O Cortiço – Aluísio de Azevedo




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I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII – XVII

 

 

I

João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro
que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos
do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia
de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento
de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda
um conto e quinhentos em dinheiro. Proprietário e estabelecido por sua conta,
o rapaz atirou-se à labutação ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delírio
de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre
o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de
um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos
réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona,
escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português
que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade. Bertoleza também trabalhava
forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manhã vendia
angu, e à noite peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal a seu dono
vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o necessário
para a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr meia légua,
puxando uma carga superior às suas forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça,
estrompado como uma besta. João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça,
fez-se até participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho
a lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras.
Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades. “Seu
senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher
ter de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!”
E segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo
ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada
por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. Daí em diante, João
Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de
pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia e era também
quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se encarregava de remeter
ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e
a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo
até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu João”, como ela dizia.
Seu João debitava metodicamente essas pequenas quantias num caderninho, em
cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras cortadas de jornal:
“Ativo e passivo de Bertoleza”. E por tal forma foi o taverneiro ganhando
confiança no espírito da mulher, que esta afinal nada mais resolvia só por
si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arbítrio. Por último, se alguém
precisava tratar com ela qualquer negócio, nem mais se dava ao trabalho de
procurá-la, ia logo direito a João Romão.

Quando deram fé estavam amigados.

João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos de terreno
ao lado esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas, dividida
ao meio paralelamente à rua, sendo a parte da frente destinada à quitanda
e a do fundo para um dormitório que se arranjou com os cacarecos de Bertoleza.
Havia, além da cama, uma cômoda de

jacarandá muito velha com maçanetas de metal amarelo já mareadas, um oratório
cheio de santos e forrado de papel de cor, um baú grande de couro cru tacheado,
dois banquinhos de pau feitos de uma só peça e um formidável cabide de pregar
na parede, com a sua competente coberta de retalhos de chita.

O vendeiro nunca tivera tanta mobília.

– Agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você
vai ficar forra; eu entro com o que falta.

Nesse dia ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma folha
de papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira.

– Você agora não tem mais senhor! declarou em seguida à leitura, que ela
ouviu entre lágrimas agradecidas. Agora está livre. Doravante o que você fizer
é só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar
os vinte mil-réis à peste do cego!

– Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele, como meu senhor, exigia o jornal,
exigia o que era seu!

– Seu ou não seu, acabou-se! E vida nova!

Contra todo o costume, abriu-se nesse dia uma garrafa de vinho do Porto,
e os dois beberam-na em honra ao grande acontecimento. Entretanto, a tal carta
de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele entendeu
de pespegar-lhe em cima, para dar à burla maior formalidade, representava
despesa porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida. O senhor de
Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; o que lhe constou, sim, foi
que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do amigo.

– O cego que venha buscá-la aqui, se for capaz… desafiou o vendeiro de
si para si. Ele que caia nessa e verá se tem ou não pra pêras! Não obstante,
só ficou tranqüilo de todo daí a três meses, quando lhe constou a morte do
velho. A escrava passara naturalmente em herança a qualquer dos filhos do
morto; mas, por estes, nada havia que recear: dois pândegos de marca maior
que, empolgada a legitima, cuidariam de tudo, menos de atirar-se na pista
de uma crioula a quem não viam de muitos anos àquela parte. “Ora! bastava
já, e não era pouco, o que lhe tinham sugado durante tanto tempo!” Bertoleza
representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de
criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada
estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois
preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além
de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia
ao balcão na taverna, quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua
quitanda durante o dia no intervalo de outros serviços, e à noite passava-se
para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado
e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos
e sem meias, comprar à praia do Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava
tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem, que esta,
valha a verdade, não era tanta e nunca passava em todo o mês de alguns pares
de calças de zuarte e outras tantas camisas de riscado. João Romão não saia
nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos; tudo que rendia a sua venda
e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa econômica e daí então para
o banco. Tanto assim que, um ano depois da aquisição da crioula, indo em hasta
pública algumas braças de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as
logo e tratou, sem perda de tempo, de construir três casinhas de porta e janela.
Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção!
Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que
o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do fundo,
da mesma forma que subtraiam o material das casas em obra que havia por ali
perto. Estes furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do
melhor sucesso, graças à circunstância de que nesse tempo a polícia não se
mostrava muito por aquelas alturas. João Romão observava durante o dia quais
as obras em que ficava material para o dia seguinte, e à noite lá estava ele
rente, mais a Bertoleza, a removerem tábuas, tijolos, telhas, sacos de cal,
para o meio da rua, com tamanha habilidade que se não ouvia vislumbre de rumor.
Depois, um tomava uma carga e partia para casa, enquanto o outro ficava de
alcatéia ao lado do resto, pronto a dar sinal, em caso de perigo; e, quando
o que tinha ido voltava, seguia então o companheiro, carregado por sua vez.

Nada lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de pau,
o banco ou a ferramenta dos marceneiros. E o fato é que aquelas três casinhas,
tão engenhosamente construídas, foram o ponto de partida do grande cortiço
de São Romão. Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras,
ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da
sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e
o número de moradores. Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo,
não perdendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar
todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses,
roubando nos

pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos
furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas,
empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga como uma
junta de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da bela pedreira,
que ele, todos os dias, ao cair da tarde, assentado um instante à porta da
venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobiça. Pôs lá seis
homens a quebrarem pedra e outros seis a fazerem lajedos e paralelepípedos,
e então principiou a ganhar em grosso, tão em grosso que, dentro de ano e
meio, arrematava já todo o espaço compreendido entre as suas casinhas e a
pedreira, isto é, umas oitenta braças de fundo sobre vinte de frente em plano
enxuto e magnífico para construir. Justamente por essa ocasião vendeu-se também
um sobrado que ficava à direita da venda, separado desta apenas por aquelas
vinte braças; de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns
vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas
de peitoril. Comprou-o um tal Miranda, negociante português, estabelecido
na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado. Corrida uma limpeza
geral no casarão, mudar-se-ia ele para lá com a família, pois que a mulher,
Dona Estela, senhora pretensiosa e com fumaças de nobreza, já não podia suportar
a residência no centro da cidade, como também sua menina, a Zulmirinha, crescia
muito pálida e precisava de largueza para enrijar e tomar corpo.

Isto foi o que disse o Miranda aos colegas, porém a verdadeira causa da mudança
estava na necessidade, que ele reconhecia urgente, de afastar Dona Estela
do alcance dos seus caixeiros. Dona Estela era uma mulherzinha levada da breca:
achava-se casada havia treze anos e durante esse tempo dera ao marido toda
sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de matrimônio, o
Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério; ficou furioso e o seu primeiro
impulso foi de mandá-la para o diabo junto com o cúmplice; mas a sua casa
comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, uns oitenta contos em prédios
e ações da divida publica, de que se utilizava o desgraçado tanto quanto lhe
permitia o regime dotal. Além de que, um rompimento brusco seria obra para
escândalo, e, segundo a sua opinião, qualquer escândalo doméstico ficava muito
mal a um negociante de certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posição
social e tremia só com a idéia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem
coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas
regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na
Europa. Acovardado defronte destes raciocínios, contentou-se com uma simples
separação de leitos, e os dois passaram a dormir em quartos separados. Não
comiam juntos, e mal trocavam entre si uma ou outra palavra constrangida,
quando qualquer inesperado acaso os reunia a contragosto. Odiavam-se. Cada
qual sentia pelo outro um profundo desprezo, que pouco a pouco se foi transformando
em repugnância completa. O nascimento de Zulmira veio agravar ainda mais a
situação; a pobre criança, em vez de servir de elo aos dois infelizes, foi
antes um novo isolador que se estabeleceu entre eles. Estela amava-a menos
do que lhe pedia o instinto materno por supô-la filha do marido, e este a
detestava porque tinha convicção de não ser seu pai. Uma bela noite, porém,
o Miranda, que era homem de sangue esperto e orçava então pelos seus trinta
e cinco anos, sentiu-se em insuportável estado de lubricidade. Era tarde já
e não havia em casa alguma criada que lhe pudesse valer. Lembrou-se da mulher,
mas repeliu logo esta idéia com escrupulosa repugnância. Continuava a odiá-la.
Entretanto este mesmo fato de obrigação em que ele se colocou de não servir-se
dela, a responsabilidade de desprezá-la, como que ainda mais lhe assanhava
o desejo da carne, fazendo da esposa infiel um fruto proibido. Afinal, coisa
singular, posto que moralmente nada diminuísse a sua repugnância pela perjura,
foi ter ao quarto dela. A mulher dormia a sono solto. Miranda entrou pé ante
pé e aproximou-se da cama. “Devia voltar!… pensou. Não lhe ficava bem aquilo!…”
Mas o sangue latejava-lhe, reclamando-a. Ainda hesitou um instante, imóvel,
a contemplá-la no seu desejo. Estela, como se o olhar do marido lhe apalpasse
o corpo, torceu-se sobre o quadril da esquerda, repuxando com as coxas o lençol
para a frente e patenteando uma nesga de nudez estofada e branca. O Miranda
não pôde resistir, atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto, mais
de surpresa que de revolta, desviou-se, tornando logo e enfrentando com o
marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que continuava
a dormir, sem a menor consciência de tudo aquilo. Ah! ela contava como certo
que o esposo, desde que não teve coragem de separar-se de casa, havia, mais
cedo ou mais tarde, de procurá-la de novo. Conhecia-lhe o temperamento, forte
para desejar e fraco para resistir ao desejo. Consumado o delito, o honrado
negociante sentiu-se tolhido de vergonha e arrependimento. Não teve animo
de dar palavra, e retirou-se tristonho e murcho para o seu quarto de desquitado.
Oh! como lhe doía agora o que acabava de praticar na cegueira da sua sensualidade.
– Que cabeçada!… dizia ele agitado. Que formidável cabeçada!… No dia seguinte,
os dois viram-se e evitaram-se em silêncio, como se nada de extraordinário
houvera entre eles acontecido na véspera. Dir-se-ia até que, depois daquela
ocorrência, o Miranda sentia crescer o seu ódio contra a esposa. E, à noite
desse mesmo dia, quando se achou sozinho na sua cama estreita, jurou mil vezes
aos seus brios nunca mais, nunca mais, praticar semelhante loucura.

Mas, daí a um mês, o pobre homem, acometido de um novo acesso de luxúria,
voltou ao quarto da mulher. Estela recebeu-o desta vez como da primeira, fingindo
que não acordava; na ocasião, porém, em que ele se apoderava dela febrilmente,
a leviana, sem se poder conter, soltou-lhe em cheio contra o rosto uma gargalhada
que a custo sopeava. O pobre-diabo desnorteou, deveras escandalizado, soerguendo-se,
brusco, num estremunhamento de sonâmbulo acordado com violência. A mulher
percebeu a situação e não lhe deu tempo para fugir; passou-lhe rápido as pernas
por cima e, grudando-se-lhe ao corpo, cegou-o com uma metralhada de beijos.
Não se falaram. Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta
no prazer. Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos braços de uma amante apaixonada:
descobriu nela o capitoso encanto com que nos embebedam as cortesãs amestradas
na ciência do gozo venéreo. Descobriu-lhe no cheiro da pele e no cheiro dos
cabelos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro hálito, outro som
nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com delírio, com
verdadeira satisfação de animal no cio. E ela também, ela também gozou, estimulada
por aquela circunstância picante do ressentimento que os desunia; gozou a
desonestidade daquele ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se
toda, rangendo os dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o
também agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o nos seus braços nus,
metendo-lhe pela boca a língua úmida e em brasa. Depois, um arranco de corpo
inteiro, com um soluço gutural e estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se
num abandono de pernas e braços abertos, a cabeça para o lado, os olhos moribundos
e chorosos, toda ela agonizante, como se a tivessem crucificado na cama. A
partir dessa noite, da qual só pela manhã o Miranda se retirou do quarto da
mulher, estabeleceu-se entre eles o hábito de uma felicidade sexual, tão completa
como ainda não a tinham desfrutado, posto que no intimo de cada um persistisse
contra o outro a mesma repugnância moral em nada enfraquecida. Durante dez
anos viveram muito bem casados; agora, porém, tanto tempo depois da primeira
infidelidade conjugal, e agora que o negociante já não era acometido tão freqüentemente
por aquelas crises que o arrojavam fora de horas ao dormitório de Dona Estela;
agora, eis que a leviana parecia disposta a reincidir na culpa, dando corda
aos caixeiros do marido, na ocasião em que estes subiam para almoçar ou jantar.
Foi por isso que o Miranda comprou o prédio vizinho a João Romão. A casa era
boa; seu único defeito estava na escassez do quintal; mas para isso havia
remédio: com muito pouco compravam-se umas dez braças daquele terreno do fundo
que ia até à pedreira, e mais uns dez ou quinze palmos do lado em que ficava
a venda. Miranda foi logo entender-se com o Romão e propôs-lhe negócio. O
taverneiro recusou formalmente. Miranda insistiu. – O senhor perde seu tempo
e seu latim! retrucou o amigo de Bertoleza. Nem só não cedo uma polegada do
meu terreno, como ainda lhe compro, se mo quiser vender, aquele pedaço que
lhe fica ao fundo da casa! – O quintal? – É exato.

– Pois você quer que eu fique sem chácara, sem jardim, sem nada?

– Para mim era de vantagem…

– Ora, deixe-se disso, homem, e diga lá quanto quer pelo que lhe propus.

– Já disse o que tinha a dizer.

– Ceda-me então ao menos as dez braças do fundo.

– Nem meio palmo!

– Isso é maldade de sua parte, sabe? Eu, se faço tamanho empenho, é pela
minha pequena, que precisa, coitada, de um pouco de espaço para alargar-se.

– E eu não cedo, porque preciso do meu terreno!

– Ora qual! Que diabo pode lá você fazer ali? Uma porcaria de um pedaço de
terreno quase grudado ao morro e aos fundos de minha casa! quando você, aliás,
dispõe de tanto espaço ainda!

– Hei de lhe mostrar se tenho ou não o que fazer ali!

– É que você é teimoso! Olhe, se me cedesse as dez braças do fundo, a sua
parte ficaria cortada em linha reta até à pedreira, e escusava eu de ficar
com uma aba de terreno alheio a meter-se pelo meu. Quer saber? não amuro o
quintal sem você decidir-se!

– Então ficará com o quintal para sempre sem muro, porque o que tinha a dizer
já disse!

– Mas, homem de Deus, que diabo! pense um pouco! Você ali não pode construir
nada! Ou pensará que lhe deixarei abrir janelas sobre o meu quintal!…

– Não preciso abrir janelas sobre o quintal de ninguém!

– Nem tampouco lhe deixarei levantar parede, tapando-me as janelas da esquerda!

– Não preciso levantar parede desse lado…

– Então que diabo vai você fazer de todo este terreno?…

– Ah! isso agora é cá comigo!… O que for soará!

– Pois creia que se arrepende de não me ceder o terreno!…

– Se me arrepender, paciência! Só lhe digo é que muito mal se sairá quem
quiser meter-se cá com a minha vida!

– Passe bem!

– Adeus!

Travou-se então uma lata renhida e surda entre o português negociante de
fazendas por atacado e o português negociante de secos e molhados. Aquele
não se resolvia a fazer o muro do quintal, sem ter alcançado o pedaço de terreno
que o separava do morro; e o outro, por seu lado, não perdia a esperança de
apanhar-lhe ainda, pelo menos, duas ou três braças aos fundos da casa; parte
esta que, conforme os seus cálculos, valeria ouro, uma vez realizado o grande
projeto que ultimamente o trazia preocupado – a criação de uma estalagem em
ponto enorme, uma estalagem monstro, sem exemplo, destinada a matar toda aquela
miuçalha de cortiços que alastravam por Botafogo.

Era este o seu ideal. Havia muito que João Romão vivia exclusivamente para
essa idéia; sonhava com ela todas as noites; comparecia a todos os leilões
de materiais de construção; arrematava madeiramentos já servidos; comprava
telha em segunda mão; fazia pechinchas de cal e tijolos; o que era tudo depositado
no seu extenso chão vazio, cujo aspecto tomava em breve o caráter estranho
de uma enorme barricada, tal era a variedade dos objetos que ali se apinhavam
acumulados: tábuas e sarrafos, troncos de árvore, mastros de navio, caibros,
restos de carroças, chaminés de barro e de ferro, fogões desmantelados, pilhas
e pilhas de tijolos de todos os feitios, barricas de cimento, montes de areia
e terra vermelha, aglomerações de telhas velhas, escadas partidas, depósitos
de cal, o diabo enfim; ao que ele, que sabia perfeitamente como essas coisas
se furtavam, resguardava, soltando à noite um formidável cão de fila.

Este cão era pretexto de eternas resingas com a gente do Miranda, a cujo
quintal ninguém de casa podia descer, depois das dez horas da noite, sem correr
o risco de ser assaltado pela fera.

– É fazer o muro! dizia o João Romão, sacudindo os ombros.

– Não faço! replicava o outro. Se ele é questão de capricho eu também tenho
capricho!

Em compensação, não caia no quintal do Miranda galinha ou frango, fugidos
do cercado do vendeiro, que não levasse imediato sumiço. João Romão protestava
contra o roubo em termos violentos, jurando vinganças terríveis, falando em
dar tiros.

– Pois é fazer um muro no galinheiro! repontava o marido de Estela.

Daí a alguns meses, João Romão, depois de tentar um derradeiro esforço para
conseguir algumas braças do quintal do vizinho, resolveu principiar as obras
da estalagem.

– Deixa estar, conversava ele na cama com a Bertoleza; deixa estar que ainda
lhe hei de entrar pelos fundos da casa, se é que não lhe entre pela frente!
Mais cedo ou mais tarde como-lhe, não duas braças, mas seis, oito, todo o
quintal e até o próprio sobrado talvez!

E dizia isto com uma convicção de quem tudo pode e tudo espera da sua perseverança,
do seu esforço inquebrantável e da fecundidade prodigiosa do seu dinheiro,
dinheiro que só lhe saia das unhas para voltar multiplicado.

Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos,
todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma
preocupação: aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira
os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as suas galinhas
produziam muito e ele não comia um ovo, do que no entanto gostava imenso;
vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos trabalhadores.
Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero
de acumular; de reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote, socado, de cabelos
à escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda,
da venda às hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa, de tamancos,
sem meias, olhando

para todos os lados, com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os
olhos, de tudo aquilo de que ele não podia apoderar-se logo com as unhas.

Entretanto, a rua lá fora povoava-se de um modo admirável. Construía-se mal,
porém muito; surgiam chalés e casinhas da noite para o dia; subiam os aluguéis;
as propriedades dobravam de valor. Montara-se uma fábrica de massas italianas
e outra de velas, e os trabalhadores passavam de manhã e às Ave-Marias, e
a maior parte deles ia comer à casa de pasto que João Romão arranjara aos
fundos da sua varanda. Abriram-se novas tavernas; nenhuma, porém, conseguia
ser tão afreguesada como a dele. Nunca o seu negocio fora tão bem, nunca o
finório vendera tanto; vendia mais agora, muito mais, que nos anos anteriores.
Teve até de admitir caixeiros. As mercadorias não lhe paravam nas prateleiras;
o balcão estava cada vez mais lustroso, mais gasto. E o dinheiro a pingar,
vintém por vintém, dentro da gaveta, e a escorrer da gaveta para a barra,
aos cinqüenta e aos cem mil-réis, e da burra para o banco, aos contos e aos
contos. Afinal, já lhe não bastava sortir o seu estabelecimento nos armazéns
fornecedores; começou a receber alguns gêneros diretamente da Europa: o vinho,
por exemplo, que ele dantes comprava aos quintos nas casas de atacado, vinha-lhe
agora de Portugal às pipas, e de cada uma fazia três com água e cachaça; e
despachava faturas de barris de manteiga, de caixas de conserva, caixões de
fósforos, azeite, queijos, louça e muitas outras mercadorias. Criou armazéns
para depósito, aboliu a quitanda e transferiu o dormitório, aproveitando o
espaço para ampliar a venda, que dobrou de tamanho e ganhou mais duas portas.
Já não era uma simples taverna, era um bazar em que se encontrava de tudo,
objetos de armarinho, ferragens, porcelanas, utensílios de escritório, roupa
de riscado para os trabalhadores, fazenda para roupa de mulher, chapéus de
palha próprios para o serviço ao sol, perfumarias baratas, pentes de chifre,
lenços com versos de amor, e anéis e brincos de metal ordinário.

E toda a gentalha daquelas redondezas ia cair lá, ou então ali ao lado, na
casa de pasto, onde os operários das fábricas e os trabalhadores da pedreira
se reuniam depois do serviço, e ficavam bebendo e conversando até as dez horas
da noite, entre o espesso fumo dos cachimbos, do peixe frito em azeite e dos
lampiões de querosene. Era João Romão quem lhes fornecia tudo, tudo, até dinheiro
adiantado, quando algum precisava. Por ali não se encontrava jornaleiro, cujo
ordenado não fosse inteirinho parar às mãos do velhaco. E sobre este cobre,
quase sempre emprestado aos tostões, cobrava juros de oito por cento ao mês,
um pouco mais do que levava aos que garantiam a divida com penhores de ouro
ou prata.

Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam-se
logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em
alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os
empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dois passos
da obrigação. O Miranda rebentava de raiva. – Um cortiço! exclamava ele, possesso.
Um cortiço! Maldito seja aquele vendeiro de todos os diabos! Fazer-me um cortiço
debaixo das janelas!… Estragou-me a casa, o malvado! E vomitava pragas,
jurando que havia de vingar-se, e protestando aos berros contra o pó que lhe
invadia em ondas as salas, e contra o infernal baralho dos pedreiros e carpinteiros
que levavam a martelar de sol a sol. O que aliás não impediu que as casinhas
continuassem a surgir, uma após outra, e fossem logo se enchendo, a estenderem-se
unidas por ali a fora, desde a venda até quase ao morro, e depois dobrassem
para o lado do Miranda e avançassem sobre o quintal deste, que parecia ameaçado
por aquela serpente de pedra e cal. O Miranda mandou logo levantar o muro.
Nada! aquele demônio era capaz de invadir-lhe a casa até a sala de visitas!
E os quartos do cortiço pararam enfim de encontro ao muro do negociante, formando
com a continuação da casa deste um grande quadrilongo, espécie de pátio de
quartel, onde podia formar um batalhão. Noventa e cinco casinhas comportou
a imensa estalagem. Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte
braças que separavam a venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez
palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um
grande portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas,
por cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta
encarnada e sem ortografia: “Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e
tinas para lavadeiras”. As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia;
tudo pago adiantado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis;
sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada
para lavar. Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra
parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender
a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de
todos os

pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma
das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma
nuvem de pretendentes a disputá-los. E aquilo se foi constituindo numa grande
lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortaliças
verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam
como manchas alegres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes
e o revérbero das claras barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos
bancos de lavar. E os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam
ao sol, que nem lagos de metal branco. E naquela terra encharcada e fumegante,
naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer,
um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali
mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.

II

Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se
de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância
brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia
junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais grossas
do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno
dela, rachando o solo e abalando tudo. Posto que lá na Rua do Hospício os
seus negócios não corressem mal, custava-lhe a sofrer a escandalosa fortuna
do vendeiro “aquele tipo! um miserável, um sujo, que não pusera nunca um paletó,
e que vivia de cama e mesa com uma negra!” À noite e aos domingos ainda mais
recrudescia o seu azedume, quando ele, recolhendo-se fatigado do serviço,
deixava-se ficar estendido numa preguiçosa, junto à mesa da sala de jantar,
e ouvia, a contragosto, o grosseiro rumor que vinha da estalagem numa exalação
forte de animais cansados. Não podia chegar à janela sem receber no rosto
aquele bafo, quente e sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas
no coito. E depois, fechado no quarto de dormir, indiferente e habituado às
torpezas carnais da mulher, isento já dos primitivos sobressaltos que lhe
faziam, a ele, ferver o sangue e perder a tramontana, era ainda a prosperidade
do vizinho o que lhe obsedava o espírito, enegrecendo-lhe a alma com um feio
ressentimento de despeito. Tinha inveja do outro, daquele outro português
que fizera fortuna, sem precisar roer nenhum chifre; daquele outro que, para
ser mais rico três vezes do que ele, não teve de casar com a filha do patrão
ou com a bastarda de algum fazendeiro freguês da casa! Mas então, ele Miranda,
que se supunha a última expressão da ladinagem e da esperteza; ele, que, logo
depois do seu casamento, respondendo para Portugal a um ex-colega que o felicitava,
dissera que o Brasil era uma cavalgadura carregada de dinheiro, cujas rédeas
um homem fino empolgava facilmente; ele, que se tinha na conta de invencível
matreiro, não passava afinal de um pedaço de asno comparado com o seu vizinho!
Pensara fazer-se senhor do Brasil e fizera-se escravo de uma brasileira mal-educada
e sem escrúpulos de virtude! Imaginara-se talhado para grandes conquistas,
e não passava de uma vitima ridícula e sofredora!… Sim! no fim de contas
qual fora a sua África?… Enriquecera um pouco, é verdade, mas como? a que
preço? hipotecando-se a um diabo, que lhe trouxera oitenta contos de réis,
mas incalculáveis milhões de desgostos e vergonhas! Arranjara a vida, sim,
mas teve de aturar eternamente uma mulher que ele odiava! E do que afinal
lhe aproveitar tudo isso? Qual era afinal a sua grande existência? Do inferno
da casa para o purgatório do trabalho e vice-versa! Invejável sorte, não havia
dúvida!

Na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o desgraçado nem sequer
gozava o prazer de ser pai. Se ela, em vez de nascer de Estela, fora uma enjeitadinha
recolhida por ele, é natural que a amasse e então a vida lhe correria de outro
modo; mas naquelas condições, a pobre criança nada mais representava que o
documento vivo do ludibrio materno, e o Miranda estendia até à inocentezinha
d’África o ódio que sustentava contra a esposa. Uma espiga a tal da sua vida!

– Fui uma besta! resumiu ele, em voz alta, apeando-se da cama, onde se havia
recolhido inutilmente. E pôs-se a passear no quarto sem vontade de dormir,
sentindo que a febre daquela inveja lhe estorricava os miolos. Feliz e esperto
era o João Romão! esse, sim, senhor! Para esse é que havia de ser a vida!…
Filho da mãe, que estava hoje tão livre e desembaraçado como no dia em que
chegou da terra sem um vintém de seu! esse, sim, que era moço e podia ainda
gozar muito, porque quando mesmo viesse a casar e a mulher lhe saísse uma
outra Estela era só mandá-la para o diabo com um pontapé! Podia fazê-lo! Para
esse é que era o Brasil! – Fui uma besta! repisava ele sem conseguir conformar-se
com a felicidade do vendeiro. Uma grandíssima! No fim de contas que diabo
possuo eu?… Uma casa de negócio, da qual não posso separar-me sem comprometer
o que lá está enterrado! um capital metido numa rede de transações que não
se liquidam nunca, e cada vez mais se complicam e mais me grudam ao estupor
desta terra, onde deixarei a casca! Que tenho de meu, se a alma do meu crédito
é o dote, que me trouxe aquela sem-vergonha e que a ela me prende como a peste
da casa comercial me prende a esta Costa d’África? Foi da supuração
fétida destas idéias que se formou no coração vazio do Miranda um novo ideal
– o título. Faltando-lhe temperamento próprio para os vícios fortes que enchem
a vida de um homem; sem família, a quem amar e sem imaginação para poder gozar
com as prostitutas, o náufrago agarrou-se àquela tábua, como um agonizante,
consciente da morte, que se apega à esperança de uma vida futura. A vaidade
de Estela, que a principio lhe tirava dos lábios incrédulos sorrisos de mofa,
agora lhe comprazia à farta. Procurou capacitar-se de que ela com efeito herdara
sangue nobre, que ele, por sua vez, se não o tinha herdado, trouxera-o por
natureza própria, o que devia valer mais ainda; e desde então principiou a
sonhar com um baronato, fazendo disso o objeto querido da sua existência,
muito satisfeito no intimo por ter afinal descoberto uma coisa em que podia
empregar dinheiro, sem ter, nunca mais, de restituí-lo à mulher, nem ter de
deixá-lo a pessoa alguma.

Semelhante preocupação modificou-o em extremo. Deu logo para fingir-se escravo
das conveniências, afetando escrúpulos sociais, empertigando-se quanto podia
e disfarçando a sua inveja pelo vizinho com um desdenhoso ar de superioridade
condescendente. Ao passar-lhe todos os dias pela venda, cumprimentava-o com
proteção, sorrindo sem rir e fechando logo a cara em seguida, muito sério.
Dados os primeiros passos para a compra do titulo abriu a casa e deu festas.
A mulher, posto que lhe apontassem já os cabelos brancos, rejubilou com isso.
Zulmira tinha então doze para treze anos e era o tipo acabado da fluminense;
pálida, magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do nariz, das pálpebras
e dos lábios, faces levemente pintalgadas de sardas. Respirava o tom úmido
das flores noturnas, uma brancura fria de magnólia; cabelos castanho-claros,
mãos quase transparentes, unhas moles e curtas, como as da mãe, dentes pouco
mais claros do que a cútis do rosto, pés pequeninos, quadril estreito mas
os olhos grandes, negros, vivos e maliciosos.

Por essa época, justamente, chegava de Minas, recomendado ao pai dela, o
filho de um fazendeiro importantíssimo que dava belos lucros à casa comercial
de Miranda e que era talvez o melhor freguês que este possuía no interior.
O rapaz chamava-se Henrique, tinha quinze anos e vinha terminar na corte alguns
preparatórios que lhe faltavam para entrar na Academia de Medicina. Miranda
hospedou-o no seu sobrado da Rua do Hospício mas o estudante queixou-se, no
fim de alguns dias, de que ai ficava mal acomodado, e o negociante, a quem
não convinha desagradar-lhe, carregou com ele para a sua residência particular
de Botafogo. Henrique era bonitinho, cheio de acanhamentos, com umas delicadezas
de menina. Parecia muito cuidadoso dos seus estudos e tão pouco extravagante
e gastador, que não despendia um vintém fora das necessidade de primeira urgência.
De resto, a não ser de manhã para as aulas, que ia sempre com o Miranda, não
arredava pé de casa senão em companhia da família, deste. Dona Estela, no
cabo de pouco tempo, mostrou por ele estima quase maternal e encarregou-se
de tomar conta da sua mesada, mesada posta pelo negociante, visto que o Henriquinho
tinha ordem franca do pai. Nunca pedia dinheiro; quando precisava de qualquer
coisa, reclamava-a de Dona Estela, que por sua vez encarregava o marido de
comprá-la, sendo o objeto lançado na conta do fazendeiro com uma comissão
de usurário. Sua hospedagem custava duzentos e cinqüenta mil-réis por mês,
do que ele todavia não tinha conhecimento, nem queria ter. Nada lhe faltava,
e os criados da casa o respeitavam como a um filho do próprio senhor. À noite,
às vezes, quando o tempo estava bom, Dona Estela saia com ele, a filha e um
moleque, o Valentim, a darem uma volta ate à praia e, em tendo convite para
qualquer festa em casa das amigas, levava-o em sua companhia. A criadagem
da família, do Miranda compunha-se de Isaura, mulata ainda moça, moleirona
e tola, que gastava todo o vintenzinho que pilhava em comprar capilé na venda
de João Romão; uma negrinha virgem, chamada Leonor, muito ligeira e viva,
lisa e seca como um moleque, conhecendo de orelha, sem lhe faltar um termo,
a vasta tecnologia da obscenidade, e dizendo, sempre que os caixeiros ou os
fregueses da taverna, só para mexer com ela, lhe davam atracações: “Óia, que
eu me queixo ao juiz de orfe!”, e finalmente o tal Valentim, filho de uma
escrava que foi de Dona Estela e a quem esta havia alforriado.

A mulher do Miranda tinha por este moleque uma afeição sem limites: dava-lhe
toda a liberdade, dinheiro, presentes, levava-o consigo a passeio, trazia-o
bem vestido e muita vez chegou a fazer ciúmes à filha, de tão solicita que
se mostrava com ele. Pois se a caprichosa senhora ralhava com Zulmira por
causa do negrinho! Pois, se quando se queixavam os dois, um contra o outro,
ela nunca dava razão à filha! Pois se o que havia de melhor na casa era para
o Valentim! Pois, se quando foi este atacado de bexigas e o Miranda, apesar
das súplicas e dos protestos da esposa, mandou-o para um hospital, Dona Estela
chorava todos os dias e durante a ausência dele não tocou piano, nem cantou,
nem mostrou os dentes a ninguém? E o pobre Miranda, se não queria sofrer impertinências
da mulher e ouvir sensaborias defronte dos criados, tinha de dar ao moleque
toda a consideração e fazer-lhe humildemente todas as vontades. Havia ainda,
sob as telhas do negociante, um outro hóspede além do Henrique, o velho Botelho.
Este, porém, na qualidade de parasita. Era um pobre-diabo caminhando para
os setenta anos, antipático, cabelo branco, curto e duro, como escova, barba
e bigode do mesmo teor; muito macilento, com uns óculos redondos que lhe aumentavam
o tamanho da pupila e davam-lhe à cara uma expressão de abutre, perfeitamente
de acordo com o seu nariz adunco e com a sua boca sem lábios: viam-se-lhe
ainda todos os dentes, mas, tão gastos, que pareciam limados até ao meio.
Andava sempre de preto, com um guarda-chuva debaixo do braço e um chapéu de
Braga enterrado nas orelhas. Fora em seu tempo empregado do comércio, depois
corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na África
negociando negros por sua conta. Atirou-se muito às especulações; durante
a guerra do Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda
desandou e, de malogro em malogro, foi-lhe escapando tudo por entre as suas
garras de ave de rapina. E agora, coitado, já velho, comido de desilusões,
cheio de hemorróidas, via-se totalmente sem recursos e vegetava à

sombra do Mirada, com quem por muitos anos trabalhou em rapaz, sob as ordens
do mesmo patrão, e de quem se conservara amigo, a principio por acaso e mais
tarde por necessidade. Devorava-o, noite e dia, uma implacável amargura, uma
surda tristeza de vencido, um desespero impotente, contra tudo e contra todos,
por não lhe ter sido possível empolgar o mundo com as suas mãos hoje inúteis
e trêmulas. E, como o seu atual estado de miséria não lhe permitia abrir contra
ninguém o bico, desabafava vituperando as idéias da época. Assim, eram às
vezes muito quentes as sobremesas do Miranda, quando, entre outros assuntos
palpitantes, vinha à discussão o movimento abolicionista que principiava a
formar-se em torno da lei Rio Branco. Então o Botelho ficava possesso e vomitava
frases terríveis, para a direita e para a esquerda, como quem dispara tiros
sem fazer alvo, e vociferava imprecações, aproveitando aquela válvula para
desafogar o velho ódio acumulado dentro dele. – Bandidos! berrava apoplético.
Cáfila de salteadores! E o seu rancor irradiava-lhe dos olhos em setas envenenadas,
procurando cravar-se em todas as brancuras e em todas as claridades. A virtude,
a beleza, o talento, a mocidade, a força, a saúde, e principalmente a fortuna,
eis o que ele não perdoava a ninguém, amaldiçoando todo aquele que conseguia
o que ele não obtivera; que gozava o que ele não desfrutara; que sabia o que
ele não aprendera. E, para individualizar o objeto do seu ódio, voltava-se
contra o Brasil, essa terra que, na sua opinião, só tinha uma serventia: enriquecer
os portugueses, e que, no entanto, o deixara, a ele, na penúria. Seus dias
eram consumidos do seguinte modo: acordava às oito da manhã, lavava-se mesmo
no quarto com uma toalha molhada em espírito de vinho; depois ia ler os jornais
para a sala de jantar, à espera do almoço; almoçava e sala, tomava o bonde
e ia direitinho para uma charutaria da Rua do Ouvidor, onde costumava ficar
assentado até às horas do jantar, entretido a dizer mal das pessoas que passavam
lá fora, defronte dele. Tinha a pretensão de conhecer todo o Rio de Janeiro
e os podres de cada um em particular. Às vezes, poucas, Dona Estela encarregava-o
de fazer pequenas compras de armarinho, o que o Botelho desempenhava melhor
que ninguém? Mas a sua grande paixão, o seu fraco, era a farda, adorava tudo
que dissesse respeito a militarismo, posto que tivera sempre invencível medo
às armas de qualquer espécie, mormente às de fogo. Não podia ouvir disparar
perto de si uma espingarda, entusiasmava-se porém com tudo que cheirasse a
guerra; a presença de um oficial em grande uniforme tirava-lhe lágrimas de
comoção; conhecia na ponta da língua o que se referia à vida de quartel; distinguia
ao primeiro lance de olhos o posto e o corpo a que pertencia qualquer soldado
e, apesar dos seus achaques, era ouvir tocar na rua a corneta ou o tambor
conduzindo o batalhão, ficava logo no ar, e, muita vez, quando dava por si,
fazia parte dos que acompanhavam a tropa. Então, não tornava para casa enquanto
os militares neo se recolhessem. Quase sempre voltava dessa loucura às seis
da tarde, moído a fazer dó, sem poder ter-se nas pernas, estrompado de marchar
horas e horas ao som da música de pancadaria. E o mais interessante é que
ele, ao vir-lhe a reação, revoltava-se furioso contra o maldito comandante
que o obrigava àquela estopada, levando o batalhão por uma infinidade de ruas
e fazendo de propósito o caminho mais longo.

– Só parece, lamentava-se ele, que a intenção daquele malvado era dar-me
cabo da pele! Ora vejam! Três horas de marche-marche por uma soalheira de
todos os diabos! Uma das birras mais cômicas do Botelho era o seu ódio pelo
Valentim. O moleque causava-lhe febre com as suas petulâncias de mimalho,
e, velhaco, percebendo quanto elas o irritavam, ainda mais abusava, seguro
na proteção de Dona Estela. O parasita de muito que o teria estrangulado,
se não fora a necessidade de agradar à dona da casa. Botelho conhecia as faltas
de Estela como as palmas da própria mão. O Miranda mesmo, que o via em conta
de amigo fiel, muitas e muitas vezes lhas confiara em ocasiões desesperadas
de desabafo, declarando francamente o quanto no intimo a desprezava e a razão
por que não a punha na rua aos pontapés. E o Botelho dava-lhe toda a razão;
entendia também que os sérios interesses comerciais estavam acima de tudo.
– Uma mulher naquelas condições, dizia ele convicto, representa nada menos
que o capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza! Agora, você o
que devia era nunca chegar-se para ela… – Ora! explicava o marido. Eu me
sirvo dela como quem se serve de uma escarradeira! O parasita, feliz por ver
quanto o amigo aviltava a mulher, concordava em tudo plenamente, dando-lhe
um carinhoso abraço de admiração. Mas por outro lado, quando ouvia Estela
falar do marido, com infinito desdém e até com asco, ainda mais resplandecia
de contente. – Você quer saber? afirmava ela, eu bem percebo quanto aquele
traste do senhor meu marido me detesta, mas isso tanto se me dá como a primeira
camisa que vesti! Desgraçadamente para nós, mulheres de sociedade, não podemos
viver sem esposo, quando somos casadas; de forma que tenho de aturar o que
me caiu em sorte, quer goste dele quer não goste! Juro-lhe, porém, que, se
consinto que o Miranda se chegue às vezes para mim, é porque entendo que paga
mais à pena ceder do que puxar discussão com uma besta daquela ordem! O Botelho,
com a sua encanecida experiência do mundo, nunca transmitia a nenhum dos dois
o que cada qual lhe dizia contra o outro; tanto assim que, certa ocasião,
recolhendo-se à casa incomodado, em hora que não era do seu

costume, ouviu, ao passar pelo quintal, sussurros de vozes abafadas que pareciam
vir de um canto afogado de verdura, onde em geral não ia ninguém. Encaminhou-se
para lá em bicos de pés e, sem ser percebido, descobriu Estela entalada entre
o muro e o Henrique. Deixou-se ficar espiando, sem tugir nem mugir, e, só
quando os dois se separaram, foi que ele se mostrou. A senhora soltou um pequeno
grito, e o rapaz, de vermelho que estava, fez-se cor de cera; mas o Botelho
procurou tranqüilizá-los, dizendo em voz amiga e misteriosa: – Isso é uma
imprudência o que vocês estão fazendo!… Estas coisas não é deste modo que
se arranjam! Assim como fui eu, podia ser outra pessoa… Pois numa casa em
que há tantos quartos, é lá preciso vir meterem-se neste canto do quintal?…
– Nós não estávamos fazendo nada! disse Estela, recuperando o sangue-frio.
– Ah! tornou o velho, aparentando sumo respeito: então desculpe, pensei que
estivessem… E olhe que, se assim fosse, para mim seria o mesmo, porque acho
isso a coisa mais natural do mundo e entendo que desta vida a gente só leva
o que come!… Se vi, creia, foi como se nada visse, porque nada tenho a cheirar
com a vida de cada um!… A senhora está moça, está na força dos anos; seu
marido não a satisfaz, é justo que o substitua por outro! Ah! isto é o mundo,
e, se é torto, não fomos nós que o fizemos torto!… Até certa idade todos
temos dentro um bichinho-carpinteiro, que é preciso matar, antes que ele nos
mate! Não lhes doam as mãos!… apenas acho que, para outra vez, devem ter
um pouquinho mais de cuidado e… – Está bom! basta! ordenou Estela. – Perdão!
eu, se digo isto, é para deixá-los bem tranqüilos a meu respeito. Não quero,
nem por sombra, que se persuadam de que… O Henrique atalhou, com a voz ainda
comovida: – Mas, acredite, seu Botelho, que… O velho interrompeu-o também
por sua vez, passando-lhe a mão no ombro e afastando-o consigo: – Não tenha
receio, que não o comprometerei, menino! E, como já estivessem distantes de
Estela, segredou-lhe em tom protetor: – Não torne a fazer isto assim, que
você se estraga… Olhe como lhe tremem as pernas! Dona Estela acompanhou-os
a distancia, vagarosamente, afetando preocupação em compor um ramalhete, cujas
flores ela ia colhendo com muita graça, ora toda vergada sobre as plantas
rasteiras, ora pondo-se na pontinha dos pés para alcançar os heliotrópios
e os manacás. Henrique seguiu o Botelho até ao quarto deste, conversando sem
mudar de assunto. – Você então não fala nisto, hein? Jura? perguntou-lhe.
O velho tinha já declarado, a rir, que os pilhara em flagrante e que ficara
bom tempo à espreita. – Falar o quê, seu tolo?… Pois então quem pensa você
que eu sou?… Só abrirei o bico se você me der motivo para isso, mas estou
convencido que não dará… Quer saber? eu até simpatizo muito com você, Henrique!
Acho que você é um excelente menino, uma flor! E digo-lhe mais: hei de proteger
os seus negócios com Dona Estela… Falando assim, tinha-lhe tomado as mãos
e afagava-as. – Olhe, continuou, acariciando-o sempre; não se meta com donzelas,
entende?… São o diabo! Por dá cá aquela palha fica um homem em apuros! agora
quanto às outras, papo com elas! Não mande nenhuma ao vigário, nem lhe doa
a cabeça, porque, no fim de contas, nas circunstâncias de Dona Estela, é até
um grande serviço que você lhe faz! Meu rico amiguinho, quando uma mulher
já passou dos trinta e pilha a jeito um rapazito da sua idade, é como se descobrisse
ouro em pó! sabe-lhe a gaitas! Fique então sabendo de que não é só a ela que
você faz o obséquio, mas também ao marido: quanto mais escovar-lhe você a
mulher, melhor ela ficará de gênio, e por conseguinte melhor será para o pobre
homem, coitado! que tem já bastante com que se aborrecer lá por baixo, com
os seus negócios, e precisa de um pouco de descanso quando volta do serviço
e mete-se em casa! Escove-a, escove-a! que a porá macia que nem veludo! O
que é preciso é muito juizinho, percebe? Não faça outra criançada como a de
hoje e continue para diante, não só com ela, mas com todas as que lhe caírem
debaixo da asa! Vá passando! menos as de casa aberta, que isso é perigoso
por causa das moléstias; nem tampouco donzelas! Não se meta com a Zulmira!
E creia que lhe falo assim, porque sou seu amigo, porque o acho simpático,
porque o acho bonito! E acarinhou-o tão vivamente dessa vez, que o estudante,
fugindo-lhe das mãos, afastou-se com um gesto de repugnância e desprezo, enquanto
o velho lhe dizia em voz comprimida: – Olha! Espera! Vem cá! Você é desconfiado!…

III

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas
a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto
de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam
ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da
noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um
suspiro de saudade perdido em terra alheia. A roupa lavada, que ficara de
véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário.
As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas
pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de
espumas secas. Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono;
ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se
grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente
do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela
as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à
noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros
abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava,
destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar
de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam
mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os
louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se
à luz nova do dia. Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente;
uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a
cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns
cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias
entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços
e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco;
os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam
a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas,
fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam,
era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não
se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as
crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal
dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas. O rumor crescia,
condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam
vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam
a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se
gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação
sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos
na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante
satisfação de respirar sobre a terra. Da porta da venda que dava para o cortiço
iam e vinham como formigas; fazendo compras. Duas janelas do Miranda abriram-se.
Apareceu numa a Isaura, que se dispunha a começar a limpeza da casa. – Nhá
Dunga! gritou ela para baixo, a sacudir um pano de mesa; se você tem cuscuz
de milho hoje, bata na porta, ouviu? A Leonor surgiu logo também, enfiando
curiosa a carapinha por entre o pescoço e o ombro da mulata. O padeiro entrou
na estalagem, com a sua grande cesta à cabeça e o seu banco de pau fechado
debaixo do braço, e foi estacionar em meio do pátio, à espera dos fregueses,
pousando a canastra sobre o cavalete que ele armou prontamente. Em breve estava
cercado por uma nuvem de gente. As crianças adulavam-no, e, à proporção que
cada mulher ou cada homem recebia o pão, disparava para casa com este abraçado
contra o peito. Uma vaca, seguida por um bezerro amordaçado, ia, tilintando
tristemente o seu chocalho, de porta em porta, guiada por um homem carregado
de vasilhame de folha. O zunzum chegava ao seu apogeu. A fábrica de massas
italianas, ali mesmo da vizinhança, começou a trabalhar, engrossando o barulho
com o seu arfar monótono de máquina a vapor. As corridas até à venda reproduziam-se,
transformando-se num verminar constante de formigueiro assanhado. Agora, no
lugar das bicas apinhavam-se latas de todos os feitios, sobressaindo as de
querosene com um braço de madeira em cima; sentia-se o trapejar da água caindo
na folha. Algumas lavadeiras enchiam já as suas tinas; outras estendiam nos
coradouros a roupa que ficara de molho. Principiava o trabalho. Rompiam das
gargantas os fados portugueses e as modinhas brasileiras. Um carroção de lixo
entrou com grande barulho de rodas na pedra, seguido de uma algazarra medonha
algaraviada pelo carroceiro contra o burro. E, durante muito tempo, fez-se
um vaivém de mercadores. Apareceram os tabuleiros de carne fresca e outros
de tripas e fatos de boi; só não vinham hortaliças, porque havia muitas hortas
no cortiço. Vieram os ruidosos mascates, com as suas latas de quinquilharia,
com as suas caixas de candeeiros e objetos de vidro e com o seu fornecimento
de caçarolas e chocolateiras, de folha-de-flandres. Cada vendedor tinha o
seu modo especial de apregoar, destacando-se o homem das sardinhas, com as
cestas do peixe dependuradas, à moda de balança, de um pau que ele trazia
ao ombro.

Nada mais foi preciso do que o seu primeiro guincho estridente e gutural
para surgirem logo, como por encanto, uma enorme variedade de gatos, que vieram
correndo acercar-se dele com grande familiaridade, roçando-se-lhe nas pernas
arregaçadas e miando suplicantemente. O sardinheiro os afastava com o pé,
enquanto vendia o seu peixe à porta das casinhas, mas os bichanos não desistiam
e continuavam a implorar, arranhando os cestos que o homem cuidadosamente
tapava mal servia ao freguês. Para ver-se livre por um instante dos importunos
era necessário atirar para bem longe um punhado de sardinhas, sobre o qual
se precipitava logo, aos pulos, o grupo dos pedinchões. A primeira que se
pôs a lavar foi a Leandra, por alcunha a “Machona”, portuguesa feroz, berradora,
pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo. Tinha duas filhas, uma
casada e separada do marido, Ana das Dores, a quem só chamavam a “das Dores”
e outra donzela ainda, a Nenen, e mais um filho, o Agostinho, menino levado
dos diabos, que gritava tanto ou melhor que a mãe. A das Dores morava em sua
casinha à parte, mas toda a família habitava no cortiço. Ninguém ali sabia
ao certo se a Machona era viúva ou desquitada; os filhos não se pareciam uns
com os outros. A das Dores, sim, afirmavam que fora casada e que largara o
marido para meter-se com um homem do comércio; e que este, retirando-se para
a terra e não querendo soltá-la ao desamparo, deixara o sócio em seu lugar.
Teria vinte e cinco anos. Nenen dezessete. Espigada, franzina e forte, com
uma proazinha de orgulho da sua virgindade, escapando como enguia por entre
os dedos dos rapazes que a queriam sem ser para casar. Engomava bem e sabia
fazer roupa branca de homem com muita perfeição. Ao lado da Leandra foi colocar-se
à sua tina a Augusta Carne-Mole, brasileira, branca, mulher de Alexandre,
um mulato de quarenta anos, soldado de policia, pernóstico, de grande bigode
preto, queixo sempre escanhoado e um luxo de calças brancas engomadas e botões
limpos na farda, quando estava de serviço. Também tinham filhos, mas ainda
pequenos, um dos quais, a Juju, vivia na cidade com a madrinha que se encarregava
dela. Esta madrinha era uma cocote de trinta mil-réis para cima, a Léonie,
com sobrado na cidade. Procedência francesa. Alexandre, em casa, à hora de
descanso, nos seus chinelos e na sua camisa desabotoada, era muito chão com
os companheiros de estalagem, conversava, ria e brincava, mas envergando o
uniforme, encerando o bigode e empunhando a sua chibata, com que tinha o costume
de fustigar as calças de brim, ninguém mais lhe via os dentes e então a todos
falava teso e por cima do ombro. A mulher, a quem ele só dava tu quando não
estava fardado, era de uma honestidade proverbial no cortiço, honestidade
sem mérito, porque vinha da indolência do seu temperamento e não do arbítrio
do seu caráter. Junto dela pôs-se a trabalhar a Leocádia, mulher de um ferreiro
chamado Bruno, portuguesa pequena e socada, de carnes duras, com uma fama
terrível de leviana entre as suas vizinhas. Seguia-se a Paula, uma cabocla
velha, meio idiota, a quem respeitavam todos pelas virtudes de que só ela
dispunha para benzer erisipelas e cortar febres por meio de rezas e feitiçarias.
Era extremamente feia, grossa, triste, com olhos desvairados, dentes cortados
à navalha, formando ponta, como dentes de cão, cabelos lisos, escorridos e
ainda retintos apesar da idade. Chamavam-lhe “Bruxa”.

Depois seguiam-se a Marciana e mais a sua filha Florinda. A primeira, mulata
antiga, muito seria e asseada em exagero: a sua casa estava sempre úmida das
consecutivas lavagens. Em lhe apanhando o mau humor punha-se logo a espanar,
a varrer febrilmente, e, quando a raiva era grande, corria a buscar um balde
de água e descarregava-o com fúria pelo chão da sala. A filha tinha quinze
anos, a pele de um moreno quente, beiços sensuais, bonitos dentes, olhos luxuriosos
de macaca. Toda ela estava a pedir homem, mas sustentava ainda a sua virgindade
e não cedia, nem à mão de Deus Padre, aos rogos de João Romão, que a desejava
apanhar a troco de pequenas concessões na medida e no peso das compras que
Florinda fazia diariamente à venda. Depois via-se a velha Isabel, isto é,
Dona Isabel, porque ali na estalagem lhes dispensavam todos certa consideração,
privilegiada pelas suas maneiras graves de pessoa que já teve tratamento:
uma pobre mulher comida de desgostos. Fora casada com o dono de uma casa de
chapéus, que quebrou e suicidou-se, deixando-lhe uma filha muito doentinha
e fraca, a quem Isabel sacrificou tudo para educar, dando-lhe mestre até de
francês. Tinha uma cara macilenta de velha portuguesa devota, que já foi gorda,
bochechas moles de pelancas rechupadas, que lhe pendiam dos cantos da boca
como saquinhos vazios; fios negros no queixo, olhos castanhos, sempre chorosos
engolidos pelas pálpebras. Puxava em bandos sobre as fontes o escasso cabelo
grisalho untado de óleo de amêndoas doces. Quando saia à rua punha um eterno
vestido de seda preta, achamalotada, cuja saia não fazia rugas, e um xale
encarnado que lhe dava a todo o corpo um feitio piramidal. Da sua passada
grandeza só lhe ficara uma caixa de rapé de ouro, na qual a inconsolável senhora
pitadeava agora, suspirando a cada pitada.

A filha era a flor do cortiço. Chamavam-lhe Pombinha. Bonita, posto que enfermiça
e nervosa ao último ponto; loura, muito pálida, com uns modos de menina de
boa família. A mãe não lhe permitia lavar, nem engomar, mesmo porque o médico
a proibira expressamente. Tinha o seu noivo, o João da Costa, moço do comércio,
estimado do patrão e dos colegas, com muito futuro, e que a adorava e conhecia
desde pequenita; mas Dona Isabel não queria que o casamento se fizesse já.
É que Pombinha,

orçando aliás pelos dezoito anos, não tinha ainda pago à natureza o cruento
tributo da puberdade, apesar do zelo da velha e dos sacrifícios que esta fazia
para cumprir à risca as prescrições do médico e não faltar à filha o menor
desvelo. No entanto, coitadas! daquele casamento dependia a felicidade de
ambas, porque o Costa, bem empregado como se achava em casa de um tio seu,
de quem mais tarde havia de ser sócio, tencionava, logo que mudasse de estado,
restituí-las ao seu primitivo circulo social. A pobre velha desesperava-se
com o fato e pedia a Deus, todas as noites, antes de dormir, que as protegesse
e conferisse à filha uma graça tão simples que ele fazia, sem distinção de
merecimento, a quantas raparigas havia pelo mundo; mas, a despeito de tamanho
empenho, por coisa nenhuma desta vida consentiria que a sua pequena casasse
antes de “ser mulher”, como dizia ela. E “que deixassem lá falar o doutor,
entendia que não era decente, nem tinha jeito, dar homem a uma moça que ainda
não fora visitada pelas regras! Não! Antes vê-la solteira toda a vida e ficarem
ambas curtindo para sempre aquele inferno da estalagem!” Lá no cortiço estavam
todos a par desta história; não era segredo para ninguém. E não se passava
um dia que não interrogassem duas e três vezes a velha com estas frases: –
Então? Já veio? – Por que não tenta os banhos de mar?

– Por que não chama outro médico?

– Eu, se fosse a senhora, casava-os assim mesmo!

A velha respondia dizendo que a felicidade não se fizera para ela. E suspirava
resignada. Quando o Costa aparecia depois da sua obrigação para visitar a
noiva, os moradores da estalagem cumprimentavam-no em silêncio com um respeitoso
ar de lástima e piedade, empenhados tacitamente por aquele caiporismo, contra
o qual não valiam nem mesmo as virtudes da Bruxa. Pombinha era muito querida
por toda aquela gente. Era quem lhe escrevia as cartas; quem em geral fazia
o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem lia o jornal para os
que quisessem ouvir. Prezavam-na com muito respeito e davam-lhe presentes,
o que lhe permitia certo luxo relativo. Andava sempre de botinhas ou sapatinhos
com meias de cor, seu vestido de chita engomado; tinha as suas joiazinhas
para sair à rua, e, aos domingos, quem a encontrasse à missa na igreja de
São João Batista, não seria capaz de desconfiar que ela morava em cortiço.
Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco,
cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que
lhe caia, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia
sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarizado que elas o
tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo; em presença dele falavam de coisas
que não exporiam em presença de outro homem; faziam-no até confidente dos
seus amores e das suas infidelidades, com uma franqueza que o não revoltava,
nem comovia. Quando um casal brigava ou duas amigas se disputavam, era sempre
Albino quem tratava de reconciliá-los, exortando as mulheres à concórdia.
Dantes encarregava-se de cobrar o rol das colegas, por amabilidade; mas uma
vez, indo a uma república de estudantes, deram-lhe lá, ninguém sabia por quê,
uma dúzia de bolos, e o pobre-diabo jurou então, entre lágrimas e soluços,
que nunca mais se incumbiria de receber os róis. E daí em diante, com efeito,
não arredava os pezinhos do cortiço, a não ser nos dias de carnaval, em que
ia, vestido de dançarina, passear à tarde pelas ruas e à noite dançar nos
bailes dos teatros. Tinha verdadeira paixão por esse divertimento; ajuntava
dinheiro durante o ano para gastar todo com a mascarada. E ninguém o encontrava,
domingo ou dia de semana, lavando ou descansando, que não estivesse com a
sua calça branca engomada, a sua camisa limpa, um lenço ao pescoço, e, amarrado
à cinta, um avental que lhe caia sobre as pernas como uma saia. Não fumava,
não bebia espíritos e trazia sempre as mãos geladas e úmidas. Naquela manhã
levantara-se ainda um pouco mais lânguido que do costume, porque passara mal
a noite. A velha Isabel, que lhe ficava ao lado esquerdo, ouvindo-o suspirar
com insistência, perguntou-lhe o que tinha. Ah! muita moleza de corpo e uma
pontada do vazio que o não deixava! A velha receitou diversos remédios, e
ficaram os dois, no meio de toda aquela vida, a falar tristemente sobre moléstias.
E, enquanto, no resto da fileira, a Machona, a Augusta, a Leocádia, a Bruxa,
a Marciana e sua filha conversavam de tina a tina, berrando e quase sem se
ouvirem, a voz um tanto cansada já pelo serviço, defronte delas, separado
pelos jiraus, formava-se um novo renque de lavadeiras, que acudiam de fora,
carregadas de trouxas, e iam ruidosamente tomando lagar ao lado umas das outras,
entre uma agitação sem tréguas, onde se não distinguia o que era galhofa e
o que era briga. Uma a uma ocupavam-se todas as tinas. E de todos os casulos
do cortiço saiam homens para as suas obrigações. Por uma porta que havia ao
fundo da estalagem desapareciam os trabalhadores da pedreira, donde vinha
agora o retinir dos alviões e das picaretas. O Miranda, de calças de brim,
chapéu alto e sobrecasaca preta, passou lá fora, em caminho para o armazém,
acompanhado pelo Henrique que ia para as aulas. O Alexandre, que estivera
de serviço essa madrugada, entrou solene, atravessou o pátio, sem falar a
ninguém, nem mesmo à mulher, e recolheu-se à casa, para dormir. Um grupo de
mascates, o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa, armado cada qual com
a sua grande caixa de bugigangas, saiu para a peregrinação de todos os dias,
altercando e praguejando em italiano.

Um rapazito de paletó entrou da rua e foi perguntar à Machona pela Nhá Rita.
– A Rita Baiana? Sei cá! Faz amanhã oito dias que ela arribou! A Leocádia
explicou logo que a mulata estava com certeza de pândega com o Firmo. – Que
Firmo? interrogou Augusta. – Aquele cabravasco que se metia às vezes ai com
ela. Diz que é torneiro. – Ela mudou-se? perguntou o pequeno. – Não, disse
a Machona; o quarto está fechado, mas a mulata tem coisas lá. Você o que queria?
– Vinha buscar uma roupa que está com ela. – Não sei, filho, pergunta na venda
ao João Romão, que talvez te possa dizer alguma coisa. – Ali? – Sim, pequeno,
naquela porta, onde a preta do tabuleiro está vendendo! Ó diabo! olha que
pisas a boneca de anil! Já se viu que sorte? Parece que não vê onde pisa este
raio de criança! E, notando que o filho, o Agostinho, se aproximava para tomar
o lugar do outro que já se ia: – Sai daí, tu também, peste! Já principias
na reinação de todos os dias? Vem para cá, que levas! Mas, é verdade, que
fazes tu que não vais regar a horta do Comendador? – Ele disse ontem que eu
agora fosse à tarde, que era melhor. – Ah! E amanhã, não te esqueças, recebe
os dois mil-réis, que é fim do mês. Olha! Vai lá dentro e diz a Nenen que
te entregue a roupa que veio ontem à noite. O pequeno afastou-se de carreira,
e ela lhe gritou na pista: – E que não ponha o refogado no fogo sem eu ter
lá ido! Uma conversa cerrada travara-se no resto da fila de lavadeiras a respeito
da Rita Baiana. – É doida mesmo!… censurava Augusta. Meter-se na pândega
sem dar conta da roupa que lhe entregaram… Assim há de ficar sem um freguês…
– Aquela não endireita mais!… Cada vez fica até mais assanhada!… Parece
que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode,
vai tudo pro lado! Olha o que saiu o ano passado com a festa da Penha!…
– Então agora, com este mulato, o Firmo, é uma pouca-vergonha! Est’ro
dia, pois você não viu? levaram ai numa bebedeira, a dançar e cantar à viola,
que nem sei o que parecia! Deus te livre! – Para tudo há horas e há dias!…
– Para a Rita todos os dias são dias santos! A questão é aparecer quem puxe
por ela! – Ainda assim não e má criatura… Tirante o defeito da vadiagem…
– Bom coração tem ela, até demais, que não guarda um vintém pro dia de amanhã.
Parece que o dinheiro lhe faz comichão no corpo! – Depois é que são elas!…
O João Romão já lhe não fia! – Pois olhe que a Rita lhe tem enchido bem as
mãos; quando ela tem dinheiro é porque o gasta mesmo! E as lavadeiras não
se calavam, sempre a esfregar, e a bater, e a torcer camisas e ceroulas, esfogueadas
já pelo exercício. Ao passo que, em torno da sua tagarelice, o cortiço se
embandeirava todo de roupa molhada, de onde o sol tirava cintilações de prata.
Estavam em dezembro e o dia era ardente. A grama dos coradouros tinha reflexos
esmeraldinos; as paredes que davam frente ao Nascente, caiadinhas de novo,
reverberavam iluminadas, ofuscando a vista. Em uma das janelas da sala de
jantar do Miranda, Dona Estela e Zulmira, ambas vestidas de claro e ambas
a limarem as unhas, conversavam em voz surda, indiferentes à agitação que
ia lá embaixo, muito esquecidas na sua tranqüilidade de entes felizes. Entretanto,
agora o maior movimento era na venda à entrada da estalagem. Davam nove horas
e os operários das fábricas chegavam-se para o almoço. Ao balcão o Domingos
e o Manuel não tinham mãos a medir com a criadagem da vizinhança; os embrulhos
de papel amarelo sucediam-se, e o dinheiro pingava sem intermitência dentro
da gaveta.

– Meio quilo de arroz!

– Um tostão de açúcar!

– Uma garrafa de vinagre!

– Dois martelos de vinho!

– Dois vinténs de fumo!

– Quatro de sabão!

E os gritos confundiam-se numa mistura de vozes de todos os tons.

Ouviam-se protestos entre os compradores:

– Me avie, seu Domingos! Eu deixei a comida no fogo!

– Ó peste! dá cá as batatas, que eu tenho mais o que fazer!

– Seu Manuel, não me demore essa manteiga!

Ao lado, na casinha de pasto, a Bertoleza, de saias arrepanhadas no quadril,
o cachaço grosso e negro, reluzindo de suor, ia e vinha de uma panela à outra,
fazendo pratos, que João Romão levava de carreira aos trabalhadores assentados
num compartimento junto. Admitira-se um novo caixeiro, só para o frege, e
o rapaz, a cada comensal que ia chegando, recitava, em tom cantado e estridente,
a sua interminável lista das comidas que havia. Um cheiro forte de azeite
frito predominava. O parati circulava por todas as mesas, e cada caneca de
café, de louça espessa, erguia um vulcão de fumo tresandando a milho queimado.
Uma algazarra medonha, em que ninguém se entendia! Cruzavam-se conversas em
todas as direções, discutia-se a berros, com valentes punhadas sobre as mesas.
E sempre a sair, e sempre a entrar gente, e os que saiam, depois daquela comezaina
grossa, iam radiantes de contentamento, com a barriga bem cheia, a arrotar.

Num banco de pau tosco, que existia do lado de fora, junto à parede e perto
da venda, um homem, de calça e camisa de zuarte, chinelos de couro cru, esperava,
havia já uma boa hora, para falar com o vendeiro.

Era um português de seus trinta e cinco a quarenta anos, alto, espadaúdo,
barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados caindo-lhe sobre a testa, por
debaixo de um chapéu de feltro ordinário: pescoço de touro e cara de Hércules,
na qual os olhos todavia, humildes como os olhos de um boi de canga, exprimiam
tranqüila bondade.

– Então ainda não se pode falar ao homem? perguntou ele, indo ao balcão entender-se
com o Domingos. – O patrão está agora muito ocupado. Espere! – Mas são quase
dez horas e estou com um gole de café no estômago! – Volte logo! – Moro na
cidade nova. É um estirão daqui! O caixeiro gritou então para a cozinha, sem
interromper o que fazia: – O homem que ai está, seu João, diz que se vai embora!
– Ele que espere um pouco, que já lhe falo! respondeu o vendeiro no meio de
uma carreira. Diga-lhe que não vá! – Mas é que ainda não almocei e estou aqui
a tinir!… observou o Hércules com a sua voz grossa e sonora. – Ó filho,
almoce ai mesmo! Aqui o que não falta é de comer. Já podia estar aviado! –
Pois vá lá! resolveu o homenzarrão, saindo da venda para entrar na casa de
pasto, onde os que lá se achavam o receberam com ar curioso, medindo-o da
cabeça aos pés, como faziam sempre com todos os que ai se apresentavam pela
primeira vez. E assentou-se a uma das mesinhas, vindo logo o caixeiro cantar-lhe
a lista dos pratos. – Traga lá o pescado com batatas e veja um martelo de
vinho. – Quer verde ou virgem? – Venha o verde; mas anda com isso, filho,
que já não vem sem tempo!

IV

Meia hora depois, quando João Romão se viu menos ocupado, foi ter com o sujeito
que o procurava e assentou-se defronte dele, caindo de fadiga, mas sem se
queixar, nem se lhe trair a fisionomia o menor sintoma de cansaço.

– Você vem da parte do Machucas? perguntou-lhe. Ele falou-me de um homem
que sabe calçar pedra, lascar fogo e fazer lajedo.

– Sou eu.

– Estava empregado em outra pedreira?

– Estava e estou. Na de São Diogo, mas desgostei-me dela e quero passar adiante.
– Quanto lhe dão lá? – Setenta mil-réis. – Oh! Isso é um disparate! – Não
trabalho por menos… – Eu, o maior ordenado que faço é de cinqüenta. – Cinqüenta
ganha um macaqueiro… – Ora! tenho aí muitos trabalhadores de lajedo por
esse preço! – Duvido que prestem! Aposto a mão direita em como o senhor não
encontra por cinqüenta mil-réis quem dirija a broca, pese a pólvora e lasque
fogo, sem lhe estragar a pedra e sem fazer desastres! – Sim, mas setenta mil-réis
é um ordenado impossível! – Nesse caso vou como vim… Fica o dito por não
dito! – Setenta mil-réis é muito dinheiro!… – Cá por mim, entendo que vale
a pena pagar mais um pouco a um trabalhador bom, do que estar a sofrer desastres,
como o que sofreu sua pedreira a semana passada! Não falando na vida do pobre
de Cristo que ficou debaixo da pedra! – Ah! O Machucas falou-lhe no desastre?
– Contou-mo, sim senhor, e o desastre não aconteceria se o homem soubesse
fazer o serviço! – Mas setenta mil-réis é impossível. Desça um pouco! – Por
menos não me serve… E escusamos de gastar palavras! – Você conhece a pedreira?
– Nunca a vi de perto, mas quis me parecer que é boa. De longe cheirou-me
a granito. – Espere um instante. João Romão deu um pulo à venda, deixou algumas
ordens, enterrou um chapéu na cabeça e voltou a ter com o outro. – Ande a
ver! gritou-lhe da porta do frege, que a pouco e pouco se esvaziara de todo.
O cavouqueiro pagou doze vinténs pelo seu almoço e acompanhou-o em silêncio.
Atravessaram o cortiço. A labutação continuava. As lavadeiras tinham já ido
almoçar e tinham voltado de novo para o trabalho. Agora estavam todas de chapéu
de palha, apesar das toldas que se armaram. Um calor de cáustico mordia-lhes
os toutiços em brasa e cintilantes de suor. Um estado febril apoderava-se
delas naquele rescaldo; aquela digestão feita ao sol fermentava-lhes o sangue.
A Machona altercava com uma preta que fora reclamar um par de meias e destrocar
uma camisa; a Augusta, muito mole sobre a sua tábua de lavar, parecia derreter-se
como sebo; a Leocádia largava de vez em quando a roupa e o sabão para coçar
as comichões do quadril e das virilhas, assanhadas pelo mormaço; a Bruxa monologava,
resmungando numa insistência de idiota, ao lado da Marciana que, com o seu
tipo de mulata velha, um cachimbo ao canto da boca, cantava toadas monótonas
do sertão: “Maricas tá marimbando,

Maricas tá marimbando,

Na passage do riacho

Maricas tá marimbando.”

A Florinda, alegre, perfeitamente bem com o rigor do sol, a rebolar sem fadigas,
assoviava os chorados e lundus que se tocavam na estalagem, e junto dela,
a melancólica senhora Dona Isabel suspirava, esfregando a sua roupa dentro
da tina, automaticamente, como um condenado a trabalhar no presídio; ao passo
que o Albino, saracoteando os seus quadris pobres de homem linfático, batia
na tábua um par de calças, no ritmo cadenciado e miúdo de um cozinheiro a
bater bifes. O corpo tremia-lhe todo, e ele, de vez em quando, suspendia o
lenço do pescoço para enxugar a fronte, e então um gemido suspirado subia-lhe
aos lábios. Da casinha número 8 vinha um falsete agudo, mas afinado. Era a
das Dores que principiava o seu serviço; não sabia engomar sem cantar. No
número 7 Nenen cantarolava em tom muito mais baixo; e de um dos quartos do
fundo da estalagem saia de espaço a espaço uma nota áspera de trombone. O
vendeiro, ao passar por detrás de Florinda, que no momento apanhava roupa
do chão, ferrou-lhe uma palmada na parte do corpo então mais em evidência.
– Não bula, hein?!… gritou ela, rápido, erguendo-se tesa. E, dando com João
Romão: – Eu logo vi. Leva implicando aqui com a gente e depois, vai-se comprar
na venda, o safado rouba no peso! Diabo do galego Eu não te quero, sabe?

O vendeiro soltou-lhe nova palmada com mais força e fugiu, porque ela se
armara com um regador cheio de água. – Vem pra cá, se és capaz! Diabo da peste!
João Romão já se havia afastado com o cavouqueiro. – O senhor tem aqui muita
gente!… observou-lhe este. – Oh! fez o outro, sacudindo os ombros, e disse
depois com empáfia: – Houvesse mais cem quartos que estariam cheios! Mas é
tudo gente séria! Não há chinfrins nesta estalagem; se aparece uma rusga,
eu chego, e tudo acaba logo! Nunca nos entrou cá a policia, nem nunca a deixaremos
entrar! E olhe que se divertem bem com as suas violas! Tudo gente muita boa!
Tinham chegado ao fim do pátio do cortiço e, depois de transporem uma porta
que se fechava com um peso amarrado a uma corda, acharam-se no capinzal que
havia antes da pedreira. – Vamos por aqui mesmo que é mais perto, aconselhou
o vendeiro. E os dois, em vez de procurarem a estrada, atravessaram o capim
quente e trescalante. Meio-dia em ponto. O sol estava a pino; tudo reverberava
a luz irreconciliável de dezembro, num dia sem nuvens. A pedreira, em que
ela batia de chapa em cima, cegava olhada de frente. Era preciso martirizar
a vista para descobrir as nuanças da pedra; nada mais que uma grande mancha
branca e luminosa, terminando pela parte de baixo no chão coberto de cascalho
miúdo, que ao longe produzia o efeito de um betume cinzento, e pela parte
de cima na espessura compacta do arvoredo, onde se não distinguiam outros
tons mais do que nódoas negras, bem negras, sobre o verde-escuro. À proporção
que os dois se aproximavam da imponente pedreira, o terreno ia-se tornando
mais e mais cascalhudo; os sapatos enfarinhavam-se de uma poeira clara. Mais
adiante, por aqui e por ali, havia muitas carroças, algumas em movimento,
puxadas a burro e cheias de calhaus partidos; outras já prontas para seguir,
à espera do animal, e outras enfim com os braços para o ar, como se acabassem
de ser despejadas naquele instante. Homens labutavam. À esquerda, por cima
de um vestígio de rio, que parecia ter sido bebido de um trago por aquele
sol sedento, havia uma ponte de tábuas, onde três pequenos, quase nus, conversavam
assentados, sem fazer sombra, iluminados a prumo pelo sol do meio-dia. Para
adiante, na mesma direção, corria um vasto telheiro, velho e sujo, firmado
sobre colunas de pedra tosca; ai muitos portugueses trabalhavam de canteiro,
ao barulho metálico do picão que feria o granito. Logo em seguida, surgia
uma oficina de ferreiro, toda atravancada de destroços e objetos quebrados,
entre os quais avultavam rodas de carro; em volta da bigorna dois homens,
de corpo nu, banhados de suor e alumiados de vermelho como dois diabos, martelavam
cadenciosamente sobre um pedaço de ferro em brasa; e ali mesmo, perto deles,
a forja escancarava uma goela infernal, de onde saiam pequenas línguas de
fogo, irrequietas e gulosas. João Romão parou à entrada da oficina e gritou
para um dos ferreiros:

– O Bruno! Não se esqueça do varal da lanterna do portão!

Os dois homens suspenderam por um instante o trabalho.

– Já lá fui ver, respondeu o Bruno. Não vale a pena consertá-lo; está todo
comido de ferragem! Faz-se-lhe um novo, que é melhor! – Pois veja lá isso,
que a lanterna está a cair! E o vendeiro seguiu adiante com o outro, enquanto
atrás recomeçava o martelar sobre a bigorna. Em seguida via-se uma miserável
estrebaria, cheia de capim seco e excremento de bestas, com lugar para meia
dúzia de animais. Estava deserta, mas, no vivo fartum exalado de lá, sentia-se
que fora habitada ainda aquela noite. Havia depois um depósito de madeiras,
servindo ao mesmo tempo de oficina de carpinteiro, tendo à porta troncos de
arvore, alguns já serrados, muitas tábuas empilhadas, restos de cavernas e
mastros de navio. Daí à pedreira restavam apenas uns cinqüenta passos e o
chão era já todo coberto por uma farinha de pedra moída que sujava como a
cal. Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao sol,
outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira.
De um lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta; de outro
afeiçoavam lajedos a ponta de picão; mais adiante faziam paralelepípedos a
escopro e macete. E todo aquele retintim de ferramentas, e o martelar da forja,
e o coro dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar-lhe fogo, e a surda
zoada ao longe, que vinha do cortiço, como de uma aldeia alarmada; tudo dava
a idéia de uma atividade feroz, de uma luta de vingança e de ódio. Aqueles
homens gotejantes de suor, bêbados de calor, desvairados de insolação, a quebrarem,
a espicaçarem, a torturarem a pedra, pareciam um punhado de demônios revoltados
na sua impotência contra o impassível gigante que os contemplava com desprezo,
imperturbável a todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no
dorso, deixando sem um gemido que lhe abrissem as entranhas de granito. O
membrudo cavouqueiro havia chegado a fralda do orgulhoso monstro de pedra;
tinha-o cara a cara, mediu-o de alto a baixo, arrogante, num desafio surdo.
A pedreira mostrava nesse ponto de vista o seu lado mais imponente. Descomposta,
com o escalavrado flanco exposto ao sol, erguia-se altaneira e desassombrada,
afrontando o céu, muito íngreme, lisa, escaldante e cheia de cordas que mesquinhamente
lhe escorriam pela ciclópica nudez com um efeito de teias de aranha. Em certos
lugares, muito alto do chão, lhe haviam espetado alfinetes de ferro, amparando,
sobre um precipício, miseráveis tábuas que, vistas cá de baixo, pareciam palitos,
mas em cima das quais uns atrevidos pigmeus de forma humana equilibravam-se,
desfechando golpes de picareta contra o gigante. O cavouqueiro meneou a cabeça
com ar de lástima. O seu gesto desaprovava todo aquele serviço. – Veja lá!
disse ele, apontando para certo ponto da rocha. Olhe para aquilo! Sua gente
tem ido às cegas no trabalho desta pedreira. Deviam atacá-la justamente por
aquele outro lado, para não contrariar os veios da pedra. Esta parte aqui
é toda granito, é a melhor! Pois olhe só o que eles têm tirado de lá – umas
lascas, uns calhaus que não servem para nada! É uma dor de coração ver estragar
assim uma peça tão boa! Agora o que hão de fazer dessa cascalhada que ai está
senão macacos? E brada aos céus, creia! ter pedra desta ordem para empregá-la
em macacos! O vendeiro escutava-o em silêncio, apertando os beiços, aborrecido
com a idéia daquele prejuízo. – Uma porcaria de serviço! continuou o outro.
Ali onde está aquele homem é que deviam ter feito a broca, porque a explosão
punha abaixo toda esta aba que é separada por um veio. Mas quem tem ai o senhor
capaz de fazer isso? Ninguém; porque é preciso um empregado que saiba o que
faz; que, se a pólvora não for muito bem medida, nem só não se abre o veio,
como ainda sucede ao trabalhador o mesmo que sucedeu ao outro! É preciso conhecer
muito bem o trabalho para se poder tirar partido vantajoso desta pedreira!
Boa é ela, mas não nas mãos em que está! É muito perigosa nas explosões; é
muito em pé! Quem lhe lascar fogo não pode fugir senão para cima pela corda,
e se o sujeito não for fino leva-o o demo! Sou eu quem o diz! E depois de
uma pausa, acrescentou, tomando na sua mão, grossa como o próprio cascalho,
um paralelepípedo que estava no chão: – Que digo eu?! Cá está! Macacos de
granito! Isto até é uma coisa que estes burros deviam esconder por vergonha!

Acompanhando a pedreira pelo lado direito e seguindo-a na volta que ela dava
depois, formando um ângulo obtuso, é que se via quanto era grande. Suava-se
bem antes de chegar ao seu limite com a mata. – Que mina de dinheiro!… dizia
o homenzarrão, parando entusiasmado defronte do novo pano de rocha viva que
se desdobrava na presença dele. – Toda esta parte que se segue agora, declarou
João Romão, ainda não é minha. E continuaram a andar para diante. Deste lado
multiplicavam-se as barraquinhas; os macaqueiros trabalhavam à sombra delas,
indiferentes àqueles dois. Viam-se panelas ao fogo, sobre quatro pedras, ao
ar livre, e rapazitos tratando do jantar dos pais. De mulher nem

sinal. De vez em quando, na penumbra de um ensombro de lona, dava-se com
um grupo de homens, comendo de cócoras defronte uns dos outros, uma sardinha
na mão esquerda, um pão na direita, ao lado de uma garrafa de água. – Sempre
o mesmo serviço malfeito e mal dirigido!… resmungou o cavouqueiro. Entretanto,
a mesma atividade parecia reinar por toda a parte. Mas, lá no fim, debaixo
dos bambus que marcavam o limite da pedreira, alguns trabalhadores dormiam
à sombra, de papo para o ar, a barba espetando para o alto, o pescoço intumescido
de cordoveias grossas como enxárcias de navio, a boca aberta, a respiração
forte e tranqüila de animal sadio, num feliz e pletórico resfolgar de besta
cansada. – Que relaxamento! resmungou de novo o cavouqueiro. Tudo isto está
a reclamar um homem teso que olhe a sério para o serviço! – Eu nada tenho
que ver com este lado! observou Romão. – Mas lá da sua banda hão de fazer
o mesmo! Olará! – Abusam, porque tenho de olhar pelo negócio lá fora… –
Comigo aqui é que eles não fariam cera. isso juro eu! Entendo que o empregado
deve ser bem pago, ter para a sua comida à farta, o seu gole de vinho, mas
que deve fazer serviço que se veja, ou, então, rua! Rua, que não falta por
ai quem queira ganhar dinheiro! Autorize-me a olhar por eles e verá! – O diabo
é que você quer setenta mil-réis… suspirou João Romão. – Ah! nem menos um
real!… Mas comigo aqui há de ver o que lhe faço entrar para algibeira! Temos
cá muita gente que não precisa estar. Para que tanto macaqueiro, por exemplo?
Aquilo é serviço para descanso; é serviço de criança! Em vez de todas aquelas
lesmas, pagas talvez a trinta mil-réis… – É justamente quanto lhes dou.
– … melhor seria tomar dois bons trabalhadores de cinqüenta, que fazem o
dobro do que fazem aqueles monos e que podem servir para outras coisas! Parece
que nunca trabalharam! Olhe, é já a terceira vez que aquele que ali está deixa
cair o escopro! Com efeito! João Romão ficou calado, a cismar, enquanto voltavam.
Vinham ambos pensativos. – E você, se eu o tomar, disse depois o vendeiro,
muda-se cá para a estalagem?… – Naturalmente! não hei de ficar lá na cidade
nova, tendo o serviço aqui!… – E a comida, forneço-a eu?… – Isso é que
a mulher é quem a faz; mas as compras saem-lhe da venda… – Pois está fechado
o negócio! deliberou João Romão, convencido de que não podia, por economia,
dispensar um homem daqueles. E pensou lá de si para si: “Os meus setenta mil-réis
voltar-me-ão à gaveta. Tudo me fica em casa!” – Então estamos entendidos?…
– Estamos entendidos! – Posso amanhã fazer a mudança? – Hoje mesmo, se quiser;
tenho um cômodo que lhe há de calhar. É o número 35. Vou mostrar-lho. E aligeirando
o passo, penetraram na estrada do capinzal com direção ao fundo do cortiço.
– Ah! é verdade! como você se chama? – Jerônimo, para o servir. – Servir a
Deus. Sua mulher lava? – É lavadeira, sim senhor. – Bem, precisamos ver-lhe
uma tina. E o vendeiro empurrou a porta do fundo da estalagem, de onde escapou,
como de uma panela fervendo que se destapa, uma baforada quente, vozeria tresandante
à fermentação de suores e roupa ensaboada secando ao sol.

V

No dia seguinte, com efeito, ali pelas sete da manhã, quando o cortiço fervia
já na costumada labutação, Jerônimo apresentou-se junto com a mulher, para
tomarem conta da casinha alugada na véspera.

A mulher chamava-se Piedade de Jesus; teria trinta anos, boa estatura, carne
ampla e rija, cabelos fortes de um castanho fulvo, dentes pouco alvos, mas
sólidos e perfeitos, cara cheia, fisionomia aberta; um todo de bonomia toleirona,
desabotoando-lhe pelos olhos e pela boca numa simpática expressão de honestidade
simples e natural. Vieram ambos à boleia da andorinha que lhes carregou os
trens. Ela trazia uma saia de sarja roxa, cabeção branco de paninho de algodão
e na cabeça um lenço vermelho de alcobaça; o marido a mesma roupa do dia anterior.
E os dois apearam-se muito atrapalhados com os objetos que não confiaram dos
homens da carroça; Jerônimo abraçado a duas formidáveis mangas de vidro, das
primitivas, dessas em que se podia à vontade enfiar uma perna; e a Piedade
atracada com um velho relógio de parede e com uma grande trouxa de santos
e palmas bentas. E assim atravessaram o pátio da estalagem, entre os comentários
e os olhares curiosos dos antigos moradores, que nunca viam sem uma pontinha
de desconfiança os inquilinos novos que surgiam. – O que será este pedaço
de homem? indagou a Machona da sua vizinha de tina, a Augusta Carne-Mole.
– A modos, respondeu esta, que vem para trabalhar na pedreira. Ele ontem andou
por lá um ror de tempo com o João Romão. – Aquela mulher que entrou junto
será casada com ele? – É de crer. – Ela me parece gente das ilhas. – Eles
o que têm é muito bons trastes de seu! interveio a Leocádia. Uma cama que
deve ser um regalo e um toucador com um espelho maior do que aquela peneira!
– E a cômoda, você viu, Nhá Leocádia? perguntou Florinda, gritando para ser
ouvida, porque entre ela e a outra estavam a Bruxa e a velha Marciana. – Vi,
Rico traste! – E o oratório, então? Muito bonito!… – Vi também. É obra de
capricho. Não! eles sejam lá quem for, são gente arranjada… Isso não se
lhes pode negar! – Se são bons ou maus só com o tempo se saberá!… arriscou
Dona Isabel. – Quem vê cara não vê corações… sentenciou o triste Albino,
suspirando. – Mas o número 35 não estava ocupado por aquele homem muito amarelo
que fazia charutos?… inquiriu Augusta. – Estava, confirmou a mulher do ferreiro,
a Leocádia, porém creio que arribou, devendo não sei quanto, e o João Romão
então esvaziou-lhe ontem a casa e tomou conta do que era dele. – É! acudiu
a Machona; ontem, pelo cair das duas da tarde, o Romão andava aí às voltas
com os cacarecos do charuteiro. Quem sabe, se o pobre homem não levou a breca,
como sucedeu àquele outro que trabalhava de ourives? – Não! Este creio que
está vivo… – O que lhe digo é que aquele número 35 tem mau agouro! Eu cá
por mim não o queria nem de graça! Foi lá que morreu a Maricas do Farjão!
Três horas depois, Jerônimo e Piedade achavam-se instalados e dispunham-se
a comer o almoço, que a mulher preparara o melhor e o mais depressa que pôde.
Ele contava aviar até a noite uma infinidade de coisas, para poder começar
a trabalhar logo no dia seguinte. Era tão metódico e tão bom como trabalhador
quanto o era como homem. Jerônimo viera da terra, com a mulher e uma filhinha
ainda pequena, tentar a vida no Brasil, na qualidade de colono de um fazendeiro,
em cuja fazenda mourejou durante dois anos, sem nunca levantar a cabeça, e
de onde afinal se retirou de mãos vazias e uma grande birra pela lavoura brasileira.
Para continuar a servir na roça tinha que sujeitar-se a emparelhar com os
negros escravos e viver com eles no mesmo meio degradante, encurralado como
uma besta, sem aspirações, nem futuro, trabalhando eternamente para outro.

Não quis. Resolveu abandonar de vez semelhante estupor de vida e atirar-se
para a Corte, onde, diziam-lhe patrícios, todo o homem bem disposto encontrava
furo. E, com efeito, mal chegou, devorado de necessidades e privações, meteu-se
a quebrar pedra em uma pedreira, mediante um miserável salário. A sua existência
continuava dura e precária; a mulher já então lavava e engomava, mas com pequena
freguesia e mal paga. O que os dois faziam chegava-lhes apenas para não morrer
de fome e pagar o quarto da estalagem. Jerônimo, porém, era perseverante,
observador e dotado de certa habilidade. Em poucos meses se apoderava do seu
novo ofício e, de quebrador de pedra, passou logo a fazer paralelepípedos;
e depois foi-se ajeitando com o prumo e com a esquadria e meteu-se a fazer
lajedos; e finalmente, à força de dedicação pelo serviço, tornou-se tão bom
como os melhores trabalhadores de pedreira e a ter salário igual ao deles.
Dentro de dois anos, distinguia-se tanto entre os companheiros, que o patrão
o converteu numa espécie de contramestre e elevou-lhe o ordenado a setenta
mil-réis. Mas não foram só o seu zelo e a sua habilidade o que o pôs assim
para a frente; duas outras coisas contribuíram muito para isso: a força de
touro que o tornava respeitado e temido por todo o pessoal dos trabalhadores,
como ainda, e, talvez, principalmente, a grande seriedade do seu caráter e
a pureza austera dos seus costumes. Era homem de uma honestidade a toda prova
e de uma primitiva simplicidade no seu modo de viver. Sala de casa para o
serviço e do serviço para casa, onde nunca ninguém o vira com a mulher senão
em boa paz; traziam a filhinha sempre limpa e bem alimentada, e, tanto um
como o outro, eram sempre os primeiros à hora do trabalho. Aos domingos iam
às vezes à missa ou, à tarde, ao Passeio Público; nessas ocasiões, ele punha
uma camisa engomada, calçava sapatos e enfiava um paletó; ela o seu vestido
de ver a Deus, os seus ouros trazidos da terra, que nunca tinham ido ao monte
de socorro, malgrado as dificuldades com que os dois lutaram a principio no
Brasil. Piedade merecia bem o seu homem, muito diligente, sadia, honesta,
forte, bem acomodada com tudo e com todos, trabalhando de sol a sol e dando
sempre tão boas contas da obrigação, que os seus fregueses de roupa, apesar
daquela mudança para Botafogo, não a deixaram quase todos. Jerônimo, ainda
na cidade nova, logo que principiara a ganhar melhor, fizera-se irmão de uma
ordem terceira e tratara de ir pondo alguma coisinha de parte. Meteu a filha
em um colégio, “que a queria com outro saber que não ele, a quem os pais não
mandaram ensinar nada”. Por último, no cortiço em que então moravam, a sua
casinha era a mais decente, a mais respeitada e a mais confortável; porém,
com a morte do seu patrão e com uma reforma estúpida que os sucessores dele
realizaram em todo o serviço da pedreira, o colono desgostou-se dela e resolveu
passar para outra. Foi então que lhe indicaram a do João Romão, que, depois
do desastre do seu melhor empregado, andava justamente à procura de um homem
nas condições de Jerônimo. Tomou conta da direção de todo o serviço, e em
boa hora o fez, porque dia a dia a sua influência se foi sentindo no progresso
do trabalho. Com o seu exemplo os companheiros tornavam-se igualmente sérios
e zelosos. Ele não admitia relaxamentos, nem podia consentir que um preguiçoso
se demorasse ali tomando o lagar de quem precisava ganhar o pão. E alterou
o pessoal da pedreira, despediu alguns trabalhadores, admitiu novos, aumentou
o ordenado dos que ficaram, estabelecendo-lhes novas obrigações e reformando
tudo para melhor. No fim de dois meses já o vendeiro esfregava as mãos de
contente e via, radiante, quanto lucrara com a aquisição de Jerônimo; tanto
assim que estava disposto a aumentar-lhe o ordenado para conservá-lo em sua
companhia. “Valia a pena! Aquele homem era um achado precioso! Abençoado fosse
o Machucas que lho enviara!” E começou a distingui-lo e respeitá-lo como não
fazia a ninguém. O prestigio e a consideração de que Jerônimo gozava entre
os moradores da outra estalagem donde vinha, foi a pouco e pouco se reproduzindo
entre os seus novos companheiros de cortiço. Ao cabo de algum tempo era consultado
e ouvido, quando qualquer questão difícil os preocupava. Descobriam-se defronte
dele, como defronte de um superior, até o próprio Alexandre abria uma exceção
nos seus hábitos e fazia-lhe uma ligeira continência com a mão no boné, ao
atravessar o pátio, todo fardado, por ocasião de vir ou ir para o serviço.
Os dois caixeiros da venda, o Domingos e o Manuel, tinham entusiasmo por ele.
“Aquele é que devia ser o patrão, diziam. É um homem sério e destemido! Com
aquele ninguém brinca!” E, sempre que a Piedade de Jesus ia lá à taverna fazer
as suas compras, a fazenda que lhe davam era bem escolhida, bem medida ou
bem pesada. Muitas lavadeiras tomavam inveja dela, mas Piedade era de natural
tão bom e benfazejo que não deva por isso e a maledicência murchava antes
de amadurecer. Jerônimo acordava todos os dias às quatro horas da manhã, fazia
antes dos outros a sua lavagem à bica do pátio, socava-se depois com uma boa
palangana de caldo de unto, acompanhada de um pão de quatro; e, em mangas
de camisa de riscado, a cabeça ao vento, os grossos pés sem meias metidos
em um formidável par de chinelos de couro cru, seguia para a pedreira. A sua
picareta era para os companheiros o toque de reunir. Aquela ferramenta movida
por um pulso de Hércules valia bem os clarins de um regimento tocando alvorada.
Ao seu retinir vibrante surgiam do caos opalino das neblinas vultos cor de
cinza, que lá iam, como sombras, galgando a montanha, para cavar na pedra
o pão nosso de cada dia. E, quando o sol desfechava sobre o píncaro da rocha
os seus primeiros raios, já encontrava de pé, a bater-se contra o gigante
de granito, aquele mísero grupo de obscuros batalhadores. Jerônimo só voltava
a casa ao descair da tarde, morto de fome e de fadiga. A mulher preparava-lhe
sempre para o jantar alguma das comidas da terra deles. E ali, naquela estreita
salinha, sossegada e humilde, gozavam os dois, ao lado

um do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do descanso após
um dia inteiro de canseiras ao sol. E, defronte do candeeiro de querosene,
conversavam sobre a sua vida e sobre a sua Marianita, a filhinha que estava
no colégio e que só os visitava aos domingos e dias santos. Depois, até às
horas de dormir, que nunca passavam das nove, ele tomava a sua guitarra e
ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedilhar os fados da sua terra.
Era nesses momentos que dava plena expansão às saudades da pátria, com aquelas
cantigas melancólicas em que a sua alma de desterrado voava das zonas abrasadas
da América para as aldeias tristes da sua infância. E o canto daquela guitarra
estrangeira era um lamento choroso e dolorido, eram vozes magoadas, mais tristes
do que uma oração em alto-mar, quando a tempestade agita as negras asas homicidas,
e as gaivotas doidejam assanhadas, cortando a treva com os seus gemidos pressagos,
tontas como se estivessem fechadas dentro de uma abóbada de chumbo.

VI

Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e
pouco calor. As tinas estavam abandonadas; os coradouros despidos. Tabuleiros
e tabuleiros de roupa engomada saiam das casinhas, carregados na maior parte
pelos filhos das próprias lavadeiras que se mostravam agora quase todas de
fato limpo; os casaquinhos brancos avultavam por cima das saias de chita de
cor. Desprezavam-se os grandes chapéus de palha e os aventais de aniagem;
agora as portuguesas tinham na cabeça um lenço novo de ramagens vistosas e
as brasileiras haviam penteado o cabelo e pregado nos cachos negros um ramalhete
de dois vinténs; aquelas trancavam no ombro xales de lã vermelha, e estas
de crochê, de um amarelo desbotado. Viam-se homens de corpo nu, jogando a
placa, com grande algazarra. Um grupo de italianos, assentado debaixo de uma
árvore, conversava ruidosamente, fumando cachimbo. Mulheres ensaboavam os
filhos pequenos debaixo da bica, muito zangadas, a darem-lhes murros, a praguejar,
e as crianças berravam, de olhos fechados, esperneando. A casa da Machona
estava num rebuliço, porque a família ia sair a passeio; a velha gritava,
gritava Nenen, gritava o Agostinho. De muitas outras saiam cantos ou sons
de instrumentos; ouviam-se harmônicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta
melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone.
Os papagaios pareciam também mais alegres com o domingo e lançavam das gaiolas
frases inteiras, entre gargalhadas e assobios. À porta de diversos cômodos,
trabalhadores descansavam, de calça limpa e camisa de meia lavada, assentados
em cadeira, lendo e soletrando jornais ou livros; um declamava em voz alta
versos de “Os Lusíadas:, com um empenho feroz, que o punha rouco. Transparecia
neles o prazer da roupa mudada depois de uma semana no corpo. As casinhas
fumegavam um cheiro bom de refogados de carne fresca fervendo ao fogo. Do
sobrado do Miranda só as duas últimas janelas já estavam abertas e, pela escada
que descia para o quintal, passava uma criada carregando baldes de águas servidas.
Sentia-se naquela quietação de dia inútil a falta do resfolegar aflito das
máquinas da vizinhança, com que todos estavam habituados. Para além do solitário
capinzal do fundo a pedreira parecia dormir em paz o seu sono de pedra; mas,
em compensação, o movimento era agora extraordinário à frente da estalagem
e à entrada da venda. Muitas lavadeiras tinham ido para o portão, olhar quem
passava; ao lado delas o Albino, vestido de branco, com o seu lenço engomado
ao pescoço, entretinha-se a chupar balas de açúcar, que comprara ali mesmo
ao tabuleiro de um baleiro freguês do cortiço. Dentro da taverna, os martelos
de vinho branco, os copos de cerveja nacional e os dois vinténs de parati
ou laranjinha sucediam-se por cima do balcão, passando das mãos do Domingos
e do Manuel para as mãos ávidas dos operários e dos trabalhadores, que os
recebiam com estrondosas exclamações de pândega. A Isaura, que fora num pulo
tomar o seu primeiro capilé, via-se tonta com os apalpões que lhe davam. Leonor
não tinha um instante de sossego, saltando de um lado para outro, com uma
agilidade de mono, a fugir dos punhos calosos dos cavouqueiros que, entre
risadas, tentavam agarrá-la; e insistia na sua ameaça do costume: “que se
queixava ao juiz de orfe”, mas não se ia embora, porque defronte da venda
viera estacionar um homem que tocava cinco instrumentos ao mesmo tempo, com
um acompanhamento desafinado de bombo, pratos e guizos.

Eram apenas oito horas e já muita gente comia e palavreava na casa de pasto
ao lado da venda. João Romão, de roupa mudada como os outros, mas sempre em
mangas de camisa, aparecia de espaço em espaço, servindo os comensais; e a
Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, lá estava
ao fogão, mexendo as panelas e enchendo os pratos. Um acontecimento, porém,
veio revolucionar alegremente toda aquela confederação da estalagem. Foi a
chegada da Rita Baiana, que voltava depois de uma ausência de meses, durante
a qual só dera noticias suas nas ocasiões de pagar o aluguei do cômodo. Vinha
acompanhada por um moleque, que trazia na cabeça um enorme samburá carregado
de compras feitas no mercado; um grande peixe espiava por entre folhas de
alface com o seu olhar embaciado e triste, contrastando com as risonhas cores
dos rabanetes, das cenouras e das talhadas de abóbora vermelha. – Põe isso
tudo ai nessa porta. Ai no número 9, pequeno! gritou ela ao moleque, indicando-lhe
a sua casa, e depois pagou-lhe o carreto. – Podes ir embora, carapeta! Desde
que do portão a bisparam na rua, levantou-se logo um coro de saudações. –
Olha! quem ai vem! – Olé! Bravo! É a Rita Baiana! – Já te fazíamos morta e
enterrada! – E não é que o demo da mulata está cada vez mais sacudida?…
– Então, coisa-ruim! por onde andaste atirando esses quartos? – Desta vez
a coisa foi de esticar, hein?!

Rita havia parado em meio do pátio.

Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novas dela. Não vinha
em traje de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver
o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de diversas
cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia
um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho. E toda
ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas
aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril baiano, respondia
para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um fio de dentes claros e
brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador. Acudiu
quase todo o cortiço para recebê-la. Choveram abraços e as chufas do bom acolhimento.
Por onde andara aquele diabo, que não aparecia para mais de três meses? –
Ora, nem me fales, coração! Sabe? pagode de roga! Que hei de fazer? é a minha
cachaça velha!… – Mas onde estiveste tu enterrada tanto tempo, criatura?
– Em Jacarepaguá. – Com quem? – Com o Firmo… – Oh! Ainda dura isso? – Cala
a boca! A coisa agora é séria! – Qual! Quem mesmo? Tu? Passa fora! – Paixões
da Rita! exclamou o Bruno com uma risada. Uma por ano! Não contando as miúdas!
– Não! isso é que não! Quando estou com um homem não olho pra outro! Leocádia,
que era perdida pela mulata, saltara-lhe ao pescoço ao primeiro encontro,
e agora, defronte dela, com as mãos nas cadeiras, os olhos úmidos de comoção,
rindo, sem se fartar de vê-la, fazia-lhe perguntas sobre perguntas: – Mas
por que não te metes tu logo por uma vez com o Firmo? por que não te casas
com ele? – Casar? protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar?
Livra! Para quê? para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa
logo que a gente é escrava! Nada! qual! Deus te livre! Não há como viver cada
um senhor e dono do que é seu! E sacudiu todo o corpo num movimento de desdém
que lhe era peculiar. – Olha só que peste! considerou Augusta, rindo, muito
mole, na sua honestidade preguiçosa. Esta também achava infinita graça na
Rita Baiana e seria capaz de levar um dia inteiro a vê-la dançar o chorado.
Florinda ajudava a mãe a preparar o almoço, quando lhe cheirou que chegara
a mulata, e veio logo correndo, a rir-se desde longe, cair-lhe nos braços.
A própria Marciana, de seu natural sempre triste e metida consigo, apareceu
à janela, para saudá-la. A das Dores, com as saias arrepanhadas no quadril
e uma toalha por cima amarrada pela parte de trás e servindo de avental, o
cabelo ainda por pentear, mas entrouxado no alto da cabeça, abandonou a limpeza
que fazia em casa e veio ter com a Rita, para dar-lhe uma palmada e gritar-lhe
no nariz: – Desta vez tomaste um fartão, hein, mulata assanhada?… E, ambas
a caírem de riso, abraçaram-se em intimidade de amigas, que não têm segredos
de amor uma para a outra. A Bruxa veio em silêncio apertar a mão de Rita e
retirou-se logo. – Olha a feiticeira! bradou esta última, batendo no ombro
da idiota. Que diabo você tanto reza, tia Paula? Eu quero que você me dê um
feitiço para prender meu homem! E tinha uma frase para cada um que se aproximasse.
Ao ver Dona Isabel, que apareceu toda cerimoniosa na sua saia da missa e com
o seu velho xale de Macau, abraçou-a e pediu-lhe uma pitada, que a senhora
recusou, resmungando: – Sai daí diabo! – Cadê Pombinha? perguntou a mulata.
Mas, nessa ocasião, Pombinha acabava justamente de sair de casa, muito bonita
e asseada com um vestido novo de cetineta. As mãos ocupadas com o livro de
rezas, o lenço e a sombrinha. – Ah! Como está chique! exclamou a Rita, meneando
a cabeça. É mesmo uma flor! – e logo que Pombinha se pôs ao seu alcance, abraçou-lhe
a cintura e deu-lhe um beijo. – O João Costa se não te fizer feliz como os
anjos sou capaz de abrir-lhe o casco com o salto do chinelo! Juro pelos cabelos
do meu homem! – E depois, tornando-se séria,

perguntou muito em voz baixa a Dona Isabel: – Já veio?… ao que a velha
respondeu negativamente com um desconsolado e mudo abanar de orelhas. O circunspecto
Alexandre, sem querer declinar da sua gravidade, pois que estava fardado e
pronto para sair, contentou-se em fazer com a mão um cumprimento à mulata,
ao qual retrucou esta com uma continência militar e uma gargalhada que o desconcertaram.
Iam fazer comentários sobre o caso, mas a Rita, voltando-se para o outro lado,
gritou: – Olha o velho Libório! Como está cada vez mais duro!… Não se entrega
por nada o demônio do judeu! E correu para o lugar, onde estava, aquecendo-se
ao belo sol de abril, um octogenário, seco, que parecia mumificado pela idade,
a fumar num resto de cachimbo, cujo pipo desaparecia na sua boca já sem lábios.
– Êh! êh! fez ele, quando a mulata se aproximou. – Então? perguntou Rita,
abaixando-se para tocar-lhe no ombro. Quando é o nosso negócio?… Mas você
há de deixar-me primeiro abrir o bauzinho de folha!… Libório riu-se com
as gengivas, tentando apalpar as coxas da Baiana, por caçoada, afetando luxúria.
Todos acharam graça nesta pantomimice do velhinho, e então, a mulata, para
completar a brincadeira, deu uma volta entufando as saias e sacudiu-as depois
sobre a cabeça dele, que se fingiu indignado, a fungar exageradamente. E entre
a alegria levantada pela sua reaparição no cortiço, a Rita deu conta de que
pintara na sua ausência; disse o muito que festou em Jacarepaguá; o entrudo
que fizera pelo carnaval. Três meses de folia! E, afinal abaixando a voz,
segredou às companheiras que à noite teriam um pagodinho de violão. Podiam
contar como certo! Esta última noticia causou verdadeiro júbilo no auditório.
As patuscadas da Rita Baiana eram sempre as melhores da estalagem. Ninguém
como o diabo da mulata para armar uma função que ia pelas tantas da madrugada,
sem saber a gente como foi que a noite se passou tão depressa. Além de que
“era aquela franqueza! enquanto houvesse dinheiro ou crédito, ninguém morria
com a tripa marcha ou com a goela seca!” – Diz-me cá, ó Leocadinha! quem são
aqueles jururus que estão agora no 35? indagou ela, vendo o Jerônimo à porta
da casa com a mulher. – Ah! explicou a interrogada, é o Jeromo e mais a Piedade,
um casal que inda não conheces. Entrou ao depois que arribaste. Boa gente,
coitados! Rita carregou para dentro do seu cômodo as provisões que trouxera;
abriu logo a janela e pôs-se a cantar. Sua presença enchia de alegria a estalagem
toda. O Firmo, o mulato com quem ela agora vivia metida, o demônio que a desencabeçara
para aquela maluqueira, de Jacarepaguá, ia lá jantar esse dia com um amigo.
Rita declarava isto às companheiras, amolando uma faquinha no tijolo da sua
porta, para escamar o peixe; enquanto os gatos, aqueles mesmos que perseguiam
o sardinheiro, vinham, um a um, chegando-se todos só com o ruído da afiação
do ferro. Ao lado direito da casinha da mulata, no número 8, a das Dores preparava-se
também para receber nesse dia o seu amigo e dispunha-se a fazer uma limpeza
geral nas paredes, nos tetos, no chão e nos móveis, antes de meter-se na cozinha.
Descalça, com a saia levantada até ao joelho, uma toalha na cabeça, os braços
arregaçados, viam-na passar de carreira, de casa para a bica e da bica outra
vez para casa, carregando pesados baldes cheios de água. E daí a pouco apareciam
ajudantes gratuitos para os arranjos do jantar, tanto do lado da das Dores,
como do lado da Rita Baiana. O Albino encarregou-se de varrer e arrumar a
casa desta, entretanto que a mulata ia para o fogão preparar os seus quitutes
do Norte. E veio a Florinda, e veio a Leocádia, e veio a Augusta, impacientes
todas elas pelo pagode que havia de sair à noite, depois do jantar. Pombinha
não apareceu durante o dia, porque estava muito ocupada, aviando a correspondência
dos trabalhadores e das lavadeiras: serviço este que ela deixava para os domingos.
Numa pequena mesa, coberta por um pedaço de chita, com o tinteiro ao lado
da caixinha de papel, a menina escrevia, enquanto o dono ou dona da carta
ditava em voz alta o que queria mandar dizer à família. ou a algum mau devedor
de roupa lavada. E ia lançando tudo no papel, apenas com algumas ligeiras
modificações, para melhor, no modo de exprimir a idéia. Pronta uma carta,
sobrescritava-a, entregava-a ao dono e chamava por outro, ficando a sós com
um de cada vez, pois que nenhum deles queria dar o seu recado em presença
de mais ninguém senão de Pombinha. De sorte que a pobre rapariga ia acumulando
no seu coração de donzela toda a súmula daquelas paixões e daqueles ressentimentos,
às vezes mais fétidos do que a evaporação de um lameiro em dias de grande
calor. – Escreva lá, Nhã Pombinha! disse junto dela um cavouqueiro, coçando
a cabeça; mas faça letra grande, que é pra mulher entender! Diga-lhe que não
mando desta feita o dinheiro que me pediu, porque agora não o tenho e estou
muito acossado de apertos; mas que lho prometo pro mês. Ela que se vá arranjando
por lá, que eu cá sabe Deus como me coço; e que, se o Luís, o irmão, resolver
de vir, que mo mande dizer com tempo, para ver se se lhe dá furo à vida por
aqui; que isto de vir sem inda ter p’ronde, é fraco negócio, porque
as coisas por cá não correm lá para que digamos!

E depois que a Pombinha escreveu, acrescentou: – Que eu tenho sentido muito
a sua falta dela; mas também sou o mesmo e não me meto em porcarias e relaxamento;
e que tenciono mandar buscá-la, logo que Deus me ajude, e a Virgem! Que ela
não tem de que se arreliar por mor do dinheiro não ir desta; que, como lá
diz o outro: quando não há el-rei o perde! Ah! (ia esquecendo!) quanto à Libânia,
é tirar daí o juízo! que a Libânia se atirou aos cães e faz hoje má vida na
Rua de São Jorge; que se esqueça dela por vez e perca o amor às duas coroas
que lhe emprestou! E a menina escrevia tudo, tudo, apenas interrompendo o
seu trabalho para fitar, com a mão no queixo, o cavouqueiro, à espera de nova
frase.

VII

E assim ia correndo o domingo no cortiço até às três da tarde, horas em que
chegou mestre Firmo, acompanhado pelo seu amigo Porfiro, trazendo aquele o
violão e o outro o cavaquinho. Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era um
mulato pachola, delgado de corpo e ágil como um cabrito; capadócio de marca,
pernóstico, só de maçadas, e todo ele se quebrando nos seus movimentos de
capoeira. Teria seus trinta e tantos anos, mas não parecia ter mais de vinte
e poucos. Pernas e braços finos, pescoço estreito, porém forte; não tinha
músculos, tinha nervos. A respeito de barba, nada mais que um bigodinho crespo,
petulante, onde reluzia cheirosa a brilhantina do barbeiro; grande cabeleira
encaracolada, negra, e bem negra, dividida ao meio da cabeça, escondendo parte
da testa e estufando em grande gaforina por debaixo da aba do chapéu de palha,
que ele punha de banda, derreado sobre a orelha esquerda. Vestia, como de
costume, um paletó de lustrina preta já bastante usado, calças apertadas nos
joelhos, mas tão largas na bainha que lhe engoliam os pezinhos secos e ligeiros.
Não trazia gravata, nem colete, sim uma camisa de chita nova e ao pescoço,
resguardando o colarinho, um lenço alvo e perfumado; à boca um enorme charuto
de dois vinténs e na mão um grosso porrete de Petrópolis, que nunca sossegava,
tantas voltas lhe dava ele a um tempo por entre os dedos magros e nervosos.

Era oficial de torneiro, oficial perito e vadio; ganhava uma semana para
gastar num dia; às vezes, porém, os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o
dinheiro, e então ele fazia como naqueles últimos três meses: afogava-se numa
boa pândega com a Rita Baiana. A Rita ou outra. “O que não faltava por aí
eram saias para ajudar um homem a cuspir o cobre na boca do diabo!” Nascera
no Rio de Janeiro, na Corte; militara dos doze aos vinte anos em diversas
maltas de capoeiras; chegara a decidir eleições nos tempos do voto indireto.
Deixou nome em várias freguesias e mereceu abraços, presentes e palavras de
gratidão de alguns importantes chefes de partido. Chamava a isso a sua época
de paixão política; mas depois desgostou-se com o sistema de governo e renunciou
às lutas eleitorais, pois não conseguira nunca o lugar de continuo numa repartição
pública – o seu ideal! -Setenta mil-réis mensais: trabalho das nove às três.
Aquela amigação com a Rita Baiana era uma coisa muito complicada e vinha de
longe; vinha do tempo em que ela ainda estava chegadinha de fresco da Bahia,
em companhia da mãe, uma cafuza dura, capaz de arrancar as tripas ao Manduca
da Praia. A cafuza morreu e o Firmo tomou conta da mulata; mas pouco depois
se separaram por ciúmes, o que aliás não impediu que se tornassem a unir mais
tarde, e que de novo brigassem e de novo se procurassem. Ele tinha “paixa”
pela Rita, e ela, apesar de volúvel como toda a mestiça, não podia esquecê-lo
por uma vez; metia-se com outros, é certo, de quando em quando, e o Firmo
então pintava o caneco, dava por paus e por pedras, enchia-a de bofetadas,
mas, afinal, ia procurá-la, ou ela a ele, e ferravam-se de novo, cada vez
mais ardentes, como se aquelas turras constantes reforçassem o combustível
dos seus amores. O amigo que Firmo trazia aquele domingo em sua companhia,
o Porfiro, era mais velho do que ele e mais escuro. Tinha o cabelo encarapinhado.
Tipógrafo. Afinavam-se muito os dois tipos com as suas calças de boca larga
e com os seus chapéus ao lado; mas o Porfiro tinha outra linha: não dispensava
a sua gravata de cor saltando em laço frouxo sobre o peito da camisa; fazia
questão da sua bengalinha com cabeça de prata e da sua piteira de âmbar e
espuma, em que ele equilibrava um cigarro de palha. Desde a entrada dos dois,
a casa de Rita esquentou. Ambos tiraram os paletós e mandaram vir parati,
“a abrideira para muqueca baiana”. E não tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho
e o violão. Ao lado chegava também o homem da das Dores, com um companheiro
do comércio; vinham vestidos de fraque e chapéu alto. A Machona, Nenen e o
Agostinho, já de volta do seu passeio à cidade, lá estavam ajudando. Ficariam
para o rega-bofe. Um rumor quente, de dia de festa, ia-se formando naquele
ponto da estalagem. Tanto numa casa, como na outra, o jantar seria às cinco
horas. Rita “botou” vestido branco, de cambraia, encanudado a ferro. Leocádia,
Augusta, o Bruno, o Alexandre e o Albino jantariam com ela no número 9; e
no número 8, com a das Dores, ficariam, além dos parentes desta, Dona Isabel,
Pombinha, Marciana e Florinda. Jerônimo e sua mulher foram convidados para
ambas as mesas, mas não aceitaram o convite para nenhuma, dispostos a passar
a tarde ao lado um do outro, tranqüilamente como sempre, comendo em boa paz
o seu cozido à moda da terra e bebendo o seu quartilho de verde pela mesma
infusa.

Entretanto, os dois jantares vizinhos principiaram ruidosos logo desde a
sopa e assanharam-se progressivamente. Meia hora depois vinha das duas casas
uma algazarra infernal. Falavam e riam todos ao mesmo tempo; tilintavam os
talheres e os copos. Cá de fora sentia-se perfeitamente o prazer que aquela
gente punha em comer e beber à farta, com a boca cheia, os beiços envernizados
de molho gordo. Alguns cães rosnavam à porta, roendo os ossos que traziam
lá de dentro. De vez em quando, da janela de uma das casas aparecia uma das
moradoras, chamando a vizinha, para entregar um prato cheio, permutando as
duas entre si os quitutes e as petisqueiras em que eram mais peritas.

– Olha! gritava a das Dores para o número 9, diz à Rita que prove deste zorô,
pra ver que tal o acha, e que o vatapá estava muito gostoso! Se ela tem pimentas,
que me mande algumas! Do meio para o fim do jantar o baralho em ambas as casas
era medonho. No número 8 berravam-se brindes e cantos desafinados. O português
amigo da das Dores, já desengravatado e com os braços à mostra, vermelho,
lustroso de suor, intumescido de vinho virgem e leitão de forno, repotreava-se
na sua cadeira, a rir forte, sem calar a boca, com a camisa a espipar-lhe
pela braguilha aberta. O sujeito que a acompanhara fazia fosquinhas a Nenen,
protegido no seu namoro por toda a roda, desde a respeitável Machona até ao
endemoninhado Agostinho, que não ficava quieto um instante, nem deixava sossegar
a mãe, gritando um contra o outro como dois possessos. Florinda, sempre muito
risonha e esperta, divertia-se a valer e, de vez em quando, levantava-se da
mesa, para ir de carreira levar lá fora ao número 12 um prato de comida à
sua velha que, à última hora, vindo-lhe o aborrecimento, resolvera não ir
ao jantar. À sobremesa o esfogueado amigo da dona da casa exigiu que a amante
se lhe assentasse nas coxas e dava-lhe beijos em presença de toda a companhia,
o que fez com que Dona Isabel, impaciente por afastar a filha daquele inferno,
declarasse que sentia muito calor e que ia lá para a porta esperar mais à
fresca o café. Em casa de Rita Baiana a animação era inda maior. Firmo e Porfiro
faziam o diabo, cantando, tocando bestialógicos, arremedando a fala dos pretos
cassanges. Aquele não largava a cintura da mulata e só bebia no mesmo copo
com ela; o outro divertia-se a perseguir o Albino, galanteando-o afetadamente,
para fazer rir à sociedade. O lavadeiro indignava-se, dava o cavaco”. Leocádia,
a quem o vinho produzira delírios hilaridade, torcia-se em gargalhadas, tão
fortes e sacudidas que desconjuntavam a cadeira em que ela estava; e, muito
lubrificada pela bebedeira, punha os pesados pés sobre os de Porfiro, roçando
as pernas contra as dele e deixando-se apalpar pelo capadócio. O Bruno, defronte
dela, rubro e suado como se estivesse a trabalhar na forja, falava e gesticulava
sem se levantar, praguejando ninguém sabia contra quem. O Alexandre, à paisana,
assentado ao lado da mulher, conservava quase toda a sua seriedade e pedia
que não fizessem tanto barulho porque podiam ouvir da rua. E notou, em voz
misteriosa, que o Miranda tinha vindo já espiar por várias vezes da janela
do sobrado.

– Que espie as vezes que quiser! bradou a Rita. Pois então a gente não é
senhora de estar um domingo em casa a seu gosto e com os amigos que entender?!…
Que vá pro diabo que o lixe! Eu não como nem bebo do que é dele! Os dois mulatos
e o Bruno também eram da mesma opinião. “Pois então! Desde que se não ofendia,
nem prejudicava a safardana nenhum com aquele divertimento, não havia de que
falar!” – E que não entiquem muito, ameaçou o Firmo, que comigo é nove! E
o trunfo é paus! O Porfiro exclamou: – Se se incomodam com a gente… os incomodados
são os que se mudam! Ora pistolas! – O domingo fez-se pra gozar!… resmungou
o Bruno, deixando cair a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa. Mas ergueu-se
logo, cambaleando, e acrescentou, despindo o braço direito até o ombro: –
Eles que se façam finos, que os racho! O Alexandre procurou acalmá-lo, dando-lhe
um charuto. Em uma outra casinha do cortiço acabava de estalar uma nova sobremesa,
engrossando o barulho geral: era o jantar de um grupo de italianos mascates,
onde o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa representavam as principais
figuras. Todos eles cantavam em coro, mais afinados que nas outras duas casas;
quase, porém, que se lhes não podia ouvir as vozes, tantas e tão estrondosas
eram as pragas que soltavam ao mesmo tempo. De quando em quando, de entre
o grosso e macho vozear dos homens, esguichava um falsete feminino, tão estridente
que provocava réplica aos papagaios e aos perus da vizinhança. E, daqui e
dali, iam rebentando novas algazarras em grupos formados cá e lá pela estalagem.
Havia nos operários e nos trabalhadores decidida disposição para pandegar,
para aproveitar bem, até ao fim, aquele dia de folga. A casa de pasto fermentava
revolucionada, como um estômago de bêbedo depois de grande bródio, e arrotava
sobre o pátio uma baforada quente e ruidosa que entontecia. O Miranda apareceu
furioso à janela, com o seu tipo de comendador, a barriga empinada para a
frente, de paletó branco, um guardanapo ao pescoço e um trinchante empunhado
na destra, como uma espada. – Vão gritar pra o inferno, com um milhão de raios!
berrou ele, ameaçando para baixo. Isto também já é demais! Se não se calam,
vou daqui direito chamar a policia! Súcia de brutos! Com os berros do Miranda
muita gente chegou à porta de casa, e o coro de gargalhadas, que ninguém podia
conter naquele momento de alegria, ainda mais o pôs fora de si. – Ah, canalhas!
O que eu devia fazer era atirar-lhes daqui, como a cães danados! Uma vaia
uníssona ecoou em todo o pátio da estalagem, enquanto em volta do negociante
surgiam várias pessoas, puxando-o para dentro de casa. – Que é isso, Miranda!
Então! Estás agora a dar palha?…

– O que eles querem é que encordoes!… – Saia daí papai! – Olhe alguma pedrada,
esta gente é capaz de tudo! E via-se de relance Dona Estela, com a sua palidez
de flor meia fanada, e Zulmira, lívida, um ar de fastio a fazê-la feia, e
o Henriquinho, cada vez mais bonito, e o velho Botelho, indiferente, a olhar
para toda esta porcaria do mundo com o profundo desprezo dos que já não esperam
nada dos outros, nem de si próprios. – Canalhas! repisava o Miranda. O Alexandre,
que fora de carreira enfiar a sua farda, apresentou-se então e disse ao negociante
que não era prudente atirar insultos cá pra baixo. Ninguém o tinha provocado!
Se os moradores da estalagem jantavam em companhia de amigos, lá em cima o
Miranda também estava comendo com os seus convidados! Era mau insultar, porque
palavra puxa palavra, e, em caso de ter de depor na policia, ele, Alexandre,
deporia a favor de quem tivesse razão!… – Fomente-se! respondeu o negociante,
voltando-lhe as costas. – Já se viu chubregas mais atrevido?! exclamou Firmo,
que até ai estivera calado, à porta da Rita, com as mãos nas cadeiras, a fitar
provocadoramente o Miranda. E gritando mais alto, para ser bem ouvido: – Facilita
muito, meu boi manso, que te escorvo os galhos na primeira ocasião! O Miranda
foi arrancado com violência da janela, e esta fechada logo em seguida com
estrondo. – Deixa lá esse labrego! resmungou Porfiro, tomando o amigo pelo
braço e fazendo-o recolher-se à casa da mulata. Vamos ao café, é o que é,
antes que esfrie! Defronte da porta de Rita tinham vindo postar-se diversos
moradores do cortiço, jornaleiros de baixo salário, pobre gente miserável,
que mal podia matar a fome com o que ganhava. Ainda assim não havia entre
eles um só triste. A mulata convidou-os logo a comer um bocado e beber um
trago. A proposta foi aceita alegremente. E a casa dela nunca se esvaziava.
Anoitecia já. O velho Libório, que jamais ninguém sabia ao certo onde almoçava
ou jantava, surgiu do seu buraco, que nem jabuti quando vê chuva. Um tipão,
o velho Libório! Ocupava o pior canto do cortiço e andava sempre a fariscar
os sobejos alheios, filando aqui, filando ali, pedindo a um e a outro, como
um mendigo, chorando misérias eternamente, apanhando pontas de cigarro para
fumar no cachimbo, cachimbo que o sumítico roubara de um pobre cego decrépito.
Na estalagem diziam todavia que Libório tinha dinheiro aferrolhado, contra
o que ele protestava ressentido, jurando a sua extrema penaria. E era tão
feroz o demônio naquela fome de cão sem dono, que as mães recomendavam às
suas crianças todo o cuidado com ele, porque o diabo do velho, quando via
algum pequeno desacompanhado, punha-se logo a rondá-lo, a cercá-lo de festas
e a fazer-lhe ratices para o engabelar, até conseguir furtar-lhe o doce ou
o vintenzinho que o pobrezito trazia fechado na mão. Rita fê-lo entrar e deu-lhe
de comer e de beber; mas sob condição de que o esfomeado não se socasse demais,
para não rebentar ali mesmo. Se queria estourar, fosse estourar para longe!
Ele pôs-se logo a devorar, sofregamente, olhando inquieto para os lados, como
se temesse que alguém lhe roubasse a comida da boca. Engolia sem mastigar,
empurrando os bocados com os dedos, agarrando-se ao prato e escondendo nas
algibeiras o que não podia de uma só vez meter para dentro do corpo. Causava
terror aquela sua implacável mandíbula, assanhada e devoradora; aquele enorme
queixo, ávido, ossudo e sem um dente, que parecia ir engolir tudo, tudo, principiando
pela própria cara, desde a imensa batata vermelha que ameaçava já entrar-lhe
na boca, até as duas bochechinhas engelhadas, os olhos, as orelhas, a cabeça
inteira, inclusive a sua grande calva, lisa como um queijo e guarnecida em
redor por uns pêlos puídos e ralos como farripas de coco. Firmo propôs embebedá-lo,
só para ver a sorte que ele daria. O Alexandre e a mulher opuseram-se, mas
rindo muito; nem se podia deixar de rir, apesar do espanto, vendo aquele resto
de gente, aquele esqueleto velho, coberto por uma pele seca, a devorar, a
devorar sem tréguas, como se quisesse fazer provisão para uma outra vida.
De repente, um pedaço de carne, grande demais para ser ingerido de uma vez,
engasgou-o seriamente. Libório começou a tossir, aflito, com os olhos sumidos,
a cara tingida de uma vermelhidão apoplética. A Leocádia, que era quem lhe
ficava mais perto, soltou-lhe um murro nas costas.

O glutão arremessou sobre a toalha da mesa o bocado de carne já meio triturado.
Foi um nojo geral. – Porco! gritou Rita, arredando-se. – Pois se o bruto quer
socar tudo ao mesmo tempo! disse Porfiro. Parece que nunca viu comida, este
animal! E notando que ele continuava ainda mais sôfrego por ter perdido um
instante: – Espere um pouco, lobo! Que diabo! A comida não foge! Há muito
ai com que te fartares por uma vez! Com efeito! – Beba água, tio Libório!
aconselhou Augusta. E, boa, foi buscar um copo de água e levou-lho a boca.
O velho bebeu, sem despregar os olhos do prato. Arre diabo! resmungou Porfiro,
cuspindo para o lado. Este é mesmo capaz de comer-nos a todos nós, sem achar
espinhas! Albino, esse, coitado! é que não comia quase nada e o pouco que
conseguia meter no estômago fazia-lhe mal. Rita, para bolir com ele, disse
que semelhante fastio era gravidez com certeza. – Você já começa, hein?…
balbuciou o pobre moço, esgueirando-se com a sua xícara de café. – Olha, cuidado!
gritou-lhe a mulata. Pouco café, que faz mal ao leite, e a criança pode sair
trigueira! O Albino voltou para dizer muito sério à Rita que não gostava dessas
brincadeiras. Alexandre, que havia acendido um charuto, depois de oferecer
outros, galantemente, aos companheiros, arriscou, para também fazer a sua
pilhéria, que o sonso do Albino fora pilhado às voltas com a Bruxa no capinzal
dos fundos da estalagem, debaixo das mangueiras. Só a Leocádia achou graça
nisto e riu a bandeiras despregadas. Albino declarou, quase chorando, que
ele não mexia com pessoa alguma, e que ninguém, por conseguinte, devia mexer
com ele. – Mas afinal, perguntou Porfiro, é mesmo exato que este pamonha não
conhece mulher?… – Ele é quem pode responder! acudiu a mulata. E esta história
vai ficar hoje liquidada! Vamos lá, ó Albino! confessa-nos tudo, ou mal te
terás de haver com a gente! – Se eu soubesse que era para isto que me chamaram
não tinha vindo cá, sabe? gaguejou o lavadeiro, amuado. Eu não sirvo de palito!
E ter-se-ia retirado chorando, se a Rita não lhe cortasse a saída, dizendo,
como se falasse a uma criatura do seu sexo, mais fraca do que ela: – Ora não
sejas tolo! Deixa-te ficar ai! Se deres o cavaco é pior! Albino limpou as
lágrimas e foi sentar-se de novo. Entretanto, a noite fechava-se, refrescando
a tarde com o sudoeste. Bruno roncava no lugar em que tinha jantado. A Leocádia
passara livremente a perna para cima da de Porfiro, que a abraçava, bebendo
parati aos cálices. Mas o Firmo lembrou que seria melhor irem lá para fora;
e todos, menos o Bruno, dispuseram-se a deixar a sala, enquanto o velho Libório!
pedia a Alexandre um cigarro para despejar no cachimbo. Servido, o filante
desapareceu logo, correndo ao faro de outros jantares. Rita, Augusta e Albino
ficaram lavando a louça e arrumando a casa. Lá fora o coro dos italianos se
prolongava numa cadência monótona e arrastada, em que havia muito peso de
embriaguez. Junto à porta de várias casas faziam-se grupos de pessoas assentadas
em cadeiras ou no chão; mas a roda da Rita Baiana era a maior, porque fora
engrossada pelos convivas da das Dores. O fumo dos cachimbos e dos charutos
elevava-se de toda a parte. Decrescera o ruído geral; fazia-se a digestão;
já ninguém discutia e todos conversavam. Acendeu-se o lampião do pátio. Iluminaram-se
diversas janelas das casinhas. Agora, no sobrado do Miranda é que era o maior
barulho. Saia de lá uma terrível gritaria de hipes e hurras, virgulada pelo
desarrolhar de garrafas de champanha. – Como eles atacam!… observou Alexandre,
já de novo sem farda. – E, no entanto, reprovam que a gente coma o que é seu
com um pouco mais de alegria! comentou a Rita. Uma súcia! Falou-se então largamente
a respeito da família do Miranda, principalmente de Dona Estela e do Henrique.
A Leocádia afiançou que, numa ocasião, espiando por cima do muro, trepada
num montão de garrafas vazias que havia no

pátio do cortiço, vira a sirigaita com a cara agarrada à do estudante, aos
beijos e aos abraços, que era obra; e assim que os dois deram fé que ela os
espreitava, deitaram a fugir que nem cães apedrejados. A Augusta Carne-Mole
benzeu-se, com uma invocação à Virgem Santíssima, e o companheiro do amigo
da das Dores, que insistia no seu namoro com a Nenen, mostrou-se muito admirado
com a noticia, “supunha Dona Estela um modelo de seriedade”. – Qual! negou
Alexandre. Isso por ai é tudo uma pouca-vergonha, que faz descrer um homem
de si mesmo! Eu também já vi de uma feita bem boas coisas pela sombra dela
na parede; mas não era com o estudante, era com um sujeito que lá ia às vezes,
um barbado, careca e comido de bexigas. E a pequena vai pelo mesmo conseguinte…
Esta novidade produziu grande surpresa no grupo inteiro. Quiseram os pormenores
e o Alexandre não se fez de rogado: o namoro da Zulmira era com um rapazola
magro, de lunetas, bigode louro, bem vestido, que lhe rondava a casa à noite
e às vezes de madrugada. Parecia estudante! – O que eles têm feito? inquiriu
a das Dores. – Por enquanto a coisa não passa de namorico da janela para a
rua. Conversam sempre naquela última do lado de lá de fora. Já os tenho apreciado
quando estou de serviço. Ele fala muito em casamento e a pequena o quer; mas,
pelo jeito, o velho é que lhe corta as asas. – Ele não tem entrada na casa?
– Não! Pois isso é que eu acho feio…! Se ele quer casar com a menina, devia
entender-se com a família e não estar agora daqui debaixo a fazer-lhe fosquinhas!
– Sim, intrometeu-se o Firmo; mas não vê que aquele mesmo, o Miranda, vai
dar a filha a um estudante! Guarda-a para um dos seus… Quem sabe até se
o bruto não tem já de olho por ai algum cafezista pé-de-boi!… Eu sei o que
é essa gente! – Por isso é que se vê tanta porcaria por esse mundo de Cristo!
disse a Augusta. Filha minha só se casará com quem ela bem quiser; que isto
de casamentos empurrados à força acabam sempre desgraçando tanto a mulher
como o homem! Meu marido é pobre e é de cor, mas eu sou feliz, porque casei
por meu gosto! – Ora! Mais vale um gosto que quatro vinténs! Nisto começou
a gemer à porta do 35 uma guitarra; era de Jerônimo. Depois da ruidosa alegria
e do bom humor, em que palpitara àquela tarde toda a república do cortiço,
ela parecia ainda mais triste e mais saudosa do que nunca: “Minha vida tem
desgostos,

Que só eu sei compreender…

Quando me lembro da terra

Parece que vou morrer…”

E, com o exemplo da primeira, novas guitarras foram acordando. E, por fim,
a monótona cantiga dos portugueses enchia de uma alma desconsolada o vasto
arraial da estalagem, contrastando com a barulhenta alacridade que vinha lá
de cima, do sobrado do Miranda. “Terra minha, que te adoro,

Quando é que eu te torno a ver?

Leva-me deste desterro;

Basta já de padecer.”

Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos,
até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente,
o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente
com um chorado baiano. Nada mais que os primeiros acordes da música crioula
para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe
fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e outras,
cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos que
soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando,
como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi
de amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia
de doer, fazendo estalar de gozo.

E aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente de plantas brasileiras,
em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais e besouros venenosos,
freneticamente, bêbedos do delicioso perfume que os mata de volúpia. E à viva
crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas dos de além-mar.
Assim à refulgente luz do trópicos amortece a fresca e doce claridade dos
céus da Europa, como se o próprio sol americano, vermelho e esbraseado, viesse,
na sua luxúria de sultão, beber a lágrima medrosa da decaída rainha dos mares
velhos. Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas
sobre as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro
dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu
em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso
e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe
acidulou a garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa,
e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue
o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça, que junto dele sacudiu
as saias e os cabelos. – Que tens tu, Jeromo?… perguntou-lhe a companheira,
estranhando-o.

– Espera, respondeu ele, em voz baixa: deixa ouvir!

Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de palmas.

Jerônimo levantou-se, quase que maquinalmente, e seguido por Piedade, aproximou-se
da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ai, de queixo grudado
às costas das mãos contra uma cerca de jardim, permaneceu, sem tugir nem mugir,
entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e voluptuosa que o enleava
e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó flexível, carinhoso e traiçoeiro.

E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros
e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a
na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam,
cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado,
toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.

Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas
e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa
sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante;
já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer
toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que
se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida,
soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas,
descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava,
miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava,
ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por
fibra, tirilando.

Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de
vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as
palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de
loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a
fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no
chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares,
os braços a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-lhe. E
depois, surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave
e circunspecto Alexandre.

O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não
sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha
o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros
que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz
doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante. E Jerônimo via
e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados. Naquela
mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu
chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho
das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que
o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se
não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era
o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com
o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa,
a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele,
assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade
da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha
daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer,
uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana
e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca. Isto era o que Jerônimo
sentia, mas o que o tonto não podia conceber. De todas as impressões daquele
resto de domingo só lhe ficou no espírito o entorpecimento de uma desconhecida
embriaguez, não de vinho, mas de mel chuchurreado no cálice de flores americanas,
dessas muito alvas, cheirosas e úmidas, que ele na fazenda via debruçadas
confidencialmente sobre os limosos pântanos sombrios, onde as oiticicas trescalam
um aroma que entristece de saudade.

E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas dançaram, mas o português só
via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos braços do amigo. Piedade,
a cabecear de sono, chamara-o várias vezes para se recolherem; ele respondeu
com um resmungo e não deu pela retirada da mulher. Passaram-se horas, e ele
também não deu pelas horas que fugiram. O circulo do pagode aumentou: vieram
de lá defronte a Isaura e a Leonor, o João Romão e a Bertoleza, desembaraçados
da sua faina, quiseram dar fé da patuscada um instante antes de caírem na
cama; a família do Miranda pusera-se à janela, divertindo-se com a gentalha
da estalagem; reunira povo lá fora na rua; mas Jerônimo nada vira de tudo
isso; nada vira senão uma coisa, que lhe persistia no espírito: a mulata ofegante
a resvalar voluptuosamente nos braços do Firmo. Só deu por si, quando, já
pela madrugada, se calaram de todo os instrumentos e cada um dos folgadores
se recolheu à casa. E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que
a arrastava pela cintura. Jerônimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua,
agora inteiramente livre das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em
silêncio na sua viagem misteriosa. As janelas do Miranda fecharam-se. A pedreira,
ao longe, por detrás da última parede do cortiço, erguia-se como um monstro
iluminado na sua paz. Uma quietação densa pairava já sobre tudo; só se distinguiam
o bruxulear dos pirilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os murmúrios
das árvores que sonhavam. Mas Jerônimo nada mais sentia, nem ouvia, do que
aquela música embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu
perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos,
da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que
lhe iam devorar o coração. E, erguendo a cabeça, notou no mesmo céu, que ele
nunca vira senão depois de sete horas de sono, que era já quase ocasião de
entrar para o seu serviço, e resolveu não dormir, porque valia a pena esperar
de pé.

VIII

No dia seguinte, Jerônimo largou o trabalho à hora de almoçar e, em vez de
comer lá mesmo na pedreira com os companheiros, foi para casa. Mal tocou no
que a mulher lhe apresentou à mesa e meteu-se logo depois na cama, ordenando-lhe
que fosse ter com João Romão e lhe dissesse que ele estava incomodado e ficava
de descanso aquele dia.

– Que tens tu, Jeromo?…

– Morrinhento, filha… Vai, anda!

– Mas sentes-te mal?

– Ó mulher! vai fazer o que te disse e ao depois então darás à língua!

– Valha-me a Virgem! Não sei se haverá chá preto na venda!

E ela saiu, aflita. Qualquer novidade no marido, por menor que fosse, punha-a
doida. “Pois um homem rijo, que nunca caia doente? Seria a febre amarela?…
Jesus, Santo Filho de Maria, que nem pensar nisso era bom! Credo!”

A notícia espalhou-se logo ali entre as lavadeiras.

– Foi da friagem da noite, afirmou a Bruxa, e deu um pulo à casa do trabalhador
para receitar. O doente repeliu-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que
ele do que precisava era de dormir. Mas não o conseguiu: atrás da Bruxa correu
a segunda mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito
tempo em sua casa um entrar e sair de saias. Jerônimo perdeu a paciência e
ia protestar brutalmente contra semelhante invasão, quando, pelo cheiro, sentiu
que a Rita se aproximava também. – Ah! E desfranziu-se-lhe o rosto. – Bons
dias! Então que é isso, vizinho? Você caiu doente com a minha chegada? Se
tal soubera não vinha! Ele riu-se. E era a primeira vez que ria desde a véspera
A mulata aproximou-se da cama. Como principiara a trabalhar esse dia, tinha
as saias apanhadas na cintura e os braços completamente nus e frios da lavagem.
O seu casaquinho branco abria-lhe no pescoço, mostrando parte do peito cor
de canela. Jerônimo apertou-lhe a mão. – Gostei de vê-la ontem dançar, disse,
muito mais animado. – Já tomou algum remédio?… – A mulher falou ai em chá
preto… – Chá! Que asneira! Chá é água morna! Isso que você tem é uma resfriagem.
Vou-lhe fazer uma xícara de café bem forte para você beber com um gole de
parati, e me dirá se sua ou não, e fica depois fino e pronto para outra! Espera
ai! E saiu logo, deixando todo quarto impregnado dela. Jerônimo, só com respirar
aquele almíscar, parecia melhor. Quando Piedade tornou, pesada, triste, resmungando
consigo mesma, ele sentiu que principiava a enfará-lo; e, quando a infeliz
se aproximou do marido, este, fora do costume, notou-lhe o cheiro azedo do
corpo. Voltou-lhe então o mal-estar e desapareceu o último vestígio do sorriso
que ele tivera havia pouco. – Mas que sentes tu, Jeromo?… Fala, homem! Não
me dizes nada! Assim m’assustas… Que tens, diz’-lo! – Não cozas
o chá. Vou tomar outra coisa… – Não queres o chá? Mas é o remédio, filhinho
de Deus! – Já te disse que tomo outra mezinha. Oh!

Piedade não insistiu.

– Queres tu um escalda-pés?…

– Toma-lo tu!

Ela calou-se. Ia a dizer que nunca o vira assim tão áspero e seco, mas receou
importuná-lo. “Era naturalmente a moléstia que o punha rezinguento.”

Jerônimo fechara os olhos, para a não ver, e ter-se-ia, se pudesse, fechado
por dentro, para a não sentir. Ela, porém, coitada! fora assentar-se à beira
da cama, humilde e solicita, a suspirar, vivendo naquele instante, para e
exclusivamente, para o seu homem, fazendo-se muito escrava dele, sem vontade
própria, acompanhando-lhe os menores gestos com o olhar, inquieta, que nem
um cão que, ao lado do dono, procura adivinhar-lhe as intenções.

– ‘Stá bem, filha, não vais tratar do teu serviço?…

– Não te dê isso cuidado! Não parou o trabalho! Pedi à Leocádia que me esfregasse
a roupa. Ela hoje tinha pouco que fazer e…

– Andaste mal…

– Ora! Não há três dias que fiz outro tanto por ela… E demais, não foi
que tivesse o homem doente, era a calaçaria do capinzal!

– Bom, bom, filha! não digas mal da vida alheia! Melhor seria que estivesses
à tua tina em vez de ficar ai a murmurar do próximo… Anda! vai tomar conta
das tuas obrigações.

– Mas estou-te a dizer que não há transtorno!…

– Transtorno já é estar eu parado; e o pior será pararem os dois!

– Eu queria ficar a teu lado, Jeromo!

– E eu acho que isso é tolice! Vai! anda!

Ela ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que entrava
muito ligeira e sacudida, trazendo na mão a fumegante palangana de café com
parati e no ombro um cobertor grosso para dar um suadouro ao doente.

– Ah! fez Piedade, sem encontrar uma palavra para a mulata.

E deixou-se ficar.

Rita, despreocupadamente, alegre e benfazeja como sempre, pousou a vasilha
sobre a cômoda do oratório e abriu o cobertor.

– Isso é que o vai pôr fino! disse. Vocês também, seus portugueses, por qualquer
coisinha ficam logo pra morrer, com uma cara da última hora! E ai, ai, Jesus,
meu Deus! Ora esperte-se! Não me seja maricas!

Ele riu-se assentando-se na cama.

– Pois não é assim mesmo? perguntou ela a Piedade, apontando para o carão
barbado de Jerônimo. Olhe só pr’aquela cara e diga-me se não está a
pedir que o enterrem!

A portuguesa não dizia nada, sorria contrafeita, no intimo, ressentida contra
aquela invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. Não era a inteligência
nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o instinto, o faro sutil e desconfiado
de toda a fêmea pelas outras, quando sente o seu ninho exposto. – Está-me
a parecer que agora te achas melhor, hein?… desembuchou afinal, procurando
o olhar do marido, sem conseguir disfarçar de todo o seu descontentamento.
– Só com o cheiro! reforçou a mulata, apresentando o café ao doente. Beba,
ande! beba tudo e abafe-se! Quero, quando voltar logo, encontrá-lo pronto,
ouviu? – E acrescentou, falando à Piedade, em tom mais baixo e pousando-lhe
a mão no ombro carnudo: – Ele daqui a nada deve estar ensopado de suor; mude-lhe
toda a roupa e dê-lhe dois dedos de parati, logo que peça água. Cuidado com
o vento! E saiu expedida, agitando as saias, de onde se evolavam eflúvios
de manjerona. Piedade chegou-se então para o cavouqueiro, que já tinha sobre
as pernas o cobertor oferecido pela Rita, e, ajudando-o a levar a tigela à
boca, resmungou: – Deus queira que isto não te vá fazer mal em vez de bem!…
Nunca tomas café, nem gostas!… – Isto não é por gosto, filha, é remédio!
Ele com efeito nunca entrara com o café e ainda menos com a cachaça; mas engoliu
de uma assentada o conteúdo da tigela, puxando em seguida o cobertor até às
ventas. A mulher tratou de abafar-lhe bem os pés e foi buscar um xale para
lhe cobrir a cabeça. – Trata de sossegar! Não te mexas! E dispôs-se a ficar
junto da cama, a vigiá-lo, só andando na ponta dos pés, abafando a respiração,
correndo a cada instante à porta de casa para pedir que não fizessem tanta
bulha lá fora; toda ela desassossegada, numa aflição quase

supersticiosa por aquele incômodo de seu homem. Mas Jerônimo não levou muito
que a não chamasse para lhe mudar a roupa. O suor inundava-o. – Ainda bem!
exclamou ela, radiante. E, depois de fechar hermeticamente a porta do quarto
e meter um punhado de roupa suja numa fresta que havia numa das paredes, sacou-lhe
fora a camisa molhada, enfiando-lhe logo outra pela cabeça; em seguida tirou-lhe
as ceroulas e começou, munida de uma toalha, a enxugar-lhe todo o corpo, principiando
pelas costas, passando depois ao peito e aos sovacos, descendo logo às nádegas,
ao ventre e às pernas, e esfregando sempre com tamanho vigor de pulso, que
era antes uma massagem que lhe dava; e tanto assim que o sangue do cavouqueiro
se revolucionou. E a mulher, a rir-se, lisonjeada, ralhava:

– Tem juízo! Acomoda-te! Não vês que estás doente?…

Ele não insistiu. Agasalhou-se de novo e pediu água. Piedade foi buscar o
parati.

– Bebe isto, não bebas a água agora.

– Isto é cachaça!

– Foi a Rita que disse para te dar…

Jerônimo não precisou de mais nada para beber de um trago os dois dedos de
restilo que havia no copo.

Sóbrio como era, e depois daquele dispêndio de suor, o álcool produziu-lhe
logo de pronto o efeito voluptuoso e agradável da embriaguez nos que não são
bêbedos: um delicioso desfalecer de todo o corpo; alguma coisa do longo espreguiçamento
que antecede à satisfação dos sexos, quando a mulher, tendo feito esperar
por ela algum tempo, aproxima-se afinal de nós, numa avidez gulosa de beijos.
Agora, no conforto da sua cama, na doce penumbra do quarto, com a roupa fresca
sobre a pele, Jerônimo sentia-se bem, feliz por ver-se longe da pedreira ardente
e do sol cáustico; ouvindo, de olhos fechados, o ronrom monótono da máquina
de massas, arfando ao longe, e o zunzum das lavadeiras a trabalharem, e, mais
distante, um interminável cantar de galos a porfia, enquanto um dobre de sinos
rolava no ar, tristemente, anunciando um defunto da paróquia.

Quando Piedade chegou lá fora, dando parte do bom resultado do remédio, a
Rita correu de novo ao quarto do doente.

– Então, que me diz agora? Sente-se ou não melhorzinho?

Ele voltou para a rapariga o seu olhar de animal prostrado e, por única resposta,
passou-lhe o braço esquerdo na cintura e procurou com a mão direita segurar
a dela. Queria com isto traduzir o seu reconhecimento, e a mulata assim o
entendeu, tanto que consentiu: mal, porém, a sua carne lhe tocou na carne,
um desejo ardente apossou-se dele; uma vontade desensofrida de senhorear-se
no mesmo instante daquela mulher e possuí-la inteira, devorá-la num só hausto
de luxúria, trincá-la como um caju.

Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro, escapou-lhe das garras com
um pulo.

– Olhe que peste! Faça-se de tolo, que digo à sua mulher, hein? Ora vamos
lá!

Mas, como a Piedade entrava na salinha ao lado, disfarçou logo, acrescentando
noutro tom:

– Agora é tratar de dormir e mudar de roupa, se suar outra vez Até logo!
E saiu. Jerônimo ouviu as suas ultimas palavras já de olhos fechados e, quando
Piedade entrou no quarto, parecia sucumbido de fraqueza. A lavadeira aproximou-se
da cama do marido em ponta de pés, puxou-lhe o lençol mais para cima do peito
e afastou-se de novo, abafando os passos. À porta da entrada a Augusta, que
fora fazer uma visita ao enfermo, perguntou-lhe por este com um gesto interrogativo;
Piedade respondeu sem falar, pondo a mão no rosto e vergando desse lado a
cabeça, para exprimir que ele agora estava dormindo. As duas saíram para falar
à vontade; mas, nessa ocasião, lá fora no pátio da estalagem, acabava de armar-se
um escândalo medonho. Era o caso que o Henriquinho da casa do Miranda ficava
às vezes à janela do sobrado, nas horas de preguiça, entre o almoço e o jantar,
entretido a ver a Leocádia lavar, seguindo-lhe os movimentos uniformes do
grosso quadril e o tremular das redondas tetas à larga dentro do cabeção de
chita. E, quando a pilhava sozinha, fazia-lhe sinais brejeiros, piscava-lhe
o olho, batendo com a mão direita aberta sobre a mão esquerda fechada. Ela
respondia, indicando com o polegar o interior do sobrado, como se dissesse
que fosse procurar a mulher do dono da casa. Naquele dia, porém, o estudante
apareceu à janela, trazendo nos braços um coelhinho todo branco, que ele na
véspera arrematara num leilão de festa. Leocádia cobiçou o bichinho e, correndo
para o depósito de garrafas vazias, que ficava por debaixo do sobrado, pediu
com muito empenho ao Henrique que lho desse. Este, sempre com seu sistema
de conversar por mímica, declarou com um gesto qual era a condição da dádiva.

Ela meneou a cabeça afirmativamente, e ele fez-lhe sinal de que o esperasse
por detrás do cortiço, no capinzal dos fundos. A família do Miranda havia
saído. Henrique, mesmo com a roupa de andar em casa e sem chapéu, desceu à
rua, ganhou um terreno que existia à esquerda do sobrado e, com o seu coelho
debaixo do braço, atirou-se para o capinzal. Leocádia esperava por ele debaixo
das mangueiras. – Aqui não! disse ela, logo que o viu chegar. Aqui agora podem
dar com a gente!… – Então onde? – Vem cá! E tomou à sua direita, andando
ligeira e meio vergada por entre as plantas. Henrique seguiu-a no mesmo passo,
sempre com o coelho sobraçado. O calor fazia-o suar e esfogueava-lhe as faces.
Ouvia-se o martelar dos ferreiros e dos trabalhadores da pedreira. Depois
de alguns minutos, ela parou num lugar plantado de bambus e bananeiras, onde
havia o resto de um telheiro em ruínas. – Aqui! E Leocádia olhou para os lados,
assegurando-se de que estavam a sós. Henrique, sem largar o coelho, atirou-se
sobre ela, que o conteve: – Espera! preciso tirar a saia; está encharcada!
– Não faz mal! segredou ele, impaciente no seu desejo. – Pode-me vir um corrimento!
E sacou fora a saia de lã grossa, deixando ver duas pernas, que a camisa a
custo só cobria até o joelho, grossas, maciças, de uma brancura levemente
rósea e toda marcada de mordeduras de pulgas e mosquitos. – Avia-te! Anda!
apressou ela, lançando-se de costas ao chão e arregaçando a fralda até a cintura;
as coxas abertas. O estudante atirou-se, sôfrego, sentindo-lhe a frescura
da sua carne de lavadeira, mas sem largar as pernas do coelho. Passou-se um
instante de silêncio entre os dois, em que as folhas secas do chão rangeram
e farfalharam. – Olha! pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me
de ama-de-leite… Agora estão pagando muito bem as amas! A Augusta Carne-Mole,
nesta última barriga, tomou conta de um pequeno ai na casa de uma família
de tratamento, que lhe dava setenta mil-réis por mês!… E muito bom passadio!…
Sua garrafa de vinho todos os dias!… Se me arranjares um filho dou-te outra
vez o coelho!

E o pobre brutinho, cujas pernas o estudante não largava, começou a queixar-se
dos repelões que recebia cada vez mais acelerados. – Olha que matas o bichinho!
reclamou a lavadeira. Não batas assim com ele! mas não o soltes, hein! Ia
dizer ainda alguma coisa, mas acudiu-lhe o espasmo e ela fechou os olhos e
pôs-se a dar com a cabeça de um lado para o outro, rilhando os dentes. Nisto,
passos rápidos fizeram-se sentir galgando as plantas, na direção em que os
dois estavam; e Henrique, antes de ser visto, lobrigou a certa distancia a
insociável figura do Bruno. Não lhe deu tempo a que se aproximasse; de um
salto galgou por detrás das bananeiras e desapareceu por entre o matagal de
bambus, tão rápido como o coelho que, vendo-se livre, ganhara pela outra banda
o caminho do capinzal. Quando o ferreiro, logo em seguida, chegou perto da
mulher, esta ainda não tinha acabado de vestir a saia molhada. – Com quem
te esfregavas tu, sua vaca?! bradou ele, a botar os bofes pela boca. E, antes
que ela respondesse, já uma formidável punhada a fazia rolar por terra. Leocádia
abriu num berreiro. E foi debaixo de uma chuva de bofetadas e pontapés que
acabou de amarrar a roupa. – Agora eu vi! sabes! Nega se fores capaz! – Vá
à pata que o pôs! exclamou ela, com a cara que era um tomate. Já lhe disse
que não quero saber de você pra nada, seu bêbedo!

E, vendo que ele ia recomeçar a dança, abaixou-se depressa, segurou com ambas
as mãos um matacão de granito que encontrou a seus pés, e gritou, erguendo-o
sobre a cabeça: – Chega-te pra cá e verás se te abro aqui mesmo ou não o casco!
O ferreiro compreendeu que ela era capaz de fazer o que dizia e estacou lívido
e ofegante. – Arme a trouxa e rua! sabe? – Olha a desgraça! Tinha de muito
assentado de ir! Queria era uma ocasião! Nem preciso de você pra nada, fique
sabendo! E, para meter-lhe mais raiva, acrescentou, empinando a barriga: –
Já cá está dentro com que hei de ganhar a vida! Alugo-me de ama! Ou pensará
que todos são como você, que nem para fazer um filho serve, diabo do sem-préstimo?
– Mas não me hás de levar nada de casa! Isso te juro eu, biraia! – Ah, descanse!
que não levarei nada do que é seu, nem preciso! – Põe essa pedra no chão!
– Um corno! Eu arrumo-ta na cabeça se te chegas pra cá! – Sim, sim, sim, contanto
que te musques por uma vez! – Pois então despache o beco! Ele virou-lhe as
costas e tornou lentamente por onde viera, de cabeça pendida, as mãos nas
algibeiras das calças, aparentando agora um soberano desprezo pelo que se
passava. Só então foi que ela se lembrou do coelho. – Ora gaitas! disse, endireitando-se
e tomando direção contrária à do marido. Este fora ai direito ao cortiço narrar,
a quem quisesse ouvir, o que se acabava de dar. O escândalo assanhou a estalagem
inteira, como um jato de água quente sobre um formigueiro. “Ora, aquilo tinha
de acontecer mais hoje mais amanhã! – Um belo dia a casa vinha abaixo! – A
Leocádia parecia não desejar senão isso mesmo!” Mas ninguém atinava com quem
diabo pilhara o Bruno a mulher no capinzal. Fizeram-se mil hipóteses; lembrando-se
nomes e nomes, sem se chegar a nenhum resultado satisfatório. O Albino tentou
logo arranjar a reconciliação do casal, jurando que o Bruno estava enganado
com certeza e que vira mal. “Leocádia era uma excelente rapariga, incapaz
de tamanha safadagem!” O ferreiro tapou-lhe a boca com uma bolacha, e ninguém
mais se meteu a congraçá-los. Entretanto, o Bruno entrara em casa e lançava
pela janela cá para fora tudo o que ia encontrando pertencente à mulher. Uma
cadeira fez-se pedaços contra as pedras, depois veio um candeeiro de querosene,
uma trouxa de roupas, saias e casaquinhos de chita, caixas de chapéus cheias
de trapos, uma gaiola de pássaros, uma chaleira; e tudo era arremessado com
fúria ao meio da área, entre o silêncio comovido dos que assistiam ao despejo.
Um chim, que entrara para vender camarões e parara distraído perto da janela
do ferreiro, levou na cabeça com uma bilha da Bahia e berrava como criança
que acaba de ser esbordoada. A Machona, que não podia ouvir ninguém gritar
mais alto do que ela, caiu-lhe em cima aos murros e o pôs fora do portão com
tremenda descompostura. “Era o que faltava que viesse também aquele salamaleque
do inferno para azoinar uma criatura mais do que já estava!” Dona Isabel,
com as mãos cruzadas sobre o ventre, tinha para aquela destruição um profundo
olhar de lástima. Augusta meneava a cabeça tristemente sem conceber como havia
mulheres que procuravam homem, tendo um que lhes pertencia. A Bruxa, indiferente,
não interrompera sequer o seu trabalho; ao passo que a das Dores, de mãos
nas cadeiras, a sala pelo meio das canelas, um cigarro no canto da boca, encarava
desdenhosa a sanha daquele marido, tão brutal como o dela o fora. – Sempre
os mesmos pedaços de asno!… comentava franzindo o nariz. Se a tola da mulher
só lhes procura agradar e fazer-lhes o gosto, ficam enjoados, e, se ela não
toma a sério a borracheira do casamento, dão por paus e por pedras, como esta
besta! Uma súcia, todos eles! Florinda ria, como de tudo, e a velha Marciana
queixava-se de que lhe respingaram querosene na roupa estendida ao sol. Nessa
ocasião justamente, um saco de café, cheio de borra, deu duas voltas no ar
e espalhou o seu conteúdo, pintalgando de pontos negros os coradouros. Fez-se
logo um alarido entre as lavadeiras. “Aquilo não tinha jeito, que diabo! Armavam
lá as suas turras e os outros é que haviam de aturar?!… Sebo! que os mais
não estavam dispostos a suportar as fúrias de cada um! Quem parira Mateus
que o embalasse! Se agora, todas as vezes que a Leocádia se fosse espojar
no capinzal, o bruto do marido tinha de sujar daquele modo o trabalho da gente,
ninguém mais poderia ganhar ali a sua vida! Que espiga!” Pombinha chegara
à porta do número 15, dando fé do barulho, com uma costura na mão, e Nenen,
toda afogueada do ferro de engomar, perguntava, com um frouxo riso, se o Bruno
ia reformar a mobília da casa. A Rita fingia não ligar importância ao fato
e continuava a lavar à sua tina. “Não faziam tanta festa ao tal casamento?
Pois que agüentassem! Ela estava bem livre de sofrer uma daquelas!” O velho
Libório chegara-se para ver se, no meio

da confusão, apanhava alguma coisa do despejo, e a Machona, notando que o
Agostinho fazia o mesmo, berrou-lhe do lugar em que se achava: – Sai daí,
safado! Toca lá no quer que seja, que te arranco a pele do rabo! Um irmão
do santíssimo entrara na estalagem, com a sua capa encarnada, a sua vara de
prata em uma das mãos, na outra a salva do dinheiro, e parara em meio do pátio,
suplicando muito fanhoso: “Uma esmola para a cera do Sacramento!” As mulheres
abandonaram por um instante as tinas e foram beijar devotamente a colombina
imagem do Espírito Santo. Pingaram na salva moedinhas de vintém. Todavia,
o Bruno acabava de despejar o que era da mulher e saia de novo de casa, dando
uma volta feroz à fechadura. Atravessou por entre o murmurante grupo dos curiosos
que permaneciam defronte de sua porta, mudo, com a cara fechada, jogando os
braços, como quem, apesar de ter feito muito, não satisfizera ainda completamente
a sua cólera. Leocádia apareceu pouco depois e, vendo por terra tudo que era
seu, partido e inutilizado, apoderou-se de fúria e avançou sobre a porta,
que o marido acabava de fechar, arremetendo com as nádegas contra as duas
folhas, que cederam logo, indo ela cair lá dentro de barriga para cima. Mas
ergueu-se, sem fazer caso das risadas que rebentaram cá fora e, escancarando
a janela com arremesso, começou por sua vez a arrasar e a destruir tudo que
ainda encontrara em casa. Então principiou a verdadeira devastação. E a cada
objeto que ela varria para o pátio, gritava sempre: “Upa! Toma, diabo!” –
Aí vai o relógio! Upa! Toma, diabo! E o relógio espatifou-se na calçada. –
Aí vai o alguidar!

– Aí vai o jarro!

– Aí vão os copos!

– O cabide!

– O garrafão!

– O bacio!

Um riso geral, comunicativo, absoluto, abafava o baralho da louça quebrando-se
contra as pedras. E Leocádia já não precisava acompanhar os objetos com a
sua frase de imprecação, porque cada um deles era recebido cá fora com um
coro que berrava: – Upa! Toma, diabo! E a limpeza prosseguia. João Romão acudiu
de carreira, mas ninguém se incomodou com a presença dele. Já defronte da
porta do Bruno havia uma montanha de cacos acumulados; e o destroço continuava
ainda, quando o ferreiro reapareceu, vermelho como malagueta, e foi galgando
a casa, com um raio de roda de carro na mão direita. Os circunstantes o seguiram,
atropeladamente, num clamor.

– Não dá!

– Não pode!

– Prende!

– Não deixa bater!

– Larga o pau!

– Segura!

– Agüenta!

– Cerca!

– Toma o porrete!

E Leocádia escapou afinal das pauladas do marido, a quem o povaréu desarmara
num fecha-fecha.

– Ordem! Ordem! Vá de rumor! exclamava o vendeiro, a quem, aproveitando a
confusão, haviam já ferrado um pontapé por detrás.

O Alexandre, que vinha chegando do serviço nesse momento, apressou-se a correr
para o lugar do conflito e cheio de autoridade intimou o Bruno a que se contivesse
e deixasse a mulher em paz, sob pena de seguir para a estação no mesmo instante.

– Pois você não vê esta galinha, que apanhei hoje com a boca na botija, não
me vem ainda por cima dar cabo de tudo?!… interrogou o Bruno, espumando
de raiva e quase sem fôlego para falar.

– Porque você pôs em cacos o que é meu! gritou Leocádia.

– Está bom! está bom! disse o polícia, procurando dar à voz inflexões autoritárias
e reconciliadoras. Fale cada um por sua vez! Seu marido… acrescentou ele,
voltando-se para a acusada, diz que a senhora… – É mentira! interrompeu
ela. – Mentira?! É boa! Tinhas a saia despida e um homem por cima! – Quem
era? – Quem foi? – Quem era o homem? interrogaram todos a um só tempo. – Quem
era ele, no fim de contas? inquiriu também Alexandre. – Não lhe pude ver as
fuças!… respondeu o ferreiro; mas, se o apanho, arrancava-lhe o sangue pelas
costas! Houve um coro de gargalhadas. – E mentira! repetiu Leocádia, agora
sucumbida por uma reação de lágrimas. Há muito tempo que este malvado anda
caçando pretexto para romper comigo e, como eu não lho dou… Uma explosão
de soluços a interrompeu. Desta vez não riram, mas um bichanar de cochichos
formou-se em torno do seu pranto. – Agora… continuou ela, enxugando os olhos
na costa da mão; não sei o que será de mim, porque este homem, além de tudo,
escangalhou-me até o que eu trouxe quando me casei com ele!… – Não disseste
que já tinhas ai dentro com que ganhar a vida?… É andar! – É falso! soluçou
Leocádia. – Bem, interveio Alexandre, embainhando o seu refle; está tudo terminado!
Seu marido vai recebê-la em boa paz…

– Eu?! esfuziou o ferreiro. Você não me conhece!

– Nem eu queria! retorquiu a mulher. Prefiro meter-me com um cavalo de tílburi
a ter de aturar este bruto! E, catando em casa alguma coisa sua que ainda
havia, e recolhendo do montão dos cacos o que lhe pareceu aproveitável, fez
de tudo uma grande trouxa e foi chamar um carregador. A Rita saiu-lhe ao encontro.
– Para onde vais tu?… perguntou-lhe em voz baixa. – Não sei, filha, por
ai!… Hei de encontrar um furo!… Os cães não vivem?… – Espere um instante…
disse a mulata. Olha, empurra a trouxa ai para dentro do meu cômodo. – E correndo
ao Albino, que lavava: – Passa-me no sabão aquela roupa, ouviste? E, quando
Firmo acordar, diz-lhe que precisei ir a rua. Depois, deu um pulo ao quarto,
mudou a saia molhada, atirou nos ombros o seu xale de crochê e, batendo nas
costas da companheira, segredou-lhe: – Anda cá comigo! não ficarás à toa!
E as duas saíram, ambas sacudidas, deixando atrás de si suspensa a curiosidade
do cortiço inteiro.

IX

Passaram-se semanas. Jerônimo tomava agora, todas as manhãs, uma xícara de
café bem grosso, à moda da Ritinha, e tragava dois dedos de parati “pra cortar
a friagem”. Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia,
hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho
misterioso e surdo de crisálida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se
contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe
agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus
primitivos sonhos de ambição; para idealizar felicidades novas, picantes e
violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar
que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso
resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com
que o espírito eternamente revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria
contra os conquistadores aventureiros. E assim, pouco a pouco, se foram reformando
todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se.
A sua casa perdeu aquele ar sombrio e concentrado que a entristecia; já apareciam
por lá alguns companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas
horas de descanso, e aos domingos reunia-se gente para o jantar. A revolução
afinal foi completa: a aguardente de cana substituiu o vinho; a farinha de
mandioca sucedeu à broa; a carne-seca e o feijão-preto ao bacalhau com batatas
e cebolas cozidas; a pimenta-malagueta e a pimenta-de-cheiro invadiram vitoriosamente
a sua mesa; o caldo verde, a açorda e o caldo de unto foram repelidos pelos
ruivos e gostosos quitutes baianos, pela muqueca, pelo vatapá e pelo caruru;
a couve à mineira destronou a couve à portuguesa; o pirão de fubá ao pão de
rala, e, desde que o café encheu a casa com o seu aroma quente, Jerônimo principiou
a achar graça no cheiro do fumo e não tardou a fumar também com os amigos.
E o curioso é que quanto mais ia ele caindo nos usos e costumes brasileiros,
tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas
forças físicas. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música, compreendia
até as intenções poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola os seus amores
infelizes; seus olhos, dantes só voltados para a esperança de tornar à terra,
agora, como os olhos de um marujo, que se habituaram aos largos horizontes
de céu e mar, já se não revoltavam com a turbulenta luz, selvagem e alegre,
do Brasil, e abriam-se amplamente defronte dos maravilhosos despenhadeiros
ilimitados e das cordilheiras sem fim, donde, de espaço a espaço, surge um
monarca gigante, que o sol veste de ouro e ricas pedrarias refulgentes e as
nuvens tocam de alvos turbantes de cambraia, num luxo oriental de arábicos
príncipes voluptuosos. Ao passo que com a mulher, a S’ora Piedade de
Jesus, o caso mudava muito de figura. Essa, feita de um só bloco, compacta,
inteiriça e tapada, recebia a influência do meio só por fora, na maneira de
viver, conservando-se inalterável quanto ao moral, sem conseguir, à semelhança
do esposo, afinar a sua alma pela alma da nova pátria que adotaram. Cedia
passivamente nos hábitos de existência, mas no intimo continuava a ser a mesma
colona saudosa e desconsolada, tão fiel às suas tradições como a seu marido.
Agora estava até mais triste; triste porque Jerônimo fazia-se outro; triste
porque não se passava um dia que lhe não notasse uma nova transformação; triste,
porque chegava a estranhá-lo, a desconhecê-lo, afigurando-se-lhe até que cometia
um adultério, quando à noite acordava assustada ao lado daquele homem que
não parecia o dela, aquele homem que se lavava todos os dias, aquele homem
que aos domingos punha perfumes na barba e nos cabelos e tinha a boca cheirando
a fumo. Que pesado desgosto não lhe apertou o coração a primeira vez em que
o cavouqueiro, repelindo o caldo que ela lhe apresentava ao jantar, disse-lhe:
– Ó filha! por que não experimentas tu fazer uns pitéus à moda de cá?… –
Mas é que não sei… balbuciou a pobre mulher. – Pede então à Rita que to
ensine… Aquilo não terá muito que aprender! Vê se me fazes por arranjar
uns camarões, como ela preparou aqueles doutro dia. Souberam-me tão bem! Este
resvalamento do Jerônimo para as coisas do Brasil penalizava profundamente
a infeliz criatura. Era ainda o instinto feminil que lhe fazia prever que
o marido, quando estivesse de todo brasileiro, não a queria para mais nada
e havia de reformar a cama, assim como reformou a mesa. Jerônimo, com efeito,
pertencia-lhe muito menos agora do que dantes. Mal se chegava para ela; os
seus carinhos eram frios e distraídos, dados como por condescendência; já
lhe não afagava os rins, quando os dois ficavam a sós, malucando na sua vida
comum; agora nunca era ele que a procurava para o matrimônio, nunca; se ela
sentia necessidade do marido, tinha de provocá-lo. E, uma noite, Piedade ficou
com o coração ainda mais apertado, porque ele, a pretexto de que no quarto
fazia muito calor, abandonou a cama e foi deitar-se no sofá da salinha. Desde
esse dia não dormiram mais ao lado um do outro. O cavouqueiro arranjou uma
rede e armou-a defronte da porta de entrada, tal qual como havia em casa da
Rita. Uma outra noite a coisa ainda foi pior. Piedade, certa de que o marido
não se chegava, foi ter com ele; Jerônimo fingiu-se indisposto, negou-se,
e terminou por dizer-lhe, repelindo-a brandamente:

– Não te queria falar, mas… sabes? deves tomar banho todos os dias e…
mudar de roupa… Isto aqui não é como lá! Isto aqui sua-se muito! É preciso
trazer o corpo sempre lavado, que, ao se não, cheira-se mel!… Tem paciência!
Ela desatou a soluçar. Foi uma explosão de ressentimentos e desgostos que
se tinham acumulado no seu coração. Todas as suas mágoas rebentaram naquele
momento. – Agora estás tu a chorar! Ora, filha, deixa-te disso! Ela continuou
a soluçar, sem fôlego, dando arfadas com todo o corpo. O cavouqueiro acrescentou
no fim de um intervalo: – Então, que é isto, mulher? Pões-te agora a fazer
tamanho escarcéu, nem que se cuidasse de coisa séria! Piedade desabafou:

– É que já não me queres! Já não és o mesmo homem para mim! Dantes não me
achavas que pôr, e agora até já te cheiro mal!

E os soluços recrudesciam.

– Não digas asnices, filha!

– Ah! eu bem sei o que isto é!…

– E bobagem tua, é o que é!

– Maldita hora em que viemos dar ao raio desta estalagem! Antes me tivera
caldo um calhau na cabeça!

– Estás a queixar-te da sorte sem razão! Que Deus te não castigue.

Esta rezinga chamou outras que, com o correr do tempo, se foram amiudando.
Ah! já não havia dúvida que mestre Jerônimo andava meio caldo para o lado
da Rita Baiana; não passava pelo número 9, sempre que vinha à estalagem durante
o dia, que não parasse à porta um instante, para perguntar-lhe pela “saudinha”.
O fato de haver a mulata lhe oferecido o remédio, quando ele esteve incomodado,
foi pretexto para lhe fazer presentes amáveis; pôr os seus préstimos à disposição
dela e obsequiá-la em extremo todas as vezes que a visitava. Tinha sempre
qualquer coisa para saber da sua boca, a respeito da Leocádia, por exemplo;
pois, desde que a Rita se arvorara em protetora da mulher do ferreiro, Jerônimo
afetava grande interesse pela “pobrezinha de Cristo”.

– Fez bem, Nhá Rita, fez bem!… A se’ora mostrou com isso que tem
bom coração…

– Ah, meu amigo, neste mundo hoje por mim, amanha por ti!…

Rita havia aboletado a amiga, a principio em casa de umas engomadeiras do
Catete, muito suas camaradas, depois passou-a para uma família, a quem Leocádia
se alagou como ama-seca; e agora sabia que ela acabava de descobrir um bom
arranjo num colégio de meninas.

– Muito bem! muito bem! aplaudia Jerônimo.

– Ora, o quê! O mundo é largo! sentenciou a baiana. Há lugar pro gordo e
há lugar pro magro! Bem tolo é quem se mata!

Em uma das vezes em que o cavouqueiro perguntou-lhe, como de costume, pela
pobrezinha de Cristo, a mulata disse que Leocádia estava grávida.

– Grávida? mas então não é do marido!…

– Pode bem ser que sim. Barriga de quatro meses…

– Ah! mas ela não foi há mais tempo do que isso?…

– Não. Vai fazer agora pelo São João quatro meses justamente.

Jerônimo já nunca pegava na guitarra senão para procurar acertar com as modinhas
que a Rita cantava. Em noites de samba era o primeiro a chegar-se e o último
a ir embora; e durante o pagode ficava de queixo bambo, a ver dançar a mulata,
abstrato, pateta, esquecido de tudo; babão. E ela, consciente do feitiço,
que lhe punha, ainda mais se requebrava e remexia, dando-lhe embigadas ou
fingindo que lhe limpava a baba no queixo com a barra da saia.

E riam-se.

Não! definitivamente estava caído!

Piedade agarrou-se com a Bruxa para lhe arranjar um remédio que lhe restituísse
o seu homem. A cabocla velha fechou-se com ela no quarto, acendeu velas de
cera, queimou ervas aromáticas e tirou sorte nas cartas.

E depois de um jogo complicado de reis, valetes e damas, que ela dispunha
sobre a mesa caprichosamente, a resmungar a cada figura que saia do baralho
uma frase cabalística, declarou convicta, muito calma, sem tirar os olhos
das suas cartas: – Ele tem a cabeça virada por uma mulher trigueira. – É o
diacho da Rita Baiana! exclamou a outra. Bem cá me palpitava por dentro! Ai,
o meu rico homem! E a chorar, limpando, aflita, as lágrimas no avental de
cânhamo, suplicou à Bruxa, pelas alminhas do purgatório, que lhe remediasse
tamanha desgraça. – Ai, se perco aquela criatura, S’ora Paula, lamuriou
a infeliz entre soluços; nem sei que virá a ser de mim neste mundo de Cristo!…
Ensine-me alguma coisa que me puxe o Jeromo! A cabocla disse-lhe que se banhasse
todos os dias e desse a beber ao seu homem, no café pela manhã, algumas gotas
das águas da lavagem; e, se no fim de algum tempo, este regime não produzisse
o desejado efeito, então cortasse um pouco dos cabelos do corpo, torrasse-os
até os reduzir a pó e lhos ministrasse depois na comida. Piedade ouviu a receita
com um silêncio respeitoso e atento, o ar compungido de quem recebe do médico
uma sentença dolorosa para um doente que estimamos. Em seguida, meteu na mão
da feiticeira uma moeda de prata, prometendo dar-lhe coisa melhor se o remédio
tivesse bons resultados. Mas não era só a portuguesa quem se mordia com o
descaimento do Jerônimo para a mulata, era também o Firmo. Havia muito já
que este andava com a pulga atrás da orelha e, quando passava perto do cavouqueiro,
olhava-o atravessado. O capadócio ia dormir todas as noites com a Rita, mas
não morava na estalagem; tinha o seu cômodo na oficina em que trabalhava.
Só pelos domingos é que ficavam juntos durante o dia e então não relaxavam
o seu jantar de pândega. Uma vez em que ele gazeara o serviço, o que não era
raro, foi vê-la fora das horas do costume e encontrou-a a conversar junto
à tina com o português. Passou sem dizer palavra e recolheu-se ao número 9,
onde ela foi logo ter de carreira. Firmo não lhe disse nada a respeito das
suas apreensões, mas também não escondeu o seu mau humor; esteve impertinente
e rezingueiro toda a tarde. Jantou de cara amarrada e durante o parati, depois
do café, só falou em rolos, em dar cabeçadas e navalhadas, pintando-se terrível,
recordando façanhas de capoeiragem, nas quais sangrara tais e tais tipos de
fama; “não contando dois galegos que mandara pras minhocas, porque isso para
ele não era gente! – Com um par de cocadas boas ficavam de pés unidos para
sempre!” Rita percebeu os ciúmes do amigo e fez que não dera por coisa alguma.
No dia seguinte, às seis horas da manhã, quando ele saia da casa dela, encontrou-se
com o português, que ia para o trabalho, e o olhar que os dois trocaram entre
si era já um cartel de desafio. Entretanto, cada qual seguiu em silêncio para
o seu lado. Rita deliberou prevenir Jerônimo de que se acautelasse. Conhecia
bem o amante e sabia de quanto era ele capaz sob a influência dos ciúmes;
mas, na ocasião em que o cavouqueiro desceu para almoçar, um novo escândalo
acabava de explodir, agora no número 12, entre a velha Marciana e sua filha
Florinda. Marciana andava já desconfiada com a pequena, porque o fluxo mensal
desta se desregrara havia três meses, quando, nesse dia, não tendo as duas
acabado ainda o almoço, Florinda se levantou da mesa e foi de carreira para
o quarto. A velha seguiu-a. A rapariga fora vomitar ao bacio. – Que é isto?…
perguntou-lhe a mãe, apalpando-a toda com um olhar inquiridor. – Não sei,
mamãe… – Que sentes tu?… – Nada… – Nada, e estás lançando?… Hein?!
– Não sinto nada, não senhora!… A mulata velha aproximou-se, desatou-lhe
violentamente o vestido, levantou-lhe as saias e examinou-lhe todo o corpo,
tateando-lhe o ventre, já zangada. Sem obter nenhum resultado das suas diligências,
correu a chamar a Bruxa, que era mais que entendida no assunto. A cabocla,
sem se alterar, largou o serviço, enxugou os braços no avental, e foi ao número
12; tenteou de novo a mulatinha, fez-lhe várias perguntas e mais à mãe, e
depois disse friamente: – Está de barriga. E afastou-se, sem um gesto de surpresa,
nem de censura.

Marciana, trêmula de raiva, fechou a porta da casa, guardou a chave no seio
e, furiosa, caiu aos murros em cima da filha. Esta, embalde tentando escapar-lhe,
berrava como uma louca. Abandonaram-se logo todas as tinas do pátio e algumas
das mesas do frege, e o populacho, curioso e alvoroçado, precipitou-se para
o número 12, batendo na porta e ameaçando entrar pela janela. Lá dentro, a
velha escarranchada sobre a rapariga que se debatia no chão, perguntava-lhe
gritando e repetindo: – Quem foi?! Quem foi?! E de cada vez desfechava-lhe
um sopapo pelas ventas. – Quem foi?! A pequena berrava, mas não respondia.
– Ah! não queres dizer por bem? Ora espera! E a velha ergueu-se para apanhar
a vassoura no canto da sala. Florinda, vendo iminente o cacete, levantou-se
de um pulo, ganhou a janela e caiu de um salto lá fora, entre o povo amotinado.
Coisa de uns nove palmos de altura. As lavadeiras a apanharam, cuidando em
defendê-la da mãe, que surgiu logo à porta, ameaçando para o grupo, terrível
e armada de pau. Todos procuraram chamá-la à razão: – Então que é isso, tia
Marciana?! Então que é isso?! – Que é isto?! É que esta assanhada está de
barriga! Está ai o que é! Para tanto não lhe faltou jeito, nem foi preciso
que a gente andasse atrás dela se matando, como sucede sempre que há um pouco
mais de serviço e é necessário puxar pelo corpo! Ora está ai o que é! – Bem,
disse a Augusta, mas não lhe bata agora, coitada! Assim você lhe dá cabo da
pele! – Não! Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ela há de dizer
quem foi ou quebro-lhe os ossos! – Então, Florinda, diz logo quem foi… É
melhor! aconselhou a das Dores. Fez-se em torno da rapariga um silêncio ávido,
cheio de curiosidade. – Estão vendo?… exclamou a mãe. Não responde, este
diabo! Mas esperem, que eu lhes mostro se ela fala, ou não! E as lavadeiras
tiveram de agarrar-lhe os braços e tirar-lhe o cacete, porque a velha queria
crescer de novo para a filha. Ao redor desta a curiosidade assanhava-se cada
vez mais. Estalavam todos por saber quem a tinha emprenhado. “Quem foi?! Quem
foi?!” esta frase apertava-a num torniquete. Afinal, não houve outro remédio:
– Foi seu Domingos… disse ela, chorando e cobrindo o rosto com a fralda
do vestido, rasgado na luta. – O Domingos!… – O caixeiro da venda!… –
Ah! foi aquele cara de nabo? gritou Marciana. Vem cá! E, agarrando a filha
pela mão, arrastou-a até à venda. Os circunstantes acompanharam-na ruidosamente
e de carreira. A taverna, como a casa de pasto, fervia de concorrência.

Ao balcão daquela, o Domingos e o Manuel aviavam os fregueses, numa roda-viva.
Havia muitos negros e negras. O baralho era enorme. A Leonor lá estava, sempre
aos pulos, mexendo com um, mexendo com outro, mostrando a dupla fila de dentes
brancos e grandes, e levando apalpões rudes de mãos de couro nas suas magras
e escorridas nádegas de negrinha virgem Três marujos ingleses bebiam gengibirra,
cantando, ébrios, na sua língua e mascando tabaco.

Marciana na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que a seguia
como um animal puxado pela coleira, ao chegar à porta lateral da venda, berrou:

– Ó seu João Romão!

– Que temos lá? perguntou de dentro o vendeiro, atrapalhado de serviço.

Bertoleza, com uma grande colher de zinco gotejante de gordura, apareceu
à porta, muito ensebada e suja de tisna; e, ao ver tanta gente reunida, gritou
para seu homem:

– Corre aqui, seu João, que não sei o que houve!

Ele veio afinal.

Que diabo era aquilo?

– Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar conta
dela!

João Romão ficou perplexo.

– Hein! Que é lá isso?!

– Foi o Domingos! disseram muitas vozes.

– O seu Domingos!

O caixeiro respondeu: “Senhor…” com uma voz de delinqüente.

– Chegue cá!

E o criminoso apresentou-se, lívido de morte.

– Que fez você com esta pequena?

– Não fiz nada, não senhor!…

– Foi ele, sim! desmentiu-o a Florinda. – O caixeiro desviou os olhos, para
a não encarar. – Um dia de manhãzinha, às quatro horas, no capinzal, debaixo
das mangueiras…

O mulherio em massa recebeu estas palavras com um coro de gargalhadas.

– Então o senhor anda-me aqui a fazer conquistas, hein?!… disse o patrão,
meneando a cabeça. Muito bem! Pois agora é tomar conta da fazenda e, como
não gosto de caixeiros amigados, pode procurar arranjo noutra parte!…

Domingos não respondeu patavina; abaixou o rosto e retirou-se lentamente.

O grupo das lavadeiras e dos curiosos derramou-se então pela venda, pelo
portão da esta agem, pelo frege, por todos os lados, repartindo-se em pequenos
magotes que discutiam o fato. Principiaram os comentários, os juízos pró e
contra o caixeiro; fizeram-se profecias. Entretanto, Marciana, sem largar
a filha, invadira a casa de João Romão e perseguia o Domingos que preparava
já a sua trouxa. – Então? perguntou-lhe. Que tenciona fazer? Ele não deu resposta.
– Vamos! vamos! fale! desembuche! – Ora lixe-se! resmungou o caixeiro, agora
muito vermelho de cólera. – Lixe-se, não!… Mais devagar com o andor! Você
há de casar: ela é menor! Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha.
– Ah, sim?! bradou esta. Pois veremos! E despejou da venda, gritando para
todos: – Sabe? O cara de nabo diz que não casa! Esta frase produziu o efeito
de um grito de guerra entre as lavadeiras, que se reuniram de novo, agitadas
por uma grande indignação. – Como, não casa?!… – Era só o que faltava! –
Tinha graça! – Então mais ninguém pode contar com a honra de sua filha? –
Se não queria casar pra que fez mal? – Quem não pode com o tempo não inventa
modas! – Ou ele casa ou sai daqui com os ossos em sopa!

– Quem não quer ser loto não lhe vista a pele! A mais empenhada naquela reparação
era a Machona, e a mais indignada com o fato era a Dona Isabel. A primeira
correra à frente da venda, disposta a segurar o culpado, se este tentasse
fugir. Com o seu exemplo não tardou que em cada porta, onde era possível uma
escapula, se postassem as outras de sentinela, formando grupos de três e quatro.
E, no meio de crescente algazarra, ouviam-se pragas ferozes e ameaças: – Das
Dores! toma cuidado, que o patife não espirre por ai! – Ó seu João Romão,
se o homem não casa, mande-no-lo pra cá! Temos ainda algumas pequenas que
lhe convêm! – Mas onde está esse ordinário?! – Saia o canalha! – Está fazendo
a trouxa! – Quer escapar! – Não deixe sair! – Chame a polícia! – Onde está
o Alexandre?

E ninguém mais se entendia. À vista daquela agitação, o vendeiro foi ter
com o Domingos.

– Não saia agora, ordenou-lhe. Deixe-se ficar por enquanto. Logo mais lhe
direi o que deve fazer.

E chegando a uma das portas que davam para a estalagem, gritou:

– Vá de rumor! Não quero isto aqui! É safar!

– Pois então o homem que case! responderam.

– Ou dê-nos pra cá o patife!

– Fugir é que não!

– Não foge! não deixa fugir!

– Ninguém se arrede!

E, como a Marciana lhe lançasse uma injúria mais forte, ameaçando-o com o
punho fechado, o taverneiro jurou que, se ela insistisse com desaforos, a
mandaria jogar lá fora, junto com a filha, por um urbano.

– Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua obrigação, que eu não posso perder
tempo!

– Ponha-nos então pra cá o homem! exigiu a mulata velha.

– Venha o homem! acompanhou o coro.

– É preciso dar-lhe uma lição!

– O rapaz casa! disse o vendeiro com ar sisudo. Já lhe falei… Está perfeitamente
disposto! E, se não casar, a pequena terá o seu dote! Vão descansados; respondo
por ele ou pelo dinheiro!

Estas palavras apaziguaram os ânimos; o grupo das lavadeiras afrouxou; João
Romão recolheu-se: chamou de parte o Domingos e disse-lhe que não arredasse
pé de casa antes de noite fechada.

– No mais… acrescentou, pode tratar de vida nova! Nada o prende aqui. Estamos
quites.

– Como? se o senhor ainda não me fez as contas?!…

– Contas? Que contas? O seu saldo não chega para pagar o dote da rapariga!…

– Então eu tenho de pagar um dote?!…

– Ou casar… Ah, meu amigo, este negócio de três vinténs é assim! Custa
dinheiro! Agora, se você quiser, vá queixar-se à policia… Está no seu direito!
Eu me explicarei em juízo!…

– Com que, não recebo nada?…

– E não principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o ficar
às turras lá fora com esses danados! Você bem viu como estão todos a seu respeito!
E, se há pouco não lhe arrancaram os fígados, agradeça-o a mim! Foi

preciso prometer dinheiro e tenho de cair com ele, decerto! mas não é justo,
nem eu admito, que saia da minha algibeira porque não estou disposto a pagar
os caprichos de ninguém, e muito menos dos meus caixeiros!

– Mas…

– Basta! Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de ficar
calado; ao contrário – rua!

E afastou-se.

Marciana resolveu não ir ao subdelegado, sem saber que providências tomaria
o vendeiro. Esperaria até ao dia seguinte “para ver só!” O que nesse ela fez
foi dar uma boa lavagem na casa e arrumá-la muitas vezes, como costumava,
sempre que tinha lá as suas zangas.

O escândalo não deixou de ser, durante o dia, discutido um só instante. Não
se falava noutra coisa; tanto que, quando, já à noite, Augusta e Alexandre
receberam uma visita da comadre, a Léonie, era ainda esse o principal assunto
das conversas.

Léonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à francesa,
levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras.
O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto,
petulante, mostrando uns sapatinhos à moda com um salto de quatro dedos de
altura; as suas lavas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a
sua sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande
cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas
abas forradas de velado escarlate, com um pássaro inteiro grudado à copa;
as suas jóias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus lábios pintados
de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente
louro; tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras
daquela pobre gente, que de todos os lados surgiam olhos curiosos a espreitá-la
pela porta da casinha de Alexandre; Augusta, ao ver a sua pequena, a Juju,
como vinha tão embonecada e catita, ficou com os dela arrasados de água.

Léonie trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada, levando o capricho
ao ponto de lhe mandar talhar a roupa da mesma fazenda com que fazia as suas
e pela mesma costureira; arranjava-lhe chapéus escandalosos como os dela e
dava-lhe jóias. Mas, naquele dia, a grande novidade que Juju apresentava era
estar de cabelos louros, quando os tinha castanhos por natureza. Foi caso
para uma revolução na estalagem; a noticia correu logo de número a número,
e muitos moradores se abalaram do cômodo para ver a filhita da Augusta “com
cabelos de francesa”.

Tal sucesso pôs Léonie radiante de alegria. Aquela afilhada era o seu luxo,
a sua originalidade, a coisa boa da sua vida de cansaços depravados; era o
que aos seus próprios olhos a resgatava das abjeções do oficio. Prostituta
de casa aberta, prezava todavia com admiração e respeito a honestidade vulgar
da comadre; sentia-se honrada com a sua estima; cobria-a de obséquios de toda
a espécie. Nos instantes que estava ali, entre aqueles seus amigos simplórios,
que a matariam de ridículo em qualquer outro lagar, nem ela parecia a mesma,
pois até os olhos lhe mudavam de expressão. E não queria preferências: assentava-se
no primeiro banco, bebia água pela caneca de folha, tomava ao colo o pequenito
da comadre e, às vezes, descalçava os sapatos para enfiar os chinelos velhos
que encontrasse debaixo da cama.

Não obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a mulher não tinha
limites; pareciam capazes dos maiores sacrifícios por ela. Adoravam-na. Achavam-na
boa de coração como um anjo, e muito linda nas suas roupas de espavento, com
o seu rostinho redondo, malicioso e petulante, onde reluziam dentes mais alvos
que um marfim. Juju, com um embrulho de balas em cada mão, era carregada de
casa em casa, passando de braço a braço e levada de boca em boca, como um
ídolo milagroso, que todos queriam beijar. E os elogios não cessavam: – Rica
pequena!… – É um enlevo olhar a gente pro demoninho! – É mesmo uma lindeza
de criança! – Uma criaturinha dos anjos! – Uma boneca francesa! – Uma menina
Jesus! O pai acompanhava-a comovido, mas solene sempre, parando a todo momento,
como em procissão, à espera que cada qual desafogasse por sua vez o entusiasmo
pela criança. Silenciosamente risonho, com os olhos úmidos, patenteada em
todo o seu carão mulato, de bigode que parecia postiço, um ar condolente e
estúpido de um profundo reconhecimento por aquela fortuna, que Deus lhe dera
à filha, enviando-lhe dos céus o ideal das madrinhas. E, enquanto Juju percorria
a estalagem, conduzida em triunfo, Léonie na casa da comadre, cercada por
uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando
compassadamente, cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando
maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. E aquelas mulheres,
aliás tão alegres e vivazes, não se animavam, defronte dela, a rir nem levantar
a voz, e conversavam a medo cochichando, a tapar

a boca com a mão, tolhidas de respeito pela cocote, que as dominava na sua
sobranceria de mulher loura vestida de seda e coberta de brilhantes. A das
Dores sentiu-se orgulhosa, quando Léonie lhe pousou no ombro a mãozinha enluvada
e recendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E não se fartavam de olhar
para ela, de admirá-la; chegavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as salas,
apalpar-lhe as meias, levantando-lhe o vestido, com exclamações de assombro
à vista de tanto luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez comovida.
Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a da Nossa
Senhora da Penha. E Nenen, no seu entusiasmo, disse que a invejava do fundo
do coração, ao que a mãe lhe observou que não fosse besta. O Albino contemplava-a
em êxtase, de mão no queixo, o cotovelo no ar. A Rita Baiana levara-lhe um
ramalhete de rosas. Esta não se iludia com a posição da loureira, mas dava-lhe
apreço talvez por isso mesmo e, em parte, porque a achava deveras bonita.
“Ora! era preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim da pele
dos homens ricos aquela porção de jóias e todo aquele luxo de roupa por dentro
e por fora!” – Não sei, filha! pregava depois a mulata, no pátio, a uma companheira;
seja assim ou assado, a verdade é que ela passa muito bem de boca e nada lhe
falta: sua boa casa; seu bom carro para passear à tarde; teatro toda a noite;
bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da cidade
e dinheirama grossa para gastar à farta! Enfim, só o que afianço é que esta
não está sujeita, como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto
de marido! É dona das suas ações! livre como o lindo amor! Senhora do seu
corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta! – E Pombinha?…
perguntou a visita. Não me apareceu ainda!… – Ah! esclareceu Augusta. Não
está ai, foi à sociedade de dança com a mãe. E, como a outra mostrasse na
cara não ter compreendido, explicou que a filha de Dona Isabel ia todas as
terças, quintas e sábados, mediante dois mil-réis por noite, servir de dama
numa sociedade em que os caixeiros do comércio aprendiam a dançar. – Foi lá
que ela conheceu o Costa… acrescentou. – Que Costa? – O noivo! Então a Pombinha
já não foi pedida? – Ah! sei… E a cocote perguntou depois, abafando a voz:
– E aquilo?… Já veio afinal?… – Qual! Não é por falta de boa vontade da
parte delas, coitadas! Agora mesmo a velha fez uma nova promessa a Nossa Senhora
da Anunciação… mas não há meio! Daí a pouco, Augusta apresentou-lhe uma
xícara de café, que Léonie recusou por não poder beber. “Estava em uso de
remédios…” Não disse, porém, quais eram estes, nem para que moléstia os
tomava. – Prefiro um copo de cerveja, declarou ela. E, sem dar tempo a que
se opusessem, tirou da carteira uma nota de dez mil-réis, que deu a Agostinho
para ir buscar três garrafas de Carls Berg. A vista dos copos, liberalmente
cheios, formou-se um silêncio enternecido. A cocote distribuiu-os por sua
própria mão aos circunstantes, reservando um para si. Não chegavam. Quis mandar
buscar mais; não lho permitiram, objetando que duas e três pessoas podiam
beber juntas. – Para que gastar tanto?… Que alma grande!

O troco ficou esquecido, de propósito, sobre a cômoda, entre uma infinita
quinquilharia de coisas velhas e bem tratadas.

– Quando você, comadre, agora me aparece por lá?… quis saber Léonie

– Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre tem precisão
de alguma… pode-se aprontar com mais pressa…

– Então é bom mandar-me toalhas e lençóis… Camisas de dormir, é verdade!
também tenho poucas.

– Depois d’amanhã está tudo lá.

E a noite ia-se passando. Deram dez horas. Léonie, impaciente já pelo rapaz
que ficara de ir buscá-la, mandou ver se ele por acaso estaria no portão,
à espera.

– É aquele mesmo que veio da outra vez com a comadre?…

– Não. É um mais alto. De cartola branca.

Correu muita gente até à rua. O rapaz não tinha chegado ainda. Léonie ficou
contrariada.

– Imprestável!… resmungou. Faz-me ir sozinha por ai ou incomodar alguém
que me acompanhe!

– Por que a comadre não dorme aqui?… lembrou Augusta. Se quiser, arranja-se
tudo! Não passará bem como em sua casa, mas uma noite corre depressa!…

Não! não era possível Precisava estar em casa essa noite: no dia seguinte
pela manhã iriam procurá-la muito cedo.

Nisto chegou Pombinha com Dona Isabel. Disseram-lhes logo à entrada que Léonie
estava em casa do Alexandre, e a menina deixou a mãe um instante no número
15 e seguiu sozinha para ali, radiante de alegria. Gostavam-se muito uma da
outra. A cocote recebeu-a com exclamações de agrado e beijou-a nos dentes
e nos olhos repetidas vezes.

– Então, minha flor, como está essa lindeza! perguntou-lhe, mirando-a toda.

– Saudades suas… respondeu a moça, rindo bonito na sua boca ainda pura.

E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se, isolando-as
de todas as outras. Léonie entregou à Pombinha uma medalha de prata que lhe
trouxera; uma tetéia que valia só pela esquisitice, representando uma fatia
de queijo com um camundongo em cima. Correu logo de mão em mão, levantando
espantos e gargalhadas.

– Por um pouco que não me apanhas… continuou a cocote na sua conversa com
a menina. Se a pessoa que me vem buscar tivesse chegado já, eu estaria longe.
– E mudando de tom, a acarinhar-lhe os cabelos: – Por que não me apareces!…
Não tens que recear: minha casa é muito sossegada… Já lá têm ido famílias!…

– Nunca vou à cidade… É raro! suspirou Pombinha.

– Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas comigo…

– Se mamãe deixar… Olha! ela ai vem. Peça.

Dona Isabel prometeu ir, não no dia seguinte, mas no outro imediato, que
era domingo. E a palestra durou animada até que chegou, daí a um quarto de
hora, o rapaz por quem esperava Léonie. Era um moço de vinte e poucos anos,
sem emprego e sem fortuna, mas vestido com esmero e muito bem apessoado. A
cocote, logo que o viu aproximar-se, disse baixinho à menina: – Não é preciso
que ele saiba que vais lá domingo, ouviste? Juju dormia. Resolveram não acordá-la;
iria no dia seguinte. Na ocasião em que Léonie partia pelo braço do amante,
acompanhada até o portão por um séquito de lavadeiras, a Rita, no pátio, beliscou
a coxa de Jerônimo e soprou-lhe à meia voz: – Não lhe caia o queixo!… O
cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d’ombros. – Aquela pra cá nem
pintada! E, para deixar bem patente as suas preferências, virou o pé do lado
e bateu com o tamanco na canela da mulata. – Olha o bruto!… queixou-se esta,
levando a mão ao lagar da pancada. Sempre há de mostrar que é galego!

X

No outro dia a casa do Miranda estava em preparos de festa. Lia-se no “Jornal
do Comércio” que Sua Excelência fora agraciado pelo governo português com
o titulo de Barão do Freixal; e como os seus amigos se achassem prevenidos
para ir cumprimentá-lo no domingo, o negociante dispunha-se a recebê-los condignamente.

Do cortiço, onde esta novidade causou sensação, via-se nas janelas do sobrado,
abertas de par em par, surgir de vez em quando Leonor ou Isaura, a sacudirem
tapetes e capachos, batendo-lhes em cima com um pau, os olhos fechados, a
cabeça torcida para dentro por causa da poeira que a cada pancada se levantava,
como fumaça de um tiro de peça. Chamaram-se novos criados para aqueles dias.
No salão da frente, pretos lavavam o soalho, e na cozinha havia rebuliço.
Dona Estela, de penteador de cambraia enfeitado de laços cor-de-rosa, era
lobrigada de relance, ora de um lado, ora de outro, a dar as suas ordens,
abanando-se com um grande leque; ou aparecia no patamar da escada do fundo,
preocupada em soerguer as saias contra as águas sujas da lavagem, que escorriam
para o quintal. Zulmira também ia e vinha, com a sua palidez fria e úmida
de menina sem sangue. Henrique, de paletó branco, ajudava o Botelho nos arranjos
da casa e, de instante a instante, chegava à janela, para namoriscar Pombinha,
que fingia não dar por isso, toda embebida na sua costura, à porta do número
15, numa cadeira de vime, uma perna dobrada sobre a outra, mostrando a meia
de seda azul e um sapatinho preto de entrada baixa; só de longo em longo espaço,
ela desviava os olhos do serviço e erguia-os para o sobrado. Entretanto, a
figura gorda e encanecida do novo Barão, sobre-casacado, com o chapéu alto
derreado para trás na cabeça e sem largar o guarda-chuva, entrava da rua e
atravessava a sala de jantar, seguia até a despensa, diligente esbaforido,
indagando se já tinha vindo isto e mais aquilo, provando dos vinhos que chegavam
em garrafões, examinando tudo, voltando-se para a direita e para a esquerda,
dando ordens, ralhando, exigindo atividade, e depois tornava a sair, sempre
apressado, e metia-se no carro que o esperava à porta da rua. – Toca! toca!
Vamos ver se o fogueteiro aprontou os fogos!

E viam-se chegar, quase sem intermitência, homens carregados de gigos de
champanha, caixas de Porto e Bordéus, barricas de cerveja, cestos e cestos
de mantimentos, latas e latas de conserva; e outros traziam perus e leitões,
canastras d’ovos, quartos de carneiro e de porco. E as janelas do sobrado
iam-se enchendo de compoteiras de doce ainda quente, saído do fogo, e travessões,
de barro e de ferro, com grandes peças de carne em vinha d’alhos, prontos
para entrar no forno. À porta da cozinha penduraram pelo pescoço um cabrito
esfolado, que tinha as pernas abertas, lembrando sinistramente uma criança
a quem enforcassem depois de tirar-lhe a pele. Todavia, cá embaixo, um caso
palpitante agitava a estalagem: Domingos, o sedutor da Florinda, desaparecera
durante a noite e um novo caixeiro o substituía ao balcão. O vendeiro retorquia
atravessado a quem lhe perguntava pelo evadido: – Sei cá! Creio que não podia
trazê-lo pendurado ao pescoço!… – Mas você disse que respondia por ele!
repontou Marciana, que parecia ter envelhecido dez anos naquelas últimas vinte
e quatro horas. – De acordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?…
É ter paciência! – Pois então ande com o dote! – Que dote? Você está bêbeda?

– Bêbeda, hein? Ah, corja! tão bom é um como o outro! Mas eu hei de mostrar!

– Ora, não me amole!

E João Romão virou-lhe as costas, para falar à Bertoleza que se chegara.

– Deixa estar, malvado, que Deus é quem há de punir por mim e por minha filha!
exclamou a desgraçada.

Mas o vendeiro afastou-se, indiferente às frases que uma ou outra lavadeira
imprecava contra ele. Elas, porém, já se não mostravam tão indignadas como
na véspera; uma só noite rolada por cima do escândalo bastava para tirar-lhe
o mérito de novidade.

Marciana foi com a pequena à procura do subdelegado e voltou aborrecida,
porque lhe disseram que nada se poderia fazer enquanto não aparecesse o delinqüente.
Mãe e filha passaram todo esse sábado na rua, numa roda-viva, da secretaria
e das estações de polícia para o escritório de advogados que, um por um, lhes
perguntavam de quanto dispunham para gastar com o processo, despachando-as,
sem mais considerações, logo que se inteiravam da escassez de recursos de
ambas as partes.

Quando as duas, prostradas de cansaço, esbraseadas de calor, tornaram à tarde
para a estalagem, na hora em que os homens do mercado, que ali moravam, recolhiam-se
já com os balaios vazios ou com o resto da fruta que não conseguiram vender
na cidade, Marciana vinha tão furiosa que, sem dar palavra à filha e com os
braços moídos de esbordoá-la, abriu toda a casa e correu a buscar água para
baldear o chão. Estava possessa.

Vê a vassoura! Anda! Lava! lava, que está isto uma porcaria! Parece que nunca
se limpa o diabo desta casa! É deixá-la fechada uma hora e morre-se de fedor!
Apre! isto faz peste!

E notando que a pequena chorava:

– Agora deste para chorar, hein? mas na ocasião do relaxamento havias de
estar bem disposta!

A filha soluçou.

– Cala-te, coisa-ruim! Não ouviste?

Florinda soluçou mais forte.

– Ah! choras sem motivo?… Espera, que te faço chorar com razão.

E precipitou-se sobre ela com uma acha de lenha.

Mas a mulatinha, de um salto, pinchou pela porta e atravessou de uma só carreira
o pátio da estalagem, fugindo em desfilada pela rua.

Ninguém teve tempo de apanhá-la, e um clamor de galinheiro assustado levantou-se
entre as lavadeiras. Marciana foi até o portão, como uma doida e, compreendendo
que a filha a abandonava, desatou por sua vez a soluçar, de braços abertos,
olhando para o espaço. As lágrimas saltavam-lhe pelas rugas da cara. E logo,
sem transição, disparou da cólera, que a convulsionava desde a manhã da véspera,
para cair numa dor humilde enternecida de mãe que perdeu o filho. – Para onde
iria ela, meu pai do céu?

– Pois você desd’ontem que bate na rapariga!… disse-lhe a Rita. Fugiu-lhe,
é bem feito! Que diabo! ela é de carne, não é de ferro!

– Minha filha!

– É bem feito! Agora chore na cama que é lugar quente!

– Minha filha! Minha filha! Minha filha!

Ninguém quis tomar o partido da infeliz, à exceção da cabocla velha, que
foi colocar-se perto dela, fitando-a imóvel, com o seu desvairado olhar de
bruxa feiticeira.

Marciana arrancou-se da abstração plangente em que caíra, para arvorar-se
terrível defronte da venda, apostrofando com a mão no ar e a carapinha desgrenhada:

– Este galego e que teve a culpa de tudo! Maldito sejas tu, ladrão! Se não
me deres conta de minha filha, malvado, pego-te fogo na casa.

A bruxa sorriu sinistramente ao ouvir estas últimas palavras.

O vendeiro chegou à porta e ordenou em tom seco à Marciana que despejasse
o número 12.

– É andar! É andar! Não quero esta berraria aqui! Bico, ou chamo um urbano!
Dou-lhe uma noite! amanhã pela manhã – rua!

Ah! ele esse dia estava intolerante com tudo e com todos; por mais de uma
vez mandara Bertoleza à coisa mais imunda, apenas porque esta lhe fizera algumas
perguntas concernentes ao serviço. Nunca o tinha visto assim, tão fora de
si, tão cheio de repelões; nem parecia aquele mesmo homem inalterável, sempre
calmo e metódico.

E ninguém seria capaz de acreditar que a causa de tudo isso era o fato de
ter sido o Miranda agraciado com o titulo de Barão.

Sim, senhor! aquele taverneiro, na aparência tão humilde e tão miserável;
aquele sovina que nunca saíra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho
de Angola; aquele animal que se alimentava pior que os cães, para pôr de parte
tudo, tudo, que ganhava ou extorquia; aquele ente atrofiado pela cobiça e
que parecia ter abdicado dos seus privilégios e sentimentos de homem; aquele
desgraçado, que nunca jamais amara senão o dinheiro, invejava agora o Miranda,
invejava-o deveras, com dobrada amargura do que sofrera o marido de Dona Estela,
quando, por sua vez, o invejara a ele. Acompanhara-o desde que o Miranda viera
habitar o sobrado com a família; vira-o nas felizes ocasiões da vida, cheio
de importância, cercado de amigos e rodeado de aduladores; vira-o dar festas
e receber em sua casa as figuras mais salientes da praça e da política; vira-o
luzir, como um grosso pião de ouro, girando por entre damas da melhor e mais
fina sociedade fluminense; vira-o meter-se em altas especulações comerciais
e sair-se bem; vira seu nome figurar em várias corporações de gente escolhida
e em subscrições, assinando belas quantias; vira-o fazer parte de festas de
caridade e festas de regozijo nacional; vira-o elogiado pela imprensa e aclamado
como homem de vistas largas e grande talento financeiro; vira-o enfim em todas
as suas prosperidades, e nunca lhe tivera inveja. Mas agora, estranho

deslumbramento! quando o vendeiro leu no “Jornal do Comércio” que o vizinho
estava barão – Barão! – sentiu tamanho calafrio em todo o corpo, que a vista
por um instante se lhe apagou dos olhos.

– Barão!

E durante todo o santo dia não pensou noutra coisa. “Barão!… Com esta é
que ele não contava!…” E, defronte da sua preocupação, tudo se convertia
em comendas e crachás; até os modestos dois vinténs de manteiga, que media
sobre um pedaço de papel de embrulho para dar ao freguês, transformava-se,
de simples mancha amarela, em opulenta insígnia de ouro cravejada de brilhantes.
À noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, para dormir, não
pôde conciliar o sono. Por toda a miséria daquele quarto sórdido; pelas paredes
imundas, pelo chão enlameado de poeira e sebo, nos tetos funebremente velados
pelas teias de aranha, estrelavam pontos luminosos que se iam transformando
em grã-cruzes, em hábitos e veneras de toda a ordem e espécie. E em volta
do seu espírito, pela primeira vez alucinado, um turbilhão de grandezas que
ele mal conhecia e mal podia imaginar, perpassou vertiginosamente, em ondas
de seda e rendas, velado e pérolas, colos e braços de mulheres seminuas, num
fremir de risos e espumar aljofrado de vinhos cor-de-ouro. E nuvens de caudas
de vestidos e abas de casaca lá iam, rodando deliciosamente, ao som de langorosas
valsas e à luz de candelabros de mil velas de todas as cores. E carruagens
desfilavam reluzentes, com uma coroa à portinhola, o cocheiro teso, de libré,
sopeando parelhas de cavalos grandes. E intermináveis mesas estendiam-se,
serpenteando a perder de vista, acumuladas de iguarias, numa encantadora confusão
de flores, luzes, baixelas e cristais, cercadas de um e de outro lado por
luxuoso renque de convivas, de taça em punho, brindando o anfitrião. E, porque
nada disso o vendeiro conhecia de perto, mas apenas pelo ruído namorador e
fátuo, ficava deslumbrado com o seu próprio sonho. Tudo aquilo, que agora
lhe deparava o delírio, até ai só lhe passara pelos olhos ou lhe chegara aos
ouvidos como o eco e reflexo de um mundo inatingível e longínquo; um mundo
habitado por seres superiores; um paraíso de gozos excelentes e delicados,
que os seus grosseiros sentidos repeliam; um conjunto harmonioso e discreto
de sons e cores mal definidas e vaporosas; um quadro de manchas pálidas, sussurrantes,
sem firmezas de tintas, nem contornos, em que se não determinava o que era
pétala de rosa ou asa de borboleta, murmúrio de brisa ou ciciar de beijos.
Não obstante, ao lado dele a crioula roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada
de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre.
Mas João Romão nem dava por ela; só o que ele via e sentia era todo aquele
voluptuoso mundo inacessível vir descendo para a terra, chegando-se para o
seu alcance, lentamente, acentuando-se. E as dúbias sombras tomavam forma,
e as vozes duvidosas e confusas transformavam-se em falas distintas, e as
linhas desenhavam-se nítidas, e tudo se ia esclarecendo e tudo se aclarava,
num reviver de natureza ao raiar do sol. Os tênues murmúrios suspirosos desdobravam-se
em orquestra de baile, onde se distinguiam instrumentos, e os surdos rumores
indefinidos eram já animadas conversas, em que damas e cavalheiros discutiam
política, artes, literatura e ciência. E uma vida inteira, completa, real,
descortinou-se amplamente defronte dos seus olhos fascinados; uma vida fidalga,
de muito luxo, de muito dinheiro; uma vida de palácio, entre mobílias preciosas
e objetos esplêndidos, onde ele se via cercado de titulares milionários, e
homens de farda bordada, a quem tratava por tu, de igual para igual, pondo-lhes
a mão no ombro. E ali ele não era, nunca fora, o dono de um cortiço, de tamancos
e em mangas de camisa; ali era o Sr. Barão! O Barão do ouro! o Barão das grandezas!
o Barão dos milhões! Vendeiro! Qual! era o famoso, o enorme capitalista! o
proprietário sem igual! o incomparável banqueiro, em cujos capitais se equilibrava
a terra, como imenso globo em cima de colunas feitas de moedas de ouro. E
viu-se logo montado a cavaleiras sobre o mundo, pretendendo abarcá-lo com
as suas pernas curtas; na cabeça uma coroa de rei e na mão um cetro. E logo,
de todos os cantos do quarto, começaram a jorrar cascatas de libras esterlinas,
e a seus pés principiou a formar-se um formigueiro de pigmeus em grande movimento
comercial; e navios descarregavam pilhas e pilhas de fardos e caixões marcados
com as iniciais do seu nome; e telegramas faiscavam eletricamente em volta
da sua cabeça; e paquetes de todas as nacionalidades giravam vertiginosamente
em torno do seu corpo de colosso, arfando e apitando sem trégua; e rápidos
comboios a vapor atravessam-no todo, de um lado a outro, como se o cosessem
com uma cadeia de vagões. Mas, de repente, tudo desapareceu com a seguinte
frase: – Acorda, seu João, para ir à praia. São horas! Bertoleza chamava-o
aquele domingo, como todas as manhãs, para ir buscar o peixe, que ela tinha
de preparar para os seus fregueses. João Romão, com medo de ser iludido, não
confiava nunca aos empregados a menor compra a dinheiro; nesse dia, porém,
não se achou com animo de deixar a cama e disse à amiga que mandasse o Manuel.
Seriam quatro da madrugada. Ele conseguiu então passar pelo sono.

Às seis estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já. Içaram-se
bandeiras nas janelas da frente; mudaram-se as cortinas, armaram-se florões
de murta à entrada e recamaram-se de folhas de mangueira o corredor e a calçada.
Dona Estela mandou soltar foguetes e queimar bombas ao romper da alvorada.
Uma banda de música, em frente à porta do sobrado, tocava desde essa hora.
O Barão madrugara com a família; todo de branco, com uma gravata

de rendas, brilhantes no peito da camisa, chegava de vez em quando a uma
das janelas, ao lado da mulher ou da filha, agradecendo para a rua; e limpava
a testa com o lenço; acendia charutos, risonho, feliz, resplandecente.

João Romão via tudo isto com o coração moído. Certas dúvidas aborrecidas
entravam-lhe agora a roer por dentro: qual seria o melhor e o mais acertado:
– ter vivido como ele vivera até ali, curtindo privações, em tamancos e mangas
de camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gozando à farta?…
Estaria ele, João Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual
ao do vizinho?… Dinheiro não lhe faltava para isso… Sim, de acordo! mas
teria animo de gastá-lo assim, sem mais nem menos?… sacrificar uma boa porção
de contos de réis, tão penosamente acumulados, em troca de uma tetéia para
o peito?… Teria animo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo
família; e cercando-se de amigos?… Teria animo de encher de finas iguarias
e vinhos preciosos a barriga dos outros, quando até ali fora tão pouco condescendente
para com a própria?… E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se
a uma senhora bem-educada e distinta de maneiras, montar um sobrado como o
do Miranda e volver-se titular, estaria apto para o fazer?… Poderia dar
conta do recado?… Dependeria tudo isso somente da sua vontade?… “Sem nunca
ter vestido um paletó, como vestiria uma casaca?… Com aqueles pés, deformados
pelo diabo dos tamancos, criados à solta, sem meias, como calçaria sapatos
de baile?… E suas mãos, calosas e maltratadas, duras como as de um cavouqueiro,
como se ajeitariam com a luva?… E isso ainda não era tudo! O mais difícil
seria o que tivesse de dizer aos seus convidados!… Como deveria tratar as
damas e cavalheiros, em meio de um grande salão cheio de espelhos e cadeiras
douradas?… Como se arranjaria para conversar, sem dizer barbaridades?…”

E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo forte
de querer saltar e um medo invencível de cair e quebrar as pernas. Afinal,
a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção da sua impotência
para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro,
e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo
a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu ouro.

“Fora uma besta!… pensou de si próprio, amargurado: Uma grande besta!…
Pois não! por que em tempo não tratara de habituar-se logo a certo modo de
viver, como faziam tantos outros seus patrícios e colegas de profissão?…
Por que, como eles, não aprendera a dançar? e não freqüentar sociedades carnavalescas?
e não fora de vez em quando à Rua do Ouvidor e aos teatros e bailes, e corridas
e a passeios?… Por que se não habituara com as roupas finas, e com o calçado
justo, e com a bengala, e com o lenço, e com o charuto, e com o chapéu, e
com a cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem precisar
de privilégio para isso?… Maldita economia!” – Teria gasto mais, é verdade!…
Não estaria tão bem!… mas, ora adeus! estaria habilitado a fazer do meu
dinheiro o que bem quisesse!… Seria um homem civilizado!… – Você deu hoje
para conversar com as almas, seu João?… perguntou-lhe Bertoleza, notando
que ele falava sozinho, distraído do serviço. – Deixe! Não me amole você também.
Não estou bom hoje! – Ó gentes! não falei por mal!… Credo! – ’Stá
bem! Basta! E o seu mau humor agravou-se pelo correr do dia. Começou a implicar
com tudo. Arranjou logo uma pega, à entrada da venda, com o fiscal da rua:
“Pois ele era lá algum parvo, que tivesse medo de ameaças de multas?… Se
o bolas do fiscal esperava comê-lo por uma perna, como costumava fazer com
os outros, que experimentasse, para ver só quanto lhe custaria a festa!…
E que lhe não rosnasse muito, que ele não gostava de cães à porta!… Era
andar!” Pegou-se depois com a Machona, por causa de um gato desta, que, a
semana passada, lhe fora ao tabuleiro do peixe frito. Parava defronte das
tinas vazias, encolerizado, procurando pretextos para ralhar. Mandava, com
um berro, saírem as crianças de seu caminho: “Que praga de piolhos! Arre,
demônio! Nunca vira gente tão danada para parir! Pareciam ratas!” Deu um encontrão
no velho Libório. – Sai tu também do caminho, fona de uma figa! Não sei que
diabo fica fazendo cá no mundo um caco velho como este, que já não presta
pra nada! Protestou contra os galos de um alfaiate, que se divertia a fazê-los
brigar, no meio de grande roda entusiasmada e barulhenta. Vituperou os italianos,
porque estes, na alegre independência do domingo, tinham à porta da casa uma
esterqueira de cascas de melancia e laranja, que eles comiam tagarelando,
assentados sobre a janela e a calçada. – Quero isto limpo! bramava furioso.
Está pior que um chiqueiro de porcos! Apre! Tomara que a febre amarela os
lamba a todos! maldita raça de carcamanos! Hão de trazer-me isto asseado ou
vai tudo para o olho da rua! Aqui mando eu! Com a pobre velha Marciana, que
não tratara de despejar o número 12, conforme a intimação da véspera, a sua
fúria tocou ao delírio. A infeliz, desde que Florinda lhe fugira, levava a
choramingar e maldizer-se, monologando com persistência maníaca. Não pregou
olho durante toda a noite; saíra e entrara na estalagem mais de vinte vezes,
irrequieta, ululando, como uma cadela a quem roubaram o cachorrinho.

Estava apatetada; não respondia às perguntas que lhe dirigiam. João Romão
falou-lhe; ela nem sequer se voltou para ouvir. E o vendeiro, cada vez mais
excitado, foi buscar dois homens e ordenou que esvaziassem o numero 12.

– Os tarecos fora! e já! Aqui mando eu! Aqui sou eu o monarca!

E tinha gestos inflexíveis de déspota.

Principiou o despejo.

– Não! aqui dentro não! Tudo lá fora! na rua! gritou ele, quando os carregadores
quiseram depor no pátio os trens de Marciana. Lá fora do portão! Lá fora do
portão!

E a mísera, sem opor uma palavra, assistia ao despejo acocorada na rua, com
os joelhos juntos, as mãos cruzadas sobre as canelas, resmungando. Transeuntes
paravam a olhá-la. Formava-se já um grupo de curiosos. Mas ninguém entendia
o que ela rosnava; era um rabujar confuso, interminável, acompanhado de um
único gesto de cabeça, triste e automático. Ali perto, o colchão velho, já
roto e destripado, os móveis desconjuntados e sem verniz, as trouxas de molambos
úteis, as louças ordinárias e sujas do uso, tinham, tudo amontoado e sem ordem,
um ar indecoroso de interior de quarto de dormir, devassado em flagrante intimidade.
E veio o homem dos cinco instrumentos, que, aos domingos, aparecia sempre;
e fez-se o entra-e-sai dos mercadores; e lavadeiras ganharam a rua em trajos
de passeio, e os tabuleiros de roupa engomada, que saiam, cruzaram-se com
os sacos de roupa suja, que entravam; e Marciana não se movia do seu lugar,
monologando. João Romão percorreu o número 12, escancarando as portas, a dar
arres e empurrando para fora, com o pé, algum trapo ou algum frasco vazio
que lá ficara abandonado; e a enxotada, indiferente a tudo, continuava a sussurrar
funebremente. Já não chorava, mas os olhos tinha-os ainda relentados na sua
muda fixidez. Algumas mulheres da estalagem iam ter com ela de vez em quando,
agora de novo compungidas, e faziam-lhe oferecimentos, Marciana não respondia.
Quiseram obrigá-la a comer; não houve meio. A desgraçada não prestava atenção
a coisa alguma, parecia não dar pela presença de ninguém. Chamaram-na pelo
nome repetidas vezes; ela persistia no seu ininteligível monólogo, sem tirar
a vista de um ponto.

– Cruzes! parece que lhe deu alguma!

– A Augusta chegara-se também.

– Teria ensandecido?… perguntou à Rita, que, a seu lado, olhava para a
infeliz, com um prato de comida na mão. Coitada! – Tia Marciana! dizia a mulata.
Não fique assim!! Levante-se! Meta os seus trens pra dentro! Vá lá pra casa
até encontrar arrumação!… Nada! O monólogo continuava. – Olhe que vai chover!
Não tarda a cair água! Já senti dois pingos na cara. Qual! A Bruxa, a certa
distancia, fitava-a com estranheza, igualmente imóvel, como um efeito de sugestão.
Rita afastou-se, porque acabava de chegar o Firmo, acompanhado pelo Porfiro,
trazendo ambos embrulhos para o jantar. O amigo da das Dores também veio.
Deram três horas da tarde. A casa do Miranda continuava em festa animada cada
vez mais cheia de visitas; lá dentro a música quase que não tomava fôlego,
enfiando quadrilhas e valsas; moças e meninas dançavam na sala da frente,
com muito riso; desarrolhavam-se garrafas a todo instante; os criados iam
e vinham, de carreira, da sala de jantar à despensa e à cozinha, carregados
de copos em salvas; Henrique, suado e vermelho, aparecia de quando em quando
à janela, impaciente por não ver Pombinha, que estava esse dia de passeio
com a mãe em casa de Léonie. João Romão, depois de serrazinar na venda com
os caixeiros e com a Bertoleza, tornou ao pátio da estalagem queixando-se
de que tudo ali ia muito mal. Censurou os trabalhadores da pedreira, nomeando
o próprio Jerônimo, cuja força física aliás o intimidara sempre. “Era um relaxamento
aquela porcaria de serviço! Havia três semanas que estava com uma broca à-toa,
sem atar, nem desatar; afinal ai chegara o domingo e não se havia ainda lascado
fogo! Uma verdadeira calaçaria! O tal seu Jerônimo, dantes tão apurado, era
agora o primeiro a dar o mau exemplo! perdia noites no samba! não largava
os rastros da Rita Baiana e parecia embeiçado por ela! Não tinha jeito!” Piedade,
ouvindo o vendeiro dizer mal do seu homem, saltou em defesa deste com duas
pedras na mão, e uma contenda travou-se, assanhando todos os ânimos. Felizmente,
a chuva, caindo em cheio, veio dispersar o ajuntamento que se tornava sério.
Cada um correu para o seu buraco, num alvoroço exagerado; as crianças despiram-se
e vieram cá fora tomar banho debaixo das goteiras, por pagode, gritando, rindo,
saltando e atirando-se ao chão, a espernearem; fingindo que nadavam. E lá
defronte, no sobrado, ferviam brindes, enquanto a água jorrava copiosamente,
alagando o pátio. Quando João Romão entrou na venda, recolhendo-se da chuva,
um caixeiro entregou-lhe um cartão de Miranda. Era um convite para lá ir à
noite tomar uma chávena de chá. O vendeiro, a principio, ficou lisonjeado
com o obséquio, primeiro desse gênero que em sua vida recebia; mas logo depois
voltou-lhe a cólera com mais ímpeto ainda. Aquele convite irritava-o como
um ultraje, uma provocação. “Por que o pulha o convidara, devendo saber que
ele decerto lá não ia?… Para que, se não para o enfrenesiar ainda mais do
que já estava?!… Seu Miranda que fosse à tábua com a sua festa e com os
seus títulos!”

– Não preciso dele para nada!… exclamou o vendeiro. Não preciso, nem dependo
de nenhum safardana! Se gostasse de festas, dava-as eu! No entanto, começou
a imaginar como seria, no caso que estivesse prevenido de roupa e aceitasse
o convite: figurou-se bem vestido, de pano fino, com uma boa cadeia de relógio,
uma gravata com alfinete de brilhantes; e viu-se lá em cima, no meio da sala,
a sorrir para os lados, prestando atenção a um, prestando atenção a outro,
discretamente silencioso e afável, sentindo que o citavam dos lados em voz
mortiça e respeitosa como um homem rico, cheio de independência. E adivinhava
os olhares aprobativos das pessoas sérias; os óculos curiosos das velhas assestados
sobre ele, procurando ver se estaria ali um bom arranjo para uma das filhas
de menor cotação. Nesse dia serviu mal e porcamente aos fregueses; tratou
aos repelões a Bertoleza e, quando, já as cinco horas, deu com a Marciana,
que, uns negros por compaixão haviam arrastado para dentro da venda, disparatou:
– Ora bolas! pra que diabo me metem em casa este estupor?! Gosto de ver tais
caridades com o que é dos outros! Isto aqui não é acoito de vagabundos!…
E, como um polícia, todo encharcado de chuva, entrasse para beber um gole
de parati, João Romão voltou-se para ele e disse-lhe: – Camarada, esta mulher
é gira! não tem domicilio, e eu não hei de, quando fechar a porta, ficar com
ela aqui dentro da venda! O soldado saiu e, daí a coisa de uma hora, Marciana
era carregada para o xadrez, sem o menor protesto e sem interromper o seu
monólogo de demente. Os cacaréus foram recolhidos ao depósito público por
ordem do inspetor do quarteirão. E a Bruxa era a única que parecia deveras
impressionada com tudo aquilo. Entretanto, a chuva cessou completamente, o
sol reapareceu, como para despedir-se: andorinhas esgaivotaram no ar; e o
cortiço palpitou inteiro na trêfega alegria do domingo. Nas salas do barão
a festa engrossava, cada vez mais estrepitosa; de vez em quando vinha de lá
uma taça quebrar-se no pátio da estalagem, levantando protestos e surriadas.
A noite chegou muito bonita, com um belo luar de lua cheia, que começou ainda
com o crepúsculo; e o samba rompeu mais forte e mais cedo que de costume,
incitado pela grande animação que havia em casa do Miranda. Foi um forrobodó
valente. A Rita Baiana essa noite estava de veia para a coisa; estava inspirada;
divina! Nunca dançara com tanta graça e tamanha lubricidade! Também cantou.
E cada verso que vinha da sua boca de mulata era um arrulhar choroso de pomba
no cio. E o Firmo, bêbedo de volúpia, enroscava-se todo ao violão; e o violão
e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes
de bichos sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até ao tutano com
línguas finíssimas de cobra. Jerônimo não pôde conter-se: no momento em que
a baiana, ofegante de cansaço, caiu exausta, assentando-se ao lado dele, o
português segredou-lhe com a voz estrangulada de paixão: – Meu bem! se você
quiser estar comigo, dou uma perna ao demo! O mulato não ouviu, mas notou
o cochicho e ficou, de má cara, a rondar disfarçadamente o rival. O canto
e a dança continuavam todavia, sem afrouxar. Entrou a das Dores. Nenen, mais
uma amiga sua, que fora passar o dia com ela, rodavam de mãos nas cadeiras,
rebolando em meio de uma volta de palmas cadenciadas, no acompanhamento do
ritmo requebrado da musica. Quando o marido de Piedade disse um segundo cochicho
à Rita, Firmo precisou empregar grande esforço para não ir logo às do cabo.

Mas, lá pelo meio do pagode, a baiana caíra na imprudência de derrear-se
toda sobre o português e soprar-lhe um segredo, requebrando os olhos. Firmo,
de um salto, aprumou-se então defronte dele, medindo-o de alto a baixo com
um olhar provocador e atrevido. Jerônimo, também posto de pé, respondeu altivo
com um gesto igual. Os instrumentos calaram-se logo. Fez-se um profundo silêncio.
Ninguém se mexeu do lugar em que estava. E, no meio da grande roda, iluminados
amplamente pelo capitoso luar de abril, os dois homens, perfilados defronte
um do outro, olhavam-se em desafio. Jerônimo era alto, espadaúdo, construção
de touro, pescoço de Hércules, punho de quebrar um coco com um murro: era
a força tranqüila, o pulso de chumbo. O outro, franzino, um palmo mais baixo
que o português, pernas e braços secos, agilidade de maracajá: era a força
nervosa; era o arrebatamento que tudo desbarata no sobressalto do primeiro
instante. Um, sólido e resistente; o outro, ligeiro e destemido, mas ambos
corajosos. – Senta! Senta! – Nada de rolo! – Segue a dança, gritaram em volta.

Piedade erguera-se para arredar o seu homem dali.

O cavouqueiro afastou-a com um empurrão, sem tirar a vista de cima do mulato.

– Deixa-me ver o que quer de mim este cabra!… rosnou ele.

– Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! respondeu Firmo, frente a
frente; agora avançando e recuando, sempre com um dos pés no ar, e bamboleando
todo o corpo e meneando os braços, como preparado para agarrá-lo.

Jerônimo, esbravecido pelo insulto, cresceu para o adversário com um soco
armado; o cabra, porém, deixou-se cair de costas, rapidamente, firmando-se
nas mãos o corpo suspenso, a perna direita levantada; e o soco passou por
cima, varando o espaço, enquanto o português apanhava no ventre um pontapé
inesperado.

– Canalha! berrou possesso; e ia precipitar-se em cheio sobre o mulato, quando
uma cabeçada o atirou no chão.

– Levanta-se, que não dou em defuntos! exclamou o Firmo, de pé, repetindo
a sua dança de todo o corpo.

O outro erguera-se logo e, mal se tinha equilibrado, já uma rasteira o tombava
para a direita, enquanto da esquerda ele recebia uma tapona na orelha. Furioso,
desferiu novo soco, mas o capoeira deu para trás um salto de gato e o português
sentiu um pontapé nos queixos.

Espirrou-lhe sangue da boca e das ventas. Então fez-se um clamor medonho.
As mulheres quiseram meter-se de permeio, porém o cabra as emborcava com rasteiras
rápidas, cujo movimento de pernas apenas se percebia. Um horrível sarilho
se formava. João Romão fechou às pressas as portas da venda e trancou o portão
da estalagem, correndo depois para o lugar da briga. O Bruno, os mascates,
os trabalhadores da pedreira, e todos os outros que tentaram segurar o mulato,
tinham rolado em torno dele, formando-se uma roda limpa, no meio da qual o
terrível capoeira, fora de si, doido, reinava, saltando a um tempo para todos
os lados, sem consentir que ninguém se aproximasse. O terror arrancava gritos
agudos. Estavam já todos assustados, menos a Rita que, a certa distancia,
via, de braços cruzados, aqueles dois homens a se baterem por causa dela;
um ligeiro sorriso encrespava-lhe os lábios. A lua escondera-se: mudara o
tempo; o céu, de limpo que estava, fizera-se cor de lousa; sentia-se um vento
úmido de chuva. Piedade berrava reclamando polícia; tinha levado um troca-queixos
do marido, porque insistia em tirá-lo da luta. As janelas do Miranda acumulavam-se
de gente. Ouviam-se apitos, soprados com desespero.

Nisto, ecoou na estalagem um bramido de fera enraivecida: Firmo acabava de
receber, sem esperar, uma formidável cacetada na cabeça. É que Jerônimo havia
corrido à casa e armara-se com o seu varapau minhoto. E então o mulato, com
o rosto banhado de sangue, refilando as presas e espumando de cólera, erguera
o braço direito, onde se viu cintilar a lamina de uma navalha.

Fez-se uma debandada em volta dos dois adversários, estrepitosa, cheia de
pavor. Mulheres e homens atropelavam-se, caindo uns por cima dos outros. Albino
perdera os sentidos; Piedade clamava, estarrecida e em soluços, que lhe iam
matar o homem; a das Dores soltava censuras e maldições contra aquela estupidez
de se destriparem por causa de entrepernas de mulher; a Machona, armada com
um ferro de engomar, jurava abrir as fuças a quem lhe desse um segundo coice
como acabava ela de receber um nas ancas; Augusta enfiara pela porta do fundo
da estalagem, para atravessar o capinzal e ir à rua ver se descobria o marido,
que talvez estivesse de serviço no quarteirão. Por esse lado acudiam curiosos
e o pátio enchia-se de gente de fora. Dona Isabel e Pombinha, de volta da
casa de Léonie, tiveram dificuldade em chegar ao número 15, onde, mal entraram,
fecharam-se por dentro, praguejando a velha contra a desordem e lamentando-se
da sorte que as lançou naquele inferno. Entanto, no meio de uma nova roda,
encintada pelo povo, o português e o brasileiro batiam-se. Agora a luta era
regular: havia igualdade de partidos, porque o cavouqueiro jogava o pau admiravelmente;
jogava-o tão bem quanto o outro jogava a sua capoeiragem. Embalde Firmo tentava
alcançá-lo; Jerônimo, sopesando ao meio a grossa vara na mão direita, girava-a
com tal perícia e ligeireza em torno do corpo, que parecia embastilhado por
uma teia impenetrável e sibilante. Não se lhe via a arma; só se ouvia um zunido
do ar simultaneamente cortado em todas as direções. E, ao mesmo tempo que
se defendia, atacava. O brasileiro tinha já recebido pauladas na testa, no
pescoço, nos ombros, nos braços, no peito, nos rins e nas pernas. O sangue
inundava-o inteiro; ele rugia e arfava, iroso e cansado, investindo ora com
os pés, ora com a cabeça, e livrando-se daqui, livrando-se dali, aos pulos
e às cambalhotas. A vitória pendia para o lado do português. Os espectadores
aclamavam-no já com entusiasmo; mas, de súbito, o capoeira mergulhou, num
relance, até as canelas do adversário e surgiu-lhe rente dos pés, grupado
nele, rasgando-lhe o ventre com uma navalhada. Jerônimo soltou um mugido e
caiu de borco, segurando os intestinos. – Matou! Matou! Matou! exclamaram
todos com assombro. Os apitos esfuziaram mais assanhados. Firmo varou pelos
fundos do cortiço e desapareceu no capinzal.

– Pega! Pega!

– Ai, o meu rico homem! ululou Piedade, atirando-se de joelhos sobre o corpo
ensangüentado do marido. Rita viera também de carreira lançar-se ao chão junto
dele, para lhe afagar as barbas e os cabelos. – É preciso o doutor! suplicou
aquela, olhando para os lados à procura de uma alma caridosa que lhe valesse.
Mas nisto um estardalhaço de formidáveis pranchadas estrugiu no portão da
estalagem. O portão abalou com estrondo e gemeu. – Abre! Abre! reclamavam
de fora. João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo, gritando
a todos: – Não entra a polícia! Não deixa entrar! Agüenta! Agüenta! – Não
entra! Não entra! repercutiu a multidão em coro. E todo o cortiço ferveu que
nem uma panela ao fogo. – Agüenta! Agüenta! Jerônimo foi carregado para o
quarto, a gemer, nos braços da mulher e da mulata. – Agüenta! Agüenta! De
cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais de ferro.
Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa,
como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela primeira
vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava direito!
“Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher!” mas agora
tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar por
alguém ou alguma coisa querida. – Não entra! Não entra! E berros atroadores
respondiam às pranchadas, que lá fora se repetiam ferozes. A polícia era o
grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem,
havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os
urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa.
Era uma questão de ódio velho. E, enquanto os homens guardavam a entrada do
capinzal e sustentavam de costas o portão da frente, as mulheres, em desordem,
rolavam as tinas, arrancavam jiraus, arrastavam carroças, restos de colchões
e sacos de cal, formando às pressas uma barricada. As pranchadas multiplicavam-se.
O portão rangia, estalava, começava a abrir-se; ia ceder. Mas a barricada
estava feita e todos entrincheirados atrás dela. Os que entravam de fora por
curiosidade não puderam sair e viam-se metidos no surumbamba. As cercas das
hortas voaram A Machona terrível fungara as saias e empunhava na mão o seu
ferro de engomar. A das Dores, que ninguém dava nada por ela, era uma das
mais duras e que parecia mais empenhada na defesa. Afinal o portão lascou;
um grande rombo abriu-se logo; caíram tábuas; e os quatro primeiros urbanos
que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se
outros. Havia uns vinte. Um saco de cal, despejado sobre eles, desnorteou-os.
Principiou então o salseiro grosso. Os sabres não podiam alcançar ninguém
por entre a trincheira; ao passo que os projetis, arremessados lá de dentro,
desbaratavam o inimigo. Já o sargento tinha a cabeça partida e duas praças
abandonavam o campo, à falta de ar. Era impossível invadir aquele baluarte
com tão poucos elementos, mas a polícia teimava, não mais por obrigação que
por necessidade pessoal de desforço. Semelhante resistência os humilhava.
Se tivessem espingardas fariam fogo. O único deles que conseguiu trepar à
barricada rolou de lá abaixo sob uma carga de pau que teve de ser carregado
para a rua pelos companheiros. O Bruno, todo sujo de sangue, estava agora
armado de um refle e o Porfiro, mestre na capoeiragem, tinha na cabeça uma
barretina de urbano. – Fora os morcegos! – Fora! Fora! E, a cada exclamação,
tome pedra! tome lenha! tome cal! tome fundo de garrafa! Os apitos estridulavam
mais e mais fortes. Nessa ocasião, porém, Nenen gritou, correndo na direção
da barricada.

– Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está saindo fumaça! – Fogo!
A esse grito um pânico geral apoderou-se dos moradores do cortiço. Um incêndio
lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho! Fez-se logo
medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policiais,
aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto, levando na frente
o que encontravam e penetrando enfim no infernal reduto, a dar espadeiradas
para a direita e para a esquerda, como quem destroça uma boiada. A multidão
atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam à prisão; outros cuidavam
em defender a casa. Mas as praças, loucas de cólera, metiam dentro as portas
e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de vingança. Nisto, roncou no
espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um grande pé-d’água
desabou cerrado.

XI

A Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo
e tentou incendiar o cortiço. Enquanto os companheiros o defendiam a unhas
e dentes, ela, com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o número
12 e preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as conseqüências
foram do mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando
como aquela ao fogo, não escaparam à devastação da polícia. Algumas ficaram
completamente assoladas. E a coisa seria ainda mais feia, se não viera o providencial
aguaceiro apagar também o outro incêndio ainda pior, que, de parte a parte,
lavrava nos ânimos. A polícia retirou-se sem levar nenhum preso. “A ir um
iriam todos à estação! Deus te livre! Demais, para quê? o que ela queria fazer,
fez! Estava satisfeita!” Apesar do empenho do João Romão, ninguém conseguiu
descobrir o autor da sinistra tentativa, e só muito tarde cada qual cuidou
de pregar olho, depois de reacomodar, entre plangentes lamentações, o que
se salvou do destroço. O tempo levantou de novo à meia-noite. Ao romper da
aurora já muita gente estava de pé e o vendeiro passava uma revista minuciosa
no pátio, avaliando e carpindo, inconsolável e furioso, o seu prejuízo. De
vez em quando soltava uma praga. Além do que escangalharam os urbanos dentro
das casas, havia muita tina partida, muito jirau quebrado, lampiões em fanicos,
hortas e cercas arrasadas; o portão da frente e a tabuleta foram reduzidos
a lenha. João Romão meditava, para cobrir o dano, carregar um imposto sobre
os moradores da estalagem, aumentando-lhes o aluguel dos cômodos e o preço
dos gêneros. Viu-se numa dobadoura durante o dia inteiro; desde pela manhã
dera logo as providências para que tudo voltasse aos seus eixos o mais depressa
possível: mandou buscar novas tinas; fabricar novos jiraus e consertar os
quebrados; pôs gente a remendar o portão e a tabuleta. Ao meio-dia teve de
comparecer à presença do subdelegado na secretaria da polícia. Foi mesmo em
mangas de camisa e sem meias; muitos do cortiço o acompanharam, quer por espírito
de camaradagem, quer por simples curiosidade.

Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! Parecia uma romaria; algumas
mulheres levaram os seus pequenitos ao colo; um magote de italianos ia à frente,
macarroneando, a fumar cachimbo; alguns cantavam. Ninguém tomou bonde; e por
toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, comentando com gargalhadas
e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção das ruas por onde
desfilava a ruidosa farândola. A sala da polícia encheu-se.

O interrogatório, exclusivamente dirigido a João Romão, era respondido por
todos a um só tempo, a despeito dos protestos e das ameaças da autoridade,
que se viu tonta. Nenhum deles nada esclarecia e todos se queixavam da polícia,
exagerando as perdas recebidas na véspera. A respeito de como se travara o
conflito e quem o provocara, o taverneiro declarou que nada podia saber ao
certo, porque na ocasião se achava ausente da estalagem. De que tinha certeza
era de que as praças lhe invadiram a propriedade e puseram em cacos tudo o
que encontraram, como se aquilo lá fosse roupa de francês! – Bem feito! bradou
o subdelegado. Não resistissem! Um coro de respostas assanhadas levantou-se
para justificar a resistência. “Ah! Estavam mais que fartos de ver o que pintavam
os morcegos, quando lhes não saia alguém pela frente! Esbodegavam até à última,
só pelo gostinho de fazer mal! Pois então uma criatura, porque estava a divertir-se
um bocado com os amigos, havia de ser aperreada que nem boi ladrão?… Tinha
lá jeito? Os rolos era sempre a polícia quem os levantava com as suas fúrias!
Não se metesse ela na vida de quem vivia sossegado no seu canto, e não seria
tanto barulho!…” Como de costume, o espírito de coletividade, que unia aquela
gente em circulo de ferro, impediu que transpirasse o menor vislumbre de denúncia.
O

subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a um por um, despachou o bando,
que fez logo a sua retirada, no meio de uma alacridade mais quente ainda que
a da ida. Lá no cortiço, de portas adentro, podiam esfaquear-se à vontade,
que nenhum deles, e muito menos a vitima, seria capaz de apontar o criminoso;
tanto que o médico, que, logo depois da invasão da polícia, desceu da casa
do Miranda à estalagem, para socorrer Jerônimo, não conseguiu arrancar deste
o menor esclarecimento sobre o motivo da navalhada. “Não fora nada!… Não
fora de propósito!… Estavam a brincar e sucedera aquilo!… Ninguém tivera
a menor intenção de fazer-lhe mossa!…” Rita mostrou-se de uma incansável
solicitude para com o ferido. Foi ela quem correu a buscar os remédios, quem
serviu de ajudante ao medico e quem serviu de enfermeira ao doente. Muitos
lá iam, demorando-se um instante, para dar fé; ela, porém, desde que Jerônimo
se achou operado, não lhe abandonou a cabeceira; ao passo que Piedade, aflita
e atarantada, não fazia senão chorar e arreliar-se. A mulata, essa não chorava;
mas a sua fisionomia tinha uma profunda expressão de mágoa enternecida. Agora
toda ela se sentia apegar-se àquele homem bom e forte; àquele gigante inofensivo,
àquele Hércules tranqüilo que mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na
sua boa-fé, se deixara navalhar pelo facínora. “E tudo por causa dela! só
por ela!” Seu coração de mulher rendia-se cativo a semelhante dedicação ensangüentada
e dolorosa. E ele, o mísero, interrompia as contrações do rosto para sorrir
defronte dos olhos enamorados da baiana, feliz naquela desgraça que lhe permitia
gozar dos seus carinhos. E tomava-lhe as mãos, e cingia-lhe a cintura, resignado
e comovido, sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor
silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente.
Rita afagava-o, já sem a menor sombra de escrúpulo, tratando-o por tu, ameigando-lhe
os cabelos sujos de sangue com a polpa macia da sua mão feminil. E ali mesmo
em presença da mulher, dele, só faltava beijá-lo com a boca, que com os olhos
o devorava de beijos ardentes e sequiosos. Depois da meia-noite dada, ela
e Piedade ficaram sozinhas velando o enfermo. Deliberou-se que este iria pela
manhã para a Ordem de Santo Antônio, de que era irmão. E, com efeito, no dia
imediato, enquanto o vendeiro e seu bando andavam lá às voltas com a polícia,
e o resto do cortiço formigava, tagarelando em volta do conserto das tinas
e jiraus, Jerônimo, ao lado da mulher e da Rita, seguia dentro de um carro
para o hospital. As duas só voltaram de lá à noite, caindo de fadiga. De resto,
toda a estalagem estava igualmente prostrada e morrendo pela cama, se bem
que nesse dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho; as que tinham roupa
com mais pressa foram lavar fora ou arrastaram bacias de banho para debaixo
das bicas, à falta de melhor vasilha para o serviço. Discutiu-se a campanha
da véspera sem variar o assunto. Aqui era um que lembrava as suas proezas
com os urbanos, descrevendo entusiasmado os pormenores da luta; ali, outro
repetia, cheio de empáfia, os desaforos que dissera depois nas bochechas da
autoridade; mais adiante trocavam-se queixas e recriminações; cada qual, mulheres
e homens, sofrera o seu prejuízo. ou a sua arranhadura, e mostravam entre
si, numa febre de indignação, os objetos partidos ou a parte do corpo escoriada.
Mas às nove da noite já não havia viva alma no pátio da estalagem. A venda
fechou-se um pouco mais cedo que de costume. Bertoleza atirou-se ao colchão,
estrompada; João Romão recolheu-se junto dela, porem não conseguiu dormir;
sentia calafrios e pontadas na cabeça. Chamou pela amiga, a gemer, e pediu-lhe
que lhe desse alguma coisa para suar. Supunha estar com febre. A crioula só
descansou quando, muitas horas adiante, depois de mudar-lhe a roupa, o viu
pegar no sono; e daí a pouco, às quatro da madrugada, erguia-se ela, com estalos
de juntas, a bocejar, fungando no seu estremunhamento pesadão, e pigarreando
forte. Acordou o caixeiro para ir ao mercado; gargarejou um pouco d’água
à torneira da cozinha e foi fazer fogo para o café dos trabalhadores, riscando
fósforos e acendendo cavacos num fogareiro, donde começaram a borbotar grossos
novelos de fumo espesso. Lá fora clareava já, e a vida renascia no cortiço.
A luta de todos os dias continuava, como se não houvera interrupção. Principiava
o burburinho. Aquela noite bem dormida punha-os a todos de bom humor. Pombinha,
entretanto, nessa manhã acordara abatida e nervosa, sem animo de sair dos
lençóis. Pediu café à mãe, bebeu, e tornou a abraçar-se nos travesseiros,
escondendo o rosto. – Não te sentes melhor hoje, minha filha?… perguntou-lhe
Dona Isabel, apalpando-lhe a testa. Febre não tens. – Ainda sinto o corpo
mole… mas não é nada… isto passa!… – Foi de tanto gelo, que tomaste
em casa de madama!… Não te dizia?… Agora, o melhor é dar-te um escalda-pés!…
– Não, não, por amor de Deus! Daqui a pouco estou em pé! Às oito horas, com
efeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o alinho da cabeça, defronte
do seu modesto lavatório de ferro. Dir-se-ia sem forças para a menor coisa;
toda ela transpirava uma contemplativa melancolia de convalescente; havia
uma doce expressão dolorosa na limpidez cristalina de seus olhos de moça enferma;
um pobre

sorriso pálido a entreabrir-lhe as pétalas da boca, sem lhe alegrar os lábios,
que pareciam ressequidos à mingua de beijos de amor; assim delicada planta
murcha, languesce e morre, se carinhosa borboleta não vai sacudir sobre ela
as asas prenhes de fecundo e dourado pólen. O passeio à casa de Léonie fizera-lhe
muito mal. Trouxe de lá impressões de íntimos vexames, que nunca mais se apagariam
por toda a sua vida. A cocote recebeu-a de braços abertos, radiante com apanhá-la
junto de si, naqueles divãs fofos e traidores, entre todo aquele luxo extravagante
e requintado próprio para os vícios grandes. Ordenou à criada que não deixasse
entrar ninguém, ninguém, nem mesmo o Bebê, e assentou-se ao lado da menina,
bem juntinho uma da outra, tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade
de perguntas, e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados.
Dona Isabel suspirava também, mas de outro modo; na sua parva compreensão
do conforto, aqueles impertinentes espelhos, aqueles móveis casquilhos e aquelas
cortinas escandalosas arrancavam-lhe saudosas recordações do bom tempo e avivavam
a sua impaciência por melhor futuro. Ai! assim Deus quisesse ajudá-la!…
Às duas da tarde, Léonie, por sua própria mão serviu às visitas um pequeno
lanche de foie-gras, presunto e queijo, acompanhado de champanha, gelo e água
de Seltz, e, sem se descuidar um instante da rapariga, tinha para ela extremas
solicitudes de namorado; levava-lhe a comida à boca, bebia do seu copo, apertava-lhe
os dedos por debaixo da mesa.

Depois da refeição, Dona Isabel, que não estava habituada a tomar vinho,
sentiu vontade de descansar o corpo; Léonie franqueou-lhe um bom quarto, com
boa cama, e, mal percebeu que a velha dormia, fechou a porta pelo lado de
fora, para melhor ficar em liberdade com a pequena. Bem! Agora estavam perfeitamente
a sós! – Vem cá, minha flor!… disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se
cair sobre um divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!… Estou louca por ti!
E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a menina,
enchendo-a de espanto e de um instintivo temor, cuja origem a pobrezinha,
na sua simplicidade, não podia saber qual era. A cocote percebeu o seu enleio
e ergueu-se, sem largar-lhe a mão. – Descansemos nós também um pouco… propôs,
arrastando-a para a alcova. Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo
da cama e, toda perplexa, com vontade de afastar-se, mas sem animo de protestar,
por acanhamento, tentou reatar o fio da conversa, que elas sustentavam um
pouco antes, à mesa, em presença de Dona Isabel. Léonie fingia prestar-lhe
atenção e nada mais fazia do que afagar-lhe a cintura, as coxas e o colo.
Depois, como que distraidamente, começou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.
– Não! Para quê!… Não quero despir-me… – Mas faz tanto calor… Põe-te
a gosto… – Estou bem assim. Não quero! – Que tolice a tua…! Não vês que
sou mulher, tolinha?… De que tens medo?… Olha! Vou dar exemplo! E, num
relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha. A menina, vendo-se
descomposta, cruzou os braços sobre o seio, vermelha de pudor. – Deixa! segredou-lhe
a outra, com os olhos envesgados, a pupila trêmula. E, apesar dos protestos,
das súplicas e até das lágrimas da infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta,
e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com
os lábios o róseo bico do peito. – Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava
Pombinha estorcendo-se em cócegas, e deixando ver preciosidades de nudez fresca
e virginal, que enlouqueciam a prostituta. – Que mal faz?… Estamos brincando…
– Não! Não! balbuciou a vitima, repelindo-a. – Sim! Sim! insistiu Léonie,
fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo em contacto com
o dela todo o seu corpo nu. Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas
duas grossas pomas irrequietas sobre seu mesquinho peito de donzela impúbere
e o rogar vertiginoso daqueles cabelos ásperos e crespos nas estações mais
sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do sangue,
desertando-lhe a razão ao rebate dos sentidos.

Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações
de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxúria, irracional,
feroz, revoluteava, em corcovos de égua, bufando e relinchando. E metia-lhe
a língua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os olhos debaixo dos
seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos ombros, e agarrava-lhe
convulsivamente o cabelo, como se quisesse arrancá-lo aos punhados. Até que,
com um assomo mais forte, devorou-a num abraço de todo o corpo, ganindo ligeiros
gritos, secos, curtos, muito agudos, e afinal desabou para o lado, exânime,
inerte, os membros atirados num abandono de bêbedo, soltando de instante a
instante um soluço estrangulado. A menina voltara a si e torcera-se logo em
sentido contrário à adversária, cingindo-se rente aos travesseiros e abafando
o seu pranto, envergonhada e corrida. A impudica, mal orientada ainda e sem
conseguir abrir os olhos, procurou animá-la, ameigando-lhe a nuca e as espáduas.
Mas Pombinha parecia inconsolável, e a outra teve de erguer-se a meio e puxá-la
como uma criança para o seu colo, onde ela foi ocultando o rosto, a soluçar
baixinho. – Não chores assim, meu amor!… Pombinha continuou a soluçar. –
Vamos! Não quero ver-te deste modo!… Estás zangada comigo?… – Não volto
mais aqui! nunca mais! exclamou por fim a donzela, desgalgando o leito para
vestir-se. – Vem cá! Não sejas ruim! Ficarei muito triste se estiveres mal
com a tua negrinha!… Anda! Não me feches a cara!… – Deixe-me! – Vem cá,
Pombinha! – Não vou! Já disse! E vestia-se com movimentos de raiva. Léonie
saltara para junto dela e pôs-se a beijar-lhe, à força. os ouvidos e o pescoço,
fazendo se muito humilde, adulando-a, comprometendo-se a ser sua escrava,
e obedecer-lhe como um cachorrinho, contanto que aquela tirana não se fosse
assim zangada. – Faço tudo! tudo! mas não fiques mel comigo! Ah! se soubesse
como eu te adoro!… – Não sei! Largue-me!… – Espera!

– Que amolação! Oh!

– Deixa de tolice!… Escuta, por amor de Deus!

Pombinha acabava de encasar o último botão do corpinho, e repuxava o pescoço
e sacudia os braços, ajustando bem a sua roupa ao corpo. Mas Léonie caíra-lhe
aos pés, enleando-a pelas pernas e beijando-lhe as saias. – Olha!… Ouve!…
– Deixa-me sair! – Não! não hás de ir zangada, ou faço aqui um escândalo dos
diabos! – E que mamãe já acordou com certeza!… – Que acordasse! Agora a
meretriz defendia a porta da alcova. – Oh! meu Deus! Deixe-me sair! – Não
deixo, sem fazermos as pazes… – Que aborrecimento! – Dá-me um beijo! – Não
dou! – Pois então não sais! – Eu grito! – Pois grita! Que me importa! – Arrede-se
daí, por favor!… – Faz as pazes… – Não estou zangada, creia! Estou é indisposta…
Não me sinto boa!

– Mas eu faço questão do beijo! – Pois bem! Está ai! E beijou-a. – Não quero
assim! Foi dado de má vontade!… Pombinha deu-lhe outro. – Ah! Agora bem!
Espera um nada! Deixa arranjar-me! É um instante! Em três tempos, lavou-se
ligeiramente no bidê, endireitou o penteado defronte do espelho, num movimento
rápido de dedos, e empoou-se, perfumou-se, e enfiou camisa, anágua e penteador,
tudo com uma expedição de quem está habituada a vestir-se muitas vezes por
dia. E, pronta, correu uma vista de olhos pela menina, desenrugou-lhe a saia,
consertou-lhe melhor os cabelos e, readquirindo o seu ar tranqüilo de mulher
ajuizada, tomou-a pela cintura e levou-a vagarosamente até à sala de jantar,
para tomarem vermute com gasosa. O jantar foi às seis e meia. Correu frio,
não tanto por parte de Pombinha, que aliás se mostrava bem incomodada, como
porque Dona Isabel, dormindo até o momento de a chamarem para mesa, sentia-se
aziada com o foie-gras. A dona da casa, todavia, não se forrou a desvelos
e fez por alegrá-las rindo e contando anedotas burlescas. Ao café apareceu
Juju, que a criada levara a passear desde logo depois do almoço, e uma afetação
de agrados levantou-se em torno da pequerrucha. Léonie pôs-se a conversar
com ela, falando como criança, dizendo-lhe que mostrasse a Dona Isabel “o
seu papatinho novo!”

Mais tarde, no terraço, enquanto fumava um cigarro, tomou a mão de Pombinha
e meteu-lhe no dedo um anel com um diamante cercado de pérolas. A menina recusou
o mimo, formalmente. Foi preciso a intervenção da velha para que ela consentisse
em aceitá-lo.

Às oito horas retiraram-se as visitas, seguindo direitinho para a estalagem.
Durante toda a viagem Pombinha parecia preocupada e triste.

– Que tens tu?… perguntou-lhe a mãe duas vezes.

E de ambas a filha respondeu:

– Nada! Aborrecimento…

No pouco que dormiu essa noite, que foi a do baralho com a polícia, teve
sonhos agitados e passou mal todo o dia seguinte, com molezas de febre e dores
no útero. Não arredou pé de casa, nem para ver os destroços do conflito. A
noticia do defloramento e da fuga de Florinda, como a da loucura da velha
Marciana, produziu-lhe grande abalo nos nervos.

Na manhã imediata, a despeito de fazer-se forte, torceu o nariz ao pobre
almoço que Dona Isabel lhe apresentou carinhosa. Persistiam-lhe as dores uterinas,
não vivas, mas constantes. Não teve animo de pegar na costura, e um livro
que ela tentou ler, foi por várias vezes repelido.

As onze para o meio-dia era tal o seu constrangimento e era tal o seu desassossego
entre as apertadas paredes do número 15, que, malgrado os protestos da velha,
saiu a dar uma volta por detrás do cortiço, à sombra dos bambus e das mangueiras.

Uma irresistível necessidade de estar só, completamente só, uma aflição de
conversar consigo mesma, a apartava no seu estreito quarto sufocante, tão
tristonho e tão pouco amigo. Pungia-lhe na brancura da alma virgem um arrependimento
incisivo e negro das torpezas da antevéspera; mas, lubrificada por essa recordação,
toda a sua carne ria e rejubilava-se, pressentindo delicias que lhe pareciam
reservadas para mais tarde, junto de um homem amado, dentro dela balbuciavam
desejos, até ai mudos e adormecidos; e mistérios desvendavam-se no segredo
do seu corpo, enchendo-a de surpresa e mergulhando-a em fundas concentrações
de êxtase. Um inefável quebranto afrouxava-lhe a energia e distendia-lhe os
músculos com uma embriaguez de flores traiçoeiras.

Não pôde resistir: assentou-se debaixo das árvores, um cotovelo em terra,
a cabeça reclinada contra a palma da mão.

Na doce tranqüilidade daquela sombra morna, ouvia-se retinir distante a picareta
dos homens da pedreira e o martelo dos ferreiros na forja. E o canto dos trabalhadores
ora mais claro, ora mais duvidoso, acompanhando o marulhar dos ventos, ondeava
no espaço, melancólico e sentido, como um coro religioso de penitentes. O
calor tirava do capim um cheiro sensual. A moça fechou as pálpebras, vencida
pelo seu delicioso entorpecimento, e estendeu-se de todo no chão, de barriga
para o ar, braços e pernas abertas. Adormeceu.

Começou logo a sonhar que em redor ia tudo se fazendo de um cor-de-rosa,
a princípio muito leve e transparente, depois mais carregado, e mais, e mais,
até formar-se em torno dela uma floresta vermelha, cor de sangue, onde largos
tinhorões rubros se agitavam lentamente. E viu-se nua, toda nua, exposta ao
céu, sob a tépida luz de um sol embriagador, que lhe batia de chapa sobre
os seios. Mas, pouco a pouco, seus olhos, posto que bem abertos, nada mais
enxergavam do que uma grande claridade palpitante, onde o sol, feito de uma
só mancha reluzente, oscilava como um pêndulo fantástico. Entretanto, notava
que, em volta da sua nudez alourada pela luz, iam-se formando ondulantes camadas
sangüíneas, que se agitavam, desprendendo aromas de flor. E, rodando o olhar,
percebeu, cheia de encantos, que se achava deitada entre pétalas gigantescas,
no regaço de uma rosa interminável, em que seu corpo se atufava como em ninho
de veludo carmesim, bordado de ouro, fofo, macio, trescalante e morno. E suspirando,
espreguiçou-se toda num enleio de volúpia ascética. Lá do alto o sol a fitava
obstinadamente, enamorado das suas mimosas formas de menina. Ela sorriu para
ele, requebrando os olhos, e então o fogoso astro tremeu e agitou-se, e, desdobrando-se,
abriu-se de par em par em duas asas e principiou a fremir, atraído e perplexo.
Mas de repente, nem que se de improviso lhe inflamassem os desejos, precipitou-se
lá de cima agitando as asas, e veio, enorme borboleta de fogo, adejar luxuriosamente
em torno da imensa rosa, em cujo regaço a virgem permanecia com os peitos
franqueados. E a donzela, sempre que a borboleta se aproximava da rosa, sentia-se
penetrar de um calor estranho, que lhe acendia, gota a gota, todo o seu sangue
de moça. E a borboleta, sem parar nunca, doidejava em todas as direções ora
fugindo rápida, ora se chegando lentamente, medrosa de tocar com as suas antenas
de brasa a pele delicada e pura da menina. Esta, delirante de desejos, ardia
por ser alcançada e empinava o colo. Mas a borboleta fugia. Uma sofreguidão
lúbrica, desensofrida, apoderou-se da moça; queria a todo custo que a borboleta
pousasse nela, ao menos um instante, um só instante, e a fechasse num rápido
abraço dentro das suas asas ardentes. Mas a borboleta, sempre doida, não conseguia
deter-se; mal se adiantava, fugia logo, irrequieta, desvairada de volúpia.
– Vem! Vem! suplicava a donzela, apresentando o corpo. Pousa um instante em
mim! Queima-me a carne no calor das tuas asas! E a rosa, que tinha ao colo,
é que parecia falar e não ela. De cada vez que a borboleta se avizinhava com
as suas negaças, a flor arregaçava-se toda, dilatando as pétalas, abrindo
o seu pistilo vermelho e ávido daquele contato com a luz. – Não fujas! Não
fujas! Pousa um instante! A borboleta não pousou; mas, num delírio, convulsa
de amor, sacudiu as asas com mais ímpeto e uma nuvem de poeira dourada desprendeu-se
sobre a rosa, fazendo a donzela soltar gemidos e suspiros, tonta de gosto
sob aquele eflúvio luminoso e fecundante. Nisto, Pombinha soltou um ai formidável
e despertou sobressaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E
feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da
puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e quente. A
natureza sorriu-se comovida. Um sino, ao longe, batia alegre as doze badaladas
do meio-dia. O sol, vitorioso, estava a pino e, por entre a copagem negra
da mangueira, um dos seus raios descia em fio de ouro sobre o ventre da rapariga,
abençoando a nova mulher que se formava para o mundo.

XII

Pombinha ergueu-se de um pulo e abriu de carreira para casa.

No lugar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de pontos vermelhos.
A mãe lavava à tina, ela chamou-a com instância, enfiando cheia de alvoroço
pelo número 15. E ai, sem uma palavra, ergueu as saias do vestido e expôs
a Dona Isabel as suas fraldas ensangüentadas. – Veio?! perguntou a velha com
um grito arrancado do fundo d’alma. A rapariga meneou a cabeça afirmativamente,
sorrindo feliz e enrubescida. As lágrimas saltaram dos olhos da lavadeira.
– Bendito e louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! exclamou ela, caindo de
joelhos defronte da menina e erguendo para Deus o rosto e as mãos trêmulas.
Depois abraçou-se às pernas da filha e, no arrebatamento de sua comoção, beijou-lhe
repetidas vezes a barriga e parecia querer beijar também aquele sangue abençoado,
que lhes abria os horizontes da vida, que lhes garantia o futuro; aquele sangue
bom, que descia do céu, como a chuva benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada
pela seca. Não se pôde conter: enquanto Pombinha mudava de roupa, saiu ela
ao pátio, apregoando aos quatro ventos a linda noticia. E, se não fora a formal
oposição da menina, teria passeado em triunfo a camisa ensangüentada, para
que todos a vissem bem e para que todos a adorassem, entre hinos de amor,
que nem a uma verônica sagrada de um Cristo.

– Minha filha é mulher! Minha filha é mulher! O fato abalou o coração do
cortiço, as duas receberam parabéns e felicitações. Dona Isabel acendeu velas
de cera à frente do seu oratório, e nesse dia não pegou mais no trabalho,
ficou estonteada, sem saber o que fazia, a entrar e a sair de casa, radiante
de ventura. De cada vez que passava junto da filha dava-lhe um beijo na cabeça
e em segredo recomendava-lhe todo o cuidado. “Que não apanhasse umidade! que
não bebesse coisas frias! que se agasalhasse o melhor possível: e, no caso
de sentir o corpo mole, que se metesse logo na cama! Qualquer imprudência
poderia ser fatal!…” O seu empenho era pôr o João da Costa, no mesmo instante,
ao corrente da grande novidade e pedir-lhe que marcasse logo o dia do casamento;
a menina entendia que não, que era feio, mas a mãe arranjou um portador e
mandou chamar o rapaz com urgência. Ele apareceu à tarde. A velha convidara
gente para jantar; matou duas galinhas, comprou garrafas de vinho, e, à noite,
serviu, às nove horas, um chá com biscoitos. Nenen e a das Dores apresentaram-se
em trajos de festa; fez-se muita cerimônia; conversou-se em voz baixa, formando
todos em volta de Pombinha uma solicita cadeia de agrados, uma respeitosa
preocupação de bons desejos, a que ela respondia sorrindo comovida, como que
exalando da frescura da sua virgindade um vitorioso aroma de flor que desabrocha.
E a partir desse dia Dona Isabel mudou completamente. As suas rugas alegraram-se;
ouviam-na cantarolar pela manhã, enquanto varria a casa e espanava os móveis.
Não obstante, depois do tremendo conflito que acabou em navalhada, uma tristeza
ia minando uma grande parte da estalagem. Já se não faziam as quentes noitadas
de violão e dança ao relento. A Rita andava aborrecida e concentrada, desde
que Jerônimo partiu para a Ordem; Firmo fora intimado pelo vendeiro a que
lhe não pusesse, nunca mais, os pés em casa, sob pena de ser entregue à polícia;
Piedade, que vivia a dar ais, carpindo a ausência do. marido, ainda ficou
mais consumida com a primeira visita que lhe fez ao hospital; encontrou-o
frio e sem uma palavra de ternura para ela, deixando até perceber a sua impaciência
para ouvir falar da outra, daquela maldita mulata dos diabos, que, no fim
de contas, era a única culpada de tudo aquilo e havia de ser a sua perdição
e mais do seu homem! Quando voltou de lá atirou-se à cama, a soluçar sem alívio,
e nessa noite não pôde pregar olho, senão já pela madrugada. Um negro desgosto
comia-a por dentro, como tubérculos de tísica, e tirava-lhe a vontade para
tudo que não fosse chorar. Outro que também, coitado! arrastava a vida muito
triste, era o Bruno. A mulher, que a principio não lhe fizera grande falta,
agora o torturava com a sua distancia; um mês depois da separação, o desgraçado
já não podia esconder o seu sofrimento e ralava-se de saudades. A Bruxa, a
pedido dele, tirou a sorte nas cartas e disse-lhe misteriosamente que Leocádia
ainda o amava. Só Dona Isabel e a filha andavam deveras satisfeitas. Essas
sim! nunca tinham tido uma época tão boa e tão esperançosa. Pombinha abandonara
o curso de dança; o noivo ia agora visitá-la, invariavelmente, todas as noites;
chegava sempre às sete horas e demorava-se até às dez; davam-lhe café numa
xícara especial, de porcelana; às vezes jogavam a bisca, e ele mandava buscar,
de sua algibeira, uma garrafa de cerveja alemã, e ficavam a conversar os três,
cada qual defronte do seu copo, a respeito dos projetos de felicidade comum;
outras vezes o Costa, sempre muito respeitador, muito bom rapaz, acendia o
seu charuto da Bahia e deixava-se cair numa pasmaceira, a olhar para a moça,
todo embebido nela. Pombinha punha alegrias naqueles serões com as suas garrulices
de pomba que prepara o ninho. Depois do seu idílio com o sol fazia-se muito
amiga da existência, sorvendo a vida em haustos largos, como quem acaba de
sair de uma prisão e saboreia o ar livre. Volvia-se carnuda e cheia, sazonava
que nem uma fruta que nos

provoca o apetite de morder. Dona Isabel, ao lado deles, toscanejava do meio
para o fim da visita, traçando cruzes na boca e afugentando os bocejos com
voluptuosas pitadas da sua insigne tabaqueira. Fixado o dia do casamento,
o assunto inalterável da conversa era o enxoval da noiva e a casinha que o
Costa preparava para a lua-de-mel. Iriam todos três morar juntos; teriam cozinheiro
e uma criada que lavasse e engomasse. O rapaz trouxera peças de linho e de
algodão, e ali, à luz amarela do velho candeeiro de querosene, enquanto a
mãe talhava camisas e lençóis, a filha cosia valentemente numa máquina que
lhe oferecera o noivo. Uma vez, eram duas da tarde, ela pregava rendas numa
fronha de almofada, quando o Bruno, cheio de hesitações, a coçar os cabelos
da nuca, pálido e mal asseado, disse-lhe, encostando-se à ombreira da porta:
– Ora, Nhã Pombinha… tinha-lhe um servicinho a pedir… mas vosmecezinha
anda agora tão tomada com o seu enxoval e não há de querer dar-se a maços…
– Que queres tu, Bruno? – N’é nada, é que precisava que vosmecezinha
me fizesse uma carta p’raquele diabo… mas já se vê que não tem cabimento…
Fica pr’ao depois! – Uma carta para tua mulher, não é? – Coitada! É
mais doida do que ruim! Pois se a gente até dos brutos tem pena!… – Pois
estás servido. Queres para já? – Não vale estorvar! Continue seu servicinho!
Eu volto pr’outra vez!… – Não! anda cá, entra! O que se tem de fazer,
faz-se logo! – Deus lhe pague! Vosmecezinha é mesmo um anjo! Não sei a quem
se chegue a gente ao depois que já lhe não tivermos cá!… E continuou a louvar
a bondade da rapariga, enquanto esta, toda serviçal, preparava numa mesinha
redonda os seus apetrechos de escrita. – Vamos lá, Bruno! que queres tu mandar
dizer à Leocádia? – Diga-lhe, antes de mais nada, que aquilo que quebrei dela,
que dou outro! Que ela fez mal em quebrar também o que era meu, mas que fecho
os olhos! Águas passadas não movem moinho! Que sei que ela agora está desempregada
e aos paus; que está a dever para mais de mês na estalagem; mas que não precisa
dar cabeçadas: que me mande cá o senhorio, que me entendo com ele. Que acho
bom que ela deixe a casa da crioula onde come, porque a mulher já se queixou
e já disse, a quem quis ouvir, que aquilo lá não era ponto de vadios e mulheres
de má vida! Que ela, se tivesse um pouco de tino, nem precisava estar às migalhas
dos outros, que eu na forja fazia para a trazer de barriga cheia e mais aos
filhos que Deus mandasse… – Principiava a tomar calor. – Que a culpada de
tudo isto é só ela e mais ninguém! tivesse um bocado de juízo e não precisava
envergonhar a cara por ai… – Isso já está dito, Bruno! – Pois arrame-lhe
outra vez a ver se ela toma brio! – E que mais? – Que lhe não quero mal, nem
lhe rogo pragas, mas que é bem feito que ela amargue um pouco do pão do diabo,
pra ficar sabendo que uma mulher direita não deve olhar se não pra seu marido;
e que, se ela não fosse tão maluca… – Já aí vai você repetir inda uma vez
a mesma cantiga!… – Mas diga-lhe sempre, tenha paciência, Nhã Pombinha!…
Que ainda estaria aqui, comigo, como dantes, sem agüentar repelões de estranhos!…
– Adiante, Bruno! – Diga-lhe… E interrompeu-se. Ora, que mais ele tinha
a dizer?… Coçou a cabeça. – Veja, Bruno, você é quem sabe o que precisa
escrever a sua mulher… – Diga-lhe… Não se animava. – Que…

– Diga-lhe… Não! não lhe diga mais nada!… – Posso então fechar a carta?…
– Está bom… resmungou o ferreiro, decidindo-se. Vá lá! Diga-lhe que… –
Que… Houve um silêncio, no qual o desgraçado parecia arrancar de dentro
uma frase que, no entanto, era a única idéia que o levava a dirigir-se à mulher.
Afinal, depois de coçar mais vivamente a cabeça, gaguejou com a voz estrangulada
de soluços: – Diga-lhe que… se ela quiser tornar pra minha companhia…
que pode vir… Eu esqueço tudo! Pombinha, impressionada pela transformação
da voz dele, levantou o rosto e viu que as lágrimas lhe desfilavam duas a
duas, três a três, pela cara, indo afogar-se-lhe na moita cerdosa das barbas.
E, coisa estranha, ela, que escrevera tantas cartas naquelas mesmas condições;
que tantas vezes presenciara o choro rude de outros muitos trabalhadores do
cortiço, sobressaltava-se agora com os desalentados soluços do ferreiro. Porque,
só depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas suas entranhas ela
sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para essas violentas
misérias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. A sua intelectualidade,
tal como seu corpo, desabrochara inesperadamente, atingindo de súbito, em
pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e surpreendia. Não a comovera
tanto a revolução física Como que naquele instante o mundo inteiro se despia
à sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos das
suas paixões. Agora, encarando as lágrimas do Bruno, ela compreendeu e avaliou
a fraqueza dos homens, a fragilidade desses animais fortes, de músculos valentes,
de patas esmagadoras, mas que se deixavam encabrestar e conduzir humildes
pela soberana e delicada mão da fêmea. Aquela pobre flor de cortiço, escapando
à estupidez do meio em que desabotoou, tinha de ser fatalmente vitima da própria
inteligência. À mingua de educação, seu espírito trabalhou à revelia, e atraiçoou-a,
obrigando-a a tirar da substância caprichosa da sua fantasia de moça ignorante
e viva a explicação de tudo que lhe não ensinaram a ver e sentir. Bruno retirou-se
com a carta. Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tulipou as mãos contra
o rosto, a cismar nos homens. Que estranho poder era esse, que a mulher exercia
sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludibrio,
ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela
lhes fizera?… E surgiu-lhe então uma idéia bem clara da sua própria força
e do seu próprio valor. Sorriu. E no seu sorriso já havia garras. Uma aluvião
de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até ai jaziam esquecidas nos
meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e transparentes. Compreendeu
como era que certos velhos respeitáveis, cujas fotografias Léonie lhe mostrara
no dia que passaram juntas, deixavam-se vilmente cavalgar pela loureira, cativos
e submissos, pagando a escravidão com a honra, os bens, e até com a própria
vida, se a prostituta, depois de os ter esgotado, fechava-lhes o corpo. E
continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo,
vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no
mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo ridículo que, para gozar
um pouco, precisava tirar da sua mesma ilusão a substância do seu gozo; ao
passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranqüilamente desfrutando
o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios que os miseráveis
aceitavam contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos
que os estrangulavam. – Ah! homens! homens!… sussurrou ela de envolta com
um suspiro. E pegou de novo na costura, deixando que o pensamento vadiasse
à solta, enquanto os dedos iam maquinalmente pregando as rendas naquela almofada,
em que a sua cabeça teria de repousar para receber o primeiro beijo genital.
Num só lance de vista, como quem apanha uma esfera entre as pontas de um compasso,
mediu com as antenas da sua perspicácia mulheril toda aquela esterqueira,
onde ela, depois de se arrastar por muito tempo como larva, um belo dia acordou
borboleta à luz do sol. E sentiu diante dos olhos aquela massa informe de
machos e fêmeas, a comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos
outros. E viu o Firmo e o Jerônimo atassalharem-se, como dois cães que disputam
uma cadela da rua; e viu o Miranda, li defronte, subalterno ao lado da esposa
infiel, que se divertia a fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres;
e viu o Domingos, que fora da venda, furtando horas ao sono, depois de um
trabalho de barro, e perdendo o seu emprego e as economias ajuntadas com sacrifício,
para ter um instante de luxúria entre as pernas de uma desgraçadinha irresponsável
e tola; e tornou a ver o Bruno a soluçar pela mulher; e outros ferreiros e
hortelões, e cavouqueiros, e trabalhadores de toda a espécie, um exército
de bestas sensuais, cujos segredos ela possuía, cujas íntimas correspondências
escrevera dia a dia, cujos corações conhecia como as palmas das mãos,

porque a sua escrivaninha era um pequeno confessionário, onde toda a salsugem
e todas as fezes daquela praia de despejo foram arremessadas espumantes de
dor e aljofradas de lágrimas.

E na sua alma enfermiça e aleijada, no seu espírito rebelde de flor mimosa
e peregrina criada num monturo, violeta infeliz, que um estrume forte demais
para ela atrofiara, a moça pressentiu bem claro que nunca daria de si ao marido
que ia ter uma companheira amiga, leal e dedicada; pressentiu que nunca o
respeitaria sinceramente como a um ser superior por quem damos a vida; que
nunca lhe votaria entusiasmo, e por conseguinte nunca lhe teria amor; desse
de que ela se sentia capaz de amar alguém, se na terra houvera homens dignos
disso. Ah! não o amaria decerto, porque o Costa era como os outros, passivo
e resignado, aceitando a existência que lhe impunham as circunstâncias, sem
ideais próprios, sem temeridades de revolta, sem atrevimentos de ambição,
sem vícios trágicos, sem capacidade para grandes crimes; era mais um animal
que viera ao mundo para propagar a espécie; um pobre-diabo enfim que já a
adorava cegamente e que mais tarde, com ou sem razão, derramaria aquelas mesmas
lágrimas, ridículas e vergonhosas, que ela vira decorrendo em quentes camarinhas
pelas ásperas e maltratadas barbas do marido de Leocádia. E não obstante,
até então, aquele matrimônio era o seu sonho dourado. Pois agora, nas vésperas
de obtê-lo, sentia repugnância em dar-se ao noivo, e, se não fora a mãe, seria
muito capaz de dissolver o ajuste. Mas, daí a uma semana, a estalagem era
toda em rebuliço desde logo pela manhã. Só se falava em casamento; havia em
cada olhar um sangüíneo reflexo de noites nupciais. Desfolharam-se rosas à
porta da Pombinha. Às onze horas parou um carro à entrada do cortiço com uma
senhora gorda, vestida de seda cor de pérola. Era a madrinha que vinha buscar
a noiva para a igreja de São João Batista. A cerimônia estava marcada para
o meio-dia. Toda esta formalidade embatucava os circunstantes, que se alinhavam
imóveis defronte do número 15, com as mãos cruzadas atrás, o rosto paralisado
por uma comoção respeitosa; alguns sorriam enternecidos; quase todos tinham
os olhos ressumbrados d’água. Pombinha surgiu à porta de casa, já pronta
para desferir o grande vôo; de véu e grinalda, toda de branco, vaporosa, linda.
Parecia comovida; despedia-se dos companheiros atirando-lhes beijos com o
seu ramalhete de flores artificiais. Dona Isabel chorava como criança, abraçando
as amigas, uma por uma. – Deus lhe ponha virtude! exclamou a Machona. E que
lhe dê um bom parto, quando vier a primeira barriga. A noiva sorria, de olhos
baixas. Uma fímbria de desdém toldava-lhe a rosada candura de seus lábios.
Encaminhou-se para o portão, cercada pela bênção de toda aquela gente, cujas
lágrimas rebentaram afinal, feliz cada um por vê-la feliz e em caminho da
posição que lhe competia na sociedade. – Não! aquela não nascera para isto!…
sentenciou o Alexandre, retorcendo o reluzente bigode. Seria lástima se a
deixassem ficar aqui! O velho Libório, cascalhando uma risada decrépita, queixou-se
de que o maganão do Costa lhe passara a perna roubando-lhe a namorada. Ingrata!
Ele que estava disposto a fazer uma asneira! Nenen deu uma corrida até à noiva,
na ocasião em que esta chegava à carruagem e, estalando-lhe um beijo na boca,
pediu-lhe com empenho que se não esquecesse de mandar-lhe um botão da sua
grinalda de flores de laranjeira. – Diz que é muito bom para quem deseja casar!…
e eu tenho tanto medo de ficar solteira!… É todo o meu susto!

XIII – XVII

Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma ecoou
por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a desordem
cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, do pau
e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impelia
a todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que
ia ser atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda há pouco emprestavam
armas uns aos outros, limpando com as costas das mãos o sangue das feridas.
Agostinho, encostado ao lampião do meio do cortiço, cantava em altos berros
uma coisa que lhe parecia responder à música bárbara que entoavam lá fora
os inimigos; a mãe dera-lhe licença, a pedido dele, para pôr um cinto de Nenen,
em que o pequeno enfiou a faca da cozinha. Um mulatinho franzino, que até
ai não fora notado por ninguém no São Romão, postou-se defronte da entrada,
de mãos limpas, à espera dos invasores; e todos tiveram confiança nele porque
o ladrão, além de tudo, estava rindo. Os cabeças-de-gato assomaram afinal
ao portão. Uns cem homens, em que se não via a arma que traziam. Porfiro vinha
na frente, a dançar, de braços abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras
para que ninguém lhe estorvasse a entrada. Trazia o chapéu à ré, com um laço
de fita amarela flutuando na copa. – Agüenta! Agüenta! Faz frente! clamavam
de dentro os carapicus. E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram
e aproximaram-se lentamente, a dançar como selvagens. As navalhas traziam-nas
abertas e escondidas na palma da mão. Os carapicus enchiam a metade do cortiço.
Um silêncio arquejado sucedia à estrepitosa vozeria do rolo que findara. Sentia-se
o hausto impaciente da ferocidade que atirava aqueles dois bandos de capoeiras
um contra o outro. E, no entanto, o sol, único causador de tudo aquilo, desaparecia
de todo nos limbos do horizonte, indiferente, deixando atrás de si as melancolias
do crepúsculo, que é a saudade da terra quando ele se ausenta, levando consigo
a alegria da luz e do calor. Lá na janela do Barão, o Botelho, entusiasmado
como sempre por tudo que lhe cheirava a guerra, soltava gritos de aplauso
e dava brados de comando militar. E os cabeças-de-gato aproximavam-se cantando,
a dançar, rastejando alguns de costas para o chão, firmados nos pulsos e nos
calcanhares. Dez carapicus saíram em frente; dez cabeças-de-gato se alinharam
defronte deles. E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém
com método, sob o comando de Porfiro que, sempre a cantar ou assoviar, saltava
em todas as direções, sem nunca ser alcançado por ninguém. Desferiram-se navalhas
contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os voa-pés. Par a par, todos os
capoeiras tinham pela frente um adversário de igual destreza que respondia
a cada investida com um salto de gato ou uma queda repentina que anulava o
golpe. De parte a parte esperavam que o cansaço desequilibrasse as forças,
abrindo furo à vitória; mas um fato veio neutralizar inda uma vez a campanha:
imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das casas do fundo, o número
88. E agora o incêndio era a valer. Houve nas duas maltas um súbito espasmo
de terror. Abaixaram-se os ferros e calou-se o hino de morte. Um clarão tremendo
ensangüentou o ar, que se fechou logo de fumaça fulva. A Bruxa conseguira
afinal realizar o seu sonho de louca: o cortiço ia arder; não haveria meio
de reprimir aquele cruento devorar de labaredas. Os cabeças-de-gato, leais
nas suas justas de partido, abandonaram o campo, sem voltar o rosto, desdenhosos
de aceitar o auxilio de um sinistro e dispostos até a socorrer o inimigo,
se assim fosse preciso. E nenhum dos carapicus os feriu pelas costas. A luta
ficava para outra ocasião. E a cena transformou-se num relance; os mesmos
que barateavam tão facilmente a vida, apressavam-se agora a salvar os miseráveis
bens que possuíam sobre a terra. Fechou-se um entra-e-sai de maribondos defronte
daquelas cem casinhas ameaçadas pelo fogo. Homens e mulheres corriam de cá
para lá com os tarecos ao ombro, numa balbúrdia de doidos. O pátio e a rua
enchiam-se agora de camas velhas e colchões espocados. Ninguém se conhecia
naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas
arrancadas pela dor e pelo desespero. Da casa do Barão saiam clamores apopléticos;
ouviam-se os guinchos de Zulmira que se espolinhava com um ataque. E começou
a aparecer água. Quem a trouxe? Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes
e baldes que se despejavam sobre as chamas. Os sinos da vizinhança começaram
a badalar. E tudo era um clamor. A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como
à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível; nunca fora tão bruxa. O seu
moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua
crina preta, desgrenhada, escorrida e abundante como as das éguas selvagens,
dava-lhe um caráter fantástico de fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria
de

satisfação, sem sentir as queimaduras e as feridas, vitoriosa no meio daquela
orgia de fogo, com que ultimamente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante
de maluca. Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento
da casa incendiada, que abateu rapidamente, sepultando a louca num montão
de brasas. Os sinos continuavam a badalar aflitos. Surgiam aguadeiros com
as suas pipas em carroça, alvoroçados, fazendo cada qual maior empenho em
chegar antes dos outros e apanhar os dez mil-réis da gratificação. A polícia
defendia a passagem ao povo que queria entrar. A rua lá fora estava já atravancada
com o despojo de quase toda a estalagem. E as labaredas iam galopando desembestadas
para a direita e para a esquerda do número 88. Um papagaio, esquecido à parede
de uma das casinhas e preso à gaiola, gritava furioso, como se pedisse socorro.
Dentro de meia hora o cortiço tinha de ficar em cinzas. Mas um fragor de repiques
de campainhas e estridente silvar de válvulas encheu de súbito todo o quarteirão,
anunciando que chegava o corpo dos bombeiros. E logo em seguida apontaram
carros à desfilada, e um bando de demônios de blusa clara, armados uns de
archotes e outros de escadilhas de ferro, apoderaram-se do sinistro, dominando-o
incontinenti, como uma expedição mágica, sem uma palavra, sem hesitações e
sem atropelos. A um só tempo viram-se fartas mangas d’água chicoteando
o fogo por todos os lados; enquanto, sem se saber como, homens, mais ágeis
que macacos, escalavam os telhados abrasados por escadas que mal se distinguiam;
e outros invadiam o coração vermelho do incêndio, a dardejar duchas em torno
de si, rodando, saltando, piruetando, até estrangularem as chamas que se atiravam
ferozes para cima deles, como dentro de um inferno; ao passo que outros, cá
de fora, imperturbáveis, com uma limpeza de máquina moderna, fuzilavam de
água toda a estalagem, número por número, resolvidos a não deixar uma só telha
enxuta. O povo aplaudia-os entusiasmado, já esquecido do desastre e só atenção
para aquele duelo contra o incêndio. Quando um bombeiro, de cima do telhado,
conseguiu sufocar uma ninhada de labaredas, que surgia defronte dele, rebentou
cá debaixo uma roda de palmas, e o herói voltou-se para a multidão, sorrindo
e agradecendo. Algumas mulheres atiravam-lhe beijos, entre brados de ovação.

XVIII

Por esse tempo, o amigo de Bertoleza, notando que o velho Libório, depois
de escapar de morrer na confusão do incêndio, fugia agoniado para o seu esconderijo,
seguiu-o com disfarce e observou que o miserável, mal deu luz à candeia, começou
a tirar ofegante alguma coisa do seu colchão imundo. Eram garrafas. Tirou
a primeira, a segunda, meia dúzia delas. Depois puxou às pressas a coberta
do catre e fez uma trouxa. Ia de novo ganhar a saída, mas soltou um gemido
surdo e caiu no chão sem força, arrevessando uma golfada de sangue e cingindo
contra o peito o misterioso embrulho. João Romão apareceu, e ele, assim que
o viu, redobrou de aflição e torceu-se todo sobre as garrafas, defendendo-as
com o corpo inteiro, a olhar aterrado e de esguelha para o seu interventor,
como se dera cara a cara com um bandido. E, a cada passo que o vendeiro adiantava,
o tremor e o sobressalto do velho recresciam, tirando-lhe da garganta grunhidos
roucos de animal batido e assustado. Duas vezes tentou erguer-se; duas vezes
rolou por terra moribundo. João Romão objurgou-lhe que qualquer demora ali
seria morte certa: o incêndio avançava. Quis ajudá-lo a carregar o fardo.
Libório, por única resposta, arregaçou os beiços, mostrando as gengivas sem
dentes e tentando morder a mão que o vendeiro estendia já sobre as garrafas.
Mas, lá de cima, a ponta de uma língua; de fogo varou o teto e iluminou de
vermelho a miserável pocilga. Libório tentou ainda um esforço supremo, e nada
pôde, começando a tremer da cabeça aos pés, a tremer, a tremer, grudando-se
cada vez mais à sua trouxa, e já estrebuchava, quando o vendeiro lha arrancou
das garras com violência. Também era tempo, porque, depois de insinuar a língua;
o fogo mostrou a boca e escancarou afinal a goela devoradora. O tratante fugiu
de carreira, abraçado à sua presa, enquanto o velho, sem conseguir pôr-se
de pé, rastreava na pista dele, dificultosamente, estrangulado de desespero
senil, já sem fala, rosnando uns vagidos de morte, os olhos turvos, todo ele
roxo, os dedos enriçados como as unhas de abutre ferido. João Romão atravessou
o pátio de carreira e meteu-se na sua toca para esconder o furto. Ao primeiro
exame, de relance, reconheceu logo que era dinheiro em papel o que havia nas
garrafas. Enterrou a trouxa na prateleira de um armário velho cheio de frascos
e voltou lá fora para acompanhar o serviço dos bombeiros. À meia-noite estava
já completamente extinto o fogo e quatro sentinelas rondavam a ruína das trinta
e tantas casinhas que arderam. O vendeiro só pôde voltar à trouxa das garrafas
às cinco horas da manhã, quando Bertoleza, que fizera prodígios contra o incêndio,
passava pelo sono, encostada na cama, com a saia ainda encharcada de água,
o corpo cheio de pequenas queimaduras. Verificou que as garrafas eram oito
e estavam cheias até à boca de notas de todos os valores, que ai foram metidas,
uma a uma, depois de cuidadosamente enroladas e dobradas à moda de bilhetes
de rifa. Receoso, porém, de que a crioula não estivesse bem adormecida e desse
pela coisa, João Romão resolveu adiar para mais tarde a contagem do dinheiro
e guardou o tesouro noutro lugar mais seguro. No dia seguinte a polícia averiguou
os destroços do incêndio e mandou proceder logo ao desentulho, para retirar
os cadáveres que houvesse. Rita desaparecera da estalagem durante a confusão
da noite; Piedade caíra de cama, com um febrão de quarenta graus; a Machona
tinha uma orelha rachada e um pé torcido; a das Dores a cabeça partida; o
Bruno levara uma navalhada na coxa; dois trabalhadores da pedreira estavam
gravemente feridos; um italiano perdera dois dentes da frente, e uma filhinha
da Augusta Carne-Mole morrera esmagada pelo povo. E todos, todos se queixavam
de danos recebidos e revoltaram-se contra os rigores da sorte. O dia passou-se
inteiro na computação dos prejuízos e a dar-se balanço no que se salvara do
incêndio. Sentia-se um fartum aborrecido de estorrilho e cinza molhada. Um
duro silêncio de desconsolo embrutecia aquela pobre gente. Vultos sombrios,
de mãos cruzadas atrás, permaneciam horas esquecidas, a olhar imóveis os esqueletos
carbonizados e ainda úmidos das casinhas queimadas. Os cadáveres da Bruxa
e do Libório foram carregados para o meio do pátio, disformes, horrorosos,
e jaziam entre duas velas acesas, ao relento, à espera do carro da Misericórdia.
Entrava gente da rua para os ver; descobriam-se defronte deles, e alguns curiosos
lançavam piedosamente uma moeda de cobre no prato que, aos pés dos dois defuntos,
recebia a esmola para a mortalha. Em casa de Augusta, sobre uma mesa coberta
por uma cerimoniosa toalha de rendas, estava o cadaverzinho da filha morta,
todo enfeitado de flores, com um Cristo de latão à cabeceira e dois círios
que ardiam tristemente. Alexandre, assentado a um canto da sala, com o rosto
escondido nas mãos, chorava, aguardando o pêsame das visitas; fardara-se,
só para isso, com o seu melhor uniforme, coitado! O enterro da pequenita foi
feito à custa de Léonie, que apareceu às três da tarde, vestida de cetineta
cor de creme, num carrinho dirigido por um cocheiro de calção de flanela branca
e libré agaloada de ouro. O Miranda apresentou-se na estalagem logo pela manhã,
o ar compungido, porém superior. Deu um ligeiro abraço em João Romão, falou-lhe
em voz baixa, lamentando aquela catástrofe, mas felicitou-o porque tudo estava
no seguro. O vendeiro, com efeito, impressionado com a primeira tentativa
de incêndio, tratara de segurar todas as suas propriedades; e, com tamanha
inspiração o fez que, agora, em vez de lhe trazer o fogo prejuízo, até lhe
deixaria lucros.

– Ah, ah, meu caro! Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a doente!…
segredou o dono do cortiço, a rir. Olhe, aqueles é que com certeza não gostaram
da brincadeira! acrescentou, apontando para o lado em que maior era o grupo
dos infelizes que tomavam conta dos restos de seus tarecos atirados em montão.
– Ah, mas esses, que diabo! nada têm que perder!… considerou o outro. E
os dois vizinhos foram até o fim do pátio, conversando em voz baixa. – Vou
reedificar tudo isto! declarou João Romão, com um gesto enérgico que abrangia
toda aquela Babilônia desmantelada. E expôs o seu projeto: tencionava alargar
a estalagem, entrando um pouco pelo capinzal. Levantaria do lado esquerdo,
encostado ao muro do Miranda, um novo correr de casinhas, aproveitando assim
parte do pátio, que não precisava ser tão grande; sobre as outras levantaria
um segundo andar, com uma longa varanda na frente toda gradeada. Negociozinho
para ter ali, a dar dinheiro, em vez de um centena de cômodos, nada menos
de quatrocentos a quinhentos, de doze a vinte e cinco mil-réis cada um! Ah!
ele havia de mostrar como se fazem as coisas bem feitas. O Miranda escutava-o
calado, fitando-o com respeito. – Você é um homem dos diabos! disse afinal,
batendo-lhe no ombro. E, ao sair de lá, no seu coração vulgar de homem que
nunca produziu e levou a vida, como todo o mercador, a explorar a boa-fé de
uns e o trabalho intelectual de outros, trazia uma grande admiração pelo vizinho.
O que ainda lhe restava da primitiva inveja transformou-se nesse instante
num entusiasmo ilimitado e cego. – É um filho da mãe! resmungava ele pela
rua, em caminho do seu armazém. É de muita força! Pena é estar metido com
a peste daquela crioula! Nem sei como um homem tão esperto caiu em semelhante
asneira! Só lá pelas dez e tanto da noite foi que João Romão, depois de certificar-se
de que Bertoleza ferrara num sono de pedra, resolveu dar balanço às garrafas
de Libório. O diabo é que ele também quase que não se agüentava nas pernas
e sentia os olhos a fecharem-se-lhe de cansaço. Mas não podia sossegar sem
saber quanto ao certo apanhara do avarento. Acendeu uma vela, foi buscar a
imunda e preciosa trouxa, e carregou com esta para a casa de pasto ao lado
da cozinha. Depôs tudo sobre uma das mesas, assentou-se, e principiou a tarefa.
Tomou a primeira garrafa, tentou despejá-la, batendo-lhe no fundo; foi-lhe,
porém, necessário extrair as notas, uma por uma, porque estavam muito socadas
e peganhentas de bolor. À proporção que as fisgava, ia logo as desenrolando
e estendendo cuidadosamente em maço, depois de secar-lhes a umidade no calor
das mãos e da vela. E o prazer que ele desfrutava neste serviço punha-lhe
em jogo todos os sentidos e afugentava-lhe o sono e as fadigas. Mas, ao passar
à segunda garrafa, sofreu uma dolorosa decepção: quase todas as cédulas estavam
já prescritas pelo Tesouro; veio-lhe então o receio de que a melhor parte
do bolo se achasse inutilizada: restava-lhe todavia a esperança de que fosse
aquela garrafa a mais antiga de todas e a pior por conseguinte. E continuou
com mais ardor o seu delicioso trabalho.

Tinha já esvaziado seis, quando notou que a vela, consumida até o fim, bruxuleava
a extinguir-se; foi buscar outra nova e viu ao mesmo tempo que horas eram.
“Oh! como a noite correra depressa!…” Três e meia da madrugada. “Parecia
impossível!” ” Ao terminar a contagem, as primeiras carroças passavam lá fora
na rua. – Quinze contos, quatrocentos e tantos mil-réis!… disse João Romão
entre dentes, sem se fartar de olhar para as pilhas de cédulas que tinha defronte
dos olhos. Mais oito contos e seiscentos eram em notas já prescritas. E o
vendeiro, à vista de tão bela soma, assim tão estupidamente comprometida,
sentiu a indignação de um roubado. Amaldiçoou aquele maldito velho Libório
por tamanho relaxamento; amaldiçoou o governo porque limitava, com intenções
velhacas, o prazo da circulação dos seus títulos; chegou até a sentir remorsos
por não se ter apoderado do tesouro do avarento, logo que este, um dos primeiros
moradores do cortiço, lhe apareceu com o colchão às costas, a pedir chorando
que lhe dessem de esmola um cantinho onde ele se metesse com sua miséria.
João Romão tivera sempre uma vidente cobiça sobre aquele dinheiro engarrafado;
fariscara-o desde que fitou de perto os olhinhos vivos e redondos do abutre
decrépito, e convenceu-se de todo, notando que o miserável dava pronto sumiço
a qualquer moedinha que lhe caia nas garras. – Seria um ato de justiça! concluiu
João Romão; pelo menos seria impedir que todo este pobre dinheiro apodrecesse
tão barbaramente! Ora adeus! mas sete ricos continhos quase inteiros ficavam-lhe
nas unhas. “E depois, que diabo! os outros assim mesmo haviam de ir com jeito…
Hoje impingiam-se dois mil-réis, amanhã cinco. Não nas compras, mas nos trocos…

Por que não? Alguém reclamaria, mas muitos engoliriam a bucha… Para isso
não faltavam estrangeiros e caipiras!… E demais, não era crime!… Sim!
se havia nisso ladroeira, queixassem-se do governo! o governo é que era o
ladrão!” – Em todo caso, rematou ele, guardando o dinheiro bom e mau e dispondo-se
a descansar; isto já serve para principiar as obras! Deixem estar, que daqui
a dias eu lhes mostrarei para quanto presto!

XIX

Daí a dias, com efeito, a estalagem metia-se em obras. À desordem do desentulho
do incêndio sucedia a do trabalho dos pedreiros; martelava-se ali de pela
manhã até à noite, o que aliás não impedia que as lavadeiras continuassem
a bater roupa e as engomadeiras reunissem ao barulho das ferramentas o choroso
falsete das suas eternas cantigas. Os que ficaram sem casa foram aboletados
a trouxe e mouxe por todos os cantos, à espera dos novos cômodos. Ninguém
se mudou para o “Cabeça-de-Gato”.

As obras principiaram pelo lado esquerdo do cortiço, o lado do Miranda; os
antigos moradores tinham preferência e vantagens nos preços. Um dos italianos
feridos morreu na Misericórdia e o outro, também lá, continuava ainda em risco
de vida. Bruno recolhera-se à Ordem de que era irmão, e Leocádia, que não
quis atender àquela carta escrita por Pombinha, resolveu-se a ir visitar o
seu homem no hospital. Que alegrão para o infeliz a volta da mulher, aquela
mulher levada dos diabos, mas de carne dura, a quem ele, apesar de tudo, queria
muito. Com a visita reconciliaram-se, chorando ambos, e Leocádia decidiu tornar
para o São Romão e viver de novo com o marido. Agora fazia-se muito séria
e ameaçava com pancada a quem lhe propunha brejeirices. Piedade, essa e que
se levantou das febres completamente transformada. Não parecia a mesma depois
do abandono de Jerônimo; emagrecera em extremo, perdera as cores do rosto,
ficara feia, triste e resmungona; mas não se queixava, e ninguém lhe ouvia
falar no nome do esposo. Esses meses, durante as obras, foram uma época especial
para a estalagem. O cortiço não dava idéia do seu antigo caráter, tão acentuado
e, no entanto, tão misto: aquilo agora parecia uma grande oficina improvisada,
um arsenal, em cujo fragor a gente só se entende por sinais. As lavadeiras
fugiram para o capinzal dos fundos, porque o pó da terra e da madeira sujava-lhes
a roupa lavada. Mas, dentro de pouco tempo, estava tudo pronto; e, com imenso
pasmo, viram que a venda, a sebosa bodega, onde João Romão se fez gente, ia
também entrar em obras. O vendeiro resolvera aproveitar dela somente algumas
das paredes, que eram de um metro de largura, talhadas à portuguesa; abriria
as portas em arco, suspenderia o teto e levantaria um sobrado, mais alto que
o do Miranda e, com toda a certeza, mais vistoso. Prédio para meter o do outro
no chinelo; quatro janelas de frente, oito de lado, com um terraço ao fundo.
O lugar em que ele dormia com Bertoleza, a cozinha e a casa de pasto seriam
abobadadas, formando, com a parte de taverna, um grande armazém, em que o
seu comércio iria fortalecer-se e alargar-se. O Barão e o Botelho apareciam
por lá quase todos os dias, ambos muito interessados pela prosperidade do
vizinho; examinavam os materiais escolhidos para a construção, batiam com
a biqueira do chapéu de sol no pinho-de-riga destinado ao assoalho, e afetando-se
bons entendedores, tomavam na palma da mão e esfarelavam entre os dedos um
punhado da terra e da cal com que os operários faziam barro. Às vezes chegavam
a ralhar com os trabalhadores, quando lhes parecia que não iam bem no serviço!
João Romão, agora sempre de paletó, engravatado, calças brancas, colete e
corrente de relógio, já não parava na venda, e só acompanhava as obras na
folga das ocupações da rua. Principiava a tomar tino no jogo da Bolsa; comia
em hotéis caros e bebia cerveja em larga camaradagem com capitalistas nos
cafés do comércio.

E a crioula? Como havia de ser?

Era isto justamente o que, tanto o Barão como o Botelho, morriam por que
lhe dissessem. Sim, porque aquela boa casa que se estava fazendo, e os ricos
móveis encomendados, e mais as pratas e as porcelanas que haviam de vir, não
seriam decerto para os beiços da negra velha! Conservá-la-ia como criada?
Impossível! Todo Botafogo sabia que eles até ai fizeram vida comum!

Todavia, tanto o Miranda, como o outro, não se animavam a abrir o bico a
esse respeito com o vizinho e contentavam-se em boquejar entre si misteriosamente,
palpitando ambos por ver a saída que o vendeiro acharia para semelhante situação.

Maldita preta dos diabos! Era ela o único defeito, o senão de um homem tão
importante e tão digno.

Agora, não se passava um domingo sem que o amigo de Bertoleza fosse jantar
à casa do Miranda. Iam juntos ao teatro. João Romão dava o braço à Zulmira,
e, procurando galanteá-la e mais ao resto da família, desfazia-se em obséquios
brutais e dispendiosos, com uma franqueza exagerada que não olhava gastos.
Se tinham de tomar alguma coisa, ele fazia vir logo três, quatro garrafas
ao mesmo tempo, pedindo sempre o triplo do necessário e acumulando compras
inúteis de doces, flores e tudo o que aparecia. Nos leilões das festas de
arraial era tão feroz a sua febre de obsequiar a gente do Miranda, que nunca
voltava para casa sem um homem atrás, carregado com os mimos que o vendeiro
arrematava.

E Bertoleza bem que compreendia tudo isso e bem que estranhava a transformação
do amigo. Ele ultimamente mal se chegava para ela e, quando o fazia, era com
tal repugnância, que antes não o fizesse. A desgraçada muita vez sentia-lhe
cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes estrangeiras e chorava em segredo,
sem animo de reclamar os seus direitos. Na sua obscura condição de animal
de trabalho, já não era amor o que a mísera desejava, era somente

confiança no amparo da sua velhice quando de todo lhe faltassem as forças
para ganhar a vida. E contentava-se em suspirar no meio de grandes silêncios
durante o serviço de todo o dia, covarde e resignada, como seus pais que a
deixaram nascer e crescer no cativeiro. Escondia-se de todos, mesmo da gentalha
do frege e da estalagem, envergonhada de si própria, amaldiçoando-se por ser
quem era, triste de sentir-se a mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade
brilhante e clara.

E, no entanto, adorava o amigo, tinha por ele o fanatismo irracional das
caboclas do Amazonas pelo branco a que se escravizam, dessas que morrem de
ciúmes, mas que também são capazes de matar-se para poupar ao seu ídolo a
vergonha do seu amor. O que custava aquele homem consentir que ela, uma vez
por outra, se chegasse para junto dele? Todo o dono, nos momentos de bom humor,
afaga o seu cão… Mas qual! o destino de Bertoleza fazia-se cada vez mais
estrito e mais sombrio; pouco a pouco deixara totalmente de ser a amante do
vendeiro, para ficar sendo só uma sua escrava. Como sempre, era a primeira
a erguer-se e a ultima a deitar-se; de manhã escamando peixe, à noite vendendo-o
à porta, para descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem
domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante,
com o coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham à luz.
Afinal, convencendo-se de que ela, sem ter ainda morrido, já não vivia para
ninguém, nem tampouco para si, desabou num fundo entorpecimento apático, estagnado
como um charco podre que causa nojo. Fizera-se áspera, desconfiada, sobrolho
carrancudo, uma linha dura de um canto ao outro da boca. E durante dias inteiros,
sem interromper o serviço, que ela fazia agora automaticamente, por um hábito
de muitos anos, gesticulava e mexia com os lábios, monologando sem pronunciar
as palavras. Parecia indiferente a tudo, a tudo que a cercava. Não obstante,
certo dia em que João Romão conversou muito com Botelho, as lágrimas saltaram
dos olhos da infeliz, e ela teve de abandonar a obrigação, porque o pranto
e os soluços não lhe deixavam fazer nada. Botelho havia dito ao vendeiro:
– Faça o pedido! É ocasião. – Hein? – Pode pedir a mão da pequena. Está tudo
pronto! – O Barão dá-ma? – Dá.

– Tem certeza disso?

– Ora! se não tivesse não lho diria deste modo!

– Ele prometeu?

– Falei-lhe; fiz-lhe o pedido em seu nome. Disse que estava autorizado por
você. Fiz mal? – Mal? Fez muito bem. Creio até que não é preciso mais nada!
– Não, se o Miranda não vier logo ao seu encontro é bom você lhe falar, compreende?
– Ou escrever. – Também! – E a menina? – Respondo por ela. Você não tem continuado
a receber as flores? – Tenho. – Pois então não deixe pelo seu lado de ir mandando
também as suas e faça o que lhe disse. Atire-se, seu João, atire-se enquanto
o angu está quente! Por outro lado, Jerônimo empregara-se na pedreira de São
Diogo, onde trabalhava dantes, e morava agora com a Rita numa estalagem da
Cidade Nova. Tiveram de fazer muita despesa para se instalarem; foi-lhes preciso
comprar de novo todos os arranjos de casa, porque do São Romão Jerônimo só
levou dinheiro, dinheiro que ele já não sabia poupar. Com o asseio da mulata
a sua casinha ficou, todavia, que era um regalo; tinham cortinado na cama,
lençóis de linho, fronhas de renda, muita roupa branca, para mudar todos os
dias, toalhas de mesa, guardanapos; comiam em pratos de porcelana e usavam
sabonetes finos. Plantaram à porta uma trepadeira que subia para o telhado,
abrindo pela manhã flores escarlates, de que as abelhas gostavam muito; penduraram
gaiolas de passarinho na sala de jantar; sortiram a despensa de tudo que mais
gostavam; compraram galinhas e marrecos e fizeram um banheiro só para eles,
porque o da estalagem repugnou à baiana que, nesse ponto, era muito escrupulosa.
A primeira parte da sua lua-de-mel foi uma cadeia de delicias continuas; tanto
ele como ela, pouco ou nada trabalharam; a vida dos dois resumira-se, quase
que exclusivamente, nos oitos palmos de colchão novo, que nunca

chegava a esfriar de todo. Jamais a existência pareceu tão boa e corredia
para o português; aqueles primeiros dias fugiram-lhe como estrofes seguidas
de uma deliciosa canção de amor, apenas espacejada pelo estribilho dos beijos
em dueto; foi um prazer prolongado e amplo, bebido sem respirar, sem abrir
os olhos, naquele colo carnudo e dourado da mulata, a que o cavouqueiro se
abandonara como um bêbedo que adormece abraçado a um garrafão inesgotável
de vinho gostoso. Estava completamente mudado. Rita apagara-lhe a última réstia
das recordações da pátria; secou, ao calor dos seus lábios grossos e vermelhos,
a derradeira lágrima de saudade, que o desterrado lançou do coração com o
extremo arpejo que a sua guitarra suspirou! A guitarra! substituiu-a ela pelo
violão baiano, e deu-lhe a ele uma rede, um cachimbo, e embebedou-lhe os sonhos
de amante prostrado com as suas cantigas do norte, tristes, deleitosas, em
que há caboclinhos curupiras, que no sertão vêm pitar à beira das estradas
em noites de lua clara, e querem que todo o viajante que vai passando lhes
ceda fumo e cachaça, sem o que, ai deles! o curupira transforma-os em bicho-do-mato.
E deu-lhe do seu comer da Bahia, temperado com fogoso azeite-de-dendê, cor
de brasa; deu-lhe das suas muquecas escandescentes, de fazer chorar, habituou-lhe
a carne ao cheiro sensual daquele seu corpo de cobra, lavado três vezes ao
dia e três vezes perfumado com ervas aromáticas. O português abrasileirou-se
para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso
e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a
esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, à felicidade de possuir
a mulata e ser possuído só por ela, só ela, e mais ninguém. A morte do Firmo
não vinha nunca a toldar-lhes o gozo da vida; quer ele, quer a amiga, achavam
a coisa muito natural. “O facínora matara tanta gente; fizera tanta maldade;
devia, pois, acabar como acabou! Nada mais justo! Se não fosse Jerônimo, seria
outro! Ele assim o quis- bem feito!” Por esse tempo, Piedade de Jesus, sem
se conformar com a ausência do marido, chorava o seu abandono e ia também
agora se transformando de dia para dia, vencida por um desmazelo de chumbo,
uma dura desesperança, a que nem as lágrimas bastavam para adoçar as agruras.
A principio, ainda a pobre de Cristo tentou resistir com coragem àquela viuvez
pior que essa outra, em que há, para elemento de resignação, a certeza de
que a pessoa amada nunca mais terá olhos para cobiçar mulheres, nem boca para
pedir amores; mas depois começou a afundar sem resistência na lama do seu
desgosto, covardemente, sem forcas para iludir-se com uma esperança fátua,
abandonando-se ao abandono, desistindo dos seus princípios, do seu próprio
caráter, sem se ter já neste mundo na conta de alguma coisa e continuando
a viver somente porque a vida era teimosa e não queria deixá-la ir apodrecer
lá embaixo, por uma vez. Deu para desleixar-se no serviço; as suas freguesas
de roupa começaram a reclamar; foi-lhe fugindo o trabalho pouco a pouco; fez-se
madraça e moleirona, precisando já empregar grande esforço para não bulir
nas economias que Jerônimo lhe deixara, porque isso devia ser para a filha,
aquela pobrezita orfanada antes da morte dos pais. Um dia, Piedade levantou-se
queixando-se de dores de cabeça, zoada nos ouvidos e o estômago embrulhado;
aconselharam-lhe que tomasse um trago de parati. Ela aceitou o conselho e
passou melhor. No dia seguinte repetiu a dose; deu-se bem com a perturbação
em que a punha o álcool, esquecia-se um pouco durante algum tempo das amofinações
da sua vida; e, gole a gole, habituara-se a beber todos os dias o seu meio
martelo de aguardente, para enganar os pesares. Agora, que o marido já não
estava ali para impedir que a filha pusesse os pés no cortiço, e agora que
Piedade precisava de consolo, a pequena ia passar os domingos com ela. Saíra
uma criança forte e bonita; puxara do pai o vigor físico e da mãe a expressão
bondosa da fisionomia. Já tinha nove anos. Eram esses agora os únicos bons
momentos da pobre mulher, esses que ela passava ao lado da filha. Os antigos
moradores da estalagem principiavam a distinguir a menina com a mesma predileção
com que amavam Pombinha, porque em toda aquela gente havia uma necessidade
moral de eleger para mimoso da sua ternura um entezinho delicado e superior,
a que eles privilegiavam respeitosamente, como súditos a um príncipe. Crismaram-na
logo com o cognome de “Senhorinha”. Piedade, apesar do procedimento do marido,
ainda no intimo se impressionava com a idéia de que não devia contrariá-lo
nas suas disposições de pai. “Mas que mal tinha que a pequena fosse ali? Era
uma esmola que fazia à mãe! Lá pelo risco de perder-se… Ora adeus, só se
perdia quem mesmo já nascera para a perdição! A outra não se conservara sã
e pura? não achara noivo? não casara e não vivia dignamente com o seu marido?
Então?!” E Senhorinha continuou a ir à estalagem, a principio nos domingos
pela manhã, para voltar à tarde, depois já de véspera, nos sábados, para só
tornar ao colégio na segunda-feira. Jerônimo ao saber disto, por intermédio
da professora, revoltou-se no primeiro ímpeto, mas, pensando bem no caso,
achou que era justo deixar à mulher aquele consolo. “Coitada! devia viver
bem aborrecida da sorte!” Tinha ainda por ela um sentimento compassivo, em
que a melhor parte nascera com o remorso. “Era justo, era! que a pequena aos
domingos e dias santos lhe fizesse companhia!” E então, para ver a filha,
tinha que ir ao colégio nos dias de semana. Quase sempre levava-lhe presentes
de doce, frutas, e perguntava-lhe se precisava de roupa ou de calçado. Mas,
um belo dia, apresentou-se tão ébrio, que a diretora lhe negou a entrada.
Desde essa ocasião, Jerônimo teve vergonha de lá voltar, e as suas visitas
à filha tornaram-se muito raras.

Tempos depois, Senhorinha entregou à mãe uma conta de seis meses da pensão
do colégio, com uma carta em que a diretora negava-se a conservar a menina,
no caso que não liquidassem prontamente a divida. Piedade levou as mãos à
cabeça: “Pois o homem já nem o ensino da pequena queria dar?! Que lhe valesse
Deus! onde iria ela fazer dinheiro para educar a filha?! ” Foi à procura do
marido; já sabia onde ele morava. Jerônimo recusou-se, por vexame; mandou
dizer que não estava em casa. Ela insistiu; declarou que não arredaria dali
sem lhe falar; disse em voz bem alta que não ia lá por ele, mas pela filha,
que estava arriscada a ser expulsa do colégio; ia para saber que destino lhe
havia de dar, porque agora a pequena estava muito taluda para ser enjeitada
na roda! Jerônimo apareceu afinal, com um ar triste de vicioso envergonhado
que não tem animo de deixar o vicio. A mulher, ao vê-lo, perdeu logo toda
a energia com que chegara e comoveu-se tanto, que as lágrimas lhe saltaram
dos olhos às primeiras palavras que lhe dirigiu. E ele abaixou os seus e fez-se
lívido defronte daquela figura avelhantada, de peles vazias, de cabelos sujos
e encanecidos. Não lhe parecia a mesma! Como estava mudada! E tratou-a com
brandura, quase a pedir-lhe perdão, a voz muito espremida no aperto da garganta.
– Minha pobre velha… balbuciou, pousando-lhe a mão larga na cabeça. E os
dois emudeceram um defronte do outro, arquejantes. Piedade sentiu ânsias de
atirar-se-lhe nos braços, possuída de imprevista ternura com aquele simples
afago do seu homem. Um súbito raio de esperança iluminou-a toda por dentro,
dissolvendo de relance os negrumes acumulados ultimamente no seu coração.
Contava não ouvir ali senão palavras duras e ásperas, ser talvez repelida
grosseiramente, insultada pela outra e coberta de ridículo pelos novos companheiros
do marido; mas, ao encontrá-lo também triste e desgostoso, sua alma prostrou-se
reconhecida; e, assim que Jerônimo, cujas lágrimas corriam já silenciosamente,
deixou que a sua mão fosse descendo da cabeça ao ombro e depois à cintura
da esposa, ela desabou, escondendo o rosto contra o peito dele, numa explosão
de soluços que lhe faziam vibrar o corpo inteiro. Por algum tempo choraram
ambos abraçados. – Consola-te! que queres tu?… São desgraças!… disse o
cavouqueiro afinal, limpando os olhos. Foi como se eu tivesse te morrido…
mas podes ficar certa de que te estimo e nunca te quis mal!… Volta para
casa; eu irei pagar o colégio de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vai,
e pede a Deus Nosso Senhor que me perdoe os desgostos que te tenho eu dado!
E acompanhou-a até o portão da estalagem.

Ela, sem poder pronunciar palavra, saiu cabisbaixa, a enxugar os olhos no
xale de lã, sacudida ainda de vez em quando por um soluço retardado.

Entretanto, Jerônimo não mandou saldar a conta do colégio, no dia seguinte,
nem no outro, nem durante todo o resto do mês; e ele, coitado! bem que se
mortificou por isso; mas onde ia buscar dinheiro naquela ocasião? o seu trabalho
mal lhe dava agora para viver junto com a mulata; estava já alcançado nos
seus ordenados e devia ao padeiro e ao homem da venda. Rita era desperdiçada
e amiga de gastar à larga; não podia passar sem uns tantos regalos de barriga
e gostava de fazer presentes. Ele, receoso de contrariá-la e quebrar o ovo
da sua paz, até ai tão completo com respeito à baiana, subordinava-se calado
e afetando até satisfação; no intimo, porém, o infeliz sofria deveras. A lembrança
constante da filha e da mulher apoquentava-o com pontas de remorso, que dia
a dia alastravam na sua consciência, à proporção que esta ia acordando daquela
cegueira. O desgraçado sentia e compreendia perfeitamente todo o mal da sua
conduta; mas só a idéia de separar-se da amante punha-lhe logo o sangue doido
e apagava-se-lhe de novo a luz dos raciocínios. “Não! não!! tudo que quisessem,
menos isso!”

E então, para fugir àquela voz irrefutável, que estava sempre a serrazinar
dentro dele, bebia em camaradagem com os companheiros e habituara-se, dentro
em pouco, à embriaguez. Quando Piedade, quinze dias depois da sua primeira
visita, tornou lá, um domingo, acompanhada pela filha, encontrou-o bêbedo,
numa roda de amigos.

Jerônimo recebeu-as com grande escarcéu de alegria. Fê-las entrar. Beijou
a pequena repetidas vezes e suspendeu-a pela cintura, soltando exclamações
de entusiasmo.

Com um milhão de raios! que linda estava a sua morgadinha!

Obrigou-as logo a tomar alguma coisa e foi chamar a mulata; queria que as
duas mulheres fizessem as pazes no mesmo instante. Era questão decidida!

Houve uma cena de constrangimentos, quando a portuguesa se viu defronte da
baiana.

– Vamos! vamos! Abracem-se! Acabem com isso por uma vez! bradava Jerônimo,
a empurrá-las uma contra a outra. Não quero aqui caras fechadas!

As duas trocaram um aperto de mão, sem se fitarem. Piedade estava escarlate
de vergonha.

– Ora muito bem! acrescentou o cavouqueiro. Agora para a coisa ser completa,
hão de jantar conosco!

A portuguesa opôs-se, resmungando desculpas, que o cavouqueiro não aceitou.
– Não as deixo sair! É boa! Pois hei de deixar ir minha filha sem matar as
saudades? Piedade assentou-se a um canto, impaciente pela ocasião de entender-se
com o marido sobre o negócio do colégio. Rita, volúvel como toda a mestiça,
não guardava rancores, e, pois, desfez-se em obséquios com a família do amigo.
As outras visitas saíram antes do jantar. Puseram-se à mesa às quatro horas
e principiaram a comer com boa disposição, carregando no virgem logo desde
a sopa. Senhorinha destacava-se do grupo; na sua timidez de menina de colégio
parecia, entre aquela gente, triste e assustada ao mesmo tempo. O pai acabrunhava-a
com as suas solicitudes brutais e com as suas perguntas sobre os estudos.
À exceção dela, todos os outros estavam, antes da sobremesa, mais ou menos
chumbados pelo vinho. Jerônimo, esse estava de todo. Piedade, instigada por
ele, esvaziara freqüentes vezes o seu copo e, ao fim do jantar, dera para
queixar-se amargamente da vida; foi então que ela, já com azedume na voz,
falou na divida do colégio e nas ameaças da diretora. – Ora, filha! disse-lhe
o cavouqueiro. Agora estás tu também pr’aí com essa mastigação! Deixa
as tristezas pr’outra vez! Não nos amargures o jantar! – Triste sorte
a minha! – Ai, ai! que temos lamúria! – Como não me hei de queixar, se tudo
me corre mal?! – Sim! Pois se é para isso que aqui vens, melhor será não tornares
cá!… resmungou Jerônimo, franzindo o sobrolho. Que diabo! com choradeiras
nada se endireita! Tenho eu culpa de que sejas infeliz?… Também o sou e
não me queixo de Deus! Piedade abriu a soluçar. – Aí temos! berrou o marido,
erguendo-se e dando urna punhada forte sobre a mesa. E aturem-na! Por mais
que um homem se não queira zangar, há de estourar por força! Ora bolas! Senhorinha
correu para junto do pai, procurando contê-lo. – Sebo! berrou ele, desviando-a.
Sempre a mesma coisa! Pois não estou disposto a aturar isto! Arre! – Eu não
vim cá por passeio!… prosseguiu Piedade entre lágrimas!. Vim cá para saber
da conta do colégio!… – Pague-a você, que tem lá o dinheiro que lhe deixei!
Eu é que não tenho nenhum! – Ah! então com que não pagas?! – Não! Com um milhão
de raios!

– É que és muito pior do que eu supunha!

– Sim, hein?! Pois então deixe-me cá com toda a minha ruindade e despache
o beco! Despache-o, antes que eu faça alguma asneira! – Minha pobre filha!
Quem olhará por ela, Senhor dos Aflitos?! – A pequena já não precisa de colégio!
deixe-a cá comigo, que nada lhe faltará! – Separar-me de minha filha? a única
pessoa que me resta?! – Ó mulher! você não está separada dela a semana inteira?…
Pois a pequena, em vez de ficar no colégio, fica aqui, e aos domingos irá
vê-la. Ora aí tem! – Eu quero antes ficar com minha mãe!… balbuciou a menina,
abraçando-se a Piedade. – Ah! também tu, ingrata, já me fazes guerra?! Pois
vão com todos os diabos! e não me tornem cá para me ferver o sangue, que já
tenho de sobra com que arreliar-me! – Vamos daqui! gritou a portuguesa, travando
da filha pelo braço. Maldita a hora em que vim cá! E as duas, mãe e filha,
desapareceram; enquanto Jerônimo, passeando de um para outro lado, monologava,
furioso sob a fermentação do vinho. Rita não se metera na contenda, nem se
mostrara a favor de nenhuma das partes. “O homem, se quisesse voltar para
junto da mulher, que voltasse! Ela não o prenderia, porque amor não era obrigado!”
Depois de falar só por muito espaço, o cavouqueiro atirou-se a uma cadeira,
despejou sombrio dois dedos de laranjinha num copo e bebeu-os de um trago.
– Arre! Assim também não!

A mulata então aproximou-se dele, por detrás; segurou-lhe a cabeça entre
as mãos e beijou-o na boca, arredando com os lábios a espessura dos bigodes.
Jerônimo voltou-se para a amante, tomou-a pelos quadris e assentou-a em cheio
sobre as suas coxas. – Não te rales, meu bem! disse ela, afagando-lhe os cabelos.
Já passou! – Tens razão! besta fui eu em deixá-la pôr pé cá dentro de casa!
E abraçaram-se com ímpeto, como se o breve tempo roubado pelas visitas fosse
uma interrupção nos seus amores. Lá fora, junto ao portão da estalagem, Piedade,
com o rosto escondido no ombro da filha, esperava que as lágrimas cedessem
um pouco, para as duas seguirem o seu destino de enxotadas.

XX

Chegaram a casa às nove horas da noite. Piedade levava o coração feito em
lama; não dera palavra por todo o caminho e logo que recolheu a pequena, encostou-se
à cômoda, soluçando.

Estava tudo acabado! Tudo acabado!

Foi à garrafa de aguardente, bebeu uma boa porção; chorou ainda, tornou a
beber, e depois saiu ao pátio, disposta a parasitar a alegria dos que se divertiam
lá fora.

A das Dores tivera jantar de festa; ouviam-se as risadas dela e a voz avinhada
e grossa do seu homem, o tal sujeito do comércio, abafadas de vez em quando
pelos berros da Machona, que ralhava com Agostinho. Em diversos pontos cantavam
e tocavam a viola.

Mas o cortiço já não era o mesmo; estava muito diferente; mal dava idéia
do que fora. O pátio, como João Romão havia prometido, estreitara-se com as
edificações novas; agora parecia uma rua, todo calçado por igual e iluminado
por três lampiões grandes simetricamente dispostos. Fizeram-se seis latrinas,
seis torneiras de água e três banheiros. Desapareceram as pequenas hortas,
os jardins de quatro a oito palmos e os imensos depósitos de garrafas vazias.
À esquerda, até onde acabava o prédio do Miranda, estendia-se um novo correr
de casinhas de porta e janela, e daí por diante, acompanhando todo o lado
do fundo e dobrando depois para a direita até esbarrar no sobrado de João
Romão, erguia-se um segundo andar, fechado em cima do primeiro por uma estreita
e extensa varanda de grades de madeira, para a qual se subia por duas escadas,
uma em cada extremidade. De cento e tantos, a numeração dos cômodos elevou-se
a mais de quatrocentos; e tudo caiadinho e pintado de fresco; paredes brancas,
portas verdes e goteiras encarnadas. Poucos lugares havia desocupados. Alguns
moradores puseram plantas à porta e à janela, em meias tinas serradas ou em
vasos de barro. Albino levou o seu capricho até à cortina de labirinto e chão
forrado de esteira. A casa dele destacava-se das outras; era no andar de baixo,
e cá de fora via-se-lhe o papel vermelho da sala, a mobília muito brunida,
jarras de flores sobre a cômoda, um lavatório com espelho todo cercado de
rosas artificiais, um oratório grande, resplandecente de palmas douradas e
prateadas, toalhas de renda por toda a parte, num luxo de igreja, casquilho
e defumado. E ele, o pálido lavadeiro, sempre com o seu lenço cheiroso à volta
do pescocinho, a sua calça branca de boca larga, o seu cabelo mole caldo por
detrás das orelhas bambas, preocupava-se muito em arrumar tudo isso, eternamente,
como se esperasse a cada instante a visita de um estranho. Os companheiros
de estalagem elogiavam-lhe aquela ordem e aquele asseio; pena era que lhe
dessem as formigas na cama! Em verdade, ninguém sabia por que, mas a cama
de Albino estava sempre coberta de formigas. Ele a destruí-las, e o demônio
do bichinho a multiplicar-se cada vez mais e mais todos os dias. Uma campanha
desesperadora, que o trazia triste, aborrecido da vida. Defronte justamente
ficava a casa do Bruno e da mulher, toda mobiliada de novo, com um grande
candeeiro de querosene em frente à entrada, cujo revérbero parecia olhar desconfiado
lá de dentro para quem passava cá no pátio. Agora, entretanto, o casal vivia
em santa paz. Leocádia estava discreta; sabia-se que ela dava ainda muito
que fazer ao corpo sem o concurso do marido, mas ninguém dizia quando, nem
onde. O Alexandre jurava que, ao entrar ou sair fora de horas, nunca a pilhara
no vicio; e a esposa, a Augusta Carne-Mole, ia mais longe na defesa, porque
sempre tivera pena de Leocádia, pois entendia que aquele assanhamento por
homem não era maldade dela; era praga de algum boca do diabo que a quis e
a pobrezinha não deixou. – Estava-se vendo disso todos os dias!- tanto que
ultimamente, depois que a criatura pediu a um padre um pouco de água benta
e benzeu-se com esta em certos lugares, o fogo desaparecera logo, e ela ai
vivia direita e séria que não dava que falar a ninguém! Augusta ficara com
a família numa das casinhas do segundo andar, à direita; estava grávida outra
vez; e à noite via-se o Alexandre, sempre muito circunspecto, a passear ao
comprido da varanda, acalentando uma criancinha ao colo, enquanto a mulher
dentro de casa cuidava de outras. A filharada crescia-lhes, que metia medo.
“Era um no papo outro no saco!” Moravam agora também desse lado os dois cúmplices
de Jerônimo, o Pataca e o Zé Carlos, ocupando juntos o mesmo cômodo; defronte
da porta tinham um fogãozinho e um fogareiro, em que preparavam eles mesmos
a sua comida. Logo adiante era o quarto de um empregado do correio, pessoa
muito calada, bem vestida e pontual no pagamento; saia todas as manhãs e voltava
às dez da noite invariavelmente; aos domingos só ia à rua para comer, e depois
fechava-se em casa e, houvesse o que houvesse no cortiço, não punha mais o
nariz de fora. E, assim como este, notavam-se por último na estalagem muitos
inquilinos novos, que já não eram gente sem gravata e sem meias. A feroz engrenagem
daquela máquina terrível, que nunca parava, ia já lançando os dentes a uma
nova camada social que, pouco a pouco, se deixaria arrastar inteira lá para
dentro. Começavam a vir estudantes pobres, com os seus chapéus desabados,
o paletó fouveiro, uma pontinha de cigarro a queimar-lhes a penugem do buço,
e as algibeiras muito cheias, mas só de versos e jornais; surgiram contínuos
de repartições públicas, caixeiros de botequim, artistas de teatro, condutores
de bondes, e vendedores de bilhetes de loteria. Do lado esquerdo, toda a parte
em que havia varanda foi monopolizada pelos italianos; habitavam cinco a cinco,
seis a seis no mesmo quarto, e notava-se que nesse ponto a estalagem estava
já muito mais suja que nos outros. Por melhor que João Romão reclamasse, formava-se
ai todos os dias uma esterqueira de cascas de melancia e laranja. Era uma
comuna ruidosa e porca a dos demônios dos mascates! Quase que se não podia
passar lá, tal a acumulação de tabuleiros de louça e objetos de vidro, caixas
de quinquilharia, molhos e molhos de vasilhame de folha-de-flandres, bonecos
e castelos de gesso, realejos, macacos, o diabo! E tudo isso no meio de um
fedor nauseabundo de coisas podres, que empesteava todo o cortiço. A parte
do fundo da varanda era asseada felizmente e destacava-se pela profusão de
pássaros que lá tinham, entre os quais sobressaia uma arara enorme que, de
espaço a espaço, soltava um formidável sibilo

estridente e rouco. Por debaixo ficava a casa da Machona, cuja porta, como
a janela, Nenen trazia sempre enfeitada de tinhorões e begônias. O prédio
do Miranda parecia ter recuado alguns passos, perseguido pelo batalhão das
casinhas da esquerda, e agora olhava a medo, por cima dos telhados, para a
casa do vendeiro, que lá defronte erguia-se altiva, desassombrada, o ar sobranceiro
e triunfante. João Romão conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo;
o seu era mais alto e mais nobre, e então com as cortinas e com a mobília
nova impunha respeito. Foi abaixo aquele grosso e velho muro da frente com
o seu largo portão de cocheira, e a entrada da estalagem era agora dez braças
mais para dentro, tendo entre ela e a rua um pequeno jardim com bancos e um
modesto repuxo ao meio, de cimento, imitando pedra. Fora-se a pitoresca lanterna
de vidros vermelhos; foram-se as iscas de fígado e as sardinhas preparadas
ali mesmo à porta da venda sobre as brasas; e na tabuleta nova, muito maior
que a primeira, em vez de “Estalagem de São Romão” lia-se em letras caprichosas:

“AVENIDA SÃO ROMÃO”

O “Cabeça-de-Gato” estava vencido finalmente, vencido para sempre; nem já
ninguém se animava a comparar as duas estalagens. À medida que a de João Romão
prosperava daquele modo, a outra decaía de todo; raro era o dia em que a polícia
não entrava lá e baldeava tudo aquilo a espadeirada de cego. Uma desmoralização
completa! Muitos cabeças-de-gato viraram casaca, passando-se para os carapicus,
entre os quais um homem podia até arranjar a vida, se soubesse trabalhar com
jeito em tempo de eleições. Exemplos não faltavam! Depois da partida de Rita,
já se não faziam sambas ao relento com o choradinho da Bahia, e mesmo o cana-verde
35 pouco se dançava e cantava; agora o forte eram os forrobodós dentro de
casa, com três ou quatro músicos, ceia de café com pão; muita calça branca
e muito vestido engomado. – E toca a enfiar para ai quadrilhas e polcas ate
romper a manhã!

Mas naquele domingo o cortiço estava banzeiro; havia apenas uns grupos magros,
que se divertiam com a viola à porta de casa. O melhor, ainda assim, era o
da das Dores. Piedade dirigiu-se logo para lá, sombria e cabisbaixa. – Com
o demo! você anda agora que nem o boi castrado! exclamou-lhe o Pataca, assentando-se
ao lado dela. As tristezas atiram-se para trás das costas, criatura de Deus!
A vida não dá para tanto! O homem deixou-te? Ora sebo! mete-se com outro e
põe o coração à larga! Ela suspirou em resposta, ainda triste; porém, a garrafa
de parati correu a roda, de mão em mão, e, à segunda volta, Piedade já parecia
outra. Começou a conversar e a tomar interesse no pagode. Daí a pouco era,
de todos, a mais animada, falando pelos cotovelos, criticando e arremedando
as figuras ratonas da estalagem. O Pataca ria-se, a quebrar a espinha, caindo
por cima dela e passando-lhe o braço na cintura. – Você ainda é mulher pr’um
homem fazer uma asneira! – Olha pra que lhe deu o ébrio! Solta-me a perna,
estupor! O grupo achava graça nos dois e aplaudia-os com gargalhadas. E o
parati a circular sempre de mão em mão. A das Dores não descansava um momento;
mal vinha de encher a garrafa lá dentro de casa, tinha de voltar outra vez
para enchê-la de novo. “Olha que estafa! Vão beber pro diabo!” Afinal apareceu
com o garrafão e pousou-o no meio da roda. – Querem saber! Empinem por aí
mesmo, que já estou com os quartos doendo de tanto andar de lá pra cá! Essa
noite, a bebedeira de Piedade foi completa. Quando João Romão entrou, de volta
da casa do Miranda, encontrou-a a dançar ao som de palmas, gritos e risadas,
no meio de uma grande troça, a saia levantada, os olhos requebrados, a pretender
arremedar a Rita no seu choradinho da Bahia. Era a boba da roda. Batiam-lhe
palmadas no traseiro e com o pé embaraçavam-lhe as pernas, para a ver cair
e rebolar-se no chão. O vendeiro, de fraque e chapéu alto, foi direito ao
grupo, então muito mais reforçado de gente, e intimou a todos que se recolhessem.
Aquilo já não eram horas para semelhante algazarra! – Vamos! Vamos! Cada um
para a sua casa!

Piedade foi a única que protestou, reclamando o seu direito de brincar um
pouco com os amigos.

Que diabo! não estava fazendo mal a ninguém!

– Ora vá mas é pra cama cozer a mona! vituperou-lhe João Romão, repelindo-a.
Você, com uma filha quase mulher, não tem vergonha de estar aqui a servir
de palhaço?! Forte bêbada!

Piedade assomou-se com a descompostura, quis despicar-se, chegou a arregaçar
as mangas e sungar a saia; mas o Pataca meteu-se no meio e conteve-a, pedindo
a João Romão que não levasse aquilo em conta, porque era tudo cachaça. – Bom,
bom, bom! mas aviem-se! Aviem-se! E não se retirou sem ver a roda dissolvida,
e cada qual procurando a casa.

Recolheram-se todos em silêncio; só o Pataca e Piedade deixaram-se ficar
ainda no pátio, a discutir o ato do vendeiro. O Pataca também estava bastante
tocado. Ambos reconheciam que lhes não convinha demorar-se ali, porém nenhum
dos dois se sentia disposto a meter-se no quarto. – Você tem lá alguma coisa
que beber em casa?… perguntou ele afinal. Ela não sabia ao certo; foi ver.
Havia meia garrafa de parati e um resto de vinho. Mas era preciso não fazer
barulho, por’mor da pequena que estava dormindo. Entraram em ponta de
pés, a falar surdamente. Piedade deu mais luz ao candeeiro. – Olha agora!
Vamos ficar às escuras! Acabou-se o gás! O Pataca saiu, para ir a casa buscar
uma vela, e de volta trouxe também um pedaço de queijo e dois peixes fritos,
que levou ao nariz da lavadeira, sem dizer nada. Piedade, aos bordos, desocupou
a mesa do engomado e serviu dois pratos. O outro reclamou vinagre e pimenta
e perguntou se havia pão. – Pão há. O vinho é que é pouco! – Não faz mal!
Vai mesmo com a caninha! E assentaram-se. O cortiço dormia já e só se ouviam,
no silêncio da noite, cães que ladravam lá fora na rua, tristemente. Piedade
começou a queixar-se da vida; veio-lhe uma crise de lágrimas e soluços. Quando
pôde falar contou o que lhe sucedera essa tarde, narrou os pormenores da sua
ida com a filha à procura do marido, o jantar em comum com a peste da mulata,
e afinal a sua humilhação de vir de lá enxovalhada e corrida. Pataca revoltou-se,
não com o procedimento de Jerônimo, mas com o dela. Rebaixar-se àquele ponto!
com efeito!… Ir procurar o homem lá na casa da outra!… Oh! – Ele tratou-me
bem, quando lá fui da primeira vez… Hoje é que não sei o que tinha: só faltou
pôr-me na rua aos pontapés! – Foi bem feito! Ainda acho pouco! Devia ter-lhe
metido o pau, para você não ser tola! – É mesmo! – Pois não! O que não falta
são homens, filha! O mundo é grande! Para um pé doente há sempre um chinelo
velho!- E ferrou-lhe a mão nas pernas:- Chega-te para mim, que te esqueceras
do outro! Piedade repeliu-o. Que se deixasse de asneiras! – Asneiras! É o
que se leva desta vida! A pequena acordara lá no quarto e viera descalça até
à porta da sala de jantar, para espiar o que faziam os dois. Não deram por
ela. E a conversa prosseguiu, esquentando a medida que a garrafa de parati
se esvaziava. Piedade deu de mão aos seus desgostos, pôs-se a papaguear um
pouco; as lágrimas foram-se-lhe; e ela manducou então com apetite, rindo já
das pilhérias do companheiro, que continuava a apalpar-lhe de vez em quando
as coxas. Aquelas coisas, assim, sem se esperar, é que tinham graça!… dizia
ele, excitado e vermelho, comendo com a mão, a embeber pedaços de peixe no
molho das pimentas. Bem tolo era quem se matava! Depois lembrou que não viria
fora de propósito uma xicrinha de café. – Não sei se há, vou ver, respondeu
a lavadeira, erguendo-se agarrada à mesa. E bordejou até à cozinha, a dar
esbarrões pela direita e pela esquerda. – Tento no leme, que o mar está forte!
exclamou Pataca, levantando-se também, para ir ajudá-la. Lá perto do fogão
agarrou-a de súbito, como um galo abafando uma galinha. – Larga! repreendeu
a mulher, sem forças para se defender. Ele apanhou-lhe as fraldas. – Espera!
Deixa! – Não quero! E ria-se por ver a atitude cômica do Pataca vergado defronte
dela. – Que mal faz?.. Deixa! – Sai daí, diabo!

E, cambaleando, amparados um no outro, foram ambos ao chão. – Olha que peste!
resmungou a desgraçada, quando o adversário conseguiu saciar-se nela. Marraios
te partam!

E deixou-se ficar por terra. Ele pôs-se de pé e, ao encaminhar-se para a
sala de jantar, sentiu uma ligeira sombra fugir em sua frente. Era a pequena,
que fora espiar à porta da cozinha.

Pataca assustara-se.

– Quem anda aqui a correr como gato?… perguntou voltando a ter com Piedade,
que permanecia no mesmo lugar, agora quase adormecida.

Sacudiu-a.

– Olá! Queres ficar ai, ó criatura! Levanta-te! Anda a ver o café!

E, tentando erguê-la, suspendeu-a por debaixo dos braços. Piedade, mal mudou
a posição da cabeça, vomitou sobre o peito e a barriga uma golfada fétida.

– Olha o demo! resmungou Pataca. Está que se não pode lamber!

E foi preciso arrastá-la até a cama, que nem uma trouxa de roupa suja. A
infeliz não dava acordo de si.

Senhorinha acudira, perguntando aflita o que tinha a mãe.

– Não é nada, filha! explicou o Pataca. Deixe-a dormir, que isso passa! Olha!
se há limão em casa passa-lhe um pouco atrás da orelha, e veras que amanhã
acorda fina e pronta pra outra!

A menina desatou a soluçar.

E o Pataca retirou-se, a dar encontrões nos trastes, furioso, porque, afinal,
não tomara café.

Sebo!

XXI

Ao mesmo tempo, João Romão, em chinelas e camisola, passeava de um para outro
lado no seu quarto novo. Um aposento largo e forrado de azul e branco com
florinhas amarelas fingindo ouro; havia um tapete aos pés da cama, e sobre
a peniqueira um despertador de níquel, e a mobília toda era já de casados,
porque o esperto não estava para comprar móveis duas vezes.

Parecia muito preocupado; pensava em Bertoleza que, a essas horas, dormia
lá embaixo num vão de escada, aos fundos do armazém, perto da comua. Mas que
diabo havia ele de fazer afinal daquela peste? E coçava a cabeça, impaciente
por descobrir um meio de ver-se livre dela. É que nessa noite o Miranda lhe
falara abertamente sobre o que ouvira de Botelho, e estava tudo decidido:
Zulmira aceitava-o para marido e Dona Estela ia marcar o dia do casamento.
O diabo era a Bertoleza!… E o vendeiro ia e vinha no quarto, sem achar uma
boa solução para o problema. Ora, que raio de dificuldade armara ele próprio
para se coser!… Como poderia agora mandá-la passear assim, de um momento
para outro, se o demônio da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda
a gente na estalagem sabia disso? E sentia-se revoltado e impotente defronte
daquele tranqüilo obstáculo que lá estava embaixo, a dormir, fazendo-lhe em
silêncio um mal horrível, perturbando-lhe estupidamente o curso da sua felicidade,
retardando-lhe, talvez sem consciência, a chegada desse belo futuro conquistado
à força de tamanhas privações e sacrifícios! Que ferro! Mas, só com lembrar-se
da sua união com aquela brasileirinha fina e aristocrática, um largo quadro
de vitórias rasgava-se defronte da desensofrida avidez da sua vaidade. Em
primeiro lagar fazia-se membro de uma família tradicionalmente orgulhosa,
como era, dito por todos, a de Dona Estela; em segundo lagar aumentava consideravelmente
os seus bens com o dote da noiva, que era rica e, em terceiro, afinal, caber-lhe-ia
mais tarde tudo o que o Miranda possuía, realizando-se deste modo um velho
sonho que o vendeiro afagava desde o nascimento da sua rivalidade com o vizinho.
E via-se já na brilhante posição que o esperava: uma vez de dentro, associava-se
logo com o sogro e iria pouco a pouco, como quem não quer a coisa, o empurrando
para o lado, até empolgar-lhe o lagar e fazer de si um verdadeiro chefe da
colônia portuguesa no Brasil; depois, quando o barco estivesse navegando ao
largo a todo o pano – tome lá alguns pares de contos de réis e passe-me para
cá o titulo de Visconde! Sim, sim, Visconde! Por que não? e mais tarde, com
certeza, Conde! Eram favas contadas!

Ah! ele, posto nunca o dissera a ninguém, sustentava de si para si nos últimos
anos o firme propósito de fazer-se um titular mais graduado que o Miranda.
E, só depois de ter o titulo nas unhas, é que iria à Europa, de passeio, sustentando
grandeza, metendo invejas, cercado de adulações, liberal, pródigo, brasileiro,
atordoando o mundo velho com o seu ouro novo americano! E a Bertoleza? gritava-lhe
do interior uma voz impertinente.

– É exato! E a Bertoleza?… repetia o infeliz, sem interromper o seu vaivém
ao comprido da alcova. Diabo! E não poder arredar logo da vida aquele ponto
negro; apagá-lo rapidamente, como quem tira da pele uma nódoa de lama! Que
raiva ter de reunir aos vôos mais fulgurosos da sua ambição a idéia mesquinha
e ridícula daquela inconfessável concubinagem! E não podia deixar de pensar
no demônio da negra, porque a maldita ali estava perto, a rondá-lo ameaçadora
e sombria; ali estava como o documento vivo das suas misérias, já passadas
mas ainda palpitantes. Bertoleza devia ser esmagada, devia ser suprimida,
porque era tudo que havia de mau na vida dele! Seria um crime conservá-la
a seu lado! Ela era o torpe balcão da primitiva bodega; era o aladroado vintenzinho
de manteiga em papel pardo; era o peixe trazido da praia e vendido à noite
ao lado do fogareiro à porta da taberna; era o frege imundo e a lista cantada
das comezainas à portuguesa; era o sono roncado num colchão fétido, cheio
de bichos; ela era a sua cúmplice e era todo seu mal- devia, pois, extinguir-se!
Devia ceder o lagar à pálida mocinha de mãos delicadas e cabelos perfumados,
que era o bem, porque era o que ria e alegrava, porque era a vida nova, o
romance solfejado ao piano, as flores nas jarras, as sedas e as rendas, o
chá servido em porcelanas caras; era enfim a doce existência dos ricos, dos
felizes e dos fortes, dos que herdaram sem trabalho ou dos que, a puro esforço,
conseguiram acumular dinheiro, rompendo e subindo por entre o rebanho dos
escrupulosos ou dos fracos. E o vendeiro tinha defronte dos olhos o namorado
sorriso da filha do Miranda, sentia ainda a leve pressão do braço melindroso
que se apoiara ao seu, algumas horas antes, em passeio pela praia de Botafogo;
respirava ainda os perfumes da menina, suaves, escolhidos e penetrantes como
palavras de amor; nos seus dedos grossos, curtos, ásperos e vermelhos, conservava
a impressão da

tépida carícia daquela mãozinha enluvada que, dentro em pouco, nos prazeres
garantidos do matrimônio, afagar-lhe-ia as carnes e os cabelos. Mas, e a Bertoleza?…
Sim! era preciso acabar com ela! despachá-la! sumi-la por uma vez! Deu meia-noite
no relógio do armazém. João Romão tomou uma vela e desceu aos fundos da casa,
onde Bertoleza dormia. Aproximou-se dela, pé ante pé, como um criminoso que
leva uma idéia homicida. A crioula estava imóvel sobre o enxergão, deitada
de lado, com a cara escondida no braço direito, que ela dobrara por debaixo
da cabeça. Aparecia-lhe uma parte do corpo nua. João Romão contemplou-a por
algum tempo, com asco. E era aquilo, aquela miserável preta que ali dormia
indiferentemente, o grande estorvo da sua ventura!… Parecia impossível!
– E se ela morresse?… Esta frase, que ele tivera, quando pensou pela primeira
vez naquele obstáculo à sua felicidade, tornava-lhe agora ao espírito, porém
já amadurecida e transformada nesta outra: – E se eu a matasse? Mas logo um
calafrio de pavor correu-lhe por todos os nervos. Além disso, como?… Sim,
como poderia despachá-la, sem deixar sinais comprometedores do crime?… Envenenando-a?…
Dariam logo pela coisa!… Matá-la a tiro?… Pior! Levá-la a um passeio fora
da cidade, bem longe e, no melhor da festa, atirá-la ao mar ou por um despenhadeiro,
onde a morte fosse infalível?… Mas como arranjar tudo isso, se eles nunca
passeavam juntos?… Diabo! E o desgraçado ficou a pensar, abstrato, de castiçal
na mão, sem despregar os olhos de cima de Bertoleza, que continuava imóvel,
com o rosto escondido no braço. – E se eu a esganasse aqui mesmo?… E deu,
na ponta dos pés, alguns passos para frente, parando logo, sem deixar nunca
de contemplá-la. Mas a crioula ergueu de improviso a cabeça e fitou-o com
os olhos de quem não estava dormindo. – Ah! fez ele. – Que é, seu João? –
Nada. Vim só ver-te… Cheguei ainda não há muito… Como vais tu? Passou-te
a dor do lado?… Ela meneou os ombros, sem responder ao certo. Houve um silêncio
entre os dois. João Romão não sabia o que dizer e saiu afinal, escoltado pelo
imperturbável olhar da crioula, que o intimava mesmo pelas costas. – Teria
desconfiado? pensou o miserável, subindo de novo para o quarto. Qual! Desconfiar
de quê?… E meteu-se logo na cama, disposto a não pensar mais nisso e dormir
incontinenti. Mas o seu pensamento continuou rebelde a parafusar sobre o mesmo
assunto. – É preciso despachá-la! É preciso despachá-la quanto antes, seja
lá como for! Ela, até agora, não deu ainda sinal de si; não abriu o bico a
respeito da questão; mas, Dona Estela está a marcar o dia do casamento; não
levará muito tempo para isso… o Miranda naturalmente comunica a noticia
aos amigos… o fato corre de boca em boca… chega aos ouvidos da crioula
e esta, vendo-se abandonada, estoura! estoura com certeza! E agora o verás!
Como deve ser bonito, hein?… Ir tão bem até aqui e esbarrar na oposição
da negra!… E os comentários depois!… O que não dirão os invejosos lá da
praça?… “Ah, ah! ele tinha em casa uma amiga, uma preta imunda com quem
vivia! Que tipo! Sempre há de mostrar que e gentinha de laia muito baixa!…
E aqui a engazopar-nos com uns ares de capitalista que se trata à vela de
libra! Olha o carapicu pra que havia de dar. Sai sujo!” E, então, a família
da menina, com medo de cair também na boca do mundo, volta atrás e dá o dito
por não dito! Bem sei que ela está a par de tudo; isso, olé, se está! mas
finge-se desentendida, porque conta, e com razão, que eu não serei tão parvo
que espere o dia do casamento sem ter dado sumiço à negra! contam que a coisa
correrá sem o menor escândalo! E eu, no entanto, tão besta que nada fiz! E
a peste da crioula está ai senhora do terreiro como dantes, e não descubro
meio de ver-me livre dela!… Ora já se viu como arranjei semelhante entalação?…
Isto contado não se acredita! E pisava e repisava o caso, sem achar meio de
dar-lhe saída! Diabo!

– Ela há muito que devia estar longe de mim… fiz mal em não cuidar logo
disso antes de mais nada!… Fui um pedaço d’asno! Se eu a tivesse despachado
logo, quando ainda se não falava no meu casamento, ninguém desconfiaria da
história: “Por que diabo iria o pobre homem dar cabo de uma mulher, com quem
vivia na melhor paz e que era até, dentro de casa, o seu braço direito?…”
Mas agora, depois de todas aquelas reformas de vida; depois da separação das
camas, e principalmente depois que corresse a noticia do casamento, não faltaria
decerto quem o acusasse, se a negra aparecesse morta de repente! Diabo! Deram
quatro horas, e o desgraçado nada de pregar olho; continuava a matutar sobre
o assunto, virando-se de um para outro lado da sua larga e rangedora cama
de casados. Só pelo abrir da aurora, conseguiu passar pelo sono; mas, logo
às sete da manhã, teve de pôr-se a pé: o cortiço estava todo alvoroçado com
um desastre. A Machona lavava à sua tina, ralhando e discutindo como sempre,
quando dois trabalhadores, acompanhados de um ruidoso grupo de curiosos, trouxeram-lhe
sobre uma tábua o cadáver ensangüentado do filho. Agostinho havia ido, segundo
o costume, brincar à pedreira com outros dois rapazitos da estalagem; tinham,
cabritando pelas arestas do precipício, subido a uma altura superior a duzentos
metros do chão e, de repente, faltara-lhe o equilíbrio e o infeliz rolou de
lá abaixo, partindo os ossos e atassalhando as carnes. Todo ele, coitadinho,
era uma só massa vermelha; as canelas, quebradas no joelho, dobravam moles
para debaixo das coxas; a cabeça, desarticulada, abrira no casco e despejava
o pirão dos miolos; numa das mãos faltavam-lhe todos os dedos e no quadril
esquerdo via-se-lhe sair uma ponta de osso ralado pela pedra.

Foi um alarma no pátio quando ele chegou.

Cruzes! que desgraça!

Albino, que lavava ao lado da Machona, teve uma síncope; Nenen ficou que
nem doida, porque ela queria muito àquele irmão; a das Dores imprecou contra
os trabalhadores, que deixavam um filho alheio matar-se daquele modo em presença
deles; a mãe, essa apenas soltou um bramido de monstro apunhalado no coração
e caiu mesquinha junto do cadáver, a beijá-lo, vagindo como uma criança. Não
parecia a mesma!

As mães dos outros dois rapazitos esperavam imóveis e lívidas pela volta
dos filhos, e, mal estes chegaram à estalagem, cada uma se apoderou logo do
seu e caiu-lhe em cima, a sová-los ambos que metia medo.

– Mira-te naquele espelho, tentação do diabo! exclamava uma delas, com o
pequeno seguro entre as pernas a encher-lhe a bunda de chineladas. Não era
aquele que devia ir, eras tu, peste! aquele, coitado! ao menos ajudava a mãe,
ganhava dois mil-réis por mês regando as plantas do Comendador, e tu, coisa-ruim,
só serves para me dar consumições! Toma! Toma! Toma!

E o chinelo cantava entre o berreiro feroz dos dois rapazes.

João Romão chegou ao terraço de sua casa, ainda em mangas de camisa, e de
lá mesmo tomou conhecimento do que acontecera. Contra todos os seus hábitos
impressionou-se com a morte de Agostinho; lamentou-a no intimo, tomado de
estranhas condolências.

Pobre pequeno! tão novo… tão esperto… e cuja vida não prejudicava a ninguém,
morrer assim, desastradamente!… ao passo que aquele diabo velho da Bertoleza
continuava agarrado à existência, envenenando-lhe a felicidade, sem se decidir
a despachar o beco!

E o demônio da crioula parecia mesmo não estar disposta a ir só com duas
razões; apesar de triste e acabrunhada, mostrava-se forte e rija. Suas pernas
curtas e lustrosas eram duas peças de ferro unidas pela culatra, das quais
ela trazia um par de balas penduradas em saco contra o peito; as róseas lustrosas
do seu cachaço lembravam grossos chouriços de sangue, e na sua carapinha compacta
ainda não havia um fio branco. Aquilo, arre! tinha vida para o resto do século!

– Mas deixa estar, que eu te despacho bonito e asseado!… disse o vendeiro
de si para si, voltando ao quarto para acabar de vestir-se. Enfiava o colete
quando bateram pancadas familiares na porta do corredor. – Então?! Ainda se
está em val de lençóis?… Era a voz do Botelho. O vendeiro foi abrir e fê-lo
entrar ali mesmo para a alcova. – Ponha-se a gosto. Como vai você? – Assim.
Não tenho passado lá essas coisas… João Romão deu-lhe noticia da morte do
Agostinho e declarou que estava com dor de cabeça. Não sabia que diabo tinha
ele aquela noite, que não houve meio de pegar direito no sono.

– Calor… explicou o outro. E prosseguiu depois de uma pausa, acendendo
um cigarro: pois eu vinha cá falar-lhe… Você não repare, mas… João Romão
supôs que o parasita ia pedir-lhe dinheiro e preparou-se para a defesa, queixando-se
inopinadamente de que os negócios não lhe corriam bem; mas calou-se, porque
o Botelho acrescentou com o olhar fito nas unhas: – Não devia falar nisto…
são coisas suas lá particulares, em que a gente não se mete, mas… O taberneiro
compreendeu logo onde a visita queria chegar e aproximou-se dele, dizendo
confidencialmente: – Não! Ao contrário! fale com franqueza… Nada de receios…
– É que… sim, você sabe que eu tenho tratado do seu casamento com a Zulmirinha…
Lá em casa não se fala agora noutra coisa… até a própria Dona Estela já
está muito bem disposta a seu favor… mas… – Desembuche, homem de Deus!
– É que há um pontinho que é preciso pôr a limpo… Coisa insignificante,
mas… – Mas, mas! você não desembuchará por uma vez?… Fale, que diabo!
Um caixeiro do armazém apareceu à porta, prevenindo de que o almoço estava
na mesa. – Vamos comer, disse João Romão. Você já almoçou? – Ainda não, mas
lá em casa contam comigo…

O vendeiro mandou o seu empregado dizer lá defronte à família do Barão que
seu Botelho não ia ao almoço. E, sem tomar o casaco, passou com a visita à
sala de jantar. O cheiro ativo dos móveis, polidos ainda de fresco, dava ao
aposento um caráter insociável de lagar desabitado e por alagar. Os trastes,
tão nus como as paredes, entristeciam com a sua fria nitidez de coisa nova.
– Mas vamos lá! Que temos então?… inquiriu o dono da casa, assentando-se
à cabeceira da mesa, enquanto o outro, junto dele, tomava lugar à extremidade
de um dos lados. – É que, respondeu o velho em tom de mistério, você tem cá
em sua companhia uma… uma crioula, que… Eu não creio, note-se, mas…
– Adiante! – É! Dizem que ela é coisa sua… Lá em casa rosnou!… O Miranda
defende-o, afirma que não… Ah! aquilo é uma grande alma! mas Dona Estela,
você sabe o que são as mulheres!… torce o nariz e… Em uma palavra: receio
que esta história nos traga qualquer embaraço!… Calou-se, porque acabava
de entrar um portuguesinho, trazendo uma travessa de carne ensopada com batatas.
João Romão não respondeu, mesmo depois que o pequeno saiu; ficou abstrato,
a bater com a faca entre os dentes. – Por que você a não manda embora?…
arriscou o Botelho, despejando vinho no seu e no copo do companheiro. Ainda
desta vez não obteve logo resposta; mas o outro tomando, afinal, uma resolução,
declarou confidencialmente: – Vou dizer-lhe toda coisa como ela é… e talvez
que você até me possa auxiliar!… Olhou para os lados, chegou mais a sua
cadeira para junto da de Botelho e acrescentou em voz baixa: – Esta mulher
meteu-se comigo, quando eu principiava minha vida… Então, confesso… precisava
de alguém nos casos dela, que me ajudasse… e ajudou-me muito, não nego!
Devo-lhe isso! não! ajudar-me ajudou! mas… – E depois? – Depois, ela foi
ficando para ai; foi ficando… e agora… – Agora é um trambolho que lhe
pode escangalhar a igrejinha! É o que é! – Sim, que dúvida! pode ser um obstáculo
sério ao meu casamento! Mas, que diabo! eu também, você compreende, não a
posso pôr na rua, assim, sem mais aquelas!… Seria ingratidão, não lhe parece?…
– Ela já sabe em que pé está o negócio?… – Deve desconfiar de alguma coisa,
que não é tola!… Eu, cá por mim, não lhe toquei em nada… – E você ainda
faz vida com ela? – Qual! há muito tempo que nem sombras disso…

– Pois, então, meu amigo, é arranjar-lhe uma quitanda em outro bairro; dar-lhe
algum dinheiro e… Boa viagem! O dente que já não presta arranca-se fora!
João Romão ia responder, mas Bertoleza assomou à entrada da sala. Vinha tão
transformada e tão lívida que só com a sua presença intimidou profundamente
os dois. A indignação tirava-lhe faíscas dos olhos e os lábios tremiam-lhe
de raiva. Logo que falou veio-lhe espuma aos cantos da boca. – Você está muito
enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira a toa! exclamou ela. Sou
negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os
ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair ano, a puxar pelo corpo
todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela manhãzinha até pelas
tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como galinha podre?!
Não! Não há de ser assim, seu João! – Mas, filha de Deus, quem te disse que
eu quero atirar-te à toa?… perguntou o capitalista. – Eu escutei o que você
conversava, seu João! A mim não me cegam assim só! Você é fino, mas eu também
sou! Você está armando casamento com a menina de seu Miranda! – Sim, estou.
Um dia havia de cuidar de meu casamento!… Não hei de ficar solteiro toda
a vida, que não nasci para podengo. Mas também não te sacudo na rua, como
disseste; ao contrário agora mesmo tratava aqui com o seu Botelho de arranjar-te
uma quitanda e…

– Não! Com quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer! Preciso
de um descanso! Para isso mourejei junto de você enquanto Deus Nosso Senhor
me deu força e saúde! – Mas afinal que diabo queres tu?! – Ora essa! Quero
ficar a seu lado! Quero desfrutar o que nós dois ganhamos juntos! quero a
minha parte no que fizemos com o nosso trabalho! quero o meu regalo, como
você quer o seu! – Mas não vês que isso é um disparate?… Tu não te conheces?…
Eu te estimo, filha; mas por ti farei o que for bem entendido e não loucuras!
Descansa que nada te há de faltar!… Tinha graça, com efeito, que ficássemos
vivendo juntos! Não sei como não me propões casamento! – Ah! agora não me
enxergo! agora eu não presto para nada! Porém, quando você precisou de mim
não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e agüentar a sua casa com o meu
trabalho! Então a negra servia pra um tudo; agora não presta pra mais nada,
e atira-se com ela no monturo do cisco! Não! assim também Deus não manda!
Pois se aos cães velhos não se enxotam, por que me hão de pôr fora desta casa,
em que meti muito suor do meu rosto?… Quer casar, espere então que eu feche
primeiro os olhos; não seja ingrato! João Romão perdeu por fim a paciência
e retirou-se da sala, atirando à amante uma palavrada porca. – Não vale a
pena encanzinar-se… segredou-lhe o Botelho, acompanhando-o até a alcova,
onde o vendeiro enterrou com toda a força o chapéu na cabeça e enfiou o paletó
com a mão fechada em murro. – Arre! Não a posso aturar nem mais um instante!
Que vá para o diabo que a carregue! em casa é que não me fica! – Calma, homem
de Deus! Calma! – Se não quiser ir por bem, ira por mal! Sou eu quem o diz!
E o vendeiro esfuziou pela escada, levando atrás de si o velhote, que mal
podia acompanhá-lo na carreira. Já na esquina da rua parou e, fitando no outro
o seu olhar flamejante, perguntou-lhe: – Você viu?! – É… resmungou o parasita,
de cabeça baixa, sem interromper os passos. E seguiram em silêncio, andando
agora mais devagar; ambos preocupados. No fim de uma boa pausa, Botelho perguntou
se Bertoleza era escrava quando João Romão tomou conta dela. Esta pergunta
trouxe uma inspiração ao vendeiro. Ia pensando em metê-la como idiota no Hospício
de Pedro 11, mas acudia-lhe agora coisa muito melhor: entregá-la ao seu senhor,
restituí-la legalmente à escravidão. Não seria difícil… considerou ele;
era só procurar o dono da escrava, dizer-lhe onde esta se achava refugiada
e aquele ir logo buscá-la com a polícia. E respondeu ao Botelho: – Era e é!
– Ah! Ela é escrava? De quem? – De um tal Freitas de Melo. O primeiro nome
não sei. Gente de fora. Em casa tenho as notas.

– Ora! então a coisa é simples!… Mande-a p’ro dono! – E se ela não
quiser ir?…

– Como não?! A polícia a obrigará! É boa!

– Ela há de querer comprar a liberdade…

– Pois que a compre, se o dono consentir!… Você com isso nada mais tem
que ver! E se ela voltar à sua procura, despache-a logo; se insistir, vá então
à autoridade e queixe-se! Ah, meu caro, estas coisas, para serem bem feiras,
fazem-se assim ou não se fazem! Olhe que aquele modo com que ela lhe falou
há pouco é o bastante para você ver que semelhante estupor não lhe convém
dentro de casa nem mais um instante! Digo-lhe até: já não só pelo fato do
casamento, mas por tudo! Não seja mole! João Romão escutava, caminhando calado,
sem mais vislumbres de agitação. Tinham chegado à praia. – Você quer encarregar-se
disto? propôs ele ao companheiro, parando ambos à espera do bonde; se quiser
pode tratar, que lhe darei uma gratificação menos má… – De quanto?… –
Cem mil-réis! – Não! dobre! – Terás os duzentos! – Está dito! Eu cá, pra tudo
que for pôr cobro a relaxamento de negro, estou sempre pronto! – Pois então
logo mais à tarde lhe darei, ao certo, o nome do dono, o lugar em que ele
residia quando ela veio para mim e o mais que encontrar a respeito. – E o
resto fica a meu cuidado! Pode dá-la por despachada!

XXII

Desde esse dia Bertoleza fez-se ainda mais concentrada e resmungona e só
trocava com o amigo um ou outro monossílabo inevitável no serviço da casa.
Entre os dois havia agora desses olhares de desconfiança, que são abismos
de constrangimento entre pessoas que moram juntas. A infeliz vivia num sobressalto
constante; cheia de apreensões, com medo de ser assassinada; só comia do que
ela própria preparava para si e não dormia senão depois de fechar-se a chave.
À noite o mais ligeiro rumor a punha de pé, olhos arregalados, respiração
convulsa, boca aberta e pronta para pedir socorro ao primeiro assalto. No
entanto, em redor do seu desassossego e do seu mal-estar, tudo ali prosperava
forte em grosso, aos contos de réis, com a mesma febre com que dantes, em
torno da sua atividade de escrava trabalhadeira, os vinténs choviam dentro
da gaveta da venda. Durante o dia paravam agora em frente do armazém carroças
e carroças com fardos e caixas trazidos da alfândega, em que se liam as iniciais
de João Romão; e rodavam-se pipas e mais pipas de vinho e de vinagre, e grandes
partidas de barricas de cerveja e de barris de manteiga e de sacos de pimenta.
E o armazém, com as suas portas escancaradas sobre o público, engolia tudo
de um trago, para depois ir deixando sair de novo, aos poucos, com um lucro
lindíssimo, que no fim do ano causava assombros. João Romão fizera-se o fornecedor
de todas as tabernas e armarinhos de Botafogo; o pequeno comércio sortia-se
lá para vender a retalho. A sua casa tinha agora um pessoal complicado de
primeiros, segundos e terceiros caixeiros, além do guarda-livros, do comprador,
do despachante e do caixa; do seu escritório saiam correspondências em várias
línguas e, por dentro das grades de madeira polida, onde havia um bufete sempre
servido com presunto, queijo e cerveja, faziam-se largos contratos comerciais,
transações em que se arriscavam fortunas; e propunham-se negociações de empresas
e privilégios obtidos do governo; e realizavam-se vendas e compras de papéis;
e concluíam-se empréstimos de juros fortes sobre hipotecas de grande valor.
E ali ia de tudo: o alto e o baixo negociante; capitalistas adulados e mercadores
falidos; corretores de praça, zangões, cambistas; empregados públicos, que
passavam procuração contra o seu ordenado; empresários de teatro e fundadores
de jornais, em aparos de dinheiro; viúvas, que negociavam o seu montepio;
estudantes, que iam receber a sua mesada; e capatazes de vários grupos de
trabalhadores pagos pela casa; e, destacando-se de todos, pela quantidade,
os advogados e a gente miúda do foro, sempre inquieta, farisqueira, a meter
o nariz em tudo, feia, a papelada debaixo do braço, a barba por fazer, o cigarro
babado e apagado a um canto da boca. E, como a casa comercial de João Romão,
prosperava igualmente a sua avenida. Já lá se não admitia assim qualquer pé-rapado:
para entrar era preciso carta de fiança e uma recomendação especial. Os preços
dos cômodos subiam, e muitos dos antigos hóspedes, italianos principalmente,
iam, por economia, desertando para o “Cabeça-de-Gato” e sendo substituídos
por gente mais limpa. Decrescia também o número das lavadeiras, e a maior
parte das casinhas eram ocupadas agora por pequenas famílias de operários,
artistas e praticantes de secretaria. O cortiço aristocratizava-se. Havia
um alfaiate logo à entrada, homem sério, de suíças que cosia na sua máquina
entre oficiais, ajudado pela mulher, uma lisboeta cor de nabo, gorda, velhusca,
com um principio de bigode e cavanhaque, mas extremamente circunspecta; em
seguida um relojoeiro calvo, de óculos, que parecia mumificado atrás da vidraça
em que ele, sem mudar de posição, trabalhava, da manhã até à tarde; depois
um pintor de tetos e tabuletas, que levou a fantasia artística ao ponto de
fazer, a pincel, uma trepadeira em volta da sua porta, onde se viam pássaros
de várias cores e feitios, muito comprometedores para o crédito profissional
do autor; mais adiante instalara-se um cigarreiro, que ocupava nada menos
de três números na estalagem e tinha quatro filhas e dois filhos a fabricarem
cigarros, e mais três operárias que preparavam palha de milho e picavam e
desfiavam tabaco. Florinda, metida agora com um despachante de estrada de
ferro, voltara para o São Romão e trazia a sua casinha em muito bonito pé
de limpeza e arranjo. Estava ainda de luto pela mãe, a pobre velha Marciana,
que ultimamente havia morrido no hospício dos doidos. Aos domingos o despachante
costumava receber alguns camaradas para jantar, e como a rapariga puxava os
feitios da Rita Baiana, as suas noitadas acabavam sempre em pagode de dança
e cantarola, mas tudo de portas adentro, que ali já se não admitiam sambas
e chinfrinadas ao relento. A Machona quebrara um pouco de gênio depois da
morte de Agostinho e era agora visitada por um grupo de moços do comércio,
entre os quais havia um pretendente à mão de Nenen, que se mirrava já de tanto
esperar a seco por marido. Alexandre fora promovido a sargento e empertigava-se
ainda mais dentro da sua farda nova, de botões que cegavam; a mulher, sempre
indiferentemente fecunda e honesta, parecia criar bolor na sua moleza úmida
e tinha um ar triste de cogumelo; era vista com freqüência a dar de mamar
a um pequerrucho de poucos meses, empinando muito a barriga para a frente,
pelo hábito de andar sempre grávida. A sua comadre Léonie continuava a visitá-la
de vez em quando, aturdindo a atual pacatez daquele cenóbio com as suas roupas
gritadoras. Uma ocasião em que lá fora, um sábado à tarde, produzira grande
alvoroço entre os decanos da estalagem, porque consigo levava Pombinha, que
se atirara ao mundo e vivia agora em companhia dela. Pobre Pombinha! no fim
dos seus primeiros dois anos de casada já não podia suportar o marido; todavia,
a principio, para conservar-se mulher honesta, tentou perdoar-lhe a falta
de espírito, os gostos rasos e a sua risonha e fatigante palermice de homem
sem ideal; ouviu-lhe, resignada, as confidências banais nas horas intimas
do matrimônio; atendeu-o nas suas exigências mesquinhas de ciumento que chora;
tratou-o com toda a solicitude, quando ele esteve a decidir com uma pneumonite
aguda; procurou afinar em tudo com o pobre rapaz; não lhe falou nunca em coisas
que cheirassem a luxo, a arte, a estética, a originalidade; escondeu a sua
mal-educada e natural intuição pelo que é grande, ou belo, ou arrojado, e
fingiu ligar interesse ao que ele fazia, ao que ele dizia, ao que ele ganhava,
ao que ele pensava e

ao que ele conseguia com paciência na sua vida estreita de negociante rotineiro;
mas, de repente, zás! faltou-lhe o equilíbrio e a mísera escorregou, caindo
nos braços de um boêmio de talento, libertino e poeta, jogador e capoeira.
O marido não deu logo pela coisa, mas começou a estranhar a mulher, a desconfiar
dela e a espreitá-la, até que um belo dia, seguindo-a na rua sem ser visto,
o desgraçado teve a dura certeza de que era traído pela esposa, não mais com
o poeta libertino, mas com um artista dramático que muitas vezes lhe arrancara,
a ele, sinceras lágrimas de comoção, declamando no teatro em honra da moral
triunfante e estigmatizando o adultério com a retórica mais veemente e indignada.
Ah! não pôde iludir-se!… e, a despeito do muito que amava à ingrata, rompeu
com ela e entregou-a à mãe, fugindo em seguida para São Paulo. Dona Isabel,
que sabia já, não desta última falcatrua da filha, mas das outras primeiras,
que bem a mortificaram, coitada! desfez-se em lágrimas, aconselhou-a a que
se arrependesse e mudasse de conduta; em seguida escreveu ao genro, intercedendo
por Pombinha, jurando que agora respondia por ela e pedindo-lhe que esquecesse
o passado e voltasse para junto de sua mulher. O rapaz não respondeu à carta,
e, daí a meses, Pombinha desapareceu da casa da mãe. Dona Isabel quase morre
de desgosto. Para onde teria ido a filha?… “Onde está? onde não está? Procura
daqui! procura daí!” Só a descobriu semanas depois; estava morando num hotel
com Léonie. A serpente vencia afinal: Pombinha foi, pelo seu próprio pé, atraída,
meter-se-lhe na boca. A pobre mãe chorou a filha como morta; mas, visto que
os desgostos não lhe tiraram a vida por uma vez e, como a desgraçada não tinha
com que matar a fome, nem forças para trabalhar, aceitou de cabeça baixa o
primeiro dinheiro que Pombinha lhe mandou. E, desde então, aceitou sempre,
constituindo-se a rapariga no seu único amparo da velhice e sustentando-a
com os ganhos da prostituição. Depois, como neste mundo uma criatura a tudo
se acostuma, Dona Isabel mudou-se para a casa da filha. Mas não aparecia nunca
na sala quando havia gente de fora, escondia-se; e, se algum dos freqüentadores
de Pombinha a pilhava de improviso, a infeliz, com vergonha de si mesma, fingia-se
criada ou dama de companhia. O que mais a desgostava, e o que ela não podia
tolerar sem apertos de coração, era ver a pequena endemoninhar-se com champanha
depois do jantar e pôr-se a dizer tolices e a estender-se ali mesmo no colo
dos homens. Chorava sempre que a via entrar ébria, fora de horas, depois de
uma orgia; e, de desgosto em desgosto, foi-se sentindo enfraquecer e enfermar,
até cair de cama e mudar-se para uma casa de saúde, onde afinal morreu.

Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis, terríveis naquela inquebrantável
solidariedade, que fazia delas uma só cobra de duas cabeças, dominavam o alto
e o baixo Rio de Janeiro. Eram vistas por toda a parte onde houvesse prazer;
a tarde, antes do jantar, atravessavam o Catete em carro descoberto, com a
Juju ao lado; à noite, no teatro, em um camarote de boca chamavam sobre si
os velhos conselheiros desfibrados pela política e ávidos de sensações extremas,
ou arrastavam para os gabinetes particulares dos hotéis os sensuais e gordos
fazendeiros de café, que vinham à corte esbodegar o farto produto das safras
do ano, trabalhadas pelos seus escravos. Por cima delas duas passara uma geração
inteira de devassos. Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se
tão perita no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência, nascida e criada
no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos
vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os
segredos daquela vida; seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue;
sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro
que a vitima pudesse dar de si. Entretanto, lá na Avenida São Romão, era,
como a mestra, cada vez mais adorada pelos seus velhos e fiéis companheiros
de cortiço; quando lá iam, acompanhadas por Juju, a porta da Augusta ficava,
como dantes, cheia de gente, que as abençoava com o seu estúpido sorriso de
pobreza hereditária e humilde. Pombinha abria muito a bolsa, principalmente
com a mulher de Jerônimo, a cuja filha, sua protegida predileta, votava agora,
por sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica à que noutro tempo inspirara
ela própria à Léonie. A cadeia continuava e continuaria interminavelmente;
o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada,
que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria. E era, ainda assim,
com essas esmolas de Pombinha, que na casa de Piedade não faltava de todo
o pão, porque já ninguém confiava roupa à desgraçada, e nem ela podia dar
conta de qualquer trabalho. Pobre mulher! chegara ao extremo dos extremos.
Coitada! já não causava dó, causava repugnância e nojo. Apagaram-se-lhe os
últimos vestígios do brio; vivia andrajosa, sem nenhum trato e sempre ébria,
dessa embriaguez sombria e mórbida que se não dissipa nunca. O seu quarto
era o mais imundo e o pior de toda a estalagem; homens malvados abusavam dela,
muitos de uma vez, aproveitando-se da quase completa inconsciência da infeliz.
Agora, o menor trago de aguardente a punha logo pronta; acordava todas as
manhãs apatetada, muito triste, sem animo para viver esse dia, mas era só
correr à garrafa e voltavam-lhe as risadas frouxas, de boca que já se não
governa. Um empregado de João Romão, que ultimamente fazia as vezes dele na
estalagem, por três vezes a enxotou, e ela, de todas, pediu que lhe dessem
alguns dias de espera, para arranjar casa. Afinal, no dia seguinte ao último
em que Pombinha apareceu por lá com Léonie e deixou-lhe algum dinheiro, despejaram-lhe
os tarecos na rua. E a mísera, sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha,
no “Cabeça-de-Gato” que, à proporção que o São Romão se engrandecia, mais
e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto,
mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava,
como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro
tipo da estalagem fluminense, a legitima, a legendária; aquela em que há um
samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir
os assassinos; viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados
com as irmãs na mesma lama; paraíso de vermes, brejo de lodo quente e fumegante,
donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão.

XXIII

À porta de uma confeitaria da Rua do Ouvidor, João Romão, apurado num fato
novo de casimira clara, esperava pela família do Miranda, que nesse dia andava
em compras. Eram duas horas da tarde e um grande movimento fazia-se ali. O
tempo estava magnífico; sentia-se pouco calor. Gente entrava e saia, a passo
frouxo, da Casa Pascoal. Lá dentro janotas estacionavam de pé, soprando o
fumo dos charutos, à espera que desocupassem uma das mesinhas de mármore preto;
grupos de senhoras, vestidas de seda, faziam lanche com vinho do Porto. Respirava-se
um cheiro agradável de essências e vinagres aromáticos; havia um rumor quente
e garrido, mas bem-educado; namorava-se forte, mas com disfarce, furtando-se
olhares no complicado encontro dos espelhos; homens bebiam ao balcão e outros
conversavam, comendo empadinhas junto às estufas; algumas pessoas liam já
os primeiros jornais da tarde; serventes, muito atarefados, despachavam compras
de doces e biscoitos e faziam, sem descansar, pacotes de papel de cor, que
os compradores levavam pendurados num dedo. Ao fundo, de um dos lados do salão,
aviavam-se grandes encomendas de banquetes para essa noite, traziam-se lá
de dentro, já prontas, torres e castelos de balas e trouxas d’ovos e
imponentes peças de cozinha caprichosamente enfeitadas; criados desciam das
prateleiras as enormes baixelas de metal branco, que os companheiros iam embalando
em caixões com papel fino picado. Os empregados das secretarias públicas vinham
tomar o seu vermute com sifão; repórteres insinuavam-se por entre os grupos
dos jornalistas e dos políticos, com o chapéu à ré, ávidos de noticias, uma
curiosidade indiscreta nos olhos. João Romão, sem deixar a porta, apoiado
no seu guarda-chuva de cabo de marfim, recebia cumprimentos de quem passava
na rua; alguns paravam para lhe falar. Ele tinha sorrisos e oferecimentos
para todos os lados; e consultava o relógio de vez em quando. Mas a família
do Barão surgiu afinal. Zulmira vinha na frente, com um vestido cor de palha
justo ao corpo, muito elegante no seu tipo de fluminense pálida e nervosa;
logo depois Dona Estela, grave, toda de negro, passo firme e ar severo de
quem se orgulha das suas virtudes e do bom cumprimento dos seus deveres. O
Miranda acompanhava-as de sobrecasaca, fitinha ao peito, o colarinho até ao
queixo, botas de verniz, chapéu alto e bigode cuidadosamente raspado. Ao darem
com João Romão, ele sorriu e Zulmira também; só Dona Estela conservou inalterável
a sua fria máscara de mulher que não dá verdadeira importância senão a si
mesma. O ex-taverneiro e futuro visconde foi, todavia, ao encontro deles,
cheio de solicitude, descobrindo-se desde logo e convidando-os com empenho
a que tomassem alguma coisa. Entraram todos na confeitaria e apoderaram-se
da primeira mesa que se esvaziou. Um criado acudiu logo e João Romão, depois
de consultar Dona Estela, pediu sanduíches, doces e moscatel de Setúbal. Mas
Zulmira reclamou sorvete e licor. E só esta falava; os outros estavam ainda
à procura de um assunto para a conversa; afinal o Miranda que, durante esse
tempo contemplava o teto e as paredes, fez algumas considerações sobre as
reformas e novos adornos do salão da confeitaria. Dona Estela dirigiu, de
má, a João Romão várias perguntas sobre a companhia lírica, o que confundiu
por tal modo ao pobre do homem, que o pôs vermelho e o desnorteou de todo.
Felizmente, nesse instante chegava o Botelho e trazia uma noticia: a morte
de um sargento no quartel; questão entre inferior e superior. O sargento,
insultado por um oficial do seu batalhão, levantara a mão contra ele, e o
oficial então arrancara da espada e atravessara-o de lado a lado. Estava direito!
Ah! ele era rigoroso em pontos de disciplina militar! Um sargento levantara
a mão para um oficial superior!… devia ficar estendido ali mesmo, que dúvida!
E faiscavam-lhe os olhos no seu inveterado entusiasmo por tudo que cheirasse
a farda. Vieram logo as anedotas análogas; o Miranda contou um fato idêntico
que se dera vinte anos atrás e Botelho citou uma enfiada deles interminável.
Quando se levantaram, João Romão deu o braço a Zulmira e o Barão à mulher,
e seguiram todos para o Largo de São Francisco, lentamente, em andar de passeio,
acompanhados pelo parasita. Lá chegados, Miranda queria que o vizinho aceitasse
um lugar no seu carro, mas João Romão tinha ainda que fazer na cidade e pediu
dispensa do obséquio. Botelho também ficou; e, mal a carruagem partiu, este
disse ao ouvido do outro, sem tomar fôlego: – O homem vai hoje, sabe? Está
tudo combinado! – Ah! vai? perguntou João Romão com interesse, estacando no
meio do largo. Ora graças! Já não é sem tempo! – Sem tempo! Pois olhe, meu
amigo, que tenho suado o topete! Foi uma campanha! – Há que tempo já tratamos
disto!… – Mas que quer você, se o homem não aparecia?… Estava fora! Escrevi-lhe
várias vezes, como sabe, e só agora consegui pilhá-lo. Fui também à polícia
duas vezes e já lá voltei hoje; ficou tudo pronto! mas você deve estar em
casa para entregar a crioula quando eles lá se apresentarem… – Isso é que
seria bom se se pudesse dispensar… Desejava não estar presente… – Ora
essa! Então com quem se entendem eles?… Não! tenha paciência! é preciso
que você lá esteja! – Você podia fazer as minhas vezes…

– Pior! Assim não arranjamos nada! Qualquer dúvida pode entornar o caldo!
É melhor fazer as coisas bem feitas. Que diabo lhe custa isto?… Os homenzinhos
chegam, reclamam a escrava em nome da lei, e você a entrega – pronto! Fica
livre dela para sempre, e daqui a dias estoura o champanha do casório! Hein,
não lhe parece? – Mas… – Ela há de choramingar, fazer lamúrias e coisas,
mas você põe-se duro e deixe-a seguir lá o seu destino!… Bolas! não foi
você que a fez negra!… – Pois vamos lá! creio que são horas. – Que horas
são? – Três e vinte. – Vamos indo. E desceram de novo a Rua do Ouvidor até
ao ponto dos bondes de Gonçalves Dias. – O de São Clemente não está agora,
observou o velho. Vou tomar um copo d’água enquanto esperamos.

Entraram no botequim do lugar e, para conversar assentados, pediram dois
cálices de conhaque.

– Olhe, acrescentou o Botelho; você nem precisa dizer palavra… faça como
coisa que não tem nada com isso, compreende?

– E se o homem quiser os ordenados de todo o tempo em que ela esteve em minha
companhia?…

– Como, filho, se você não a alugou das mãos de ninguém?!… Você não sabe
lá se a mulher é ou era escrava; tinha-a por livre naturalmente; agora aparece
o dono, reclama-a e você a entrega, porque não quer ficar com o que lhe não
pertence! Ela, sim, pode pedir o seu saldo de contas; mas para isso você lhe
dará qualquer coisa…

– Quanto devo dar-lhe?

– Aí uns quinhentos mil-réis, para fazer a coisa à fidalga.

– Pois dou-lhos.

– E feito isso – acabou-se! O próprio Miranda vai logo, logo, ter com você!
Verá!

Iam falar ainda, mas o bonde de São Clemente acabava de chegar, assaltado
por todos os lados pela gente que o esperava. Os dois só conseguiram lugar
muito separados um do outro, de sorte que não puderam conversar durante a
viagem. No Largo da Carioca uma vitória passou por eles, a todo o trote. Botelho
vergou-se logo para trás, procurando os olhos do vendeiro, a rir-se com intenção.
Dentro do carro ia Pombinha, coberta de jóias, ao lado de Henrique; ambos
muito alegres, em pândega. O estudante, agora no seu quarto ano de medicina,
vivia à solta com outros da mesma idade e pagava ao Rio de Janeiro o seu tributo
de rapazola rico. Ao chegarem à casa, João Romão pediu ao cúmplice que entrasse
e levou-o para o seu escritório.

– Descanse um pouco… disse-lhe.

– É, se eu soubesse que eles se não demoravam muito ficava para ajudá-lo.

– Talvez só venham depois do jantar, tornou aquele, assentando-se à carteira.

Um caixeiro aproximou-se dele respeitosamente e fez-lhe várias perguntas
relativas ao serviço do armazém, ao que João Romão respondia por monossílabos
de capitalista; interrogou-o por sua vez e, como não havia novidade, tomou
Botelho pelo braço e convidou-o a sair.

– Fique para jantar. São quatro e meia, segredou-lhe na escada.

Já não era preciso prevenir lá defronte porque agora o velho parasita comia
muitas vezes em casa do vizinho. O jantar correu frio e contrafeito; os dois
sentiam-se ligeiramente dominados por um vago sobressalto. João Romão foi
pouco além da sopa e quis logo a sobremesa. Tomavam café, quando um empregado
subiu para dizer que lá embaixo estava um senhor, acompanhado de duas praças,
e que desejava falar ao dono da casa. – Vou já, respondeu este. E acrescentou
para o Botelho: – São eles! – Deve ser, confirmou o velho. E desceram logo.
– Quem me procura?… exclamou João Romão com disfarce, chegando ao armazém.

Um homem alto, com ar de estróina, adiantou-se e entregou-lhe uma folha de
papel.

João Romão, um pouco trêmulo, abriu-a defronte dos olhos e leu-a demoradamente.
Um silêncio formou-se em torno dele; os caixeiros pararam em meio do serviço,
intimidados por aquela cena em que entrava a polícia. – Está aqui com efeito…
disse afinal o negociante. Pensei que fosse livre… – É minha escrava, afirmou
o outro. Quer entregar-ma?… – Mas imediatamente. – Onde está ela? – Deve
estar lá dentro. Tenha a bondade de entrar… O sujeito fez sina! aos dois
urbanos, que o acompanharam logo, e encaminharam-se todos para o interior
da casa. Botelho, à frente deles, ensinava-lhes o caminho. João Romão ia atrás,
pálido, com as mãos cruzadas nas costas. Atravessaram o armazém, depois um
pequeno corredor que dava para um pátio calçado, chegaram finalmente à cozinha.
Bertoleza, que havia já feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras,
no chão, escamando peixe, para a ceia do seu homem, quando viu parar defronte
dela aquele grupo sinistro. Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo
senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo
compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido
para sempre: adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria
era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a
ao cativeiro. Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os
olhos em torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe
o ombro. – É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada
a segui-los. – Prendam-na! É escrava minha! A negra, imóvel, cercada de escamas
e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando
a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar. Os policiais,
vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então,
erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém
conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre
de lado a lado. E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda
numa lameira de sangue. João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém,
tapando o rosto com as mãos. Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem.
Era uma comissão de abolicionistas que vinha, de casaca! trazer-lhe respeitosamente
o diploma de sócio benemérito.

Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.

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