O Coruja – Aluísio de Azevedo




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I

II

III

 

IV

V

VI

 

 O Coruja – Aluísio de Azevedo

I

Quando, em uma das pequenas cidades de Minas, faleceu a viúva do obscuro
e já então esquecido procurador Miranda, o pequenito André, único fruto deste
extinto casal, tinha apenas quatro anos de idade e ficaria totalmente ao desamparo,
se o pároco da freguesia, o Sr. padre João Estêvão, não o tomasse por sua
conta e não carregasse logo com ele para casa.

Esta bonita ação do Sr. vigário levantou entre as suas ovelhas um piedoso
coro de louvores, e todas elas metendo até as menos chegadas ao padre, estavam
de acordo em profetizar ao bem-aventurado órfão um invejável futuro de doçuras
e regalias, como se ele fora recolhido pelo próprio Deus e tivesse por si
a paternidade de toda a corte celeste.

A Joana das Palmeirinhas, essa então, que era muito metediça em coisas de
igreja, chegava a enxergar no fato intenções secretas de alguma divindade
protetora do lugar e, quando lhe queriam falar nisso, benzia-se precatadamente
e pedia por amor de Cristo que “não mexessem muito no milagre”

É melhor deixar! segredava ela. – É melhor deixar que o santinho trabalhe
a seu gosto, porque ninguém como ele sabe o que lhe compete fazer!

Mas o “pequeno do padre” como desdaí lhe chamaram, foi aos poucos descaindo
das graças do inconstante rebanho, pelo simples fato de ser a criança menos
comunicativa e mais embesourada de que havia notícia por aquelas alturas.
O próprio Sr. vigário não morria de amores por ele, e até se amofinava de
vê-lo passar todo o santo dia a olhar para os pés, numa taciturnidade quase
irracional.

– Ora, que mono fora ele descobrir!… dizia de si para si, a contemplar
o rapaz por cima dos óculos. – Aquela lesma não havia de vir a prestar nem
para lhe limpar as galhetas!

O pequeno era de fato muito triste e muito calado. Em casa do reverendo não
se lhe ouvia a voz durante semanas inteiras; e também quase nunca chorava,
e ninguém se poderia gabar de tê-lo visto sorrir. Se o vestiam e o levavam
a espairecer um bocado à porta da rua, deixava-se o mono ficar no lugar em
que o largavam; o rosto carrancudo, o queixo enterrado entre as clavículas,
e seria capaz de passar assim o resto da vida se não tomassem a resolução
de vir buscá-lo.

A criada, uma velha muito devota, mas também muito pouco amiga de crianças,
só olhava para ele pelo cantinho dos olhos e, sempre que olhava, fazia depois
uma careta de nojo. “Apre! Só mesmo a bondade do Sr. vigário podia suportar
em casa semelhante lorpa!”

E cada vez detestava mais o pequeno; afinal era já um ódio violento, uma
antipatia especial, que se manifestava a todo o instante por palavras e obras
de igual dureza. E a graça é que jamais nenhuma destas vinha só; era chegar
a descompostura e aí estava já o repelão, em duas, três, quatro sacudidelas,
conforme fosse o tamanho da frase.

O André deixava-se sacudir à vontade da criada, sem o menor gesto de oposição
ou de contrariedade.

– Ah! Só mesmo a paciência do Sr. vigário!

Apesar, porém, de tanta paciência, o Sr. vigário, se não mostrava arrependido
daquela caridade, era simplesmente porque esse rasgo generoso muito contribuíra
para a boa reputação que ele gozava, não só aos olhos da paróquia inteira,
como também aos dos seus superiores, a cujos ouvidos chegara a notícia do
fato. Mas, no íntimo, abominava o pupilo; mil vezes preferia não o ter a seu
lado; suportava-o, sabia Deus como! como quem suporta uma obrigação inevitável
e aborrecida.

Ah! não havia dúvida que o pequeno era com efeito muito embirantezinho. Sobre
ser uma criança feia, progressivamente moleirona e triste, mostrava grande
dificuldade para aprender as coisas mais simples. Não era com duas razões,
nem três murros, que o tutor conseguia meter-lhe qualquer palavra na cabeça.

O pobre velho desesperava-se, ficava trêmulo de raiva, defronte de semelhante
estupidez. E, como não tivesse jeito para ensinar, como lhe faltasse a feminil
delicadeza com que se abrem, sem machucar, as tenras pétalas dessas pequeninas
almas em botão, recorria aos berros, e, vermelho, com os olhos congestionados,
a respiração convulsa, acabava sempre empurrando de si os livros e o discípulo,
que iam simultaneamente rolar a dois ou três passos de distancia.

– Aquele maldito estúpido não servia senão para o encher de bílis! O melhor
seria metê-lo num colégio, como interno… Era mais um sacrifício – Vá! mas,
com a breca! ao menos ficava livre dele!

Oh! o bom homem já não podia agüentar ao seu lado aquela amaldiçoada criança.
Às vezes, ao vê-la tão casmurra, tão feia, com o olhar tão insociável e tão
ferrado a um ponto, tinha ímpetos de torcê-lo nas mãos, como quem torce um
pano molhado.

Nunca lhe descobria a mais ligeira revelação de um desejo. À mesa comia tudo
que lhe punha no prato, sem nunca deixar ou pedir mais. Se o mandavam recolher
à cama, fosse a que hora fosse, deitava-se incontinenti; se lhe dissessem
“Dorme!” ele dormia ou parecia dormir. “Acorda! Levanta-te !” ele se levantava
logo, sem um protesto, como se estivesse à espera daquela ordem.

Qualquer tentativa de conversa com ele era inútil. André só respondia por
monossílabos, no mais das vezes incompreensíveis. Nunca fazia a ninguém interrogação
de espécie alguma, e, certo dia perguntando-lhe o padre se ele o estimava,
o menino sacudiu com a cabeça, negativamente.

– E que tal?… considerou o vigário; – olha que entranhas tem o maroto!…

E segurando-lhe a cabeça para o fitar de frente:

– Com que, não gostas de mim, hein?

– Não.

– Não és agradecido ao bem que te tenho feito?

– Sou.

– Mas não me estimas?

– Não.

– E, se fores para o colégio, não terás saudades minhas?

– Não.

– De quem então sentirás?

– Não sei.

– De ninguém?

– Sim.

– Pois então é melhor mesmo que te vás embora, e melhor será que nunca mais
me apareças! Calculo que bom ingrato não se está preparando aí! Vai! Vai,
demônio! e que Deus te proteja contra os teus próprios instintos!

Entretanto, à noite, o padre ficou muito admirado, quando, ao entrar no quarto
do órfão que dormia, o viu agitar-se na cama e dizer, abraçando-se aos travesseiros
e chorando: “Mamãe! minha querida mamãe!”

– São partes, Sr. vigário, são partes deste sonso!… explicou a criada,
trejeitando com arrelia.

II

André seguiu para o colégio num princípio de mês. Veio buscá-lo à casa do
tutor um homem idoso, de cabelos curtos e barbas muito longas, o qual parecia
estar sempre a comer alguma coisa, porque, nem só mexia com os queixos, como
lambia os beiços de vez em quando.

Foram chamá-lo à cama às cinco da manhã. Ele acordou prontamente, e como
já sabia de véspera que tinha de partir, vestiu-se logo com um fato novo que,
para esse dia, o padre lhe mandara armar de uma batina velha. Deram-lhe a
sua tigela de café com leite e o seu pão de milho, o que ele ingeriu em silêncio;
e, depois de ouvir ainda alguns conselhos do tutor, beijou-lhe a mão, recebeu
no boné, uma palmada da criada e saiu de casa, sem voltar, sequer, o rosto
para trás.

O das barbas longas havia já tomado conta da pequena bagagem e esperava por
ele, na rua, dentro do trole. André subiu para a almofada e deixou-se levar.

Em caminho o companheiro, para enganar a monotonia da viagem, tentou chamá-lo
à fala:

– Então o amiguinho vai contente para os estudos?

– Sim, disse André, sem se dar ao trabalho de olhar para o seu interlocutor.
E este, supondo que o boné do menino, pelo muito enterrado que lhe ficara
nas orelhas com a palmada da criada, fosse a causa dessa descortesia, apressou-se
a suspender-lho e acrescentou:

– É a primeira vez que entra para o colégio ou esteve noutro?

– É.

– Ah! É a primeira vez?

– Sim.

– E morou sempre com o reverendo?

– Não.

– Ele é seu parente?

– Não.

– Tutor, talvez…

– É.

– Como se chamava seu pai?

– João.

– E sua mãe?

– Emília.

– Ainda se lembra deles?

– Sim.

E, depois de mais alguns esforços inúteis para conversação, o homem das barbas
convenceu-se de que tudo era baldado e, para fazer alguma coisa, pôs-se a
considerar a estranha figurinha que levava a seu lado.

André representava então nos seus dez anos o espécime mais perfeito de um
menino desengraçado.

Era pequeno, grosso, muito cabeçudo, braços e pernas curtas, mãos vermelhas
e polposas, tez morena e áspera, olhos sumidos de uma cor duvidosa e fusca,
cabelo duro e tão abundante, que mais parecia um boné russo do que uma cabeleira.

Em todo ele nada havia que não fosse vulgar. A expressão predominante em
sua fisionomia era desconfiança, nas seus gestos retraídos, na sua estranha
maneira de esconder o rosto e jogar com os ombros, quando andava, transparecia
alguma coisa de um urso velho e mal domesticado.

Não obstante, quem lhe surpreendesse o olhar em certas ocasiões descobriria
aí um inesperado brilho de inefável doçura, onde a resignação e o sofrimento
transluziam, como a luz do sol por entre um nevoeiro espesso.

Chegou ao colégio banhado de suor dentro da sua terrível roupa de lustrina
preta. O empregado de barbas longas levou-o à presença do diretor, que já
esperava por ele, e disse apresentando-o:

– Cá está o pequeno do padre.

– Ah! resmungou o outro, largando o trabalho que tinha em mão. – O pequeno
do padre Estêvão. É mais um aluno que mal dará para o que há de comer! Quero
saber se isto aqui é asilo de meninos desvalidos!… Uma vez que o tomaram
à sua conta, era pagarem-lhe a pensão inteira e deixarem-se de pedir abatimentos,
porque ninguém está disposto a suportar de graça os filhos alheios!

– Pois o padre Estêvão não paga a pensão inteira? perguntou o barbadão a
mastigar em seco furiosamente e a lamber os beiços.

– Qual! Veio-me aqui com uma choradeira de nossa morte. E, “porque seria
uma obra de caridade, e, porque já tinha gasto mundos e fundos com o pequeno”,
enfim foi tal a lamúria que não tive outro remédio senão reduzir a pensão
pela metade!

Os das barbas fez então várias considerações sobre o fato, elogiou o coração
do Dr. Mosquito (era assim que se chamava o diretor) e ia a sair, quando este
lhe recomendou que se não descuidasse da cobrança e empregasse esforços para
receber dinheiro.

– Veja, veja, Salustiano, se arranja alguma coisa, que estou cheio de compromissos!

E o Dr. Mosquito, voltando ao seu trabalho, exclamou sem mexer com os olhos:

– Aproxime-se!

André encaminhou-se para ele, de cabeça baixa.

– Como se chama?

– André.

– De quê?

– Miranda.

– Só?

– De Melo.

– André Miranda de Melo… repetiu o diretor, indo a escrever o nome em um
livro que acabava de tirar da gaveta.

– E Costa, acrescentou o menino.

– Então por que não disse logo de uma vez?

André não respondeu.

– Sua idade?

– Dez.

– Dez quê, menino?

– Anos.

– Hein?

– Dez anos.

– An!

E, enquanto escrevia:

– Já sabe quais são as aulas que vai cursar?

– Já.

– Já, sim, senhor, também se diz!

– Diz-se.

– Como?

– Diz-se, sim, senhor.

– Ora bem! concluiu o Mosquito, afastando com a mão o paletó para coçar as
costelas. E, depois de uma careta que patenteava a má impressão deixada pelo
seu novo aluno, resmungou com um bocejo:

– Bem! Sente-se; espere que venham buscá-lo.

– Onde? perguntou André, a olhar para os lados, sem descobrir assento.

– Ali, menino, oh!

E o diretor suspendeu com impaciência a pena do papel, para indicar uma das
duas portas que havia do lado oposto do escritório. Em seguida mergulhou outra
vez no seu trabalho, disposto a não interrompê-lo de novo:

André foi abrir uma das portas e disse lentamente:

– É um armário.

– A outra, a outra, menino! gritou o Mosquito, sem se voltar.

André foi então à outra porta, abriu-a e entrou no quarto próximo.

Era uma saleta comprida, com duas janelas de vidraça> que se achavam fechadas.
Do lado contrário às janelas havia uma grande estante, onde se viam inúmeros
objetos adequados à instrução primária dos rapazes.

O menino foi sentar-se em um canapé que encontrou e dispôs-se a esperar.

Foi-se meia hora e ninguém apareceu. Seriam já quatro da tarde e, como André
ainda estava só com a sua refeição da manhã, principiou a sentir-se muito
mal do estômago.

Esgotada outra meia hora, ergueu-se e foi, para se distrair, contemplar os
objetos da estante. Levou a olhá-los longo tempo, sem compreender o que tinha
defronte da vista. Depois, espreguiçou-se e voltou ao canapé.

Mais outra meia hora decorreu, sem que o viessem buscar.

Duas vezes chegou à porta por onde entrara na saleta e, como via sempre o
escritório deserto, tornava ao seu banco da paciência. E, no entanto, o apetite
crescia-lhe por dentro de um modo insuportável e o pobre André principiava
a temer que o deixassem ficar ali eternamente.

Pouco depois de entrar para a saleta, um forte rumor de vozes e passos repetidos
lhe fez compreender que alguma aula havia terminado; daí a coisa de cinqüenta
minutos, o toque de uma sineta lhe trouxe à idéia o jantar, e ele verificou
que se não enganara no seu raciocínio com o barulho de louças e talheres que
faziam logo em seguida. Depois, compreendeu que era chegada a hora do tal
recreio porque ouvia uma formidável vozeria de crianças que desciam para a
chácara.

E nada de virem ao seu encontro.

– Que maçada! pensava ele, a segurar o estômago com ambas as mãos.

Afinal, a escuridão começou a invadir a saleta. Havia cessado já o barulho
dos meninos e agora ouviam-se apenas de vez em quando alguns passos destacados
nos próximos aposentos.

Em tais ocasiões, o pequeno do padre corria à porta do escritório e espreitava.

Ninguém.

Já era noite completa, quando um entorpecimento irresistível se apoderou
dele. O pobrezito vergou-se sobre as costas do canapé, estendeu as suas pernitas
curtas e adormeceu.

Dormindo conseguiu o que não fizera acordado: seu roncos foram ouvidos pelo
inspetor do colégio, e, daí a pouco André, sem dar ainda acordo de si, era
conduzido à mesa do refeitório, onde ia servir-se o chá.

Seu tipo, já de natural estranho, agora parecia fantástico sob a impressão
do estremunhamento; e os estudantes, que o observavam em silêncio, abriram
todos a rir, quando viram o inesperado colega atirar-se ao prato de pão com
uma voracidade canina.

Mas André pouco se incomodou com isso e continuou a comer sofregamente, no
meio das gargalhadas dos rapazes e dos gritos do inspetor que, sem ele próprio
conter o riso, procurava chamá-los a ordem.

Por estes fatos apenas fez-se notar a sua entrada no colégio, visto que ele,
depois da ceia, recolheu-se ao dormitório e acordou no dia seguinte, ao primeiro
toque da sineta, sem ter trocado meia palavra com um só de seus companheiros.

Não procuravam as suas relações, nem ele as de ninguém, e, apesar das vaias
e das repetidas pilhérias dos colegas, teria passado tranqüilamente os primeiros
dias da sua nova existência, se um incidente desagradável não o viesse perturbar.

Havia no colégio um rapaz, que exercia sobre outros certa superioridade,
nem só porque era dos mais velhos, como pelo seu gênio brigador e arrogante.
Chamava-se Fonseca e os companheiros o temiam a ponto de nem se animarem a
fazer contra ele qualquer queixa ao diretor.

André atravessava numa ocasião o pátio do recreio, quando ouviu gritar atrás
de si ‘Ó Coruja!”

Não fez caso. Estava já habituado a ser escarnecido, e tinha por costume
deixar que a zombaria o perseguisse à vontade, até que ela cansasse e por
si mesma se retraísse.

Mas o Fonseca, vendo que não conseguira nada com a palavra, correu na pista
de André e ferrou-lhe um pontapé por detrás.

O pequeno voltou-se e arremeteu com tal fúria contra o agressor, que o lançou
por terra. O Fonseca pretendeu reagir, mas o outro o segurou entre as pernas
e os braços, tirando-lhe toda a ação do corpo.

Veio logo o inspetor, separou-os e, tendo ouvido as razões do Fonseca e dos
outros meninos que presenciaram o fato, conduziu André para um quarto escuro,
no qual teve o pequeno esse dia de passar todos os intervalos das aulas.

Sofreu a castigo e as acusações dos companheiros, sem o menor protesto e,
quando se viu em liberdade, não mostrou por pessoa alguma o mais ligeiro ressentimento.

Depois deste fato, os colegas deram todavia em olhá-lo com certo respeito,
e só pelas costas o ridicularizavam. Às vezes, do fundo de um corredor ou
do meio de grupo, ouvia gritar em voz disfarçada:

– Olha o filhote do padre Olha o Coruja!

Ele, porém, fingia não dar por isso e afastava-se em silencio.

Quanto ao mais, raramente comparecia ao recreio e apresentava-se nas aulas
sempre com a lição na ponta da língua.

No fim de pouco tempo, os próprios mestres participavam do vago respeito
que ele impunha a todos; posto que estivessem bem longe de simpatizar com
desgracioso pequeno, apreciavam-lhe a precoce austeridade de costumes e o
seu admirável esforço pelo trabalho. Uma das particularidades de sua conduta,
que mais impressionava aos professores, era a de que, apesar constante mal
que lhe desejavam fazer os colegas, jamais se queixava de nenhum, e tratava-os
a todos mesma forma que tratava ao diretor e aos lentes isto com a mesma sobriedade
de palavras e a mesma frieza de gestos.

Em geral, era por ocasião da mesa que as indiretas dos seus condiscípulos
mais se assanhavam contra O Coruja, como já todos lhe chamavam, não tinha
graça nem distinção no comer; comia muito e sofregamente com o rosto tão chegado
ao prato que parecia que apanhar os bocados com os dentes.

Coitado! Além do rico apetite de que dispunha, não recebia, à semelhança
dos outros meninos, presentes de doce, requeijão e frutas que lhes mandavam
competentes famílias; não andava a paparicar durante dia como os outros; de
sorte que, à hora oficial da comida, devorava tudo que lhe punham no prato,
sem torcer o nariz a coisa alguma.

Um dia, porque ele, depois de comer ao jantar todo o seu pão, pediu que lhe
dessem outro, a mesa inteira rebentou em gargalhadas; mas o Coruja não se
alterou e fez questão de que daí em diante lhe depusessemlado do prato dois
pães em vez de um!

– Muito bem! considerou o diretor.- É dos tais que paga por meio e come por
dois! Seja tudo por amor de Deus!

III

Assim ia vivendo o Coruja, desestimado e desprotegido no colégio, e corno
que formando na sua esquisitice uma ilha completamente isolada dos bons e
dos maus exemplos, que em torno dele se agitavam.

Dir-se-ia que nascera encascado em grossa armadura de indiferença, contra
a qual se despedaçavam as várias manifestações do meio em que vivia, sem que
elas jamais conseguissem lhe corromper o ânimo. A tudo e a todas parecia estranho,
corno se naquele coração, ainda tão novo, já não houvesse unia só fibra intacta.

E, todavia, nenhum dos companheiros seria capaz de maltratar em presença
dele um dos mais pequenos do colégio, sem que o esquisitão tomasse imediatamente
a defesa do mais fraco. Não consentia igualmente que fizessem mal aos animais,
e muita vez o encontraram acocorado sobre a terra protegendo um mesquinho
réptil, ou lhe enxergavam vivos sinais de ameaças em favor de alguma pobre
borboleta perseguida pelos estudantes.

Na sua mística afeição aos fracos e indefesos, chegava a acarinhar as árvores
e plantas do jardim e sentia-se vê-las mal amparadas na hora do recreio. Não
reconhecia em ninguém o direito de separar uma flor da haste em que nascera
ou encarcerar na gaiola um mísero passarinho.

E tudo isso era feto e praticado naturalmente, sem as tredas aparências de
quem deseja constituir-se em modelo de bondade. Tanto assim, que tais coisas
só foram deveras percebidas por um antigo criado da casa, o Militão, a quem
os meninos alcunharam por pilhérias de “Dr. Caixa-dóculos”.

O Caixa-dóculos era nada mais do que um triste velhote de cinqüenta a sessenta
anos, vindo em pequeno das ilhas e que aqui percorrera a tortuosa escala das
ocupações sem futuro. Fora porteiro de diversas ordens religiosas, moço de
câmara a bordo de vários navios, depois permanente de polícia, em seguida
sacristão e criado de um cônego, depois moço de hotel, bilheteiro num teatro,
copeiro em casa de um titular e afinal, para descansar, criado no colégio
em que se achava o Coruja.

De tal peregrinação apenas lhe ficara um desgosto surdo pela existência,
um vago e triste malquerer pelos fortes e pelos vitoriosos.

E foi por isso que ele simpatizou com o Coruja; porque o supunha ainda mais
desprotegido e ainda mais desarmado do que ele próprio.

Era, enfim, o único em quem o pequeno do padre, durante o seu primeiro ano
de colegial, nem sempre encontrara o desprezo e a má vontade.

Vindas as férias, o Revmo. João Estêvão, a pretexto de que o pupilo lucraria
mais ficando no colégio do que indo para casa, escreveu a esse respeito ao
Dr. Mosquito, e bem contra a vontade deste, o pequeno por lá ficou.

André recebeu a notícia, como se já a esperasse, e viu, sem o menor sintoma
de desgosto, partirem, pouco a pouco, todos os seus companheiros. Destes,
a alguns vinham buscar os próprios pais e as próprias mães: e, ali, entre
as frias paredes do internato, ouviam-se durante muitos dias, quentes palavras
de ternura, e sentiam-se estalar beijos de amor, por entre lágrimas de saudade.

Só ele, o Coruja, não teve nada disso.

Viu despovoar-se aos poucos o colégio; retirarem-se os professores, os empregados,
e afinal o último colega que restava. E então julgou-se de todos só e abandonado
como uma pobre andorinha que não pudesse embandar-se à revoada das companheiras.

Só, completamente só.

É verdade que o diretor ocupava o segundo andar com a família, isto é, com
a mulher e duas filhas ainda pequenas; mas as férias aproveitavam eles para
os seus passeios, e além disso, o Coruja só poderia procurá-los à hora das
refeições. Embaixo ficaram apenas o hortelão e o Caixa-dóculos.

André pediu licença ao diretor para tomar parte no serviço da horta e obteve-a
prontamente.

Com que prazer não fazia ele esse trabalho todas as manhãs! Ainda o sol não
estava fora de todo e já o Coruja andava pela chácara, descalço, em mangas
de camisa, calças arregaçadas, a regar as plantas e a remexer a terra. O hortelão,
vendo o gosto que o ajudante tomava pelo serviço, aproveitava-o quanto podia
e limitava-se a dirigi-lo.

– Ó Coruja, gritava-lhe ele, já em tom de ordem, a perna trançada e o cachimbo
no canto da boca: – apara-me aí essa grama! Ou então: Remexe-me melhor aquele
canteiro e borrifa-me um pouco mais a alface, que está a me parecer que levou
pouca água!

As horas entre o almoço e o jantar dedicou-as o Coruja aos seus estudos,
e às quatro da tarde descia de novo à chácara, onde encontrava invariavelmente
o Caixa-dóculos às voltas com uma pobre flauta, dentro da qual soprava ele
o velho repertório das músicas de seu tempo.

Foi essa miserável flauta que acordou no coração de André o gosto pela música.
Caixa-dóculos deu por isso, arranjou um outro instrumento e propôs-lhe ministrar
algumas lições ao pequeno. Esse aceitou com um reconhecimento muito digno
de tão boa vontade, mas sem dúvida de melhor mestre, porque manda a verdade
confessar que aquele não ofuscava a glória de nenhum dos inúmeros flautistas
que ocupam a superfície da terra, contando mesmo os maus, os péssimos e os
insuportáveis.

Mas o caso é que, depois disso, eles lá passavam as últimas horas da tarde,
a duelarem-se furiosamente com as notas mais temíveis que um instrumento de
sopro pode dardejar contra a paciência humana; e terminada a luta, recolhia-se
André ao dormitório e pegava no sono até à madrugada seguinte.

As férias não lhe corriam por conseguinte tão contrárias, como era de supor,
e só dois desgostos o atormentavam. Primeiro, não poder comprar uma flauta
nova e boa; segundo, ver sempre fechada a biblioteca do Colégio.

Que curiosidade lhe fazia aquela biblioteca!

Ele a rondava como um gato que fareja o guarda-comida; parecia sentir de
fora o cheiro do que havia de mais apetitoso naquelas estantes, e, por seu
maior tormento, bastava trepar-se a uma cadeira e espiar por cima da porta,
para devassar perfeitamente a biblioteca.

Um suplício! Vinham-lhe até ímpetos de arrombar a fechadura; e, como consolação,
passava horas esquecidas sobre a cadeira, na pontinha dos pés, a olhar de
longe para os livros, procurando distinguir e ler o que diziam eles nas letras
de ouro que expunham nas lombadas.

Alguns, então, lhe produziam verdadeiras angústias, principalmente os grandes,
os de lombo muito largo, que aí estavam de costas, soberbos, como bojudos
sábios, concentrados e adormecidos na sua ciência.

O Coruja tivera sempre um pendor muito particular por tudo aquilo que lhe
cheirava a alfarrábio e línguas mortas. Adorava os livros velhos, em cuja
leitura encontrasse dificuldades a vencer; gostava de cansar a inteligência
na procura de explicação de qualquer ponto duvidoso ou de qualquer fosse sujeita
a várias interpretações.

Já desde a casa do padre Estêvão que semelhante tendência se havia declarado
nele. É que seu gênio retraído e seco dava-se maravilhosamente com esses amigos
submissos e generosos – os livros; esses faladores discretos, que podemos
interromper à vontade e com os quais nos é permitido conversar dias inteiros,
sem termos aliás obrigação de dar uma palavra.

Ora, para o André, que morria de amores pelo silêncio, isto devia ser o ideal
das palestras. Além do que, à sua morosa e arrastada compreensão só o livro
podia convir. O professor sempre se impacienta, quando tem de explicar qualquer
coisa mais de uma vez; o livro não, o livro exige apenas a boa vontade de
quem estuda, e no Coruja a boa vontade era justamente a qualidade mais perfeita
e mais forte.

Um dia, o diretor, descendo inesperadamente ao primeiro andar, encontrou-o
tão embebido a espiar para dentro da biblioteca que se chegou a ele sem ser
sentido e deu-lhe uma ligeira palmada no lugar que encontrou mais à mão.

O Coruja, trepado às costas de uma cadeira e agarrado à bandeira da porta,
virou-se muito vermelho e confuso, como se o tivessem surpreendido a cometer
um crime.

– Que faz o senhor aí, seu Miranda?

– Olhava.

– Que olhava o senhor?

– Os livros.

O Dr. Mosquito encarou-o de alto a baixo, e, depois de medir um instante
acrescentou:

– Vá lá acima e diga à mulher que mande as minhas chaves.

André saltou do seu observatório e apressou-se a dar cumprimento às ordens
do diretor.

Este, logo que chegaram as chaves, abriu a biblioteca e entrou. O pequeno,
à porta, invadiu-a com um olhar tão sôfrego e tão significativo, que o Dr.
Mosquito o chamou e perguntou-lhe qual era o livro que tanto o Impressionara.

André coçou a cabeça, hesitando, mas a sua fisionomia encarregou-se de responder,
visto que o diretor, depois de lamentar com um gesto a grande quantidade de
pó encamado sobre os livros, foi à fechadura, separou do molho de chaves a
da biblioteca e disse, passando-lha:

– Durante o resto das férias, fica o senhor encarregado de cuidar destes
livros e de fazer tudo isto arranjado e limpo. Quer?…

André sacudiu a cabeça afirmativamente e apoderou-se da chave com uma tal
convicção, que o diretor não pôde deixar de rir.

Logo que se viu só, tratou de munir-se de um espanador e de um pano molhado,
e, com o auxílio de uma escadinha que havia na biblioteca, principiou a grande
limpeza dos livros.

Não abriu nenhum deles, enquanto não deu por bem terminada a espanação. Metódico,
como era, não gostava de entregar-se a qualquer coisa sem ter de antemão preparado
o terreno para isso.

Oh! Mas quão diferente foi do que esperava a impressão recebida, quando se
dispôs a usufruir do tesouro que lhe estava franqueado.

Não sabia qual dos livros tomar de preferência; não conseguia ler de nenhum
deles mais do que algumas frases soltas e apanhadas ao acaso.

E, toda aquela sabedoria encadernada e silenciosa, toda aquela ciência desconhecida
que ali estava, por tal forma o confundiu e perturbou que, no fim de alguns
segundos de dolorosa hesitação, o Coruja como que sentia libertar-se dos volumes
a alma de cada página para se refugiarem todas dentro da cabeça dele.

Bem penosas foram as suas primeiras horas de biblioteca. O desgraçadinho
quase que se arrependeu de havê-la conquistado com tanto empenho, e chegue
a desejar que, em vez de tamanha fartura de livros, lhe tivessem franqueado
apenas quatro ou cinco.

Mas veio-lhe em socorro uma idéia que, mal surgiu, começou logo por acentuar-se-lhe
no espírito, como uma idéia de salvação.

Era fazer um catálogo da biblioteca.

Esta luminosa idéia só por si o consolou de toda a sua decepção e de todo
o seu vexame. Afigurava-se-lhe que, catalogando todos aqueles livros num só,
vê-los-ia disciplinados e submissos ao seu governo. Entendeu que, por esse
meio, tê-lo-ia a todos debaixo da vista, arregimentados na memória, podendo
evocá-los pelos nomes, cada um por sua vez, como o inspetor do colégio fazia
a chamada dos alunos ao abrir das aulas.

E o catálogo ficou sendo a sua idéia fixa.

Principiou a cuidar dele logo no dia seguinte. Mas, a cada instante, surgiam-lhe
dificuldades: não sabia como dar começo à sua obra, como levá-la a efeito.
Tentou arranjar a coisa alfabeticamente; teve, porém, de abandonar essa idéia,
como inexeqüível; numerou as estantes e experimentou se conseguia algum resultado
por este sistema; foi tudo inútil.

Afinal, depois de muitas tentativas infrutíferas, o acaso, no fim de alguns
dias, veio em seu auxílio, atirando-lhe às mãos o catálogo de uma biblioteca
da província.

Era um folheto pequeno, encadernado e nitidamente impresso.

Coruja abriu-o religiosamente e passou o resto do dia a estudá-lo. Na manhã
seguinte, a sua obra achava-se começada, pela nona ou décima vez, é certo,
mas agora debaixo de auspícios muito mais prometedores.

E em todo o resto das ferias foi o seu tempo sistematicamente dividido entre
o trabalho da horta, o estudo de seus compêndios, as lições do Caixa-dóculos
e a organização do famoso catálogo. Esta, porém, era de todas as suas ocupações
a mais querida e desvelada; o que, entretanto, não impediu que ela ficasse
por acabar depois da reabertura das aulas.

– Fica para mais tarde, pensou o Coruja, cheio de confiança na sua vontade.

É melhor deixar! segredava ela. – É melhor deixar que o santinho trabalhe
a seu gosto, porque ninguém como ele sabe o que lhe compete fazer!

IV

Entre os novos alunos, que entraram no seguinte ano para o colégio do Dr.
Mosquito, vinha um, que se chamava Teobaldo Henrique de Albuquerque. Menino
de doze anos, muito bonito, elegante e criado com mimo.

Falava melhor o inglês e o francês do que a sua própria língua, porque estivera
mais tempo em Londres do que no Brasil.

O tipo desta criança fazia um verdadeiro contraste com o do Coruja. Era débil,
espigado, de uma palidez de mulher; olhos negros, pestanudos, boca fidalga
e desdenhosa, principalmente quando sorria e mostrava a pérola dos dentes.
Todo ele estava a respirar uma educação dispendiosa; sentia-se-lhe o dinheiro
na excelência das roupas, na delicada escolha de perfumes que a família lhe
dava para o cabelo e para o lenço, como em tudo de que se compunha o seu rico
enxoval de pensionista.

Criança como era, já falava de coisas que o outro nem sonhava ainda; tinha
já predileções e esquisitices de gosto; discutia prazeres, criticava mulheres
e zombava dos professores sem que estes aliás se dessem por achados, em razão
dos obséquios pecuniários que o colégio devia ao pai de Teobaldo, o Sr. Barão
do Palmar.

Não obstante, esses mesmos dotes e mais sua estroinice de menino caprichoso,
sua altivez natural e adquirida por educação abriam em torno dele o ódio ou
a inveja da maior parte dos condiscípulos. Logo ao entrar no colégio, fizera
muitos inimigos e, pouco depois, era tido e julgado como o mais embirrante
e o mais insuportável entre todos os alunos do Dr. Mosquito.

Não lhe perdoavam ser ao mesmo tempo tão rico, tão formoso, tão inteligente
e tão gentilmente vadio. Além de tudo isso, como se tanto já não bastava,
havia ainda para o fazer malquisto dos companheiros aquela escandalosa proteção
que lhe votavam os professores, apesar da formidável impertinência do rapaz.

Em verdade a todos falava. Teobaldo com uma sobranceria ofensiva e provocadora.
No seu modo de olhar, no tom da sua voz, no desdém de seus gestos, sentia-se
a uma légua de distância o hábito de mandar e ser obedecido.

Esta constante arrogância, levava ao supremo grau, afastou de junto dele
todos os seus condiscípulos. Mas o orgulhoso não parecia impressionar-se com
o isolamento a que o condenavam as suas maneiras, e, se o sentia, não deixava
transparecer em nenhum dos gestos a menor sombra de desgosto.

Ninguém o queria para amigo.

Um domingo, porém, ao terminar o almoço, ouviu dentre um certo grupo de seus
colegas uma palavra de ofensa, que lhe era dirigida.

Voltou-se e, apertando os olhos com um ar mais insolente que nunca, exclamou
para o grupo:

– Aquele de vocês que me insultou, se não é um covarde, apresente-se! Estou
disposto a dar-lhe na cara!

Ninguém respondeu.

Teobaldo franziu o lábio com tédio e, atirando ao grupo inteiro, por cima
do ombro, um olhar de desprezo, afastou-se. dizendo entredentes:

– Canalha!

Mas, ao chegar pouco depois à chácara, seis meninos dos mais fortes dos que
compunham o grupo, aproximaram-se dele e exigiram que Teobaldo sustentasse
o que havia dito no salão.

Teobaldo virou-lhes as costas e os seis iam precipitar-se sobre ele, quando
o Coruja, que tudo presenciara a certa distância, de um pulo tomou-lhes a
frente e os destroçou a murros.

Acudiu o inspetor, fez cessar a briga e, tomando o Coruja pelo braço, levou-o
à presença do Dr. Mosquito.

Teobaldo acompanhou-o.

Exposto o ocorrido, foi o Coruja interrogado e confessou que era tudo verdade:
“Batera em alguns de seus companheiros”.

– Pois então recolham-no ao quarto do castigo, disse o diretor. Passará aí
o domingo, fazendo considerações sobre o inconveniente das bravatas!

– Perdão! observou Teobaldo; quem tem de sofrer esse castigo sou eu! Fui
o causador único da desordem. Este menino não tem a menor culpa!

E apontou para o Coruja.

– Ó senhores! Pois se eu o vi atracando-se aos outros, como um demônio! exclamou
o inspetor.

– E ele próprio o confessa… acrescentou o diretor. Vamos! Cumpra-se a ordem
que dei!

– Nesse caso eu também serei preso, respondeu Teobaldo.

E tão resolutamente acompanhou o colega, que ninguém o deteve.

Foram recolhidos à mesma prisão, e desta vez, graças à influência de Teobaldo,
o outro, além de não ter de gramar o escuro, recebeu licença para levar consigo
alguns livros e a flauta que lhe emprestara o Caixa-dóculos.

Logo que os dois meninos se acharam a sós, Teobaldo foi ter com o Coruja
e disse, apertando-lhe a mão:

– Obrigado.

André fez um gesto com a cabeça, equivalente a estas palavras: “Não tem que
agradecer, porque o mesmo faria por qualquer criatura”.

Se o senhor fazia parte do grupo que insultei, volveu Teobaldo, peço-lhe
desculpa.

– Não fazia, respondeu o outro, dispondo-se a entregar-se de corpo e alma
à sua ingrata flauta.

Felizmente para o colega, foram interrompidos por uma pancada na porta.

Teobaldo correu a receber quem batia, e soltou logo uma exclamação de prazer:

– Oh! Você, Caetano! Como estão todos lá e casa? Mamãe está melhor? E papai,
papai que faz que não vem me ver, como prometeu?

Caetano, em vez de responder, pousou no chão uma cesta que trazia, e abriu
os braços para o menino, deixa do correr pelo sorriso de seu rosto duas lágrimas
de ternura que se lhe escapavam dos olhos.

Era um homem de meia idade, alto, magro, de cabelos grisalhos, à escovinha,
cara toda raspada; e tão simpático, tão bom de fisionomia, que a gente gostava
dele à primeira vista.

Trajava uma libré cor de rapé, com botões de latão e alamares de veludo preto.

Caetano entrara muito criança para o serviço do avô de Teobaldo, pouco antes
do nascimento do pai deste, nunca mais abandonou essa família, da qual mais
adiante teremos de falar, e por onde se poderão avaliar os laços de velha
amizade que ligavam aquele respeitoso criado ao neto de seu primeiro amo.

Por enquanto diremos apenas que o bom Caetano. viu crescer ao seu lado o
pai de Teobaldo; que o acompanhou tanto nas suas primeiras correrias de rapaz,
como mais tarde nas suas aventuras políticas durante as revoluções de Minas;
e que a intimidade entre esses dois companheiros por tal forma os identificou,
que afinal criado era já consultado e ouvido como um verdadeiro membro e amigo
da família a que se dedicara.

– Mas, Caetano, que diabo veio você fazer aqui? perguntou Teobaldo. Há novidade
lá por casa? Fale; Mamãe piorou?

– Não; graças a Deus não há novidade. A senhora baronesa não piorou, e parece
até que vai melhor; o que ela tem é muitas saudades de vossemecê.

– E papai, está bom?

– Nhô-Miló (era assim que chamava o amo) está bom, graças a Deus. Foi ele
quem me mandou cá. Vim trazer um dinheiro ao doutor.

– Ah! Ao diretor? Quanto foi?

– Trezentos mil réis.

– Seriam emprestados, sabes?

– Creio que sim, porque trouxe uma letra que tem de voltar assinada…

– E isso que trazes aí no cesto é para mim?

– É, sim senhor. É a senhora baronesa quem manda.

Teobaldo apressou-se a despejar a cesta. Vinham doces, queijo, nozes, figos
secos, passas, amêndoas, frutas cristalizadas e uma garrafa de vinho Madeira.

– Isto é que é pouco; devia ter vindo mais… considerou ele, pousando a
garrafa no chão.

– Pois fique sabendo que, se não fosse Nhô-Mjló, nem essa teria vindo…
A senhora baronesa chegou a zangar-se com ele.

E, mudando de tom:

– Mas é verdade, vossemecê está preso?

– Qual! Estou aqui porque assim o quis.

Em quatro palavras Teobaldo contou o motivo da sua prisão.

– Ah! disse o criado, vossemecê é seu pai, sem tirar nem pôr!

– Sim, mas não contes nada em casa…

– Não há novidade, não senhor!

E, depois de conversarem ainda mais alguma coisa, Caetano abraçou de novo
o rapaz, despediu-se do outro e retirou-se, pretextando que não convinha demorar-se
para não chegar muito tarde à fazenda.

Outra vez fechada a prisão, Teobaldo, restituído ao seu bom humor com o presente
da família, voltou-se, já risonho, para o companheiro e disse, batendo-lhe
no ombro:

– Ao menos temos aqui com que entreter os queixos. E, dispondo tudo sobre
uma cadeira, principiou a expor o conteúdo dos pacotes e das caixinhas de
doce: Felizmente a garrafa está aberta e o púcaro dágua serve para beber vinho.
Não acha que isto veio a propósito?

– É, resmungou o Coruja.

– Pois então, mãos à obra! Gosta de vinho?

– Não sei…

– Como não sabe?

– Nunca provei.

– Nunca? Oh!

– É exato.

– Pois experimente. Há de gostar.

André entornou no púcaro três dedos de vinho e bebeu-o de um trago.

– Que tal? perguntou o outro fazendo o mesmo.

– É bom! disse Coruja a estalar a língua.

– Com um pouco de queijo e doce ainda é melhor, atire-se!

André não se fez rogado, e os dois meninos, em face um do outro, puseram-se
a petiscar, como bons amigos. Teobaldo, porém, depois de repetir várias vezes
a dose do vinho, precisava dar expansão ao seu gênio comentador e satírico;
ao passo que o companheiro saboreava em silêncio aqueles delicados pitéus,
que chamavam ao mal confortado paladar delícias inteiramente novas e desconhecidas
para ele.

E contentava-se a resmungar, de vez em quando:

– É muito bom? É muito bom!

– Pois eu, sempre que receber presentes lá de e prometeu o outro, hei de
chamá-lo para participar deles. Está dito?

– Está.

– Você chama-se…

– André.

– De…

– Miranda.

– André Miranda.

– De Melo.

– Ah!

– E Costa.

– Não sabia. Como todos no colégio só o tratam por “Coruja”…

– É alcunha.

– Foi aqui que lha puseram?

– Foi.

– Por quê?

– Porque eu sou feio.

– E não fica zangado quando lhe chamam assim?

– Não.

– Eu também faria o mesmo, se me pusessem alguma. Os nossos colegas são todos
uns pedaços dasnos, não acha?

Coruja sacudiu os ombros e Teobaldo, um pouco agitado pelo Madeira, começou
a desabafar todo o ressentimento que até ai reprimia com tanto orgulho. Falou
francamente, queixou-se dos companheiros, julgou-os a um por um, provando
que eram todos aduladores e invejosos.

– Não quero saber deles para nada! exclamou indignado. Você é o único com
que me darei!

E, muito loquaz e vário, passou logo a falar dos colégios europeus, do modo
pelo qual aí se tratavam entre si os estudantes, dos modos de brincar, de
estudar em comum, do modo, enfim, pelo qual se protegiam e estimavam.

André o escutava, sem dar uma palavra, mas patenteando no rosto enorme interesse
pelo que ouvia.

Era a primeira vez que se achava assim, em comunicação amistosa com um seu
semelhante; era a primeira vez que alguém o escolhia para confidente, para
íntimo. E sua alma teve com a surpresa deste fato o mesmo gozo de impressões
que experimentara ainda há pouco o seu paladar com os saborosos doces até
aí desconhecidos para ele.

E o Coruja, a quem nada parecia impressionar, começou a sentir afeição por
aquele rapaz, que era a mais perfeita antítese do seu gênio e da sua pessoa.

Quando Salustiano veio abrir-lhes a porta à hora do jantar, encontrou Teobaldo
de pé, a discursar em voz alta, a gesticular vivamente, defronte do outro
que, estendido na cadeira, toscanejava meio tonto.

– Então? exclamou o homem das barbas longas. – Que significa isto?

– Isto quê, ó meu cara de quebra-nozes? interrogou Teobaldo soltando-lhe
uma palmada na barriga.

– Menino! repreendeu o homem; não quero que me falte ao respeito!

– E um pouco de Madeira, não queres também?

– O senhor bem sabe que aqui no colégio é proibido aos alunos receberem vinho.

– Para os outros, não duvido! Eu hei de receber sempre, se não digo ao velho
que não empreste mais um vintém ao diretor.

– Não fale assim… O senhor não se deve meter nesses negócios.

– Sim, mas em vez de estares aí a mastigar em seco e a lamber os beiços,
é melhor que mastigues um pouco de requeijão com aquele doce.

– Muito obrigado.

– Não tem muito obrigado. Coma!

E Teobaldo, com sua própria mão, meteu-lhe um doce na boca.

– Você é o diabo! considerou Salustiano, já sem nenhum sinal de austeridade.
E, erguendo a garrafa à altura dos olhos: – Pois os senhores dois beberam
mais de meia garrafa de vinho? !.

André ao ouvir isto, começou a rir a bandeiras despregadas, o que fazia talvez
pela vez primeira em sua vida.

Pelo menos, o fato era tão estranho que tanto Salustiano como Teobaldo caíram
também na gargalhada.

– E não é que estão ambos no gole?… disse homem, a cheirar a boca da garrafa
e, sem lhe resistir ao bom cheiro, despejou na própria o vinho que restava.

– Que tal a pinga? perguntou Teobaldo.

– É pena ser tão mal empregada… responde o barbadão a rir.

– Este Salustiano é um bom tipo! observou o menino, enchendo as algibeiras
de frutas e doces.

– Ora, quando o diretor não pode com o senhor eu é que hei de poder…

E, querendo fazer-se sério de novo:

– Vamos! Vamos! Aviem-se, que está tocando a sineta pela segunda vez!

– Não vou à mesa, respondeu Teobaldo – daqui vou para o jardim; diga ao doutor
que estamos indispostos.

E, voltando-se para o Coruja.

– Oh! André! toma conta de tudo isso e vamos lá para baixo ouvir a flauta
do Caixa-dóculos.

V

Desde então os dois meninos fizeram-se amigos.

Foi justamente a grande distância, o contraste, que os separava, que os uniu
um ao outro.

As extremidades tocavam-se.

Teobaldo era detestado pelos colegas por ser muito desensofrido e petulante;
o outro por ser muito casmurro e concentrado. O esquisitão e o travesso tinham,
pois, esse ponto de contato – o isolamento. Achavam–se no mesmo ponto de
abandono, viram-se companheiros de solidão, e é natural que se compreendessem
e que se tornassem afinal amigos inseparáveis.

Uma vez reunidos, completavam-se perfeitamente. Cada um dispunha daquilo
que faltava no outro; Teobaldo tinha a compreensão fácil, a inteligência pronta;
Coruja o método, e a perseverança no estudo; um era rico; o outro econômico;
um era bonito, débil e atrevido; o outro feio, prudente e forte. Ligados,
possuiriam tudo.

E, com o correr do ano, por tal forma se foram estreitando entre os dois
os laços da confiança e da amizade, que afinal nenhum deles nada fazia sem
consultar o camarada.

Estudavam juntos e juntos se assentavam nas aulas e à mesa.

Por fim, era já o André quem se encarregava de estudar pelo Teobaldo; era
quem resolvia os problemas algébricos que lhe passavam os professores; era
quem lhe arranjava os temas de latim e o único que se dava à maçada de procurar
significados no dicionário Em compensação o outro, a quem faltava paciência
para tudo isso, punha os seus livros, a sua vivacidade intelectual à disposição
do amigo, e dividia com este os presentes e até o dinheiro enviado pela família,
sem contar as regalias que a sua amizade proporcionava ao Coruja, fazendo-o
participar da ilimitada consideração que lhe rendia todo o pessoal do colégio,
desde o diretor ao cozinheiro.

De todas as gentilezas de Teobaldo, a que então mais impressionara ao amigo
foi o presente de uma flauta e de um tratado de música, que lhe fez aquele
volta de um passeio com o diretor do colégio.

Coruja trabalhava à sua mesa de estudo quando o outro entrou da rua.

– Trago-te isto, disse-lhe Teobaldo apresentando-lhe os objetos que comprara.

– Uma flauta! balbuciou André no auge da comoção. – Uma flauta!

– Vê se está a teu gosto.

Coruja ergueu-se da cadeira, tomou nas mão instrumento, e experimentou-lhe
o sopro, e ficou tão satisfeito com o presente do amigo que não encontrou
uma só palavra para lho agradecer.

– Que fazias tu? perguntou-lhe Teobaldo.

Mas correu logo os olhos pelo trabalho que estava sobre a mesa e acrescentou:

– Ah! É ainda o tal catálogo!

– É exato.

– Gabo-te a paciência! Não seria eu!

E, tomando a bocejar uma das folhas escritas o outro tinha defronte de si.

– Isto vem a ser?…

– Isto é a numeração das obras, respondeu André.

– Ah! Vai numerá-las…

– Vou. Para facilitar.

– E isto aqui? interrogou Teobaldo, tomando outra folha de pape].

– Isto é uma lista dos títulos das obras.

– E isto?

– O nome dos autores.

– Depois reúnes tudo?

– Reuno.

– Melhor seria fazer tudo de uma mais prático. Assim, não é tão cedo que
te verás livre dessa maçada!

– Há de ficar pronto.

Mas estava escrito que o célebre catálogo não teria de ficar acabado nas
férias deste ano. Urna circunstância extraordinária veio alterar completamente
os planos do autor.

Logo ao entrar das férias, o pai de Teobaldo apresentou-se no colégio para
ir em pessoa buscar o filho.

Entrou desembaraçadamente a gritar pelo rapaz desde a porta da rua.

– Ah! É V. Exa. exclamou o diretor com espalhafato, logo que o viu. E correu
a tornar-lhe o chapéu e a bengala.

– Bela surpresa! Bela surpresa, Sr. Barão! Tenha a bondade de entrar para
o escritório!

– Vim buscar o rapaz. Como vai ele?

– Muito bem, muito bem.! Vou chamá-lo no mesmo instante. Tenha a bondade
V. Exa. de esperar alguns segundos.

E, como se a solicitude lhe dera sebo às canelas, o Dr. Mosquito desapareceu
mais ligeiro que um rato.

O Sr. Barão do Palmar, Emílio Henrique de Albuquerque, era ainda nos seus
cinqüenta e tantos anos uma bela figura de homem.

A vida acidentada e revessa, a que o condenara sempre o seu espírito irrequieto
e turbulento não conseguira alterar-lhe em nada o bom humor e as gentilezas
cavalheirescas de sua alma romântica e afidalgada

Como brasileiro, ele representava um produto legítimo da época em que veio
ao mundo.

Nascera em Minas, quando ferviam já os prelúdios da independência, e seu
pai, um fidalgo português dos que emigraram para o Brasil em companhia do
Príncipe Regente e de cujas mãos se passara depois para o serviço de D. Pedro
I, dera-lhe por mãe uma formosa cabocla paraense, com quem se havia casado
e de quem não tivera outro filho senão esse.

De tais elementos, tão antagônicos, formou-se-lhe aquele, caráter híbrido
e singular, aristocrata e rude a um tempo, porque nas veias de Emílio de Albuquerque
tanto corria o refinado sangue da nobreza, como o sangue bárbaro dos tapuias.

Crescera entre os sobressaltos políticos do começo do século, ouvindo roncar
em torno do berço a tempestade revolucionaria, que havia de mais tarde lhe
arrebatar a família, os amigos e as primeiras e mais belas ilusões políticas.

Desde muito cedo destinado às armas, matriculou-se na Escola Militar, fez
parte da famosa guarda de honra do primeiro Imperador, e, com a proteção deste
e mais a natural vivacidade do seu temperamento mestiço, chegou rapidamente
ao posto de capitão.

Teve, porém, de interromper os estudos para fazer a lamentável guerra de
Cisplatina, donde voltou seis meses depois, sem nenhuma dar ilusões com que
partira, nem encontrar os pais e amigos, que sucumbiram na sua ausência, e
nem mais sentir palpitar-lhe no coração o primitivo entusiasmo pelos defensores
legais da integridade nacional.

Orfanado, pois, ao vinte e dois anos, senhor de uma herança como bem poucos
de tal procedência apanhavam nessas épocas, pediu baixa do Exército e levantou
o vôo para a Europa, fazendo-se acompanhar por um criado que fora de seu pai,
o Caetano, aquele mesmo criado que, trinta e tantos anos depois, apareceu
no colégio do Dr. Mosquito vestido de libré cor de rapé, com botões amarelos.

Ah! Se esse velho quisesse contar as estroinices que fez o querido amo pelas
paragens européias que percorreu! se quisesse dizer quantas vezes não expôs
a pele para livrá-lo em situações bem críticas! quantas vezes por causa de
alguma aventura amorosa ou por alguma simples questão de rua ou de café não
voltaram os dois, amo e criado, para o hotel com o corpo moído de pauladas
e os punhos cansados de esbordoar!

Durante essas viagens levaram eles a vida mais aventurosa e extravagante
que é possível imaginar; só voltaram para o Brasil no período da regência,
depois da abdicação do Sr. D. Pedro I, por quem o rapaz não morria de amores.

Tornando à província, Emílio, talvez na intenção de refazer os seus bens
já minguados, casou-se, a despeito da oposição do Caetano, com uma rapariga
de Malabar, filha natural de um negociante português que comerciava diretamente
com a Índia.

Atirou-se então a especular no comércio, mas o seu temperamento não lhe permitia
demorar-se por muito tempo no mesmo objeto e, achando-se viúvo pouco depois
de casado, lançou as vistas para Diamantina, que nessa ocasião atraía os ambiciosos,
e lá se foi ele,. sempre acompanhado pelo Caetano, explorar o diamante.

Tão depressa o viram em 1835 na Diamantina como em 1842 em Santa Luzia na
revolução ao dos liberais mineiros, lutando contra a célebre reação conservadora
manifestada pela lei de 3 de Dezembro.

A galhardia e valor com que se houve nessas conjunturas valeu-lhe a estima
de Teófilo Otoni e outros importantes chefes do seu partido. Dessa estima
e mais dos bens particulares que então gastou na política foi que se originou
o título, com que mais tarde o agraciaram.

A sua atitude política, a sua riqueza e os seus dotes naturais haviam-lhe
já conquistado na corte as melhores relações deste tempo.

Uma vez, por ocasião de trazer para aí uma excelente partida de diamantes,
travou conhecimento com um importante fazendeiro de café, em cuja fazenda
se hospedou por acaso.

Esse homem, mineiro da gema, era no lugar a principal influência do partido
conservador e, sem dúvida, um dos que primeiro explorou a famosa Mata do Rio,
que então começava a cobrir-se de novas plantações.

O fazendeiro tinha uma filha e Emílio cobiçou-a para casar. Mas o encascado
político, descendente talvez dos antigos emboabas que avassalaram o centro
de Minas, não cedeu ao primeiro ataque, e Emílio teve de lançar mão de todos
os recursos insinuativos da sua raça para conseguir captar a confiança do
pai e o coração da filha. Quando lá tornou segunda vez, deixou o casamento
ajustado. Então foi ainda a Diamantina liquidar os seus negócios e, voltando
à Mata, recebeu por esposa a mulher que, mal sabia ele, estava destinada a
ser a mais suave consolação e o melhor apoio do resto de sua vida.

Foi desse enlace que nasceu Teobaldo, logo um ano depois do casamento.

Emílio só reapareceu na corte em 1847, onde os seus correligionários, então
no poder, o agraciaram com o titulo de Barão do Palmar; mas voltou logo para
Minas e tratou de estabelecer com os seus capitais uma fazenda na vizinhança
da do sogro, que acabava de falecer.

Foi esse o melhor tempo de sua vida, o mais tranqüilo e o mais feliz. Só
depois de casado, Emílio pode avaliar e compreender deveras a mulher com quem
se unira; só depois de casado descobriu os tesouros de virtude que ela lhe
trouxe pura casa, escondidos no coração.

Laura, assim se chamava a boa esposa, era um destes anjos, criados para a
boa segurança do lar doméstico; uma dessas criaturas que nascem para fazer
a felicidade dos que a cercam.

Em casa, senhores chamavam-lhe “Santa”. E este doce tratamento conduzia com
os seus atos e com a sua figura.

– Esta, sim! exclamava o Caetano, entusiasmado Esta, sim, é uma esposa de
conta, peso e medida!

Pouco a pouco, Emílio fui amando a mulher, ao ponto de chegar a estremecê-la,
o que até aí lhe parecia impossível.

No meio de toda essa felicidade, Teobaldo deu o. seus primeiros passos pela
mão do pai, da Santa e do fiel Caetano, que já o adorava tanto como os outros.

O pequeno era o mimo do casa; era o cuidado, o enlevo, a preocupação de quantos
o viam crescer.

Com que sacrifício não consentiu, pois, o Barão do Palmar que o filho, daí
a seis anos, seguisse sozinho para um colégio de Londres, donde havia de passar
a Coimbra.

Mas assim era necessário, porque Emílio, então comprometido no tráfico dos
negros africanos, viu-se atrozmente perseguido por Euzébio de Queiroz, terror
dos negreiros e seu inimigo político.

Eis aí quem era e donde vinha o pai de Teobaldo.

E agora, visto aos cinqüenta e tantos anos, aquele tipo correto na forma
e um pouco desabrido nas maneiras, estava ainda a dizer a sua procedência
mestiça. Por mais despejado que fosse todavia, cativava sempre com muita graça
e muita insinuação. Ar gentil e franco, gestos largos, coração tão aberto
a tudo e a todos, que até ao mal franquearia a entrada, desde que houvesse
lá por dentro uma idéia de vingança.

Possuía ele um destes temperamentos desensofridos e ao mesmo tempo saturados
de bom humor; tão prontos a zombar dos grandes perigos, como a inflamar-se
à menor palavra que de longe lhe tocasse em pontos de honra. Temperamentos
que não conhecem meio termo e que vão da pilhéria à bofetada com a rapidez
de um salto.

Amava loucamente a mulher e adorava o filho. Todas as suas paixões de outrora,
todos os seus gostos e hábitos sacrificados ao atual meio em que ele vivia,
como que se transformaram em um sentimento único, em um amor de quinta-essência,
em uma dedicação sem limites por Teobaldo. Mas não sabia educa-lo e por cegueira
da afeição permitia-lhe todos os caprichos. A mais extravagante fantasia do
menino era uma lei em casa do Sr. Barão.

Defronte daquele pequeno Deus, ninguém seria capaz de levantar a voz. Teobaldo
vivia entre os seus parentes como um príncipe no meio da sua corte; o pai,
a mãe, uma irmã desta, que agora a acompanhava, todos pareciam apostados em
merecer-lhe as graças em troca de amor e submissão.

Pode-se, pois, facilmente calcular qual não seria a comoção de Emílio ao
ver o filho, quando o foi buscar nas férias, depois de tantos meses de ausência.

Teobaldo! exclamou o barão, correndo para ele de braços abertos.

O menino saltou-lhe ao pescoço e deixou-se beijar, enquanto perguntava pelos
de casa.

E depois, a queixar-se:

– Ora! prometeste que virias visitar-me, e nem uma vez!…

– Não pude abandonar a fazenda um só dia durante o ano! Aquilo por lá tem
sido o diabo!…

Ia continuar, mas interrompeu-se para dizer ao filho:

– Anda daí rapaz! Mexe-te, que, ao contrário chegaremos muito tarde!. ..
Vamos! Eu te ajudo preparar a mala. Onde é o teu quarto?

Teobaldo tomou de carreira a direção do dormitório e o pai acompanhou-o,
a mexer com todos os pequenos que encontrava no caminho.

– Quem é o tal André, de que falas tu nas cartas com tanta insistência? perguntou
ao filho, enquanto este emalava a sua roupa.

– Ah! o Coruja? É o meu amigo; mostro-to já; espera ai.

E, quando atravessavam o salão, já com a mala pronta,

Teobaldo exclamou, puxando o braço do pai:

– Olha! É aquele! Aquele que está ao lado do diretor.

– E aquele padre, quem é? Aquele que conversa com o Dr. Mosquito?

– Deve ser o tutor de André.

– O tutor?

– Sim, porque André já não tem pai, nem mãe; foi o vigário quem tornou conta
dele e quem o meteu no colégio.

– E agora veio buscá-lo e leva-o para casa durante as férias?…

– Talvez não. Já o ano passado, deixou-o ficar aqui sozinho com os criados.

– Mas pode ser que desta vez não aconteça o mesmo…

Emílio foi, porém, convencido logo do contrário pelo que ouviu entre o diretor
e o padre, cujo diálogo ia se esquentando a ponto de lhe chegar perfeitamente
ao ouvidos.

– Abuso?… exclamava o vigário. Não vejo onde esteja o abuso!

– Não sei porque.. . interrompeu o padre.

– Sei eu, gritou o diretor. E a prova, olhe, é que tencionava fazer pelas
férias um passeio à corte com minha família, e não fiz!…

– Sim, mas o senhor, naturalmente, não foi detido só por este…

– Engana-se; seu pupilo foi o único aluno que ficou no colégio durante as
férias!

– Não é culpa minha!

– De acordo e não é disso que faço questão. Deixa-me continuar…

– Pode continuar.

– Como dizia: o senhor, não satisfeito com o abatimento que lhe fiz durante
o ano inteiro, pediu-me ainda que lhe fizesse um novo abatimento durante as
férias. Permita que lhe diga: o que V. Rev.ma pagou não deu sequer para as
comedorias, porque não é com tão pouco que se alimenta aquele rapaz! Não imagina
que apetite tem ele!

André, ao ouvir esta acusação, abaixou o rosto, envergonhado como um criminoso,
e pôs-se a roer as unhas, sentindo sobre si o olhar colérico do padre, que
o media da cabeça aos pés.

– Pois bem! prosseguiu o diretor; chegam de novo as férias e, quando estou
resolvido a remeter-lhe o menino, vem o senhor e diz que desta vez não pode
pagar tanto como das outras!… Ora! há de V. Rev.ma convir que isto não tem
jeito!

– Seria uma obra de caridade!… objetou o padre.

– Sim, mas eu já fiz o que pude…

– Pois vá! Pagarei o mesmo que nas férias do ano passado.

– Não, senhor, não serve! V. Rev.ma leva o menino e, se quiser, pode apresentar-mo
de novo em Janeiro. De outra forma não!

– Tenho então de levar o pequeno comigo? exclamou o padre, fazendo-se vermelho.

– De certo, respondeu o diretor sem hesitar. As férias Inventaram-se para
descanso e eu não posso fica tranqüilo, sabendo que há um aluno em casa. Dá-me
mesmo trabalho que me dariam vinte! Não! Não.

– Mas, doutor!.

– Não, não quero! É um cuidado constante. Retiram-se todos os empregados
e fica aí o menino só com o servente; de um momento para outro, uma travessura,
uma tolice de criança, pode ocasionar qualquer desgraça, e serei eu por ela
o único responsável! Não quero!

– E se eu pagar o mesmo que pago durante ano? perguntou o reverendo já impaciente
e cada vez mais vermelho.

– Nem assim.

– Nem assim? E quanto é preciso então que eu pague?

– Nada, porque estou resolvido a não aceitar.

– De sorte que eu tenho por força de levar o pequeno?…

– Fatalmente.

– Pois então, pílulas! exclamou o padre, deixando transbordar de todo a cólera;
pílulas!

E, voltando-se para o Coruja:

– Vá! vá fazer a trouxa e avie-se!

O Coruja afastou-se tristemente enquanto o padre resmungava: Peste! só me
serve para me dar maçadas e fazer-me gastar o que não posso!

O barão. que a certa distância ouvira tudo ao lado do filho, disse a este
em voz baixa:

– Pergunta ao teu amigo se ele quer vir conosco passar as férias na fazenda.

Teobaldo, satisfeito com as palavras do pai, foi de carreira ter com o Coruja
e voltou logo com uma resposta afirmativa.

– Reverendo, disse então o fidalgo aproximando-se do padre com suma cortesia.
Por sua conversação com o Dr. Mosquito fiquei sabendo que o contraria não
poder deixar o seu pupilo no colégio; lembrei-me, pois, se não houver nisso
algum inconveniente, de levá-lo com o meu filho, a passar as férias na fazenda
em que resido.

O diretor deu-se pressa em apresentá-lo um ao outro, desfazendo-se em zumbaias
com o barão. E o padre, cuja fisionomia se iluminara à proposta do adulado,
respondeu curvando-se:

– Meu Deus! O Sr. barão pode determinar o que bem quiser!… Receio apenas
que o meu pupilo não saiba talvez corresponder a tamanha gentileza; uma vez,
porém, que o generoso coração de V. Exa. sente vontade de praticar esse ato
de caridade..

– Não, não é caridade! atalhou Emílio, francamente. Não é por seu pupilo
que faço isto, mas só para ser agradável a meu filho… Eles são amigos.

– Se V. Exa. faz gesto nisso.

– Todo o gosto.

– Pois então pequeno está às ordens de V. Exa.

– Bem. Ficamos entendidos. Levo-o comigo e trá-lo-ei com Teobaldo, quando
se abrirem de novo as aulas.

O reverendo entendeu a propósito contar ao Sr. barão, pelo miúdo, a história
do “pobre órfão”; como ele o recolhera e sustentava, repetindo no fim de cada
frase “Que não estava arrependido” e, terminando com a financeira e conhecida
máxima: “Quem dá aos pobres, empresta a Deus!…”

VI

– É bem feiozinho, benza-o Deus! o tal teu amigo!… disse o barão ao filho,
enquanto André se afastava para ir buscar a sua trouxa.

– Sim, mas um belo rapaz, respondeu Teobaldo. Tem por mim uma cega dedicação.

– Embora! É muito antipático! Está sempre a olhar tão desconfiado para a
gente!… E parece mudo – só me respondeu com a cabeça e com os ombros às
perguntas que lhe fiz.

– É assim com todos.

– Nem sei como vocês se fizeram amigos. Então tu, que, segundo me disse ainda
há pouco o Mosquito, não te chegas muito para os teus colegas.

– Só me chego para o Coruja. É o único.

Coitado! O reverendo, ao que parece, não morre de amores por ele; nem à mão
de Deus Padre queria carregá-lo para casa.

– Um mau sujeito, o tal reverendo!

– Mas, com certeza não foi por maldade que o recolheu à sua proteção.

– Não sei. Talvez!…

Emílio olhou mais atentamente para o filho e disse sorrindo:

– Tens as vezes coisas que me surpreendem. Com quem aprendeste tu a desconfiar
desse modo dos teus semelhantes?

– Contigo. Não me tens dito tantas vezes que gente deve desconfiar de todo
o mundo?

– Para não sofrer decepções a cada passo.. exato!

– E que, no caso de erro, é preferível sempre nos enganarmos contra, do que
a favor de quem quer que seja!…

– De certo. O homem deve sempre colocar-se superior a tudo e fazer por dominar
a todos. O mundo meu filho, compõe-se apenas de duas classes – a dos fortes
e a dos fracos; os fortes governam, os outros obedecem. Ama aos teus semelhantes,
mas não tanto como a ti mesmo, e entre amar e ser amado, prefere sempre o
último; da mesma forma que deves preferir sempre – dar, a pedir, principalmente
se o obséquio for de dinheiro.

– Achas mau que eu seja amigo do Coruja?

– Ao contrário, acho excelente. Essa escolha, entre tantos colegas mais bem
parecidos, confirma o bom juízo que faço do teu orgulho, e mostra que tens
sabido aproveitar-te dos meus conselhos.

– Não compreendo.

– Também ainda é cedo para isso. É preciso dar tempo ao tempo.

O Coruja reapareceu sobraçando a sua pequena mala de couro cru.

– Pronto? perguntou-lhe Teobaldo.

O outro meneou a cabeça, afirmativamente.

– Pois então a caminho! exclamou Emílio, descendo a escada na frente dos
rapazes.

Um carro os esperava à porta do colégio; o cocheiro tomou conta das bagagens;
Emílio fez subir os dois meninos e sentou-se defronte deles.

André, muito esquerdo com a sua roupinha de sarja, que ia já lhe ficando
curta, não olhava de frente para os companheiros e parecia aflito naquela
posição; ao passo que Teobaldo, muito filho de seu pai, conversava pelos cotovelos,
dizia o que vira, praticara e assistira durante o ano, criticando os colegas,
ridicularizando os professores e, ao mesmo tempo, fazendo espirituosos comentários
sobre tudo que lhe passava defronte dos olhos pela estrada.

Chegaram à fazenda às oito horas da noite. Vieram recebê-los ao portão a
Sra. baronesa e mais a irmã, D. Geminiana, acompanhadas ambas pelo Caetano,
que trazia uma lanterna.

Santa lançou-se ao encontro do filho, cobrindo-o de beijos sôfregos e a chorar
e a rir ao mesmo tempo, enquanto um escravo, que acudira logo, desembarcava
as malas e ajudava o cocheiro a desatrelar os animais.

Teobaldo passou dos braços da mãe para os da tia, que não menos o idolatrava,
apesar de ser um tanto resingueira de gênio.

– O nosso morgado traz-lhe um hóspede! declarou o barão, empurrando brandamente
o Coruja para junto das senhoras É aquele amigo de que ele fala nas cartas.
Vem fazer-lhe companhia durante as férias.

André, muito atrapalhado de sua vida, porque jamais se vira em tais situações,
quando deu por si estava nos braços da mãe do seu amigo e recebia um beijo
na testa.

Coitado! Que estranhas sensações não lhe produziu aquele beijo, ainda quente
da ternura com que foram dados os outros no verdadeiro filho! Há quanto tempo
não aspirava o pobre órfão essa flor ideal do amor, essa flor sonora – o beijo!

Depois de sua mãe ninguém mais o beijara. E Santa, sem saber, acabava de
abrir o coração do desgraçado um sulco luminoso, que penetrava até às suas
mais fundas reminiscências da infância.

– Este menino está chorando! considerou D. Geminiana, que até aí observara
o Coruja como quem contempla um bicho raro.

– Que tens tu? perguntou Teobaldo ao amigo.

– Nada, respondeu este, limpando as lágrimas na manga da jaqueta.

E o seu gesto era tão desgracioso, coitadinho, que todos, à exceção de Santa,
puseram-se a rir.

– Não é nada, com efeito! A comoção talvez!… exclamou Emílio, batendo levemente
nas costas de André. – Há muito tempo que não se vê entre família! Daqui a
pouco nem se lembrará que chorou,.. Não é verdade, amiguinho?

O Coruja disse que sim, enterrando a cabeça nos ombros.

– Mas, vamos para cima, que eu estou morrendo por comer! protestou Teobaldo,
passando os braços em volta da cinta das duas senhoras e obrigando-as a acompanhá-lo.

Assim subiram a pequena alameda de mangueiras que conduzia à casa e, dentro
em pouco, penetravam todos na sala de jantar.

A despeito de se achar naquelas alturas, Emílio cercava-se de todas as comodidades
que lhe permitia a época. O seu primeiro casamento ahrira-lhe o gosto pelos
objetos do luxo asiático e trouxera-lhe uma riquíssima coleção de louças,
de sedas e cachemiras, xarões, marfins, pinturas, objetos de goma-laca, tetéias
de sândalo e tartaruga, e tudo mais que era de costume nesse tempo introduzirem
no Brasil os portugueses vezeiros no comércio das Índias.

Viam-se ai também, pelas paredes, quadros antigos, de santos, alguns dos
quais haviam pertencido a D. João VI, e das mãos deste passado às do avô de
Teobaldo. Viam-se igualmente estalados retratos de damas e cavalheiros da
corte de D. José e D. Maria I, detestavelmente pintados, nas suas pitorescas
vestimentas do século XVIII e defronte de cujas telas inutilizadas e ressequidas
pelo antiaristocrático sol brasileiro, habituara-se o velho Caetano a possuir-se
de todo o respeito, porque lhe contava que entre aqueles figurões havia parentes
do seu rico amo.

E, ao lado da mobília, relativamente nova, descobriam-se clássicas peças
de madeira preta, que juntavam ao aspecto daquelas salas uma nota religiosa
e grave.

Na biblioteca, aliás bem guarnecida, destacavam–se, por entre as estantes,
antigas armas portuguesas, dispostas em simetria e caprichosamente entrelaçadas
por arcos e flechas do Brasil. Na sala de jantar, dominando a larga e longa
mesa da comida, havia um grande retrato de Cromwell, representado na ocasião
em que ele invadiu o parlamento inglês de chicote em punho.

O Coruja passou por tudo isso, às cegas, sem ânimo de olhar para coisa alguma.
O desgraçado sentia perfeitamente que agora, à luz das velas, a sua antipática
figura havia de produzir sobre todos uma impressão ainda muito mais desagradável
do que a primeira; sentia-se mais feio, mais irracional, posto em contraste
com aquela gente e com aqueles objetos.

Mal se assentaram à mesa, D. Geminiana continuou a observá-lo fixamente e
concluiu afinal o seu julgamento franzindo os cantos da boca em um trejeito
de repugnância; Santa, porém, não se mostrou tão desagradada e chegou a sorrir
para o Coruja, quando lhe passou o prato de sopa.

O barão que havia tomado a cabeceira, fizera sentar o filho ao seu lado e,
segundo o costume, conversava com ele, como se estivesse defronte de um homem.

Entretanto, o Coruja continuava tão mudo e tão fechado, que do meio para
o fim do jantar ninguém mais se animava a dirigir-lhe a palavra.

Depois do café, Santa ergueu-se da mesa e foi pessoalmente dar suas ordens
para que nada faltasse ao taciturno hóspede; mandou acrescentar uma cama no
quarto do filho e disse ao outro que podia recolher-se quando quisesse.

Coruja apertou a mão de todos, um por um, e meteu-se no quarto.

Já vais? perguntou-lhe o amigo. És um mau companheiro!

Na sala, onde ficou ainda a família, a conversar por algum tempo, veio o
Coruja à discussão. Emílio contou o diálogo que ouvira entre o padre e o diretor
do colégio, e Geminiana, que parecia disposta a não perdoar ao órfão o ser
tão desengraçado, acabou ela própria louvando o procedimento do cunhado.

VII

Ninguém seria capaz de descrever a comoção que se apoderou do Coruja na sua
primeira manhã daquelas férias.

Ergueu-se antes do despontar do sol, vestiu uma roupa de Teobaido, que lhe
mandaram pôr ao lado da cama, e, com as calças e as mangas dobradas, saiu
mais o companheiro ao encontro do barão, que já esperava por eles à margem
de um rio, situado a cinqüenta passos do fundo da casa.

Era aí que Emílio dava ao filho as suas lições de natação.

Mas não houve meio de conseguir que o Coruja se despisse na presença dos
outros. Já em casa do padre, e também no colégio, observava-se a mesma coisa;
tinha o Coruja um pudor exageradíssimo, uma invencível vergonha da nudez;
não podia admitir que ninguém lhe visse a pele do corpo. E só depois que o
barão e o filho se banharam, consentiu ele, bem certo de que não era espiado,
em meter-se nágua.

Sem dar demonstração, o Coruja estava maravilhado com tudo que ia se patenteando
em torno dele. Seu coração puro e compassivo, abria-se para receber amplamente
aquela grande paz do campo tão simpática às precoces melancolias de sua pobre
alma.

E as castas propensões do Coruja, os gostos imaculados que dormiam a sono
solto dentro dele, tudo isso acordou alegremente aos primeiros rumores da
floresta e as primeiras irradiações da aurora como um bando de pássaros quando
vai amanhecendo.

Nunca se julgou assim feliz. Todas aquelas, vozes da natureza. todo aquele
aspecto tranqüilo das matas e das montanhas, tudo o fascinava secretamente,
como se ele tivera nascido ali, entre aquelas coisas tão calmas, tão boas,
tão comunicativas.

Os currais, os trabalhos agrícolas, o gado grosso e o gado miúdo, a criação
dos animais domésticos, a cultura dos legumes e hortaliças, tudo isso tinha
para ele um encanto muito particular e muito suave.

– Então? que tal achas isto aqui? perguntou-lhe Teobaldo, depois de mostrar
ao amigo as benfeitorias da fazenda.

– Tudo muito bom, respondeu ele.

– E o velho? Que tal!

– Bom, muito bom.

– E Santa?

– Uma Santa.

– E a tia Gemi?

– Não é má.

– Um pouquinho resingueira, não e verdade? Mas não faças caso, que ela se
chegará as boas. Olha! se a quiseres agradar, faze-te devoto; reza-lhe dois
padre-nossos e tê-la-ás conquistado.

E mudando logo de tom;

– Depois do almoço temos um passeio com o velho. Vais ver o que é bom! Sabes
montar a cavalo?

– Não, mas aprendo. Onde é o passeio?

– À fazenda, do Hipólito. Não é longe.

– Que Hípólito?

– Um vizinho nosso, amigo do velho e pretendente à mão da tia Gemi.

– Ah!

– Vem comigo à estrebaria.

Defronte dos animais, Teobaldo chamou a atenção do amigo para um belo cavalo
alazão, meio sangue, que o pai lhe havia comprado ainda o ano passado.

– Eu preferia aquele burro… disse o Coruja, depois de examinar minuciosamente
as bestas.

– Quê? Pois preferes o jumento àquele belo alazão?…

– Decerto.

– Mas, por quê?

– Não sei: gosto mais do burro que do cavalo.

– Que gosto! Antes andar a pé.

E acrescentou ainda apontando para o alazão:

– Olha só para aquilo! É um animal nobre! Parece que tem consciência do seu
valor!

Terminado o almoço e vestido o Coruja pelo melhor que se pôde arranjar, o
barão, os dois meninos e o velho Caetano abandonaram a casa e encaminharam-se
para a estrebaria.

– Sabes, papai? O André prefere ir no burro.

– Porque não é cavaleiro. O burro com efeito é muito menos perigoso para
ele. Anda com isso, ó Caetano.

Prontos os animais, o velho criado ajudou Coruja a cavalgar o burro.

– Não tenha medo! gritou-lhe, a segurar a brida. Esta besta é mais mansa
do que uma pomba!

André, todo vergado sobre o peito e a segurar as rédeas com ambas as mãos,
não conseguia endireitar-se na sela do animal, por mais que o amigo lhe gritasse.

– Espicha as pernas, rapaz! Levanta a cabeça! Pareces um macaco!

O barão e o filho, uma vez montados, meteram entre os seus cavalos o jumento
em que ia o Coruja, e puseram-se a caminho, seguidos a certa distância pelo
criado, cuja libré dava à modesta cavalgata um ligeiro colorido de aristocracia.

Os primeiros minutos do passeio foram todos gastos com André, que, diga-se
a verdade, fazia o possível para bem aproveitar as lições.

– Assim! assim! gritou-lhe Teobaldo, metendo as esporas no animal; afrouxa
um pouco mais a rédea e mete-lhe o chicote com vontade! Não tenhas medo!

Coruja foi pôr em prática esta ordem, mas com tal precipitação o fez que
o burro se espantou e, dando um salto, cuspiu-o por terra.

– Ó diabo! exclamou Emílio, fazendo parar o seu cavalo.

– Ficaste magoado? perguntou Teobaldo ao amigo.

– Foi nada! disse o Coruja, erguendo-se a segurar o asno pela rédea, e, antes
que lhe pusessem embargos, tomou o estribo, galgou de um pulo a sela e, tocando
o animal com certa energia, gritou aos companheiros:

– Vamos adiante!

E às quatro da tarde, sem nenhum outro incidente desagradável, voltavam à
fazenda, trazendo consigo o tal Hipólito, que parecia embirrar com o Coruja
ainda mais do que a própria noiva.

Mas com quem não embirraria aquele demônio de barbas pretas e cabelo ruivo,
eterno maldizente, capaz de encontrar pontos de censura na vida de Santa Maria
e nas de S. José?

O barão suportava-o, tão somente para não prejudicar a trintona cunhada,
que arriscava-se a ficar solteira se lhe escapasse ocasião de ter marido.
Hipólito era já um bom arranjo, tinha algum dinheiro e prometia ir muito mais
longe com o seu sistema de economia que orçava sensivelmente pela avareza.

A política era talvez a sua paixão dominante; ele, porém, a disfarçava quanto
possível e não se metia com os partidos, receoso de gastar alguma coisa. Aparecia
freqüentemente na fazenda de Emílio e estava sempre a criticar, em segredo
com a noiva, a educação que davam a Teobaldo.

– Deus queira que não venham a amargar mais tarde! dizia Hipólito, cheio
de repreensão. Nunca vi em dias de minha vida semelhante gênero de ensino!
Pois se até o fedelho trata aos pais por tu, como se estivesse a falar com
os negros! Enfim cada um faz o que entende; eu, porém, tenho o direito de
achar bom ou mau

Outro pretexto constante para a sua indignação era a vida dispendiosa de
Emílio.

– Para que tanta prosapia e tanta galanice? resmungava frenético. Ora eu,
que sei perfeitamente com que linhas ele se cose, não posso ver isto a sangue
frio! As conseqüências deste esbanjamento bem sei eu quais são: os parentes
que se apertem! Mas, não há de ser comigo que ninguém se arranjará: Cá sei
quanto me custa a conservar o que tenho! E já não é pouco!

Que importava, porém, a mastigação do serrazina, se ela ficava sepultada
nas discretas orelhas de D. Geminiana?

Não seria por isso que as matilhas do Sr. Barão deixariam de acordar as florestas
com seus latidos, à madrugada, em busca de anta ou do porco bravo; não seria
por isso que a mesa do fidalgo seria menos farta. os seus cavalos menos de
raça e os seus vinhos menos escolhidos e generosos.

*

Assim se abria para o Coruja uma existência completamente nova e imprevista,
mas muito ao sabor do seu gênio rústico e simples.

A certos divertimentos ia entretanto só pela satisfação de acompanhar o amigo,
porque, à medida que ele se familiarizava com o campo, acentuavam-lhe os gostos
e as preferências. Não trocaria, por exemplo, a mais modesta pescaria pela
melhor caçada; desagradava-lhe o alvoroço, o grito dos batedores, o barulho
dos cães e não gostava de ver cair ao tiro das escopetas a pobre besta foragida
e tonta de terror.

A pesca, sim, era um prazer afinado pelo seu temperamento calmo e silencioso;
passava horas esquecidas, de caniço em punho, à espera que se chimpasse um
peixe no anzol. Teobaldo às vezes o acompanhava ao rio por condescendência,
mas levava sempre consigo uma espingarda passarinheira.

Era interessante de ver aqueles dois meninos tão contrários e tão unidos,
partirem de madrugada para o mato, onde passavam quase sempre as melhores
horas do dia. André carregava consigo os utensílios da pesca e raro dizia
uma palavra enquanto matejava; o outro, com a sua passarinheira a tiracolo,
falava por si e por ele, descrevendo entusiasmado as façanhas do pai ou do
avô, que muitas vezes, em noite de invernada, ouvira da boca do velho Caetano.

Todavia, um adorava o sossego, a doce e morna tranqüilidade dos vales ou
as margens frondosas e sombreadas do rio, para onde levava os seus livros
favoritos, entre os quais Robinson Crusoé tinha o primeiro lugar; o outro,
não; o outro só queria da floresta aquilo que ela lhe pudesse dar de imprevisto
e aventuroso: queria a sensação, o perigo, o romanesco e o transcendente.

Às vezes, enquanto o Coruja lia ou pescava à beira dágua, Teobaldo, ao seu
lado, deitado sobre a relva, olhos fitos na verde-negra cúpula das árvores,
sonhava-se herói de mil conquistas, cada uma do seu gênero; tão depressa se
via um grande poeta, como um político inexcedível ou um divino orador. Idealizava-se
em toda as atitudes gloriosas dos grandes vultos; não lhe passava pela vista
a biografia de qualquer celebridade, fosse esta conquistada pelo talento,
pela energia, pela fortuna, pela intrepidez ou pela grandeza dalma, que ele
não descobrisse logo em si muitos pontos de contato com o biografado.

Teobaldo não amava o campo, aceitava-o apenas como um fundo pitoresco em
que devia destacar-se maravilhosamente a sua “extraordinária figura”, aceitava-o
como simples acessório das suas fantasias. Nunca lhe compreendera as vozes
misteriosas nem jamais comunicara a sua alma com a dele. Tanta assim que naqueles
passeios, o que mais o preocupava não era a contemplação da natureza e sim
os pequenos detalhes elegantes que diziam respeito particularmente à sua pessoa,
como a roupa, o aspecto do animal que montava e a distinção do exercício que
escolhia.

Ele nunca saía a passear sem as suas trabalhadas botas de polimento, sem
o seu calção de flanela, a sua blusa abotoada até ao pescoço e cingida ao
estômago por um cinturão com fivela de prata; não saía sem o seu chapéu de
pluma, a sua bolsa de caça, o seu polvarinho, o seu chumbeiro e, ainda que
tivesse a certeza de não precisar da espingarda, levava-a, porque a espingarda
fazia parte do figurino.

Um dia exigiu que o pai lhe desse uma pistola e um punhal.

Para que diabo queres tu todo esse armamento? Perguntou-lhe o barão, sem
poder deixar de rir.

– Para o que der e vier…

– Descansa, que por aqui não terás necessidade disso.

– Mas eu queria…

– Pois bem, havemos de ver.

E, para não contrariar de todo o filho, o que não estava em suas mãos, Albuquerque
estabeleceu nos fundos da casa um tirocínio de pontaria ao alvo e consentiu
que o rapaz nos seus passeios à mata trouxesse à cinta um rico punhal de ouro
e prata que pertencera ao avo.

– Tu não queres também uma arma? perguntou Teobaldo ao Coruja.

– Não; só se fosse um facão para cortar mato.

– Ora, vocês não querem também uma peça de artilharia? exclamou o barão,
quando o filho lhe foi pedir o que desejava o amigo.

Enquanto Teobaldo fazia tanta questão das aparências e das exterioridades,
André, enfronhado em um fato de ordinária ganga amarela, que nem era dele,
com um grande chapéu de palha na cabeça e às vezes descalço, comprazia-se
em percorrer a fazenda, não em busca de aventuras como o amigo, mas de alguém
que lhe ensinasse o nome de cada árvore, a utilidade e a serventia de todas
elas, assim como o processo empregado na cultura de tais e tais plantações,
o modo de semear e colher este ou aqueles cereais; qual a época para isto
qual a época para aquilo; queria que lhe explicassem tudo! Uma de suas mais
arraigadas preocupações era a obscura existência dos insetos; interessava-se
principalmente pelos alados, procurando acompanhar-lhes as metamorfoses, desde
o estado de larva à mariposa. Se lhe despejassem as algibeiras, haviam de
encontrar aí várias crisálidas, besouros e cigarras secas, como encontrariam
igualmente vários caroços de fruta e pedrinhas de todos os feitios.

Algumas semanas depois de sua estada na fazenda era ele quem mais se desvelava
pelos carneiros e pelos porcos e quem ia dar quase sempre a ração aos cavalos.
E, quando havia uma ferradura a pregar ou qualquer tratamento a fazer nos
animais, mostrava-se tão afoito que parecia o único responsável por isso.

No fim do primeiro mês das férias já o Coruja sabia nadar, correr a cavalo,
atirar ao alvo e, por tal forma havia-se familiarizado com a vegetação, com
a terra viva, com o sol e com a chuva, que parecia não ter tido nunca outro
meio que não fosse aquele.

Em geral acordava muito mais cedo que o amigo e ainda dormia este a sono
solto, já andava ele a dar uma vista dolhos pelo serviço das hortas e dos
currais.

Dentre toda essa bela existência só uma coisa o contrariava sem que todavia
deixasse o Coruja transparecer o menor desgosto contra isso: – era a teimosa
perseguição que lhe fazia D. Geminiana. A resingueira senhora achava sempre
um mau gesto ou uma palavra dura para lhe antepor aos atos mais singelos.

Manifestou-se-lhe logo a impertinência a propósito da flauta do rapaz. André,
coitado, não desmentia o mestre que lhe dera o acaso, e D. Geminiana, uma
noite em que conversava com o noivo, depois de ouvir por algum tempo o fiel
discípulo do Caixa-dóculos arrancar do criminoso instrumento certas melodias
bastante equivocas, foi ter com ele, sacou-lhe vivamente das mãos o corpo
de delito e, atirando com este para cima de um canapé, tornou ao lado de Hipólito,
sem dar uma palavra ao delinqüente, rico, porém, de gestos e caretas muito
expressivas.

O homem das barbas ruivas e cabelo preto observou tudo isso em silêncio,
contentando-se apenas com sacudir a cabeça e apertar os beiços em sinal de
aprovação.

Coruja, quando os noivos mergulharam de novo no seu colóquio, retomou sorrateiramente
a flauta e fugiu com ela para um caramanchão de maracujás, que havia a alguns
passos da casa. Supunha que daí não seria ouvido pela ríspida senhora; mas,
no dia seguinte, procurando o instrumento não o encontrou em parte alguma.

– Minha flauta?… perguntou ele a D. Geminiana.

– Está guardada! disse essa secamente. Só lha restituirei quando o senhor
voltar para o colégio.

Coruja resignou-se, sem um gesto de contrariedade e não falou a ninguém sobre
esse incidente, nem mesmo ao amigo.

Com efeito, só tornou a ver sua querida flauta ao terminar das férias, quando
se dispunham, ele e Teobaldo, a voltar para o internato do Dr. Mosquito.

O barão foi levá-los em pessoa ao colégio, e Santa, chorando pelo filho,
despedira-se do Coruja, dizendo-lhe:

– Continue a ser amigo de Teobaldo e nós faremos com que você passe aqui
as férias do ano que vem.

VIII

Com o correr do seguinte ano, a dedicação do Coruja pelo amigo parecia crescer
de instante para instante. Uma leoa não defenderia os seus cachorros com mais
amor e mais zelos.

Já não se contentava André com resguardá-lo das ameaças e malquerenças dos
colegas, como exigia também de todos que lhe rendessem a mesma estima e o
mesmo respeito, que lhe tributava ele.

Teobaldo, vadio como era por natureza, quase nunca estudava as lições, e
quando não lhe valiam os recursos do seu “proverbial talento” ou da sua astúcia,
tinha de copiâ-las quatro, cinco ou seis vezes, conforme fosse o castigo.
Então se revoltava e queria protestar contra a sentença dos mestres, mas o
Coruja puxava-lhe a ponta do casaco e dizia-lhe baixinho:

– Não te importes, não te importes, que eu me encarrego de tudo…

E, com efeito, mal chegava a hora do recreio, enterrava-se André no quarto
de estudo e, imitando a letra do amigo, aprontava as cópias; feliz com aquele
trabalho, como se o descanso do outro fosse o seu melhor prazer.

Muita vez perdeu com isso grande parte da noite, e no dia seguinte ainda
encontrava tempo para tirar os significados da lição do amigo, para resolver-lhe
os problemas de álgebra e fazer-lhe os temas de latim.

Uma vez, em que o Coruja se apresentou nas aulas sem haver preparado as próprias
lições, o professor exclamou com surpresa.

– Oh! Pois o senhor, seu André, pois o senhor não traz a sua lição sabida!…
Então que diabo fez durante o tempo de estudo o senhor que não larga os livros?…

Entretanto, o outro Teobaldo, estava perfeitamente preparado.

Esta dedicação fanática de Coruja pelo amigo crescia com o desenvolvimento
de ambos; mas em Teobaldo a graça, o espírito e a sagacidade eram o que mais
florescia; enquanto que no outro eram os músculos, o bom senso, a força de
vontade e o férreo e inquebrantável amor pelo trabalho.

Agora, o pequeno do padre já emitia opinião sobre várias coisas, já conversava;
tudo isso, porém, era só com o seu amigo íntimo, com o seu Teobaldo. Parecia
até que, à proporção que abria o coração para este, mais o fechava para os
estranhos.

Quando terminou o ano, o filho do barão havia crescido meio palmo e o Coruja
engrossado outro tanto; aquele se fizera ainda mais esbelto, mais distinto
e mais formoso; este ainda mais pesado, mais insociável e mais feio.

Afinal, assim tão completados, formavam entre os seus companheiros uma força
irresistível. Teobaldo era a palavra cintilante e ferina, era a temeridade
e o arrojo; o outro era o braço em ação, a força e o peso do músculo. Um provocava
e o outro resistia.

Um era o florete aristocrático, fino e aguçado, que só tem a serventia de
palitar os dentes do orgulho; o outro era o malho grosseiro e sólido, que
tanto serve para esmagar, corno serve para construir.

* * *

Partiram de novo para a fazenda,, deixando atrás de si a solene gratidão
do colégio pelo catálogo da biblioteca, que “eles” concluíram e ofereceram
ao estabelecimento; e deixando também por parte de seus condiscípulos um rastro
de ódios, ódios que serviram aliás durante o ano para melhor os aproximar
e unir, acabando por constituí-los em uma espécie de ser único, do qual um
era a fantasia e outro o senso prático.

Foi então que lhes chegou a notícia da morte do padre Estêvão; sucumbira
inesperadamente a um aneurisma, do qual nunca desconfiou sequer, e, no testamento,
legara o pouco que tinha a uma comadre e àquela criada de mau gênio que o
servira.

Quanto ao Coruja, nem uma referência, nem um conselho ao menos; o que fazia
crer fosse escrito o testamento antes da adoção do pequeno e nunca mais reformado.

Esta circunstância da morte do padre levou André a pensar em si, a pensar
na sua vida e no seu destino. Interrogou o passado e o futuro e, pela primeira
vez, encarou de frente a posição que ocupava ali, naquela fazenda do Barão
do Palmar, esse protetor tão do acaso como o primeiro que tivera ele. Então
notou que na sua curta e triste existência passara de uma para outra mão,
que nem um fardo inútil e sem dono.

– Que será de mim? perguntava o infeliz a si mesmo nas suas longas horas
de concentração. Mas o amigo, com a prematuridade intuitiva do seu espírito,
saltava-lhe em frente, antecipando razões, como se adivinhara todos os pensamentos
de André.

– Em que tanto pensas tu, meu urso? Perguntava-lhe ele, quando se achavam
a sós, no bosque; já ontem à noite não quiseste aparecer na sala e cada vez
mais te escondes de todos, nem como se fosse um criminoso.

– E quem sabe lá?

– Quê? Se és um criminoso?…

– Sim. A necessidade, quando chega a um certo ponto de impertinência, que
mais é senão um crime? Que direito tenho eu de incomodar os outros?

– Exageras.

– Não. A caridade é muito fácil de ser exercida e chega a ser até consoladora
e divertida, mas só enquanto não se converte em maçada.

– Não te compreendo…

– Pois eu me farei compreender. Vou contar-te uma parábola, que o defunto
padre Estêvão repetia constantemente.

– Venha a história.

– Senta-te aí nesse tronco de árvore e escuta:

Era um dia um sacerdote, que pregava a caridade.

“- A caridade, dizia ele, deve ser exercida sempre e apesar de tudo”.

Vai um caboclo, que o ouvira atentamente, perguntou-lhe depois do sermão:

“- Ó sôr padre, é caridade enterrar os mortos?

“- Decerto, respondeu o pregador; é uma obra de misericórdia”.

E o caboclo saiu, matou uma raposa e foi esperar o sacerdote na estrada;
quando sentiu que ele se aproximava, pôs a raposa no meio do caminho e escondeu-se
no mato. O padre, ao topar com ela e observando que estava morta, ajoelhou-se,
e cavou no chão, enterrou-a e, depois de dizer uma sentença religiosa, seguiu
o seu caminho. O caboclo, assim que o viu pelas costas, correu à sepultura,
sacou a raposa e, ganhando por um atalho, foi mais adiante e jogou com ela
ao meio da estrada, antes que o pregador tivesse tempo de chegar; este, porém,
não tardou muito e, ao ver de novo uma raposa no caminho, fez o que fizera
da primeira vez, enterrou-a, mas sem se ajoelhar, nem repetir a sua máxima
latina. O caboclo deixou-o seguir, tomou de novo da raposa e foi depô-la mais
para diante na estrada; o padre ao topá-la, enterrou-a já de mau humor e prosseguiu
receoso de encontrar outras raposas mortas. Todavia, o caboclo não estava
ainda satisfeito e repetiu a brincadeira; mas, desta vez, o padre perdeu de
todo a paciência e, tomando a raposa ‘pelo rabo, lançou-a ao mato com estas
palavras: “Leve o diabo tanta raposa morta!” Então o caboclo lhe apareceu
e disse: “- Já vejo que enterrar um morto é obra de caridade, mas fazer o
mesmo quatro ou cinco vezes é nada menos do que uma formidável estopada!”
Ao que o sacerdote respondeu que, desde que houvesse abuso da parte do protegido,
era natural que o protetor se enfastiasse…

– Queres dizer com isso, observou Teobaldo, que já estamos fartos de te aturar..

– Decerto, porque tudo cansa neste mundo.

– És injusto e, se meu pai e minha mãe te ouvissem, ficariam bravos comigo.

– Ah! eles não me ouvirão, podes ficar tranqüilo. Só a ti falo porque nós
nos entendemos e bem sabes que não sou ingrato.

– Meus pais te compreendem tão bem ou melhor do que eu.

– Mas não me perdoam, como tu perdoas, o fato de ser eu tão feio, tão antipático
e tão desengraçado…

– Ora! aí vens tu com a cantiga do costume. Deixa-te disso e vamos dar um
passeio à rocinha do João da Cinta.

– Outra vez? Que diabo vamos lá fazer agora?

– Convidá-lo e mais a família para virem ao casamento da tia Geminiana.

– É sempre no dia 15 o casamento?

– Infalivelmente, e o alfaiate deve trazer-nos amanhã os nossos fatos novos.
Mas, anda, vamos!

Coruja ergueu-se do lugar onde estava assentado e acompanhou o amigo, que
já se havia posto a caminho.

Três quartos de hora depois chegavam a um grande cercado de acapu, a cuja
frente corria um riacho quase escondido entre a vegetação.

Teobaldo parou, disse ao amigo que esperasse um pouco por ele e, trancando
pelos barrancos do riacho, foi ter à cerca e soltou um prolongado assobio.

A este sinal, com a presteza de quem está de alcatéia, surgiu logo uma rapariguita
de uns treze anos, forte, corada e bonitinha.

– Ah! disse ela, vindo encostar-se às estacas.

– Não esperavas por mim?… perguntou o rapaz. A pequena respondeu, entregando-lhe
um ramilhete que trazia à sorrelfa. E perguntou depois como passava de saúde
o Sr. Teobaldo.

– Com saudades tuas… disse o moço, tomando-lhe uma das mãos.

– Mentiroso..

– Não acreditas?

Ela encolheu os ombros, a sorrir, de olhos baixos.

– Dize a teu pai que não deixe de ir com vocês ao casamento de tia Gemi.
Vim convidá-los.

– Entre. Fale com mamãe. Ela está aí.

– Não; é bastante que lhe dês o recado.

E mudando de tom:

– Não faltes, hein, Joaninha?…

– Se me levarem, eu vou.

– Vá, que lhe tenho uma coisa a dizer…

Teobaldo havia conseguido passar o braço por entre duas estacas da cerca
e segurava a cintura da rapariga; deu-lhe um beijo; ela o retribuiu com outro
de igual sonoridade, fazendo-se muito vermelha e fugindo logo em seguida.

Este namoro, inocente de parte a parte, era o primeiro de Teobaldo. Nascera
naquelas férias um dia em que ele, por acaso, encontrou a pequena a lavar
no riacho em frente da casa as roupinhas do irmão mais novo. Desde então ia
vê-la todas as tardes antes do jantar; falavam-se às vezes à beira do córrego,
outras vezes com a cerca de permeio. De certa época em diante ela o esperava
com um ramilhete; conversavam durante um quarto de hora e despediam-se com
um beijo.

O Coruja foi logo o depositário do segredo; Teobaldo contou-lhe a sua aventura
e exigiu que ele o acompanhasse todos os dias à rocinha do João da Cinta,
quedando-se a certa distância durante o tempo da entrevista.

André consentiu, sem mostrar o mais ligeiro espanto pelo que lhe revoltara
o amigo.

Ainda inocente e deveras casto, não conhecia os meandros do amor e julgava
dos outros corações pelo seu, que resumia toda a gama do afeto e da ternura
em uma nota única. Não calculava a que podia chegar aquele inocente namoro
originado entre o filho do Sr. Barão do Palmar e uma sertaneja, que nem ler
sabia.

No dia seguinte o Coruja passeava sozinho por uma alameda sua favorita, quando
o Caetano lhe foi dizer que o Sr. Teobaldo o mandava chamar e ficava à espera
dele no quarto.

André correu ao encontro do amigo.

– Chegaram as nossas roupas! exclamou este ao vê-lo.

E sua fisionomia rejubilava com essas palavras.

– Ah! fez o outro, quase com indiferença.

– Experimentemos.

– Há tempo.

O alfaiate observou que não podia demorar-se muito.

– Deve estar direito… respondeu André. Pode deixar.

– É bom sempre ver… insistiu o alfaiate.

– É indispensável! acrescentou Teobaldo.

André não teve remédio senão experimentar a roupa. Era um fato preto, fato
de luto, que mal deixava perceber o colarinho da camisa.

E ele, pequeno, grosso, cabeçudo, e queixo saliente, os olhos fundos, com
as suas bossas superciliais principiando a desenvolver-se pelo hábito da meditação;
ele, enfardelado naquela roupa muito séria, toda abotoada, só precisava de
uns óculos para ser uma infantil caricatura do velho Thiers.

Contudo, e apesar dos conselhos que lhe dava o amigo para mandar diminuir
três dedos no comprimento do paletó e tirar um pouco de pano das costas, achou
que estava magnífica.

– Ao menos, disse Teobaldo, que acabava de se vestir, manda encurtar essas
calças, rapaz! e soltar a bainha dessas mangas!

– Então boas… teimou o Coruja, esforçando-se por fazer chegar as mangas
até às mãos.

– Parece que te meteste nas calças de teu avô.

E voltando-se para o alfaiate:

– Também não sei como o senhor tem ânimo de apresentar unia obra desta ordem…
Está uma porcaria!

– Perdão! respondeu o alfaiate, dispondo-se logo a modificar a roupa de André.
Vossemecê poderia dizer isso se a sua roupa não saísse boa, e essa está que
é uma luva, mas, quanto à deste moço, nem só é a primeira vez que trabalho
para ele, como não podia acreditar que houvesse alguém com as pernas tão curtas
e os braços tão compridos. Parece um macaco!

– Bem, bem, veja lá o que é preciso fazer na roupa, e deixe-se de comparações!
observou Teobaldo, defronte do espelho, a endireitar-se, muito satisfeito
com a sua pessoa.

Para esse dia estava reservado ao André uma surpresa muito agradável: D.
Geminiana, tendo com o casamento de separar-se. do sobrinho, queria deixar
a este uma lembrança qualquer e mandou buscar da corte um bom relógio de ouro
e a respectiva corrente. A encomenda chegou essa noite, Teobaldo recebeu o
seu presente da tia e, ato contínuo, tomou do antigo relógio e da cadeia que
até aqui usara, e deu tudo ao Coruja.

Seja dito que um dos sonhos dourados de André era possuir um relógio; desejava-o,
não como objeto de luxo, mas como objeto de utilidade imediata.

– Poder contar o tempo pelas horas, pelos minutos e pelos segundos!…

Isto para aquele espírito metódico e regrado era nada menos do que uma felicidade.

IX

Durante o tempo que precedeu ao casamento, a fazenda do Sr. Barão do Palmar
descaiu um tanto da sua patriarcal serenidade e tomou um quente aspecto de
festas, porque com muita antecedência começaram a chegar os convidados.

Emílio quis reunir os seus vizinhos de uma légua em derredor e não se poupou
a esforços para que nada lhes viesse a faltar. Havia de ser uma festa verdadeiramente
gamaquiana.

Ao lado das delicadas distrações das salas, o jogo, a Á dança, a música e
a palestra, queria ele a grande fartura da mesa e da copa; queria o grosso
prazer pantagruélico: – Carne para mil! – Vinho para outros tantos!

À faca as grandes reses que pastavam sossegadamente no campo; à faca os trepegos,
os chibarros, os carneiros e os perus! Que não ficassem por ali, naquelas
cinco léguas mais próximas, estômagos nem corações com laivos de tristeza!

O casamento devia efetuar-se na própria capela da fazenda, e meio mês antes
da festa já ninguém descansava em casa de Emílio. Vieram cozinheiros de longe;
cada convidado trazia dois e três serventes e, apesar disso, havia trabalho
para todos.

O Coruja ia pela primeira vez em sua vida assistir a um baile, e essa idéia,
longe de o alegrar, trazia-lhe uni fundo ressaibo &3 amargura, como se
o desgraçado estivesse à espera de uma terrível provação.

O fato de perturbarem a calma existência da fazenda, só por si já não lhe
era de forma alguma agradável; quanto mais a idéia de ter de acotovelar-se
com pessoas inteiramente estranhas, a quem sem dúvida não iria ele produzir
bom efeito com a sua triste figura desengraçada.

Oh! se fosse possível ao Coruja presenciar toda aquela festa, sem aliás ser
descoberto por ninguém!… se ele pudesse, por um meio maravilhoso, tornar-se
em puro espírito e estar ali a ver, a observar, a ouvir o que dissessem todos,
sem que ninguém desse pela presença dele – oh! então conseguiria desfrutar,
e muito!

Chegou entretanto a véspera do grande dia, e de todos os pontos começavam
a surgir, desde pela manhã, convidados a pé, a cavalo e de carro.

Um enorme telheiro, que se havia engendrado de improviso nos fundos da casa,
ficou cheio de cavalgaduras, troles, carroções e seges das que se usavam no
tempo.

A fazenda apresentava um aspecto magnífico. Emílio, como homem de gosto que
era, procurou afestoá-la quanto possível. Por toda a parte viam-se florões
de murta engranzados com as parasitas mais caprichosas; jogos dágua formando
esplendidos matizes à refração das luzes multicores das lanternas chinesas.
Defronte da casa o fogo de artifício, que seria queimado pelo correr da noite.

Às seis horas da tarde uma salva de vinte tiros de peça anunciou que estava
terminada a cerimonia religiosa do casamento e que principiava o banquete.
Os noivos foram tomar a cabeceira da mesa acompanhados por mais de quinhentas
pessoas.

Como nenhum dos aposentos da casa podia comportar tanta gente, o barão fez
levantar no vasto terreiro da fazenda uma enorme tenda de lona, sustentada
por valentes carnaubeiras, engrinaldadas de verdura.

Nessa festa foi que o Coruja teve ocasião de apreciar mais largamente as
brilhantes qualidades do amigo. Viu-o e admirou-o ao lado das damas, cortes
e cavalheiro como um homem; viu-o igualmente ao lado dos amigos do pai e notou
que Teobaldo nem uma só vez caía em qualquer infantilidade, e mais, que todos,
todos, até os velhos, prestavam-lhe a maior atenção, sem dúvida fascinados
pelo talento e pelas graças do rapaz; viu-o na biblioteca, tomando parte nos
jogos carteados, que André nem sequer conhecia de nome, e reparou que ele
puxava por dinheiro e ganhava ou perdia com uma distinção sedutoramente fidalga;
viu-o nas salas da dança, conduzindo uma senhora ao passo da mazurca, teso,
correto, elegante mais do que nunca, e como possuído de orgulho pelo gentil
tesouro que levava nos braços; viu-o à mesa erguer-se de taça em punho e fazer
um brinde à noiva, levantando aplausos de toda a gente, e o Coruja, de cujas
mãos saíra aliás essa festejada peça literária, chegou a desconhecer a sua
obra, tal era o realce que lhe emprestavam os dotes oratórios do amigo; viu-o
depois ao ar livre, debaixo das árvores, a beber ponches e a mexer com a filha
do João da Cinta, a qual olhava para ele, escrava e submissa, como defronte
de um Deus.

Mas tudo isso não o fez ficar tão fortemente impressionado, como quando o
contemplou ao lado de Santa, ao lado daquela adorável mãe que parecia resplandecer
de orgulho e satisfação a rever-se no filho idolatrado.

Foi com a alma banhada pelos eflúvios da felicidade de Teobaldo que o pobre
Coruja ouviu palpitar entre essas duas criaturas as seguintes palavras, mais
ternas e harmoniosas que um diálogo de beijos:

– Amas-me muito, meu filho?

– Eu te adoro, minha Santa.

– E nunca te esquecerás de mim?

– Juro-te que nunca.

– Nem mesmo depois de eu ter morrido?

– Nem mesmo depois de teres ido para o céu.

– E sabes tu, meu filho, o muito que te quero?

– Queres-me tanto quanto eu a ti.

– E sabes quanto sofreria tua mãe se por instantes te esquecesses dela?

– Não, porque não sei como possa a gente se esquecer de ti.

– E, quando fores completar os teus estudos na corte, juras que..

Não pode ir adiante. A idéia da separação que já se avizinhava a passos largos,
tolheu-lhe a fala com uma explosão de soluços.

– Então, Santa, então, que é isso? murmurou Teobaldo, erguendo-se e chamando
para sobre o seu peito a cabeça da baronesa – Não chores! não te mortifiques!…

Emílio acudiu logo, afastou o filho com um gesto e, tomando o lugar deste,
segredou ao ouvido da esposa:

– Vamos, minha amiga, nada de loucuras!…

– Não posso conformar-me com a idéia de que Teobaldo torna a separar-se de
mim…

– Bem sabes que é indispensável…

– Perdoa-me. Ninguém melhor do que eu aprecia os teus atos e as tuas intenções.
Sei que ele precisa fazer um futuro condigno do seu talento; sei que não podemos
acompanhá-lo de perto, não podemos morar na corte, porque as nossas condições
de fortuna já não…

– Santa! olha que te podem ouvir!…

– Não me conformo com esta separação! É talvez um pressentimento infundado;
é talvez loucura, como dizes, mas não está em minhas mãos; sou mãe, e ele
é tão digno de ser amado.

– Mas, valha-me Deus! não é uma separação eterna…

– Não sei! É que uma terrível idéia me preocupa. Afigura-se-me que nunca
mais o tornarei a ver!… Oh! nem quero pensar nisto!

E os soluços transbordaram-lhe de novo, ainda com mais ímpeto que da primeira
vez.

O barão, sem perder uma linha do seu donaire, passou o braço na cintura da
esposa e, deixando que ela se lhe apoiasse de todo no ombro, arrastou-a vagarosamente
até à sua alcova.

* * *

Coruja, ignorado a um canto da sala, viu e ouviu tudo isso, e ao ver aquelas
lágrimas de mãe e ao ouvir aquelas palavras de tanto amor e aqueles beijos
mais doces do que as bênçãos do céu, que estranhas amarguras sua alma não
carpiu em silencio!…

Amargura, sim, que, por menos egoísta, por menos homem que fosse ele, do
fundo do seu coração havia de sair um grito de revolta contra aquela injustiça
da sorte, que para uns dava tudo e para outros nada!

Aquele espetáculo de tamanha felicidade havia fatalmente de amargurá-lo.
Ainda se Teobaldo, possuindo muitos dotes fosse ao menos feito como ele, o
Coruja; ainda se fosse miserável ou estúpido, – vá! Mas não! Teobaldo era
lindo, era rico, era talentoso e, além de tudo – amado! amado por tantas criaturas
e, principalmente, por aquela adorável mãe, cujos beijos e cujas lágrimas
eram o bastante para lhe adoçar todos os espinhos da vida.

E André, assim considerando, via-se perfeitamente, tinha-se defronte dos
olhos, como se estivesse em frente a um espelho. Lá estava ele – com a sua
disforme cabeça engolida pelos ombros, com o seu torvo olhar de fera mal domesticada,
com os sobrolhos carregados, a boca fechada a qualquer alegria, as mãos ásperas
e curtas, os pés grandes, o todo reles, miserável, nulo!

O desgraçado, porém, em vez de dar ouvidos a estes raciocínios, voltou-se
todo para uma voz íntima, uma voz que também lhe vinha do coração, mas toda
brandura e humildade.

E essa voz lhe dizia:

– Pois bem, miserável! ingrato! tu, que és órfão; tu que não tens onde cair
morto; tu, que és feio, que és o Coruja; tu, que não tens nenhum dote brilhante,
que não és distinto, nem espirituoso, nem possuis mérito de espécie alguma;
tu, mal agradecido! – és amado por Teobaldo, que dispõe de tudo isso à larga
e que te faz penetrar sua sombra no santuário de corações onde nunca penetrarias
sem ele.

E o Coruja, saindo da sala para respirar lá fora mais à vontade, pôs-se a
caminhar, a caminhar à toa entre as sombras das árvores, sentindo-se arrebatado
por um inefável desejo de ser bom, um desejo de ser eternamente grato a quem,
possuindo todas as riquezas, o escolhia para seu íntimo, para seu irmão –
a ele, que nada possuía sobre a terra.

Ser “bom”!

Mas seria isso humildade ou seria ambição e orgulho?

Quem poderá afirmar que aquele enjeitado da natureza não se queria vingar
da própria mãe fazendo de si um monstro de bondade? Sim. Vingar-se, fugindo
da esfera mesquinha dos homens, fugindo às paixões, às pequenas misérias mundanas
e procurando refugiar-se no próprio coração, ainda receoso de que o céu, cúmplice
da terra, lhe negasse também a graça de um abrigo.

Ou quem sabe então se o ambicioso, vendo-se completamente deserdado de todos
os dotes simpáticos a que tem direito a sua espécie, não queria supri-los
por uma virtude única e extraordinária – a bondade?

A bondade, esse pouco!

Visionário! Não se lembrava de que a bondade, á força de ser esquecida e
desprezada, converteu-se em uma hipótese ou só aparece no mercado social em
pequenas partículas distribuídas por milhares de criaturas; como se dessa
heróica virtude houvesse apenas uma certa e determinada porção desde o começo
do mundo e que, de então para cá, à medida que se multiplicaram as raças.
ela se fora dividindo e subdividindo até reduzir-se a pó.

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