O Noviço

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Martins Pena

Comédia em 3 atos

PERSONAGENS

AMBRÓSIO.
FLORÊNCIA, sua mulher.
EMÍLIA, sua filha.
JUCA, 9 anos, dito.
CARLOS, noviço da Ordem de S. Bento.
ROSA, provinciana, primeira mulher de Ambrósio.
PADRE-MESTRE DOS NOVIÇOS.
JORGE.
JOSÉ, criado.
1 meirinho, que fala.
2 ditos, que não falam.
Soldados de Permanentes, etc, etc.

( A cena passa-se no Rio de Janeiro.)

Ato Primeiro

(A cena passa-se no Rio de Janeiro)

Sala ricamente adornada: mesa, consolos, mangas de vidro, jarras com flores,
cortinas, etc., etc. No fundo, porta de saída, uma janela, etc., etc.

CENA I

AMBRÓSIO, só de calça preta e chambre – No mundo a fortuna
é para quem sabe adquiri-la. Pintam-na cega… Que simplicidade! Cego
é aquele que não tem inteligência para vê-la e a
alcançar. Todo homem pode ser rico, se atinar com o verdadeiro caminho
da fortuna. Vontade forte, perseverança e pertinácia são
poderosos auxiliares. Qual o homem que, resolvido a empregar todos os meios,
não consegue enriquecer-se? Em mim se vê o exemplo. Há
oito anos, eu era pobre e miserável, e hoje sou rico, e mais ainda
serei. O como não importa; no bom resultado está o mérito…
Mas um dia pode tudo mudar. Oh, que temo eu? Se em algum tempo tiver que responder
pelos meus atos, o ouro justificar-me-á e serei limpo de culpa. As
leis criminais fizeram-se para os pobres

CENA II

Entra Florência vestida de preto, como quem vai à festa.

FLORÊNCIA – Entrando – Ainda despido, Sr. Ambrósio?

AMBRÓSIO – É cedo (Vendo o relógio) São nove
horas e o ofício de Ramos principia às dez e meia.

FLORÊNCIA – É preciso ir mais cedo para tomarmos lugar.

AMBRÓSIO – Para tudo há tempo. Ora, dize-me, minha bela Florência…

FLORÊNCIA – O que, meu Ambrosinho?

AMBRÓSIO – O que pensa tua filha do nosso projeto?

FLORÊNCIA – O que pensa não sei eu, nem disso se me dá;
quero eu – e basta. E é seu dever obedecer.

AMBRÓSIO – Assim é; estimo que tenhas caráter enérgico.

FLORÊNCIA – Energia tenho eu.

AMBRÓSIO – E atrativos, feiticeira.

FLORÊNCIA- Ai, amorzinho! (à parte: ) Que marido!

AMBRÓSIO – Escuta-me, Florência, e dá-me atenção.
Crê que ponho todo o meu pensamento em fazer-te feliz…

FLORÊNCIA – Toda eu sou atenção

AMBRÓSIO – Dous filhos te ficaram do teu primeiro matrimônio.
Teu marido foi um digno homem de muito juízo; deixou-te herdeira de
avultado cabedal. Grande mérito é esse…

FLORÊNCIA – Pobre homem!

AMBRÓSIO – Quando eu te vi pela primeira vez não sabia que
era viúva rica. ( à parte: ) Se o sabia! (Alto: ) Amei-te por
simpatia.

FLORÊNCIA – Sei disso, vidinha.

AMBRÓSIO – E não foi o interesse que obrigou-me a casar contigo.

FLORÊNCIA – Foi o amor que nos uniu.

AMBRÓSIO – Foi, foi, mas agora que me acho casado contigo, é
de meu dever zelar essa fortuna que sempre desprezei.

FLORÊNCIA, à parte – Que marido!

AMBRÓSIO, à parte – Que tola! (Alto:) Até o presente
tens gozada desta fortuna em plena liberdade e a teu bel-prazer; mas daqui
em diante, talvez assim não seja.

FLORÊNCIA – E por quê?

AMBRÓSIO – Tua filha está moça e em estado de casar-se.
Casar-se-á, e terás um genro que exigirá a legítima
de sua mulher, e desse dia, principiarão as amofinações
para ti, e intermináveis demandas . Bem sabes que ainda não
fizestes inventário.

FLORÊNCIA – Não tenho tido tempo, e custa-me tanto aturar procuradores!

AMBRÓSIO – Teu filho também vai a crescer todos os dias e será
preciso por fim dar-lhe a sua legítima… Novas demandas

FLORÊNCIA – Não, não quero demandas.

AMBRÓSIO – É o que eu também digo; mas como prevení-las?

FLORÊNCIA – Faze o que entenderes, meu amorzinho.

AMBRÓSIO – Eu já te disse há mais de três meses
o que era preciso fazermos para atalhar esse mal. Amas a tua filha, o que
é muito natural, mas amas ainda mais a ti mesma…

FLORÊNCIA – O que também é muito natural…

AMBRÓSIO – Que dúvida! E eu julgo que podes conciliar esses
dous pontos, fazendo Emília professar em um convento. Sim, que seja
freira. Não terás nesse caso de dar legítima alguma,
apenas um insignificante dote – e farás ação meritória.

FLORÊNCIA – Coitadinha! Sempre tenho pena dela; o convento é
tão triste!

AMBRÓSIO – É essa compaixão mal-entendida! O que é
este mundo? Um pélago de enganos e traições, um escolho
em naufragam a felicidade e as doces ilusões da vida. E o que é
o convento? Porto de salvação e ventura, asilo da virtude, único
abrigo da inocência e verdadeira felicidade… E deve uma mãe
carinhosa hesitar na escolha entre o mundo e o convento?

FLORÊNCIA – Não, por certo…

AMBRÓSIO – A mocidade é inexperiente, não sabe o que
lhe convém. Tua filha lamentar-se-á, chorará desesperada,
não importa; obriga-a e daí tempo ao tempo. Depois que estiver
no convento e acalmar-se esse primeiro fogo, abençoará o teu
nome e, junto ao altar, no êxtase de sua tranqüilidade e verdadeira
felicidade, rogará a Deus por ti. (À parte:) E a legítima
ficará em casa.

FLORÊNCIA – Tens razão, meu Ambrosinho, ela será freira.

AMBRÓSIO – A respeito de teu filho direi o mesmo. Tem ele nove anos
e será prudente criarmo-lo desde já para frade.

FLORÊNCIA – Já ontem comprei-lhe o hábito com que andará
vestido daqui em diante.

AMBRÓSIO – Assim não estranhará quando chegar à
idade de entrar no convento; será frade feliz. ( À parte:) E
a legítima também ficará em casa.

FLORÊNCIA – Que sacrifícios não farei eu para a ventura
dos meus filhos!

CENA III

Entra Juca, vestido de frade, com chapéu desabado, tocando um assobio.

FLORÊNCIA – Anda cá, filhinho. Como estais galante com esse
hábito!

AMBRÓSIO – Juquinha, gostas desta roupa?

JUCA – Não , não me deixa correr, é preciso levantar
assim… (Arregaça o hábito)

AMBRÓSIO – Logo te acostumarás.

FLORÊNCIA – Filhinho, hás-de ser um fradinho muito bonito.

JUCA, chorando – Não quero ser frade!

FLORÊNCIA – Então, o que é isso?

JUCA – Hi, hi, hi… Não quero ser frade!

FLORÊNCIA – Menino!

AMBRÓSIO – Pois não te darei o carrinho que te prometi, todo
bordado de prata, com cvalos de ouro.

JUCA, rindo-se – Onde está o carrinho?

AMBRÓSIO – Já o encomendei; é cousa muito bonita: os
arreios todos enfeitados de fitas e veludo.

JUCA – Os cavalos são de ouro?

AMBRÓSIO – Pois não, de ouro com olhos de brilhantes.

JUCA – E andam sózinhos?

AMBRÓSIO – Se andam! De marcha e passo.

JUCA – Andam, mamãe?

FLORÊNCIA – Correm, filhinho.

JUCA, saltando de contente – Como é bonito! E o carrinho tem rodas,
capim para os cavalos, uma moça bem enfeitada?

AMBRÓSIO – Não lhe falta nada.

JUCA – E quando vem?

AMBRÓSIO – Assim que estiver pronto.

JUCA, saltando e cantando, – Eu quero ser frade, eu quero ser frade… (Etc.)

AMBRÓSIO, para Florência – Assim o iremos acostumando

FLORÊNCIA – Coitadinho, é preciso comprar-lhe o carrinho!

AMBRÓSIO, rindo-se – Com cavalos de ouro?

FLORÊNCIA – Não.

AMBRÓSIO – Basta que se compre uma caixinha com soldadinhos de chumbo.

JUCA, saltando pela sala – Eu quero ser frade!

FLORÊNCIA – Está bom, Juquinha, serás frade, mas não
grites tanto. Vai lá para dentro.

JUCA sai cantando – Eu quero ser frade… (etc.)

FLORÊNCIA – Estas crianças…

AMBRÓSIO – Este levaremos com facilidade… De pequenino se torce
o pepino… Cuidado me dá o teu sobrinho Carlos.

FLORÊNCIA – Já vai para seis meses que ele entrou como noviço
no convento.

AMBRÓSIO – E queira Deus que decorra o ano inteiro para professar,
que só assim ficaremos tranqüilos.

FLORÊNCIA – E se fugir do convento?

AMBRÓSIO – Lá isso não temo eu… Está bem recomendado.
É preciso empregarmos toda nossa autoridade para obrigá-lo a
professar. O motivo, bem o sabes…

FLORÊNCIA – Mas olha que Carlos é da pele, é endiabrado.

AMBRÓSIO – Outros tenho eu domado… Vão sendo horas de sairmos,
vou me vestir (Sai pela esquerda.)

CENA IV

FLORÊNCIA – Se não fosse este homem com quem casei-me segunda
vez, não teria agora quem zelasse com tanto desinteresse a minha fortuna.
É uma bela pessoa… Rodeia-me de cuidados e carinhos. Ora, digam lá
que uma mulher não deve casar-se segunda vez… Se eu soubesse que
havia de ser sempre tão feliz, casar-me-ia cinqüenta.

CENA V

Entrou Emília, vestida de preto, como querendo atravessar a sala.

FLORÊNCIA – Emília, vem cá.

EMÍLIA – Senhora?

FLORÊNCIA – Chega aqui. Ó menina, não deixarás
este ar triste e lagrimoso em que andas?

EMÍLIA – Minha mãe, eu não estou triste. (Limpa os olhos
com o lenço.)

FLORÊNCIA – Aí tem! Não digo? A chorar. De que chora?

EMÍLIA – De nada, não senhora.

FLORÊNCIA – Ora, isto é insuportável! Mata-se e amofina-se
uma mãe extremosa para fazer a felicidade da sua filha, e como agradece
esta? Arrepelando-se e chorando. Ora, sejam lá mãe e tenham
filhos desobedientes…

EMÍLIA – Não sou desobediente. Far-lhe-ei a vontade; mas não
posso deixar de chorar e sentir. (Aqui aparece à porta por onde saiu,
Ambrósio, em mangas de camisa, para observar)

FLORÊNCIA – E por que tanto chora a menina, por quê?

EMÍLIA – Minha mãe…

FLORÊNCIA – O que tem de mau a vida de freira?

EMÍLIA – Será muito boa, mas é que não tenho
inclinação nenhuma para ela.

FLORÊNCIA – Inclinação, inclinação! O que
quer dizer inclinação? Terás, sem dúvida, por
algum francelho freqüentador de bailes e passeios, jogador do écarté
e dançador de polca? Essas inclinações é que perdem
muitas meninas. esta cabecinha ainda está muito leve; eu é que
sei o que me convém: serás freira.

EMÍLIA – Serei freira, minha mãe, serei! Assim como estou certa
que hei-de ser desgraçada.

FLORÊNCIA – Histórias! Sabes tu o que é o mundo? O mundo
é… é… (À parte:) Já não me recordo
o que me disse o Sr. Ambrósio o que era o mundo. (Alto:) O mundo é…
um… é… (À parte:) E esta? (Vendo Ambrósio junto da
porta:) Ah, Ambrósio, dize aqui a esta estonteada o que é o
mundo.

AMBRÓSIO, adiantando-se – O mundo é um pélago de enganos
e traições, um escolho em que naufragam as felicidades e as
doces ilusões da vida… E o convento é porto de salvação
e ventura, único abrigo da inocência e da verdadeira felicidade…
Onde está minha casaca?

FLORÊNCIA – Lá em cima no sótão. (Ambrósio
sai pela direita. Florência para Emília:) Ouviste o que é
o mundo, e o convento? Não sejas pateta, vem acabar de vestir-te, que
são mais que horas. (Sai pela direita)

CENA VI

Emília e depois Carlos

EMÌLIA – É minha mãe, devo-lhe obediência, mas
este homem, meu padrasto, como o detesto! Estou certa que foi ele quem persuadiu
a minha mãe que me metesse no convento. Ser freira? Oh, não,
não! E Carlos, que tanto amo? Pobre Carlos, também te perseguem!
E por que nos perseguem assim? Não sei. Como tudo mudou nesta casa,
depois que minha mãe casou-se com este homem! Então não
pensou ela na felicidade de seus filhos. Ai, ai!

CENA VII

Carlos, com hábito de noviço, entra assustado e fecha a porta.

EMÍLIA, assustando-se – Ah, quem é? Carlos!

CARLOS – Cala-te

EMÍLIA – Meu Deus, o que tens, por que estás tão assustado?
O que foi?

CARLOS – Aonde está minha tia, e o teu padrasto?

EMÍLIA – Lá em cima. Mas o que tens?

CARLOS – Fugi do convento, e aí vêm eles atrás de mim.

EMÍLIA – Fugiste? E por que motivo?

CARLOS – Por que motivo? pois faltam motivos para se fugir de um convento?
O último foi o jejum em que vivo há sete dias… Vê como
tenho esta barriga, vai a sumir-se. Desde sexta feira passada que não
mastigo pedaço que valha a pena.

EMÍLIA – Coitado!

CARLOS – Hoje, já não podendo, questionei com o D. Abade. Palavras
puxam palavras; dize tu, direi eu, e por fim de contas arrumei-lhe uma cabeçada,
que o atirei por esses ares.

EMÍLIA – O que fizestes, louco?

CARLOS – E que culpa tenho eu, se tenho a cabeça esquentada? Para
que querem violentar minhas inclinações? Não nasci para
frade, não tenho jeito nenhum para estar horas inteiras no coro a rezar
com os braços encruzados. Não me vai o gosto para aí…
Não posso jejuar; tenho, pelo mesno três vezes ao dia, uma fome
de todos os diabos. Militar é que eu quisera ser; para aí chama-me
a inclinação. Bordoadas, espadeiradas, rusgas é que me
regalam; esse é o meu gênio. Gosto de teatro, e de lá
ninguém vai ao teatro, à exceção de Frei Maurício,
que freqüenta a platéia de casaca e cabelereira para esconder
a coroa.

EMÍLIA – Pobre Carlos, como terás passado estes seis meses
de noviciado!

CARLOS – Seis meses de martírio! Não que a vida de frade seja
má; boa é ela para quem a sabe gozar e que para ela nasceu;
mas eu, priminha, eu que tenho para tal vidinha negação completa,
não posso!

EMÍLIA – E os nossos parentes quando nos obrigam a seguir uma carreira
para a qual não temos inclinação alguma, dizem que o
tempo acostumar-nos-á.

CARLOS – O tempo acostumar! Eis aí porque vemos entre nós tantos
absurdos e disparates. Este tem jeito para sapateiro: pois vá estudar
medicina… Excelente médico! Aquele tem inclinação para
cômico: pois não senhor, será político… Ora,
ainda isso vá. Estoutro só tem jeito para caiador ou borrador:
nada, é ofício que não presta… Seja diplomata, que
borra tudo quanto faz. Aqueloutro chama-lhe toda a propensão para a
ladroeira; manda o bom senso que se corrija o sujeitinho, mas isso não
se faz; seja tesoureiro de repartição fiscal, e lá se
vão os cofres da nação à garra… Essoutro tem
uma grande carga de preguiça e indolência e só serviria
para leigo de convento, no entanto vemos o bom do mandrião empregado
público, comendo com as mãos encruzadas sobre a pança
o pingue ordenado da nação.

EMÍLIA – Tens muita razão; assim é.

CARLOS – Este nasceu para poeta ou escritor, com uma imaginação
fogosa e independente, capaz de grandes cousas, mas não pode seguir
a sua inclinação, porque poetas e escritores morrem de miséria,
no Brasil… E assim o obriga a necessidade a ser o mais somenos amanuense
em uma repartição pública e a copiar cinco horas por
dia os mais soníferos papéis. O que acontece? Em breve matam-lhe
a inteligência e fazem do homem pensante máquina estúpida,
e assim se gasta uma vida? É preciso, é já tempo que
alguém olhe para isso, e alguém que possa.

EMÍLIA – Quem pode nem sempre sabe o que se passa entre nós,
para poder remediar; é preciso falar.

CARLOS – O respeito e a modéstia prendem muitas línguas, mas
lá vem um dia que a voz da razão se faz ouvir, e tanto mais
forte quanto mais comprimida.

EMÍLIA – Mas Carlos, hoje te estou desconhecendo…

CARLOS – A contradição em que vivo tem-me exasperado! E como
queres tu que eu não fale quando vejo, aqui, um péssimo cirurgião
que poderia ser bom alveitar; ali um ignorante general que poderia ser excelente
enfermeiro; acolá, um periodiqueiro que só serviria para arrieiro,
tão desbocado e insolente é, etc., etc. Tudo está fora
de seus eixos.

EMÍLIA – Mas que queres tu que se faça?

CARLOS – Que não se constranja ninguém, que se estudem os homens
e que haja uma bem entendida e esclarecida proteção, e que,
sobretudo, se despreze o patronato, que assenta o jumento nas bancas das academias
e amarra o homem de talento à manjedoura. Eu, que quisera viver com
uma espada à cinta e à frente do meu batalhão, conduzi-lo
ao inimigo através da metralha, bradando: "Marcha… (Manobrando
pela sala, entusiasmado:) Camaradas, coragem, calar baionetas! Marche, marche!
Firmeza, avança! O inimigo fraqueia… (Seguindo Emília, que
recua, espantada:) Avança!"

EMÍLIA – Primo, primo, que é isso? Fique quieto!

CARLOS, entusiasmado – "Avança, bravos companheiros, viva a Pátria
Viva!" – e voltar vitorioso, coberto de sangue e poeira… Em vez desta
vida de agitação e glória, hei-de ser frade, revestir-me
de paciência e humildade, encomendar defuntos… (Cantando:) Requiescat
in pace… a porta inferi! amen… O que seguirá disto? O ser eu péssimo
frade, descrédito do convento e vergonha do hábito que visto.
Falta-me a paciência.

EMÍLIA – Paciência, Carlos, preciso eu também ter, e
muita. Minha mãe declarou-me positivamente que eu hei-de ser freira.

CARLOS – Tu, freira? Também te perseguem?

EMÍLIA – E meu padrasto ameaça-me.

CARLOS – Emília, aos cinco anos estava eu órfão, e tua
mãe, minha tia, foi nomeada por meu pai sua testamenteira e minha tutora.
Contigo cresci nesta casa e à amizade de criança seguiu-se inclinação
mais forte… Eu te amei, Emília, e tu também me amaste.

EMÍLIA – Carlos!

CARLOS – Vivíamos felizes esperando que um dia nos uniríamos.
Nesses planos estávamos quando apareceu este homem, não sei
donde, e que soube a tal ponto iludir tua mãe, que a fez esquecer-se
de seus filhos que tanto amava, de seus interesses e contrair segundas núpcias.

EMÍLIA – Desde então nossa vida tem sido tormentosa…

CARLOS – Obrigaram-me a ser noviço, e não contentes com isso,
querem-te fazer freira. Emília, há muito tempo que eu observo
este teu padrasto. E sabes qual tem sido o resultado das minhas observações?

EMÍLIA – Não.

CARLOS – Que ele é um rematadíssimo velhaco.

EMÍLIA – Oh, estás bem certo disso?

CARLOS – Certíssimo! Esta resolução que tomaram, de
fazerem-te freira, confirma a minha opinião.

EMÍLIA – Explica-te

CARLOS – Teu padrasto persuadia a minha tia que me obrigasse a ser frade
para assim roubar-me, impunemente , a herança que meu pai deixou-me.
Um frade não põe demandas…

EMÍLIA – É possível?

CARLOS – Ainda mais; querem que tu sejas freira para não te darem
dote, se te casares.

EMÍLIA – Carlos, quem te disso isso? Minha mãe não é
capaz!

CARLOS – Tua mãe vive iludida. Oh, que não possa eu desmascarar
este tratante!…

EMÍLIA – Fala baixo!

CENA VIII

Entra Juca

JUCA – Mana, mamãe pergunta por você.

CARLOS – De hábito? Também ele? Ah!…

JUCA, correndo para Carlos – Primo Carlos.

CARLOS, tomando-o no colo – Juquinha! Então, prima, tenho ou não
razão? Há ou não plano?

JUCA – Primo, você também é frade? Já lhe deram
também um carrinho de prata com cavalos de ouro?

CARLOS – O que dizes?

JUCA – Mamãe disse que havia de me dar um muito dourado quando eu
fosse frade (Cantando:) Eu quero ser frade… (etc., etc.)

CARLOS, para Emília – Ainda duvidas? Vê como enganam esta inocente
criança!

JUCA – Não enganam não, primo; os cavalos andam sozinhos.

CARLOS, para Emília – Então?

EMÍLIA – Meu Deus!

CARLOS – Deixa o caso por minha conta. Hei-de fazer uma estralada de todos
os diabos, verão…

EMÍLIA – Prudência!

CARLOS – Deixa-os comigo. Adeus, Juquinha, vai para dentro com tua irmã
(Bota-o no chão.)

JUCA – Vamos, mana. (Sai cantando:) Eu quero ser frade… (Emília
o segue.)

CENA IX

CARLOS, só – Hei-de descobrir algum meio… Oh, se hei-de! Hei-de
ensinar a este patife, que casou-se com minha tia para comer não só
a sua fortuna, como a de seus filhos. Que belo padrasto!.. Mas por ora tratemos
de mim; sem dúvida no convento anda tudo em polvorosa… Foi boa cabeçada!
O D. Abade deu um salto de trampolim… (Batem à porta.) Batem? Mau!
Serão eles? (Batem.) Espreitemos pelo buraco da fechadura. (Vai espreitar)
É uma mulher… (Abre aporta.)

CENA X

Rosa e Carlos.

ROSA – Dá licença?

CARLOS – Entre.

ROSA, entrando – Uma serva de Vossa Reverendíssima.

CARLOS – Com quem tenho o prazer de falar?

ROSA – Eu, Reverendíssimo Senhor, sou uma pobre mulher. Ai, estou
muito cansada…

CARLOS – Pois sente-se, senhora. (À parte:) Quem será?

ROSA, sentando-se – Eu chamo-me Rosa. Há uma hora que cheguei do Ceará
no vapor Paquete do Norte.

CARLOS – Deixou aquilo por lá tranqüilo?

ROSA – Muito tranqüilo, Reverendíssimo. Houve apenas no mês
passado vinte e cinco mortes.

CARLOS – S. Brás! Vinte e cinco mortes! E chama a isso tranqüilidade?

ROSA – Se Vossa Reverendíssima soubesse o que por lá vai, não
se admiraria. Mas, meu senhor, isto são cousas que nos não pertencem;
deixe lá morrer quem morre, que ninguém se importa com isso.
Vossa Reverendíssima é cá da casa?

CARLOS – Sim senhora.

ROSA – Então é parente de meu homem?

CARLOS – De seu homem?

ROSA – Sim senhor.

CARLOS – E quem é seu homem?

ROSA – Sr. Ambrósio Nunes.

CARLOS – O Sr. Ambrósio Nunes!…

ROSA – Somos casados há oito anos.

CARLOS – A senhora é casada com o Sr. Ambrósio Nunes, e isto
há oito anos?

ROSA- Sim senhor.

CARLOS – Sabe o que está dizendo?

ROSA- Essa é boa

CARLOS – Está em seu perfeito juízo?

ROSA – O Reverendíssimo ofende-me…

CARLOS – Com a fortuna! Conte-me isso, conte-me como se casou, quando, como,
em que lugar?

ROSA – O lugar foi na igreja. Está visto. Quando, já disse;
há oito anos.

CARLOS – Mas onde?

ROSA, levanta-se – Eu digo a Vossa Reverendíssima. Sou filha do Ceará.
Tinha eu meus quinze anos quando lá apareceu, vindo do Maranhão,
o Sr. Ambrósio. Foi morar na nossa vizinhança. Vossa Reverendíssima
bem sabe o que são vizinhanças… Eu o via todos os dias, ele
também via-me; eu gostei, ele gostou e nos casamos.

CARLOS – Isso foi anda mão, fia dedo… E tem documentos que provem
o que diz?

ROSA – Sim senhor, trago comigo a certidão do vigário que nos
casou, assinada pelas testemunhas, e pedi logo duas, por causa das dúvidas.
Podia perder uma…

CARLOS – Continue.

ROSA – Vivi dois anos com meu marido muito bem. Passado esse tempo, morreu
minha mãe. O Sr. Ambrósio tomou conta de nossos bens, vendeu-os
e partiu para Montevidéu a fim de empregar o dinheiro em um negócio,
no qual, segundo dizia, havíamos de ganhar muito. Vai isto para seis
anos, mas desde então, Reverendíssimo Senhor, não soube
mais notícias dele.

CARLOS – Oh!

ROSA – Escrevi-lhe sempre, mas nada de receber resposta. Muito chorei, porque
pensei que ele havia morrido.

CARLOS – A história vai interessando-me, continue.

ROSA – Eu já estava desenganada, quando um sujeito que foi aqui do
Rio disse-me que meu marido ainda vivia e que habitava na Corte.

CARLOS – E nada mais lhe disse?

ROSA – Vossa Reverendíssima vai espantar-se do que eu disser…

CARLOS – Não me espanto, diga

ROSA – O sujeito acrescentou que meu marido tinha-se casado com outra mulher.

CARLOS – Ah, disse-lhe isso?

ROSA – E muito chorei eu, Reverendíssimo; mas depois pensei que era
impossível, pois um homem pode lá casar-se tendo a mulher viva?
Não é verdade, Reverendíssimo?

CARLOS – A bigamia é um grande crime; o Código é muito
claro.

ROSA – Mas na dúvida, tirei as certidões do meu casamento,
parti para o Rio, e assim que desembarquei, indaguei onde ele morava. Ensinaram-me
e venho eu mesma perguntar-lhe que histórias são essas de casamentos.

CARLOS – Pobre mulher, Deus se compadeça de ti!

ROSA – Então é verdade?

CARLOS – Filha, a resignação é uma grande virtude. Quer
fiar-se em mim, seguir meus conselhos?

ROSA – Sim senhor, mas que tenho eu a temer? Meu marido está com efeito
casado?

CARLOS – Dê-me cá uma das certidões.

ROSA – Mas…

CARLOS – Fia-se ou não em mim?

ROSA – Aqui está. (Dá-lhe uma das certidões.)

AMBRÓSIO, dentro – Desçam, desçam, que passam as horas.

CARLOS – Aí vem ele.

ROSA – Meu Deus!

CARLOS – Tomo-a debaixo da minha proteção. Venha cá;
entre neste quarto.

ROSA – Mas Reverendíssimo…

CARLOS – Entre, entre, senão abandono-a. (Rosa entra no quarto à
esquerda e Carlos cerra aporta.)

CENA XI

CARLOS, só – Que ventura, ou antes, que patifaria! Que tal? Casado
com duas mulheres! Oh, mas o Código é muito claro… Agora verás
como se rouba e se obriga a ser frade…

CENA XII

Entra Ambrósio de casaca seguido de Florência e Emília,
ambas de véu de renda preta sobre a cabeça.

AMBRÓSIO, entrando – Andem, andem! Irra, essas mulheres a vestirem-se
fazem perder a paciência!

FLORÊNCIA, – Estamos prontas.

AMBRÓSIO ,vendo Carlos – Oh, que fazes aqui?

CARLOS principia a passear pela sala de um para outro lado – Não vê?
Estou passeando; divirto-me.

AMBRÓSIO – Como é lá isso?

CARLOS, do mesmo modo – Não é da sua conta.

FLORÊNCIA – Carlos, que modos são esses?

CARLOS – Que modos são? São os meus.

EMÍLIA, à parte – Ele se perde!

FLORÊNCIA – Estás doudo?

CARLOS – Doudo estava alguém quando… Não me faça falar…

FLORÊNCIA – Hem?

AMBRÓSIO – Deixe-o comigo. (Para Carlos:) Por que saíste do
convento?

CARLOS – Porque quis. Então não tenho vontade?

AMBRÓSIO – Isso veremos. Já para o convento!

CARLOS – rindo-se com força – Ah, ah, ah !

AMBRÓSIO – Ri-se?

FLORÊNCIA, ao mesmo tempo – Carlos!

EMÍLIA – Primo!

CARLOS – Ah, ah, ah!

AMBRÓSIO, enfurecido – Ainda uma vez, obedece-me, ou…

CARLOS – Que cara! Ah, ah! (Ambrósio corre para cima de Carlos.)

FLORÊNCIA, metendo-se no meio – Ambrosinho!

AMBRÓSIO – Deixe-me ensinar a este malcriado.

CARLOS – Largue-o, tia, não tenha medo.

EMÍLIA – Carlos!

FLORÊNCIA – Sobrinho, o que é isso?

CARLOS – Está bom, não se amofinem tanto, voltarei para o convento.

AMBRÓSIO – Ah, já?

CARLOS – Já, sim senhor, quero mostrar a minha obediência.

AMBRÓSIO – E que não fosse.

CARLOS – Incorreria no seu desagrado? Forte desgraça!…

FLORÊNCIA – Principias?

CARLOS – Não senhora, quero dar uma prova de submissão ao senhor
meu tio… É, meu tio, é… Casado com minha tia segunda vez…
Quero dizer, minha tia é que se casou segunda vez.

AMBRÓSIO, assustando-se, à parte – O que diz ele?

CARLOS, que o observa – Não há duvida…

FLORÊNCIA , para Emília – O que tem hoje este rapaz?

CARLOS – Não é assim, senhor meu tio? Venha cá, faça-me
o favor, senhor meu rio. (Travando-lhe do braço.)

AMBRÓSIO – Tira as mãos.

CARLOS – Ora, faça-me o favor, senhor meu tio, quero-lhe mostrar uma
coisa; depois farei o que quiser. (Levando-o para a porta do quarto.)

FLORÊNCIA – O que é isto?

AMBRÓSIO – Deixa-me!

CARLOS – Um instante. (Retendo Ambrósio com uma mão, com a
outra empurra a porta e aponta para dentro, dizendo:) Vê!

AMBRÓSIO, afirmando a vista – Oh! (Volta para junto de Florência
e de Emília, e as toma convulsivo pelo braço.) – Vamos, vamos,
são horas!

FLORÊNCIA – O que é?

AMBRÓSIO, forcejando por sair e levá-las consigo – Vamos, vamos!

FLORÊNCIA – Sem chapéu?

AMBRÓSIO – Vamos, vamos! (Sai, levando-as.)

C A R L O S – Então, senhor meu tio? Já não quer que
eu vá para o convento? (Depois que ele sai.) Senhor meu tio, senhor
meu tio? (Vai a porta, gritando.)

CENA XIII

Carlos, só e depois Rosa

CARLOS, rindo-se – Ah, ah, ah, agora veremos, e me pagarás… E minha
tia também há-de pagá-lo, para não se casar na
sua idade e ser tão assanhada. E o menino, que não se contentava
com uma!…

ROSA, entrando – Então, Reverendíssimo?

CARLOS – Então?

ROSA – Eu vi meu marido um instante e fugiu. Ouvi vozes de mulheres…

CARLOS – Ah, ouviu? Muito estimo. E sabe de quem eram essas vozes?

ROSA – Eu tremo de adivinhar…

CARLOS – Pois adivinhe logo de uma assentada… Eram da mulher de seu marido.

ROSA – E então verdade? Pérfido, traidor! Ah, desgraçada!
(Vai a cair desmaiada e Carlos a sustém nos braços.)

CARLOS – Desmaiada! Sr.a D. Rosa? Fi-la bonita! Esta é mesmo de frade…
Senhora, torne a si, deixe desses faniquitos Olhe que aqui não há
quem a socorra. Nada! E esta? Ó Juquinha? Juquinha? (Juca entra, trazendo
em uma mão um assobio de palha e tocando em outro.) Deixa esses assobios
sobre a mesa e vai lá dentro buscar alguma cousa para esta moça
cheirar.

JUCA – Mas o quê, primo?

CARLOS – A primeira cousa que encontrares. (Juca larga os assobios na mesa
e sai correndo.) Isto está muito bonito! Um frade com uma moça
desmaiada nos braços. Valha-me Santo Antônio! O que diriam, se
assim me vissem? (Gritando-lhe ao ouvido:) Olá! – Nada.

JUCA ,entra montado a cavalo em um arco de pipa, trazendo um galheteiro –
Vim a cavalo para chegar mais depressa. Está o que achei.

CARLOS – Um galheteiro, menino?

JUCA – Não achei mais nada.

CARLOS – Está bom, dá cá o vinagre. (Toma o vinagre
e o chega ao nariz de Rosa.) Não serve; está na mesma. Toma…Vejamos
se o azeite faz mais efeito. Isto parece-me salada… Azeite e vinagre. Ainda
está mal temperada; venha a pimenta da Índia. Agora creio que
não falta nada. Peior é essa; a salada ainda não está
boa! Ai, que não tem sal. Bravo, está temperada! Venha mais
sal… Agora sim.

ROSA, tomando a si- Onde estou eu?

CARLOS – Nos meus braços.

ROSA, afastando-se – Ah, Reverendíssimo!

CARLOS – – Não se assuste. (Para Juca:) Vai para dentro (Juca sai)

ROSA – Agora me recordo… Pérfido, ingrato!

CARLOS – Não torne a desmaiar, que já não posso.

ROSA – Assim enganar-me! Não há leis, não há
justiça?…

CARLOS – Há tudo isso, e de sobra. O que não há é
quem as execute. (Rumor na rua)

ROSA, assustando-se – Ah!

CARLOS – O que será isto? (Vai à janela.) Ah, com S. Pedro!
(À parte:) O mestre de noviços seguido de meirinhos que me procuram…
Não escapo…

ROSA – O que é, Reverendíssimo? De que se assusta?

CARLOS – Não é nada. (À parte:) Estou arranjado! (Chega
à janela.) Estão indagando na vizinhança… O que farei?

ROSA – Mas o que é? O quê?

CARLOS, batendo na testa – Oh, só assim… (Para Rosa:) Sabe o que
é isto?

ROSA – Diga.

CARLOS – E um poder de soldados e meirinhos que vem prendê-la por ordem
de seu marido.

ROSA – Jesus! Salve-me, salve-me!

CARLOS – Hei-de salvá-la; mas faça o que eu lhe disser.

ROSA – Estou pronta

CARLOS – Os meirinhos entrarão aqui e hão-de levar por força
alguma cousa – esse é o seu costume. O que é preciso é
enganá-los.

ROSA – E como?

CARLOS – Vestindo a senhora o meu hábito, e eu o seu vestido.

ROSA – Oh!

CARLOS – Levar-me-ão preso; terá a senhora tempo de fugir.

ROSA – Mas…

CARLOS – Ta, ta, ta… Ande, deixe-me fazer uma obra de caridade; para isso
é que somos frades. Entre para este quarto, dispa lá o seu vestido
e mande-me, assim como a toca e xale. Ó Juca? Juca? (Empurrando Rosa:)
Não se demore. (Entra Juca.)Juca, acompanha esta senhora e faze o que
ela te mandar. Ande, senhora, com mil diabos! (Rosa entra no quarto a esquerda,
empurrada por Carlos.)

CENA XIV

CARLOS, só – Bravo, esta é de mestre! (Chegando à janela:)
Lá estão eles conversando com o vizinho do armarinho. Não
tardarão a dar com o rato na ratoeira, mas o rato é esperto
e os logrará. Então, vem o vestido?

ROSA, dentro – Já vai.

CARLOS – Depressa! O que me vale é ser o mestre de noviços
catacego e trazer óculos. Cairá na esparrela(Gritando:) Vem
ou não?

JUCA, traz o vestido, toca e o xale – Esta.

CARLOS – Bom. (Despe o hábito.) Ora vá, senhor hábito.
Bem se diz que o hábito não faz o monge. (Dá o hábito
e o chapéu a Juca.) Toma, leva à moça. (Juca sai.) Agora
é que são elas… Isto é mangas? Diabo, por onde se enfia
esta geringonça? Creio que é por aqui… Bravo acertei. Belíssimo!
Agora a toca. (Põe a toca.) Vamos ao xale… Estou guapo; creio que
farei a minha parte de mulher excelentemente. (Batem na porta.) São
eles. (Com voz de mulher.) Quem bate?

MESTRE, dentro – Um servo de Deus.

CARLOS, com a mesma voz – Pode entrar quem é.

CENA XV

Carlos, Mestre de Noviços e três meirinhos

MESTRE – Deus esteja nesta casa

CARLOS – Humilde serva de Vossa Reverendíssima…

MESTRE – Minha senhora, terá a bondade de perdoar-me pelo incômodo
que lhe damos, mas nosso dever…

CARLOS – Incômodos, Reverendíssimo Senhor?

MESTRE – Vossa Senhoria há-de permitir que lhe pergunte se o noviço
Carlos, que fugiu do convento…

CARLOS – Psiu, caluda!

MESTRE – Hem?

CARLOS – Está ali…

MESTRE – Quem?

CARLOS – O noviço…

MESTRE – Ah!

CARLOS – E preciso surpreendê-lo …

MESTRE – Estes senhores oficiais de justiça nos ajudarão.

CARLOS – Muito cuidado. Este meu sobrinho dá-me um trabalho…

MESTRE – Ah, a senhora é sua tia?

CARLOS – Uma sua criada.

MESTRE – Tenho muita satisfação.

C AR L O S – Não percamos tempo. Fiquem os senhores aqui do lado da
porta, Muito calados; eu chamarei o sobrinho. Assim que ele sair, não
lhe dêem tempo de fugir; lancem-se de improviso sobre ele e levem-no
à força.

MESTRE – Muito bem

CARLOS – Diga ele o que disser, grite como gritar, não façam
caso, arrastem-no.

MESTRE – Vamos a isso.

CARLOS – Fiquem aqui. (Coloca-os junto à porta da esquerda.) Atenção.
(Chamando para dentro:) Psiu! Psiu! Saia cá para fora, devagarinho!
(Prevenção.)

CENA XVI

Os mesmos e Rosa vestida de frade e chapéu na cabeça.

ROSA, entrando – Já se foram? (Assim que ela aparece, o Mestre e os
meirinhos se lançam sobre ela e procuram carregar até fora.)

MESTRE- Está preso. Há-de ir. E inútil resistir. Assim
não se foge… (Etc., etc.)

ROSA, lutando sempre – Ai, ai, acudam-me! Deixem-me! Quem me socorre? (Etc.)

CARLOS – Levem-no, levem-no. (Algazarra de vozes; todos falam ao mesmo tempo,
etc. Carlos, para aumentar o ruído, toma um assobio que está
sobre a mesa e toca. Juca também entra nessa ocasião, etc. Execução.)

FIM DO PRIMEIRO ATO

Ato Segundo

A mesma sala do primeiro ato

CENA I

Carlos, ainda vestido de mulher, está sentado e Juca à janela.

CARLOS – Juca, toma sentido; assim que avistares teu padrasto lá no
fim da rua, avisa-me.

JUCA – Sim, primo.

CARLOS – No que dará tudo isto? Qual será a sorte de minha
tia? Que lição! Desanda tudo em muita pancadaria. E a outra,
que foi para o convento?… Ah, ah, ah, agora é que me lembro dessa!
Que confusão entre os frades quando ela se der a conhecer! (Levantando-se:)
Ah, ah, ah, parece-me que estou vendo o D. Abade horrorizado, o mestre de
noviços limpando os óculos de boca aberta, Frei Maurício,
o folgazão, a rir-se às gargalhadas, Frei Sinfrônio, o
austero, levantando os olhos para o céu abismado, e os noviços
todos fazendo roda, coçando o cachaço. Ah, que festa perco eu!
Enquanto eu lá estive ninguém lembrou-se de dar-me semelhante
divertimento. Estúpidos! Mas, o fim de tudo isto? O fim?…

JUCA, da janela – Aí vem ele!

CARLOS – Já? (Chega à janela.) É verdade. E com que
pressa! (Para Juca:) Vai tu para dentro. ( Juca sai.) E eu ainda deste modo,
com este vestido… Se eu sei o que hei-de fazer?… Sobe a escada…Dê
no que der… (Entra no quarto onde esteve Rosa)

CENA II

Entra Ambrósio; mostra no semblante alguma agitação.

AMBRÓSIO – Lá as deixei no Carmo. Entretidas com o ofício,
não darão falta de mim. É preciso, e quanto antes, que
eu fale com esta mulher! É ela, não há dúvida…
Mas como soube que eu aqui estava? Quem lhe disse? Quem a trouxe? Foi o diabo,
para a minha perdição. Em um momento pode tudo mudar; não
se perca tempo. (Chega à porta do quarto) Senhora, queira ter a bondade
de sair cá para fora.

CENA III

Entra Carlos cobrindo o rosto com um lenço. Ambrósio encaminha-se
para o meio da sala, sem olhar para ele, e assim lhe fala.

AMBRÓSIO – Senhora, muito bem conheço as vossas intenções;
porém previno-vos que muito vos enganásteis.

CARLOS – Ai, ai!

AMBRÓSIO – Há seis anos que vos deixei; tive para isso motivos
muito poderosos…

CARLOS, à parte – Que tratante!

AMBRÓSIO – E o meu silêncio depois deste tempo, devia ter-vos
feito conhecer que nada mais existe de comum entre nós.

CARLOS, fingindo que chora – Hi, hi, hi …

AMBRÓSIO – O pranto não me comove. Jamais podemos viver juntos…
Fomos casados, é verdade, mas que importa?

CARLOS, no mesmo – Hi, hi, hi…

AMBRÓSIO – Estou resolvido a viver separado de vós.

CARLOS , à parte – E eu também…

AMBRÓSIO- E para esse fim empreguei todos os meios, todos, entendeis-me?
(Carlos cai de joelhos aos pés de Ambrósio, e agarra-se às
pernas dele, chorando.) Não valem súplicas. Hoje mesmo deixareis
esta cidade; senão, serei capaz de um grande crime. O sangue não
me aterra, e ai de quem me resiste! Levantai-vos e parti. ( Carlos puxa as
pernas de Ambrósio, dá com ele no chão e levanta-se,
rindo-se.) Ai!

CARLOS – Ah, ah, ah!

AMBRÓSIO, levanta-se muito devagar, olhando muito admirado para Carlos,
que se ri – Carlos! Carlos!

CARLOS – Senhor meu tio! Ah, ah, ah!

AMBRÓSIO – Mas então o que é isto?

CARLOS – Ah, ah, ah!

AMBRÓSIO – Como te achas aqui assim vestido?

CARLOS – Este vestido, senhor meu tio… Ah, ah!

AMBRÓSIO – Maroto!

CARLOS – Tenha-se lá! Olhe que eu chamo por ela.

AMBRÓSIO – Ela quem, brejeiro?

CARLOS – Sua primeira mulher.

AMBRÓSIO – Minha primeira mulher. É falso…

CARLOS – É falso?

AMBRÓSIO – É.

CARLOS – E será também falsa esta certidão do vigário
da freguesia de… (olhando para a certidão:) Maranguape, no Ceará,
em que se prova que o senhor meu tio recebeu-se… (lendo:) em santo matrimônio,
à face da Igreja, com D. Rosa Escolástica, filha de Antônio
Lemos, etc., etc.? Sendo testemunhas, etc.

AMBRÓSIO – Dá-me esse papel!

CARLOS – Devagar…

AMBRÓSIO – Dá-me esse papel!

CARLOS – Ah, o senhor meu tio encrespa-se. Olhe que a tia não está
em casa, e eu sou capaz de lhe fazer o mesmo que fiz ao D. Abade.

AMBRÓSIO – Onde está ela?

CARLOS – Em lugar que aparecerá quando eu ordenar.

AMBRÓSIO – Ainda está naquele quarto; não teve tempo
de sair.

CARLOS – Pois vá ver. (Ambrósio sai apressado)

CENA IV

CARLOS, só – Procure bem. Deixa estar, meu espertalhão, que
agora te hei-de eu apertar a corda na garganta. Estais em meu poder; querer
roubar-nos… (Gritando:) Procure bem; talvez esteja dentro das gavetinhas
do espelho. Então? Não acha?

CENA VI

O mesmo e Ambrósio

AMBRÓSIO, entrando – Estou perdido!

CARLOS – Não achou?

AMBRÓSIO – O que será de mim?

CARLOS – Talvez se escondesse em algum buraquinho de rato.

AMBRÓSIO, caindo sentado – Estou perdido, perdido! Em um momento tudo
se transtornou. Perdido para sempre!

CARLOS – Ainda não, porque eu posso salvá-lo.

AMBRÓSIO – Tu?

CARLOS – Eu, sim

AMBRÓSIO – Carlinho!

CARLOS – Já?

AMBRÓSIO – Carlinho!

CARLOS – Ora vejam como está terno!

AMBRÓSIO – Por tua vida, salvai-me!

CARLOS – Eu salvarei, mas debaixo de certas condições…

AMBRÓSIO – E quais são elas?

CARLOS – Nem eu nem o primo Juca queremos ser frades…

AMBRÓSIO- Não serão.

CARLOS – Quero casar-me com minha prima…

AMBRÓSIO – Casarás.

CARLOS – Quero a minha legítima…

AMBRÓSIO – Terás a tua legitima.

CARLOS – Muito bem.

AMBRÓSIO – E tu me prometes que nada dirás a tua tia do que
sabes?

CARLOS – Quanto a isso pode estar certo. (À parte:) Veremos…

AMBRÓSIO – Agora dize-me, onde ela está?

CARLOS – Não posso, o segredo não é meu.

AMBRÓSIO – Mas dá-me sua palavra de honra que ela saiu desta
casa?

CARLOS – Já saiu, palavra de mulher honrada.

AMBRÓSIO – E que nunca mais voltará?

CARLOS – Nunca mais. (À parte:) Isto é, se quiserem ficar com
ela lá no convento, em meu lugar.

AMBRÓSIO – Agora dá-me esse papel.

CARLOS – Espera lá, o negócio não vai assim. Primeiro
hão de cumprir-se as condições.

AMBRÓSIO – Carlinho, dá-me esse papel!

CARLOS – Não pode ser.

AMBRÓSIO – Dá-mo, por quem és!

CARLOS – Peior é a seca.

AMBRÓSIO – Eis-me a teus pés. (Ajoelha-se; neste mesmo tempo
aparece à porta Florência e Emília, as quais caminham
para ele pé ante pé.)

CARLOS – Isso é teima; levante-se!

AMBRÓSIO – Não me levantarei enquanto não mo deres.
Para que o queres tu? Farei tudo quanto quiseres, nada me custará para
servir-te. Minha mulher fará tudo quanto ordenares; dispõe dela.

FLORÊNCIA – A senhora pode dispor de mim, pois não…

AMBRÓSIO – Ah! (Levanta-se espavorido.)

CARLOS, à parte – Temo-la!…

FLORÊNCIA, para Ambrósio – Que patifaria é essa? Em minha
casa e às minhas barbas, aos pés de uma mulher! Muito bem!

AMBRÓSIO – Florência!

FLORÊNCIA – Um dardo que te parta! (Voltando-se para Carlos:) E quem
é a senhora?

CARLOS , com a cara baixa – Sou uma desgraçada!

FLORÊNCIA – Ah, é uma desgraçada… Seduzindo um homem
casado! Não sabe que… (Carlos que encara com ela, que rapidamente
tem suspendido a palavra e, como assombrada, principia a olhar para ele, que
ri-se.) Carlos! Meu sobrinho!

EMÍLIA – O primo.

CARLOS – Sim, tiazinha, sim, priminha.

FLORÊNCIA – Que mascarada é essa?

CARLOS – É uma comédia que ensaiávamos para sábado
de Aleluia.

FLORÊNCIA – Uma comédia?

AMBRÓSIO – Sim, era uma comédia, um divertimento, uma surpresa.
Eu e o sobrinho arranjávamos isso… Bagatela, não é
assim, Carlinho? Mas então vocês não ouviram o ofício
até o fim? Quem pregou?

FLORÊNCIA, à parte – Isto não é natural… Aqui
há coisa.

AMBRÓSIO – A nossa comédia era mesmo sobre isso.

FLORÊNCIA – O que está o senhor a dizer?

CARLOS, à parte – Perdeu a cabeça ( Para Florência:)
Tia, basta que saiba que era uma comédia. E antes de principiar o ensaio
o tio deu-me a sua palavra que eu não seria frade. Não é
verdade, tio?

AMBRÓSIO – É verdade. O rapaz não tem inclinação,
e para que obrigá-lo? Seria crueldade.

FLORÊNCIA – Ah!

CARLOS – E que a prima não seria também freira, e que se casaria
comigo.

FLORÊNCIA – É verdade, Sr. Ambrósio?

AMBRÓSIO – Sim, para que constranger estas duas almas? Nasceram um
para o outro; amam-se. É tão bonito ver um tão lindo
par!

FLORÊNCIA – Mas, Sr. Ambrósio, e o mundo que o senhor dizia
que era um pélago, um sorvedouro e não sei o que mais?

AMBRÓSIO – Oh, então eu não sabia que estes dous pombinhos
se amavam, mas agora que o sei, seria horrível barbaridade. Quando
se fecham as portas de um convento sobre um homem, ou sobre uma mulher que
leva dentro do peito uma paixão como ressentem estes dous inocentes,
torna-se o convento abismo incomensurável de acerbos males, fonte perene
de horríssonas desgraças, perdição do corpo e
da alma; e o mundo, se nele ficassem, jardim ameno, suave encanto da vida,
tranqüila paz da inocência, paraíso terrestre. E assim sendo,
mulher, queria tu que sacrificasse tua filha e teu sobrinho?

FLORÊNCIA – Oh, não, não.

CARLOS, à parte – Que grande patife!

AMBRÓSIO – Tua filha, que faz parte de ti?

FLORÊNCIA – Não falemos mais nisso. O que fizeste está
muito bem feito.

CARLOS – E em reconhecimento de tanta bondade, faço cessão
de metade dos meus bens em favor do meu tio e aqui lhe dou a escritura . (Dá-lhe
a certidão de Rosa).

AMBRÓSIO, saltando para tomar a certidão – Caro sobrinho! (Abraça-o.)
E eu, para mostrar o meu desinteresse, rasgo esta escritura. (Rasga, e, à
parte:) Respiro!

FLORÊNCIA – Homem generoso! (Abraça-o)

AMBRÓSIO – , (abraçando-a e à parte:) – Mulher toleirona!

CARLOS, abraçando Emília – Isto vai de roda…

EMÍLIA – Primo!

CARLOS – Priminha, seremos felizes!

FLORÊNCIA – Abençoada seja a hora em que eu te escolhi para
meu esposo! Meus caros filhos, aprendei comigo a guiar-vos com prudência
na vida. Dous anos estive viúva e não me faltaram pretendentes.
Viúva rica… Ah, são vinte cães a um osso. Mas eu tive
juízo e critério; soube distinguir o amante interesseiro do
amante sincero. Meu coração falou por este homem honrado e probo.

CARLOS – Acertadíssima escolha!

FLORÊNCIA – Chega-te para cá, Ambrosinho, não te envergonhes;
mereces os elogios que te faço.

AMBRÓSIO, à parte – Estou em brasas…

CARLOS – Não se envergonhe, tio. Os elogios são merecidos.
(À parte:) Está em talas…

FLORÊNCIA – Ouves o que diz o sobrinho? Tens modéstia? É
mais uma qualidade. Como sou feliz!

AMBRÓSIO – Acabemos com isso. Os elogios assim à queima roupa
perturbam-me.

FLORÊNCIA – Se os merece…

AMBRÓSIO – Embora.

CARLOS – Oh, o tio os merece, pois não. Olhe, tia, aposto eu que o
tio Ambrosinho em toda a sua via só tem amado a tia…

AMBRÓSIO – Decerto! (À parte:) Quer fazer-me alguma.

FLORÊNCIA – Ai, vida da minha alma!

AMBRÓSIO, à parte – O patife é muito capaz…

CARLOS – Mas nós, os homens, somos tão falsos – assim dizem
as mulheres – , que não admira que o tio…

AMBRÓSIO, interrompendo-o – Carlos, tratemos da promessa que te fiz.

CARLOS – É verdade; tratemos da promessa. (À parte:) Tem medo,
que se pela!

AMBRÓSIO – Irei hoje mesmo ao convento falar ao D. Abade, e dir-lhe-ei
que temos mudado de resolução a teu respeito. E de hoje em quinze
dias, senhora, espero ver esta sala brilhantemente iluminada e cheia de alegres
convidados para celebrarem o casamento de nosso sobrinho Carlos com minha
cara enteada. ( Aqui entra pelo fundo o mestre dos noviços, seguidos
dos meirinhos e permanentes, encaminhando-se para a frente do teatro.)

CARLOS – Enquanto assim praticardes, tereis em mim um amigo.

EMÍLIA – Senhor, ainda que não possa explicar a razão
de tão súbita mudança, aceito a felicidade que me propondes,
sem raciocinar. Darei a minha mão a Carlos, não só para
obedecer a minha mãe, como porque muito o amo.

CARLOS – Cara priminha, quem será capaz agora de arrancar-me de teus
braços?

MESTRE, batendo-lhe no ombro – Estais preso. (Espanto dos que estão
em cena)

CENA VI

CARLOS – O que é lá isso? (Debatendo-se logo que o agarram.)

MESTRE – Levai-o.

FLORÊNCIA – Reverendíssimo, meu sobrinho…

MESTRE – Paciência, senhora. Levem-no.

CARLOS, debatendo-se – Larguem-me, com todos os diabos!

EMÍLIA – Primo!

MESTRE – Arrastem-no.

AMBRÓSIO – Mas, senhor…

MESTRE – Um instante… Para o convento, para o convento.

CARLOS – Minha tia, tio Ambrósio! (Sai arrastado. Emília cai
sentada em uma cadeira; o Padre-Mestre fica em cena.)

CENA VII

Ambrósio, Mestre de Noviços, Florência e Emília.

FLORÊNCIA – Mas senhor, isto é uma violência!

MESTRE – Paciência…

FLORÊNCIA – Paciência, paciência? Creio que tenho tido
bastante. Ver assim arrastar meu sobrinho, como se fosse um criminoso?

AMBRÓSIO- Espera, Florência, ouçamos o Reverendíssimo.
Foi, sem dúvida, por ordem do Sr. D. Abade que Vossa Reverendíssima
veio prender nosso sobrinho?

MESTRE – Não tomara sobre mim tal trabalho, se não fora por
expressa ordem do D. Abade, a quem devemos todos obediência. Vá
ouvindo como esse moço zombou de seu mestre. Disse-me a tal senhora,
pois tal a supunha eu… Ora fácil foi enganar-me… Além de
ter má vista, tenho muito pouca prática de senhoras…

AMBRÓSIO – Sabemos disso.

MESTRE – Disse-me a tal senhora que o noviço Carlos estava naquele
quarto.

AMBRÓSIO – Naquele quarto?

MESTRE – Sim senhor, e ali mandou-nos esperar em silêncio. Chamou pelo
noviço, e assim que ele saiu lançamo-nos sobre ele e à
força o arrastamos para o convento.

AMBRÓSIO, assustado – Mas a quem, a quem?

MESTRE – A quem?

FLORÊNCIA – Que trapalhada é essa?

AMBRÓSIO – Depressa!

MESTRE – Cheguei ao convento, apresentei-me diante do D. Abade, com o noviço
prisioneiro, e então… Ah!

AMBRÓSIO – Por Deus, mais depressa!

MESTRE – Ainda me coro de vergonha. Então conheci que tinha sido vilmente
enganado.

AMBRÓSIO – Mas quem era o noviço preso?

MESTRE – Uma mulher vestida de frade.

FLORÊNCIA – Uma mulher?

AMBRÓSIO, à parte – É ela!

MESTRE – Que vergonha, que escândalo!

AMBRÓSIO – Mas onde está essa mulher? Para onde foi? O que
disse? Onde está? Responda!

MESTRE – Tende paciência. Pintar-vos a confusão que por alguns
instantes esteve o convento, é quase impossível. O D. Abade,
ao conhecer que o noviço preso era uma mulher, pelos longos cabelos
que ao tirar o chapéu lhe caíram sobre os ombros, deu um grito
de horror. Toda a comunidade acorreu e grande foi então a confusão.
Um gritava: Sacrilégio! Profanação! Outro ria-se; este
interrogava; aquele respondia ao acaso… Em menos de dois segundos a notícia
percorreu todo o convento, mas alterada e aumentada. No refeitório
dizia-se que o diabo estava no coro, dentro dos canudos do órgão;
na cozinha julgava-se que o fogo lavrava nos quatro ângulos do edifício;
qual, pensava que D. Abade tinha caído da torre abaixo; qual, que fora
arrebatado para o céu. Os sineiros, correndo para as torres, puxavam
como energúmenos pelas cordas dos sinos; os porteiros fecharam as portas
com horrível estrondo: os responsos soaram de todos os lados, e a algazarra
dos noviços dominava esse ruído infernal, causado por uma única
mulher. Oh, mulheres!

AMBRÓSIO – Vossa Reverendíssima faz o seu dever; estou disso
bem certo.

FLORÊNCIA – Mas julgamos necessário declarar a Vossa Reverendíssima
que estamos resolvidos a tirar nosso sobrinho do convento.

MESTRE – Nada tenho eu com essa resolução. Vossa Senhoria entender-se-á
a esse respeito com D. Abade.

FLORÊNCIA – O rapaz não tem inclinação nenhuma
para frade.

AMBRÓSIO – E seria uma crueldade violentar-lhe o gênio .

MESTRE – O dia em que o Sr. Carlos sair do convento será para mim
dia de descanso. Há doze anos que sou mestre de noviços e ainda
não tive para doutrinar rapaz mais endiabrado. Não se passa
um só dia em que se não tenha de lamentar alguma travessura
desse moço. Os noviços, seus companheiros, os irmãos
leigos e os domésticos do convento temem-no como se teme a um touro
bravo. Com todos moteja e a todos espanca.

FLORÊNCIA – Foi sempre assim, desde pequeno.

MESTRE – E se o conheciam, senhores, para que o obrigaram a entrar no convento,
a seguir uma vida em que se requer tranqüilidade de gênio?

FLORÊNCIA – Oh, não foi por meu gosto; meu marido é que
persuadiu-me.

AMBRÓSIO, com hipocrisia – Julguei assim fazer um serviço agradável
a Deus.

MESTRE – Deus, senhores, não se compraz com sacrifícios alheios.
Sirva-o cada um com seu corpo e a alma, porque cada um responderá pelas
suas obras.

AMBRÓSIO, com hipocrisia – Pequei, Reverendíssimo, pequei;
humilde peço perdão.

MESTRE – Esse moço foi violentamente constrangido e o resultado é
a confusão em que está a casa de Deus.

FLORÊNCIA – Mil perdões, Reverendíssimo, pelo incômodo
que lhe temos dado.

MESTRE – Incômodos? Para ele nascemos nós… passam desapercebidos,
e demais, ficam de muros para dentro. Mas hoje houve escândalo, e escândalo
público.

AMBRÓSIO – Escândalo público?

FLORÊNCIA – Como assim?

MESTRE – O noviço Carlos, depois de uma contenda com o D. Abade, deu-lhe
uma cabeçada e o lançou por terra.

FLORÊNCIA – Jesus, Maria José!

AMBRÓSIO – Que sacrilégio!

MESTRE – E fugiu ao seu merecido castigo. Fui mandado em seu alcance… Requisitei
força pública, e aqui chegando, encontrei uma senhora .

FLORÊNCIA – Aqui, uma senhora?

MESTRE – E que se dizia sua tia.

FLORÊNCIA – Ai!

AMBRÓSIO – Era ele mesmo.

FLORÊNCIA – Que confusão, meu Deus!

AMBRÓSIO – Mas essa mulher, essa mulher? O que é feito dela?

MESTRE – Uma hora depois, que tanto foi preciso para acalmar a agitação,
o D. Abade perguntou-lhe como ela ali se achava vestida com o hábito
da Ordem.

AMBRÓSIO – E ela que disse?

MESTRE – Que tinha sido traída por um frade, que debaixo do pretexto
de a salvar, trocara seu vestido pelo hábito que trazia.

AMBRÓSIO – E nada mais?

MESTRE – Nada mais, e fui encarregado de prender a todo o custo o noviço
Carlos. E tenho cumprido a minha missão. O que ordenam a este servo
de Deus?

AMBRÓSIO – Espere, Reverendíssimo, essa mulher já saiu
do convento?

MESTRE – No convento não se demoram as mulheres.

AMBRÓSIO – Que caminho tomou? Para onde foi? O que disse ao sair?

MESTRE – Nada sei.

AMBRÓSIO, à parte – O que me espera?

FLORÊNCIA, à parte – Aqui há segredo…

MESTRE – Às vossas determinações…

FLORÊNCIA – Uma serva de Vossa Reverendíssima.

MESTRE, para Florência – Quanto à saída de seu sobrinho
do convento, com D. Abade se entenderá.

FLORÊNCIA – Nós o procuraremos. (Mestre sai e Florência
acompanha-o até a porta; Ambrósio está como abismado)

CENA VIII

Emília, Ambrósio e Florência

EMÍLIA, à parte – Carlos, Carlos, o que será de ti e
de mim?

AMBRÓSIO, à parte – Se ela agora me aparece? Se Florência
desconfia… Estou metido em boas! Como evitar, como? Oh, decididamente estou
perdido. Se a pudesse encontrar… Talvez súplicas, ameaças,
quem sabe? Já não tenho cabeça? Que farei? De uma hora
para outra aparece-me ela…(Florência bate-lhe no ombro.) Ei-la! (Assustando-se.)

FLORÊNCIA – Agora nós. (Para Emília:) Menina, vai para
dentro. (Vai-se Emília.)

CENA IX

Ambrósio e Florência.

AMBRÓSIO, à parte – Temos trovoada grossa…

FLORÊNCIA – Quem era a mulher que estava naquele quarto?

AMBRÓSIO – Não sei.

FLORÊNCIA – Sr. Ambrósio, quem era a mulher que estava naquele
quarto?

AMBRÓSIO – Florência, já te disse, não sei. São
cousas de Carlos.

FLORÊNCIA – Sr. Ambrósio, quem era a mulher que estava naquele
quarto?

AMBRÓSIO – Como queres que eu to diga, Florencinha?

FLORÊNCIA – Ah, não sabe? Pois bem, então explique-me:
por que razão mostrou-se tão espantado, quando Carlos o levou
à porta daquele quarto e mostrou-lhe quem estava dentro?

AMBRÓSIO – Pois eu espantei-me?

FLORÊNCIA – A ponto de levar-me quase de rastos para a igreja, sem
chapéu, lá deixar-me e voltar para casa apressado.

AMBRÓSIO – Qual! Foi por…

FLORÊNCIA – Não estude uma mentira, diga depressa.

AMBRÓSIO – Pois bem: direi. Eu conheço essa mulher.

FLORÊNCIA – Ah! E então quem é ela?

AMBRÓSIO – Queres saber quem é ela? É muito justo, mas
aí que está o segredo.

FLORÊNCIA – Segredos comigo?

AMBRÓSIO – Oh, contigo não pode haver segredo, é a minha
mulherzinha. (Quer abraçá-la)

FLORÊNCIA – Tenha-se lá; quem era a mulher?

AMBRÓSIO, à parte – Não sei o que lhe diga…

FLORÊNCIA – Vamos!

AMBRÓSIO – Essa mulher… Sim, essa mulher que há pouco estava
naquele quarto, foi amada por mim.

FLORÊNCIA – Por ti?

AMBRÓSIO – Mas nota que digo: foi amada, e o que foi, já não
é.

FLORÊNCIA – Seu nome?

AMBRÓSIO – Seu nome? Que importa o nome? O nome é uma voz com
que se dão a conhecer as cousas… Nada vale; o indivíduo é
tudo… Tratemos do indivíduo. (À parte:) Não sei como
continuar.

FLORÊNCIA – Então, e que mais?

AMBRÓSIO – Amei a essa mulher. Amei, sim, amei. Essa mulher foi por
mim amada, mas então não te conhecia. Oh, e quem ousará
criminar a um homem por embelezar-se de uma estrela antes de ver a lua, quem?
Ela era a estrela, e tu és a lua. Sim, minha Florencinha, tu és
a minha lua cheia e eu sou teu satélite.

FLORÊNCIA – Oh, não me convence assim..

AMBRÓSIO, à parte – O diabo convença a uma mulher! (Alto:)
Florencinha, encanto da minha vida, estou diante de ti como diante do confessionário,
com uma mão sobre o coração e com a outra… Onde queres
que eu ponha a outra?

FLORÊNCIA – Ponha lá onde quiser…

AMBRÓSIO – Pois bem, com ambas sobre o coração, dir-te-ei:
só tu és o meu único amor, minhas delícias, minha
vida … (À parte:) e minha burra!

FLORÊNCIA – Se eu pudesse acreditar!…

AMBRÓSIO – Não podes porque não queres. Basta um bocado
de boa vontade. Se fiquei aterrorizado ao ver essa mulher, foi por prever
os desgostos que terias, se aí a visses.

FLORÊNCIA – Se temes que eu a veja, é porque ainda a ama.

AMBRÓSIO – Amá-la eu? Ah, desejava que ela estivesse mais longe
de mim do que o cometa que apareceu no ano passado.

FLORÊNCIA – Oh, meu Deus, se eu pudesse crer!

AMBRÓSIO, à parte – Está meia convencida…

FLORÊNCIA – Se eu o pudesse crer! (Rosa entra vestida de frade, pelo
fundo, pára e observa.)

AMBRÓSIO, com animação – Estes raios brilhantes e aveludados
de teus olhos ofuscam o seu olhar acanhado e esgateado. Esses negros e finos
cabelos varrem da minha idéia as suas emaranhadas melenas cor de fogo.
esta mãozinha torneada (pega-lhe na mão), este colo gentil,
esta cintura flexível e delicada fazem-me esquecer os grosseiros encantos
desta mulher que …( Nesse momento dá com os olhos em Rosa; vai recuando
pouco a pouco.)

FLORÊNCIA – O que tens? De que te espantas?

ROSA, adiantando-se – Senhora, este homem pertence-me.

FLORÊNCIA – E quem é vossa Reverendíssima?

ROSA, tirando o chapéu, que faz cair os cabelos – Sua primeira mulher.

FLORÊNCIA – Sua primeira mulher?

ROSA, dando-lhe a certidão – Leia (Para Ambrósio:) Conheceis-me,
senhor? Há seis anos que nos não vemos, e quem diria que assim
nos encontraríamos? Nobre foi o vosso proceder!… Oh, para que não
enviaste um assassino para esgotar o sangue destas veias e arrancar a alma
deste corpo? Assim devíeis ter feito, porque então eu não
estaria aqui para vingar-me, traidor!

AMBRÓSIO, à parte – O melhor é deitar a fugir. (Corre
para o fundo. Prevenção.)

ROSA – Não o deixem fugir! (Aparecem à porta meirinhos, os
quais prendem Ambrósio)

MEIRINHO – Está preso!

AMBRÓSIO – Ai! (Corre por toda a casa, etc. Enquanto isto se passa,
Florência tem lido a certidão.)

FLORÊNCIA – Desgraçada de mim, estou traída! Quem me
socorre? (Vai para sair, encontra-se com Rosa.) Ah, para longe, para longe
de mim! (Recuando.)

ROSA – Senhora, a quem pertencerá ele? (Execução.)

FIM DO SEGUNDO ATO

Ato Terceiro

Quarto em casa de Florência: mesa, cadeiras, etc., etc., armário,
uma cama grande com cortinados, uma mesa pequena com um castiçal com
vela acesa. É noite.

CENA I

Florência deitada, Emília sentada junto dela, Juca vestido de
calça, brincando com um carrinho pela sala.

FLORÊNCIA – Meu Deus, meu Deus, que bulha faz esse menino!

EMÍLIA – Maninho, estais fazendo muita bulha a mamãe…

FLORÊNCIA – Minha cabeça! Vai correr lá para dentro…

EMÍLIA – Anda, vai para dentro, vai para o quintal. (Juca sai com
o carrinho.)

FLORÊNCIA – Parece que me estala a cabeça… São umas
marteladas aqui nas fontes. Ai, que não posso! Morro desta!…

EMÍLIA – Minha mãe, não diga isso, seu incômodo
passará.

FLORÊNCIA – Passará? Morro, morro…(Chorando:) Hi…. (Etc.)

EMÍLIA – Minha mãe!

FLORÊNCIA, chorando – Ser assim traída, enganada! Meu Deus,
quem pode resistir? Hi, hi!

EMÍLIA – Para que tanto se aflige? Que remédio? Ter paciência
e resignação.

FLORÊNCIA – Um homem em quem havia posto toda a minha confiança,
que eu tanto amava… Emília, eu o amava muito!

EMÍLIA – Coitada!

FLORÊNCIA – Enganar-me deste modo! Tão indignamente, casado
com outra mulher. Ah, não sei como não arrebento…

EMÍLIA – Tranqüilize-se, minha mãe.

FLORÊNCIA – Que eu supunha desinteressado… Entregar-lhe todos os
meus bens, assim iludir-me… Que malvado, que malvado!.

EMÍLIA – São horas de tomar o remédio. (Toma uma garrafa
de remédio, deita-o em uma xícara e dá a Florência.)

FLORÊNCIA – Como os homens são falsos! Uma mulher não
era capaz de cometer ação tão indigna. O que é
isso?

EMÍLIA – O cozimento que o doutor receitou.

FLORÊNCIA – Dá cá. (Bebe.) Ora, de que servem estes remédios?
Não fico boa; a ferida é no coração…

EMÍLIA – Há de curar-se.

FLORÊNCIA – Ora, filha, quando eu vi diante de mim essa mulher, senti
uma revolução que te não sei explicar… um atordoamento,
uma zoada, que há de oito dias me tem pregado nesta cama.

EMÍLIA – Eu estava no meu quarto quando ouvi gritos na sala. Saí
apressada e no corredor encontrei-me com meu padrasto…

FLORÊNCIA – Teu padrasto?

EMÍLIA – … que passando como uma flecha por diante de mim, dirigiu-se
para o quintal e saltando o muro, desapareceu. Corri para a sala…

FLORÊNCIA – E aí encontraste-me banhada em lágrimas.
Ela já tinha saído, depois de ameaçar-me. Ah, mas eu
hei-de ficar boa para vingar-me!

EMÍLIA – Sim, é preciso ficar boa, para vingar-se.

FLORÊNCIA – Hei-de ficar. Não vale a pena morrer por um traste
daquele!

EMÍLIA – Que dúvida!

FLORÊNCIA – O meu procurador disse-me que o tratante está escondido,
mas que já há mandato de prisão contra ele. Deixa estar.
Enganar-me, obrigar-me a que te fizesse freira, constranger a inclinação
de Carlos…

EMÍLIA – Oh, minha mãe, tenha pena do primo. O que não
terá ele sofrido, coitado!

FLORÊNCIA – Já esta manhã mandei falar ao D. Abade por
pessoa de consideração, e além disso, tenho uma carta
que lhe quero remeter, pedindo-lhe que me faça o obséquio de
aqui mandar um frade respeitável para de viva voz tratar comigo este
negócio.

EMÍLIA – Sim, minha boa mãezinha.

FLORÊNCIA – Chama o José.

EMÍLIA – José? José? E a mamãe julga que o primo
poderá estar em casa hoje?

FLORÊNCIA – És muito impaciente… Chama o José.

EMÍLIA – José?

CENA II

Ambas e José

JOSÉ – Minha senhora…

FLORÊNCIA – José, leva esta carta ao convento. Onde está
o Sr. Carlos, sabes?

JOSÉ – Sei, minha senhora.

FLORÊNCIA – Procura pelo Sr. D. Abade, e lha entrega de minha parte.

JOSÉ – Sim, minha senhora

EMÍLIA – Depressa. (Sai José)

FLORÊNCIA – Ai, ai!

EMÍLIA – Tomara vê-lo já!

FLORÊNCIA – Emília, amanhã lembra-me para pagar as soldadas
que devemos ao José e despedi-lo do nosso serviço. Foi metido
aqui em casa pelo tratante, e só por esse fato já desconfio
dele… Lé com lé, cré com cré… Nada; pode ser
algum espião que tenhamos em casa…

EMÍLIA – Ele parece-me bom moço.

FLORÊNCIA – Também o outro parecia-me bom homem. Já não
me fio em aparências.

EMÍLIA – Tudo pode ser.

FLORÊNCIA – Vai ver aquilo lá por dentro como anda, que minhas
escravas pilhando-me de cama fazem mil diabruras.

EMÍLIA – E fica só.

FLORÊNCIA – Agora estou melhor, e se precisar de alguma cousa, tocarei
a campainha. (Sai Emília)

CENA III

FLORÊNCIA, só – Depois que mudei a cama para este quarto que
foi do sobrinho Carlos, passo melhor… No meu, todos os objetos faziam-me
recordar aquele pérfido. Ora, os homens são capazes de tudo,
até de terem duas mulheres… E três, e quatro, e duas dúzias…
Que demônios! Há oito dias que estou nesta cama; antes tivesse
morrido. E ela, essa mulher infame, onde estará. E outra que tal…
Oh, mas que culpa tem ela? Mais tenho eu, já que fui tão tola,
tão tola, que casei-me sem indagar quem ele era. Queira Deus que este
exemplo aproveite a muitas incautas! Patife, agora anda escondido… Ai, estou
cansada… (Deita-se) Mas não escapará da cadeia… seis anos
de cadeia… assim me disse o procurador. Ai, minha cabeça! Se eu pudesse
dormir um pouco. Ai, ai, as mulheres neste mundo… estão sujeitas…
a… muito… ah! (Dorme.)

CENA IV

Carlos entra pelo fundo, apressado; traz o hábito roto e sujo.

CARLOS – Não há grades que me prendam, nem muros que me retenham.
Arrombei grades, saltei muros e eis-me aqui de novo. E lá deixei parte
do hábito, esfolei os joelhos e as mãos. Estou em belo estado!
Ora, para que ateimam comigo? Por fim lanço fogo ao convento e morrem
todos os frades assados, e depois queixem-se. Estou no meu antigo quarto,
ninguém me viu entrar. Ah, que cama é esta? É da tia…
Estará… Ah, é ela… e dorme… Mudou de quarto? O que se
terá passado nesta casa há oito dias. Estive preso, incomunicável,
a pão e água. Ah, frades! Nada sei. O que será feito
da primeira mulher do senhor meu tio, desse grande patife? Onde estará
a prima? Como dorme! Ronca que é um regalo! (Batem palmas.) Batem!
Serão eles, não tem dúvida. Eu acabo por matar um frade…

MESTRE, dentro – Deus esteja nesta casa.

CARLOS – É o padre mestre! Já deram pela minha fugida…

MESTRE, dentro – Dá licença?

CARLOS – Não sou eu que ta hei-de dar. Escondamo-nos, mas de modo
que ouça o que ele diz… Debaixo da cama… (Esconde-se.)

MESTRE, dentro, batendo com força – Dá licença?

FLORÊNCIA, acordando – Quem é? Quem é?

MESTRE, dentro – Um servo de Deus.

FLORÊNCIA – Emília? Emília? (Toca a campainha)

CENA V

Entra Emília

EMÍLIA – Minha mãe…

FLORÊNCIA – Lá dentro estão todos surdos? Vai ver quem
está na escada batendo. (Emília sai pelo fundo.) Acordei sobressaltada…
Estava sonhando que o meu primeiro marido enforcava o segundo, e era muito
bem enforcado…

CENA VI

Entra Emília com o Padre-Mestre

EMÍLIA – Minha mãe, é o Sr. Padre-Mestre. (À
parte:) Ave de agouro.

FLORÊNCIA – Ah!

MESTRE – Desculpe-me, minha senhora.

FLORÊNCIA – O Padre-Mestre é que me há-de desculpar se
assim o recebo (Senta-se na cama.)

MESTRE – Oh, esteja a seu gosto. Já por lá sabe-se dos seus
incômodos. Toda cidade o sabe. Tribulações deste mundo…

FLORÊNCIA – Emília, oferece uma cadeira ao Reverendíssimo.

MESTRE – Sem incômodo. (Senta-se.)

FLORÊNCIA – O Padre-Mestre veio falar comigo por mandado do Sr. D.
Abade?

MESTRE – Não, minha senhora.

FLORÊNCIA – Não? Pois eu lhe escrevi.

MESTRE – Aqui venho pelo mesmo motivo que já vim duas vezes.

FLORÊNCIA – Como assim?

MESTRE – Em procura do noviço Carlos. Ah, que rapaz!

FLORÊNCIA – Pois tornou a fugir?

MESTRE – Se tornou! É indomável! Foi metido no cárcere
a pão e água.

EMÍLIA – Desgraçado!

MESTRE – Ah, a menina lastima-o? Já me não admira que ele faça
o que faz.

FLORÊNCIA – O Padre-Mestre dizia…

MESTRE – Que estava no cárcere a pão e água, mas o endemoninhado
arrombou as grades, saltou na horta, vingou o muro da cerca que deita para
a rua e pôs-se a panos.

FLORÊNCIA – Que doudo! E para onde foi?

MESTRE – Não sabemos, mas julgamos que para aqui se dirigiu.

FLORÊNCIA – Posso afiançar a Vossa Reverendíssima que
por cá ainda não apareceu. (Carlos bota a cabeça de fora
e puxa pelo vestido de Emília.)

EMÍLIA, assustando-se – Ai!

FLORÊNCIA – O que é, menina?

MESTRE, levantando-se – O que foi?

EMÍLIA, vendo Carlos – Não foi nada, não senhora…
Um jeito que dei no pé.

FLORÊNCIA – Tem cuidado. Assente-se, Reverendíssimo. Mas como
lhe dizia, o meu sobrinho cá não apareceu; desde o dia em que
o Padre-Mestre o levou preso ainda não o vi. Não sou capaz de
faltar a verdade.

MESTRE – Oh, nem tal suponho. E demais, Vossa Senhoria, como boa parenta
que é, deve contribuir para sua correção. Esse moço
tem revolucionado todo o convento, e é preciso um castigo exemplar.

FLORÊNCIA – Tem muita razão; mas eu já mandei falar ao
Sr. D. Abade para que meu sobrinho saísse do convento.

MESTRE – E o D. Abade está a isso resolvido. Nós todos nos
temos empenhado. O Sr. Carlos faz-nos loucos… Sairá do convento;
porém antes será castigado.

CARLOS – Veremos…

FLORÊNCIA, para Emília – O que é?

EMÍLIA – Nada, não senhora.

MESTRE – Não por ele, que estou certo que não se emendará,
mas para exemplo dos que lá ficam. Do contrário, todo o convento
abalava.

FLORÊNCIA – Como estão resolvidos a despedir meu sobrinho do
convento, e o castigo que lhe querem impor é tão somente exemplar,
e ele precisa um pouco, dou minha palavra a Vossa Reverendíssima que
assim que ele aqui aparecer, mandarei agarrá-lo e levar para o convento.

CARLOS – Isso tem mais que se lhe diga…

MESTRE, levantando-se – Mil graças, minha senhora.

FLORÊNCIA – Isto mesmo terá a bondade de dizer ao Sr. D. Abade,
a cujas orações me recomendo.

MESTRE – Serei fiel cumpridor . Dê-me as suas determinações.

FLORÊNCIA – Emília, conduz o Padre-Mestre.

MESTRE, para Emília – Minha menina, muito cuidado com o senhor seu
primo. Não se fie nele; julgo capaz de tudo. (Sai)

EMÍLIA, voltando – Vá encomendar defuntos!

CENA VII

Emília, Florência e Carlos, debaixo da cama.

FLORÊNCIA – Então, que te parece teu primo Carlos? É
a terceira fugida que faz. Isto assim não é bonito.

EMÍLIA – E para que o prendem?

FLORÊNCIA – Prendem-no porque ele foge.

EMÍLIA – E ele foge porque o prendem.

FLORÊNCIA – Belo argumento! É mesmo desta cabeça. (Carlos
puxa pelo vestido de Emília.) Mas o que tens tu?

EMÍLIA – Nada, não senhora.

FLORÊNCIA – Se ele aqui aparecer hoje há-de ter paciência,
irá para o convento, ainda que seja amarrado. É preciso quebrar-lhe
o gênio. Estais a mexer-te?

EMÍLIA – Não, senhora.

FLORÊNCIA – Queira Deus que ele se emende… Mas que tens tu Emília,
tão inquieta?

EMÍLIA – São cócegas na sola dos pés.

FLORÊNCIA – Ah, isso são cãibras. Bate com o pé,
assim estais melhor.

EMÍLIA – Vai passando.

FLORÊNCIA – O sobrinho é estouvado, mas nunca te dará
os desgostos que me deu o Ambró… – nem quero pronunciar o nome. E
tu não te aquietas? Bate com o pé.

EMÍLIA, afastando-se da cama – Não posso estar quieta no mesmo
lugar; (À parte:) Que louco!

FLORÊNCIA – Estou arrependida de ter escrito. (Entra José.)
Quem vem aí?

CENA VIII

Os mesmos e José.

EMÍLIA – É o José.

FLORÊNCIA – Entregaste a carta?

JOSÉ – Sim, minha senhora, e o Sr. D. Abade mandou comigo um reverendíssimo,
que ficou na sala à espera.

FLORÊNCIA – Fá-lo entrar.(Sai o criado.) Emília, vai
para dentro. Já que um reverendíssimo teve o incômodo
de vir cá, quero aproveitar a ocasião e confessar-me. Posso
morrer…

EMÍLIA – Ah!

FLORÊNCIA – Anda, vai para dentro, não te assustes. (Sai Emília)

CENA IX

FLORÊNCIA, só – A ingratidão daquele monstro assassinou-me.
Bom é ficar tranqüila com a minha consciência.

CENA X

Ambrósio, com hábito de frade, entra seguindo José.

JOSÉ – Aqui está a senhora.

AMBRÓSIO, à parte – Retira-te e fecha a porta. (Dá-lhe
dinheiro.)

JOSÉ, à parte – Que lá se avenham… A paga cá
está.

CENA XI

FLORÊNCIA – Vossa Reverendíssima pode aproximar-se. Queira assentar-se.
(Senta-se.)

AMBRÓSIO, fingindo que tosse – Hum, hum, hum… (Carlos espreita embaixo
da cama.)

FLORÊNCIA – Escrevi para que viesse uma pessoa falar-me e Vossa Reverendíssima
quis ter a bondade de vir.

AMBRÓSIO – Hum, hum, hum…

CARLOS, à parte – O diabo do frade está endefluxado.

FLORÊNCIA – E era para tratarmos do meu sobrinho Carlos, mas já
não é preciso. Aqui esteve o padre-mestre; sobre isso falamos;
está tudo justo e sem dúvida Vossa reverendíssima já
está informado.

AMBRÓSIO, o mesmo – Hum, hum, hum…

FLORÊNCIA – Vossa Reverendíssima está constipado; talvez
o frio da noite…

AMBRÓSIO, disfarçando a voz – Sim, sim….

FLORÊNCIA – Muito bem.

CARLOS – Não conheci esta voz no convento…

FLORÊNCIA – Mas para que Vossa Reverendíssima não perdesse
de todo o seu tempo, se quisesse ter a bondade de ouvir-me em confissão…

AMBRÓSIO – Ah! (Vai fechar as portas.)

FLORÊNCIA – Que faz, senhor? Fecha a porta? Ninguém nos ouve.

CARLOS, à parte – O frade tem más tenções…

AMBRÓSIO, disfarçando a voz – Por cautela.

FLORÊNCIA – Assente-se (À parte:) Não gosto muito disso…
(Alto:) Reverendíssimo, antes de principiarmos a confissão,
julgo necessário informar-lhe que fui casada duas vezes; a primeira,
com um santo homem, e a segunda, com um demônio.

AMBRÓSIO – Hum, hum, hum…

FLORÊNCIA – Um homem sem honra e sem fé em Deus, um malvado.
Casou-se comigo quando ainda tinha mulher viva! Não é verdade,
reverendíssimo, que este homem vai direitinho para o inferno?

AMBRÓSIO – Hum, hum, hum…

FLORÊNCIA – Oh, mas enquanto não vai para o inferno, há-de
pagar nesta vida. Há uma ordem de prisão contra ele e o malvado
não ousa aparecer.

AMBRÓSIO, levantando-se e tirando o capuz – E quem vos disse que ele
não ouso aparecer?

FLORÊNCIA, fugindo da cama – Ah!

CARLOS, à parte – O senhor meu tio!

AMBRÓSIO – Podeis gritar, as portas estão fechadas. Preciso
de dinheiro e muito dinheiro para fugir desta cidade, e dar-mo-eis, senão…

FLORÊNCIA – Deixai-me! Eu chamo por socorro!

AMBRÓSIO – Que me importa? Sou criminoso; serei punido. Pois bem,
cometerei outro crime, que me pode salvar. Dar-me-eis tudo quanto possuís:
dinheiro, jóias, tudo! E desgraçada de vós, se não
me obedeceis! A morte!…

FLORÊNCIA, corre por toda a casa, gritando – Socorro, socorro! Ladrão,
ladrão! Socorro! (Escuro.)

AMBRÓSIO, seguindo-a – Silêncio, silêncio, mulher!

CARLOS – O caso está sério! ( Vai saindo debaixo da cama no
momento que Florência atira com a mesa no chão. Ouve-se gritos
fora: Abra, abra! Florência, achando-se só e no escuro, senta-se
no chão, encolhe-se e cobre-se com uma colcha.)

AMBRÓSIO, procurando – Para onde foi? Nada vejo. Batem nas portas!
O que farei?

CARLOS, à parte – A tia calou-se e ele aqui está.

AMBRÓSIO, encontra-se com Carlos e agarra-lhe o hábito – Ah,
mulher, estais em meu poder. Estas portas não tardarão a ceder;
salvai-me, ou mato-te!

CARLOS, dando-lhe uma bofetada – Tome lá, senhor meu tio!

AMBRÓSIO – Ah! (Cai no chão.)

CARLOS, a parte – Outra vez para a concha (Mete-se debaixo da cama.)

AMBRÓSIO, levantando-se – Que mão! Continuam a bater. Onde
esconder-me? Que escuro! Deste lado vi um armário… Ei-lo! (Mete-se
dentro.)

CENA XII

Entram pelo fundo quatro homens armados, Jorge trazendo uma vela acesa. Claro.

JORGE, entrando – Vizinha, vizinha, o que é? O que foi? Não
vejo ninguém… (Dá com Florência no canto.) Quem está
aqui?

FLORÊNCIA – Ai, ai!

JORGE – Vizinha, somos nós…

EMÍLIA, dentro – Minha mãe, minha mãe! (Entra.)

FLORÊNCIA – Ah, é o vizinho Jorge! E estes senhores? (Levantando-se
ajudada por Jorge.)

EMÍLIA – Minha mãe, o que foi?

FLORÊNCIA – Filha!

JORGE – Estava na porta de minha loja, quando ouvi gritar: Socorro, socorro!
Conheci a voz da vizinha e acudi com estes quatro amigos.

FLORÊNCIA – Muito obrigado, vizinho, ele já se foi.

JORGE – Ele quem?

FLORÊNCIA – O ladrão.

TODOS – O ladrão!

FLORÊNCIA – Sim, um ladrão vestido de frade, que me queria roubar
e assassinar.

EMÍLIA, para Florência – Minha mãe!

JORGE – Mas ele não teve tempo de sair. Procuremos.

FLORÊNCIA – Espere, vizinho, deixe-me sair primeiro. Se o encontrarem,
dêem-lhe uma boa arrochada e levem-no preso. (À parte:) Há-de
me pagar! Vamos menina.

EMÍLIA, para Florência – É Carlos, minha mãe,
é o primo!

FLORÊNCIA, para Emília – Qual primo! É ele, teu padrasto.

EMÍLIA – É o primo!

FLORÊNCIA – É ele, é ele. Vem. procurem-no bem, vizinhos,
e pau nele. Anda, anda. (Sai com Emília.)

CENA XIII

JORGE – Amigos, cuidado! Procuremos tudo; o ladrão ainda não
saiu daqui. Venham atrás de mim. Assim que ele aparecer, uma boa massada
de pau, e depois os pés e mãos amarradas, e guarda do Tesouro
com ele… Sigam-me. Aqui não está; vejamos atrás do
armário. (Vê.) Nada. Onde se esconderia? Talvez debaixo da cama.
(Levantando o rodapé:) Oh, cá está ele! (Dão bordoadas.)

CARLOS, gritando – Ai, ai, não sou eu. não sou ladrão,
ai, ai!

JORGE, dando – Salta para fora, ladrão, salta! (Carlos sai para fora,
gritando:) Não sou ladrão, sou de casa!

JORGE – A ele amigos! (Perseguem Carlos de bordoadas por toda a cena. Por
fim, mete-se atrás do armário e atira com ele no chão.
Gritos: Ladrão!)

CENA XIV

Jorge só, depois Florência e Emília.

JORGE – Eles que o sigam; eu já não posso. O diabo esfolou-me
a canela com o armário. (Batendo na porta.) Ó Vizinha, vizinha?

FLORÊNCIA, entrando – Então, vizinho?

JORGE – Estava escondido debaixo da cama.

EMÍLIA – Não te disse?

JORGE – Demos-lhe uma boa massada de pau e fugiu por aquela porta, mas os
amigos foram-lhe no alcance.

FLORÊNCIA – Muito obrigada, vizinho. Deus lhe pague.

JORGE – Estimo que a vizinha não tivesse maior incômodo.

FLORÊNCIA – Obrigada. Deus lhe pague.

JORGE – Boa noite, vizinha; mande levantar o armário que caiu.

FLORÊNCIA – Sim senhor. Boa noite. (Sai Jorge.)

CENA XV

Florência e Emília

FLORÊNCIA – Pagou-me!

EMÍLIA, chorando – Então minha mãe, não lhe disse
que era o primo Carlos?

FLORÊNCIA – E continua a teimar?

EMÍLIA – Se o vi atrás da cama!

FLORÊNCIA – Ai, peior, era teu padrasto.

EMÍLIA – Se eu o vi!

FLORÊNCIA – Se eu lhe falei!… É boa teima!

CENA XVI

JUCA, entrando – Mamãe, aquela mulher do papá quer lhe falar.

FLORÊNCIA – O que quer essa mulher comigo, o que quer? (Resoluta:)
Diga que entre (Sai Juca.)

EMÍLIA – A mamãe vai afligir-se no estado em que está?

FLORÊNCIA – Bota aqui duas cadeiras. Ela não tem culpa. (Emília
chega uma cadeira. Florência sentando-se;) Vejamos o que quer. Chega
mais esta cadeira para aqui. Bem, vai para dentro.

EMÍLIA – Mas, se…

FLORÊNCIA – Anda; uma menina não deve ouvir a conversa que vamos
ter. Farei tudo para perseguí-lo. (Emília sai.)

CENA XVII

Entra Rosa. Já vem de vestido.

ROSA – Dá licença?

FLORÊNCIA – Pode entrar. Queira ter a bondade de sentar-se. (Senta-se.)

ROSA – Minha senhora, a nossa posição é bem extraordinária…

FLORÊNCIA – E desagradável no ultimo ponto.

ROSA – Ambas casadas com o mesmo homem…

FLORÊNCIA – E ambas com igual direito.

ROSA – Perdoe-me, minha senhora, nossos direitos não são iguais,
sendo eu a primeira mulher…

FLORÊNCIA – Oh, não falo desse direito, não o contesto.
Direito de persegui-lo quero eu dizer.

ROSA – Nisso estou de acordo.

FLORÊNCIA – Fui vilmente atraiçoada…

ROSA – E eu indignamente insultada…

FLORÊNCIA – Atormentei meus filhos…

ROSA – Contribui para a morte de minha mãe…

FLORÊNCIA – Estragou grande parte da minha fortuna.

ROSA – Roubou-me todos os meus bens…

FLORÊNCIA – Oh, mas hei-de vingar-me!

ROSA, levantando-se – Havemos de vingarmo-nos, senhora, e para isso aqui
me acho.

FLORÊNCIA, levantando-se – Explique-se.

ROSA – Ambas fomos traídas pelo mesmo homem, ambas servimos de degrau
à sua ambição. E porventura somos disso culpadas?

FLORÊNCIA – Não.

ROSA – Quando lhe dei eu a minha mão, poderia prever que ele seria
um traidor? E vós, senhora, quando lhe désteis a vossa, que
vos uníeis a um infame?

FLORÊNCIA – Oh, não!

ROSA – E nós, suas desgraçadas vítimas, nos odiaremos
mutuamente, em vez de ligarmo-nos, para de comum acordo perseguimos o traidor?

FLORÊNCIA – Senhora, nem eu, nem vós temos culpa do que se tem
passado. Quisera viver longe de vós; vossa presença aviva meus
desgostos, porém farei um esforço – aceito o vosso oferecimento
– unamo-nos e mostraremos ao monstro o que podem duas fracas mulheres quando
se querem vingar.

ROSA – Eu contava convosco.

FLORÊNCIA – Agradeço a vossa confiança.

ROSA – Sou provinciana, não possuo talvez a polidez da Corte, mas
tenho paixões violentas e resoluções prontas. Aqui trago
uma ordem de prisão contra o pérfido, mas ele se esconde. Os
oficiais de justiça andam em sua procura.

FLORÊNCIA – Aqui esteve há pouco.

ROSA – Quem?

FLORÊNCIA – O traidor.

ROSA – Aqui? Em vossa casa? E não vos assegurastes dele?

FLORÊNCIA – E como?

ROSA – Ah, se eu aqui estivesse…

FLORÊNCIA – Fugiu, mas levou uma maçada de pau.

ROSA – E onde estará ele agora, onde?

AMBRÓSIO, arrebenta uma tábua do armário, põe
a cabeça para fora – Ai, que abafo.

FLORÊNCIA e ROSA, assustadas – É ele!

AMBRÓSIO, com a cabeça de fora – Oh, diabos, cá estão
elas!

FLORÊNCIA – É ele! Como te achas aí?

ROSA – Estava espreitando-nos!

AMBRÓSIO – Qual espreitando! Tenham a bondade de levantar este armário.

FLORÊNCIA – Para quê?

AMBRÓSIO – Quero sair… Já não posso… Abafo, morro!

ROSA – Ah, não podes sair? Melhor.

AMBRÓSIO – Melhor?

ROSA – Sim, melhor, porque estás em nosso poder.

FLORÊNCIA – Sabes que estávamos ajustando o meio de nos vingarmos
de ti, maroto?

ROSA – E tu mesmo te entregaste… Mas como?…

FLORÊNCIA – Agora já te advinho. Bem dizia Emília; foi
Carlos quem levou as bordoadas. Ah, patife. mais essa!.

ROSA – Pagará por tudo junto.

AMBRÓSIO – Mulheres, vejam lá o que fazem!

FLORÊNCIA – Não me metes medo, grandíssimo mariola!

ROSA – Sabes que papel é este? É uma ordem de prisão
contra ti que vai ser executada. Foge agora!

AMBRÓSIO – Minha Rosinha, tira-me daqui!

FLORÊNCIA – O que é lá?

AMBRÓSIO – Florencinha, tem compaixão de mim!

ROSA – Ainda falas, patife?

AMBRÓSIO – Ai, que grito! Ai, ai!!

FLORÊNCIA – Podes gritar. Espera um bocado. (Sai.)

ROSA – A justiça de Deus te castiga.

AMBRÓSIO – Escuta-me, Rosinha, enquanto aquele diabo está lá
dentro: tu és a minha cara mulher; tira-me daqui que eu te prometo…

ROSA – Promessas tuas? Queres que eu acredite nelas? (Entra Florência
trazendo um pau de vassoura.)

AMBRÓSIO – Mas eu juro que desta vez…

ROSA – Juras? E tu tens fé em Deus para jurares?

AMBRÓSIO – Rosinha de minha vida, olha que…

FLORÊNCIA, levanta o pau e dá-lhe na cabeça – Toma maroto!

AMBRÓSIO, escondendo a cabeça – Ai!

ROSA, rindo-se – Ah, ah, ah!

FLORÊNCIA – Ah, pensavas que o caso havia de ficar assim? Anda, bota
a cabeça de fora!

AMBRÓSIO, principia a gritar – Ai! (Etc.)

ROSA, procura pela casa um pau – Não acho também um pau…

FLORÊNCIA – Grita, grita, que eu já chorei muito. Mas agora
hei-de arrebentar-te esta cabeça. Bota essa cara sem vergonha.

ROSA, tira o travesseiro da cama – Isto serve?

FLORÊNCIA – Patife! Homem desalmado!

ROSA – Zombaste, agora pagarás.

AMBRÓSIO, botando a cabeça de fora – Ai, que morro! (Dão-lhe.)

ROSA – Toma lá!

AMBRÓSIO, escondendo a cabeça – Diabos!

ROSA – Chegou a nossa vez.

FLORÊNCIA – Verás como se vingam duas mulheres…

ROSA – Traídas …

FLORÊNCIA – Enganadas…

ROSA – Por um tratante…

FLORÊNCIA – Digno de forca.

ROSA – Anda, bota a cabeça de fora!

FLORÊNCIA – Pensavas que havíamos de chorar sempre?

AMBRÓSIO, bota a cabeça de fora – Já não posso
(Dão-lhe.) Ai, que me matam! (Esconde-se.)

ROSA – É para teu ensino,

FLORÊNCIA, fazendo sinais para Rosa – Está bem, basta, deixá-lo.
Vamos chamar os oficiais de justiça.

ROSA – Nada! Primeiro hei-de lhe arrebentar a cabeça. Bota a cabeça
de fora. Não queres?

FLORÊNCIA, fazendo sinais – Não, minha amiga, por nossas mãos
já nos vingamos. Agora, a justiça.

ROSA – Pois vamos. Um instantinho, meu olho, já voltamos.

FLORÊNCIA – Se quiser, pode sair e passear. Podemos sair, que ele não
foge. (Colocam-se juntas do armário, silenciosas.)

AMBRÓSIO, botando a cabeça de fora – As fúrias já
se foram. Escangalharam-me a cabeça! Se eu pudesse fugir… (Florência
e Rosa dão-lhe.)

FLORÊNCIA – Por que não foges?

ROSA – Pode muito bem.

AMBRÓSIO – Demônios (Esconde-se.)

FLORÊNCIA – Só assim teria vontade de rir. Ah, ah!

ROSA – Há seis anos que não me rio de tão boa vontade!

FLORÊNCIA – Então, maridinho!

ROSA – Vidinha, não queres ver tua mulher?

AMBRÓSIO, dentro – Demônios, fúrias, centopéias!
Diabos! Corujas! Ai, ai! (Gritando sempre.)

CENA XVIII

Os mesmos e Emília

EMÍLIA, entrando – O que é? Riem-se?

FLORÊNCIA – Vem cá, menina, vem ser como se devem ensinar aos
homens.

CENA XIX

Entra Carlos preso por soldados, etc., seguido de Jorge.

JORGE, entrando adiante – Vizinha, o ladrão foi apanhado.

CARLOS, entre os soldados – Tia!

FLORÊNCIA – Carlos!

EMÍLIA – O primo! (Ambrósio bota a cabeça de fora e
espia.)

JORGE – É o ladrão.

FLORÊNCIA – Vizinho, este é o meu sobrinho Carlos.

JORGE – Seu sobrinho? Pois foi quem levou a coça.

CARLOS – Ainda cá sinto…

FLORÊNCIA – Coitado! Foi um engano, vizinho.

JORGE, para os meirinhos – Podem largá-lo.

CARLOS – Obrigado. Priminha! (Indo para ela.)

EMÍLIA – Pobre primo.

FLORÊNCIA, para Jorge – Nós já sabemos como foi o engano,
neste armário; depois lhe explicarei. (Ambrósio esconde-se.)

JORGE, para os soldados – Sinto o trabalho que tiveram… E como não
é mais preciso, podem-se retirar.

ROSA – Queiram ter a bondade de esperar. Senhores oficiais de justiça,
aqui lhes apresento este mandado de prisão, lavrado contra um homem
que se oculta dentro daquele armário.

TODOS – Naquele armário!

MEIRINHO, que tem lido o mandado – O mandado está em forma.

ROSA – Tenham a bondade de levantar o armário. (Os oficiais de justiça
e os quatro homens levantam o armário.)

FLORÊNCIA – Abram (Ambrósio sai muito pálido, depois
de abrirem o armário.)

CARLOS – O senhor meu tio!

EMÍLIA – Meu padrasto!

JORGE – O Sr. Ambrósio.

MEIRINHO – Estais preso.

ROSA – Levai-o.

FLORÊNCIA – Para a cadeia.

AMBRÓSIO – Um momento. Estou preso, vou passar seis meses na cadeia…
Exultai, senhoras. Eu me deveria lembrar antes de me casar com duas mulheres,
que basta só uma para fazer o homem desgraçado. O que diremos
de duas? Reduzem-no ao estado em que me vejo. Mas não sairei daqui
sem ao menos vingar-me em alguém. (Para os meirinhos:) Senhores, aquele
moço fugiu do convento depois de assassinar um frade.

CARLOS – O que é lá isso? (Mestre de Noviços entra pelo
fundo.)

AMBRÓSIO – Senhores, denuncio-vos um criminoso.

MEIRINHO – É verdade que tenho aqui uma ordem contra um noviço…

MESTRE – …Que já de nada vale. (Prevenção.)

TODOS – O Padre-Mestre!

MESTRE, para Carlos – Carlos, o D. Abade julgou mais prudente que lá
não voltásseis. Aqui tens a permissão por ele assinada
para saíres do convento.

CARLOS, abraçando-o – Meu bom Padre-Mestre, este ato reconcilia-me
com os frades.

MESTRE – E vós, senhoras, esperai da justiça dos homens o castigo
deste malvado. (Para Carlos e Emília:) E vós, meus filhos, sede
felizes, que eu pedirei para todos (ao público:) indulgência!

AMBRÓSIO – Oh, mulheres, mulheres! (Execução.)

FIM

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