O Mistério da Estrada de Sintra

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Capítulo IV

Capítulo V

Capítulo VI

Ha quatorze annos, n’uma noite de verão no Passeio Publico, em frente
de duas chavenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade
que em torno de nós cabeceava de somno ao som de um soluçante
_pot-pourri_ dos _Dois Foscaris_, deliberámos reagir sobre nós
mesmos e acordar tudo aquilo a berros, n’um romance tremendo, businado á
baixa das alturas do _Diario de Noticias_.

Para esse fim, sem plano, sem methodo, sem escola, sem documentos, sem estylo,
recolhidos á simples «torre de crystal da Imaginação»,
desfechámos a improvisar este livro, um em Leiria, outro em Lisboa,
cada um de nós com com uma resma de papel, a sua alegria e a sua audacia.

Parece que Lisboa effectivamente despertou, pella sympathia ou pela curiosidade,
pois que tendo lido na larga tiragem do _Diario de Noticias_ o _Mysterio da
Estrada de Cintra_, o comprou ainda n’uma edição em livro; e
hoje manda-nos V. as provas de uma terceira edição, perguntando-nos
o que pensamos da obra escripta n’esses velhos tempos, que recordamos com
saudade…

Havia já então terminado o feliz reinado do senhor D. João
VI. Fallecera o sympathico Garção, Tolentino o jocundo, e o
sempre chorado Quita. Além do Passeio Publico, já n’essa epoca
evacuado como o resto do paiz pelas

tropas de Junot, encarregava-se tambem de fallar ás imaginações
o sr.

Octave Feuillet. O nome de Flaubert não era familiar aos folhetinistas.

Ponson du Terrail trovejava no Sinai dos pequenos jornaes e das bibliothecas
economicas. O sr. Jules Claretie publicava um livro intitulado… (ninguem
hoje se lembra do titulo) do qual diziam commovidamente os criticos:–_Eis
ahi uma obra que ha de ficar!_… Nós, emfim, eramos novos.

O que pensamos hoje do romance que escrevemos ha quatorze annos?…

Pensamos simplesmente–louvores a Deus!–que elle é execravel; e
nenhum de nós, quer como romancista, quer como critico, deseja, nem
ao seu peor inimigo, um livro egual. Porque n’elle ha um pouco de tudo quanto
um romancista lhe não deveria pôr e quasi tudo quanto um critico
lhe deveria tirar.

Poupemol-o–para o não aggravar fazendo-o em tres volumes–á
enumeração de todas as suas deformidades! Corramos um veu discreto
sobre os seus mascarados de diversas alturas, sobre os seus medicos mysteriosos,
sobre os seus louros capitães inglezes, sobre as suas condessas fataes,
sobre os seus tigres, sobre os seus elephantes, sobre os seus hiates em que
se arvoram, como pavilhões do ideal, lenços brancos de cambraia
e renda, sobre os seus sinistros copos d’opio, sobre os seus cadaveres elegantes,
sobre as suas _toilettes_ romanticas, sobre os seus cavallos esporeados por
cavalleiros de capas alvadias desapparecendo envoltos no pó das phantasticas
aventuras pella Porcalhota fóra!…

Todas estas cousas, aliás sympathicas, commoventes por vezes, sempre
sinceras, desgostam todavia velhos escriptores, que ha muito desviaram os
seus olhos das perspectivas enevoadas da sentimentalidade, para estudarem
pacientemente e humildemente as claras realidades da sua rua.

Como permittimos pois que se republique um livro que sendo todo d’imaginação,
scismando e não observado, desmente toda a campanha que temos feito
pella arte de analyse e de certeza objectiva?

Consentimol-o porque entendemos que nenhum trabalhador deve parecer envergonhar-se
do ser trabalho.

Conta-se que Murat, sendo rei de Napoles, mandara pendurar na sala do throno
o seu antigo chicote de postilhão, e muitas vezes, apontando para o

sceptro mostrava depois o açoite, gostando de repetir: _Comecei por ali_.

Esta gloriosa historia confirma o nosso parecer, sem com isto querermos
dizer que ella se applique ás nossa pessoas. Como throno temos ainda
a mesma velha cadeira em que escreviamos ha quinze annos; não temos
docel que nos cubra; e as nossas cabeças, que embranquecem, não
se cingem por emquanto de corôa alguma, nem de louros, nem de Napoles.

Para nossa modesta satisfação basta-nos não ter cessado
de trabalhar um só dia desde aquelle em que datámos este livro
até o instante em que elle nos reapparece inesperadamente na sua terceira
edição, com um petulante arzinho de triumpho que, á fé
de Deus, não lhe vae mal!

Então, como agora, escreviamos honestamente, isto é, o melhor
que podiamos: d’esse amor da perfeição, que é a honradez
dos artistas, veio talvez a sympathia do publico ao livro da nossa mocidade.

Ha mais duas razões, para auctorizar esta reedição.

A primeira é que a publicação d’este livro, fóra
de todos os moldes até o seu tempo consagrados, pode conter, para uma
geração que precisa de a receber, uma util lição
de independencia.

A mocidade que nos succedeu, em vez de ser inventiva, audaz, revolucionaria,
destruidosa d’idolos, parece-nos servil, imitadora, copista curvada de mais
deante dos mestres. Os novos escriptores não avançam um pé
que não pousem na pégada que deixaram outros. Esta pusilanimidade
torna todas as obras tropegas, dá-lhes uma expressão estafada;
e a nós, que partimos, a geração que chega faz-nos o
effeito de sahir velha do berço e de entrar na arte de muletas.

Os documentos das nossas primeiras loucuras de coração queimámol-os
ha muito, os das nossas extravagancias de espirito desejamos que fiquem. Aos
vinte annos é preciso que alguem seja estroina, nem sempre talvez para
que o mundo progrida, mas ao menos para que o mundo se agite, Para ser ponderado,
correcto e immovel ha tempo de sobra na velhice.

Na arte, a indisciplina dos novos, a sua rebelde força de resistencia
ás correntes da tradição, é indispensavel para
a revivescencia da invenção e do poder criativo, e para a originalidade
artistica. Ai das litteraturas em que não ha mocidade! Como os velhos
que atravessaram a vida sem o sobressalto de uma aventura, não haverá
n’ellas que lembrar. Além de que, para os que na edade madura foram
arrancados pelo dever ás facilidades da improvisação
e encontram n’esta região dura das coisas exactas, entristecedora e
mesquinha, onde, em logar do esplendor dos heroismos e da belleza das paixões,
só ha a pequenez dos caracteres e a miseria dos sentimenos, seria dôce
e reconfortante ouvir de longe a longe, nas manhãs de sol, ao voltar
da primavera, zumbir no azul, como nos bons tempos, a doirada abelha da phantasia.

A ultima razão que nos leva a não repudiar este livro, é
que elle é ainda o testemunho da intima confraternidade de dois antigos
homens de lettras, resistindo a vinte annos de provação nos
contactos de uma sociedade que por todos os lados se dissolve. E, se isto
não é um triumpho para o nosso espírito, é para
o nosso coração uma suave alegria.

Lisboa, 14 de dezembro de 1881

De V.

Antigos amigos

Eça de Queiroz

Ramalho Ortigão

+O MYSTERIO DA ESTRADA DE CINTRA+

+EXPOSIÇÃO DO DOUTOR*** +

Capítulo I

Sr. redactor do _Diario de Noticias_

Venho pôr nas suas mãos a narração de um caso
verdadeiramente extraordinario em que intervim como facultativo, pedindo-lhe
que, pelo modo que entender mais adequado, publique na sua folha a substancia,
pelo menos, do que vou expôr.

Os successos a que me refiro são tão graves, cerca-os um tal
mysterio, envolve-os uma tal apparencia de crime que a publicidade do que
se passou por mim torna-se importantissima como chave unica para a desencerração
de um drama que supponho terrivel com quanto não conheça d’elle
senão um só acto e ignore inteiramente quaes foram as scenas
precedentes e quaes tenham de ser as ultimas.

Ha tres dias que eu vinha dos suburbios de Cintra em companhia de F…, um
amigo meu, em cuja casa tinha ido passar algum tempo.

Montavamos dois cavallos que F… tem na sua quinta e que deviam ser reconduzidos
a Cintra por um criado que viera na vespera para Lisboa.

Era ao fim da tarde quando atravessámos a charneca. A mellancolia
do logar e da hora tinha-se-nos communicado, e vinhamos silenciosos, abstrahidos
na paizagem, caminhando a passo.

A cerca de talvez de meia distancia do caminho entre S. Pedro e o Cacem,
n’um ponto a que não sei o nome, porque tenho transitado pouco n’aquella
estrada, sitio deserto como todo o caminho através da charneca, estava
parada uma carruagem.

Era um _coupé_ pintado de escuro, verde e preto, e tirado por uma
parelha côr de castanha.

O cocheiro, sem libré, estava em pé, de costas para nós,
diante dos cavallos.

Dois sujeitos achavam-se curvados ao pé das rodas que ficavam para
a parte da estrada por onde tinhamos de passar, e pareciam occupados em examinar
attentamente o jogo da carruagem.

Um quarto individuo, egualmente de costas para nós, estava perto do
vallado do outro lado do caminho, procurando alguma cousa, talvez uma pedra
para calçar o trem.

É o resultado das sobrodas que tem a estrada, observou o meu amigo.

Provavelmente o eixo partido ou alguma roda desembuxada.

Passavamos a este tempo pelo meio dos tres vultos a que me referi, e F…

tinha tido apenas tempo de concluir a phrase que proferira, quando o cavallo
que eu montava deu repentinamente meia volta rapida, violenta, e caiu de chapa.

O homem que estava junto do vallado, ao qual eu não dava attenção
porque ia voltado a examinar o trem, determinara essa queda, colhendo repentinamente
e com a maxima força as redeas que ficavam para o lado d’elle e impellindo
ao mesmo tempo com um pontapé o flanco do animal para o lado oposto.

O cavallo, que era um poldro de pouca força e mal manejado, escorregou
das pernas e tombou ao dar a volta rapida e precipitada a que o tinham constrangido.

O desconhecido fez levantar o cavallo segurando-lhe as redeas, e, ajudando-me
a erguer, indagava com interesse se eu teria molestado a perna que ficára
debaixo do cavallo.

Este individuo tinha na voz a entoação especial dos homens
bem educados. A mão que me offereceu era delicada. O rosto tinha-o
coberto com uma mascara

de setim preto. Entrelembro-me de que trazia um pequeno fumo no chapeu.

Era um homem agil e extremamente forte, segundo denota o modo como fez cair
o cavallo.

Ergui-me alvoroçadamente e, antes de ter tido ocasião de dizer
uma palavra, vi que, ao tempo da minha queda, se travara lucta entre o meu
companheiro e os outros dois individuos que fingiam examinar o trem e que
tinham a cara coberta como aquelle de que já fallei.

Puro Ponson du Terrail! dirá o sr. redactor. Evidentemente. Parece
que a vida, mesmo no caminho de Cintra, pode às vezes ter o capricho
de ser mais romanesca do que pede a verosimilhança artistica. Mas eu
não faço arte, narro factos unicamente.

F…, vendo o seu cavallo subitamente seguro pellas cambas do freio, tinha
obrigado a largal-o um dos desconhecidos, em cuja cabeça descarregára
uma pancada com o cabo do chicote, o qual o outro mascarado conseguira logo
depois arrancar-lhe da mão.

Nenhum de nós trazia armas. O meu amigo tinha no entanto tirado da
algibeira a chave de uma porta da casa de Cintra, e esporeava o cavallo estirando-se-lhe
no pescoço e procurando alcançar a cabeça d’aquelle que
o tinha seguro.

O mascarado, porém, que continuava a segurar em uma das mãos
o freio do cavallo empinado, apontou com a outra um rewolver á cabeça
do meu amigo e disse-lhe com serenidade:

–Menos furia! menos furia!

O que levára com o chicote na cabeça e ficára por um
momento encostado á portinhola do trem, visivelmente atordoado mas
não ferido, porque o cabo era de baleia e tinha por castão uma
simples guarnição feita com uma trança de clina, havia
já a este tempo levantado do chão e posto na cabeça o
chapeu que lhe caira.

A este tempo o que me derribara o cavallo e me ajudara a levantar tinha-me
deixado ver um par de pequeninas pistolas de coronhas de prata, d’aquellas
a que chamam em França _coups de poing_ e que varam uma porta a trinta
passos de distancia. Depois do que, me offereceu delicadamente o braço,
dizendo-me com afabilidade:

–Parece-me mais commodo acceitar um logar que lhe offereço na carruagem
do que montar outra vez no cavallo ou ter de arrastar a pé d’aqui á
pharmacia da Porcalhota a sua perna magoada.

Não sou dos que se amedrontam mais promptamente com a ameaça
feita com armas. Sei que ha um abysmo entre prometter um tiro e desfechal-o.
Eu movia bem a perna trilhada, o meu amigo estava montado em um cavallo possante;
somos ambos robustos; poderiamos talvez resistir por dez minutos, ou por um
quarto de hora, e durante esse tempo nada mais provavel, em estrada tão
frequentada como a de Cintra n’esta quadra, do que apparecerem passageiros
que nos prestassem auxílio.

Todavia confesso que me sentia attrahido para o imprevisto de uma tão
extranha aventura.

Nenhum caso anterior, nenhuma circumstancia da nossa vida nos permittia suspeitar
que alguem podesse ter interesse em exercer comnosco pressão ou violencia
alguma.

Sem eu bem poder a esse tempo explicar porquê, não me parecia
tambem que as pessoas que nos rodeavam projectassem um roubo, menos ainda
um homicidio. Não tendo tido tempo de observar miudamente a cada um,
e tendo-lhes ouvido apenas algumas palavras fugitivas, figuravam-se-me pessoas
de bom mundo. Agora que de espírito socegado penso no acontecido, vejo
que a minha conjectura se baseava em varias circumstancias dispersas, nas
quaes, ainda que de relance, eu attentara, mesmo sem proposito de analyse.
Lembro-me, por exemplo, que era de setim alvadio o forro do

chapeu do que levara a pancada na cabeça. O que apontára o rewolver
a F…

trazia calçada uma luva côr de chumbo apertada com dois botões.
O que me ajudára a levantar tinha os pés finos e botas envernizadas;
as calças, de casimira côr de avelã, eram muito justas
e de presilhas. Tinha esporas.

Não obstante a disposição em que me achava de ceder
da lucta e de entrar no trem, perguntei em allemão ao meu amigo se
elle era de opinião que resistissemos ou que nos rendessemos.

–Rendam-se, rendam-se para nos poupar algum tempo que nos é precioso!
disse gravemente um dos desconhecidos. Por quem são, acompanhem-nos!
Um dia saberão por que motivo lhes sahimos ao caminho mascarados. Damos-lhes
a nossa palavra que ámanhã estarão nas suas casas, em
Lisboa. Os cavallos ficarão em Cintra d’aqui a duas horas.

Depois de uma breve reluctancia, que eu contribuí para desvanecer,
o meu companheiro apeou-se e entrou no _coupé_. Eu segui-o.

Cederam-nos os melhores logares. O homem que se achava em frente da parelha
segurou os nossos cavallos; o que fizera cair o poldro subiu para a almofada
e pegou nas guias; ou outros dois entraram comnosco e sentaram-se nos logares
fronteiros aos nossos. Fecharam-se em seguida os stores de madeira dos postigos
e correu-se uma cortina de seda verde que cobria por dentro os vidros fronteiros
da carruagem.

No momento de partirmos, o que ia guiar bateu na vidraça e pediu um
charuto. Passaram-lhe para fóra uma charuteira de palha de Java. Pella
fresta por onde recebeu os charutos lançou para dentro do trem a mascara
que tinha no rosto, e partimos a galope.

Quando entrei para a carruagem pareceu-me avistar ao longe, vindo de Lisboa,
um omnibus, talvez uma sege. Se me não illudi, a pessoa ou pessoas
que vinham no trem a que me refiro terão visto os nossos cavallos,
um dos quaes é russo e o outro castanho, e poderão talvez dar
noticia da carruagem em que íamos e da pessoa que nos servia de cocheiro.
O coupé era, como já disse, verde e preto. Os stores, de mogno
polido, tinham no alto quatro fendas estreitas e oblongas, dispostas em cruz.

Falta-me tempo para escrever o que ainda me resta por contar a horas de expedir
ainda hoje esta carta pela posta interna.

Continuarei. Direi então, se o não suspeitou já, o motivo
porque lhe

occulto o meu nome e o nome do meu amigo.

Capítulo II

Julho, 24 de 1870–Acabo de ver a carta que lhe dirigi publicada integralmente
por v. no logar destinado ao folhetim do seu periodico. Em vista da collocação
dada ao meu escripto procurarei nas cartas que houver de lhe dirigir não
ultrapassar os limites demarcados a esta secção do jornal.

Por esquecimento não datei a carta antecedente, ficando assim duvidoso
qual o dia em que fomos surprehendidos na estrada de Cintra. Foi quarta feira,
20 do corrente mez de julho.

Passo de prompto a contar-lhe o que se passou no trem, especificando minuciosamente
todos os pormenores e tentando reconstruir o dialogo que travámos,
tanto quanto me seja possivel com as mesmas palavras que n’elle se empregaram.

A carruagem partiu na direcção de Cintra. Presumo porém
que deu na estrada algumas voltas, muito largas e bem dadas porque se não
presentiram pela intercadencia da velocidade no passo dos cavallos. Levaram-me
a suppol-o, em primeiro logar as differenças de declive no nivel do
terreno, com quanto estivessemos rodando sempre em uma estrada macadamisada
e lisa; em segundo logar umas leves alterações na quantidade
de luz que havia dentro do _coupé_ coada pela cortina de seda verde,
o que me indicava que o trem passava por encontradas exposições
com rellação ao sol que se escondia no horisonte.

Havia evidentemente o designio de nos desorientar no rumo definitivo que
tomassemos.

É certo que, dois minutos depois de termos principiado a andar, me
seria absolutamente impossivel decidir se ia de Lisboa para Cintra ou se vinha
de Cintra para Lisboa.

Na carruagem havia uma claridade bassa e tenue, que todavia nos permittia
distinguir os objectos. Pude ver as horas no meu relogio. Eram sete e um quarto.

O desconhecido que ia defronte de mim examinou tambem as horas. O relogio
que elle não introduziu bem na algibeira do collete e que um momento
depois lhe caiu, ficando por algum tempo patente e pendido da corrente, era
um relogio singular que se não confunde facilmente e que não
deixará de ser reconhecido, depois da noticia que dou d’elle, pellas
pessoas que alguma vez o houvessem visto. A caixa do lado opposto ao mostrador
era de esmalte preto, liso, tendo no centro, por baixo de um capacete, um
escudo de armas de ouro encobrado e polido.

Havia poucos momentos que caminhavamos quando o individuo sentado defronte
de F…, o mesmo que na estrada nos instara mais vivamente para que o acompanhassemos,
nos disse:

–Eu julgo inutil asseverar-lhes que devem tranquilisar-se inteiramente em
quanto á segurança das suas pessoas…

–Está visto que sim, respondeu o meu amigo; nós estamos perfeitamente
socegados a todos os respeitos. Espero que nos façam a justiça
de acreditar que nos não têem coactos pelo medo. Nenhum de nós
é tão creança que se apavore com o aspecto das suas mascaras
negras ou das suas armas de fogo. Os senhores acabam de ter a bondade de nos
certificar de que não querem fazer-nos mal: nós devemos pela
nossa parte annunciar-lhes que desde o momento em que a sua companhia principiasse
a tornar-se-nos desagradavel, nada nos seria mais facil do que arrancar-lhes
as mascaras, arrombar os stores, convidal-os perante o primeiro trem que passasse
por nós a que nos entregassem as suas pistolas, e relaxal-os em seguida
aos

cuidados policiaes do regedor da primeira parochia que atravessassemos.

Parece-me portanto justo que principiemos por prestar o devido culto aos
sentimentos da amabilidade, pura e simples, que nos tem aqui reunidos.

D’outro modo ficariamos todos grotescos: os senhores terriveis e nós
assustados.

Com quanto estas cousas fossem ditas por F… com um ar de bondade risonha,
o nosso interlocutor parecia irritar-se progressivamente ao ouvil-o. Movia
convulsivamente uma perna, firmando o cotovello n’um joelho, pousando a barba
nos dedos, fitando de perto o meu amigo. Depois, reclinando-se para traz e
como se mudasse de resolução:

–No fim de contas, a verdade é que tem razão e talvez eu fizesse
e dissesse o mesmo no seu logar.

E, tendo meditado um momento, continuou:

–Que diriam porém os senhores se eu lhes provasse que esta mascara
em que querem ver apenas um symptoma burlesco é em vez d’isso a confirmação
da seriedade do caso que nos trouxe aqui?… Queiram imaginar por um momento
um d’esses romances como ha muitos: Uma senhora casada, por exemplo, cujo
marido viaja ha um anno. Esta senhora, conhecida na sociedade de Lisboa, está
gravida. Que deliberação ha de tomar?

Houve um silencio.

Eu aproveitei a pequena pausa que se seguiu ao enunciado um tanto rude d’aquelle
problema e respondi:

–Enviar ao marido uma escriptura de separação em regra. Depois,
se é rica, ir com o amante para a America ou para a Suissa; se é
porbre, comprar uma machina de costura e trabalhar para fóra n’uma
agua furtada. É o destino para as pobres e para as ricas. De resto,
em toda a parte se morre depressa n’essas condições, n’um _cottage_
á beira do lago Genebra ou n’um quarto de oito tostões ao mez
na rua dos Vinagres. Morre-se egualmente, de tisica ou de tedio, no esfalfamento
do trabalho ou no enjôo do idyllio.

–E o filho?

–O filho, desde que está fóra da familia e fóra da
lei, é um desgraçado cujo infortunio provém em grande
parte da sociedade que ainda não soube definir a responsabilidade do
pae clandestino. Se os paes fazem como a legislação, e mandam
buscar gente á estrada de Cintra para perguntar o que se ha de fazer,
o melhor para o filho é deital-o á roda.

–O doutor discorre muito bem como philosopho distincto. Como puro medico,
esquece-lhe talvez que na conjunctura de que se trata, antes de deitar o filho
á roda ha uma pequena formalidade a cumprir, que é deital-o
ao mundo.

–Isso é com os especialistas. Creio que não é n’essa
qualidade que estou aqui.

–Engana-se. É precisamente como medico, é n’essa qualidade
que aqui está e é por esse titulo que viemos busca-lo de surpresa
á estrada de Cintra e o levamos a occultas a prestar auxílio
a uma pessoa que precisa d’elle.

–Mas eu não faço clinica.

–É o mesmo. Não exerce essa profissão; tanto melhor
para o nosso caso: não prejudica os seus doentes abandonando-os por
algumas horas para nos seguir n’esta aventura. Mas é formado em Paris
e publicou mesmo uma these

de cirurgia que despertou a attenção e mereceu o elogio da faculdade.

Queira fazer de conta que vae assistir a um parto.

O meu amigo F… poz-se a rir e observou:

–Mas eu que não tenho curso medico nem these alguma de que me accuse
na minha vida, não quererão dizer-me o que vou fazer?

–Quer saber o motivo porque se encontra aqui?… Eu lh’o digo.

N’este momento porém a carruagem parou repentinamente e os nossos

companheiros sobresaltados ergueram-se.

Capítulo III

Percebi que saltava da almofada o nosso cocheiro. Ouvi abrir successivamente
as duas lanternas e raspar um phosphoro na roda. Senti depois estalir a mola
que comprime a portinha que se fecha depois de accender as velas, e rangerem
nos anneis dos cachimbos os pés das lanternas como se as estivessem
endireitando.

Não comprehendí logo a razão porque nos tivessemos detido
para similhante fim, quando não tinha caído a noite e íamos
por bom caminho.

Isto porém explica-se por um requinte de precaução.
A pessoa que nos servia de cocheiro não quereria parar em logar onde
houvesse gente. Se tivessemos de atravessar uma povoação, as
luzes que principiassem a accender-se e que nós veriamos atravez da
cortina ou das fendas dos stores, poderiam dar-nos alguma idéa do sitio
em que nos achassemos. Por esta fórma esse meio de investigação
desapparecia. Ao passarmos entre predios ou muros mais altos, a projecção
da luz forte das lanternas sobre as paredes e a reflexão d’essa claridade
para dentro do trem impossibilitava-nos de distinguir se atravessavamos uma
aldeia ou uma rua illuminada.

Logo que a carruagem começou a rodar depois de accezas as lanternas,
aquelle dos nossos companheiros que promettera explicar a F… a razão
porque elle nos acompanhava, prosseguiu:

–O amante da senhora a quem me refiro, imagine que sou eu. Sabem-no unicamente
n’este mundo tres amigos meus, amigos intimos, companheiros de infancia, camaradas
de estudo, tendo vivido sempre juntos, estando cada um constantemente prompto
a prestar aos outros os derradeiros sacrificios que

póde impôr a amizade. Entre os nossos companheiros não havia
um medico.

Era mister obtel-o e era ao mesmo tempo indispensavel que não passasse
a outrem, quem quer que fosse, o meu segredo, em que estão envoltos
o amor de um homem e a honra de uma senhora. O meu filho nascerá provavelmente
esta noite ou ámanhã pela manhã; não devendo saber
ninguem quem é sua mãe, não devendo sequer por algum
indicio vir a suspeitar um dia quem ella seja, é preciso que o doutor
ignore quem são as pessoas com quem falla, e qual é a casa em
que vae entrar. Eis o motivo por que nós temos no rosto uma mascara;
eis o motivo porque os senhores nos hão de permittir que continuemos
a ter cerrada esta carruagem, e que lhes vendemos os olhos antes de os apearmos
defronte do predio a que vão subir. Agora comprehende, continuou elle
dirigindo-se a F…, a razão por que nos acompanha. Era-nos impossivel
evitar que o senhor viesse hoje de Cintra com o seu amigo, era-nos impossivel
adiar esta visita, e era-nos impossivel tambem deixal-o no ponto da estrada
em que tomámos o doutor. O senhor acharia facilmente meio de nos seguir
e de descobrir quem somos.

–A lembrança, notei eu, é engenhosa mas não lisongeira
para a minha discrição.

–A confiança na discrição alheia é uma traição
ao segredo que nos não pertence.

F… achava-se inteiramente d’accordo com esta maneira de ver, e disse-o
elogiando o espírito da aventura romanesca dos mascarados.

As palavras de F… accentuadas com sinceridade e com affecto, pareceu-me
que perturbaram algum tanto o desconhecido. Figurou-se-me que esperava discutir
mais tempo para conseguir persuadir-nos e que o desnorteava e surprehendia
desagradavelmente esse córte imprevisto. Elle, que tinha a replica
prompta e a palavra facil, não achou que retorquir á confiança
com que o tratavam, e guardou, desde esse momento até que chegámos,
um silencio que devia pezar ás suas tendencias expansivas e discursadoras.

É verdade que pouco depois d’este dialogo o trem deixou a estrada
de macadam em que até ahi rodara e entrou n’um caminho vicinal ou n’um
atalho. O solo era pedregoso e esburacado; os solavancos da carruagem, que
seguia sempre a galope governada por mão de mestre, e o estrepito dos
stores embatendo nos caixilhos mal permittiriam conversar.

Tornámos por fim a entrar n’uma estrada lisa. A carruagem parou ainda
uma segunda vez, o cocheiro apeou rapidamente, dizendo:

–Lá vou!

Voltou pouco depois, e eu ouvi alguem que dizia:

–Vão com raparigas para Lisboa.

O trem prosseguiu.

Seria uma barreira da cidade? Inventaria o que nos guiava um pretexto plausível
para que os guardas nos não abrissem a portinhola? Entender-se-hia
com os meus companheiros a phrase que eu ouvira?

Não posso dizel-o com certeza.

A carruagem entrou logo depois n’um pavimento lageado e d’ahi a dois ou tres
minutos parou. O cocheiro bateu no vidro, e disse:

–Chegámos.

O mascardo que não tornara a pronunciar uma palavra desde o momento
que acima indiquei, tirou um lenço da algibeira e disse-nos com alguma
commoção:

–Tenham paciencia! perdôem-m’o… Assim é preciso!

F… approximou o rosto, e elle vendou-lhe os olhos. Eu fui egualmente vendado
pelo que estava em frente de mim.

Apeámo-nos em seguida e entrámos n’um corredor conduzidos pela
mão dos nossos companheiros. Era um corredor estreito segundo pude
deduzir do modo por que nos encontrámos e démos passagem a alguem
que sahia. Quem quer que era disse:

–Levo o trem?

A voz do que nos guiara respondeu:

–Leva.

Demorámo-nos um momento. A porta por onde haviamos entrado foi fechada
á chave, e o que nos servira de cocheiro passou para diante dizendo:

–Vamos!

Démos alguns passos, subimos dois degraus de pedra, tomámos
á direita e entrámos na escada. Era de madeira, ingreme e velha,
coberta com um tapete estreito. Os degraus estavam desgastados pelos pés,
eram ondeados na superficie e esbatidos e arredondados nas saliencias primitivamente
angulosas. Ao longo da parede, do meu lado, corria uma corda, que servia de
corrimão; era de seda e denotava ao tacto pouco uso. Respirava-se um
ar

humido e impregnado das exhalações interiores dos predios deshabitados.

Subimos oito ou dez degraus, tomámos á esquerda n’um patamar,
subimos ainda outros degraus e parámos n’um primeiro andar.

Ninguem tinha proferido uma palavra, e havia o que quer que fosse de lugubre
n’este silencio que nos envolvia como uma nuvem de tristeza.

Ouvi então a nossa carruagem que se affastava, e senti uma suppressão,
uma especie de sobresalto pueril.

Em seguida rangeu uma fechadura e transpozemos o limiar de uma porta, que
foi outra vez fechada á chave depois de havermos entrado.

–Podem tirar os lenços, disse-me um dos nossos companheiros.

Descobri os olhos. Era noite.

Um dos mascarados raspou um phosphoro, accendeu cinco velas n’uma serpentina
de bronze, pegou na serpentina, approximou-se de um movel que estava coberto
com uma manta de viagem, e levantou a manta.

Não pude conter a commoção que senti, e soltei um grito
de horror.

O que eu tinha diante de mim era o cadaver de um homem.

Capítulo IV

Escrevo-lhe hoje fatigado, e nervoso. Todo este obscuro negocio em que me
acho envolvido, o vago perigo que me cerca, a mesma tensão de espírito
em que estou para comprehender a secreta verdade d’esta aventura, os habitos
da minha vida repousada subitamente exaltados,–tudo isto me dá um
estado de irritação morbida que me aniquilla.

Logo que vi o cadaver perguntei violentamente:

–Que quer isto dizer, meus senhores?

Um dos mascarados, o mais alto, respondeu:

–Não ha tempo para explicações. Perdôem ter sido
enganados! Pelo amor de Deus, doutor, veja esse homem. Quem tem? Está
morto? Está adormecido com algum narcotico?

Dizia estas palavras com uma voz tão instante, tão dolorosamente
interrogativa que eu, dominado pelo imprevisto d’aquella situação,
approximei-me do cadaver, e examinei-o.

Estava deitado n’uma _chaise-longue_, com a cabeça pousada n’uma almofada,
as pernas ligeiramente cruzadas, um dos braços curvado descançando
no peito, o outro pendente e a mão inerte assente sobre o chão.
Não tinha golpe, contusão, ferimento, ou extravasamento de sangue;
não tinha signaes de congestão, nem vestigios de estrangulação.
A expressão da physionomia não denotava soffrimento, contracção
ou dôr. Os olhos cerrados frouxamente, eram como n’um somno leve. Estava
frio e livido.

Não quero aqui fazer a historia do que encontrei no cadaver. Seria
embaraçar esta narração concisa com explicações
scientificas. Mesmo sem exames detidos, e sem os elementos de apreciação
que só podem fornecer a analyse ou a autopsia, pareceu-me que aquelle
homem estava sob a influencia já mortal de um narcotico, que não
era tempo de dominar.

–Que bebeu elle? perguntei, com uma curiosidade exclusivamente medica.

Não pensava então em crime nem na mysteriosa aventura que ali
me prendia; queria só ter uma historia progressiva dos factos que tinham
determinado a narcotisação.

Um dos mascarados mostrou-me um copo que estava ao pé da _chaise-longue_
sobre uma cadeira de estofo.

–Não sei, disse elle, talvez aquillo.

O que havia no copo era evidentemente opio.

–Este homem está morto, disse eu.

–Morto! repetiu um d’elles, tremendo.

Ergui as palpebras do cadaver, os olhos tinham uma dilatação
fixa, horrivel.

Eu fitei-os então um por um e disse-lhes serenamente:

–Ignoro o motivo porque vim aqui; como medico d’um doente sou inutil; como
testemunha posso ser perigoso.

Um dos mascarados veiu para mim e com a voz insinuante, e grave:

–Escute, crê em sua consciencia que esse homem esteja morto?

–De certo.

–E qual pensa que fosse a causa da morte?

–O opio; mas creio que devem sabel-o melhor do que eu os que andam mascarados
surprehendendo gente pela estrada de Cintra.

Eu estava irritado, queria provocar algum desenlace definitivo que cortasse
os embaraços da minha situação.

–Perdão, disse um, e ha que tempo suppõe que esse homem esteja
morto?

Não respondi, puz o chapeu na cabeça e comecei a calçar
as luvas. F…

junto da janella batia o pé impaciente. Houve um silencio.

Aquelle quarto pesado de estofos, o cadaver estendido com reflexos lividos
na face, os vultos mascarados, o socego lugubre do logar, as luzes claras,
tudo dava áquelle momento um aspecto profundamente sinistro.

–Meus senhores, disse então lentamente um dos mascarados, o mais
alto, o que tinha guiado a carruagem–comprehendem perfeitamente, que se nós
tivessemos morto este homem sabiamos bem que um medico era inutil, e uma testemunha
importuna! Desconfiavamos, é claro, que estava sob a acção
de um narcotico, mas queriamos adquirir a certeza da morte. Por isso os trouxemos.
A respeito do crime estamos tão ignorantes como os senhores. Se não
entregamos este caso á policia, se cercámos de mysterio e de
violencia a sua visita a esta casa, se lhes vendámos os olhos, é
porque receavamos que as indagações que se podessem fazer, conduzissem
a descobrir, como criminoso ou como cumplice, alguem que nós temos
em nossa honra salvar; se lhes damos estas explicações…

–Essas explicações são absurdas! gritou F. Aqui ha
um crime; este homem está morto, os senhores, mascarados; esta casa
parece solitaria, nós achamo-nos aqui violentados, e todas estas circumstancias
teem um mysterio tão revoltante, uma feição tão
criminosa, que não queremos nem pelo mais leve acto, nem pela mais
involuntaria assistencia, ser parte n’este negocio. Não temos aqui
nada que fazer; queiram abrir aquella porta.

Com a violencia dos seus gestos, um dos mascarados riu.

–Ah! os senhores escarnecem! gritou F…

E arremessando-se violentamente contra a janella, ia fazer saltar os fechos.
Mas dois dos mascarados arrojaram-se poderosamente sobre elle, curvaram-n’o,
arrastaram-n’o até uma poltrona, e deixaram-n’o cair, offegante, tremulo
de desespero.

Eu tinha ficado sentado e impassivel.

–Meus senhores, observei, notem que emquanto o meu amigo protesta pela colera,
eu protesto pelo tedio.

E accendi um charuto.

–Mas com os diabos! tomam-nos por assassinos! gritou um violentamente.

Não se crê na honra, na palavra de um homem! Se vocês
não tiram a mascara, tiro-a eu! É necessario que nos vejam!
Não quero, nem escondido por um pedaço de cartão, passar
por assassino!… Senhores! dou-lhes a minha palavra que ignoro quem matou
este homem!

E fez um gesto furioso. N’este movimento, a mascara desapertou-se,

descahindo. Elle voltou-se rapidamente, levando as mãos abertas ao rosto.

Foi um movimento instinctivo, irreflectido, de desesperação.
Os outros cercaram-n’o, olhando rapidamente para F…, que tinha ficado impassivel.

Um dos mascarados, que não tinha ainda falado, o que na carruagem
viera defronte de mim, a todo o momento observava o meu amigo com receio,
com suspeita. Houve um longo silencio. Os mascarados, a um canto, fallavam
baixo. Eu no emtanto examinava a sala.

Era pequena, forrada de seda em pregas, com um tapete molle, espesso, bom
para correr com os pés nús. O estofo dos moveis era de seda
vermelha com uma barra verde, unica e transversal, como têem na antiga
heraldica os brasões dos bastardos. As cortinas das janellas pendiam
em pregas amplas e suaves. Havia vasos de jaspe, e um aroma tepido e penetrante,
onde se sentia a verbena e o perfume de _marechala_.

O homem que estava morto era moço, de perfil sympathico e fino, de
bigode louro. Tinha o casaco e collete despidos, e o largo peitilho da camisa
reluzia com botões de perolas; a calça era estreita, bem talhada,
de uma côr clara. Tinha apenas calçado um sapato de verniz; as
meias eram de seda em grandes quadrados brancos e cinzentos.

Pella physionomia, pela construcção, pelo corte e côr
do cabello, aquelle homem parecia inglez.

Ao fundo da sala via-se um reposteiro largo, pesado, cuidadosamente corrido.
Parecia-me ser uma alcova. Notei admirado que apesar do extremo luxo, d’um
aroma que andava no ar e uma sensação tépida que dão
todos os logares onde ordinariamente se está, se falla e se vive, aquelle
quarto não parecia habitado; não havia um livro, um casaco sobre
uma cadeira, umas luvas cahidas, alguma d’estas mil pequenas coisas confusas,
que demonstram a vida e os seus incidentes triviaes.

F…, tinha-se approximado de mim.

–Conheceste aquelle a quem caiu a mascara? perguntei.

–Não. Conheceste?

–Tambem não. Ha um que ainda não fallou, que está sempre
olhando para ti.

Receia que o conheças, é teu amigo talvez, não o percas
de vista.

Um dos mascarados approximou-se, perguntando:

–Quanto tempo póde ficar o corpo assim n’esta _chaise-longue_?

Eu não respondi. O que me interrogou fez um movimento colerico, mas
conteve-se. N’este momento o mascarado mais alto, que tinha saido, entrara,
dizendo para os outros:

–Prompto!…

Houve uma pausa; ouvia-se o bater da pendula e os passos de F…, que passeiava
agitado, com o sobrolho duro, torcendo o bigode.

–Meus senhores, continuou voltando-se para nós o mascarado–damos-lhe
a

nossa palavra de honra que somos completamente estranhos a este successo.

Sobre isto não damos explicações. Desde este momento
os senhores estão retidos aqui. Imaginem que somos assassinos, moedeiros
falsos ou ladrões, tudo o que quizerem. Imaginem que estão aqui
pela violencia, pela corrupção, pela astucia, ou pela força
da lei… como entenderem! O facto é que ficam até amanhã.
O seu quarto–disse-me–é n’aquella alcova, e o seu–apontou para F.–lá
dentro. Eu fico comsigo, doutor, n’este sofá. Um dos meus amigos será
lá dentro o criado de quarto do seu amigo. Ámanhã despedimo-nos
amigavelmente e podem dar parte á policia ou escrever para os jornaes.

Calou-se. Estas palavras tinham sido ditas com tranquillidade. Não
respondemos.

Os mascarados, em quem se percebia um certo embaraço, uma evidente
falta

de serenidade, conversavam baixo, a um canto do quarto, junto da alcova.

Eu passeava. N’uma das voltas que dava pelo quarto, vi casualmente, perto
d’uma poltrona, uma coisa branca similhante a um lenço. Passei defronte
da poltrona, deixei voluntariamente cair o meu lenço, e no movimento
que fiz para o apanhar, lancei despercebidamente mão do objecto caido.
Era effectivamente um lenço. Guardei-o, apalpei-o no bolso com grande
delicadeza de tacto; era fino, com rendas, um lenço de mulher. Parecia
ter bordadas uma firma e uma corôa.

N’este momento deram nove horas. Um dos mascarados exclamou, dirigindo-se
a F…

–Vou mostrar-lhe o seu quarto. Desculpe-me, mas é necessario vendar-lhe
os olhos.

F. tomou altivamente o lenço das mãos do mascarado, cobriu
elle mesmo os olhos, e sairam.

Fiquei só com o mascarado alto, que tinha a voz sympathica e attrahente.

Perguntou-me se queria jantar. Comquanto lhe respondesse negativamente,

elle abriu uma mesa, trouxe um cabaz em que havia algumas comidas frias.

Bebi apenas um copo d’agua. Elle comeu.

Lentamente, gradualmente, começámos a conversar quasi em amizade.
Eu sou naturalmente expansivo, o silencio pesava-me. Elle era instruido, tinha
viajado e tinha lido.

De repente, pouco depois da uma hora da noite, sentimos na escada um andar
leve e cauteloso, e logo alguem tocar na porta do quarto onde estavamos. O

mascarado tinha ao entrar tirado a chave e havia-a guardado no bolso.

Erguemo-nos sobresaltados. O cadaver achava-se coberto. O mascarado apagou
as luzes.

Eu estava aterrado. O silencio era profundo; ouvia-se apenas o ruido das
chaves que a pessoa que estava fóra ás escuras procurava introduzir
na fechadura.

Nós, immoveis, não respiravamos.

Finalmente a porta abriu-se, alguem entrou, fechou-a, accendeu um phosphoro,
olhou. Então vendo-nos, deu um grito e caiu no chão, immovel,
com os braços estendidos.

Ámanhã, mais socegado e claro de recordações,
direi o que se seguiu.

* * * * *

P.S.–Uma circumstancia que póde esclarecer sobre a rua e o sitio
da casa: De noite senti passarem duas pessoas, uma tocando guitarra, outra
cantando o fado. Devia ser meia noite. O que cantava dizia esta quadra:

Escrevi uma carta a Cupido A mandar-lhe perguntar Se um coração
offendido…

Não me lembra o resto. Se as pessoas que passaram, tocando e cantando,
lerem esta carta, prestarão um notavel esclarecimento dizendo em que
rua passavam, e defronte de que casa, quando cantaram aquellas rymas

populares.

Capítulo V

Hoje, mais socegado e sereno, posso contar-lhe com precisão e realidade,
reconstruindo-o do modo mais nitido, nos dialogos e nos olhares, o que se
seguiu á entrada imprevista d’aquella pessoa no quarto onde estava
o morto.

O homem tinha ficado estendido no chão, sem sentidos: molhámos-lhe
a testa, demos-lhe a respirar vinagre de _toilette_. Voltou a si, e, ainda
tremulo e pallido, o seu primeiro movimento instinctivo foi correr para a
janella!

O mascarado, porém, tinha-o envolvido fortemente com os braços,
e

arremessou-o com violencia para cima de uma cadeira, ao fundo do quarto.

Tirou do seio um punhal, e disse-lhe com voz fria e firme:

–Se faz um gesto, se dá um grito, se tem um movimento, varo- lhe
o coração!

–Vá, vá, disse eu, breve! responda… Que quer? Que veio fazer
aqui?

Elle não respondia, e com a cabeça tomada entre as mãos,
repetia machinalmente:

–Está perdido tudo! Está tudo perdido!

–Falle, disse-lhe o mascarado, tomando-lhe rudemente o braço, que
veiu fazer aqui? Que é isto? como soube?…

A sua agitação era extrema: luziam-lhe os olhos entre o setim
negro da mascara.

–Que veiu fazer aqui? repetiu agarrando-o pelos hombros e sacudindo-o como
um vime.

–Escute… disse o homem convulsivamente. Vinha saber… disseram-me…

Não sei. Parece que já cá estava a policia… queria…
saber a verdade, indagar quem o tinha assassinado… vinha tomar informações…

–Sabe tudo! disse o mascarado, aterrado, deixando pender os braços.

Eu estava surprehendido; aquelle homem conhecia o crime, sabia que havia
ali um cadaver! Só elle o sabia, porque deviam ser de certo absolutamente
ignorados aquelles successos lugubres. Por consequencia quem sabia onde estava
o cadaver, quem tinha uma chave da casa, quem vinha alta noite ao logar do
assassinato, quem tinha desmaiado vendo-se surprehendido, estava positivamente
envolvido no crime…

–Quem lhe deu a chave? perguntou o mascarado.

O homem calou-se.

–Quem lhe fallou n’isto?

Calou-se.

–Que vinha fazer, de noite, ás escondidas, a esta casa?

Calou-se.

–Mas como sabia d’este absoluto segredo, de que apenas temos conhecimento
nós?…

E voltando-se para mim, para me advertir com um gesto imperceptivel do expediente
que ia tomar, accrescentou:

— … nós e o senhor comissário.

O desconhecido calou-se. O mascarado tomou-lhe o paletot e examinou-lhe os
bolsos. Encontrou um pequeno martello e um masso de pregos.

–Para que era isto?

–Trazia naturalmente isso, queria concertar não sei quê, em
casa… um caixote…

O mascarado tomou a luz, approximou-se do morto, e por um movimento rapido,
tirando a manta de viagem, descobriu o corpo: a luz caiu sobre a livida face
do cadaver.

–Conhece este homem?

O desconhecido estremeceu levemente e pousou sobre o morto um longo olhar,
demorado e attento.

Eu em seguida cravei os meus olhos, com uma insistencia implacavel nos olhos
d’elle, dominei-o, dísse-lhe baixo, apertando-lhe a mão:

–Porque o matou?

–Eu? gritou elle. Está doido!

Era uma resposta clara, franca, natural, innocente.

–Mas porque veiu aqui? observou o mascarado, como soube do crime? Como tinha
a chave? Para que era este martello? Quem é o senhor? Ou dá
explicações claras, ou d’aqui a uma hora está no segredo,
e d’aqui a um mez nas galés. Chame os outros, disse elle para mim.

–Um momento, meus senhores, confesso tudo, digo tudo! gritou o desconhecido.

Esperámos; mas retraindo a voz, e com uma intonação
demorada, como quem dicta:

–A verdade, prosseguiu, é esta: encontrei hoje de tarde um homem
desconhecido, que me deu uma chave e me disse: sei que é Fulano, que
é destemido, vá a tal rua, n.º tantos…

Eu tive um movimento avido, curioso, interrogador. Ia emfim saber onde estava!

Mas o mascarado com um movimento impetuoso pôz-lhe a mão aberta
sobre a bocca, comprimindo-lhe as faces, e com uma voz surda e terrível:

–Se diz onde estamos, mato-o.

O homem fitou-nos: comprehendeu evidentemente que eu tambem estava ali, sem
saber onde, por um mysterio, que os motivos da nossa presença eram

tambem suspeitos, e que por consequencia não eramos empregados da policia.

Esteve um momento calado e accrescentou:

–Meus senhores, esse homem fui eu que o matei, que querem mais? Que fazem
aqui?

–Está preso, gritou o mascarado. Vá chamar os outros, doutor.
É o assassino.

–Esperem, esperem, gritou elle, não comprehendo! Quem são
os senhores? Suppuz que eram da policia… São talvez… disfarçam
para me

surprehender! Eu não conheço aquelle homem, nunca o vi. Deixem-me
sair…

Que desgraça!

–Este miseravel ha de fallar, elle tem o segredo! bradava o mascarado.

Eu tinha-me sentado ao pé do homem. Queria tentar a doçura,
a astucia.

Elle tinha serenado, fallava com intelligencia e com facilidade. Disse-me
que se chamava A. M. C., que era estudante de medicina e natural de Vizeu.

O mascarado escutava-nos, silencioso e attento. Eu fallando baixo com o
homem, tinha-lhe pousado a mão sobre o joelho. Elle pedia-me _que o
salvasse_, chamava-me seu _amigo_. Parecia-me um rapaz exaltado, dominado
pela imaginação. Era facil surprehender a verdade dos seus actos.
Com um modo intimo, confidencial, fiz-lhe perguntas apparentemente sinceras
e simples, mas cheias de traição e de analyse. Elle, com uma
boa fé inexperiente, a todo o momento se descobria, se denunciava.

–Ora, disse-lhe eu, uma cousa me admira em tudo isto.

–Qual?

–É que não tivesse deixado signaes o arsenico…

–Foi opio, interrompeu elle, com uma simplicidade infantil.

Ergui-me de salto. Aquelle homem, se não era o assassino, conhecia
profundamente todos os segredos do crime.

–Sabe tudo, disse eu ao mascarado.

–Foi elle, confirmou o mascarado convencido.

Eu tomei-o então de parte, e com uma franqueza simples:

–A comedia acabou, meu amigo, tire a sua mascara, apertemo-nos a mão,
dêmos parte á policia. A pessoa que o meu amigo receava descobrir,
não tem decerto que vêr n’este negócio.

–De certo que não. Este homem é o assassino.

E voltando-se para elle com um olhar terrivel, que flammejava debaixo da
mascara:

–E porque o matou?

–Matei-o… respondeu o homem.

–Matou-o, disse o mascarado com uma lentidão de voz que me aterrou,
para lhe roubar 2:300 libras em _bank-notes_, que aquelle homem tinha no bolso,
dentro de uma bilheteira em que estavam monogramadas duas lettras de prata,
que eram as iniciais do seu nome.

–Eu!… para o roubar! Que infamia! Mente! Eu não conheço
esse homem, nunca o vi, não o matei!

–Que malditas contradicções! gritou o mascarado exaltado.

A.M.C. objectou lentamente:

–O senhor que está mascarado… este homem não era seu amigo,
o unico amigo que elle conhecia em Lisboa?

–Como sabe? gritou repentinamente o mascarado, tomando-lhe o braço.

Falle,diga.

–Por motivos que devo occultar, continuou o homem, sabia que este sujeito,
que é extrangeiro, que não tem relações em Lisboa,
que chegou ha poucas semanas, vinha a esta casa…

–É verdade, atalhou o mascarado.

–Que se encontrava aqui com alguem…

–É verdade, disse o mascarado.

Eu, pasmado, olhava para ambos, sentia a lucidez das idéas perturbada,
via apparecer uma nova causa imprevista, temerosa e inexplicavel.

–Além d’isso, continuou o homem desconhecido, ha de saber tambem
que um grande segredo occupava a vida d’este infeliz…

–É verdade, é verdade, dizia o mascarado absorto.

–Pois bem, hontem uma pessoa, que casualmente não podia sair de casa,
pediu-me que viesse ver se o encontrava…

Nós esperavamos, petrificados, o fim daquellas confissões.

–Encontrei-o morto ao chegar aqui. Na mão tinha este papel.

E tirou do bolso meia folha de papel de carta, dobrada.

–Leia, disse elle ao mascarado.

Este approximou o papel da luz, deu um grito, caiu sobre uma cadeira com
os braços pendentes, os olhos cerrados.

Ergui o papel, li:

_I declare that I have killed myself with opium._

(Declaro que me matei com opio).

Fiquei petrificado.

O mascarado dizia com a voz absorta como n’um sonho:

–Não é possivel. Mas é a lettra dele, é! Ah!
que mysterio, que mysterio!

Vinha a amanhecer.

Sinto-me fatigado de escrever. Quero aclarar as minhas recordações.
Até

ámanhã.

Capítulo VI

Peço-lhe agora toda a sua attenção para o que tenho
de contar-lhe.

A madrugada vinha. Sentiam-se já os ruidos da povoação
que desperta. A rua

não era macadamizada, porque eu sentia o rodar dos carros sobre a calçada.

Tambem não era uma rua larga, porque o echo das carroças era
profundo, cheio e proximo. Ouvia pregões. Não sentia carruagens.

O mascarado tinha ficado n’uma prostração extrema, sentado,
immovel, com a cabeça apoiada nas mãos.

O homem que tinha dito chamar-se A. M. C. estava encostado no sofá,
com os olhos cerrados, como adormecido.

Eu abri as portas da janella: era dia. Os transparentes e as persianas

estavam corridos. Os vidros eram foscos como os dos globos dos candieiros.

Entrava uma luz lugubre, esverdeada.

–Meu amigo, disse eu ao mascarado, é dia. Coragem! é necessario
fazer o exame do quarto, movel por movel.

Elle ergueu-se e correu o reposteiro do fundo. Vi uma alcova, com uma cama,
e á cabeceira uma pequena mesa redonda, coberta com um panno de velludo
verde. A cama não estava desmanchada, cobria-a um _edredon_ de setim
encarnado. Tinha um só travesseiro largo, alto e fôfo, como se
não usam em Portugal; sobre a mesa estava um cofre vasio e uma jarra
com flores murchas. Havia um lavatorio, escovas, sabonetes, esponjas, toalhas
dobradas e dois frascos esguios de violetas de Parma. Ao canto da alcova estava
uma bengala grossa com estoque.

Na disposição dos objectos na sala não havia nenhuma
particularidade significativa. O exame d’ella dava na verdade a persuasão
de que se estava n’uma casa raramente habitada, visitada a espaços
apenas, sendo um logar de entrevistas, e não um interior regular.

A casaca e o collete do morto estavam sobre uma cadeira; um dos sapatos via-se
no chão, ao pé da _chaise-longue_; o chapeu achava-se sobre
o tapete, a um canto, como arremessado. O paletot estava caido ao pé
da cama.

Procuraram-se todos os bolsos dos vestidos do morto: não se encontrou
carteira, nem bilhetes, nem papel algum. Na algibeira do collete estava o
relogio, de ouro encobrado, sem firma, e uma pequena bolsa de malha d’ouro,
com dinheiro miudo. Não se lhe encontrou lenço. Não se
pôde averiguar em que tivesse sido trazido de fóra o opio; não
appareceu frasco, garrafa, nem papel ou caixa em que tivesse estado, em liquido
ou em pó; e foi a primeira difficuldade que no meu espírito
se apresentou contra o suicidio.

Perguntei se não havia na casa outros quartos que communicassem com
aquelle aposento e que devessemos visitar.

–Há, disse o mascarado, mas este predio tem duas entradas e duas
escadas.

Ora aquella porta, que communica com os demais quartos, encontrámol-a
fechada pelo outro lado quando chegámos aqui. Logo este homem não
saiu d’esta sala depois que subiu da rua e antes de morrer ou de ser morto.

Como tinha então trazido o opio? Ainda quando o tivesse já
no quarto, o

frasco, ou qualquer envolucro que contivesse o narcotico devia apparecer.

Não era natural que tivesse sido aniquilado. O copo em que ficara
o resto da agua opiada, alli estava. Um indicio mais grave parecia destruir
a hypothese do suicidio: não se encontrou a gravata do morto. Não
era natural que elle a tivesse tirado, que a tivesse destruido ou lançado
fóra. Não era tambem racional que tendo vindo áquelle
quarto, esmeradamente vestido como para uma visita cerimoniosa, não
trouxesse gravata. Alguem pois tinha estado n’aquella casa, ou pouco antes
da morte ou ao tempo d’ella. Era essa pessoa que tinha para qualquer fim tomado
a gravata do morto.

Ora a presença de alguem n’aquelle quarto, coincidindo com a estada
do supposto suicidado ali, tirava a possibilidade ao suicidio e dava presumpções
ao crime.

Aproximámo-nos da janella, examinámos detidamente o papel em
que estava escripta a declaração do suicida.

–A lettra é d’ele, parece-me indubitavel que é–disse o mascarado–mas
na verdade, não sei porque, não lhe acho a feição
usual da sua escripta!

Observou-se o papel escrupulosamente; era meia folha de escrever cartas.

Notei logo no alto da pagina a impressão muito apagada, muito indistincta,
d’uma firma e de uma corôa, que devia ter estado gravada na outra meia
folha. Era portanto papel marcado. Fiz notar esta circumstancia ao mascarado:
elle ficou surprehendido e confuso. No quarto não havia papel, nem
tinteiro, nem pennas. A declaração pois tinha sido escripta
e preparada fóra.

–Eu conheço o papel de que elle usava em casa, disse o mascarado;
não é d’este; não tinha firma, não tinha corôa.
Não podia usar d’outro.

A impressão da marca não era bastante distincta para que se
percebesse qual fosse a firma e qual a corôa. Ficava, porém,
claro que a declaração não tinha sido escripta nem em
casa d’elle, onde não havia d’aquelle papel, nem n’aquelle quarto,
onde não havia papel algum, nem tinteiro, nem um livro, um _buvard_,
um lapis.

Teria sido escripta fóra, na rua, ao acaso? Em casa d’alguem? Não,
porque elle não tinha em Lisboa, nem relações intimas,
nem conhecimento de pessoas cujo papel fosse marcado com corôa.

Teria sido feita n’uma loja de papel? Não, porque o papel que se vende
vulgarmente nas lojas não tem corôas.

Seria a declaração escripta n’alguma meia folha branca tirada
de uma velha carta recebida? Não parecia tambem natural, porque o papel
estava dobrado ao meio e não tinha os vincos que dá o _enveloppe_.

Demais a folha tinha um aroma de pós de _marechala_, o mesmo que se
sentia, suavemente embebido no ar do quarto em que estavamos.

Além d’isso, pondo o papel directamente sobre a claridade da luz,
distingui o vestigio de um dedo polegar, que tinha sido assente sobre o papel
no momento de estar suado ou humido, e tinha embaciado a sua brancura lisa
e assetinada, havendo deixado uma impressão exacta. Ora este dedo parecia
delgado, pequeno, feminil. Este indicio era notavelmente vago, mas o mascarado
tinha a esse tempo encontrado um, profundamente efficaz e seguro.

–Este homem, notou elle, tinha o costume invariavel, mechanico, de escrever,
abreviando-a, a palavra _that_, d’este modo: dois TT separados

por um traço. Esta abreviatura era só d’elle, original, desconhecida.

N’esta declaração, aliás pouco ingleza, a palavra _that_
acha-se escripta por inteiro.

Voltando-se então para M. C.:

–Porque não apresentou logo este papel? perguntou o mascarado. Esta
declaração foi falsificada.

–Falsificada! exclamou o outro, erguendo-se com sobresalto ou com surpreza.

–Falsificada; feita para encobrir o assassinato: tem todos os indicios d’isso.
Mas o grande, o forte, o positivo indicio é este: onde estão
2:300 libras em notas de Inglaterra, que este homem tinha no bolso?

M. C. olhou-o pasmado, como um homem que acorda de um sonho.

–Não apparecem, porque o senhor as roubou. Para as roubar matou este
homem. Para encobrir o crime falsificou este bilhete.

–Senhor, observou gravemente A.M.C., falla-me em 2:300 libras: dou-lhe a
minha palavra de honra que não sei a que se quer referir.

Eu então disse lentamente pondo os olhos com uma perscrutação
demorada sobre as feições do mancebo:

–Esta declaração é falsa, evidentemente, não
percebo o que quer dizer este novo negocio das 2:300 libras, de que só
agora se falla; o que vejo é que este homem foi envenenado: ignoro
se foi o senhor, se foi outro que o matou, o que sei é que evidentemente
o cumplice é uma mulher.

–Não póde ser, doutor!, gritou o mascarado. É uma supposição
absurda.

–Absurda!?… E este aposento, este quarto forrado de seda, fortemente perfumado,
carregado de estofos, illuminado por uma claridade baça coada por vidros
foscos; a escada coberta com um tapete; um corrimão engenhado com uma
corda de seda; ali aos pés d’aquella volteriana aquelle tapete feito
de uma pelle de urso, sobre a qual me parece que estou vendo o vestigio de
um homem prostrado? Não vê em tudo isto a mulher? Não
é esta evidentemente uma casa destinada a entrevistas de amor?…

–Ou a qualquer outro fim.

–E este papel? este papel de marca pequenissima, do que as mulheres compram
em Paris, na casa Maquet, e que se chama papel da Imperatriz?

–Muitos homens o usam!

–Mas não o cobrem como este foi coberto, com um _sachet_ em que havia
o mesmo aroma que se respira no ambiente d’esta casa. Este papel pertence
a uma mulher, que examinou a falsificação que elle encerra,
que assistiu a ella, que se interessava na perfeição com que
a fabricassem, que tinha os dedos humidos, deixando no papel um vestigio tão
claro…

O mascarado calava-se.

–E um ramo de flôres murchas, que está ali dentro? um ramo
que examinei e que é formado por algumas rosas, presas com uma fita
de veludo? A fita está impregnada do perfume da pomada, e descobre-se-lhe
um pequeno vinco, como o de uma unhada profunda, terminando em cada extremidade
por um buraquinho… É o vestigio flagrante que deixou no veludo um
gancho de segurar o cabello!

–Esse ramo podiam ter-lh’o dado, podia tel-o trazido elle mesmo de fóra.

–E este lenço que encontrei hontem debaixo de uma cadeira?

E atirei o lenço para cima da mesa. O mascarado pegou n’elle avidamente,
examinou-o e guardou-o.

M. C. olhava pasmado para mim, e parecia aniquillado pela dura logica das
minhas palavras. O mascarado ficou por alguns momentos silencioso; depois
com voz humilde, quasi supplicante:

–Doutor, doutor, por amor de Deus! esses indicios não provam. Este
lenço, de mulher indubitavelmente, estou convencido que é o
mesmo que o morto trazia no bolso. É verdade: não se lembra
que não lhe encontrámos lenço?

–E não se lembra tambem que não lhe encontrámos gravata?

O mascarado calou-se succumbido.

–No fim de contas eu não sou aqui juiz, nem parte, exclamei eu. Deploro
vivamente esta morte, e fallo n’isto unicamente pelo pezar e pelo horror que
ella me inspira. Que este moço se matasse ou que fosse morto, que caisse
ás mãos de uma mulher ou ás mãos de um homem,
importa-me pouco. O que devo dizer-lhe é que o cadáver não
póde ficar por muito mais tempo insepulto: é preciso que o enterrem
hoje. Mais nada. É dia. O que desejo é sair.

–Tem razão, vae sair já, cortou o mascarado.

E em seguida, tomando M. C. pelo braço, disse-me:

–Um momento! Eu volto já!

E sairam ambos pela porta que communicava com o interior da casa, fechando-a
á chave pelo outro lado.

Fiquei só, passeando agitadamente.

A luz do dia tinha feito surgir no meu espírito uma multidão
de pensamentos inteiramente novos e diversos d’aqueles que me haviam occupado
durante a noite. Ha pensamentos que não vivem senão no silencio
e na sombra, pensamentos que o dia desvanece e apaga; ha outros que só
surgem ao clarão do sol.

Eu sentia no cerebro uma multidão de idéas extremunhadas, que
á luz repentina da madrugada voejavam em turbilhão como um bando
de pombas amedrontadas pelo estridor de um tiro.

Machinalmente entrei na alcova, sentei-me na cama, encostei um braço
no travesseiro.

Então, não sei como, olhei, reparei, vi, com extranha commoção,
sobre a alvura do travesseiro, preso n’um botão de madreperola, um
longo cabello louro, um cabello de mulher.

Não me atrevi logo a tocar-lhe. Puz-me a contemplal-o, avida e longamente.

–Era então certo! ahi estás pois! encontro-te finalmente!…
Pobre cabello! apieda-me a simplicidade innocente com que te ficaste ahi,
patente, descuidado, preguiçoso, languido! Pódes ter maldade,
pódes ter malvadez, mas não tens malicia, não tens astucia.
Tenho-te nas mãos, fito-te com os meus olhos; não foges, não
estremeces, não córas; dás-te, consentes-te, facilitas-te,
meiga, doce, confiadamente… E, no emtanto, tenue, exigua, quasi microscopica,
és uma parte da mulher que eu adivinhava, que eu antevia, que eu procuro!
É ella auctora do crime? é inteiramente innocente? é
apenas cumplice? Não sei, nem tu m’o poderás dizer?

De repente, tendo continuado a considerar o cabello, por um processo de espírito
inexplicavel, pareceu-me reconhecer de subito aquelle fio louro, reconhecel-o
em tudo: na sua côr, na sua _nuance_ especial, no seu aspecto! Lembrou-me,
appareceu-me então a mulher a quem aquelle cabello pertencia! Mas quando
o nome d’ella me veio insensivelmente aos labios,disse commigo:

–Ora! por um cabello! que loucura!

E não pude deixar de rir.

Esta carta vae já demasiadamente longa. Continuarei ámanhã.

Capítulo VII

Contei-lhe hontem como inesperadamente havia encontrado á cabeceira
da cama um cabello louro.

Prolongou-se a minha dolorosa surpreza. Aquelle cabello luminoso, languidamente
enrolado, quasi casto, era o indicio d’um assassinato, d’uma cumplicidade
pelo menos! Esqueci-me em longas conjecturas, olhando, immovel, aquelle cabello
perdido.

A pessoa a quem elle pertencia era loura, clara de certo, pequena, _mignonne_,
porque o fio de cabello era delgadissimo, extraordinariamente puro, e a sua
raiz branca parecia prender-se aos tegumentos craneanos por uma ligação
tenue, delicadamente organisada.

O caracter d’essa pessoa devia ser doce, humilde, dedicado e amante, porque
o cabello não tinha ao contacto aquella aspereza cortante que offerecem
os cabellos pertencentes a pessoas de temperamento violento, altivo e egoista.

Devia ter gostos simples, elegantemente modestos a dona de tal cabello, já
pelo imperceptivel perfume d’elle, já porque não tinha vestigios
de ter sido frisado, ou caprichosamente enrolado, domado em penteados phantasiosos.

Teria sido talvez educada em Inglaterra ou na Allemanha, porque o cabello
denotava na sua extremidade ter sido espontado, habito das mulheres do norte,
completamente extranho ás meridionaes, que abandonam os seus cabelos
á abundante espessura natural.

Isto eram apenas conjecturas, deducções da phantasia, que nem
constituem uma verdade scientifica, nem uma prova judicial.

Esta mulher, que eu reconstruia assim pelo exame d’um cabello, e que me apparecia
doce, simples, distincta, finamente educada, como poderia ter sido o protagonista
cheio de astucia d’aquella occulta tragedia? Mas conhecemos nós porventura
a secreta logica das paixões?

Do que eu estava perfeitamente convencido é que havia uma mulher como
cumplice. Aquelle homem não se tinha suicidado. Não estava decerto
só, no momento em que bebera o opio. O narcotico tinha-lhe sido dado,
sem violencia evidentemente, por ardil ou engano, n’um copo d’agua. A ausencia
do lenço, o desapparecimento da gravata, a collocação
do fato, aquelle cabello louro, uma cova recentemente feita no travesseiro
pela pressão de uma cabeça, tudo indicava a presença
d’alguem n’aquella casa durante a noite da catastrophe. Por consequencia:
impossibilidade de suicidio, verosimilhança de crime.

O lenço achado, o cabello, a disposição da casa, (evidentemente
destinada a entrevistas intimas) aquelle luxo da sala, aquella escada velha,

devastada, coberta com um tapete, a corda de seda que eu tinha sentido…

tudo isto indicava a presença, a cumplicidade de uma mulher. Qual
era a parte d’ella n’aquella aventura? Não sei. Qual era a parte de
A. M. C.? Era o assassino, o cumplice, o occultador do cadaver? Não
sei. M. C. não podia ser extranho a essa mulher. Não era de
certo um cumplice tomado exclusivamente para o crime. Para dar opio n’um copo
de agua não é necessario chamar um assassino assalariado. Tinham
por consequencia um interesse commum. Eram amantes? Eram casados? Eram ladrões?
E accudia-me á memoria aquella inesperada referencia a 2:300 libras
que de repente me tinha apparecido como um novo mysterio. Tudo isto eram conjecturas
fugitivas. Para que hei de repetir eu todas as idéas que se formavam
e que se desmanchavam no meu cerebro, como nuvens n’um ceu varrido pelo vento?

Há de certo na minha hypothese ambiguidades, contradicções
e fraquezas, ha nos indicios que colhi lacunas e incoherencias: muitas cousas
significativas me escaparam por certo, ao passo que muitos pormenores inexpressivos
se me gravaram na memoria, mas eu estava n’um estado morbido de perturbação,
inteiramente desorganisado por aquella aventura, que inesperadamente, com
o seu cortejo de sustos e mysterios, se installara na minha vida.

O senhor redactor, que julga de animo frio, os leitores, que socegadamente,
em sua casa, lêem esta carta, poderão melhor combinar, estabelecer
deducções mais certas, e melhor approximar-se pela inducção
e pela logica da verdade occulta.

Eu achava-me só havia uma hora, quando o mascarado alto entrou, trazendo
o chapeu na cabeça e no braço uma capa de casimira alvadia.

–Vamos, disse elle.

Tomei calado o meu chapéu.

–Uma palavra antes, disse elle. Em primeiro logar dê-me a sua palavra
de honra que ao subir agora á carruagem não terá um gesto,
um grito, um movimento que me denuncie.

Dei a minha palavra.

–Bem! continuou, agora quero dizer-lhe mais: aprecio a dignidade do seu
caracter, a sua delicadeza. Ser-me-hia doloroso que entre nós houvesse
em qualquer tempo motivos de desdem, ou necessidades de vingança. Por
isso affirmo-lhe: sou perfeitamente extranho a este successo. Mais tarde talvez
entregue este caso á policia. Por ora sou eu policia, juiz e talvez
carrasco. Esta casa é um tribunal e um carcere. Vejo que o doutor leva
d’aqui a desconfiança de que uma mulher se envolveu n’este crime: não
o supponha, não podia ser. No emtanto, se alguma vez lá fóra
fallar, a respeito d’este caso, em alguma pessoa determinada e conhecida,
dou-lhe a minha palavra de honra, doutor, que o mato, sem remorso, sem repugnancia,
naturalmente, como corto as unhas. Dê-me agora o seu braço. Ah!
esquecia-me, meu caro, que os seus olhos estão destinados a ter estas
lunetas de cambraia.

E, rindo, apertou-me o lenço nos olhos.

Descemos a escada, entrámos na carruagem, que tinha os stores fechados.

Não pude vêr quem guiava os cavallos porque só dentro
do coupé achei a vista livre. O mascarado sentou-se ao pé de
mim. Via-lhe uma pequena parte da face tocada da luz. A pelle era fina, pallida,
o cabello castanho, levemente annelado.

A carruagem seguiu um caminho, que pelos accidentes da estrada, pela differença
de velocidade indicando acclives e declives, pelas alternativas de macadam
e de calçada, me parecia o mesmo que tinhamos seguido na vespera, no
começo da aventura. Rodámos finalmente na estrada larga.

–Ah, doutor!, dizia o mascarado com desenfado, sabe o que me afflige? É
que o vou deixar na estrada, só, a pé! Não se póde
remediar isto. Mas não se assuste. O Cacem fica a dois passos, e ahi
encontra facilmente conducção para Lisboa.

E offereceu-me charutos.

Depois de algum tempo, em que fomos na maior velocidade, a carruagem parou.

–Chegámos, disse o mascarado. Adeus, doutor.

E abriu por dentro a portinhola.

–Obrigado! accrescentou. Creia que o estimo. Mais tarde saberá quem
sou.

Permitta Deus que ambos tenhamos no applauso das nossas consciencias e no
prazer que dá o cumprimento de um grande dever o derradeiro desenlace
da scena a que assistiu. Restituo-lhe a mais completa liberdade. Adeus!

Apertámo-nos a mão, eu saltei. Elle fechou a portinhola, abriu
os stores e estendendo-me para fóra um pequeno cartão:

–Guarde essa lembrança, disse, é o meu retrato.

Eu, de pé, na estrada, junto das rodas, tomei a photographia avidamente,
olhei. O retrato estava tambem mascarado!

–É um capricho do anno passado, depois de um baile de mascaras! gritou
elle, estendendo a cabeça pela portinhola da carruagem que começava
a rodar a trote.

Via-a affastando-se na estrada. O cocheiro tinha o chapeu derrubado, uma
capa traçada sobre o rosto.

Quer que lhe diga tudo? Olhei para a carruagem com melancolia! Aquelle trem
levava comsigo um segredo inexplicavel. Nunca mais veria aquelle homem. A
aventura desvanecia-se, tinha findado tudo.

O pobre morto, esse lá ficava, estendido no sophá, que lhe
servia de sarcophago!

Achei-me só, na estrada. A manhã estava nevoada, serena, melancolica.
Ao longe distinguia ainda o trem. Um camponez appareceu vindo do lado opposto
áquelle por onde elle desapparecia.

–Onde fica o Cacem?

–De lá venho eu, senhor. Sempre pela estrada, a meio quarto de legua.

A carruagem, pois, tinha-se dirigido para Cintra.

Cheguei ao Cacem fatigado. Mandei um homem a Cintra, á quinta de F.,
saber se tinham chegado os cavallos; pedi para Lisboa uma carruagem, e esperei-a
a uma janella, por dentro dos vidros, olhando tristemente para as arvores
e para os campos. Havia meia hora que estava ali, quando vi passar a toda
a brida um fogoso cavallo. Pude apenas distinguir entre uma nuvem de pó
o vulto quasi indistincto do cavalleiro. Ia para Lisboa embuçado em
uma capa alvadia.

Tomei informações a respeito da carruagem que passara na vespera
comnosco.

Havia contradicções sobre a côr dos cavallos.

Voltou de Cintra o homem que eu ali mandára, dizendo que na quinta
de F.

tinham sido entregues os cavallos por um criado do campo, o qual dissera
que os senhores ao pé do Cacem, tinham encontrado um amigo que os levara
comsigo em uma caleche para Lisboa. D’ahi a momentos chegou a minha carruagem.
Voltei a Lisboa, corri a casa de F. O criado tinha recebido este bilhete a
lapis: _Não esperem por mim estes dias. Estou bom. A quem me procurar,
que fui para Madrid._

Procurei-o debalde por toda a Lisboa. Comecei a inquietar-me. F. estava evidentemente
retido. Receei por mim. Lembraram-me as ameaças do mascarado, vagas
mas resolutas. Na noite seguinte, ao recolher para casa, notei que era seguido.

Entregar á policia este negocio, tão vago e tão incompleto
como elle é, seria tornar-me o denunciante de uma chimera. Sei que,
em resultado das primeiras noticias que lhe dei, o governador civil de Lisboa
officiou ao administrador de Cintra convidando-o a metter o esforço
da sua policia no descobrimento d’este crime. Foram inuteis estas providencias.
Assim devia ser. O successo que constitue o assumpto d’estas cartas está
por sua natureza fóra da alçada das pesquizas policiaes. Nunca
me dirigi ás authoridades, quiz simplesmente valer-me do publico, escolhendo
para isso as columnas populares do seu periodico. Resolvi homiziar-me, receando
ser victima de uma emboscada.

São obvias, depois d’isto, as rasões por que lhe occulto o
meu nome: assignar estas linhas seria patentear-me; não seria esconder-me,
como quero.

Do meu impenetravel retiro lhe dirijo esta carta. É manhã.
Vejo a luz do sol nascente atravez das minhas jelozias. Oiço os pregões
dos vendedores matinaes, os chocalhos das vaccas, o rodar das carruagens,
o murmurio alegre da povoação que se levanta depois de um somno
despreoccupado e feliz… Invejo aquelles que não tendo a fatalidade
de secretas aventuras passeiam, conversam, moirejam na rua. Eu–pobre de mim!–estou
encarcerado por um mysterio, guardado por um segredo!

P. S. Acabo de receber uma longa carta de F. Esta carta, escripta ha dias,
só hoje me veiu á mão. Sendo-me enviada pelo correio,
e tendo-me eu ausentado da casa em que vivia sem dizer para onde me mudava,
só agora pude haver essa interessante missiva. Ahi tem, senhor redactor,
copiada por mim, a primeira parte d’essa carta, da qual depois de ámanhã
lhe enviarei o resto. Publique-a, se quiser. É mais do que um importante

esclarecimento n’este obscuro successo; é um vestigio luminoso e profundo.

F… é um escriptor publico, e descobrir pelo estylo um homem é
muito mais facil do que reconstruir sobre um cabello a figura de uma mulher.
É gravissima a situação do meu amigo. Eu, afflicto, cuidadoso,
hesitante, perplexo, não sabendo o que faça, não podendo
deliberar pela reflexão, rendo-me á decisão do acaso,
e elimino, juntamente com a letra do autographo, as duas palavras que constituem
o nome que firma essa longa carta. Não posso, não devo, não
me atrevo, não ouso dizer mais. Poupem-me a uma derradeira declaração,
que me repugna. Adivinhem… se poderem.

Adeus!

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