O Homem dos Quarenta Escudos

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Voltaire

Apresentação

Esta obra é fruto do particular interesse de Voltaire pela Economia
Política e pela agricultura. Defendia que o desenvolvimento de um país
dependia da riqueza produzida pelo trabalho produtivo de seus habitantes.
Suas idéias a respeito estão concentradas no diálogo
entre “O homem dos quarenta escudos” e “O Geômetra”.
Aí se discute distribuição de renda, enriquecimento iníquo,
tributação excessiva, desigualdade, exploração,
injustiça. Aborda ainda inúmeros outros assuntos, sempre com
sua peculiar ironia.

Escreveu o texto numa época (1768) em que surgiam inúmeras
teorias propondo novos sistemas para a economia e agricultura. Voltaire que
nutria profunda ojeriza pelos sistemas metafísicos, irritou-se ainda
mais com sistemas formulados para uma área que considerava depender
apenas de experiência e bom senso.

Uma de suas afirmações a respeito é incisiva:

“Desconfie, toda a vida, dos testamentos e dos sistemas; já
fui vítima deles, como o senhor. Se os Sólons e Licurgos modernos
zombaram do senhor, ainda mais zombaram de mim os novos Triptólemos;
e, não fosse uma pequena herança que me reanimou, teria eu morrido
de miséria.”

Sobre a fúria tributária das autoridades, a irreverência
é total:

“Homens de gênio profundo apresentaram-lhe projetos. Imaginara
um lançar impostos sobre a inteligência.

— Todos – dizia ele – se apressarão a pagar, pois
ninguém quer passar por tolo.

— Declaro-o isento do imposto – retrucou-lhe o ministro.”

Mesmo quando enaltece, o faz numa espécie de argumento a contrário,
em que a crítica acaba prevalecendo, é o que se vê na
passagem sobre a importância do livro:

“Muitos bons burgueses, muitas grandes cabeças, que se julgam
boas cabeças, dizem, com ar importante, que os livros não servem
para nada. Mas não sabem, esses vândalos, que não são
governados a não ser por livros? Não sabem que o código
civil, o código militar e os Evangelhos são livros de que dependem
continuamente. Leiam, esclareçam-se; só pela leitura se fortifica
a alma; a conversação a dissipa, o jogo a limita.”

E a ironia continua, sua visão da arrogância humana se destaca
pelo sarcasmo:

“O homem dos quarenta escudos, que já o era no mínimo
dos duzentos, perguntou em que local se achava o seu filho.

— Numa pequena bolsa – lhe disse o amigo, – entre a bexiga
e o intestino reto.

— Santo Deus! – exclamou ele. – A alma imortal de um filho
nascida e alojada entre a urina e algo pior!

— Sim, meu caro vizinho, a alma de um cardeal não teve outro
berço; e com tudo isso ainda se fazem de arrogantes e dão-se
ares.”

Nem poupou os médicos, sem nenhuma sutileza:

“Estava arruinado, perdido, se não fora uma velha tia que um
grande médico despachou para o outro mundo, raciocinando tão
bem em medicina como eu em agricultura.”

O ataque frontal, como sempre, se dá em relação aos
jesuítas pelos quais tinha um profundo desprezo:

“A ceia se prolongou bastante, e no entanto não se discutiu
sobre religião, como se nenhum dos convivas jamais tivesse alguma;
o que quer dizer que nos tornamos polidos, e por isso tanto mais receamos
contristar os outros, à mesa. O que não acontece com o regente
Coger, e o ex-jesuíta Nonnotte, e o ex-jesuíta Patouillet, e
o ex-jesuíta Rotalier, e todos os animais dessa espécie. Esses
sórdidos nos dizem mais tolices numa brochura de duzentas páginas
do que se pode dizer de agradável e instrutivo numa ceia de quatro
horas. E o mais estranho é que eles não se atreveriam a dizer
de cara, a ninguém, o que têm a impudência de imprimir.”

“O Homem dos Quarenta Escudos” é mais uma obra imperdível,
daquele que foi um dos mais geniais pensadores de seu tempo e se tornou eterno.

Nélson Jahr Garcia

I. QUEBRA DO HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS

Folgo em comunicar ao universo que possuo uma terra que me daria uma renda
líquida de quarenta escudos, se não fora a taxa a que está
sujeita.

Apareceram vários éditos de algumas pessoas que, dispondo
de lazeres, governam o Estado do canto da sua lareira. O preâmbulo desses
éditos rezava que os poderes legislativo e executivo nasceram co-proprietários
da minha terra, por direito divino, e que eu lhes devo pelo menos metade do
que como. Ante a enormidade do estômago do legislativo e do executivo,
fiz um grande sinal da cruz. Que seria se esses poderes, que presidem à
ordem essencial das sociedades, tivessem a minha terra inteira? Um é
ainda mais divino que o outro.

Bem sabe o senhor inspetor geral que eu só pagava ao todo doze libras;
que era um fardo bastante pesado para mim, e que eu teria sucumbido se Deus
não me houvera dado o gênio de fazer cestos de vime, que me ajudavam
a suportar a miséria. Como, pois, poderei dar de uma só vez
vinte escudos ao rei?

Os novos ministros diziam, mais, no seu preâmbulo, que só se
devem taxar as terras, visto que tudo vem da terra, até a chuva, e,
por conseguinte, apenas os frutos da terra é que devem imposto.

Um de seus meirinhos veio à minha casa por ocasião da última
guerra; pediu-me, por minha quota parte, três sesteiros de trigo e um
saco de favas, num total de vinte escudos, para sustentar a guerra que faziam
e cuja razão eu jamais soubera, tendo apenas ouvido dizer que, na tal
guerra, nada havia a ganhar para o meu país, e muito a perder. Como
então eu não tivesse nem trigo, nem favas, nem dinheiro, o legislativo
e o executivo me puseram na cadeia; e fizeram a guerra como foi possível.

Ao sair da prisão, não tendo mais que a pele em cima dos ossos,
encontrei um homem rechonchudo e corado, numa carruagem de seis cavalos; tinha
seis lacaios e pagava de ordenado a cada um o dobro da minha renda. Seu mordomo,
tão vermelho quanto ele, recebia dois mil francos, e roubava-lhe, por
ano, vinte mil. Sua amante lhe custava quarenta mil escudos em seis meses;
eu o conhecera outrora, no tempo em que ele tinha menos do que eu: confessou-me,
para me consolar, que tinha quatrocentas mil libras de renda.

— Pagas então duzentas mil libras ao Estado – lhe disse
eu, – para auxiliar a vantajosa guerra que sustentamos; pois eu, que
tenho exatamente as minhas cento e vinte libras, devo pagar a metade delas.

— Eu? Contribuir para as necessidades do Estado! – exclamou
ele. – Estás brincando, meu amigo: herdei de um tio que ganhara
oito milhões em Cádiz e Surata; não possuo uma polegada
de terra; todos os meus haveres consistem em contratos, em título;
nada devo ao Estado: é a ti que compete entregar metade da tua subsistência,
pois és um proprietário rural. Não compreendes que, se
o ministro das finanças exigisse de mim algum auxílio para a
pátria, não passaria de um imbecil incapaz de calcular? Pois
tudo vem da terra; o dinheiro e os títulos não são mais
que símbolos: em vez de arriscar no faraó cem sesteiros de trigo,
cem bois, mil carneiros e duzentos sacos de aveia, jogo rolos de ouro que
representam esses gêneros incômodos. Se, depois de cobrado o imposto
único sobre esses gêneros, ainda me viessem pedir dinheiro, não
vês que seria uma dupla operação, que seria exigir duas
vezes a mesma coisa? Meu tio vendeu em Cádiz uns dois milhões
do vosso trigo e uns dois milhões de tecidos fabricados com a vossa
lã; ganhou mais de cem por cento nesses dois negócios. Bem compreendes
que esse lucro foi auferido de terras já taxadas: o que o meu tio vos
comprava aqui por dez soldos, vendia-o por mais de cinqüenta francos
no México, e, descontadas as despesas, voltou com oito milhões.

Já se vê que seria uma horrível injustiça reclamar-lhe
alguns óbulos sobre os dez soldos que ele vos deu. Se vinte sobrinhos
como eu, cujos tios houvessem ganho, nos bons tempos, oito milhões
cada um, no México, em Buenos Aires, em Lima, em Surata ou Pondichere,
emprestassem cada um ao Estado apenas duzentos mil francos, para as necessidades
urgentes da pátria, isso importaria em quatro milhões: que horror!
Paga, pois, meu amigo, tu que desfrutas em paz de uma renda segura e líquida
de quarenta escudos; serve bem à tua pátria, e vem algumas vezes
jantar com os meus lacaios.

Essas plausíveis considerações muito me fizeram refletir,
mas não me consolaram nada.

CONVERSAÇÃO COM UM GEÔMETRA

Acontece às vezes que nada se pode responder, sem que no entanto
se esteja de acordo. Fica-se vencido mas não convencido. Sente-se no
fundo d’alma um escrúpulo, uma repugnância que nos impede de
acreditar no que nos provaram. Demonstrou-nos um geômetra que, entre
um círculo e uma tangente, podemos fazer passar uma infinidade de linhas
curvas e que não podemos fazer passar uma linha reta. Os nossos olhos,
a nossa razão nos dizem o contrário. O geômetra responde-nos
gravemente que se trata de um infinito de segunda ordem. Caiamo-nos, pois,
e retiramo-nos estupefatos, sem nenhuma idéia nítida, sem nada
compreender e sem nada replicar.

Vamos então consultar a um geômetra de melhor fé, que
nos explica o mistério.

— Imaginamos – disse ele – o que não pode existir
na natureza linhas que têm comprimento mas não têm largura;
é impossível, fisicamente falando, que uma linha real penetre
uma outra. Nenhuma curva, ou nenhuma reta real, pode passar entre duas linhas
reais que se tocam: trata-se de jogos do entendimento, de quimeras ideais;
e a verdadeira geometria é a arte de medir as coisas existentes.

Fiquei muito contente com a confissão desse sábio matemático,
e pus-me a rir, na minha desgraça, ao saber que havia charlatanismo
até na ciência a que chamam de alta ciência.

O meu geômetra era um cidadão filósofo que se dignara
conversar algumas vezes comigo na minha cabana.

— O senhor procurou – disse-lhe eu – esclarecer os basbaques
de Paris quanto ao que mais interessa os homens, a duração da
vida humana. Só pelo senhor ficou sabendo o ministério o que
deve dar aos rendeiros vitalícios, segundo as diferentes idades. Propôs-se
fornecer às casas da cidade a água que lhes falta e salvar-nos
enfim do opróbrio e do ridículo de ouvirmos sempre clamar por
água e de vermos mulheres, encerradas num arco, carregarem dois baldes
d’água, de quinze libras cada um, até um quarto andar. Tenha
a bondade de dizer-me quantos animais de duas mãos e de dois pés
existem em França.

O Geômetra: – Supõe-se que haja cerca de vinte milhões,
e prefiro adotar esse cálculo bastante provável (2), à
espera de que o verifiquem, o que seria fácil e ainda não fizeram
por que nunca se lembram de tudo.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Quantas jeiras calcula o senhor para
o território de França?

O Geômetra: – Cento e trinta milhões, sendo quase metade
em estradas, cidades, vilas, landes, charnecas, pântanos, areias, terras
estéreis, conventos inúteis, parques mais agradáveis
que úteis, terrenos incultos, maus terrenos mal cultivados. Poder-se-ia
reduzir as terras de boa produção a setenta e cinco milhões
de jeiras quadradas; mas ponhamos oitenta milhões: impossível
fazer mais pela pátria.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Quanto julga que cada jeira produza
em média, num ano normal, em trigo, grãos de toda espécie,
Vinhos, madeiras, metais, gado, frutas, lã, leite e azeite, todas as
despesas feitas, sem contar o imposto?

O Geômetra: – Se produzirem, cada uma, vinte e cinco libras,
já é muito; ponhamos, no entanto, trinta libras, para não
desanimar os nossos concidadãos. Há jeiras que produzem valores
contínuos estimados em trezentas libras; outras há que produzem
três libras. A média proporcional entre três e trezentos
é trinta: pois bem vê que três está para trinta
como trinta está para trezentos. É verdade que, se houvesse
muitas jeiras de três libras e pouquíssimas de trezentas libras,
a nossa conta não valeria; mas, ainda uma vez, não quero fazer
chicana.

O Homem dos Quarenta Escudos: – E então, senhor, quanto dão,
fazendo o cálculo em dinheiro, os oitenta milhões de jeiras?

O Geômetra: – O cálculo se faz por si: dão, anualmente,
dois bilhões e quatrocentos milhões de libras, ao câmbio
atual.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Li que Salomão, só em
dinheiro, possuía vinte e cinco bilhões; e certamente não
há dois bilhões e quatrocentos milhões em circulação
na França, que me dizem ser muito maior e mas rica que o país
de Salomão.

O Geômetra: – Aí é que está o mistério:
há agora no reino talvez uns novecentos milhões em circulação,
e esse dinheiro, passando de mão em mão, dá para pagar
todos os gêneros e todos os trabalhos; o mesmo escudo pode passar mil
vezes do bolso do cultivador para o do taberneiro e do funcionário.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Compreendo. Mas o senhor me disse
que somos vinte milhões de habitantes, entre homens e mulheres, crianças
e velhos? quanto toca a cada um?

O Geômetra: – Cento e vinte libras, ou quarenta escudos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – O senhor adivinhou a minha renda:
possuo quatro jeiras que, entre os anos de descanso e os de produção,
me valem cento e vinte libras; é pouco. Como! Se cada um possuísse
uma parte igual, como na idade de ouro, não teria cada um senão
cinco luises de ouro por ano?

O Geômetra: – Não mais, segundo o nosso cálculo,
que eu arredondei um pouco. Tal é a condição humana.
A vida e a fortuna são muito limitadas; em média, só
se vive, em Paris, de vinte e dois a vinte e três anos; e em média,
só se dispõe de cento e vinte libras por ano para gastar; quer
dizer que o seu alimento, o seu vestuário, a sua casa, os seus móveis,
são representados pela soma de cento e vinte libras.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Que é isso? Que lhe fiz eu,
para que assim o senhor me tire a fortuna e a vida? E verdade que só
tenho vinte e três anos de vida, a menos que roube a parte de meus camaradas?

O Geômetra: – Isso é incontestável na boa cidade
de Paris; mas, desses vinte e três anos, cumpre subtrair pelo menos
dez anos da infância; pois a infância não é uma
função da vida, é uma preparação: é
o vestíbulo do edifício, é a árvore que ainda
não deu frutos, é a aurora de um dia. Subtraia aos treze anos
que lhe restam o tempo do sono e do tédio, é pelo menos a metade;
sobram seis anos e meio que o senhor gastará nos aborrecimentos, nas
dores, em alguns prazeres e na esperança.

O Homem dos Quarenta Escudos: – O seu cálculo só concede
três anos de existência suportável

O Geômetra: – A culpa não é minha. Pouco se preocupa
a natureza com os indivíduos. Há outros insetos que só
vivem um dia, mas cuja espécie dura para sempre. A natureza é
como esses grandes príncipes que não levam em conta a perda
de quatrocentos mil homens, contanto que cheguem ao fim de seus augustos desígnios.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Quarenta escudos e três anos
de vida! Que medida imagina o senhor contra essas suas maldições?

O Geômetra: – Quanto à vida, seria preciso tornar mais
puro o ar de Paris, que os homens comessem menos e fizessem mais exercícios,
que as mães amamentassem os filhos, que a gente não fosse tão
mal avisada para temer a inoculação: é o que já
tenho dito; e, quanto à fortuna, é só casar e fazer filhos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Como? Quer dizer que o meio de viver
comodamente é associar minha miséria à de outrem?

O Geômetra: – Cinco ou seis misérias juntas constituem
uma situação bastante tolerável. Arranje uma boa mulher,
dois rapazes e duas meninas apenas, o que dará setecentas e vinte libras
para a sua casa, na hipótese de que haja justiça e cada indivíduo
tenha cento e vinte libras de renda. Os seus filhos, quando pequenos, não
lhe custam quase nada; grandes, o aliviarão; seus auxílios mútuos
lhe cobrem quase todas as despesas, e o senhor viverá muito venturosamente
com toda a filosofia, contanto que esses senhores que governam o Estado não
cometam a barbaria de extorquir a cada um vinte escudos por ano; mas a desgraça
é que não mais estamos na idade de ouro, em que os homens, nascidos
todos iguais, tinham igual parte nos generosos produtos de uma terra não
cultivada. Já é muito que, hoje, cada criatura de duas mãos
e dois pés possua um fundo de cento e vinte libras de renda.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Ah! o senhor nos arruina. Dizia há
pouco que, num país onde há oitenta milhões de jeiras
de terra bastante boa e vinte milhões de habitantes, deve cada qual
gozar de cento e vinte libras de renda, e agora o senhor no-las tira!

O Geômetra: – Eu calculava pelos dados do século de ouro,
quando se deve calcular pelo século de ferro. Há. muitos habitantes
que não têm senão dez escudos de renda, outros que só
tem quatro ou cinco, e mais de seis milhões de homens que não
têm absolutamente nada.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Mas esses morreriam de fome ao cabo
de três dias.

O Geômetra: – Absolutamente; os outros que possuem a sua porção,
os fazem trabalhar e dividem-na com eles; é o que paga o teólogo,
o confeiteiro, o boticário, o procurador, o comediante, o pregador
e o cocheiro. O senhor se julgou digno de lástima por não ter
senão cento e vinte libras para gastar anualmente, reduzidas a cento
e oito libras devido à taxa de doze francos; mas considere os soldados
que dão o sangue pela pátria: a quatro soldos por dia, só
dispõem de setenta e três libras, com as quais vivem alegremente,
agrupando-se em alojamentos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Quer dizer então que um ex-jesuíta
ganha cinco vezes mais que um soldado. No entanto os soldados prestaram mais
serviços ao Estado, à vista do rei, em Fontenoy, em Laufelt,
no cerco de Friburgo, do que jamais o fez o reverendo padre La Valette.

O Geômetra: – Nada mais verdadeiro; e ainda assim, cada jesuíta
tornado livre tem mais que gastar do que custava ao convento: há até
alguns que ganharam muito dinheiro fazendo brochuras contra os parlamentos,
como o reverendo padre Patouillet e o reverendo padre Nonnotte. Cada qual
se industria neste mundo: um dirige uma fábrica de tecidos, outro,
de porcelana; aquele se dedica à ópera; este redige uma gazeta
eclesiástica; este outro uma tragédia burguesa ou um romance
ao gosto inglês; mantém o papeleiro, o vendedor de tinta, o livreiro,
o bufarinheiro, que, não fora ele, estariam pedindo esmola. Afinal,
é a restituição das cento e vinte libras aos que nada
têm que faz florescer o Estado.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Bela maneira de florescer!

O Geômetra: – Não há outra: em todo país,
o rico faz o pobre viver. Eis a única fonte da indústria do
comércio. Quanto mais industriosa a nação, mais ganha
do estrangeiro. Se conseguíssemos do estrangeiro dez milhões
anuais, pelo comércio, dentro em vinte anos haveria duzentos milhões
a mais no Estado: seriam mais dez francos para distribuir lealmente a cada
um; quer dizer que os negociantes fariam ganhar a cada pobre dez francos a
mais, na esperança de obter lucros ainda mais consideráveis.
Mas o comércio tem seus limites, como a fertilidade da terra: a não
ser assim, a progressão iria ao infinito: por outro lado, não
é seguro que a balança comercial nos seja sempre favorável;
há tempos em que perdemos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Ouvi falar muito em população.
Que aconteceria se nos puséssemos a fazer o dobro dos filhos que habitualmente
fazemos, se a nossa pátria fosse povoada ao dobro, se tivéssemos
quarenta milhões de habitantes em vez de vinte?

O Geômetra: – Aconteceria que cada um só teria em média
vinte escudos para gastar, ou seria preciso que a terra rendesse o dobro do
que rende, ou tivesse o dobro de pobres, ou cumpriria ter o dobro de indústria
e ganhar o dobro do estrangeiro, ou enviar metade da nação para
a América, ou que metade da nação comesse a outra.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Contentemo-nos pois com os nossos
vinte milhões de homens e as nossas cento e vinte libras por cabeça,
repartidas como apraza a Deus; mas essa situação é triste,
e bem duro o seu século de ferro.

O Geômetra: – Não há nação nenhuma
que esteja em melhores condições; e outras há que estão
muito pior. Acredita que haja no Norte com que dar o equivalente de cento
e vinte libras a cada habitante? Se possuíssem o equivalente, não
teriam os hunos, godos, vândalos e francos desertado a sua pátria
para estabelecer-se alhures, a ferro e fogo.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Se o deixasse falar, o senhor em breve
me persuadiria de que eu sou muito feliz com os meus cento e vinte francos.

O Geômetra: – Se o senhor pensasse que é feliz, nesse
caso o seria.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Impossível que alguém
imagine ser o que não é, a menos que esteja louco.

O Geômetra: – Já disse que o senhor, para sentir-se mais
a gosto e mais feliz do que é, devia tomar mulher; mas acrescentarei
que esta também deverá ter cento e vinte libras de renda, isto
é, quatro jeiras a dez escudos a jeira. Os antigos romanos não
tinham senão três. Seus filhos, se forem industriosos, poderão
ganhar o mesmo cada um, trabalhando para os outros.

O Homem dos Quarenta Escudos: – De modo que não poderão
eles ter dinheiro sem que outros o percam?

O Geômetra: – É a lei de todas as nações;
só se respira por esse preço.

O Homem dos Quarenta Escudos: E ainda será preciso que minha mulher
e eu entreguemos, cada um, metade da nossa colheita ao poder legislativo e
executivo, e que os novos ministros do Estado nos arrebatem metade do preço
do nosso suor e da subsistência de nossos pobres filhos antes que estes
possam ganhar a vida?! Diga-me a quanto monta o dinheiro de direito divino
que os nossos ministros carregam para os cofres do rei.

O Geômetra: – Paga o senhor vinte escudos por quatro jeiras
que rendem quarenta. O rico que possui quatrocentas jeiras pagará,
por essa nova tarifa, dois mil escudos, e os oitenta milhões de jeiras
renderão, para o rei, anualmente, um bilhão e duzentos milhões
de libras, ou quatrocentos milhões de escudos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Isto me parece impraticável
e impossível.

O Geômetra: – O senhor tem toda a razão, e tal impossibilidade
é uma demonstração geométrica de que há
um vício fundamental de raciocínio nos planos dos novos ministros.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Não está também
patente uma prodigiosa injustiça no fato de me tomarem metade do meu
trigo, do meu cânhamo, da lã de meus carneiros, etc., e não
exigirem nenhuma contribuição daqueles que terão ganho
dez ou vinte ou trinta mil libras de renda com o meu cânhamo, de que
fabricaram o tecido, com a minha lã de que fizeram cobertas, com o
meu trigo, que terão vendido mais caro do que compraram?

O Geômetra:- Tão evidente é a injustiça dessa
administração quanto errôneo o seu cálculo. Cumpre
que a indústria seja favorecida, mas cumpre que a indústria
opulenta socorra o Estado. Essa indústria sem dúvida lhe tirou
uma parte das suas cento e vinte libras e delas se apropriou vendendo-lhe
camisas e roupas vinte vezes mais caro do que lhe custariam se o senhor mesmo
as tivesse feito. O fabricante, que enriqueceu à custa do senhor, deu,
confesso-o, um salário aos respectivos operários, que nada possuíam
de seu; mas reteve para si próprio, anualmente, uma soma que lhe valeu
afinal trinta mil libras de renda: foi, pois, à custa do senhor que
ele adquiriu a sua fortuna; o senhor nunca lhe poderá vender os seus
gêneros tão caro que possa indenizar-se do que ele ganhou nas
suas costas; pois, se tentasse essa alta, ele compraria no estrangeiro a preço
mais conveniente. Uma prova de que isso é verdade é que ele
continua sempre no gozo das suas trinta mil libras de renda, ao passo que
o senhor fica com as suas cento e vinte libras, que, longe de aumentar, seguidamente
diminuem.

É, pois, necessário e eqüitativo que a indústria
refinada do negociante pague mais do que a indústria grosseira do lavrador.
O mesmo se dá com o recebedor dos juros públicos. Sua taxa era
de doze francos antes que os nossos grandes ministros lhe tivessem tomado
vinte escudos. Sobre esses doze francos ficava o publicano com dez soldos.
Se há na sua província quinhentas mil almas, terá ele
ganho duzentos e cinqüenta mil francos anuais. Que gaste cinqüenta,
é claro que ao fim de dez anos possuirá dois milhões.
É muito justo que ele contribua proporcionalmente, sem o que tudo estaria
pervertido e desequilibrado.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Agradeço-lhe por haver taxado
esse financeiro, isto alivia a minha imaginação. Mas, visto
que ele aumentou tão lindamente o seu supérfluo, como poderei
eu fazer para também aumentar minha pequena fortuna!

O Geômetra: – Já lhe disse: casando-se, trabalhando,
procurando tirar de sua terra mais alguns feixes do que ela lhe proporcionava.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Na hipótese de que eu tenha
trabalhado bastante, que toda a nação haja feito o mesmo, que
o legislativo e executivo tenham angariado com isso maior tributo, quanto
a nação terá ganho no fim do ano?

O Geômetra: – Nada, a menos que tenha feito um útil comércio
exterior: mas terá vivido mais comodamente. Cada qual, em proporção,
terá tido mais vestuários, mais camisas, mais móveis
do que antes. Terá havido no Estado uma circulação mais
abundante, os salários terão sido aumentados, com o tempo, mais
ou menos em proporção ao número das medas de trigo, das
mãos de lã, dos couros de bois, cervos e cabras que tenham sido
aproveitados, dos racimos que tenham ido para o lagar. Ter-se-á pago
ao rei mais valores de gêneros e dinheiro, e o rei terá devolvido
valores aos que houver feito trabalhar sob as suas ordens; mas não
haverá um escudo a mais no reino.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Que restará então ao
poder no fim do ano?

O Geômetra: – Nada; é o que acontece a todo poder: não
entesoura; foi alimentado, vestido, alojado, mobiliado; todo o mundo também
o foi, cada qual conforme a sua condição. E, caso entesoure,
arranca à circulação tanto dinheiro quanto acumulou;
fez tantos desgraçados quantas porções de quarenta escudos
meteu no cofre.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Mas esse grande Henrique IV não
passava então de um vilão, de um ladravaz, de um larápio;
pois me contaram que enfurnara na Bastilha mais de cinqüenta milhões
na moeda atual

O Geômetra: – Era um homem tão bom, tão prudente
quão valoroso. Ia fazer uma guerra justa e, acumulando nos seus cofres
vinte e dois milhões na moeda da época, tendo ainda a receber
mais outros vinte que deixava circular, poupava ao povo mais de cem milhões
que lhe custaria se não houvesse tomado essas úteis medidas.
Tornava-se moralmente seguro do sucesso contra um inimigo que não tomara
as mesmas precauções. O cálculo das probabilidades era
prodigiosamente em seu favor. Seus vinte e dois milhões entesourados
provavam que havia então no reino o valor de vinte e dois milhões
de excedente nos bens da terra; assim ninguém era prejudicado.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Bem que o meu velhote me havia dito
que se era relativamente mais rico sob a administração do duque
de Sully que sob a dos novos ministros que lançaram o imposto único
e me tomaram vinte escudos sobre quarenta. Diga-me, há. alguma nação
no mundo que goze desse belo benefício do imposto único?

O Geômetra: – Nenhuma nação opulenta. Os ingleses,
que não riem nunca, puseram-se a rir, quando souberam que pessoas inteligentes
haviam proposto entre nós esse sistema. Os chineses exigem uma taxa
de todos os vassalos negociantes que abordam em Cantão; os holandeses,
quando admitidos no Japão, pagam tributo em Nagasaki, sob o pretexto
de que não são cristãos. Os lapões e samoeses
são na verdade submetidos a um imposto único, em peles de marta;
a república de S. Marinho só paga dízimos para sustentar
o esplendor do Estado.

Há na Europa uma nação, famosa por sua equanimidade
e valor, que não paga nenhuma taxa. É o povo helvético;
mas eis o que aconteceu: esse povo pôs-se no lugar dos duques de Áustria
e de Zeringue; os pequenos cantões são democráticos e
muito pobres, cada habitante paga uma soma bastante módica, para as
necessidades da pequena república. Nos cantões ricos, devem-se
ao Estado os tributos que os arquiduques da Áustria e os senhores latifundiários
exigiam; os cantões protestantes são o dobro mais ricos que
os católicos, pois ali o Estado possui os bens que pertenceriam aos
padres. Os que eram súbditos dos duques da Áustria, dos duques
de Zeringue e dos padres, hoje o são da pátria; pagam à
pátria os mesmos dízimos, os mesmos direitos, os mesmos laudêmios
que pagavam aos antigos senhores; e, como os súditos em geral têm
pouco comércio, o negócio não é sujeito a nenhum
tributo, exceto pequenos direitos de entreposto: o que faz entrar algum dinheiro
no seu país à nossa custa; exemplo tão único no
mundo civilizado como o imposto estabelecido por nossos novos legisladores.

O Homem dos Quarenta Escudos: – De modo que os suíços
não são despojados da metade de seus bens por direito divino,
e o que possui quatro vacas não entrega duas ao Estado?

O Geômetra: – Não, certamente. Num cantão, sobre
treze tonéis de vinho, entrega-se um e bebem-se doze. Num outro cantão,
paga-se a duodécima parte e bebem-se as onze restantes.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Ah! que me façam suíço!
Maldito esse iníquo imposto único, que me reduziu a pedir esmola!
Mas trezentos ou quatrocentos impostos, que até os nomes é impossível
reter e pronunciar, são acaso mais justos e honestos? Já houve
legislador que, ao fundar um Estado, tenha imaginado delegados reais aferidores
de carvão, avaliadores de vinho, inspetores de lenha, examinadores
de porcos, fiscais de manteiga? Sustentar um exército de pândegos
duas vezes mais numeroso que o de Alexandre, comandado por sessenta generais
que requisitam tudo, que todos os dias conseguem assinaladas vitórias,
que fazem prisioneiros e que às vezes os sacrificam no ar ou num tablado,
como faziam os antigos citas, pelo que me disse o cura.

Tal legislação, contra a qual se elevavam tantos clamores
e que fazia derramar tantas lágrimas, acaso valia mais do que essa
que de repente me tira, sem cerimônia, metade da minha subsistência?

O Geômetra: Ilíacos intra muros peccatur et extra.

Est modus in rebus, caveas ne quid nimis.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Aprendi um pouco de história
e geometria, mas não sei latim.

O Geômetra: – Isso significa mais ou menos que mal está
de ambos os lados, que em tudo se deve guardar o meio termo: nada de excessos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Sim, nada de excessos é o que
acontece comigo; mas sucede que não tenho o suficiente.

O Geômetra: – Convenho em que o senhor morrerá de fome,
e eu também, e o Estado também, no caso que a nova administração
dure apenas uns dois anos; mas é de esperar que Deus se compadeça
de nós.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Passa-se a vida a esperar e morre-se.
Adeus, o senhor me esclareceu, mas tenho o coração partido.

O Geômetra; – É muitas vezes o fruto da ciência.

III. AVENTURA COM UM CARMELITA

Depois de agradecer devidamente os esclarecimentos que me prestara o sócio
da Academia de Ciências, retirei-me maravilhado, mas murmurando entre
dentes estas tristes palavras: “Apenas vinte escudos com que viver,
e viver só vinte e dois anos! Meu Deus, quem dera que a nossa vida
fosse ainda mais curta, já que é tão desgraçada!”

Logo me encontrei defronte a uma casa soberba. Já sentia fome; não
tinha nem ao menos a centésima-vigésima parte do que toca, de
direito, a cada indivíduo; mas, quando me disseram que aquele palácio
era o convento dos reverendos carmelitas descalços, enchi-me das maiores
esperanças e disse com os meus botões. “Visto que esses
santos são tão humildes a ponto de andar descalços, hão
de ser bastante caridosos para me darem de comer”.

Bati; apareceu um carmelita:

— Que desejas, meu filho?

— Pão, meu reverendo; os novos éditos me tiraram tudo.

— Meu filho, nós pedimos. esmola, não a damos.

— Como! Então o vosso santo instituto vos ordena não
usar sapatos, e tendes uma casa principesca, e ainda me recusais comida?!

— É verdade que não usamos sapatos nem meias, meu filho;
é uma despesa a menos; mas não sentimos mais frio nos pés
do que nas mãos; e se o nosso santo instituto nos houvesse ordenado
que andássemos de bunda de fora, não sentiríamos frio
no traseiro. Quanto à nossa bela casa, construímo-la com toda
a facilidade, pois temos cem mil libras de renda em casas na mesma rua.

— Ah, ah! Com que então me deixam morrer de fome e têm
cem mil libras de renda?! Quer dizer então que pagam cinqüenta
mil ao novo governo?

— Deus nos livre de pagar um óbulo! Só o produto da
terra cultivada por mãos laboriosas, endurecidas de calos e molhadas
de lágrimas, é que deve tributos ao poder legislativo e executivo.
As esmolas que nos foram dadas habilitaram-nos a construir essas casas de
que auferimos cem mil libras anuais. Mas essas esmolas provêm dos frutos
da terra, que já pagaram tributo, e o tributo não deve ser pago
duas vezes. Tais esmolas santificaram os fiéis que empobreceram enriquecendo-nos;
e nós continuamos a pedir esmola e a pôr em contribuição
o faubourg Saint-Germain, para santificar ainda mais os fiéis.

Dito isto, o carmelita fechou-me a porta no nariz.

Passei pelo quartel dos mosqueteiros; contei a história a um desses
senhores: eles me deram um bom almoço e um escudo. Um deles propôs
incendiarem o convento; mas um mosqueteiro mais sensato demonstrou-lhe que
ainda não era chegado o tempo, e pediu-lhe para esperar uns dois ou
três anos.

IV.

AUDIÊNCIA DO SENHOR INSPETOR GERAL

Fui, com o meu escudo, apresentar um requerimento ao senhor Inspetor Geral,
que dava audiência naquele dia. Sua antecâmara estava cheia de
gente de toda espécie. Havia principalmente faces ainda mais rechonchudas,
barrigas mais empinadas, fisionomias mais altivas que as do meu homem dos
oito milhões. Não ousava aproximar-me: via-os, e eles não
me viam.

Um monge, grande dizimeiro. intentara um processo contra cidadãos
a quem chamava de seus camponeses. Tinha mais rendimentos que a metade de
seus paroquianos; e ainda por cima era senhor feudal. Pretendia que seus vassalos,
tendo convertido com grande dificuldade as charnecas em vinhedos, lhe deviam
a décima parte do vinho que produziam, o que constituía, contando
o preço do trabalho e do material, mais de quarta parte da colheita.
Mas como as dízimas – dizia ele – são de direito
divino, peço o quarto da substância de meus camponeses em nome
de Deus. – Bem vejo – disse o ministro – quanto o senhor
é caridoso.

Disse então um arrendatário de impostos, muito hábil
no seu mister:

— Senhor, essa aldeia nada pode dar a esse monge; pois tendo ele obrigado
os paroquianos a pagar, no ano passado, trinta e dois impostos sobre o vinho,
condenando-os em seguida a pagar o excesso de consumo, acham-se os pobres
completamente arruinados. Fiz com que vendessem os animais e os móveis,
e ainda são meus devedores. Oponho-me às pretensões do
reverendo padre.

— Tem razão de ser seu rival – replicou o ministro. –
Tanto um como o outro amam o próximo, e ambos me edificam.

Um terceiro, monge e senhor, cujos camponeses são inalienáveis,
esperava também uma decisão do conselho que o tornasse possuidor
de todos os bens de um indivíduo de Paris, que tendo, por inadvertência,
permanecido um ano e um dia numa casa sujeita àquela servidão
e encravada nos Estados dele, padre, ali viera a falecer.

O ministro achou o monge tão justo e brando de coração
como os dois primeiros.

Um quarto, que era fiscal do domínio, apresentou um belo memorial,
com que se justificava de haver reduzido vinte famílias à miséria.
Tinham elas herdado de tios ou tias, irmãos, ou primos; fora preciso
pagar os competentes direitos. O senhor generosamente lhes provou que não
tinham avaliado com exatidão a sua herança; que eram muito mais
ricas do que supunham; e, tendo-as, por conseguinte, condenado à multa
do triplo, arruinando-as nas custas, e prendendo os chefes de família,
lhes comprara as melhores propriedades, sem desembolsar coisa alguma.

Disse-lhe então o inspetor Geral (em um tom na verdade um pouco amargo):
“Eugé! fiscal bone et fidelis, quia super pauca fuisti fidelis
rendeiro geral te constituam”. (3)

Mas cochichou a um referendário que se achava a seu lado:

— Essas sanguessugas, sagradas ou profanas, devem ser obrigadas a
vomitar: já é tempo de aliviar o povo, que, se não fora
a nossa assistência e equidade, nunca teria com que viver senão
no outro mundo. (4)

Homens de gênio profundo apresentaram-lhe projetos. Imaginara um lançar
impostos sobre a inteligência.

— Todos – dizia ele – se apressarão a pagar, pois
ninguém quer passar por tolo.

—.Declaro-o isento do imposto – retrucou-lhe o ministro.

Outro propôs estabelecer o imposto único sobre as canções
e o riso, visto que a nação era a mais alegre do mundo e que,
uma canção a consolava de tudo. Mas o ministro observou que
havia tempo que não faziam canções alegres, e mostrou-se
receoso de que, para escapar ao imposto, todo o mundo se tornasse demasiado
sério.

Surgiu um sábio e excelente cidadão que projetava fazer com
que o rei recebesse três vezes mais, pagando o povo três vezes
menos. O ministro aconselhou-lhe que fosse aprender aritmética.

Um quarto provava ao rei, por amizade, que este não podia recolher
senão setenta e cinco milhões, mas que ele lhe ia proporcionar
duzentos e vinte e cinco.

— Isso muito nos beneficiará – disse o ministro –
quando tivermos pago as dividas do Estado.

Chegou afinal um representante do novo autor que faz o poder legislativo
co-proprietário de todas as nossas terras, por direito divino, e que
garantia ao rei um bilhão e duzentos milhões de renda. Reconheci
o homem que me mandara para a cadeia por não haver pago os meus vinte
escudos. Lancei-me aos pés do senhor Inspetor Geral e pedi-lhe justiça;
ele deu uma gargalhada e disse-me que me haviam pregado uma peça. Ordenou
àqueles gracejadores de mau gosto que me dessem cem escudos de indenização,
e dispensou-me da taxa para o resto da vida. – Deus o abençoe,
senhor – lhe disse eu.

V. CARTA AO HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS

Embora seja eu três vezes mais rico que o senhor, isto é, embora
possua trezentas e sessenta libras ou francos de renda, escrevo-lhe no entanto
de igual para igual, sem afetar o orgulho das grandes fortunas.

Li a história do seu desastre e da justiça que lhe concedeu
o Inspetor Geral. Meus cumprimentos. Mas por desgraça acabo de ler
Le Financier Citoyen, apesar da repugnância que me causara o título,
que a muita gente se afigura contraditório. Esse cidadão lhe
tira vinte francos da sua renda e a mim sessenta: apenas concede cem francos
a cada indivíduo, na totalidade dos habitantes. Mas, em compensação,
um homem não menos ilustre eleva as nossas rendas até cento
e cinqüenta libras; vejo que o seu geômetra preferiu o meio termo.
Não é desses magníficos senhores que, com uma penada,
povoam Paris de um milhão de habitantes, e fazem circular pelo reino
um bilhão e meio de metal sonante, depois de tudo o que perdemos nas
últimas guerras.

Como sei que é um grande leitor, emprestar-lhe-ei Le Financier Citoyen.
Mas não se fie nele em tudo: cita o testamento do grande ministro Colbert,
e não sabe que se trata de uma rapsódia ridícula, feita
por um tal Gatien de Courtilz; cita a Dízima do marechal de Vauban,
e não sabe que é de um tal Boisguilbert; cita o testamento do
cardeal de Richelieu, e não sabe que é do abade de Bourzéis.
Supõe haver dito esse cardeal que, quando a carne encarece, paga-se
mais ao soldado. No entanto, a carne subiu muito sob o seu ministério,
e o pagamento do soldado não aumentou; o que prova, independentemente
de cem outras provas, que esse livro, tido por apócrifo ao aparecer,
e depois atribuído ao próprio cardeal, é tanto seu como
os testamentos do cardeal Alberoni e do marechal de Belle-Isle.

Desconfie, toda a vida, dos testamentos e dos sistemas; já fui vítima
deles, como o senhor. Se os Sólons e Licurgos modernos zombaram do
senhor, ainda mais zombaram de mim os novos Triptólemos; e, não
fosse uma pequena herança que me reanimou, teria eu morrido de miséria.

Possuo cento e vinte jeiras na mais bela região da natureza e no
solo mais ingrato. Cada jeira, na minha terra, descontadas as despesas, só
rende um escudo de três libras. Mal vi nos jornais que um famoso agricultor
inventara uma nova semeadeira, e que lavrava as suas terras por tabuleiros
a fim de que, semeando menos, colhesse mais, apressei-me em tomar dinheiro
emprestado, comprei uma semeadeira, lavrei por tabuleiros; perdi o dinheiro
e o trabalho, bem como o ilustre agricultor, que não mais semeia por
tabuleiros.

Quis a minha má sorte que eu lesse o Journal Economique, que se vende
no Boudot, em Paris. Dei com os olhos na experiência de um engenhoso
parisiense que, para se distrair, mandara lavrar quinze vezes o seu jardim,
ali plantando trigo, em vez de tulipas: fez uma colheita abundantíssima.
Arranjei mais dinheiro emprestado. “Basta fazer quinze lavras –
dizia eu comigo – e terei o dobro da colheita desse digno parisiense,
que descobriu princípios de agricultura na ópera e na comédia,
e eis-me enriquecido com as suas lições e o seu exemplo”.

Na minha terra, lavrar quatro vezes que seja, é uma coisa impossível;
o rigor e as súbitas mudanças das estações não
o permitem; por outro lado, a desgraça de semear por tabuleiro, como
o ilustre agricultor de que falei, forçara-me a vender a minha atrelagem.
Mandei lavrar trinta vezes as minhas cento e vinte jeiras por todas as charruas
de quatro léguas em derredor. Três amanhos para cada jeira me
custaram cento e vinte libras: o das minhas cento e vinte jeiras importou
em catorze mil e quatrocentas libras. Minha colheita que monta, num ano normal,
em minha maldita terra, a trezentos sesteiros, subiu, é verdade, a
trezentos e trinta, o que a vinte libras o sesteiro, me rendeu seis mil e
seiscentas libras: perdi sete mil e oitocentas libras.

Estava arruinado, perdido, se não fora uma velha tia que um grande
médico despachou para o outro mundo, raciocinando tão bem em
medicina como eu em agricultura.

Quem dizia que eu ainda havia de ter a fraqueza de me deixar seduzir pelo
Journal de Boudot? Esse homem, afinal de contas, não havia jurado a
minha perdição. Li na referida publicação que
bastava inverter quatro mil francos para conseguir quatro mil libras de renda
em alcachofras. Ora, pois, com certeza Boudot me devolverá em alcachofras
o que me fez perder em trigo. E eis os meus quatro mil francos despendidos
e as minhas alcachofras devoradas pelos ratões. Fui vaiado no meu cantão
como o diabo de Papefiguière.

Escrevi uma fulminante carta de censura a Boudot. Como única resposta,
o bandido divertiu-se à minha custa, no seu Journal. Negou-me impudentemente
que os caraíbas fossem vermelhos. Vi-me obrigado a enviar-lhe o testemunho
de um antigo procurador do rei de Guadalupe, de como Deus fez vermelhos aos
caraibas, como fez pretos aos negros, Mas essa pequena vitória não
me impediu de perder, até o último ceitil, toda a herança
da minha tia, por haver acreditado em demasia nos novos sistemas. Cuidado,
meu caro senhor, cuidado com os charlatães.

VI. NOVAS CONTRARIEDADES OCASIONADAS PELOS NOVOS SISTEMAS

(Trecho extraído dos manuscritos de um velho solitário)

Vejo que, se bons cidadãos se divertiram em governar os Estados e
colocar-se no lugar dos reis, se outros se julgaram Triptólemos e Ceres,
outros houve, mais ambiciosos, que se puseram sem cerimônia no lugar
de Deus e criaram o universo com a pena, como Deus os criou outrora com o
verbo.

Um dos primeiros que se apresentaram à minha adoração
foi um descendente de Tales, chamado Teliamed, que me fez saber que as montanhas
e os homens são produzidos pelas águas do mar. Houve primeiro
belos homens marinhos, que depois se tornaram anfíbios. A sua bela
cauda bipartida se transformou em pernas. Estava eu ainda sob a impressão
das Metamorfoses de Ovídio e de um livro onde se demonstrava que a
raça dos homens era bastarda de uma raça de babuínos:
tanto me importava descender de um peixe como de um macaco.

Com o tempo, vieram-me dúvidas quanto a essa genealogia e até
no tocante à formação das montanhas.

— Como! – disse-me ele. – Não sabe então
que as correntes marítimas que amontoam continuamente areia a dez ou
doze pés de altura quando muito, produziram, no decorrer de longos
séculos, montanhas de vinte mil pés de altura, as quais não
são de areia? Fique sabendo que o mar já. cobriu necessariamente
toda a superfície do globo. A prova está em que se viram âncoras
de navio sobre o monte S. Bernardo, que ali se achavam vários séculos
antes que os homens tivessem navios. Imagine que a terra é um globo
de vidro que foi por muito tempo todo coberto de água.

Quanto mais ele me doutrinava, mais incrédulo me tornava eu.

— Pois então não viu – disse-me ele – o
fálum de Touraine, a trinta e seis léguas do mar? E um acúmulo
de conchas, com as quais se aduba a terra, como com esterco. Ora, se o mar
depositou, na sucessão dos tempos, uma mina inteira de conchas a trinta
e seis léguas do Oceano, por que não se terá estendido
até três mil léguas, durante vários séculos,
sobre o nosso globo de vidro?

— Senhor Teliamed – respondi-lhe eu, – há pessoas
que fazem quinze léguas por dia a pé, mas não podem fazer
cinqüenta. Não creio que o meu jardim seja de vidro e, quanto
ao seu fálum, continuo a duvidar que seja um leito de conchas marinhas.
Bem podia ser que não passasse de um depósito de pequenas pedras
calcárias que tomam facilmente a forma de fragmentos de conchas, como
há pedras que tomaram a configuração de línguas
e que não são línguas; de estrelas, e que não
são astros; de serpentes enroscadas, e que não são serpentes;
de partes naturais do belo sexo, e que no entanto não são despojos
das damas. Vêem-se dendrites, pedras figuradas, que representam árvores
e casas, sem que jamais essas pequenas pedras tenham sido casas e carvalhos.

Se o mar depositou tantos leitos de conchas em Touraine, por que teria negligenciado
a Bretanha, a Normandia, a Picardia, e todas as outras costas? Receio que
esse fálum tão gabado provenha tanto do mar como os homens.
E, mesmo que o mar se expandisse trinta e seis léguas, não quer
dizer que o tenha feito até três mil, ou trezentas mil, e que
todas as montanhas foram produzidas pelas águas. Tanto faz dizer que
o Cáucaso formou o mar como pretender que o mar formou o Cáucaso.

— Mas que me diz, senhor incrédulo, das ostras petrificadas
que foram encontradas no cume dos Alpes?

— Direi, senhor Criador, que não vi mais ostras petrificadas
que âncoras de navio no alto do Monte Cinéreo. Direi o que já
se disse, que se encontraram conchas de ostras (as quais facilmente se petrificam)
a grandes distâncias do mar, como se desenterraram medalhas romanas
a cem léguas de Roma; e prefiro acreditar que peregrinos de St. Jacques
abandonaram algumas conchas a caminho de St. Maurice a imaginar que o mar
formou o monte de S. Bernardo.

Há conchas por toda parte; mas não se poderá afirmar
que são despojos de testáceos e crustáceos dos nossos
lagos, tanto como de pequenos animais marinhos?

— Senhor incrédulo, olhe que o porei a ridículo no mundo
que me proponho criar!

— Senhor criador, faça o que bem lhe parecer; cada qual é
senhor no seu mundo; mas nunca me fará acreditar que este em que estamos
seja de vidro, nem que algumas conchas sejam prova de que o mar produziu os
Alpes e o monte Taurus. Bem sabe que não há nenhuma concha nas
montanhas da América. Com certeza não foi o senhor quem criou
aquele hemisfério, e deve contentar-se em haver formado este velho
mundo: já é bastante.

— Senhor, senhor, se não descobriram conchas nas montanhas
da América, haverão de descobri-las.

— Isto é que é falar como criador, que conhece o seu
segredo e está seguro do que faz. Deixo-lhe, pois, o seu fálum,
desde que o senhor me deixe as minhas montanhas. Aliás, declaro-me
humilde e obediente servo de Vossa Providência.

No tempo em que assim me instruía com Teliamed, um jesuíta
irlandês disfarçado de homem, aliás grande observador,
e que tinha bons microscópios, fez enguias com farinha de trigo mofado.
Não mais se duvidou então que fosse possível fazer homens
com farinha de bom trigo. Logo se criaram partículas orgânicas
que constituíram homens. Por que não? O grande geômetra
Fatio havia ressuscitado mortos em Londres; com a mesma facilidade podia-se
fazer criaturas vivas, em Paris, com partículas orgânicas; mas
havendo infelizmente desaparecido as novas enguias de Needham, os novos homens
também desapareceram e fugiram para as mônadas que encontraram
em meio da matéria sutil, globulosa e estriada.

Não que esses criadores de sistemas não hajam prestado grandes
serviços à física; Deus me livre de menosprezar os seus
trabalhos! Já os compararam a esses alquimistas que, fabricando ouro
(que não se fabrica), descobriram bons remédios ou pelo menos
coisas bastante curiosas. Pode alguém ser um homem de raro mérito
e enganar-se quanto à formação dos animais ou à
estrutura do globo.

Os peixes transformados em homens, as águas transformadas em montanhas,
não me haviam causado tanto mal quanto o senhor Boudot; limitava-me
tranqüilamente a duvidar, quando um lapônio me tomou sob a sua
proteção. Era um profundo filósofo, mas que jamais perdoava
aos que não pensavam como ele. Fez-me, a princípio, ver claramente
o futuro, exaltando minha alma. Fiz tão prodigiosos esforços
de exaltação, que adoeci; mas ele curou-me, untando-me de pixe
da cabeça aos pés. Mal me vi em condições de andar,
propõe-me uma viagem às terras austrais, para ali dissecar cabeças
de gigantes, o que nos faria conhecer claramente a natureza da alma. Como
eu não podia suportar o mar, teve a bondade de levar-me por terra.
Mandou cavar um grande túnel no globo terráqueo: esse túnel
ia dar direito na Patagônia. Partimos; quebrei uma perna à entrada
do túnel; tiveram enorme dificuldade em encaná-la: formou-se
um calo que me aliviou bastante.

Já falei de tudo isso em uma de minhas diatribes, para instruir o
universo atento a essas grandes coisas. Estou bastante velho; gosto algumas
vezes de repetir as minhas histórias, a fim de melhor as inculcar na
cabeça dos meninos, para os quais trabalho há tanto tempo.

VII. CASAMENTO DO HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS

Já bastante instruído, e havendo reunido uma pequena fortuna,
o homem dos quarenta escudos desposou uma linda moça que possuía
cem escudos de renda. Sua esposa logo ficou grávida. Ele foi procurar
o seu geômetra, e perguntou-lhe se ela lhe daria um menino ou uma menina.
Respondeu-lhe o geômetra que as parteiras e as criadas ordinariamente
o sabiam, mas que os físicos, que predizem os eclipses, não
eram tão esclarecidos quanto elas.

Quis saber depois se o seu filho, ou filha, já possuía uma
alma. O geômetra disse-lhe que isso não era da sua competência
e que fosse falar com o teólogo da esquina.

O homem dos quarenta escudos, que já o era no mínimo dos duzentos,
perguntou em que local se achava o seu filho.

— Numa pequena bolsa – lhe disse o amigo, – entre a bexiga
e o intestino reto.

— Santo Deus! – exclamou ele. – A alma imortal de um filho
nascida e alojada entre a urina e algo pior!

— Sim, meu caro vizinho, a alma de um cardeal não teve outro
berço; e com tudo isso ainda se fazem de arrogantes e dão-se
ares.

— Ah, senhor sábio, não me poderia dizer como se formam
os filhos?

— Não, meu amigo; mas, se quiser, dir-lhe-ei o que os filósofos
imaginaram, isto é, como os filhos não se formam.

Em primeiro lugar, o reverendo padre Sánchez, no seu excelente livro
De Matrimônio, é inteiramente da opinião de Hipócrates;
crê, como artigo de fé, que os dois veículos fluidos do
homem e da mulher se lançam e unem-se e que, em tal momento, o filho
é concebido por essa união; e tão persuadido está
desse sistema físico, tornado teológico, que o examina no capítulo
XXI do livro segundo: Utrum virgo Maria semen emiserit in copulatione cum
Spiritu Sancto.

— Ai senhor, já lhe disse que não entendo latim; explique-me
em francês o oráculo do padre Sánchez.

O geômetra lhe traduziu o testo e ambos fremiram de horror.

O recém-casado, achando Sánchez prodigiosamente ridículo,
ficou entretanto muito satisfeito com Hipócrates; e estimava que sua
mulher houvesse preenchido todas as condições impostas por aquele
médico para fazer um filho.

— Infelizmente – disse-lhe o vizinho, – há muitas
mulheres que não expandem nenhum licor, que só recebem, com
aversão as carícias maritais, e no entanto têm filhos.
Só isto decide contra Hipócrates e Sánchez.

De resto, tudo leva a crer que a natureza age sempre nos mesmos casos pelos
mesmos princípios; ora, há muitas espécies de animais
que engendram sem cópula, como os peixes escamados, as ostras, os pulgões.
Tiveram pois os físicos de procurar uma mecânica de gerações
que conviesse a todos os animais. O célebre Harvey, que primeiro demonstrou
a circulação, e que era digno de descobrir o segredo da natureza,
julgou tê-lo achado nas galinhas: estas põem ovos; ele concluiu
que as mulheres também os punham. Os gracejadores de mau gosto disseram
que era por isso que os burgueses, e até alguns cortesãos, chamam
a mulher, ou a amante, de minha franguinha, e quando se diz que as mulheres
são galantes é porque elas desejariam que os galos lhes arrastassem
a asa. Apesar dessas zombaria, Harvey não mudou de opinião,
e ficou estabelecido em toda a Europa que nós provimos de um ovo.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Mas o senhor me disse que a natureza
é sempre semelhante a si mesma, que age sempre pelo mesmo princípio
no mesmo caso: as mulheres, as éguas, as mulas, as enguias, não
põem; o senhor está brincando.

O Geômetra: – Elas não põem para fora, mas põem
para dentro; têm ovários como todas as aves; as éguas,
as enguias também os têm. Um ovo se destaca do ovário;
é chocado na matriz. Veja todos os peixes escamados, as rãs:
lançam ovos, que o macho fecunda. As baleias e os outros animais marinhos
dessa espécie fazem brotar os ovos na matriz. As traças, os
mais vis insetos, são visivelmente formados de um ovo: tudo vem de
um ovo; e o nosso globo é um grande ovo que contém todos os
outros.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Palavra! esse sistema tem todas as
características da verdade; é simples, é uniforme, é
patente em mais de metade dos animais. Estou satisfeito, não quero
outro. Nada me é mais caro do que o. ovos de minha mulher.

O Geômetra: – Afinal, cansaram-se desse sistema: e começaram
a fazer filhos de outra forma. O Homem dos Quarenta Escudo.: – E por
que? Essa forma não é tão natural?

O Geômetra: – É que pretenderam que as nossas mulheres
não têm ovários, mas somente pequenas glândulas.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Com certeza pessoas que tinham outro
sistema preparado quiseram desacreditar os ovos.

O Geômetra: – Pode ser. Dois holandeses deram para examinar,
ao microscópio, o licor seminal do homem e de vários animais,
e julgaram perceber animais já formados que corriam com inconcebível
rapidez. Descobriram-nos até no fluido seminal do galo. Julgou-se então
que os machos faziam tudo e as fêmeas nada; estas só serviam
para carregar o tesouro que o macho lhes confiara.

O Homem dos Quarenta Escudos: – É muito estranho isso. –
Tenho algumas dúvidas sobre todos esses animaizinhos que se agitam
tão prodigiosamente em um licor, para ficarem em seguida imobilizados
nos ovos dos pássaros, e não menos imóveis durante nove
meses (fora alguns solavancos) no ventre da mulher; isso não me parece
conseqüente. Não é essa (pelo que posso julgar) a marcha
da natureza. E como são esses homenzinhos que nadam tão bem
no licor de que me fala?

O Geômetra: – São como vermes. Havia principalmente um
médico chamado Andry que via vermes por toda parte e que queria absolutamente
destruir o sistema de Harvey. Teria, se pudesse, acabado com a circulação
do sangue, porque outro a descobrira. Enfim, dois holandeses e o senhor Andry,
à força de cair no pecado de Onan e examinar coisas no microscópio,
reduziram o homem a lagarta. Somos, no princípio, um verme, como ela;
depois no nosso invólucro, nos tornamos como ela, durante nove meses,
uma verdadeira crisálida, que os campônios chamam favas. Em seguida,
se a lagarta se torna borboleta, nós nos tornamos homens: eis as nossas
metamorfoses.

O Homem dos Quarenta Escudos: – E a coisa parou ai? Não veio
depois nova moda?

O Geômetra: – O pessoal se cansou de ser lagarta. Um filósofo
extremamente divertido descobriu, em uma Vênus Física, que a
atração é que fazia os filhos, e eis como a coisa se
opera. Tombado o germe na matriz, o olho direito atrai o olho esquerdo, que
chega para se unir a ele na qualidade de olho; mas é impedido pelo
nariz, que topa no caminho, e que o obriga a colocar-se à esquerda.
O mesmo acontece com os braços e pernas. E difícil explicar,
em tal hipótese, a situação dos mamilos e das nádegas.
Esse grande filósofo não admite nenhum desígnio do Ser
criador na formação dos animais. Está longe de acreditar
que o coração seja feito para receber o sangue e expeli-lo,
o estômago para digerir, os olhos para ver, o. ouvido para ouvir: isso
lhe parece demasiado vulgar; tudo se faz por atração.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Um louco varrido, está visto.
Espero que ninguém haja adotado uma teoria tão extravagante.

O Geômetra: – Riram muito, até; mas o triste é
que esse insensato se assemelhava aos teólogos, que perseguem o mais
que podem àqueles a quem fazem rir.

Outros filósofos imaginaram outras maneiras, que não fizeram
maior sucesso: não é mais o braço que vai procurar o
braço, não mais a coxa que corre atrás da coxa; são
pequenas moléculas, pequenas partículas de braço e coxa
que se colocam umas sobre as outras. Talvez que um dia, depois de tanto tempo
perdido, a gente seja obrigado a voltar aos ovos.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Estimo muito; mas qual foi o resultado
de todas essas disputas?

O Geômetra: – A dúvida. Se a questão fosse debatida
entre teólogos, haveria excomunhões e derramamento de sangue;
mas, entre físicos, logo se estabelece a paz; cada qual foi deitar
com a respectiva mulher, sem se preocupar absolutamente com os seus ovários
ou as suas trompas de Fallope. As mulheres engravidaram, sem ao menos indagar
como se opera esse mistério. É assim que semeamos trigo e ignoramos
como o trigo germina na terra.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Oh! eu sei; disseram-me há
muito tempo: é por apodrecimento. Mas às vezes me dá
vontade de rir de tudo o que me disseram.

O Geômetra: – É uma excelente disposição.
Aconselho-o a duvidar de tudo, exceto que os três ângulos de um
triângulo são iguais a dois retos, e que os triângulos
que têm igual base e igual altura são iguais entre si, ou outras
proposições semelhantes,, como por exemplo, que dois e dois
são quatro.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Sim, creio que é muito sensato
duvidar; mas sinto-me curioso depois que fiz fortuna e que disponho de lazeres.
Desejaria, quando a minha vontade move o meu braço ou a minha perna,
descobrir a mola pela qual os move. Sinto-me às vezes atônito
de poder levantar e baixar os olhos e não poder mover as orelhas. Eu
penso, e desejaria conhecer um pouco… isto aqui… tocar com o dedo o meu
pensamento. Deve ser muito interessante. Indago se penso por mim mesmo, se
Deus me dá as minhas idéias, se minha alma veio para o meu corpo
no prazo de seis semanas ou de um dia, e como se me alojou no cérebro;
se penso muito quando durmo profundamente, e quando estou em letargia. Rebento
os miolos para saber como um corpo produz outro corpo. As minhas sensações
não me espantam menos: encontro nelas algo de divino, e sobretudo no
prazer. As vezes me esforço por imaginar um novo sentido, e jamais
pude consegui-lo Os geômetras sabem todas essas coisas; tenha a bondade
de instruir-me.

O Geômetra: – Ai de nós, somos. tão ignorantes
quanto o senhor: dirija-se à Sorbona.

VIII. O HOMEM DOS QUARENTA ESCUDOS TORNA-SE PAI E DISCORRE
SOBRE OS MONGES

Quando se viu pai de um menino, o homem dos quarenta escudos começou
a julgar-se de algum peso no Estado; esperava dar ao menos dez súbditos
ao rei, e todos eles úteis. Era o melhor cesteiro do mundo, e sua mulher
uma excelente costureira. Nascera ela nas proximidades de uma grande abadia
de cem mil libras de renda. Seu marido perguntou-me um dia por que motivo
aqueles senhores, que eram tão pouco numerosos, haviam embolsado tantas
porções de quarenta escudos.

— São mais úteis à pátria do que eu?

— Não, meu caro vizinho.

— Concorrem, como eu, para o povoamento do país?

— Não, pelo menos aparentemente.

— Cultivam a terra? Defendem o Estado quando este sofre uma agressão?

— Não, rezam pelo senhor.

— Pois bem! Eu rezarei por eles, e dividamos. Quantos desses úteis
indivíduos, entre homens e mulheres, encerram os conventos do reino?

— Segundo os memoriais dos intendentes de fins do século passado,
havia cerca de noventa mil.

— Por nossa velha conta, a quarenta escudos por cabeça, eles
só deveriam possuir dez milhões e oitocentas mil libras. Quanto
possuem?

— Chega a uns cinqüenta milhões, contando as missas e
coletes dos monges mendicantes, que na verdade gravam consideravelmente o
povo. Um irmão pedinte de um convento de Paris vangloriou-se publicamente
de que a sua sacola dava oitenta mil libras de renda.

— E divididos os cinqüenta milhões pelas noventa mil cabeças
tonsuradas, quanto toca a cada uma?

— Quinhentas e cinqüenta e cinco libras. É uma soma considerável
numa sociedade numerosa, em que as despesas diminuem devido à própria
quantidade dos consumidores; pois custa muito menos a dez pessoas viverem
juntas do que se cada uma tivesse o teto e a mesa em separado.

E os ex-jesuítas, a quem dão hoje quatrocentas libras de pensão,
perderam então nesse negócio?

— Não o creio: pois estão quase todos morando com parentes
que os ajudam; vários dizem missa a dinheiro, o que não faziam
antes; outros se fizeram preceptores, outros são sustentados por devotas,
e cada qual se arranjou à sua maneira; e talvez poucos existam hoje
que, tendo provado do mundo e da liberdade, queiram retomar as antigas cadeias.
A vida monacal, por mais que se diga, não é de todo invejável.
É máxima bastante conhecida que os monges são criaturas
que se unem sem conhecer-se, vivem sem estimar-se, e morrem sem se lamentarem.

— Acha então que se lhes prestaria um grande serviço,
desfradando-os a todos?

— Ganhariam bastante, sem dúvida, e o Estado ainda mais, devolver-se-iam
à pátria cidadãos e cidadãs que sacrificaram temerariamente
a sua liberdade em uma época em que as leis não permitem que
se disponha de um fundo de dez soldos de renda; tirar-se-iam esses cadáveres
dos túmulos: seria uma verdadeira ressurreição. As suas
casas seriam prefeituras, hospitais, escolas, fábricas. A população
aumentaria e todas as artes seriam melhor cultivadas. Poder-se-ia ao menos
limitar o número dessas vítimas voluntárias, fixando
o número dos noviços. A pátria teria mais homens úteis
e menos infelizes. É o sentir de todos os magistrados, é o desejo
unânime do público, desde que os espíritos se esclareceram,
o exemplo da Inglaterra, e de tantos outros Estados, é uma prova evidente
da necessidade de tal reforma. Que seria hoje da Inglaterra se, em vez de
quarenta mil marinheiros tivesse quarenta mil padres? Quanto mais se multiplicam
as artes, mais necessário é o número de súditos
laboriosos. Há sem dúvida pelos claustros muitas inteligências
sepultas, que estão perdidas para o Estado. É preciso, para
que um reino floresça, o mínimo possível de padres e
o máximo possível de artesãos. A ignorância e barbaria
de nossos país, longe de constituir uma regra para nós, não
são mais que um aviso para fazermos o que eles fariam, se estivessem
em nosso lugar, como as nossas luzes.

— Quer dizer que não é por ódio aos monges que
deseja o senhor aboli-los? É por piedade deles? E por amor à
pátria? Sou do seu parecer. Não desejaria que meu filho fosse
padre. E, se sonhasse que iria ter filhos para o claustro, não deitaria
com a minha mulher.

— Qual é, com efeito, o bom pai de família que não
chore ao ver seu filho ou filha perdidos para a sociedade? Chamam a isto salvar-se;
mas um soldado que se salva quando deve combater, é punido. Somos todos
soldados do Estado; estamos a soldo da sociedade, e tornamo-nos desertores
quando a deixamos. Que digo? Os monges são parricidas que aniquilam
uma posteridade inteira. Noventa mil enclausurados, que berram ou fanhoseiam
latim, poderiam dar, cada um, dois súditos ao Estado: o que soma cento
e oitenta mil homens que eles fazem perecer ainda em germe. Ao cabo de cem
anos, a perda é imensa, coisa que se demonstra por si mesma.

— Por que então prevaleceu o monarquismo?

— Porque o governo, desde Constantino, foi, quase por toda parte,
detestável e absurdo; porque o império romano teve mais sacerdotes
que soldados; porque só no Egito havia cem mil; porque eram isentos
de trabalho e impostos; porque os chefes das nações bárbaras
que destruíram o império, tendo-se feito cristãos para
governar cristãos, exerceram a mais horrível tirania; porque
as pessoas se lançavam em multidão nos claustros para escapar
ao furor desses tiranos, e mergulhavam numa escravidão para evitar
uma outra; porque os papas, instituindo tantas ordens diferentes de mandriões
sagrados, constituíram outros tantos súditos nos outros Estados;
porque um camponês prefere ser chamado meu reverendo padre e distribuir
bênçãos a conduzir a charrua; porque não sabe que
a charrua é mais nobre que a batina; porque gosta mais de viver à
custa dos tolos do que por um trabalho honrado; enfim, porque não sabe
que, fazendo-se monge, reserva para si mesmo dias infelizes, tecidos de tédio
e arrependimento.

— Basta, pois, de monges, para felicidade nossa e dos próprios
monges Mas causa-me aflição ouvir ao senhor de minha aldeia,
pai de quatro filhos e três filhas, que não saberá como
os estabelecer se não mandar as filhas para um convento.

— Essa alegação, tantas vezes repetida, é inumana,
antipatriótica e destrutora da sociedade. Todas as vezes que se possa
dizer de uma condição, qualquer que seja: “Se todos se
submetessem a esta condição, estaria perdido o gênero
humano”, está demonstrado que essa condição não
vale nada e que aquele que a abraça prejudica o gênero humano.
Ora, é claro que, se todos os jovens de ambos os sexos se enclausurassem,
o mundo pereceria; já só por isso, a fradaria é inimiga
da natureza humana, independentemente dos terríveis males que algumas
vezes lhe causou.

— Não se poderia dizer o mesmo dos soldados?

— Certamente que não: pois, se cada cidadão se exercita
nas armas, como outrora em todas as Repúblicas, e sobretudo na de Roma,
não deixa o soldado de ser melhor cultivador; o soldado cidadão
casa-se, e combate pela mulher e pelos filhos. Prouvera a Deus que todos os
lavradores fossem soldados e esposos! Seriam assim excelentes cidadãos.
Mas um monge só serve, como monge, para devorar a substância
de seus compatriotas. Não há verdade mais reconhecida.

— Mas e as filhas dos gentis-homens pobres, que não podem casar,
que farão elas?

— Farão, como já se disse mil vezes, o que fazem as
da Inglaterra, da Escócia, da Irlanda, da Suiça, da Holanda,
de metade da Alemanha, da Suécia, da Noruega, da Dinamarca, da Tartária,
da Turquia, da África, e de quase todo o resto da terra. Serão
melhores esposas e mães, quando os homens se tiverem acostumado, tal
como na Alemanha, a tomar esposas sem dote. Uma mulher laboriosa e afeita
às lides domésticas será de mais utilidade numa casa
do que a filha de um financista, que, só em superfluidades, gasta mais
do que trouxe ao marido.

Cumpre que haja casas de retiro para a velhice, para a invalidez, para a
deformidade. Mas devido ao mais detestável dos abusos, só existem
fundações para a juventude e para as pessoas bem conformadas.
Começa-se, nos claustros, por obrigar os noviços de um e outro
sexo a patentear sua nudez, apesar de todas as leis do pudor; são atentamente
examinados por diante e por trás, Vá uma velha corcunda apresentar-se
para entrar num convento, e será ignominiosamente escorraçada,
a menos que contribua com um dote imenso. Que digo? Toda religiosa deve trazer
seu dote, sem o que se transformará no rebotalho do convento. Nunca
se viu mais intolerável abuso.

— Bem, senhor, juro-lhe que as minhas filhas jamais serão religiosas.
Aprenderão a fiar, a coser, a fazer renda, a bordar, a ser úteis,
em suma. Considero os votos como um atentado contra a pátria e contra
si mesmo. E como se explica que um de meus amigos, para contrariar o gênero
humano, alegue que os monges são muito úteis à população
de um estado, porque as suas casas têm melhor passadio que as dos senhores
e as suas terras melhor cultivo?

— E que amigo é esse, que faz uma asserção tão
estranha?

— É o Amigo dos Homens, ou antes, dos monges.

— Estava brincando, com certeza; bem sabe ele que dez famílias,
cada uma com cinco mil libras de rendas da terra, são cem vezes, mil
vezes mais úteis do que um convento que desfruta de uma renda de cinqüenta
mil libras e que tem sempre um tesouro secreto. Louva as belas casas construídas
pelos monges, e é precisamente o que irrita os cidadãos; é
motivo das queixas da Europa. O voto de pobreza condena os palácios,
como o voto de humildade se opõe ao orgulho, e como o voto de aniquilar
a própria raça está em contradição com
a natureza.

— Começo a crer que se deve desconfiar dos livros.

— Deve-se é proceder com eles como com os homens, escolher
os mais razoáveis, examiná-los, e só se render à
evidência.

IX. DOS IMPOSTOS PAGOS AO ESTRANGEIRO

Há coisa de um mês, veio procurar-me o homem dos quarenta escudos,
dando verdadeiras barrigadas de riso, e com tão boa gana que também
me pus a rir, sem saber do que se tratava, de tal forma é o homem imitador
por natureza, tanto nos senhoreia o instinto, tão contagiosas são
as grandes expansões da alma.

Ut ridentibus arrident, its flentibue adflent (5)

Humani vultus.

Depois que riu à vontade, contou-me que acabava de encontrar um homem
que se dizia protonotário da Santa Sé, e que esse homem remetia
considerável soma, a trezentas léguas daqui, a um italiano,
em nome de um francês a quem o rei doara um pequeno feudo, e que esse
francês Jamais poderia gozar do benefício do rei se não
remetesse ao referido italiano o seu primeiro ano de renda.

— A coisa é bem verdade – disse-lhe eu, – mas não
é tão divertida assim. Essas pequenas contribuições
custam à França umas quatrocentas mil libras anuais; e, durante
os dois séculos e meio que vem durando esse costume, já descarregamos
na Itália uns oitenta milhões.

— Santo Deus! – exclamou ele. – Quantas vezes quarenta
escudos! Quer dizer então que esse italiano nos subjugou há
dois séculos e meio e nos impôs esse tributo?

— Na verdade, ele nos taxava outrora muito mais onerosamente. Isso
não passa de uma bagatela em comparação como o que ele
por muito tempo tirou da nossa pobre nação e das outras pobres
nações da Europa.

Contei-lhe então como se haviam estabelecido essas santas usurpações.
Ele sabe um pouco de história; tem bom senso: compreendeu facilmente
que éramos ex-escravos aos quais ainda restava uma ponta de grilhões.
Por muito tempo, falou energicamente contra tal abuso, mas com que respeito
pela religião em geral! Como venerava os bispos! Como lhes desejava
muitos e muitos quarenta escudos, a fim de que os gastassem em obras pias
nas respectivas dioceses!

Queria também que todos os curas de campanha tivessem um número
suficiente de quarenta escudos, para que pudessem viver com decência.

— É triste – dizia ele – que um cura se veja obrigado
a disputar três medas do trigo ao seu rebanho, e não seja largamente
remunerado pela província. É vergonhoso que estejam sempre em
demanda com os seus senhores. Essas eternas querelas por direitos imaginários
e dízimas destroem a consideração que se lhes deve. O
infeliz cultivador, que já pagou aos prepostos a sua dízima,
e os dois soldos por libra, e a talha, e a capitação, e o resgate,
pelo alojamento de militares, depois de já os ter alojado, etc., etc.,
etc., esse desgraçado, dizia eu, que ainda vê o seu próprio
cura arrebatar-lhe o décimo da sua colheita, não mais o considera
como o seu pastor, mas como o seu escorchador, que lhe arranca o pouco de
pele que lhe resta. Compreende que, ao lhe arrebatarem a décima meda
de direito divino, têm a crueldade diabólica de não levar
em conta o que lhe custou para produzir aquela meda. Que sobra para ele e
a família? O pranto, a necessidade, o desânimo, o desespero,
e acaba morrendo de fadiga e miséria. Se o cura fosse pago pela província,
seria o consolo de seus paroquianos, em vez de ser olhado por eles como um
inimigo.

O bom do homem enternecia-se ao pronunciar tais palavras; amava a pátria
e era idólatra do bem público. E exclamava às vezes:
“Que grande nação a França, se a gente o quisesse!”

Fomos ver seu filho, a quem a mãe, muito asseada, apresentava um
farto seio branco. O menino era bastante bonito.

— Eis-te aqui – disse o pai – e só tens direito
a vinte e três anos de vida e a quarenta escudos!

X. DAS PROPORÇÕES

O produto dos extremos é igual ao produto dos meios: mas dois sacos
de trigo roubados, não estão, para aquelas que os subtraíram,
na mesma relação em que está a perda da sua vida para
os interesses da pessoa prejudicada.

O prior de D***, a quem dois criados roubaram dois sesteiros de trigo, acaba
de fazer enforcar os dois delinqüentes. Tal execução custou-lhe
mais do que lhe rendera toda a colheita, e desde esse tempo não encontra
empregados.

Se a lei dispusesse que aqueles que roubam o trigo do patrão lhe
lavrassem a terra durante toda a vida, com ferros nos pés, e uma campainha
ao pescoço, presa à golinha, muito teria ganho o referido prior.

Cumpre amedrontar o crime, na verdade; mas o trabalho forçado e a
ignomínia permanente intimidam mais do que a morte.

Há alguns meses, em Londres, foi um malfeitor condenado a ir trabalhar
com os negros, nos engenhos de açúcar da América. Todos
os criminosos na Inglaterra, como em muitos outros países, têm
direito de dirigir-se ao rei, para pedir comutação ou abrandamento
da pena. Quanto a este, pediu para ser enforcado. Alegou que odiava mortalmente
o trabalho e que preferia ser estrangulado um minuto a fabricar açúcar
toda a vida.

Podem outros pensar de outra maneira, e cada qual a seu gosto; mas já
se disse, e cumpre repetir, que um enforcado não serve para coisa alguma,
e que os castigos devem ser úteis.

Há alguns anos, na Tartária, dois jovens foram condenados
ao empalamento por terem assistido, de chapéu na cabeça, a uma
procissão de lamas. O imperador da China, que é homem de muito
espírito, disse que os teria condenado a marchar em procissão,
sem chapéu, durante três meses.

“Que as penas sejam proporcionais aos delitos”, já o
disse o marquês de Beccaria; mas os que fizeram as leis não eram
geômetras.

Se o padre Guyon, ou Coger, ou o ex-jesuíta Nonnotte, ou o ex-jesuíta
Patouillet, ou o pregador La Beaumelle, fazem miseráveis libelos, em
que não há nem verdade, nem razão, nem espírito,
vamos nós enforcá-los, como o fez o prior de D*** com os seus
dois serviçais, e isto sob o pretexto de que os caluniadores são
mais culposos que os ladrões?

Condenaremos o próprio Fréron às galés, por
haver insultado o bom gosto, e por ter mentido toda a vida, na esperança
de pagar o vendeiro?

Levaremos o senhor Larcher ao pelourinho, por ser muito indigesto, por haver
acumulado erro sobre erro, porque nunca soube distinguir nenhum grau de probabilidade,
por afirmar que, numa antiga e imensa cidade, famosa por sua severidade e
pelo zelo dos maridos, em Babilônia enfim, onde as mulheres eram guardadas
por eunucos, todas as princesas iam devotadamente ao templo, entregar-se por
dinheiro aos estrangeiros? Não, contentemo-nos em mandá-lo também
fazer a vida; sejamos moderados em tudo; estabeleçamos proporção
entre os delitos e as penas.

Perdoemos a esse pobre Jean-Jacques quando só escreve para contradizer-se;
quando, depois de haver apresentado uma comédia vaiada em Paris, injuria
aqueles que fazem representar comédias a cem léguas dali; quando
procura protetores, e os ultraja; quando clama contra os romances, e faz romances
cujo herói é um tolo preceptor que recebe esmola de uma suíça
na qual fez um filho, e que vai gastar o dinheiro num bordel de Paris; deixemo-lo
acreditar que ultrapassou Fénelon e Xenofonte, educando um jovem de
qualidade no ofício de marceneiro; essas extravagantes chatezas não
merecem uma ordem de detenção; basta o hospício, com
bons caldos, sangrias, e regime.

Odeio as leis de Dracon, que puniam igualmente os crimes e as faltas, a
maldade e a loucura. Não tratemos o jesuíta Nonnotte, que só
é culpado de haver escrito tolices e injúrias, como foram tratados
os jesuítas Malagrida, Oldcorn, Garnet, Guiznard, Guéret, e
como se devia tratar o jesuíta Le Tellier, que enganou o seu rei e
perturbou a França. Distingamos principalmente em todo processo, em
todo litígio, em toda querela, o agressor e o ultrajado, o opressor
e o oprimido. A ofensiva parte do tirano; aquele que se defende é um
homem justo.

Estava eu mergulhado nessas reflexões, quando chegou, em lágrimas,
o homem dos quarenta escudos. Perguntei-lhe, alarmado, se o seu filho, que
deveria viver vinte e três anos, havia acaso morrido.

— Não – disse ele, – o pequeno vai muito bem, e
minha mulher igualmente. Mas fui chamado, como testemunha, contra um marceneiro
que foi submetido à tortura e estava inocente. Vi-o desmaiar no suplício;
ouvi estalarem-lhe os ossos; ainda ouço os seus gemidos e gritos; eles
me perseguem, eu choro de piedade e tremo de horror.

Pus-me também a chorar e a tremer, pois sou extremamente sensível.

Veio-me então à memória a espantosa aventura dos Calas,
uma mãe virtuosa posta a ferros, seus filhos desvairados e fugitivos,
a casa pilhada, um respeitável pai de família torturado, agonizando
na roda e expirando nas chamas, um filho nos grilhões, arrastado perante
os juizes, um dos quais lhe disse: Acabamos de levar seu pai à roda
e faremos o mesmo com você.

Lembro-me da família Sirven, que um de meus amigos encontrou nas
montanhas cobertas de neve, quando fugiam da perseguição de
um juiz tão iníquo como ignorante.

— Esse juiz – me disse ele, – condenou ao suplício
toda aquela inocente família, na suposição, sem o mínimo
indício de prova, de que o pai e a mãe, auxiliados por duas
de suas filhas, haviam estrangulado e afogado a terceira, de medo que ela
fosse à missa.

Eu via, ao mesmo tempo, nos julgamentos dessa espécie o cúmulo
da estupidez, da injustiça e da barbaridade.

O homem dos quarenta escudos e eu lamentávamos a natureza humana.
Tinha eu no bolso o discurso de um advogado do Delfinado, que versava em parte
sobre essa interessante matéria. Li em voz alta os seguintes trechos:

“Foram por certo verdadeiramente grandes os homens que primeiro ousaram
encarregar-se do governo de seus semelhantes e impor-se o fardo da felicidade
pública; que, pelo bem que queriam fazer aos homens, se impuseram à
sua ingratidão e, para o repouso de um povo, renunciaram ao seu; que
se colocaram, por assim dizer, entre os homens e a Providência, para
lhes conseguir, por artifício, uma ventura que esta parecia haver-lhes
recusado”.

“Que magistrado, um pouco sensível a seus deveres, à
simples humanidade~ poderia sustentar tais idéias. Poderá ele,
na solidão do gabinete, sem fremir de horror e de piedade, lançar
os olhos sobre esses papéis, infelizes monumentos do crime ou da inocência?
Não lhe parecerá brotarem gementes vozes desses fatais escritos,
a instá-lo para decidir da sorte de um cidadão, de um esposo,
de um pai, de uma família? Que impiedoso juiz (se for encarregado de
um único processo) poderá passar de sangue frio por diante de
uma prisão? – Sou eu então – dirá ele –
que mantenho, nessa detestável morada, meu semelhante, talvez meu igual,
meu concidadão, um homem enfim!? Sou eu que todos os dias o agrilhôo,
que fecho sobre ele essas odiosas portas!? Talvez que o desespero se haja
apoderado da sua alma; lança aos céus o meu nome, de envolta
com maldições; e sem dúvida atesta contra mim o grande
Juiz que nos observa e que nos deve julgar a ambos.

“E eis que terrível espetáculo se me apresenta aos olhos:
o juiz cansa-se de interrogar com a palavra, quer interrogar com os suplícios:
impaciente das suas pesquisas, talvez irritado com a sua inutilidade, manda
trazer brandões, cadeias, alavancas e todos esses instrumentos inventados
para a dor. Um carrasco se vem ajuntar às funções da
magistratura, e termina pela violência um interrogatório iniciado
pela liberdade.

“Doce filosofia, tu que só buscas a verdade com a atenção
e a paciência, esperavas que, no teu século, empregassem tais
instrumentos para a descobrir?

“E mesmo verdade que as nossas leis aprovam esse método inconcebível
e que o uso o consagra?

“Suas leis imitam seus preconceitos; as punições públicas
são tão cruéis quanto as vinganças particulares,
e os atos da sua razão não são menos impiedosos que os
das suas paixões. Qual, pois, a causa dessa estranha oposição?
É que os nossos preconceitos são antigos e a nossa moral é
recente; é que somos tão compenetrados de nossos sentimentos
quão desatentos às nossas idéias; é que a avidez
dos prazeres nos impede de refletir sobre as necessidades, e mais nos empenhamos
em viver do que em conduzir-nos. E que, numa palavra, nossos costumes são
amáveis, e não são bons; é que somos polidos,
e nem ao menos somos humanos”.

Esses fragmentos que a eloqüência ditara à piedade encheram
de suave consolo o coração de meu amigo. Ele admirava comovidamente.

— Como! – dizia em seus transportes. – Fazem-se obras-primas
na província! Tinham-me dito que só havia Paris no mundo.

— Só em Paris – respondi-lhe – é que se
fazem óperas cômicas; mas há hoje na província
muitos magistrados que pensam com a mesma virtude e se exprimem com a mesma
força. Outrora os oráculos da justiça, bem como os da
moral, não eram senão ridículos, O doutor Balouard declamava
na tribuna e Arlequim no púlpito. Veio enfim a filosofar e disse:

— Falei em público apenas para dizer verdades novas e úteis,
com a eloqüência do sentimento e da razão.

— Mas se não tivermos nada de novo a dizer? – exclamaram
os palradores.

— Calem-se então – respondeu a filosofia. – Todos
esses vãos discursos de aparato, que só contêm frases,
são como os fogos de S. João, acesos no dia em que a gente menos
necessidade tem de aquecer-se; não causam nenhum prazer, e não
lhes sobram nem as cinzas.

Que toda a França leia bons livros. Mas, apesar dos progressos do
espírito humano, lê-se muito pouco; e, dentre aqueles que querem
às vezes instruir-se, a maioria lê muito mal. Meus vizinhos jogam,
após a ceia, um jogo inglês que tenho muita dificuldade em pronunciar,
pois o chamam de wist. Muitos bons burgueses, muitas grandes cabeças,
que se julgam boas cabeças, dizem, com ar importante, que os livros
não servem para nada. Mas não sabem, esses vândalos, que
não são governados a não ser por livros? Não sabem
que o código civil, o código militar e os Evangelhos são
livros de que dependem continuamente. Leiam, esclareçam-se; só
pela leitura se fortifica a alma; a conversação a dissipa, o
jogo a limita.

— Pouco dinheiro tenho – respondeu-me o homem dos quarenta escudos;
mas, se algum dia reunir uma pequena fortuna, comprarei livros no Marc-Michel
Rey.

XI. DA SÍFILIS

O homem dos quarenta escudos morava num pequeno cantão, onde fazia
uns cento e cinqüenta anos que não acampavam soldados. Os costumes,
naquele desconhecido rincão, eram mais puros do que o ar que o banha.
Não se sabia que alhures pudesse o amor ser infeccionado de um veneno
destrutivo, que as gerações fossem atacadas no seu germe, e
que a natureza, contradizendo-se a si mesma, pudesse tornar a carícia
horrível e o prazer medonho; entregavam-se ao amor com a segurança
da inocência. Chegaram tropas, e tudo mudou.

Dois tenentes, o esmoler do regimento, um cabo e um recruta proveniente
do seminário bastaram para envenenar doze aldeias em menos de três
meses. Duas primas do homem dos quarenta escudos viram-se cobertas de pústulas;
caíram-lhes os lindos cabelos; a sua voz tornou-se rouca; as pálpebras
de seus olhos fixos e apagados tomaram uma cor lívida, e não
mais se fecharam para permitir repouso aos membros deslocados, que uma cárie
secreta começava a roer como aos do árabe Job, embora Job jamais
tivesse tido semelhante doença.

O cirurgião-mor do regimento, homem de grande experiência,
foi obrigado a pedir auxilio à Corte, para curar todas as raparigas
da região. O ministro da guerra, sempre inclinado a aliviar o belo
sexo, enviou uma leva de recrutas, que estragaram com uma das mãos
o que endireitaram com a outra.

O homem dos quarenta escudos lia então a história filosófica
de Cândido, traduzida do alemão e de autoria do doutor Ralph,
que prova evidentemente que tudo está bem, e que era absolutamente
impossível, no melhor dos mundos possíveis que a sífilis,
a peste, os cálculos, as areias, as escrófulas, a câmara
de Valência e a Inquisição não entrassem na composição
do universo, desse universo unicamente feito para o homem, rei dos animais,
e imagem de Deus, ao qual bem se vê que se assemelha como duas gotas
d’água.

Lia, na história verdadeira de Cândido, que o famoso doutor
Pangloss perdera no tratamento um olho e uma orelha.

— Ai! e as minhas primas, as minhas pobres primas, ficarão
também tortas e desorelhadas?

— Não – disse-lhe o major, confortadoramente. –
Os alemães têm mão pesada; mas, quanto a nós, curamos
as raparigas prontamente, seguramente e agradavelmente.

E, com efeito, as duas lindas primas livraram-se do mal ficando com .a cabeça
inchada como um balão durante seis semanas, perdendo metade dos dentes,
botando uma língua de meio palmo, e morrendo do peito ao cabo de seis
meses.

Durante a operação, o primo e o cirurgião-mor assim
discorreram:

O Homem dos Quarenta Escudos: – Será possível, senhor,
que a natureza tenha unido tão espantosos tormentos a um prazer tão
necessário, tanta vergonha a tanta glória, e que haja mais riscos
em fazer um filho do que em matar um homem? Será ao menos verdade,
para consolação nossa, que esse mal vai diminuindo um pouco
pelo mundo e cada dia se torna menos perigoso?

O Cirurgião-mor: – Pelo contrário, alastra-se cada vez
mais por toda a Europa cristã; está disseminado até a
Sibéria; vi morrer disso quinhentas pessoas, inclusive um grande general
e um excelente ministro. São poucos os fracos do peito que resistem
à doença e ao remédio. As duas irmãs, la petite
et la grosse, coligaram-se ainda mais que os monges para destruir o gênero
humano.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Mais uma razão para abolir
os monges, a fim de que, recolocados entre os homens, eles reparem um pouco
o mal que fazem as duas irmãs. E diga-me uma coisa: os animais. também
têm vérole?

O Cirurgião: – Ni la petite, ni la grosse, nem os monges são
conhecidos entre eles.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Convenhamos então que são
mais felizes e mais prudentes do que nós no melhor dos mundos.

O Cirurgião: – Disso eu nunca duvidei; tem menos doenças
do que nós; seu instinto é muito mais seguro do que a nossa
razão: jamais se atormentam com o passado nem com o futuro.

O Homem dos Quarenta Escudos: – O senhor que já foi cirurgião
do embaixador francês na Turquia: há muita sífilis em
Constantinopla?

O Cirurgião: – Os franceses trouxeram-no para o bairro de Pera,
onde residem. Conheci ali um capuchinho que estava devorado por ela como Pangloss;
mas o flagelo não alcançou a cidade propriamente dita, onde
os franceses quase nunca dormem. Não há quase mulheres públicas
naquela enorme cidade. Cada homem rico tem mulheres, escravas circassianas,
sempre guardadas, sempre vigiadas, e cuja beleza não pode ser perigosa.
Os turcos chamam à sífilis o mal cristão, o que redobra
o profundo desprezo que dedicam à nossa teologia. Mas, em compensação.
têm a peste, doença do Egito, de que fazem pouco caso e que nunca
se dão ao trabalho de prevenir.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Em que tempo julga ter começado
esse flagelo na Europa?

O Cirurgião: – Pelo ano de 1494, quando Cristóvão
Colombo regressou da sua primeira viagem às nações inocentes
que não conheciam nem a avareza nem a guerra. Aquelas nações
simples e justas estavam contaminadas desse mal desde tempos imemoriais, como
a lepra reinava entre os árabes e os judeus, e a peste entre os egípcios.
O primeiro fruto que colheram os espanhóis, dessa conquista do novo
mundo, foi a sífilis; expandiu-se mais rapidamente que a prata do México,
que só circulou na Europa muito tempo depois. A razão era que,
em todas as cidades, havia então belas casas públicas, chamadas
bordéis, cujo estabelecimento era autorizado pelos soberanos para preservar
a honra das damas. Os espanhóis trouxeram o veneno para essas casas
privilegiadas de onde os príncipes e bispos requisitavam as raparigas
que lhes eram necessárias. Havia em Constança setecentas e dezoito
dessas mulheres, para o serviço do Concílio que tão devotadamente
mandou queimar João Huss e Jerônimo de Praga.

Só por isso se pode julgar com que rapidez o mal percorreu todos
os países. O primeiro senhor que veio a morrer desse mal foi o ilustríssimo
e reverendíssimo bispo e vice-rei da Hungria, em 1499, e que Bartolomeu
Montanagua, grande médico de Praga, não pode salvar. Assegura
Gualtieri que o arcebispo de Mogúncia, Bertold de Henneberg, attaqué
de la grosse vérole, rendit son âme à Dieu en 1504. Sabe-se
que disso morreu o nosso rei Francisco I, Henrique III o adquiriu em Veneza,
mas o jacobino Jacques Clément preveniu os efeitos do mal.

O parlamento de Paris, sempre zeloso do bem público, foi o primeiro
que baixou um édito contra a sífilis, isso em 1497. Proibiu
a todos os contaminados que permanecessem em Paris, sous peine de la hart.
Mas, como não. era fácil convencer juridicamente os burgueses
e burguesas de que estavam em delito, não teve esse édito maior
efeito do que aqueles que foram depois baixados contra a emética; e,
apesar do parlamento, continuava aumentando o número de culpados. É
verdade que, se os tivessem exorcismado em vez de enforcá-los, não
mais os haveria hoje sobre a face da terra; mas infelizmente nunca se pensou
em tal coisa.

O Homem dos Quarenta Escudos: – É então verdade o que
li no Cândido, que, entre nós, quando entram em campo dois exércitos
de trinta mil homens cada um, pode-se apostar que há vinte mil contaminados
de cada banda?

O Cirurgião: – Nada mais verdadeiro. O mesmo acontece com o
pessoal da Sorbona. Que quer que façam jovens bacharéis a quem
a natureza fala mais alto e mais firme do que a teologia? Posso-lhe jurar
que, guardadas as proporções, meus confrades e eu temos tratado
mais jovens sacerdotes do que jovens oficiais.

O Homem dos Quarenta Escudos: – Não haveria algum meio de extirpar
esse mal que assola a Europa? Já se tratou de enfraquecer o veneno
de uma vêrole; nada se poderá tentar contra a outra?

O Cirurgião: – Só haverá um meio: é que
todos os príncipes da Europa se coligassem como nos tempos de Godofredo
de Bulhão. Certamente uma cruzada contra a sífilis seria muito
mais razoável do que aquelas que outrora tão infelizmente se
fizeram contra Saladino, Melecsala e os albigenses. Melhor seria nos combinarmos
para expulsar o inimigo comum do gênero humano do que andarmos continuamente
a espiar o momento azado para devastar a terra e cobrir os campos de cadáveres,
com o fim de arrebatar ao vizinho duas ou três cidades e algumas aldeias.
Falo contra os meus próprios interesses, pois a guerra e a sífilis
me fazem viver; mas cumpre ser homem antes de ser cirurgião-mor.

Era assim que o homem dos quarenta escudos ia formando, como se diz, o espírito
e o coração. Não só herdou das duas primas, que
morreram em seis meses, mas ainda lhe coube a sucessão de um parente
afastado, que fora sub-arrendatário dos hospitais do exército,
e que engordara bastante pondo em dieta os soldados feridos. Esse homem jamais
quisera casar-se; possuía um belo serralho. Não reconheceu nenhum
de seus parentes, viveu na crapulagem, e morreu de indigestão em Paris.
Era, como se vê, um homem muito útil ao Estado.

O nosso novo filósofo viu-se obrigado a ir a Paris receber a herança
do parente. Primeiro os rendeiros do domínio lha disputaram. Teve a
felicidade de ganhar o processo e a generosidade de dar aos pobres do cantão,
que não haviam conseguido o seu quinhão de quarenta escudos
de renda, uma parte dos despojos do ricaço. Depois do que, pôs-se
a satisfazer a sua grande ambição de formar uma biblioteca.

Lia todas as manhãs, fazia excertos, e à noite consultava
os sábios para saber: em que língua falara a serpente à
nossa boa mãe; se a alma está localizada no corpo caloso ou
na glândula pineal; se S. Pedro permanecera vinte e cinco anos em Roma;
que diferença específica existe entre um trono e uma dominação;
e por que motivo os negros têm nariz chato. Propôs-me, aliás,
jamais governar o Estado e nunca escrever brochuras contra as peças
novas. Chamavam-no o senhor André, que era o seu nome de batismo. Aqueles
que o conheceram fazem justiça à sua modéstia e às
suas qualidades, tanto adquiridas como naturais. Construiu uma casa confortável
no seu antigo domínio de quatro jeiras. Seu filho alcançará
em breve a idade escolar, mas ele quer mandá-lo para o colégio
de Harcourt e não para o de Mazarino, devido ao professor Coger, que
faz libelos, e porque um professor de colégio não os deve fazer.

Madame André deu-lhe uma filha bastante bonita, que ele pretende
casar com um conselheiro, desde que esse magistrado não tenha a doença
que o cirurgião-mor tenciona extirpar da Europa cristã.

XII. GRANDE QUERELA

Durante a estada do senhor André em Paris, houve ali uma importante
querela. Tratava-se de saber se Marco Antonino era um homem de bem, e se estava
no inferno, ou no purgatório, ou no limbo, à espera da ressurreição.
Todas as pessoas sensatas tomaram o partido de Marco Antonino. “Marco
Antonino – diziam – sempre foi justo, sóbrio, casto, generoso.
É verdade que não tem no paraíso um lugar como o de Santo
Antônio: pois cumpre guardar as proporções, como bem sabemos;
mas é fora de dúvida que a alma do imperador Antonino não
foi para o espeto, no inferno. Se está no purgatório, é
preciso tirá-la dali; é só mandar dizer missas por ele.
Os jesuítas não têm mais que fazer; que digam três
mil missas pelo descanso da alma de Marco Antonino; a quinze soldos cada uma,
ganharão com isso duas mil duzentas e cinqüenta libras. De resto,
deve-se respeito a uma cabeça coroada; não se deve condená-la
levianamente”.

Os adversários dessas boas criaturas pretendiam, pelo contrário,
que não se deveria ter consideração alguma para com Marco
Antonino; que este era um herege; que os carpócratas e os alógios
não eram tão maus quanto ele; que morrera sem confissão;
que era preciso darem um exemplo; que era bom condená-lo para dar uma
lição aos imperadores da China e do Japão, aos da Pérsia,
da Turquia e de Marrocos, aos reis da Inglaterra, da Suécia, da Dinamarca,
da Prússia, ao stathouder da Holanda, e aos avoyers do Cantão
de Berna, que tampouco se confessavam como o imperador Marco Antonino; e que,
afinal de contas, é um indizível prazer baixar decretos contra
soberanos mortos, quando é impossível lançá-los
contra os vivos, por amor às próprias orelhas.

A querela tornou-se tão séria como outrora a das Ursulinas
com as Anunciadas, que disputavam a ver quem carregaria por mais tempo ovos
quentes entre as nádegas, sem os quebrar. Temia-se um cisma, como nos
tempos da carochinha e de certas promissórias pagáveis ao portador
no outro mundo. Coisa terrível um cisma, pois significa divisão
das opiniões, e, até aquele momento fatal, todos os homens tinham
pensado da mesma forma.

O senhor André, que é um excelente cidadão, convidou,
para cear, aos chefes de cada um dos partidos. É ele dos melhores companheiros
de mesa com que contamos; seu gênio é brando e alerta, sua alegria
não é ruidosa; é simples e franco; não tem essa
espécie de espírito que parece querer abafar o dos outros; a
autoridade que se concilia só é devida às suas graças,
à sua moderação, e a uma fisionomia aberta e persuasiva.
Seria capaz de fazer cearem alegremente juntos um corso e um genovês,
um representante de Genebra e um negativo, o mufti e um arcebispo. Anulou
habilmente os primeiros golpes que trocaram os adversários, desviando
a conversa e contando uma história muito agradável, que divertiu
igualmente os danantes e os danados. Afinal, quando o vinho começou
a subir, fê-los assinarem que a alma do imperador Marco Antonino permaneceria
in statu quo, isto é, não se sabe onde, aguardando o julgamento
definitivo.

As almas dos doutores voltaram tranqüilamente para os seus limbos,
após a ceia; tudo ficou em paz. Esse arranjo trouxe grande consideração
ao homem dos quarenta escudos; e todas as vezes que se erguia uma disputa
muito acesa, muito virulenta, entre letrados ou não letrados, dizia-se
a ambas as partes: Senhores, ide cear com o senhor André.

Sei de duas encarniçadas facções que, por não
terem ido cear em casa do senhor André, só arranjaram desgraças.

XIII. A EXPULSÃO DE UM CELERADO

A reputação que adquirira o senhor André, de apaziguar
as querelas dando boas ceias, atraiu-lhe na semana passada uma singular visita.
Um homem de preto e mal vestido, curvo, a cabeça inclinada para um
lado, de olhar mau e mãos sujas, veio conjurá-lo a que o convidasse
para jantar com os seus inimigos.

— Quem são os seus inimigos perguntou-lhe o senhor André.
– E quem é o senhor?

— Ai! confesso, senhor, confesso que me tomam por um desses pulhas
que escrevem libelos para ganhar a vida e que clamam: “Deus, Deus, Deus,
religião, religião”, para arranjar algum pequeno benefício.
Acusam-me de haver caluniado os cidadãos mais verdadeiramente religiosos,
os mais sinceros adoradores da Divindade, as pessoas mais honradas do reino.
E verdade, senhor, que, no calor da composição, escapam às
vezes às pessoas de meu ofício pequenas inadvertências
que tomam por erros grosseiros, lapsos que qualificam de impudentes mentiras.
O nosso zelo é considerado como uma terrível mescla de velhacaria
e fanatismo. Asseguram que, embora iludamos a boa-fé de algumas velhas
imbecis, somos alvo de desprezo e execração de todas as pessoas
honradas que sabem ler.

Meus inimigos são os principais membros das mais ilustres academias
da Europa, escritores considerados, cidadãos úteis. Acabo de
publicar uma obra que intitulei Antifilosófica. As minhas intenções
eram boas, mas ninguém quis comprar o livro. Aqueles a quem o dei lançaram-no
ao fogo, dizendo-me que era, não só anti-razoável, mas
anticristão e antihonesto.

— Pois bem – disse o senhor André, – imite-os,
lance ao fogo o seu libelo, e não falemos mais nisso. Estimo o seu
arrependimento, mas é-me impossível fazê-lo cear com homens
de espírito que não podem ser inimigos seus, visto que jamais
o lerão.

— Não poderia ao menos, senhor. – retrucou o biltre,
– reconciliar-me com as parentes do falecido senhor de Montesquieu,
cuja memória ultrajei para glorificar o reverendo padre Routh, que
veio assediar seus últimos momentos e foi escorraçado do seu
quarto?

Ora! – retrucou o senhor André. – Há muito que
está morto o padre Routh; vá cear com ele.

O senhor André não é homem de meias medidas, quando
tem de tratar com gente dessa espécie. Compreendeu que o pulha só
queria jantar em sua casa com homens de mérito para suscitar uma querela,
para ir em seguida caluniá-los, para escrever contra eles, para imprimir
novas mentiras. Correu-o de sua casa, como haviam corrido Routh do apartamento
do presidente Montesquieu.

Impossível enganar ao senhor André. Tão simples e ingênuo
era quando não passava de “o homem dos quarenta escudos”,
quão atilado se tornou depois que conheceu os homens

XIV. O BOM SENSO DO SENHOR ANDRÉ

Como se fortaleceu o bom-senso do senhor André desde que ele tem
uma biblioteca! Trata os livros como aos homens; escolhe-os; e nunca se deixa
levar pelos nomes. Que prazer instruir-se e engrandecer a alma por um escudo,
sem sair de casa!

Felicita-se por ter nascido numa época em que a razão humana
começa a aperfeiçoar-se.

“Como eu não seria infeliz – diz ele – se vivesse
no tempo do jesuíta Gerasse, do jesuíta Guignard, ou do doutor
Boucher, do doutor Aubry, do doutor Guincestre, ou no tempo em que condenavam
às galés os que escreviam .contra as categorias de Aristóteles!”

Se a miséria enfraquecera as molas vitais do senhor André,
o bem-estar lhes devolveu a elasticidade. Há no mundo centenas de Andrés
aos quais só faltou uma volta da roda da fortuna para os tornar homens
de verdadeiro mérito.

Está hoje a par de todos os negócios da Europa, e sobretudo
das progressos do espírito humano.

“Parece – dizia-me ele na última terça feira –
que a Razão viaja por pequenas etapas, do norte para o sul, com suas
duas amigas íntimas, a Experiência e a Tolerância. Acompanham-na
a Agricultura e o Comércio. Apresentou-se na Itália, mas a Congregação
do Índice a rechaçou. O mais que ela pôde fazer foi enviar
secretamente alguns de seus emissários, que não se cansam de
fazer o bem. Alguns anos mais, e o país dos Cipiões deixará
de ser o dos Arlequins encapuzados.

Consegue, de tempos em tempos, cruéis inimigos na França;
mas conta aqui com tantos amigos que afinal acabará sendo primeiro
ministro.

Quando se apresentou na Baviera e na Áustria, encontrou dois ou três
figurões de peruca, que a fitaram com olhar estúpido e espantado.
E disseram-lhe – Nunca ouvimos falar na senhora; não a conhecemos.
– Senhores – respondeu-lhes ela, – com o tempo, hão
de conhecer-me e estimar-me. Fui muito bem recebida em Berlim, em Moscou,
em Copenhague, em Estocolmo. Faz muito que, por obra de Locke, Gordon, Trenchard,
milorde Shaftesbury, e tantos outros, recebi carta de naturalização
na Inglaterra. Também aqui um dia ma concederão. Sou filha do
Tempo, e tudo espero de meu pai.

Ao passar pelas fronteiras da Espanha e de Portugal, deu graças a
Deus por ver que – já não se acendiam tão seguidamente
as fogueiras da Inquisição. Ficou muito esperançada como
a expulsão dos jesuítas. Mas receou que, purgando a terra das
raposas, a deixassem exposta aos lobos.

Se ainda fizer tentativas para entrar na Itália, acredita-se que
começará por estabelecer-se em Veneza, e que estacionará
no reino de Nápoles, apesar de todas as liquefações dessa
terra, que lhe dão vapores. Presume-se que a Razão tem um segredo
infalível para desembaraçar os cordões de uma coroa que
se enredaram, não sei como, aos de uma tiara, e para impedir que as
hacanéias façam reverência às mulas!”

Em suma, a conversação do senhor André muito me agrada;
e, quanto mais convivo com ele, mais o estimo.

XV. DE UMA BELA CEIA EM CASA DO SENHOR ANDRÉ

Ceamos ontem com um doutor da Sorbona, o senhor Pinto, famoso judeu, o capelão
da igreja reformada do embaixador batavo, o secretário do senhor príncipe
Galitzin, do rito grego, um capitão suíço calvinista,
dois filósofos e três damas do espírito.

A ceia se prolongou bastante, e no entanto não se discutiu sobre
religião, como se nenhum dos convivas jamais tivesse alguma; o que
quer dizer que nos tornamos polidos, e por isso tanto mais receamos contristar
os outros, à mesa. O que não acontece com o regente Coger, e
o ex-jesuíta Nonnotte, e o ex-jesuíta Patouillet, e o ex-jesuíta
Rotalier, e todos os animais dessa espécie. Esses sórdidos nos
dizem mais tolices numa brochura de duzentas páginas do que se pode
dizer de agradável e instrutivo numa ceia de quatro horas. E o mais
estranho é que eles não se atreveriam a dizer de cara, a ninguém,
o que têm a impudência de imprimir.

A conversa girou primeiro acerca de um gracejo das Cartas Persas, onde se
repete, segundo várias personagens, que o mundo não só
vai piorando, mas também se despovoando cada vez mais; de sorte que
se o provérbio Quanto mais loucos, mais riso tem alguma dose de verdade,
o riso será banido da terra.

O doutor da Sorbona assegurou que, com efeito, o mundo estava reduzido a
quase nada. Citou o padre Petau, que nos demonstra que, em menos de trezentos
anos, um só dos filhos de Noé (não sei se Jafé
ou Sem) procriara uma série de filhos que subia a seiscentos e vinte
e três bilhões, seiscentos e doze milhões e trezentos
e cinqüenta e oito mil fiéis, no ano 285 após o dilúvio
universal.

O senhor André perguntou por que no tempo de Filipe o Belo, isto
é, cerca de trezentos anos após Hugo Capeto, não havia
seiscentos e vinte e três bilhões de príncipes da casa
real. “É que a fé diminuiu”, disse o doutor da Sorbona.

Falou-se muito de Tebas das cem portas e do milhão de soldados que
saía por essas portas, com vinte mil carros de guerra. — Apertem,
apertem – dizia o senhor André. – Suspeito, desde que comecei
a ler, que o mesmo gênio que escreveu Gargântua escrevia a História
antigamente.

— Mas afinal – disse-lhe um dos convivas, – Tebas, Mênfis,
Babilônia, Nínive, Tróia, Selêucia, eram grandes
cidades e já não existem.

— Lá isso é verdade – respondeu o secretário
do senhor príncipe Galitzin, – mas Moscou, Constantinopla, Londres,
Paris, Amsterdã, Lião, que vale mais que Tróia, todas
as cidades da França, da Alemanha, da Espanha e do Norte, eram então
desertos.

O capitão suíço, homem muito instruído, nos
confessou que quando os seus antepassados deixaram as montanhas e precipícios
natais, para apoderar-se, como era justo, de uma região mais agradável,
César, que viu com os seus próprios olhos o desfile desses emigrantes,
calculou-os em trezentos e sessenta e oito mil, contando os velhos, as mulheres
e as crianças. Hoje, só o Cantão de Berna possui esse
número de habitantes: não é nem metade da Suíça,
e eu posso assegurar que os treze cantões contam além de setecentas
e vinte mil almas, computando os nativos que trabalham ou negociam em país
estrangeiro. Depois disso, senhores sábios, façam cálculos
e sistemas; serão tão falsos uns quanto os outros.

Em seguida, procurou-se saber se os burgueses de Roma, no tempo dos Césares,
eram mais ricos que os burgueses de Paris, no tempo do senhor Silhouette.

— Ah! isto é comigo – disse o senhor André. –
Fui por muito tempo o homem dos quarenta escudos; quero crer que os cidadãos
romanos possuíam mais. Esses ilustres ladrões de estrada tinham
pilhado os mais belos países da Ásia, da África e da
Europa. Viviam esplendidamente do fruto de suas rapinas; mas, em todo caso,
havia miseráveis em Roma. E estou persuadido de que, entre esses vencedores
do mundo, havia muita gente reduzida a quarenta escudos de renda, como eu.

— Não sabe o senhor – disse-lhe um sábio da Academia
das Inscrições e Belas Letras – que Lúculo gastava,
em cada ceia que dava no salão de Apolo, trinta e nove mil trezentas
e setenta e duas libras e treze soldos da nossa moeda corrente? Mas que Ático,
o célebre epicurista Ático, não despendia por mês,
para a sua mesa, além de duzentas e trinta e cinco libras?

— Se assim é – disse eu, – era digno de presidir
a confraria da sovinice, estabelecida há pouco na Itália. Li
como o senhor, em Florus, essa incrível anedota; mas com certeza Florus
nunca havia ceado em casa de Ático, ou o seu texto foi corrompido,
como tantos outros, pelos copistas. Jamais Florus me fará acreditar
que o amigo de César e de Pompeu, de Cícero e de Antônio,
que muitas vezes comiam na sua casa, se arranjasse com pouco menos de dez
luises de ouro por mês.

E eis justamente como se escreve a História.

A senhora André, tomando a palavra, disse ao sábio que, se
este lhe orçasse a mesa por dez vezes mais, muito grata lhe ficaria.

Estou certo de que aquele serão do senhor André bem valia
um mês de Ático; e as damas não acreditavam que as ceias
de Roma fossem mais agradáveis que as de Paris. A conversação
foi muito divertida, embora um pouco erudita. Não se falou nem das
modas novas, nem dos ridículos alheios, nem do escândalo do dia.

A questão do luxo foi examinada a fundo. Tratava-se de esclarecer
se fora o luxo que havia destruído o império romano, e ficou
provado que os dois impérios do Ocidente e do Oriente só foram
destruídos pela controvérsia e pelos monges. Com efeito, quando
Alarico tomou Roma, só se ocupavam de disputas teológicas; e,
quando Maomé II tomou Constantinopla, os monges muito mais defendiam
a eternidade da luz do Tabor, que viam no umbigo, do que a cidade contra os
turcos.

Um dos nossos sábios fez uma reflexão que me impressionou
bastante: é que esses dois grandes impérios foram aniquilados
e as obras de Virgílio, Horácio e Ovídio subsistem.

Do século de Augusto para o de Luis XIV não foi mais que um
salto. Uma dama indagou, com muito espírito, por que já não
se escreviam hoje obras de gênio.

O senhor André respondeu que era porque já as haviam escrito
no século passado. Essa idéia era fina, e no entanto verdadeira;
foi devidamente estudada. Em seguida tombaram de rijo sobre um escocês
que se afoitara a dar regras de gosto e a criticar os mais admiráveis
trechos de Racine, sem saber francês. (6) Trataram ainda mais severamente
a um italiano, chamado Denina, que denegriu, sem o compreender o Espírito
das Leis, e que principalmente censurara o que mais se estima nessa obra.

Fez isso lembrar o afetado desprezo que Boileau dedicava a Tasso. Um dos
convivas afirmou que Tasso, com todos os seus defeitos, estava tão
acima de Homero, quanto Montesquieu, com os seus defeitos ainda maiores, estava
acima da moxinifada de Grotius. Protestaram contra essas críticas ditadas
pelo ódio nacional e o preconceito. O signor Denina foi tratado como
merecia, e como o são os pedantes pelas pessoas de espírito.

Observaram com finura que a maioria das obras literárias do século
atual, bem como as conversações, são dedicadas ao exame
das obras-primas do século passado. O nosso mérito consiste
em discutir o seu. Somos como filhos deserdados que fazem o cômputo
dos bens de seus pais. Confessou-se que a filosofia fizera grandes progressos,
mas que a língua e o estilo se haviam corrompido um pouco.

É sorte de todas as conversações passar de um assunto
a outro. Todos esses objetos de curiosidade, de ciência e de gosto logo
desapareceram diante do grande espetáculo que a imperatriz da Rússia
e o rei da Polônia davam ao mundo. Acabavam de reerguer a humanidade
aniquilada e de estabelecer a liberdade de consciência numa parte da
terra muito mais vasta do que jamais o foi o império romano. Esse serviço
prestado ao gênero humano, esse exemplo dado a tantas Cortes que se
julgam políticas, foi celebrado como merecia.

Bebeu-se à saúde da imperatriz, do rei filósofo e do
primaz filósofo, desejando-lhes muitos imitadores. Até o doutor
da Sorbona os admirou, pois há algumas pessoas de bom-senso naquele
corpo, como houve outrora gente de espírito entre os beócios.

O secretário russo nos espantou com a narrativa de todos os grandes
estabelecimentos que se faziam na Rússia. Perguntaram por que se gostava
mais de ler a história de Carlos XII, que passara a vida a destruir,
do que a de Pedro o Grande, que consumira a sua a criar. Concluímos
que a fraqueza e a frivolidade são causa dessa preferência; que
Carlos XII foi o D. Quixote do Norte, como Pedro foi o Sólon; que os
espíritos superficiais preferem o heroísmo extravagante aos
grandes projetos de um legislador; que os pormenores da fundação
de uma cidade lhes agradam menos do que a temeridade de um homem que enfrenta
dez mil turcos, apenas com os seus serviçais; e que enfim a maioria
dos leitores gosta mais de se divertir do que instruir-se. Daí vem
que há cem mulheres que lêem As Mil e uma Noites contra uma que
lê dois capítulos de Locke.

Do que não se falou naquela ceia, de que por muito tempo hei de lembrar-me!
Afinal também se disse algo dos atores e atrizes, assunto eterno das
conversações de mesa em Versalhes e Paris. Conveio-se em que
um bom declamador era tão raro como um bom poeta. A ceia acabou por
uma bela canção que um dos convivas fez para as damas. Quanto
a mim, confesso que o banquete de Platão não me causaria mais
prazer do que o do senhor e o da senhora André.

Os nossos petimetres e sécias sem dúvida se aborreceriam ali;
pretendem eles ser a boa companhia; mas o senhor André e eu jamais
coamos com essa boa companhia.

NOTAS

(1) – Madame de Maintenon, que era em tudo um espírito muito
arejado, exceto nos assuntos em que consultava o finório e chicaneiro
padre Gobelin, seu confessor, Madame de Maintenon, dizia eu, faz em uma de
suas cartas o cômputo das despesas de seu irmão, mais a sua cunhada,
pelo ano de 1880. 0 casal alugava uma casa confortável; os criados
eram em número de dez; tinham quatro cavalos e dois cocheiros, um bom
almoço todos os dias. Madame de Maintenon avalia o total em nove mil
francos por ano, e acrescenta três mil libras para o jogo, o teatro,
as fantasias e magnificências do casal.

Seria agora preciso mais de quarenta mil libras para levar tal vida em Paris;
bastariam seis mil no tempo de Henrique IV. Esse exemplo prova que o bom do
velho não dizia nenhum disparate.

(2) – Baseado nos memoriais dos intendentes, em fins do século
XVII, em combinação com o censo por domicílio, efetuado
em 1753 por ordem do senhor conde de Argenson, e sobretudo com a obra bastante
exata do senhor de Messance, feita sob as vistas do senhor intendente de La
Michaudière, um dos homens mais esclarecidos do seu tempo.

(3) – Fiz com que um sábio de quarenta escudos me explicasse
tais palavras, que muito me divertiram.

(4) – Caso semelhante sucedeu na província onde habito, sendo
o fiscal do domínio obrigado a restituir; mas não foi punido.

(5) – O Jesuíta Sanadon pôs adsunt por adflent. Pretende
um amador de Horácio que foi por isso que expulsaram os jesuítas.

(6) – Esse senhor Home, árbitro escocês, ensina como
se deve fazer falar com espírito os heróis de uma tragédia;
e eis aqui um notável exemplo que extrai da tragédia de Henrique
IV, do divino Shakespeare. Assim introduz o divino Shakespeare a Milorde Falstaff,
que acaba de prender o cavaleiro Jean Coleville. e o apresenta ao rei:

“Sire, ei-lo, eu vo-lo entrego; suplico a Vossa Graça mandardes
registrar este feito d’armas entre os outros desta jornada, ou, por Deus,
eu o mandarei pôr numa balada, com o meu retrato a frente; verão
Coleville a beijar-me os pés. Eis o que farei, se não tornardes
a minha glória tão brilhante como uma dourada peça de
dois soldos; e então me vereis, no claro céu da fama. empanar
vosso esplendor, como a luz cheia apaga os carvões extintos do elemento
do ar, que não aparecem em torno dela senão como cabeças
de alfinete”. E esse absurdo e abominável mistifório,
tão freqüente no divino Shakespeare, que o senhor Jean Home propõe
como modelo do bom gosto e do espírito na tragédia. Mas o senhor
Home, em compensação, acha a Ifigênia e a Pedra, de Racine,
extremamente ridículas.

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