas para o major responder
com vantagem. O Dr. Samuel se decidiu e entrou na conversa das mulheres. Dona
Ester falava do netinho. Não tinha outro assunto.
– Que idade tem ele, minha senhora?
– Vai fazer quatro anos em agosto.
– É forte?
– Oh! uma criança linda! Só queria que o senhor visse!
Por enquanto ele não tirava os olhos de mana Maria. Mas como dizer
o que queria na presença das outras? Se não o deixavam a sós
com ela por que aquele jantar? Tia Carlota falou:
– Sente-se, doutor.
Sentou-se no canapé de vime ao lado de mana Maria. O olhar malicioso
de tia Carlota irritava-o. Aquela mulherzinha estava se divertindo à
custa dele.
Tinha umas pernas bonitas a sem-vergonha. Dona Ester traçava um plano
de educação para o netinho:
– Eu já disse para Nini. Nada de botar o menino desde cedo num colégio.
A melhor educação é a que se dá em casa. Dizem
que os comunistas na Rússia separam as crianças das mães.
Comigo, eles veriam! Preferia matar meu filho a entregar para os bandidos!
O senhor não é comunista?
– Sou adversário decidido do comunismo, minha senhora! A sociedade
não prescinde dessa célula que é a família e o
comunismo destroi a família! Ainda há pouco li um estudo…
Tia Carlota interrompeu:
– Comunista aqui só existe a Maria.
Dona Ester se sacudiu toda na cadeira:
– Que horror, minha filha! É verdade?
– Brincadeira de tia Carlota.
– Não é não. Você é comunista.
Doutor Samuel interveio:
– Dona Maria naturalmente é uma inteligência aberta às
reformas sociais. Percebe, como todos nós, os erros do regime capitalista
e quer…
– Não! Eu não posso acreditar que Maria seja comunista! Que
horror, meu Deus!
Mana Maria sossegou Dona Ester:
– Não acredite. Tia Carlota gosta de brincar. Eu tenho um instinto
de propriedade tremendo. O que é meu é meu. E em geral só
gosto do que me pertence. Não poderia morar numa casa que não
fosse minha.
Levantou-se.
– E vou para ela, papai, minha casa que já são horas. Papai,
vamos indo?
Disse num tom tão brusco que assustou tia Carlota, incomodou Dona
Ester, empalideceu o Dr. Samuel. Joaquim perguntou de mansinho:
– Você falou comigo?
Tia Carlota não deixou a sobrinha responder:
– Não é nada, Joaquim! Pode continuar sua conversa!
Mana Maria se arrependia mas não cedia. A idéia lhe veio de
repente, ela falou, se levantou, não se sentava mais.
– Não, papai. São horas. Vamos?
Tia Carlota teimou:
– Não admito! Que horas, coisa nenhuma! Sente-se, Maria, deixe de
ser boba!
– Não. Se papai quiser ficar, eu vou sozinha. Mais uma vez (tinha
consciência disso) decidia o seu destino.
E abandonando o caminho que para outras seria o mais agradável ou
o menos desagradável (para ela também, quem sabe, não
queria saber) escolhia o outro, o dela, onde seria sozinha. Joaquim não
dizia palavra, ar de tonto, hesitando. A filha decidiu por ele:
– Fique papai. Naturalmente tio Laerte quer jogar. Eu tomo um táxi.
Não tem importância. Com licença.
Foi pôr o chapéu. Dona Ester falou baixinho para o Doutor Samuel:
– Ela teria ficado aborrecida com o negócio do comunismo?
– Como, minha senhora?
– A conversa sobre o comunismo parece que contrariou a moça.
O Doutor Samuel pôs um profundo sarcasmo na voz:
– Não foi isso não, minha senhora! A razão é
outra. Eu conheço bem esses temperamentos. Freud explica isso.
– Quem?
– Freud. A senhora nunca ouviu falar em Freud?
– Não. Quer dizer…
– Pois Freud explica o caso perfeitamente, esses nervosismos subitâneos,
essas explosões.
Tia Carlota seguira a sobrinha.
– Eu compreendo sua vontade de ir embora. mas faça um esforço
e fique mais um pouco.
Mana Maria disse que não, que estava de fato cansada, se levantara
muito cedo, passara a tarde inteira na cidade fazendo compras, queria dormir.
– Está bem. Mas não guarde nenhuma raiva de mim.
– Raiva por quê?
Enquanto a sobrinha punha o chapéu (foi um segundo), calçava
as luvas (nem arranjara o rosto). Tia Carlota aprovava a resolução
da sobrinha:
– Você quer saber de uma coisa? Você tem toda a razão.
É um bocó de mola. Quer dizer: todo metido a sebo, falando difícil,
teimoso (eu gosto de homem teimoso), mas um bocó. Depois, feio! Parece
um sapo. Papapá, papapá, papapá, minha senhora pra cá,
minha senhora pra lá, medicina é sacerdócio. família
é não sei quê, não vai não.
Mana Maria (estava nervosa) falou:
– Pois eu pensei o contrário. Pensei que ele tinha agradado você.
– Por quê? Porque brinquei com ele?
– É…
– Xii, Maria, você não me conhece!
Sorriu, acrescentou com um brilho nos olhos:
– Quando eu quero de verdade ninguém resiste…
Outra qualquer dizendo isso irritaria mana Maria. Tia Carlota era diferente.
Era uma menina louca. Mana Maria falou e abriu a porta:
– Eu imagino.
– Como os homens são idiotas, meu Deus!
Mana Maria quis chamar um táxi.
– Não. Eu mando levar você. O chofer está aí para
isso.
Mana Maria não aceitava nada de ninguém:
– Para quê? Eu vou bem de táxi.
– Não, senhora. Um marido eu compreendo que se recuse. Mas um automóvel
não admito. É o cúmulo.
Agora era o momento difícil da despedida. Ninguém se sentia
à vontade. Mana Maria apertou a mão do major:
– Boa noite, major.
– Então, já vai?
– Já.
– Boa noite.
Apertou a mão mole (mana Maria desconfiava de quem não punha
energia no aperto de mão) de tio Laerte:
– Até qualquer dia.
– Quer deixar mesmo a gente tão cedo?
– Preciso.
– Vá com Deus.
Apertou a mão de Dona Ester (mana Maria detestava beijos):
– Lembranças para Nini. E para o netinho também.
– Você precisa marcar um dia para conhecer ele.
– Qualquer dia telefono.
– Não deixe mesmo de telefonar.
Apertou a mão do Doutor Samuel sem dizer palavra. Só uma ligeira
inclinação de cabeça. Foi comoção, foi
qualquer coisa. ele reteve a mão enluvada murmurando:
– Muito prazer…
Com um ligeiro puxão, ela se desembaraçou, disse para o pai:
– Então, até logo.
– Até logo. Eu não demoro muito.
Tia Carlota acompanhou-a até o terraço:
– Desse você está livre.
10
Felizmente para Joaquim o Doutor Samuel logo depois da saída de mana
Maria retirou-se também. Não se justificava mais a presença
dele, não havia mais conversa que pegasse, tio Laerte propôs
que se jogasse bridge, Doutor Samuel não jogava, tio Laerte por delicadeza
retirou a proposta, ele compreendeu:
– Eu peço licença para me retirar.
Foi uma despedida fria, remate rápido de um aborrecimento. Joaquim
se sentiu aliviado, readquiriu a fala, pediu para a cunhada tocar, desafiou
os campeões presentes para um bridge bravo. Estava por ora livre do
que ele mais detestava no mundo: uma explicação. E no caso eram
duas. Mas a filha estaria dormindo quando ele chegasse em casa e o Dr. Samuel
ficaria para o dia seguinte. Com certeza ele o procuraria no Serviço
Sanitário. E seria uma conversa desagradável. Paciência.
Até lá o homem se acalmaria, se convenceria de que malhava em
ferro frio. E quanto à filha, ele a conhecia. Só falaria se
provocada. O pai não tocando no assunto, ela também não
tocaria.
O licor aumentou o seu bem-estar. Já meia-noite passada tomou o caminho
de casa. A pé para fazer um pouco de exercício. Se fosse ver
a Zoraide? Não. Sem telefonar primeiro era arriscado.
– Táxi, doutor?
– Não.
Dobrou a esquina. Ninguém. É bom surpreender assim as ruas
desertas no silêncio noturno. De dia a atenção se perde
no bonde que passa, na casca de banana, no pregão dos vendedores ambulantes,
nuns olhos, num palavrão, num anúncio. A gente vê perto
e vê baixo. Das casas só tem importância a vitrina das
de comércio, o número das de moradia. De noite, tudo muda. Não
há perigo de esbarros, de atropelamentos. A vista se alonga desembaraçada.
É possível parar, erguer a cabeça, embasbacar, cismar,
examinar, não há respeito humano. E a rua: postes, árvores,
jardins. fachadas. Os homens dormem: a rua vela. Ele não saberia exprimir
(não era literato, graças a Deus) a sensação gostosa
que lhe davam essas voltas a pé para casa noite alta. Mas era evidente
que se sentia mais forte, mais homem, o único homem. De dia se anulava
na multidão, era ninguém. De noite ganhava outro relevo na sua
solidão, uma certeza mais grata de sua realidade. Ouvia os próprios
passos, via a própria sombra.
Dobrou a esquina. Ninguém. Era como se a rua dissesse: – Pode passar,
trânsito livre. Depois na noite vazia, silenciosa, o cheiro dos jardins
é mais forte, a feitura das casas mais branda, as calçadas mais
largas, as esquinas mais misteriosas. A imaginação tem campo
livre. Os homens são prisioneiros das casas, tranca na porta, cadeado
no portão. Está reintegrada a rua na posse de si mesma, no gozo
de sua liberdade. Tal como é e não como a fazem e sujam os homens,
a desfiguram os homens de dia. Deserta a cena, vive o cenário. Através
das venezianas no terceiro andar da casa de apartamento se escoa uma luz vermelha.
Se ele fosse ver a Zoraide? Quase uma hora. Tarde demais.
Dobrou a esquina. Alguém. Ainda distante, na mesma calçada,
cambaleando. Embriagado. Melhor atravessar a rua. Detestava bêbados,
tinha pavor de bêbados. O vulto colou-se à árvore. Depois
se equilibrou na guia do passeio, pesadamente desceu ao leito da rua. Joaquim
resolveu não mudar de calçada. Agora o bêbado olhava o
céu. Lua cheia. Tirou a palheta. Era o Platão de Castro. Joaquim
apressou o passo.
– Ó Pereirinha!
– Como vai, Platão?
Não parou.
– Espere aí um pouco!
– Não posso. Estou com pressa!
Platão berrou:
– Es-pe-re, seu canalha!
Quis correr, estatelou-se nos paralelepípedos. Joaquim se voltou,
teve pena, foi erguer o bêbado.
– Não precisa me ajudar! Eu me levanto sozinho.
Mas Joaquim ajudou. Depois ergueu a palheta.
– Vá dormir, Platão!
– Não. Quero propor uma coisa para você.
– Agora não tenho tempo.
– Fique ai, seu! Está vendo a lua? Responda. Está vendo a lua?
– Estou.
– Não tem pena dela, não? Responda. Segurou o braço
de Joaquim.
– Tenho.
– Então vamos latir para ela pensar que é cachorro.
Joaquim puxou o braço, empurrou o bêbado, quase o derrubou,
saiu na disparada. Platão gritava:
– Pereirinha, você não é poeta, Peireirinha! Seu animal!
Seu bandido! Seu bêbado!
Dobrou a esquina. Três varredeiras da Prefeitura. A poeira subia em
caracol, se esborrachava nas arvores, nos postes, nas fachadas. Joaquim tapou
com o lenço nariz e boca, furou a nuvem de olhos fechados. A moreninha
do 79 suicidou-se três dias antes com lisol. O que ela tinha de mais
bonito era o andar. Coisa mais provocante. Imaginem aquela perfeição
debaixo da terra apodrecendo. Que horror. De Purezinha então só
podiam restar ossos. Para que pensar nessas coisas? Mas pensava sempre, era
um sofrimento.
Dobrou a esquina. Ninguém. A magnólia plantada por Purezinha
estendia um ramo sobre a calçada. Pensando bem, não há
nada como ter uma casa: a casa da gente. Pátria, podem falar o que
quiserem, pátria, bobagem. Ele não pegaria em armas para defender
a pátria. Mas atacassem a casa dele para ver. Nunca imaginou que pudesse
haver porão fedido como o da viúva do médico italiano.
Um cheiro de gato, impossível. Empestava a calçada. Atravessou
a rua pensando que a noite não estava assim tão quente. E sentiu
em toda a sua plenitude essa delícia que é chegar.
11
Adelaide, portuguesa peituda, cantava lavando o terraço. A cometa
do tripeiro soou na esquina, insistiu inutilmente diante do 52 (Adelaide não
deu importância), foi soar em outra freguesia.
– Estado! Fanfulla! Fôôôlha!
O caminhão da Antártica passou sacudindo as casas. Cozinheiras
iam e voltavam da feira carregando cestas, os chinelos estalavam nas calçadas.
– É a sorte de hoje! É o cavalo com 43!
Adelaide largou escova, balde e pano, correu para dentro de casa.
– Garrafeiro! Garrafa vazia! Garrafeiro!
A viúva de quimono curto veio mostrar as pernas gordas na calçada.
A carroça com a mudança pobre rodava devagarzinho. No meio da
rua. O italiano de preto tapou o sol com o maço de bilhetes para ver
o aeroplano. A sereia da Assistência uivou numa rua próxima.
– É a Paulista com 100 contos! Último inteiro para hoje!
Adelaide desceu depressa a escada de mármore, entregou para o italiano
dos bilhetes duzentos réis embrulhados num papelzinho. De sandálias
sem meia, acompanhados pela criada vesga, passaram os quatro filhos menores
impúberes, uma escadinha, do Doutor Laurindo de Sá. Um mulato
de palheta com uma carta na mão, olhava o número das casas.
Escorregou na casca de banana, se equilibrou, riu de seu quase tombo, entregou
para Adelaide espiando no portão o envelope cor do céu.
– Tem resposta?
– Ele não me disse para esperar é porque não tem. Até
logo.
Mana Maria lia no Estado o crime passional que agitara o bairro da Moóca
enlutando dois lares húngaros, quando Adelaide lhe entregou a carta.
Conheceu logo sem nenhuma surpresa a letra esparramada do Dr. Samuel, a letra
das receitas: tome de duas em duas horas diluído em um cálice
de água. E de novo a indecisão como acontecera com o livro:
lia não lia, lia não lia. Mana Maria disse para si mesma que
não era assim. Essa maldita história, é que a estava
deixando hesitante. Pensar isso foi o suficiente para deliberar logo abrir
o envelope. Sabia o que estava dentro. Mas também podia ser que não
fosse o que pensava. Quando menina tinha absoluta certeza da soma que o cofre
continha. Contava todos os dias, escondia a chave debaixo do colchão.
E todos os dias o abria, contava os níqueis com uma esperançazinha
louca de que tivesse mais.
Enchia quatro páginas e dizia assim:
"Senhorinha!
O vosso orgulho ou a vossa mórbida indiferença recusaram a
proposta honesta que eu fiz, menos por mim, que sou homem e sei vencer na
vida, do que por vós, que sois mulher e tendes necessidade de um amparo
outro que não o paterno ou o fraterno. Recusastes e eu, nas vésperas
de uma viagem, que tenho a certeza será mais um triunfo na minha carreira,
não quero insistir, embora certo de que não refletistes bem
sobre a excelsitude do destino que, ao meu lado, como senhora do meu lar cristão,
vos esperava! Não vos dirijo esta, pois, para vos desvendar um coração
alanceado e pedir-vos misericórdia. Não! Almejo precisamente
desiludir-vos sobre o mal que porventura pensais haver-me feito e tirar-vos
assim qualquer possibilidade de remorso. Sou moço, sinto-me forte e
pertenço a uma raça de bravos que a adversidade não abate
e atemoriza. A vossa atitude nenhum golpe representou para mim, que na luta
retempero minhas energias de brasileiro digno e profissional honrado. Se vos
disserem que sofro, não acrediteis. Posso vos assegurar até,
sob palavra de honra, com o pensamento voltado para Aquele que julga todos
os nossos atos e intenções mais recônditas, que se pressuroso
me mostrei às vezes, foi por instigação de vosso pai,
tomado do nobre desejo de vos dar companheiro dedicado e fiel, capaz de vos
tornar menos cruel e monótona a existência e concretizar dignamente
os vossos sonhos de mulher. Assim não quisestes talvez para felicidade
minha!… Não vos preocupeis comigo. E onde quer que me conduzam o
meu trabalho, o meu talento, a minha capacidade e a minha estrela, contai,
sempre, por maior que seja a vossa precisão, com os meus sentimentos
cristãos de solidariedade humana. Vosso respeitoso servo,
Samuel Pinto."
Ficou com a carta na mão avaliando o despeito enorme dele. Sujeitinho
besta. Ferido no seu orgulho quis humilhá-la. Coitado. Não sabia
com quem se metera. Ela podia ainda guardar uma lembrança de certo
modo simpática do desgraçado. Mas depois dessa carta só
tinha nojo. Aquilo era uma cusparada de vencido. Ela vira uma vez na calçada
de sua casa uma briga de meninos. O que apanhou, deitando sangue pelo nariz,
estendido no cimento, quando o outro se afastava, cuspiu-lhe nas costas. Mana
Maria fazia questão de guardar aquela cusparada idiota. Foi para o
quarto, abriu a secretária, guardou ao lado de outros papéis,
contas do colégio de Ana Teresa, recibos de impostos. Depois se debruçou
na janela. Seu Manuel jardineiro (um dia por semana ela o tratava para arranjar
o jardim) podava devagar uma roseira. Conversando com o entregador mulato
da Confeitaria Esmeralda, cesta vazia debaixo do braço.
– Seu Manuel, o senhor não entende nada de mulher!
– Pois sim.
Tinha um ar canalha e chupava um cigarro.
– Não entende não. Acredite no que estou lhe dizendo, Seu Manuel.
Não há como mulher do interior!
Seu Manuel sacudia a cabeça. Mana Maria achou que devia sair da janela
mas ficou escutando.
– Mulher da capital é besta, quer dinheiro, chama a polícia,
Deus me livre!
– Pois aqui onde me vê já tenho papado muitas e nunca tive motivo
de queixa.
Envergonhada, uma quentura no rosto, incomodada, ela deixou a janela.
– E porque o senhor não sabe o que é coisa boa. Olhe, seu Manuel:
mulher do interior a gente derruba ela, ela cai sempre de jeito, prontinha!
– Explica isso melhor, rapaz. Conta cá como é essa caída
assim tão jeitosa.
Então aquele domínio sobre si mesma, mais forte que a sua vontade,
que a fazia sempre retroceder na hora de dar o último passo, que a
retinha no momento exato da condescendência, da derrota, da fraqueza,
o que fosse, arrancou mana Maria da janela, abruptamente. Voltou para o escritório,
pegou o jornal, sentou-se. Porém a tragédia passional do bairro
da Moóca não a interessava mais. Resolveu ver quem havia morrido.
Falecimentos. Correu os nomes, não conhecia nenhum. Deu nela vontade
de voltar para o crime dos húngaros, mas foi um instante só.
Jogou o jornal no sofá, levantou-se decidida a ir visitar o túmulo
da mãe. Numa das reviravoltas comuns de seu espírito. Passar
do preto para o branco, limpar-se neste das impurezas daquele. A conversa
do jardim a perturbava, a revoltava, talvez prosseguisse entre detalhes canalhas,
ia acabar com ela.
Chamou a copeira:
– Diga pra Seu Manuel cortar umas dálias, um molho grande. Mas sem
demora, imediatamente!
No quarto, vestindo-se depressa, ouviu a Maria gritar a ordem ao jardineiro,
depois os passos do mulato do armazém na direção do portão.
E gozou malvadamente a interrupção da conversa indecorosa. Não,
não podia admitir essas coisas na sua casa. Essas coisas. Ora que estupidez,
mulher do interior, mulato imundo. Não podia precisar a sensação
de proibido, de vergonhoso que aquilo lhe dava. Era lixo, isso tinha a certeza
de que era, não adiantava esclarecer que espécie de lixo. Era
e acabou-se.
Pediu um táxi fechado. Seu Manuel cortava periquitos perto do portão,
ela sem olhar mal respondeu ao cumprimento respeitoso dele, fingiu pressa,
ainda fora do automóvel deu o endereço para o chofer:
– Consolação.
– Cemitério?
– É.
Dentro do vasto quadrilátero de muros altos, nenhum ar triste e sim
frio de limpeza e ordem. Ali cada um se despede do atropelo e da confusão
da vida, tem seu lugar na morte. Sobrepostos, lado a lado, apodrecendo jazem.
Como a areia das ruas retas, a pedra dos túmulos alveja sob o sol que
murcha as flores. Os ciprestes montam guarda, o verde-escuro deles acaba oscilando
em ponta, ao vento. Troncos partidos, anjos em prece, cruzes, as sepulturas
ricas, as sepulturas bonitas, as sepulturas pobres, as sepulturas feias, bem
tratadas, maltratadas, não há igualdade. Os ruídos da
rua atravessam o silêncio de arquivo, biblioteca, depósito, silêncio
de morte. Os que passam lá fora tiram o chapéu, os que entram
pisam de leve, a atitude não é propriamente de respeito mas
de cerimônia. Também acanhamento.
Mana Maria ia notando os túmulos novos. Aquele de esfinge deve ser
de sírio. Não disse? Família Yasi. A italiana de papoula
no chapéu preto parou também, admirou, perguntou:
– É um leão?
Informou de má vontade:
– Não: esfinge.
– Ah sei! Finge de leão. É belo!
Não teve vontade de rir. Nem de sorrir. Prosseguiu de rosto fechado.
Quebrou à direita, quebrou à esquerda, estacou. Pôs as
flores nos dois vasos de mármore, ajoelhou-se, apoiou os cotovelos
na lápide, juntou as mãos, nelas encostou a testa, ficou pensando.
Padre Raimundo dizia: A melhor oração é a que o coração
improvisa. Ajudada pela enfermeira, ela vestira o corpo magro da mãe
ouvindo as marteladas dos homens da empresa funerária na sala de visitas.
Não chorara. Não. Quando todos se puseram de joelhos no quarto
mal-alumiado e só ela de pé, debruçada sobre o leito,
sustinha entre os dedos da que morria a vela acesa da agonia lhe veio a decisão
de não chorar. E não chorou. Nem quando o caixão florido
se fechou, nem quando ele saiu pela porta do terraço, nem quando o
pai voltou (ele sim, chorando) e lhe deu a chave presa numa fita roxa para
guardar:
– Minha filha!
– Coragem, papai, vá descansar.
Ela tinha coragem e não precisava de descanso. Ela era a forte, a
dominadora, a incorruptível. A que resistia contra tudo, contra todos,
contra ela mesma. A serviço do quê? De sua memória, mamãe.
Levantou-se. Era falso. Não: era verdadeiro. Ela substituía
a mãe naquela casa, naquela família que Dona Purezínha
dirigia sem oposição. Por isso não podia casar. Por isso
tinha de ser dura, só pensar na missão a cumprir. Grandes palavras.
Sentiu-se ridícula. Ajoelhou-se. "Em nome do Padre, do Filho e
do Espírito Santo. Amém. Ave Maria, cheia de graça…"
Alguém parou junto dela.
– Ia justamente procurar o senhor. Tem água no regador? Ponha nos
vasos.
O homem levou a mão no chapéu, fez o que ela mandou. "….
e na hora da nossa morte, Amém. Em nome do Padre, do Filho, do Espírito
Santo. Amém."
– Está satisfeita com o meu serviço? É um túmulo
de que não descuido.
– Estou. Eu lhe devo um mês?
– Ia amanhã à sua casa buscar o dinheiro.
– Eu pago já.
O homem agradeceu (quem pagaria para tratarem o túmulo quando ela
morresse?), mana Maria foi andando devagar. Olhou o relógio: 11 horas.
Na área principal deu com um enterro que chegava. Atrás do caixão
um velho caminhava, o lenço nos olhos, amparado por dois moços
também chorosos. O padre com o livro de orações protegia
a vista contra o sol forte. Pouca gente. O sino da capela tocou. Mana Maria
deu 400 réis para a negra velha. Não costumava dar esmolas não.
Mas sentiu que ali devia dar. Estava um pouquinho comovida. No enterro dela
não viria ninguém. Era capaz até de faltar gente para
carregar o caixão. Morreria num hospital. Para não dar trabalho
para ninguém. Foi descendo a Rua da Consolação ao longo
do muro do cemitério. Na frente dela duas meninas de sandália
carregavam uma cesta de lavadeira. Como um caixão. Uma de cada lado
segurando na alça. Apressou o passo, na esquina tomou um táxi.
Do automóvel ainda viu as meninas que haviam pousado a cesta na calçada,
descansavam alegres.
Redes Sociais