O Céu e o Inferno – Allan Kardec

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O porvir e o nada

Temor da morte

O Céu

O Inferno

O Purgatório

 

 

O porvir e o nada

1. – Vivemos, pensamos e operamos – eis o que é positivo. E que morremos,
não é menos certo.

Mas, deixando a Terra, para onde vamos? Que seremos após a morte?
Estaremos melhor ou pior? Existiremos ou não? Ser ou não ser,
tal a alternativa. Para sempre ou para nunca mais; ou tudo ou nada: Viveremos
eternamente, ou tudo se aniquilara de vez? É uma tese, essa, que se
impõe.

Todo homem experimenta a necessidade de viver, de gozar, de amar e ser feliz.
Dizei ao moribundo que ele viverá ainda; que a sua hora é retardada;
dizei-lhe sobretudo que será mais feliz do que porventura o tenha sido,
e o seu coração rejubilará.

Mas, de que serviriam essas aspirações de felicidade, se um
leve sopro pudesse dissipá-las?

Haverá algo de mais desesperador do que esse pensamento da destruição
absoluta? Afeições caras, inteligência, progresso, saber
laboriosamente adquiridos, tudo despedaçado, tudo perdido! De nada
nos serviria, portanto, qualquer esforço no sofreamento das paixões,
de fadiga para nos ilustrarmos, de devotamento à causa do progresso,
desde que de tudo isso nada aproveitássemos, predominando o pensamento
de que amanhã mesmo, talvez, de nada nos serviria tudo isso. Se assim
fora, a sorte do homem seria cem vezes pior que a do bruto, porque este vive
inteiramente do presente na satisfação dos seus apetites materiais,
sem aspiração para o futuro. Diz-nos uma secreta intuição,
porém, que isso não é possível.

2. – Pela crença em o nada, o homem concentra todos os seus pensamentos,
forçosamente, na vida presente.

Logicamente não se explicaria a preocupação de um futuro
que se não espera.

Esta preocupação exclusiva do presente conduz o homem a pensar
em si, de preferência a tudo: é, pois, o mais poderoso estimulo
ao egoísmo, e o incrédulo é conseqüente quando chega
à seguinte conclusão: Gozemos enquanto aqui estamos; gozemos
o mais possível, pois que conosco tudo se acaba; gozemos depressa,
porque não sabemos quanto tempo existiremos

Ainda conseqüente é esta outra conclusão, aliás
mais grave para a sociedade: Gozemos apesar de tudo, gozemos de qualquer modo,
cada qual por si: a felicidade neste mundo é do mais astuto.

E se o respeito humano contém a alguns seres, que freio haverá
para os que nada temem?

Acreditam estes últimos que as leis humanas não atingem senão
os ineptos e assim empregam todo o seu engenho no melhor meio de a elas se
esquivarem.

Se há doutrina insensata e anti-social, é, seguramente, o niilismo
que rompe os verdadeiros laços de solidariedade e fraternidade, em
que se fundam as relações sociais.

3. – Suponhamos que, por uma circunstância qualquer, todo um povo adquire
a certeza de que em oito dias, num mês, ou num ano será aniquilado;
que nem um só indivíduo lhe sobreviverá, como de sua
existência não sobreviverá nem um só traço:
Que fará esse povo condenado, aguardando o extermínio?

Trabalhará pela causa do seu progresso, da sua instrução?
Entregar-se-á ao trabalho para viver? Respeitará os direitos,
os bens, a vida do seu semelhante? Submeter-se-á a qualquer lei ou
autoridade por mais legitima que seja, mesmo a paterna?

Haverá para ele, nessa emergência, qualquer dever?

Certo que não. Pois bem! O que se não dá coletivamente,
a doutrina do niilismo realiza todos os dias isoladamente, individualmente.

E se as conseqüências não são desastrosas tanto
quanto poderiam ser, é, em primeiro lugar, porque na maioria dos incrédulos
há mais jactância que verdadeira incredulidade, mais dúvida
que convicção – possuindo eles mais medo do nada do que pretendem
aparentar – o qualificativo de espíritos fortes lisonjeia-lhes a vaidade
e o amor-próprio; em segundo lugar, porque os incrédulos absolutos
se contam por ínfima minoria, e sentem a seu pesar os ascendentes da
opinião contrária, mantidos por uma força material.

Torne-se, não obstante, absoluta a incredulidade da maioria, e a sociedade
entrará em dissolução.

Eis ao que tende a propagação da doutrina niilista. (1)

Fossem, porém, quais fossem as suas conseqüências, uma
vez que se impusesse como verdadeira, seria preciso aceitá-la, e nem
sistemas contrários, nem a idéia dos males resultantes poderiam
obstar-lhe a existência. Forçoso é dizer que, a despeito
dos melhores esforços da religião, o cepticismo, a dúvida,
a indiferença ganham terreno dia a dia.

Mas, se a religião se mostra impotente para sustar a incredulidade,
é que lhe falta alguma coisa na luta. Se por outro lado a religião
se condenasse à imobilidade, estaria, em dado tempo, dissolvida.

O que lhe falta neste século de positivismo, em que se procura compreender
antes de crer, é, sem dúvida, a sanção de suas
doutrinas por fatos positivos, assim como a concordância das mesmas
com os dados positivos da Ciência. Dizendo ela ser branco o que os fatos
dizem ser negro, é preciso optar entre a evidência e a fé
cega.

(1) Um moço de dezoito anos, afetado de uma enfermidade do coração,
foi declarado incurável. A Ciência havia dito: Pode morrer dentro
de oito dias ou de dois anos, mas não irá além. Sabendo-o,
o moço para logo abandonou os estudos e entregou-se a excessos de todo
o gênero.

Quando se lhe ponderava o perigo de uma vida desregrada, respondia: Que me
importa, se não tenho mais de dois anos de vida? De que me serviria
fatigar o espírito? Gozo o pouco que me resta e quero divertir-me até
ao fim. Eis a conseqüência lógica do niilismo.

Se este moço fora espírita, teria dito: A morte só destruirá
o corpo, que deixarei como fato usado, mas o meu Espírito viverá.
Serei na vida futura aquilo que eu próprio houver feito de mim nesta
vida; do que nela puder adquirir em qualidades morais e intelectuais nada
perderei, porque será outro tanto de ganho para o meu adiantamento;
toda a imperfeição de que me livrar será um passo a mais
para a felicidade. A minha felicidade ou infelicidade depende da utilidade
ou inutilidade da presente existência. É portanto de meu interesse
aproveitar o pouco tempo que me resta, e evitar tudo que possa diminuir-me
as forças. Qual destas doutrinas é preferível?

4. – É nestas circunstâncias que o Espiritismo vem opor um dique
à difusão da incredulidade, não somente pelo raciocínio,
não somente pela perspectiva dos perigos que ela acarreta, mas pelos
fatos materiais, tornando visíveis e tangíveis a alma e a vida
futura.

Todos somos livres na escolha das nossas crenças; podemos crer em
alguma coisa ou em nada crer, mas aqueles que procuram fazer prevalecer no
espírito das massas, da juventude principalmente, a negação
do futuro, apoiando-se na autoridade do seu saber e no ascendente da sua posição,
semeiam na sociedade germens de perturbação e dissolução,
incorrendo em grande responsabilidade.

5. – Há uma doutrina que se defende da pecha de materialista porque
admite a existência de um princípio inteligente fora da matéria:
é a da absorção no Todo Universal.

Segundo esta doutrina, cada indivíduo assimila ao nascer uma parcela
desse princípio, que constitui sua alma, e dá-lhe vida, inteligência
e sentimento.

Pela morte, esta alma volta ao foco comum e perde-se no infinito, qual gota
dágua no oceano.

Incontestavelmente esta doutrina é um passo adiantado sobre o puro
materialismo, visto como admite alguma coisa, quando este nada admite. As
conseqüências, porém, são exatamente as mesmas.

Ser o homem imerso em o nada ou no reservatório comum, é para
ele a mesma coisa; aniquilado ou perdendo a sua individualidade, é
como se não existisse; as relações sociais nem por isso
deixam de romper-se, e para sempre.

O que lhe é essencial é a conservação do seu
eu; sem este, que lhe importa ou não subsistir?

O futuro afigura-se-lhe sempre nulo, e a vida presente é a única
coisa que o interessa e preocupa.

Sob o ponto de vista das conseqüências morais, esta doutrina é,
pois, tão insensata, tão desesperadora, tão subversiva
como o materialismo propriamente dito.

6. – Pode-se, além disso, fazer esta objeção: todas
as gotas d’água tomadas ao oceano se assemelham e possuem idênticas
propriedades como partes de um mesmo todo; por que, pois, as almas tomadas
ao grande oceano da inteligência universal tão pouco se assemelham?
Por que o gênio e a estupidez, as mais sublimes virtudes e os vícios
mais ignóbeis? Por que a bondade, a doçura, a mansuetude ao
lado da maldade, da crueldade, da barbaria? Como podem ser tão diferentes
entre si as partes de um mesmo todo homogêneo? Dir-se-á que é
a educação que a modifica? Neste caso donde vêm as qualidades
inatas, as inteligências precoces, os bons e maus instintos independentes
de toda a educação e tantas vezes em desarmonia com o meio no
qual se desenvolvem?

Não resta dúvida de que a educação modifica as
qualidades intelectuais e morais da alma; mas aqui ocorre uma outra dificuldade:
Quem dá a esta a educação para fazê-la progredir?
Outras almas que por sua origem comum não devem ser mais adiantadas.
Além disso, reentrando a alma no Todo Universal donde saiu, e havendo
progredido durante a vida, leva-lhe um elemento mais perfeito. Dai se infere
que esse Todo se encontraria, pela continuação, profundamente
modificado e melhorado. Assim, como se explica saírem incessantemente
desse Todo almas ignorantes e perversas?

7. – Nesta doutrina, a fonte universal de inteligência que abastece
as almas humanas é independente da Divindade; não é precisamente
o panteísmo.

O panteísmo propriamente dito considera o principio universal de vida
e de inteligência como constituindo a Divindade. Deus é concomitantemente
Espírito e matéria; todos os seres, todos os corpos da Natureza
compõem a Divindade, da qual são as moléculas e os elementos
constitutivos; Deus é o conjunto de todas as inteligências reunidas;
cada indivíduo, sendo uma parte do todo, é Deus ele próprio;
nenhum ser superior e independente rege o conjunto; o Universo é uma
imensa república sem chefe, ou antes, onde cada qual é chefe
com poder absoluto.

8. – A este sistema podem opor-se inumeráveis objeções,
das quais são estas as principais: não se podendo conceber divindade
sem infinita perfeição, pergunta-se como um todo perfeito pode
ser formado de partes tão imperfeitas, tendo necessidade de progredir?
Devendo cada parte ser submetida à lei do progresso, força é
convir que o próprio Deus deve progredir; e se Ele progride constantemente,
deveria ter sido, na origem dos tempos, muito imperfeito.

E como pôde um ser imperfeito, formado de idéias tão
divergentes, conceber leis tão harmônicas, tão admiráveis
de unidade, de sabedoria e previdência quais as que regem o Universo?
Se todas as almas são porções da Divindade, todos concorreram
para as leis da Natureza; como sucede, pois, que elas murmurem sem cessar
contra essas leis que são obra sua? Uma teoria não pode ser
aceita como verdadeira senão com a cláusula de satisfazer a
razão e dar conta de todos os fatos que abrange; se um só fato
lhe trouxer um desmentido, é que não contém a verdade
absoluta.

9. – Sob o ponto de vista moral, as conseqüências são igualmente
ilógicas. Em primeiro lugar é para as almas, tal como no sistema
precedente, a absorção num todo e a perda da individualidade.
Dado que se admita, consoante a opinião de alguns panteístas,
que as almas conservem essa individualidade, Deus deixaria de ter vontade
única para ser um composto de miríades de vontades divergentes.

Além disso, sendo cada alma parte integrante da Divindade, deixa de
ser dominada por um poder superior; não incorre em responsabilidade
por seus atos bons ou maus; soberana, não tendo interesse algum na
prática do bem, ela pode praticar o mal impunemente.

10. – Demais, estes sistemas não satisfazem nem a razão nem
a aspiração humanas; deles decorrem dificuldades insuperáveis,
pois são impotentes para resolver todas as questões de fato
que suscitam. O homem tem, pois, três alternativas: o nada, a absorção
ou a individualidade da alma antes e depois da morte

É para esta última crença que a lógica nos impele
irresistivelmente, crença que tem formado a base de todas as religiões
desde que o mundo existe.

E se a lógica nos conduz à individualidade da alma, também
nos aponta esta outra conseqüência: a sorte de cada alma deve depender
das suas qualidades pessoais, pois seria irracional admitir que a alma atrasada
do selvagem, como a do homem perverso, estivesse no nível da do sábio,
do homem de bem. Segundo os princípios de justiça, as almas
devem ter a responsabilidade dos seus atos, mas para haver essa responsabilidade,
preciso é que elas sejam livres na escolha do bem e do mal; sem o livre-arbítrio
há fatalidade, e com a fatalidade não coexistiria a responsabilidade.

11. – Todas as religiões admitiram igualmente o principio da felicidade
ou infelicidade da alma após a morte, ou, por outra, as penas e gozos
futuros, que se resumem na doutrina do céu e do inferno encontrada
em toda parte.

No que elas diferem essencialmente, é quanto à natureza dessas
penas e gozos, principalmente sobre as condições determinantes
de umas e de outras.

Daí os pontos de fé contraditórios dando origem a cultos
diferentes, e os deveres impostos por estes, consecutivamente, para honrar
a Deus e alcançar por esse meio o céu, evitando o inferno.

12. – Todas as religiões houveram de ser em sua origem relativas ao
grau de adiantamento moral e intelectual dos homens: estes, assaz materializados
para compreenderem o mérito das coisas puramente espirituais, fizeram
consistir a maior parte dos deveres religiosos no cumprimento de fórmulas
exteriores.

Por muito tempo essas fórmulas lhes satisfizeram a razão; porém,
mais tarde, porque se fizesse a luz em seu espírito, sentindo o vácuo
dessas fórmulas, uma vez que a religião não o preenchia,
abandonaram-na e tornaram-se filósofos.

13. – Se a religião, apropriada em começo aos conhecimentos
limitados do homem, tivesse acompanhado sempre o movimento progressivo do
espírito humano, não haveria incrédulos, porque está
na própria natureza do homem a necessidade de crer, e ele crerá
desde que se lhe dê o pábulo espiritual de harmonia com as suas
necessidades intelectuais.

O homem quer saber donde velo e para onde vai. Mostrando-se-lhe um fim que
não corresponde às suas aspirações nem à
idéia que ele faz de Deus, tampouco aos dados positivos que lhe fornece
a Ciência; impondo-se-lhe, ademais, para atingir o seu desiderato, condições
cuja utilidade sua razão contesta, ele tudo rejeita; o materialismo
e o panteísmo parecem-lhe mais racionais, porque com eles ao menos
se raciocina e se discute, falsamente embora. E há razão, porque
antes raciocinar em falso do que não raciocinar absolutamente.

Apresente-se-lhe, porém, um futuro condicionalmente lógico,
digno em tudo da grandeza, da justiça e da infinita bondade de Deus,
e ele repudiará o materialismo e o panteísmo, cujo vácuo
sente em seu foro intimo, e que aceitará à falta de melhor crença.

O Espiritismo dá coisa melhor; eis por que é acolhido pressurosamente
por todos os atormentados da dúvida, os que não encontram nem
nas crenças nem nas filosofias vulgares o que procuram. O Espiritismo
tem por si a lógica do raciocínio e a sanção dos
fatos, e é por isso que inutilmente o têm combatido.

14. – Instintivamente tem o homem a crença no futuro, mas não
possuindo até agora nenhuma base certa para defini-lo, a sua imaginação
fantasiou os sistemas que originaram a diversidade de crenças. A Doutrina
Espírita sobre o futuro – não sendo uma obra de imaginação
mais ou menos arquitetada engenhosamente, porém o resultado da observação
de fatos materiais que se desdobram hoje à nossa vista -congraçará,
como já está acontecendo, as opiniões divergentes ou
flutuantes e trará gradualmente, pela força das coisas, a unidade
de crenças sobre esse ponto, não já baseada em simples
hipótese, mas na certeza. A unificação feita relativamente
à sorte futura das almas será o primeiro ponto de contacto dos
diversos cultos, um passo imenso para a tolerância religiosa em primeiro
lugar e, mais tarde, para a completa fusão.

Temor da morte

Causas do temor da morte

1 – O homem, seja qual for a escala de sua posição social,
desde selvagem tem o sentimento inato do futuro; diz-lhe a intuição
que a morte não é a última fase da existência e
que aqueles cuja perda lamentamos não estão irremissivelmente
perdidos. A crença da imortalidade é intuitiva e muito mais
generalizada do que a do nada.

Entretanto, a maior parte dos que nele crêem apresentam-se-nos possuídos
de grande amor às coisas terrenas e temerosos da morte! Por quê?

2. – Este temor é um efeito da sabedoria da Providência e uma
conseqüência do instinto de conservação comum a todos
os viventes. Ele é necessário enquanto não se está
suficientemente esclarecido sobre as condições da vida futura,
como contrapeso à tendência que, sem esse freio, nos levaria
a deixar prematuramente a vida e a negligenciar o trabalho terreno que deve
servir ao nosso próprio adiantamento.

Assim é que, nos povos primitivos, o futuro é uma vaga intuição,
mais tarde tornada simples esperança e, finalmente, uma certeza apenas
atenuada por secreto apego à vida corporal.

3 . – A proporção que o homem compreende melhor a vida futura,
o temor da morte diminui; uma vez esclarecida a sua missão terrena,
aguarda-lhe o fim calma, resignada e serenamente. A certeza da vida futura
dá-lhe outro curso às idéias, outro fito ao trabalho;
antes dela nada que se não prenda ao presente; depois dela tudo pelo
futuro sem desprezo do presente, porque sabe que aquele depende da boa ou
da má direção deste.

A certeza de reencontrar seus amigos depois da morte, de reatar as relações
que tivera na Terra, de não perder um só fruto do seu trabalho,
de engrandecer-se incessantemente em inteligência, perfeição,
dá-lhe paciência para esperar e coragem para suportar as fadigas
transitórias da vida terrestre. A solidariedade entre vivos e mortos
faz-lhe compreender a que deve existir na Terra, onde a fraternidade e a caridade
têm desde então um fim e uma razão de ser, no presente
como no futuro.

4. – Para libertar-se do temor da morte é mister poder encará-la
sob o seu verdadeiro ponto de vista, isto é, ter penetrado pelo pensamento
no mundo espiritual, fazendo dele uma idéia tão exata quanto
possível, o que denota da parte do Espírito encarnado um tal
ou qual desenvolvimento e aptidão para desprender-se da matéria.

No Espírito atrasado a vida material prevalece sobre a espiritual.
Apegando-se às aparências, o homem não distingue a vida
além do corpo, esteja embora na alma a vida real; aniquilado aquele,
tudo se lhe afigura perdido, desesperador.

Se, ao contrário, concentrarmos o pensamento, não no corpo,
mas na alma, fonte da vida, ser real a tudo sobrevivente, lastimaremos menos
a perda do corpo, antes fonte de misérias e dores. Para isso, porém,
necessita o Espírito de uma força só adquirível
na madureza.

O temor da morte decorre, portanto, da noção insuficiente da
vida futura, embora denote também a necessidade de viver e o receio
da destruição total; igualmente o estimula secreto anseio pela
sobrevivência da alma, velado ainda pela incerteza.

Esse temor decresce, à proporção que a certeza aumenta,
e desaparece quando esta é completa.

Eis aí o lado providencial da questão. Ao homem não
suficientemente esclarecido, cuja razão mal pudesse suportar a perspectiva
muito positiva e sedutora de um futuro melhor, prudente seria não o
deslumbrar com tal idéia, desde que por ela pudesse negligenciar o
presente, necessário ao seu adiantamento material e intelectual.

5. – Este estado de coisas é entretido e prolongado por causas puramente
humanas, que o progresso fará desaparecer. A primeira é a feição
com que se insinua a vida futura, feição que poderia contentar
as inteligências pouco desenvolvidas, mas que não conseguiria
satisfazer a razão esclarecida dos pensadores refletidos. Assim, dizem
estes: “Desde que nos apresentam como verdades absolutas princípios
contestados pela lógica e pelos dados positivos da Ciência, é
que eles não são verdades.” Daí, a incredulidade
de uns e a crença dúbia de um grande número.

A vida futura é-lhes uma idéia vaga, antes uma probabilidade
do que certeza absoluta; acreditam, desejariam que assim fosse, mas apesar
disso exclamam: “Se todavia assim não for! O presente é
positivo, ocupemo-nos dele primeiro, que o futuro por sua vez virá”

E depois, acrescentam, definitivamente que é a alma? Um ponto, um
átomo, uma faísca, uma chama? Como se sente, vê ou percebe?
E que a alma não lhes parece uma realidade efetiva, mas uma abstração.

Os entes que lhes são caros, reduzidos ao estado de átomos
no seu modo de pensar, estão perdidos, e não têm mais
a seus olhos as qualidades pelas quais se lhes fizeram amados; não
podem compreender o amor de uma faísca nem o que a ela possamos ter.
Quanto a si mesmos, ficam mediocremente satisfeitos com a perspectiva de se
transformarem em mônadas. Justifica-se assim a preferência ao
positivismo da vida terrestre, que algo possui de mais substancial.

É considerável o número dos dominados por este pensamento.

6. – Outra causa de apego às coisas terrenas, mesmo nos que mais firmemente
crêem na vida futura, é a impressão do ensino que relativamente
a ela se lhes há dado desde a infância. Convenhamos que o quadro
pela religião esboçado, sobre o assunto, é nada sedutor
e ainda menos consolatório.

De um lado, contorções de condenados a expiarem em torturas
e chamas eternas os erros de uma vida efêmera e passageira. Os séculos
sucedem-se aos séculos e não há para tais desgraçados
sequer o lenitivo de uma esperança e, o que mais atroz é, não
lhes aproveita o arrependimento. De outro lado, as almas combalidas e aflitas
do purgatório aguardam a intercessão dos vivos que orarão
ou farão orar por elas, sem nada fazerem de esforço próprio
para progredirem.

Estas duas categorias compõem a maioria imensa da população
de além-túmulo. Acima delas, paira a limitada classe dos eleitos,
gozando, por toda a eternidade, da beatitude contemplativa. Esta inutilidade
eterna, preferível sem dúvida ao nada, não deixa de ser
de uma fastidiosa monotonia. É por isso que se vê, nas figuras
que retratam os bem-aventurados, figuras angélicas onde mais transparece
o tédio que a verdadeira felicidade.

Este estado não satisfaz nem as aspirações nem a instintiva
idéia de progresso, única que se afigura compatível com
a felicidade absoluta. Custa crer que, só por haver recebido o batismo,
o selvagem ignorante – de senso moral obtuso -, esteja ao mesmo nível
do homem que atingiu, após longos anos de trabalho, o mais alto grau
de ciência e moralidade práticas. Menos concebível ainda
é que a criança falecida em tenra idade, antes de ter consciência
de seus atos, goze dos mesmos privilégios somente por força
de uma cerimônia na qual a sua vontade não teve parte alguma.
Estes raciocínios não deixam de preocupar os mais fervorosos
crentes, por pouco que meditem.

7. – Não dependendo a felicidade futura do trabalho progressivo na
Terra, a facilidade com que se acredita adquirir essa felicidade, por meio
de algumas práticas exteriores, e a possibilidade até de a comprar
a dinheiro, sem regeneração de caráter e costumes, dão
aos gozos do mundo o melhor valor.

Mais de um crente considera, em seu foro íntimo, que assegurado o
seu futuro pelo preenchimento de certas fórmulas ou por dádivas
póstumas, que de nada o privam, seria supérfluo impor-se sacrifícios
ou quaisquer incômodos por outrem, uma vez que se consegue a salvação
trabalhando cada qual por si.

Seguramente, nem todos pensam assim, havendo mesmo muitas e honrosas exceções;
mas não se poderia contestar que assim pensa o maior número,
sobretudo das massas pouco esclarecidas, e que a idéia que fazem das
condições de felicidade no outro mundo não entretenha
o apego aos bens deste, acoroçoando o egoísmo.

8. – Acrescentemos ainda a circunstância de tudo nas usanças
concorrer para lamentar a perda da vida terrestre e temer a passagem da Terra
ao céu. A morte é rodeada de cerimônias lúgubres,
mais próprias a infundirem terror do que a provocarem a esperança.
Se descrevem a morte, é sempre com aspecto repelente e nunca como sono
de transição; todos os seus emblemas lembram a destruição
do corpo, mostrando-o hediondo e descarnado; nenhum simboliza a alma desembaraçando-se
radiosa dos grilhões terrestres. A partida para esse mundo mais feliz
só se faz acompanhar do lamento dos sobreviventes, como se imensa desgraça
atingira os que partem; dizem-lhes eternos adeuses como se jamais devessem
revê-los. Lastima-se por eles a perda dos gozos mundanos, como se não
fossem encontrar maiores gozos no além-túmulo. Que desgraça,
dizem, morrer tão jovem, rico e feliz, tendo a perspectiva de um futuro
brilhante! A idéia de um futuro melhor apenas toca de leve o pensamento,
porque não tem nele raízes. Tudo concorre, assim, para inspirar
o terror da morte, em vez de infundir esperança.

Sem dúvida que muito tempo será preciso para o homem se desfazer
desses preconceitos, o que não quer dizer que isto não suceda,
à medida que a sua fé se for firmando, a ponto de conceber uma
idéia mais sensata da vida espiritual.

9. – Demais, a crença vulgar coloca as almas em regiões apenas
acessíveis ao pensamento, onde se tornam de alguma sorte estranhas
aos vivos; a própria Igreja põe entre umas e outras uma barreira
insuperável, declarando rotas todas as relações e impossível
qualquer comunicação. Se as almas estão no inferno, perdida
é toda a esperança de as rever, a menos que lá se vá
ter também; se estão entre os eleitos, vivem completamente absortas
em contemplativa beatitude. Tudo isso interpõe entre mortos e vivos
uma distância tal que faz supor eterna a separação, e
é por isso que muitos preferem ter junto de si, embora sofrendo, os
entes caros, antes que vê-los partir, ainda mesmo que para o céu.

E a alma que estiver no céu será realmente feliz vendo, por
exemplo, arder eternamente seu filho, seu pai, sua mãe ou seus amigos?

Por que os espíritas não temem a morte
10. – A Doutrina Espírita transforma completamente a perspectiva do
futuro. A vida futura deixa de ser uma hipótese para ser realidade.
O estado das almas depois da morte não é mais um sistema, porém
o resultado da observação. Ergueu-se o véu; o mundo espiritual
aparece-nos na plenitude de sua realidade prática; não foram
os homens que o descobriram pelo esforço de uma concepção
engenhosa, são os próprios habitantes desse mundo que nos vêm
descrever a sua situação; aí os vemos em todos os graus
da escala espiritual, em todas as rases da felicidade e da desgraça,
assistindo, enfim, a todas as peripécias da vida de além-túmulo.
Eis aí por que os espíritas encaram a morte calmamente e se
revestem de serenidade nos seus últimos momentos sobre a Terra. Já
não é só a esperança, mas a certeza que os conforta;
sabem que a vida futura é a continuação da vida terrena
em melhores condições e aguardam-na com a mesma confiança
com que aguardariam o despontar do Sol após uma noite de tempestade.
Os motivos dessa confiança decorrem, outrossim, dos fatos testemunhados
e da concordância desses fatos com a lógica, com a justiça
e bondade de Deus, correspondendo às íntimas aspirações
da Humanidade.

Para os espíritas, a alma não é uma abstração;
ela tem um corpo etéreo que a define ao pensamento, o que muito é
para fixar as idéias sobre a sua individualidade, aptidões e
percepções. A lembrança dos que nos são caros
repousa sobre alguma coisa de real. Não se nos apresentam mais como
chamas fugitivas que nada falam ao pensamento, porém sob uma forma
concreta que antes no-los mostra como seres viventes. Além disso, em
vez de perdidos nas profundezas do Espaço, estão ao redor de
nós; o mundo corporal e o mundo espiritual identificam-se em perpétuas
relações, assistindo-se mutuamente.

Não mais permissível sendo a dúvida sobre o futuro,
desaparece o temor da morte; encara-se a sua aproximação a sangue-frio,
como quem aguarda a libertação pela porta da vida e não
do nada.

O Céu

1. – Em geral, a palavra céu designa o espaço indefinido que
circunda a Terra, e mais particularmente a parte que está acima do
nosso horizonte. Vem do latim coelum, formada do grego coiios, côncavo,
porque o céu parece uma imensa concavidade.

Os antigos acreditavam na existência de muitos céus superpostos,
de matéria sólida e transparente, formando esferas concêntricas
e tendo a Terra por centro.

Girando essas esferas em torno da Terra, arrastavam consigo os astros que
se achavam em seu circuito.

Essa idéia, provinda da deficiência de conhecimentos astronômicos,
foi a de todas as teogonias, que fizeram dos céus, assim escalados,
os diversos degraus da bem-aventurança: o último deles era abrigo
da suprema felicidade.

Segundo a opinião mais comum, havia sete céus e daí
a expressão – estar no sétimo céu – para exprimir perfeita
felicidade. Os muçulmanos admitem nove céus, em cada um dos
quais se aumenta a felicidade dos crentes.

O astrônomo Ptolomeu (1) contava onze e denominava ao último
Empíreo (2) por causa da luz brilhante que nele reina.

É este ainda hoje o nome poético dado ao lugar da glória
eterna. A teologia cristã reconhece três céus: o primeiro
é o da região do ar e das nuvens; o segundo, o espaço
em que giram os astros, e o terceiro, para além deste, é a morada
do Altíssimo, a habitação dos que o contemplam face a
face. É conforme a esta crença que se diz que S. Paulo foi alçado
ao terceiro céu.

(1) Ptolomeu viveu em Alexandria, Egito, no segundo século da era
cristã. (2) Do grego, pur ou pyr, fogo.

2. – As diferentes doutrinas relativamente ao paraíso repousam todas
no duplo erro de considerar a Terra centro do Universo, e limitada a região
dos astros.

É além desse limite imaginário que todas têm colocado
a residência afortunada e a morada do Todo-Poderoso.

Singular anomalia que coloca o Autor de todas as coisas, Aquele que as governa
a todas, nos confins da criação, em vez de no centro, donde
o seu pensamento poderia, irradiante, abranger tudo!

3. – A Ciência, com a lógica inexorável da observação
e dos fatos, levou o seu archote às profundezas do Espaço e
mostrou a nulidade de todas essas teorias.

A Terra não é mais o eixo do Universo, porém um dos
menores astros que rolam na imensidade; o próprio Sol mais não
é do que o centro de um turbilhão planetário; as estrelas
são outros tantos e inumeráveis sóis, em torno dos quais
circulam mundos sem conta, separados por distâncias apenas acessíveis
ao pensamento, embora se nos afigure tocarem-se. Neste conjunto grandioso,
regido por leis eternas -reveladoras da sabedoria e onipotência do Criador
-, a Terra não é mais que um ponto imperceptível e um
dos planetas menos favorecidos quanto à habitabilidade. E, assim sendo,
é lícito perguntar por que Deus faria da Terra a única
sede da vida e nela degredaria as suas criaturas prediletas? Mas, ao contrário,
tudo anuncia a vida por toda parte e a Humanidade é infinita como o
Universo.

Revelando-nos a Ciência mundos semelhantes ao nosso, Deus não
podia tê-los criado sem intuito, antes deve tê-los povoado de
seres capazes de os governar.

4. – As idéias do homem estão na razão do que ele sabe;
como todas as descobertas importantes, a da constituição dos
mundos deveria imprimir-lhes outro curso; sob a influência desses conhecimentos
novos, as crenças se modificaram; o Céu foi deslocado e a região
estelar, sendo ilimitada, não mais lhe pode servir. Onde está
ele, pois? E ante esta questão emudecem todas as religiões.

O Espiritismo vem resolvê-las demonstrando o verdadeiro destino do
homem. Tomando-se por base a natureza deste último e os atributos divinos,
chega-se a uma conclusão; isto quer dizer que partindo do conhecido
atinge-se o desconhecido por uma dedução lógica, sem
falar das observações diretas que o Espiritismo faculta.

5. – O homem compõe-se de corpo e Espírito: o Espírito
é o ser principal, racional, inteligente; o corpo é o invólucro
material que reveste o Espírito temporariamente, para preenchimento
da sua missão na Terra e execução do trabalho necessário
ao seu adiantamento. O corpo, usado, destrói-se e o Espírito
sobrevive à sua destruição. Privado do Espírito,
o corpo é apenas matéria inerte, qual instrumento privado da
mola real de função; sem o corpo, o Espírito é
tudo: a vida, a inteligência. Em deixando o corpo, torna ao mundo espiritual,
onde paira, para depois reencarnar.

Existem, portanto, dois mundos: o corporal, composto de Espíritos
encarnados; e o espiritual, formado dos Espíritos desencarnados. Os
seres do mundo corporal, devido mesmo à materialidade do seu envoltório,
estão ligados à Terra ou a qualquer globo; o mundo espiritual
ostenta-se por toda parte, em redor de nós como no Espaço, sem
limite algum designado. Em razão mesmo da natureza fluídica
do seu envoltório, os seres que o compõem, em lugar de se locomoverem
penosamente sobre o solo, transpõem as distâncias com a rapidez
do pensamento. A morte do corpo não é mais que a ruptura dos
laços que os retinham cativos.

6. – Os Espíritos são criados simples e ignorantes, mas dotados
de aptidões para tudo conhecerem e para progredirem, em virtude do
seu livre-arbítrio. Pelo progresso adquirem novos conhecimentos, novas
faculdades, novas percepções e, conseguintemente, novos gozos
desconhecidos dos Espíritos inferiores; eles vêem, ouvem, sentem
e compreendem o que os Espíritos atrasados não podem ver, sentir,
ouvir ou compreender.

A felicidade está na razão direta do progresso realizado, de
sorte que, de dois Espíritos, um pode não ser tão feliz
quanto outro, unicamente por não possuir o mesmo adiantamento intelectual
e moral, sem que por isso precisem estar, cada qual, em lugar distinto. Ainda
que juntos, pode um estar em trevas, enquanto que tudo resplandece para o
outro, tal como um cego e um vidente que se dão as mãos: este
percebe a luz da qual aquele não recebe a mínima impressão.

Sendo a felicidade dos Espíritos inerente às suas qualidades,
haurem-na eles em toda parte em que se encontram, sela à superfície
da Terra, no meio dos encarnados, ou no Espaço.

Uma comparação vulgar fará compreender melhor esta situação.
Se se encontrarem em um concerto dois homens, um, bom músico, de ouvido
educado, e outro, desconhecedor da música, de sentido auditivo pouco
delicado, o primeiro experimentará sensação de felicidade,
enquanto o segundo permanecerá insensível, porque um compreende
e percebe o que nenhuma impressão produz no outro. Assim sucede quanto
a todos os gozos dos Espíritos, que estão na razão da
sua sensibilidade.

O mundo espiritual tem esplendores por toda parte, harmonias e sensações
que os Espíritos inferiores, submetidos à influência da
matéria, não entrevêem se quer, e que somente são
acessíveis aos Espíritos purificados.

7. – O progresso nos Espíritos é o fruto do próprio
trabalho; mas, como são livres, trabalham no seu adiantamento com maior
ou menor atividade, com mais ou menos negligência, segundo sua vontade,
acelerando ou retardando o progresso e, por conseguinte, a própria
felicidade.

Enquanto uns avançam rapidamente, entorpecem-se outros, quais poltrões,
nas fileiras inferiores. São eles, pois, os próprios autores
da sua situação, feliz ou desgraçada, conforme esta frase
do Cristo: – A cada um segundo as suas obras.

Todo Espírito que se atrasa não pode queixar-se senão
de si mesmo, assim como o que se adianta tem o mérito exclusivo do
seu esforço, dando por isso maior apreço à felicidade
conquistada.

A suprema felicidade só é compartilhada pelos Espíritos
perfeitos, ou, por outra, pelos puros Espíritos, que não a conseguem
senão depois de haverem progredido em inteligência e moralidade.

O progresso intelectual e o progresso moral raramente marcham juntos, mas
o que o Espírito não consegue em dado tempo, alcança
em outro, de modo que os dois progressos acabam por atingir o mesmo nível.

Eis por que se vêem muitas vezes homens inteligentes e instruídos
pouco adiantados moralmente, e vice-versa.

8. – A encarnação é necessária ao duplo progresso
moral e intelectual do Espírito: ao progresso intelectual pela atividade
obrigatória do trabalho; ao progresso moral pela necessidade recíproca
dos homens entre si. A vida social é a pedra de toque das boas ou más
qualidades.

A bondade, a maldade, a doçura, a violência, a benevolência,
a caridade, o egoísmo, a avareza, o orgulho, a humildade, a sinceridade,
a franqueza, a lealdade, a má-fé, a hipocrisia, em uma palavra,
tudo o que constitui o homem de bem ou o perverso tem por móvel, por
alvo e por estímulo as relações do homem com os seus
semelhantes.

Para o homem que vivesse insulado não haveria vícios nem virtudes;
preservando-se do mal pelo insulamento, o bem de si mesmo se anularia.

9. – Uma só existência corporal é manifestamente insuficiente
para o Espírito adquirir todo o bem que lhe falta e eliminar o mal
que lhe sobra.

Como poderia o selvagem, por exemplo, em uma só encarnação
nivelar-se moral e intelectualmente ao mais adiantado europeu? É materialmente
impossível. Deve ele, pois, ficar eternamente na ignorância e
barbaria, privado dos gozos que só o desenvolvimento das faculdades
pode proporcionar-lhe?

O simples bom-senso repele tal suposição, que seria não
somente a negação da justiça e bondade divinas, mas das
próprias leis evolutivas e progressivas da Natureza. Mas Deus, que
é soberanamente justo e bom, concede ao Espírito tantas encarnações
quantas as necessárias para atingir seu objetivo a perfeição.

Para cada nova existência de permeio à matéria, entra
o Espírito com o cabedal adquirido nas anteriores, em aptidões,
conhecimentos intuitivos, inteligência e moralidade. Cada existência
é assim um passo avante no caminho do progresso. (1)

A encarnação é inerente à inferioridade dos Espíritos,
deixando de ser necessária desde que estes, transpondo-lhe os limites,
ficam aptos para progredir no estado espiritual, ou nas existências
corporais de mundos superiores, que nada têm da materialidade terrestre.
Da parte destes a encarnação é voluntária, tendo
por fim exercer sobre os encarnados uma ação mais direta e tendente
ao cumprimento da missão que lhes compete junto dos mesmos. Desse modo
aceitam abnegadamente as vicissitudes e sofrimentos da encarnação.

(1) Vede 1ª. Parte, cap. I, n° 3, nota 1.

10. – No intervalo das existências corporais o Espírito torna
a entrar no mundo espiritual, onde é feliz ou desgraçado segundo
o bem ou o mal que fez.

Uma vez que o estado espiritual é o estado definitivo do Espírito
e o corpo espiritual não morre, deve ser esse também o seu estado
normal. O estado corporal é transitório e passageiro. É
no estado espiritual sobretudo que o Espírito colhe os frutos do progresso
realizado pelo trabalho da encarnação; é também
nesse estado que se prepara para novas lutas e toma as resoluções
que há de pôr em prática na sua volta à Humanidade.

O Espírito progride igualmente na erraticidade, adquirindo conhecimentos
especiais que não poderia obter na Terra, e modificando as suas idéias.
O estado corporal e o espiritual constituem a fonte de dois gêneros
de progresso, pelos quais o Espírito tem de passar alternadamente,
nas existências peculiares a cada um dos dois mundos.

11. – A reencarnação pode dar-se na Terra ou em outros mundos.
Há entre os mundos alguns mais adiantados onde a existência se
exerce em condições menos penosas que na Terra, física
e moralmente, mas onde também só são admitidos Espíritos
chegados a um grau de perfeição relativo ao estado desses mundos.

A vida nos mundos superiores já é uma recompensa, visto nos
acharmos isentos, aí, dos males e vicissitudes terrenos. Onde os corpos,
menos materiais, quase fluídicos, não mais são sujeitos
às moléstias, às enfermidades, e tampouco têm as
mesmas necessidades. Excluídos os Espíritos maus, gozam os homens
de plena paz, sem outra preocupação além da do adiantamento
pelo trabalho intelectual.

Reina lá a verdadeira fraternidade, porque não há egoísmo;
a verdadeira igualdade, porque não há orgulho, e a verdadeira
liberdade por não haver desordens a reprimir, nem ambiciosos que procurem
oprimir o fraco.

Comparados à Terra, esses mundos são verdadeiros paraísos,
quais pousos ao longo do caminho do progresso conducente ao estado definitivo.
Sendo a Terra um mundo inferior destinado à purificação
dos Espíritos imperfeitos, está nisso a razão do mal
que aí predomina, até que praza a Deus fazer dela morada de
Espíritos mais adiantados. Assim é que o Espírito, progredindo
gradualmente à medida que se desenvolve, chega ao apogeu da felicidade;
porém, antes de ter atingido a culminância da perfeição,
goza de uma felicidade relativa ao seu progresso. A criança também
frui os prazeres da infância, mais tarde os da mocidade, e finalmente
os mais sólidos, da madureza.

12. – A felicidade dos Espíritos bem-aventurados não consiste
na ociosidade contemplativa, que seria, como temos dito multas vezes, uma
eterna e fastidiosa inutilidade.

A vida espiritual em todos os seus graus é, ao contrário, uma
constante atividade, mas atividade isenta de fadigas.

A suprema felicidade consiste no gozo de todos os esplendores da Criação,
que nenhuma linguagem humana jamais poderia descrever, que a imaginação
mais fecunda não poderia conceber. Consiste também na penetração
de todas as coisas, na ausência de sofrimentos físicos e morais,
numa satisfação intima, numa serenidade dalma imperturbável,
no amor que envolve todos os seres, por causa da ausência de atrito
pelo contacto dos maus, e, acima de tudo, na contemplação de
Deus e na compreensão dos seus mistérios revelados aos mais
dignos. A felicidade também existe nas tarefas cujo encargo nos faz
felizes. Os puros Espíritos são os Messias ou mensageiros de
Deus pela transmissão e execução das suas vontades. Preenchem
as grandes missões, presidem à formação dos mundos
e à harmonia geral do Universo, tarefa gloriosa a que se não
chega senão pela perfeição. Os da ordem mais elevada
são os únicos a possuírem os segredos de Deus, inspirando-se
no seu pensamento, de que são diretos representantes.

13. – As atribuições dos Espíritos são proporcionadas
ao seu progresso, às luzes que possuem, às suas capacidades,
experiência e grau de confiança inspirada ao Senhor soberano.

Nem favores, nem privilégios que não sejam o prêmio ao
mérito; tudo é medido e pesado na balança da estrita
justiça.

As missões mais importantes são confiadas somente àqueles
que Deus julga capazes de as cumprir e incapazes de desfalecimento ou comprometimento.
E enquanto que os mais dignos compõem o supremo conselho, sob as vistas
de Deus, a chefes superiores é cometida a direção de
turbilhões planetários, ê a outros conferida a de mundos
especiais. Vêm, depois, pela ordem de adiantamento e subordinação
hierárquica, as atribuições mais restritas dos prepostos
ao progresso dos povos, à proteção das famílias
e indivíduos, ao impulso de cada ramo de progresso, às diversas
operações da Natureza até aos mais ínfimos pormenores
da Criação. Neste vasto e harmônico conjunto há
ocupações para todas as capacidades, aptidões e esforços;
ocupações aceitas com júbilo, solicitadas com ardor,
por serem um meio de adianta-mento para os Espíritos que ao progresso
aspiram.

14. – Ao lado das grandes missões confiadas aos Espíritos superiores,
há outras de importância relativa em todos os graus, concedidas
a Espíritos de todas as categorias, podendo afirmar-se que cada encarnado
tem a sua, isto é, deveres a preencher a bem dos seus semelhantes,
desde o chefe de família, a quem incumbe o progresso dos filhos, até
o homem de gênio que lança às sociedades novos germens
de progresso. É nessas missões secundárias que se verificam
desfalecimentos, prevaricações e renúncias que prejudicam
o indivíduo sem afetar o todo.

15. – Todas as inteligências concorrem, pois, para a obra geral, qualquer
que seja o grau atingido, e cada uma na medida das suas forças, seja
no estado de encarnação ou no espiritual. Por toda parte a atividade,
desde a base ao ápice da escala, instruindo-se, coadjuvando-se em mútuo
apoio, dando-se as mãos para alcançarem o zênite.

Assim se estabelece a solidariedade entre o mundo espiritual e o corporal,
ou, em outros termos, entre os homens e os Espíritos, entre os Espíritos
libertos e os cativos. Assim se perpetuam e consolidam, pela purificação
e continuidade de relações, as verdadeiras simpatias e nobres
afeições.

Por toda parte, a vida e o movimento: nenhum canto do infinito despovoado,
nenhuma região que não seja incessantemente percorrida por legiões
inumeráveis de Espíritos radiantes, invisíveis aos sentidos
grosseiros dos encarnados, mas cuja vista deslumbra de alegria e admiração
as almas libertas da matéria. Por toda parte, enfim, há uma
felicidade relativa a todos os progressos, a todos os deveres cumpridos, trazendo
cada um consigo os elementos de sua felicidade, decorrente da categoria em
que se coloca pelo seu adiantamento.

Das qualidades do indivíduo depende-lhe a felicidade, e não
do estado material do meio em que se encontra, podendo a felicidade, portanto,
existir em qualquer parte onde haja Espíritos capazes de a gozar. Nenhum
lugar lhe é circunscrito e assinalado no Universo.

Onde quer que se encontrem, os Espíritos podem contemplar a majestade
divina, porque Deus está em toda parte.

16. – Entretanto, a felicidade não é pessoal: Se a possuíssemos
somente em nós mesmos, sem poder reparti-la com outrem, ela seria tristemente
egoísta. Também a encontramos na comunhão de idéias
que une os seres simpáticos. Os Espíritos felizes, atraindo-se
pela similitude de gestos e sentimentos, formam vastos agrupamentos ou famílias
homogêneas, no selo das quais cada individualidade irradia as qualidades
próprias e satura-se dos eflúvios serenos e benéficos
emanados do conjunto.

Os membros deste, ora se dispersam para se darem à sua missão,
ora se reúnem em dado ponto do Espaço a fim de se prestarem
contas do trabalho realizado, ora se congregam em torno dum Espírito
mais elevado para receberem instruções e conselhos.

17. – Posto que os Espíritos estejam por toda parte, os mundos são
de preferência os seus centros de atração, em virtude
da analogia existente entre eles e os que os habitam. Em torno dos mundos
adiantados abundam Espíritos superiores, como em torno dos atrasados
pululam Espíritos inferiores. Cada globo tem, de alguma sorte, sua
população própria de Espíritos encarnados e desencarnados,
alimentada em sua maioria pela encarnação e desencarnação
dos mesmos. Esta população é mais estável nos
mundos inferiores, pelo apego deles à matéria, e mais flutuante
nos superiores.

Destes últimos, porém, verdadeiros focos de luz e felicidade,
Espíritos se destacam para mundos inferiores a fim de neles semearem
os germens do progresso, levar-lhes consolação e esperança,
levantar os ânimos abatidos pelas provações da vida. Por
vezes também se encarnam para cumprir com mais eficácia a sua
missão.

18. – Nessa imensidade ilimitada, onde está o Céu? Em toda
parte. Nenhum contorno lhe traça limites. Os mundos adiantados são
as últimas estações do seu caminho, que as virtudes franqueiam
e os vícios interditam. Ante este quadro grandioso que povoa o Universo,
que dá a todas as coisas da Criação um fim e uma razão
de ser, quanto é pequena e mesquinha a doutrina que circunscreve a
Humanidade a um ponto imperceptível do Espaço, que no-la mostra
começando em dado instante para acabar igualmente com o mundo que a
contém, não abrangendo mais que um minuto na Eternidade!

Como é triste, fria, glacial essa doutrina quando nos mostra o resto
do Universo, durante e depois da Humanidade terrestre, sem vida, nem movimento,
qual vastíssimo deserto imerso em profundo silêncio! Como é
desesperadora a perspectiva dos eleitos votados à contemplação
perpétua, enquanto a maioria das criaturas padece tormentos sem-fim!
Como lacera os corações sensíveis a idéia dessa
barreira entre mortos e vivos! As almas ditosas, dizem, só pensam na
sua felicidade, como as desgraçadas, nas suas dores. Admira que o egoísmo
reine sobre a Terra quando no-lo mostram no Céu?

Oh! quão mesquinha se nos afigura essa idéia da grandeza, do
poder e da bondade de Deus! Quanto é sublime a idéia que dEle
fazemos pelo Espiritismo! Quanto a sua doutrina engrandece as idéias
e amplia o pensamento! Mas, quem diz que ela é verdadeira? A Razão
primeiro, a Revelação depois, e, finalmente, a sua concordância
com os progressos da Ciência. Entre duas doutrinas, das quais uma amesquinha
e a outra exalta os atributos de Deus; das quais uma só está
em desacordo e a outra em harmonia com o progresso; das quais uma se deixa
ficar na retaguarda enquanto a outra caminha, o bom-senso diz de que lado
está a verdade. Que, confrontando-as, consulte cada qual a consciência,
e uma voz íntima lhe falará por ela. Pois bem, essas aspirações
íntimas são a voz de Deus, que não pode enganar os homens.
Mas, dir-se-á, por que Deus não lhes revelou de princípio
toda a verdade? Pela mesma razão por que senão ensina à
infância o que se ensina aos de idade madura.

A revelação limitada foi suficiente a certo período
da Humanidade, e Deus a proporciona gradativamente ao progresso e às
forças do Espírito.

Os que recebem hoje uma revelação mais completa são
os mesmos Espíritos que tiveram dela uma partícula em outros
tempos e que de então por diante se engrandeceram em inteligência.

Antes de a Ciência ter revelado aos homens as forças vivas da
Natureza, a constituição dos astros, o verdadeiro papel da Terra
e sua formação, poderiam eles compreender a imensidade do Espaço
e a pluralidade dos mundos? Antes de a Geologia comprovar a formação
da Terra, poderiam os homens tirar-lhe o inferno das entranhas e compreender
o sentido alegórico dos seis dias da Criação? Antes de
a Astronomia descobrir as leis que regem o Universo, poderiam compreender
que não há alto nem baixo no Espaço, que o céu
não está acima das nuvens nem limitado pelas estrelas? Poderiam
identificar-se com a vida espiritual antes dos progressos da ciência
psicológica? conceber depois da morte uma vida feliz ou desgraçada,
a não ser em lugar circunscrito e sob uma forma material? Não;
compreendendo mais pelos sentidos que pelo pensamento, o Universo era muito
vasto para a sua concepção; era preciso restringi-lo ao seu
ponto de vista para alargá-lo mais tarde. Uma revelação
parcial tinha sua utilidade, e, embora sábia até então,
não satisfaria hoje. O absurdo provém dos que pretendem poder
governar os homens de pensamento, sem se darem conta do progresso das idéias,
quais se fossem crianças. (Vede O Evangelho segundo o Espiritismo,
cap. III.)

O Inferno

Intuição das penas futuras

1. – Desde todas as épocas o homem acreditou, por intuição,
que a vida futura seria feliz ou infeliz, conforme o bem ou o mal praticado
neste mundo. A idéia que ele faz, porém, dessa vida está
em relação com o seu desenvolvimento, senso moral e noções
mais ou menos justas do bem e do mal.

As penas e recompensas são o reflexo dos instintos predominantes.
Os povos guerreiros fazem consistir a suprema felicidade nas honras conferidas
à bravura; os caçadores, na abundância da caça;
os sensuais, nas delícias da voluptuosidade. Dominado pela matéria,
o homem não pode compreender senão imperfeitamente a espiritualidade,
imaginando para as penas e gozos futuros um quadro mais material que espiritual;
afigura-se-lhe que deve comer e beber no outro mundo, porém melhor
que na Terra. (1)

Mais tarde já se encontra nas crenças sobre a vida futura um
misto de espiritualismo e materialismo: a beatitude contemplativa concorrendo
com o inferno das torturas físicas.

(1) Um pequeno saboiano, a quem o seu cura fazia a descrição
da vida futura, perguntou-lhe se todo o mundo lá comia pão branco,
como em Paris

2. – Não podendo compreender senão o que vê, o homem
primitivo naturalmente moldou o seu futuro pelo presente; para compreender
outros tipos, além dos que tinha à vista, ser-lhe-ia preciso
um desenvolvimento intelectual que só o tempo deveria completar. Também
o quadro por ele ideado sobre as penas futuras não é senão
o reflexo dos males da Humanidade, em mais vasta proporção,
reunindo-lhe todas as torturas, suplícios e aflições
que achou na Terra. Nos climas abrasadores imaginou um inferno de fogo, e
nas regiões boreais um inferno de gelo. Não estando ainda desenvolvido
o sentido que mais tarde o levaria a compreender o mundo espiritual, não
podia conceber senão penas materiais; e assim, com pequenas diferenças
de forma, os infernos de todas as religiões se assemelham.

O inferno cristão imitado do inferno pagão
3. – O inferno pagão, descrito e dramatizado pelos poetas, foi o modelo
mais grandioso do gênero, e perpetuou-se no seio dos cristãos,
onde, por sua vez, houve poetas e cantores. Comparando-os, encontram-se neles
– salvo os nomes e variantes de detalhe – numerosas analogias; ambos têm
o fogo material por base de tormentos, como símbolo dos sofrimentos
mais atrozes. Mas, coisa singular! os cristãos exageraram em muitos
pontos o inferno dos pagãos. Se estes tinham o tonel das Danaides,
a roda de Íxion, o rochedo de Sísifo, eram estes suplícios
individuais; os cristãos, ao contrário, têm para todos,
sem distinção, as caldeiras ferventes cujos tampos os anjos
levantam para ver as contorções dos supliciados (1); e Deus,
sem piedade, ouve-lhes os gemidos por toda a eternidade. Jamais os pagãos
descreveram os habitantes dos Campos Elíseos deleitando a vista nos
suplícios do Tártaro. (2)

(1) Sermão pregado em Montpellier em 1860.

(2) “Os bem-aventurados, sem deixarem o lugar que ocupam, poderão
afastar-se de certo modo em razão do seu dom de inteligência
e da vista distinta, a fim de considerarem as torturas dos condenados, e,
vendo-os, não somente serão insensíveis à dor,
mas até ficarão repletos de alegria e renderão graças
a Deus por sua própria felicidade, assistindo à inefável
calamidade dos ímpios.” (S. Tomás de Aquino.)

4. – Os cristãos têm, como os pagãos, o seu rei dos infernos
– Satã – com a diferença, porém, de que Plutão
se limitava a governar o sombrio império, que lhe coubera em partilha,
sem ser mau; retinha em seus domínios os que haviam praticado o mal,
porque essa era a sua missão, mas não induzia os homens ao pecado
para desfrutar, tripudiar dos seus sofrimentos. Satã, no entanto, recruta
vítimas por toda parte e regozija-se ao atormentá-las com uma
legião de demônios armados de forcados a revolvê-las no
fogo.

Já se tem discutido seriamente sobre a natureza desse fogo que queima
mas não consome as vítimas. Tem-se mesmo perguntado se seria
um fogo de betume. (2)

O inferno cristão nada cede, pois, ao inferno pagão.

(2) Sermão pregado em Paris em 1861.

5. – As mesmas considerações que, entre os antigos, tinham
feito localizar o reino da felicidade, fizeram circunscrever igualmente o
lugar dos suplícios. Tendo-se colocado o primeiro nas regiões
superiores, era natural reservar ao segundo os lugares inferiores, isto é,
o centro da Terra, para onde se acreditava servirem de entradas certas cavidades
sombrias, de aspecto terrível. Os cristãos também colocaram
ali, por muito tempo, a habitação dos condenados.

A este respeito, frisemos ainda outra analogia: – O inferno dos pagãos
continha de um lado os Campos Elíseos e do outro o Tártaro;
o Olimpo, moradia dos deuses e dos homens divinizados, ficava nas regiões
superiores. Segundo a letra do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, isto
é, aos lugares baixos para deles tirar as almas dos justos que lhe
aguardavam a vinda.

Os infernos não eram, portanto, um lugar unicamente de suplício:
estavam, tal como para os pagãos, nos lugares baixos.

A morada dos anjos, assim como o Olimpo, era nos lugares elevados. Colocaram-na
para além do céu estelar, que se reputava limitado.

6. – Esta mistura de idéias cristãs e pagãs nada tem
de surpreendente. Jesus não podia de um só golpe destruir inveteradas
crenças, faltando aos homens conhecimentos necessários para
conceber a infinidade do Espaço e o número infinito dos mundos;
a Terra para eles era o centro do Universo; não lhe conheciam a forma
nem a estrutura internas; tudo se limitava ao seu ponto de vista: as noções
do futuro não podiam ir além dos seus conhecimentos. Jesus encontrava-se,
pois, na impossibilidade de os iniciar no verdadeiro estado das coisas; mas
não querendo, por outro lado, com sua autoridade, sancionar prejuízos
aceitos, absteve-se de os retificar, deixando ao tempo essa missão.
Ele limitou-se a falar vagamente da vida bem-aventurada, dos castigos reservados
aos culpados, sem referir-se jamais nos seus ensinos a castigos e suplícios
corporais, que constituíram para os cristãos um artigo de fé.
Eis aí como as idéias do inferno pagão se perpetuaram
até aos nossos dias. E foi preciso a difusão das modernas luzes,
o desenvolvimento geral da inteligência humana para se lhe fazer justiça.
Como, porém, nada de positivo houvesse substituído as idéias
recebidas, ao longo período de uma crença cega sucedeu, transitoriamente,
o período de incredulidade a que vem pôr termo a Nova Revelação.
Era preciso demolir para reconstruir, visto como é mais fácil
insinuar idéias justas aos que em nada crêem, sentindo que algo
lhes falta, do que fazê-lo aos que possuem uma idéia robusta,
ainda que absurda.

7. – Localizados o céu e o inferno, as seitas cristãs foram
levadas a não admitir para as almas senão duas situações
extremas: a felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O purgatório
é apenas uma posição intermediária e passageira,
ao sair da qual as almas passam, sem transição, à mansão
dos justos.

Outra não pode ser a hipótese, dada a crença na sorte
definitiva da alma após a morte. Se não há mais de duas
habitações, a dos eleitos e a dos condenados, não se
podem admitir muitos graus em cada uma sem admitir a possibilidade de os franquear
e, conseguintemente, o progresso. Ora, se há progresso, não
há sorte definitiva, e se há sorte definitiva, não há
progresso. Jesus resolveu a questão quando disse: – “Há
muitas moradas na casa de meu Pai.” (1)

(1) O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.

Os limbos
8. – É verdade que a Igreja admite uma posição especial
em casos particulares.

As crianças falecidas em tenra idade, sem fazer mal algum, não
podem ser condenadas ao fogo eterno. Mas, também, não tendo
feito bem, não lhes assiste direito à felicidade suprema. Ficam
nos limbos, diz-nos a Igreja, nessa situação jamais definida,
na qual, se não sofrem, também não gozam da bem-aventurança.
Esta, sendo tal sorte irrevogavelmente fixada, fica-lhes defesa para sempre.
Tal privação importa, assim, um suplício eterno e tanto
mais imerecido, quanto é certo não ter dependido dessas almas
que as coisas assim sucedessem. O mesmo se dá quanto ao selvagem que,
não tendo recebido a graça do batismo e as luzes da religião,
peca por ignorância, entregue aos instintos naturais. Certo, este não
tem a responsabilidade e o mérito cabíveis ao que procede com
conhecimento de causa. A simples lógica repele uma tal doutrina em
nome da justiça de Deus, que se contém integralmente nestas
palavras do Cristo: “A cada um,segundo as suas obras.” Obras, sim,
boas ou más, porém praticadas voluntária e livremente,
únicas que comportam responsabilidade. Neste caso não podem
estar a criança, o selvagem e tampouco aquele que não foi esclarecido.

Quadro do inferno pagão
9. – O conhecimento do inferno pagão nos é fornecido quase exclusivamente
pela narrativa dos poetas. Homero e Vergílio dele deram a mais completa
descrição, devendo, contudo, levar-se em conta as necessidades
poéticas impostas à forma. A descrição de Fénelon,
no Telêmaco, posto que haurida na mesma fonte quanto às crenças
fundamentais, tem a simplicidade mais concisa da prosa.

Descrevendo o aspecto lúgubre dos lugares, preocupa-se, principalmente,
em realçar o gênero de sofrimento dos culpados, estendendo-se
sobre a sorte dos maus reis com vista à instrução do
seu régio discípulo. Por muito popular que seja esta obra, nem
todos têm presente à memória a sua descrição,
ou não meditaram sobre ela de modo a estabelecer comparação,
e assim acreditamos de utilidade reproduzir os tópicos que mais diretamente
interessam ao nosso assunto, Isto é, os que se referem especialmente
às penas individuais.

10. – “Ao entrar, Telêmaco ouve gemidos de uma sombra inconsolável.
Qual é, perguntava-lhe, a vossa desgraça? Quem fostes na Terra?
Nabofarzan, responde a sombra, rei da soberba Babilônia. Ao ouvir meu
nome tremiam todos os povos do Oriente; fazia-me adorar pelos babilônios
num templo todo de mármore, representado por uma estátua de
ouro, a cujos pés se queimavam noite e dia os preciosos perfumes da
Etiópia; jamais alguém ousou contradizer-me sem de pronto ser
punido; inventavam-se dia a dia prazeres novos para tornar-me a vida mais
e mais deliciosa.

“Moço e robusto, quantos, oh! quantos prazeres me restavam ainda
por usufruir no trono! Mas certa mulher, que eu amava e que me não
correspondia, fez-me sentir claramente que eu não era um deus: – envenenou-me,
e… nada mais sou. As minhas cinzas foram ontem encerradas com pompa em urna
de ouro: choraram, arrancaram cabelos, pretenderam fingidamente atirar-se
às chamas da minha fogueira, a fim de morrerem comigo, vão ainda
gemer junto do túmulo das minhas cinzas, mas ninguém me deplora;
a minha memória horroriza a própria família, enquanto
aqui em baixo sofro já horríveis suplícios.

Telêmaco, compungido ante esse espetáculo, diz-lhe: Éreis
vós verdadeiramente feliz durante o vosso reinado? Sentíeis
porventura essa paz suave sem a qual o coração se conserva opresso
e abatido em meio das delícias? – Não, respondeu o babilônio;
– não sei mesmo o que quereis dizer. Os sábios exaltam essa
paz como bem único; quanto à raiva, nunca a senti, meu coração
agitava-se continuamente por novos desejos de temor e de esperança.
Procurava aturdir-me com o abalo das próprias paixões, tendo
o cuidado de entreter essa embriaguez para torná-la permanente, continua;
o menor intervalo de razão, de calma, ser-me-ia muito amargo. Eis a
paz que frui; qualquer outra parece-me antes uma fábula, um sonho.
São esses os bens que choro.

“Assim falando, o babilônio chorava qual homem pusilânime,
enervado pelas prosperidades, desabituado de suportar resignadamente uma desgraça.
Havia junto dele alguns escravos mortos em homenagem honrosa aos seus funerais.
Mercúrio os entregara a Caronte com o seu rei, outorgando-lhes poder
absoluto sobre esse rei, a quem tinham servido na Terra. Essas sombras de
escravos não temiam a sombra de Nabofarzan, que retinham encadeada,
infligindo-lhe as mais cruéis afrontas. Dizia-lhe uma: “Não
éramos nós homens iguais a ti? Insensato que eras, julgavas-te
um deus, a ponto de esqueceres a tua origem comum a todos os homens.”
“Outra, para insultá-lo, dizia: – Tinhas razão em não
querer que por homem te houvessem, porque na verdade eras um monstro desumano.
Ainda outra: – Então?! onde estão agora os teus aduladores?
nada mais tens a dar, desgraçado! nem mesmo o mal podes fazer mais:
eis-te reduzido a escravo dos teus escravos. A justiça dos deuses tarda,
mas não falha.

A estas frases duras Nabofarzan se rojava por terra, arrancando os cabelos
em acesso de raiva e desespero. Mas Caronte instigava os escravos: Arrastem-no
pela corrente, levantem-no contra a vontade. Não possa ele consolar-se
escondendo a sua vergonha: preciso é que todas as sombras do Estige
a testemunhem como justificativa aos deuses, que por tanto tempo toleraram
o reinado terreno deste ímpio.

E ele avista logo, bem perto de si, o negro Tártaro evolando escuro
e espesso fumo, cujo cheiro mefítico daria a morte se se espalhasse
pela morada dos vivos. Esse fumo envolvia um rio de fogo, um turbilhão
de chamas, cujo ruído, semelhante às torrentes mais caudalosas
quando se despenham de altos rochedos em profundos abismos, concorria para
que nada se ouvisse nesses lugares tenebrosos. Telêmaco, secretamente
animado por Minerva, entra sem medo nesse báratro. Viu primeiramente
um grande número de homens que tinham vivido nas mais humildes condições,
punidos por haverem procurado riquezas por meio de fraudes, traições
e crueldade. Aí notou muitos ímpios hipócritas que, simulando
amar a religião, dela se tinham servido como de um belo pretexto para
satisfazerem ambições e zombarem dos crédulos: os que
haviam abusado até da própria Virtude, o maior dom dos deuses,
eram punidos como os mais celerados de todos os homens. Os filhos que haviam
degolado seus pais; as esposas que mancharam as mãos no sangue dos
maridos; os traidores que venderam a pátria, violando todos os juramentos,
sofriam, apesar de tudo, penas menores que aqueles hipócritas.

“Os três juizes infernais assim o queriam, por esta razão:
os hipócritas não se contentam com ser maus como os demais ímpios,
porém querem passar por bons e concorrem por sua falsa virtude para
a descrença e corrupção da verdade. Os deuses, por eles
zombados e desprezados perante os homens, empregam com prazer todo o seu poderio
para se vingarem de tais insultos.

“Perto destes, outros homens aparecem, que vulgarmente se julgam isentos
de culpa, mas que os deuses perseguem desapiedadamente: são os ingratos,
os mentirosos, os aduladores que louvaram o vício, os críticos
perversos que procuraram enodoar a mais pura virtude; enfim aqueles que, julgando
temerariamente das coisas, sem as conhecer a fundo, prejudicaram por isso
a reputação dos inocentes.

“Telêmaco, vendo os três juizes sentados a condenarem um
homem, ousou perguntar-lhes quais os seus crimes. O condenado, tomando a palavra,
de pronto ex-clamava: Nunca fiz mal algum; todo o meu prazer era praticar
o bem: fui sempre generoso, justo, liberal e compassivo; que se pode, pois,
exprobrar-me?

“Minos então lhe disse: Nenhuma acusação se te
faz quanto aos homens, porém a estes menos não devias que aos
deuses? Que justiça, pois, é essa de que te vanglorias? Para
com os homens, que nada são, não faltaste jamais a qualquer
dever; foste virtuoso, é certo, mas só atribuíste essa
virtude a ti próprio, esquecendo os deuses que ta deram, tudo porque
querias gozar do fruto da tua virtude encerrado em ti mesmo: foste a tua divindade.
Mas os deuses, que tudo fizeram, e o fizeram para si, não podem renunciar
aos seus direitos; e, pois que quiseste pertencer-te e não a eles,
entregar-te-ão a ti mesmo, esquecidos de ti como deles te esqueceste.
Procura agora, se podes, o consolo em teu próprio coração.
Eis-te agora para sempre separado dos homens, aos quais querias agradar; eis-te
só contigo, tu que eras o teu ídolo: fica sabendo que não
há verdadeira virtude sem respeito e amor aos deuses, a quem tudo é
devido. A tua falsa virtude, que por muitos anos deslumbrou os ingênuos,
vai ser confundida. Não julgando os homens o vício e a virtude
senão pelo que lhes agrada ou os incomoda, são cegos quanto
ao bem e quanto ao mal. Aqui, uma luz divina derroga seus julgamentos artificiais,
condenando muita vez o que eles admiram, e outras vezes justificando o que
condenam.

“A estas palavras, o filósofo, como que ferido por um raio, mal
podia suster-se. O deleite que tivera outrora em rever a sua moderação,
a coragem, as inclinações generosas, transformavam-se em desespero.
A visão do próprio coração inimigo dos deuses
promove-lhe suplícios; vê, e não pode deixar de se ver;
vê a vaidade dos preconceitos humanos, aos quais buscava lisonjear em
todas as suas ações. Opera-se uma revolução radical
em todo o seu íntimo, como se lhe revolvessem todas as entranhas; reconhece-se
outro; não encontra apoio no coração; a consciência,
cujo testemunho tão agradável lhe fora, revolta-se contra ele,
incriminando-lhe amargamente o desvario, a ilusão de todas as suas
virtudes, que não tiveram por princípio e por fim o culto da
Divindade, e ei-lo perturbado, consternado, preso da vergonha, do remorso,
do desespero. As Fúrias não o atormentam, bastando-lhes o terem-na
entregado a si próprio, para que expie pelo coração a
vingança dos deuses desprezados.

“Procurando a treva não pode encontrá-la, porquanto inoportuna
luz o segue por toda parte; de todos os lados os raios penetrantes da verdade
vingam a verdade que ele desdenhou seguir. Tudo que amava se lhe torna odioso
como fonte dos seus males infindáveis. Murmura consigo: Õ insensato!
não conheci, pois, nem os deuses, nem os homens, nem a mim mesmo, porque
jamais amei o verdadeiro e único bem; todos os meus passos foram tresloucados;
a minha sabedoria não passava de loucura; a minha virtude mais não
era que o orgulho impiedoso e cego: – eu era enfim o meu ídolo!

“Finalmente reconheceu Telêmaco os reis condenados por abuso de
poder. De um lado, vingadora Fúria apresentava-lhes um espelho a refletir
a monstruosidade dos seus vícios: aí viam, sem poder desviar
os olhos, a vaidade grosseira e ávida de ridículos louvores;
a crueldade para com aqueles a quem deveriam ter feito felizes; o temor da
verdade, a insensibilidade para com as virtudes, a predileção
pelos cobardes e aduladores, a falta de aplicação, a inércia,
a indolência; a desconfiança ilimitada; o fausto e a magnificência
excessivos calcados sobre a ruína dos povos; a ambição
de glórias vás à custa do sangue dos concidadãos;
a fereza, enfim, que procura a cada dia novas delícias nas lágrimas
e no desespero de tantos infelizes. Esses reis reviam-se constantemente nesse
espelho, achando-se mais monstruosos e horrendos que a própria Quimera
vencida por Belerofonte, que a Hidra de Lerna abatida por Hércules
e que Cérbero vomitando por suas três goelas um sangue negro
e venenoso, capaz de empestar todas as raças de mortais que vivem sobre
a Terra.

“De outro lado, outra Fúria lhes repetia injuriosamente todos
os louvores que os lisonjeiros lhes dispensavam em vida e mostrava-lhes ainda
outro espelho em que se viam tais como a lisonja os pintara. Da antítese
dos dois quadros brotava o suplício do amor-próprio. Era para
notar que os piores dentre esses reis, foram os que tiveram maiores e mais
fulgentes louvores durante a vida, por isso que os maus são mais temidos
que os bons e exigem impudicamente as vis adulações dos poetas
e oradores do seu tempo.

“Na profundeza dessas trevas, onde só insultos e escárnios
padecem, ouvem-se- lhes os gemidos agoniados. Nada os cerca que os não
repila, contradiga e confunda em contraste ao que supunham na vida, zombando
dos homens, convictos de que tudo era feito para servi-los. No Tártaro,
entregues a todos os caprichos de certos escravos, estes lhes fazem provar
por sua vez a mais cruel servidão; humilhados dolorosamente, não
lhes resta esperança alguma de modificar ou abrandar o cativeiro. Qual
bigorna sob as marteladas dos Ciclopes, quando Vulcano os acoroçoa
nas fornalhas incandescentes do Monte Etna, assim permanecem, mercê
das pancadas desses escravos transformados em verdugos.

“Aí viu Telêmaco pálidos semblantes, hediondos e
consternados. Negra tristeza essa que consome estes criminosos, horrorizados
de si próprios, sem poderem dela despojar-se como da própria
natureza; não têm outro castigo às suas faltas que não
as mesmas faltas; vêem-se incessantemente na plenitude da sua enormidade,
apresentando-se-lhes sob a forma de espectros horríveis que os perseguem.
Procurando eximir-se a essa perseguição, buscam morte mais potente
do que a que os separou do corpo. Desesperados, invocam uma morte capaz de
extinguir-lhes a consciência: pedem aos abismos que os absorvam, a fim
de se furtarem aos raios vingadores da verdade que os atormenta, mas continuam
votados à vingança que sobre eles destila gota a gota e que
jamais estancará. A verdade que temem ver constitui-se em suplício;
vêem-na, contudo, e só têm olhos para vê-la erguer-se
contra eles, ferindo-os, despedaçando-os, arrancando-os de si mesmos,
como o raio, sem nada destruir-lhes exteriormente, a penetrar-lhes o âmago
das entranhas.

“Entre os seres que lhe eriçavam os cabelos, viu Telêmaco
vários e antigos reis da Lídia punidos por haverem preferido
ao trabalho as delícias de uma vida inativa, quando aquele deve ser
o consolo dos povos e, como tal, inseparável da realeza.

“Estes reis lastimavam-se reciprocamente a cegueira. Dizia um a outro,
que fora seu filho: Não vos tinha eu recomendado tantas vezes durante
a vida e ainda antes da morte que reparásseis os males ocorridos por
negligência minha? – Ah! desgraçado pai! – dizia o filho -, fostes
vós que me perdestes! foi o vosso exemplo que me inspirou o fausto,
o orgulho, a voluptuosidade e a crueldade para com os homens! Vendo-vos governar
com tanta incúria, cercado de aduladores infames, habituei-me a prezar
a lisonja e os prazeres.

“Acreditei que os homens eram para os reis o que os cavalos e outros
animais de carga são para aqueles, isto é, animais que só
se consideram enquanto proporcionam serviços e comodidades.

“Acreditei-o, e fostes vós que mo fizestes crer… sofrendo agora
tantos males por vos haver imitado. A estas recriminações aliavam
as mais acerbas blasfêmias, como que possuídos de raiva bastante
para se despedaçarem mutuamente. Quais notívagos mochos, em
torno desses reis corvejavam as suspeitas cruéis, os vãos receios
e desconfianças. que vingam os povos da fereza de seus reis, a ganância
insaciável das riquezas, a falsa glória sempre tirânica
e a moleza displicente que duplica os sofrimentos sem a compensação
de sólidos prazeres. Viam-se muitos desses reis severamente punidos,
não por males que tivessem feito, mas por terem negligenciado o bem
que poderiam e deveriam fazer. Todos os crimes dos povos, provenientes da
desídia na observância das leis, eram imputados aos reis, que
não devem reinar senão para que as leis exerçam seu ministério.
Imputavam-se-lhes também todas as desordens decorrentes do fausto,
do luxo e dos demais excessos que impelem os homens à violência,
instigando-os à aquisição de bens com o desprezo das
leis. Sobretudo recaia o rigor sobre os reis que, ao invés de serem
bons e vigilantes pastores dos povos, só cuidavam de devastar o rebanho,
quais lobos devoradores.

“O que mais entristeceu Telêmaco, porém, foi ver nesse
abismo de trevas e males um grande número de reis que, tendo passado
na Terra pelos melhores, condenaram-se às penas do Tártaro por
se terem deixado guiar por homens ardilosos e maus. Tal punição
correspondia aos males que tinham deixado praticar em nome da sua autoridade.
Demais, a maior parte desses reis não foram nem bons nem maus, tal
a sua fraqueza; não os atemorizava a ignorância da verdade, e
assim como nunca experimentaram o prazer da virtude, jamais poderiam fazê-lo
consistir na prática do bem.”

Esboço do inferno cristão
11. – A opinião dos teólogos sobre o inferno resume-se nas seguintes
citações (1). Esta descrição, sendo tomada dos
autores sagrados e da vida dos santos, pode tanto melhor ser considerada como
expressão da fé ortodoxa na matéria, quanto é
ela reproduzida a cada instante, com pequenas variantes, nos sermões
do púlpito evangélico e nas instruções pastorais.

(1) Estas citações são tiradas da obra intitulada O
Inferno, de Augusto Callet.

12. “Os demônios são puros Espíritos, e os condenados,
presentemente no inferno, podem ser considerados puros Espíritos, uma
vez que só a alma aí desce, e os restos entregues à terra
se transformam em ervas, em plantas, em minerais e líquidos, sofrendo
inconscientemente as metamorfoses constantes da matéria. Os condenados,
porém, como os santos, devem ressuscitar no dia do juízo final,
retomando, para não mais deixá-los, os mesmos corpos carnais
que os revestiam na vida. Os eleitos ressuscitarão, contudo, em corpos
purificados e resplendentes, e os condenados em corpos maculados e desfigurados
pelo pecado. Isso os distinguirá, não havendo mais no inferno
puros Espíritos, porém homens como nós. Conseguintemente,
o inferno é um lugar físico, geográfico, material, uma
vez que tem de ser povoado por criaturas terrestres, dotadas de pés,
mãos, boca, língua, dentes, ouvidos, olhos semelhantes aos nossos,
sangue nas veias e nervos sensíveis.

Onde estará esse inferno? Alguns doutores o têm colocado nas
entranhas mesmas do nosso globo; outros não sabemos em que planeta,
sem que o problema se haja resolvido por qualquer concílio. Estamos,
pois, quanto a este ponto, reduzidos a conjeturas; a única coisa afirmada
é que esse inferno, onde quer que exista, é um mundo composto
de elementos materiais, conquanto sem Sol, sem estrelas, sem Lua, mais triste
e inóspito, desprovido de todo gérmen e das aparências
benéficas que porventura se encontram ainda nas regiões mais
áridas deste mundo em que pecamos.

Os teólogos mais circunspectos não se atrevem, à semelhança
dos egípcios, dos hindus e dos gregos, a descrever os horrores dessa
morada, limitando-se a no-la mostrar como premissas no pouco que dela fala
a Escritura, o lago de fogo e enxofre do Apocalipse e os vermes de Isaías,
esses vermes que formigam eternamente sobre os cadáveres do Tofel,
e os demônios atormentando os homens aos quais eles perderam, e os homens
a chorarem, rangendo os dentes, segundo a expressão dos evangelistas.

“Santo Agostinho não concorda que esses sofrimentos físicos
sejam apenas reflexos de sofrimentos morais e vê, num verdadeiro lago
de enxofre, vermes e verdadeiras serpentes saciando-se nos corpos, casando
suas picadas às do fogo. Ele pretende mais, segundo um versículo
de S. Marcos, que esse fogo estranho, posto que material como o nosso e atuando
sobre corpos materiais, os conservará como o sal conserva o corpo das
vítimas. Os condenados, vitimas sempre sacrificadas e sempre vivas,
sentirão a tortura desse fogo que queima sem destruir, penetrando-lhes
a pele; serão dele embebidos e saturados em todos os seus membros,
na medula dos ossos, na pupila dos olhos, nas mais recônditas e sensíveis
fibras do seu ser. A cratera de um vulcão, se aí pudessem submergir,
ser-lhes-ia lugar de refrigério e repouso.

Assim falam com toda a segurança os teólogos mais tímidos,
discretos e comedidos; não negam que haja no inferno outros suplícios
corporais, mas dizem que para afirmá-lo lhes falta suficiente conhecimento,
pelo menos tão positivo como o que lhes foi dado sobre o suplício
horrível do fogo e dos vermes. Há, contudo, teólogos
mais ousados ou mais esclarecidos que dão do inferno descrições
mais minuciosas, variadas e completas. E conquanto se não saiba em
que lugar do Espaço está situado esse inferno, há santos
que o viram. Eles não foram lá ter com a lira na mão,
como Orfeu; de espada em punho, como Ulisses, mas transportados em espírito.

“Desse número é Santa Teresa. Dir-se-ia, pela narrativa
da santa, que há uma cidade no inferno: – ela aí viu, pelo menos,
uma espécie de viela comprida e estreita como essas que abundam em
velhas cidades, e percorreu-a horrorizada, caminhando sobre lodoso e fétido
terreno, no qual pululavam monstruosos reptis. Foi, porém, detida em
sua marcha por uma muralha que interceptava a viela, em cuja muralha havia
um nicho onde se abrigou, aliás sem poder explicar a ocorrência.
Era, diz ela, o lugar que lhe destinavam se abusasse, em vida, das graças
concedidas por Deus em sua cela de Ávila.

“Apesar da facilidade maravilhosa que tivera em penetrar esse nicho,
não podia sentar-se, ou deitar-se, nem manter-se de pé. Tampouco
podia sair. Essas paredes horríveis, abaixando-se sobre ela, envolviam-na,
apertavam-na como se fossem animadas de movimento próprio. Parecia-lhe
que a afogavam, estrangulando-a, ao mesmo tempo que a esfolavam e retalhavam
em pedaços. Ao sentir queimar-se, experimentou, igualmente, toda a
sorte de angústias.

“Sem esperança de socorro, tudo era trevas em torno de si, posto
que através dessas trevas percebesse, não sem pavor, a hedionda
viela em que se achava, com a sua imunda vizinhança. Este espetáculo
era-lhe tão intolerável quanto os apertos mesmos da prisão.
(1)

(1) Nesta visão se reconhecem todos os caracteres dos pesadelos, sendo
provável que fosse deste gênero de fenômenos o acontecido
a Santa Teresa.

“Esse não era, sem dúvida, mais que um pequeno recanto
do inferno. Outros viajantes espirituais foram mais favorecidos, pois viram
grandes cidades no inferno, quais enormes braseiros: Babilônia e Nínive,
a própria Roma, com seus palácios e templos abrasados, acorrentados
todos os habitantes.

“Traficantes em seus balcões, sacerdotes reunidos a cortesãos
em salas de festim, chumbados às cadeiras ululantes, levando aos lábios
rubras taças chamejantes. Criados genuflexos em ferventes cloacas,
braços distendidos, e príncipes de cujas mãos escorria
em lava devoradora o ouro derretido. Outros viram no inferno planícies
sem-fim, cultivadas por camponeses famintos, que, nada colhendo desses campos
fumegantes, dessas sementes estéreis, se entredevoravam, dispersando-se
em seguida, tão numerosos como dantes, magros, vorazes e em bando,
indo procurar ao longe, em vão, terras mais felizes. Outras colônias
errantes de condenados os substituíam imediatamente. Ainda outros relatam
que viram no inferno montanhas inçadas de precipícios, florestas
gemebundas, poços secos, fontes alimentadas de lágrimas, ribeiros
de sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcas tripuladas
por desesperados, singrando mares sem praia. Viram, em uma palavra, tudo o
que viam os pagãos: um lúgubre revérbero da Terra com
os respectivos sofrimentos naturais eternizados, e até calabouços,
patíbulos e instrumentos de tortura forjados por nossas próprias
mãos.

Há, com efeito, demônios que, para melhor atormentarem os homens
em seus corpos, tomam corpos. Uns têm asas de morcegos, cornos, couraças
de escama, patas armadas de garras, dentes agudos, apresentando-se-nos armados
de espadas, tenazes, pinças, serras, grelhas, foles, tudo ardente,
não exercendo outro ofício por toda a eternidade, em relação
à carne humana, que não o de carniceiros e cozinheiros; outros,
transformados em leões ou víboras enormes, arrastam suas presas
para cavernas solitárias; estes se transformam em corvos para arrancar
os olhos a certos culpados, e aqueles em dragões volantes, prontos
a se lançarem sobre o dorso das vítimas, arrebatando-as assustadiças,
ensangüentadas, aos gritos, através de espaços tenebrosos,
para arremessá-las alfim em tanques de enxofre. Aqui, nuvens de gafanhotos,
de escorpiões gigantescos, cuja vista produz náuseas e calafrios,
e o contacto, convulsões; além, monstros policéfalos,
escancarando goelas vorazes, a sacudirem sobre as disformes cabeças
as suas crinas de áspides, a triturarem condenados com sangrentas mandíbulas
para vomitá-los mastigados, porém vivos, porque são imortais.

“Estes demônios de formas sensíveis, que lembram tão
visivelmente os deuses do Amenti e do Tártaro, bem como os ídolos
adorados pelos fenícios, moabitas e outros gentios vizinhos da Judéia,
esses demônios não obram ao acaso, tendo cada um a sua função.
O mal que praticam no inferno está em relação ao mal
que inspiraram e fizeram cometer na Terra (1). Os condenados são punidos
em todos os seus órgãos e sentidos, porque também a Deus
ofenderam por todos os órgãos e sentidos. Os delinqüentes
de gula são castigados pelos demônios da glutonaria, os preguiçosos
pelos da preguiça, os luxuriosos pelos da devassidão, e assim
por diante, numa variedade tão grande como a dos pecados. Terão
frio, queimando-se, e calor, enregelados, ávidos igualmente de movimento
e de repouso; sedentos e famintos; mil vezes mais fatigados que escravo ao
fim do dia, mais doentes que os moribundos, mais alquebrados e chaguentos
que os mártires, e isso para sempre.

1) Singular punição, na verdade, esta de poder continuar em
maior escala a pratica de mal menor feito na Terra. Mais racional seria o
sofrerem os próprios malfeitores as conseqüências desse
mal, em lugar de se darem ao prazer de proporcioná-lo a outrem. .

“Demônio algum se furta, nem se furtará jamais ao desempenho
sinistro da sua tarefa, perfeitamente disciplinados e fiéis, quanto
à execução das vingativas ordens que receberam. Aliás,
sem isso que seria o inferno? Repousariam os pacientes se os algozes altercassem
ou se enfadassem. Mas, nada de repouso nem disputas para quaisquer deles,
pois apesar de maus e inumeráveis que são, estendendo-se de
um a outro extremo do abismo, nunca se viu sobre a Terra súditos mais
dóceis a seus príncipes, exércitos mais obedientes aos
chefes ou comunidades monásticas mais humildes e submissas aos seus
superiores. (1)

(1) Esses mesmos demônios rebeldes a Deus quanto ao bem, são
de uma docilidade exemplar quanto à pratica do mal. Nenhum se esquiva
ou afrouxa durante a eternidade. Que singular metamorfose em quem fora criado
puro e perfeito como os anjos! Não é de pasmar vê-los
dar exemplos de harmonia, de concórdia inalterável quando os
homens sequer não sabem viver em paz na Terra, antes se laceram mutuamente?
Vendo-se o requinte dos castigos reservados aos condenados e comparando sua
situação à dos demônios, é caso de perguntar
quais os mais dignos de lástima – se as vítimas ou os algozes.

“Quase nada se conhece da ralé demoníaca, desses vis Espíritos
que compõem as legiões de vampiros, sapos, escorpiões,
corvos, hidras, salamandras e outros animais sem-nome; conhecem-se, porem,
os nomes de muitos dos príncipes que comandam tais legiões,
entre os quais Belfegor, o demônio da luxúria; Abadon ou Apolion,
do homicídio; Belzebu, dos desejos impuros, ou senhor das moscas que
engendram a corrupção; Mamon, da avareza; Moloc, Belial, Baalgad,
Astarot e muitos outros, sem falar do seu chefe supremo, o sombrio arcanjo
que no céu se chamava Lúcifer e no inferno se chama Satanás.

“Eis aí resumida a idéia que nos dão do inferno,
sob o ponto de vista da sua natureza física e também das penas
físicas que aí sofrem. Compulsai os escritos dos padres e dos
antigos doutores; interrogai as pias legendas; observai as esculturas e painéis
das nossas igrejas; atentai no que dizem dos púlpitos e sabereis ainda
mais.”

13. O Autor acompanha esse quadro das seguintes reflexões, cujo alcance
procuraremos cada qual compreender:

“A ressurreição dos corpos é um milagre, mas Deus
faz ainda um segundo milagre, dando a esses corpos mortais – já uma
vez usados pelas passageiras provas da vida, já uma vez aniquilados
– a virtude de subsistirem sem se dissolverem numa fornalha, onde se volatilizariam
os próprios metais. Que se diga que a alma é o seu próprio
algoz, que Deus não a persegue e apenas a abandona no estado infeliz
por ela escolhido (conquanto esse abandono eterno de um ser desgraçado
e sofredor pareça incompatível com a bondade divina), vá;
mas o que se diz da alma e das penas espirituais, não se pode de modo
algum dizer dos corpos e das respectivas penas, para perpetuação
das quais já não basta que Deus se conserve impassível,
mas, ao contrário, que intervenha e atue, sem o que sucumbiriam os
corpos.

“Os teólogos supõem, portanto, que Deus opera, efetivamente,
após a ressurreição dos corpos, esse segundo milagre
de que falamos. Que em primeiro lugar tira dos sepulcros, que os devoravam,
os nossos corpos de barro; retira-os tais como aí baixaram com suas
enfermidades originais e degradações sucessivas da idade; restitui-nos
a esse estado, decrépitos, friorentos, gotosos, cheios de necessidades,
sensíveis a uma picada de abelha, assinalados dos estragos da vida
e da morte, e está feito o primeiro milagre; depois, a esses corpos
raquíticos, prontos a voltarem ao pó donde saíram, outorga
propriedades que nunca tiveram – a imortalidade, esse dom que, em sua cólera
(dizei antes em sua misericórdia), retirara a Adão ao sair do
Éden – e eis completo o segundo milagre. Adão, quando imortal,
era invulnerável, e deixando de ser invulnerável tornou-se mortal;
a morte seguia de perto a dor. A ressurreição não nos
restabelece, pois, nem nas condições físicas do homem
inocente, nem nas do culpado, sendo antes uma ressurreição das
nossas misérias somente, mas com um acréscimo de misérias
novas, infinitamente mais horríveis.

“É, de alguma sorte, uma verdadeira criação, e
a mais maliciosa que a imaginação tenha, porventura, ousado
conceber. Deus muda de parecer, e, para ajuntar aos tormentos espirituais
dos pecadores tormentos carnais que possam durar eternamente, transforma de
súbito, por efeito do seu poder, as leis e propriedades por Ele mesmo
estabelecidas de princípio aos compostos materiais, ressuscita carnes
enfermas e corrompidas e, reunindo por um nó indestrutível esses
elementos que tendem por si mesmos a separar-se, mantém e perpetua,
contra a ordem natural, essa podridão viva, lançando-a ao fogo,
não para purificá-la, mas para conservá-la tal qual é,
sensível, sofredora, ardente, horrível e como a quer – imortal.
Por este milagre se arvora Deus num dos algozes infernais, pois se os condenados
só a si podem atribuir seus males espirituais, em compensação
só a Deus poderão imputar os outros.

“Era pouco aparentemente o abandono, depois da morte, à tristeza,
ao arrependimento, às angústias de uma alma que sente perdido
o bem supremo. Segundo os teólogos, Deus irá buscá-las
nessa noite, ao fundo desse abismo, chamando-as momentaneamente à vida,
não para as consolar, mas para as revestir de um corpo horrendo, chamejante,
imperecível, mais empestado que a túnica de Dejanira, abandonando-as
então para sempre.

“Ainda assim Ele não as abandonará para sempre, em absoluto,
visto como Céu e Terra não subsistem senão por ato permanente
da sua vontade sempre ativa. Deus terá, portanto, sem cessar, esses
condenados à mão, para impedir que o fogo se extinga em seus
corpos, consumindo-os, e querendo que contribuam perenemente por seus perenes
suplícios para edificação dos escolhidos.”

14. – Dissemos, e com razão, que o inferno dos cristãos excedera
o dos pagãos. Efetivamente, no Tártaro vêem-se culpados
torturados pelo remorso, ante suas vítimas e seus crimes, acabrunhados
por aqueles que espezinharam na vida terrestre; vemo-los fugirem à
luz que os penetra, procurando em vão esconderem-se aos olhares que
os perseguem; aí o orgulho é abatido e humilhado, trazendo todos
o estigma do seu passado, punidos pelas próprias faltas, a ponto tal
que, para alguns, basta entregá-los a si mesmos sem ser preciso aumentar-lhes
os castigos. Contudo, são sombras, isto é, almas com corpos
fluídicos, imagens da sua vida terrestre; lá não se vê
os homens retomarem o corpo carnal para sofrer materialmente, com fogo a penetrar-lhes
a pele, saturando-os até à medula dos ossos. Tampouco se vê
o requinte das torturas que constituem o fundo do inferno cristão.
Juizes inflexíveis, porém justos, proferem a sentença
proporcional ao delito, ao passo que no império de Satã são
todos confundidos nas mesmas torturas, com a materialidade por base, e banida
toda e qualquer equidade.

Incontestavelmente, há hoje, no selo da Igreja mesma, muitos homens
sensatos que não admitem essas coisas à risca, vendo nelas antes
simples alegorias cujo sentido convém interpretar. Estas opiniões,
no entanto, são individuais e não fazem lei, continuando a crença
no inferno material, com suas conseqüências, a constituir um artigo
de fé.

15. – Poderíamos perguntar como há homens que têm conseguido
ver essas coisas em êxtase, se elas de fato não existem. Não
cabe aqui explicar a origem das imagens fantásticas, tantas vezes reproduzidas
com visos de realidade. Diremos apenas ser preciso considerar, em principio,
que o êxtase é a mais incerta de todas as revelações
(1), porquanto o estado de sobreexcitação nem sempre importa
um desprendimento dalma tão completo que se imponha à crença
absoluta, denotando muitas vezes o reflexo de preocupações da
véspera. As idéias com que o Espírito se nutre e das
quais o cérebro, ou antes o invólucro perispiritual correspondente
a este, conserva a forma ou a estampa, se reproduzem amplificadas como em
uma miragem, sob formas vaporosas que se cruzam, se confundem e compõem
um todo extravagante. Os extáticos de todos os cultos sempre viram
coisas em relação com a fé de que se presumem penetrados,
não sendo, pois, extraordinário que Santa Teresa e outros, tal
qual ela saturados de idéias infernais pelas descrições,
verbais ou escritas, hajam tido visões, que não são,
propriamente falando, mais que reproduções por efeito de um
pesadelo. Um pagão fanático teria antes visto o Tártaro
e as Fúrias, ou Júpiter, no Olimpo, empunhando o raio.

(1) O Livro dos Espíritos, nºs 443 e 444

O Purgatório

1. – O Evangelho não faz menção alguma do purgatório,
que só foi admitido pela Igreja no ano de 593. É incontestavelmente
um dogma mais racional e mais conforme com a justiça de Deus que o
inferno, porque estabelece penas menos rigorosas e resgatáveis para
as faltas de gravidade mediana.

O princípio do purgatório é, pois, fundado na eqüidade,
porque, comparado à justiça humana, é a detenção
temporária a par da condenação perpétua. Que julgar
de um país que só tivesse a pena de morte para os crimes e os
simples delitos?

Sem o purgatório, só há para as almas duas alternativas
extremas: a suprema felicidade ou o eterno suplício. E nessa hipótese,
que seria das almas somente culpadas de ligeiras faltas? Ou compartilhariam
da felicidade dos eleitos, ainda quando imperfeitas, ou sofreriam o castigo
dos maiores criminosos, ainda quando não houvessem feito muito mal,
o que não seria nem justo, nem racional.

2. – Mas, necessariamente, a noção do purgatório deveria
ser incompleta, porque apenas conhecendo a penalidade do fogo fizeram dele
um inferno menos tenebroso, visto que as almas aí também ardem,
embora em fogo mais brando. Sendo o dogma das penas eternas incompatível
com o progresso, as almas do purgatório não se livram dele por
efeito do seu adiantamento, mas em virtude das preces que se dizem ou que
se mandam dizer em sua intenção. E se foi bom o primeiro pensamento,
outro tanto não acontece quanto às conseqüências
dele decorrentes, pelos abusos que originaram. As preces pagas transformaram
o purgatório em mina mais rendosa que o inferno. (1)

(1) O purgatório originou o comércio escandaloso das indulgências,
por intermédio das quais se vende a entrada no céu. Este abuso
foi a causa primaria da Reforma, levando Lutero a rejeitar o purgatório.

3. Jamais foram determinados e definidos claramente o lugar do purgatório
e a natureza das penas aí sofridas. A Nova Revelação
estava reservado o preenchimento dessa lacuna, explicando-nos a causa das
terrenas misérias da vida, das quais só a pluralidade das existências
poderia mostrar-nos a justiça.

Essas misérias decorrem necessariamente das imperfeições
da alma, pois se esta fosse perfeita não cometeria faltas nem teria
de sofrer-lhe as conseqüências. O homem que na Terra fosse em absoluto
sóbrio e moderado, por exemplo, não padeceria enfermidades oriundas
de excessos.

O mais das vezes ele é desgraçado por sua própria culpa,
porém, se é imperfeito, é porque já o era antes
de vir à Terra, expiando não somente faltas atuais, mas faltas
anteriores não resgatadas. Repara em uma vida de provações
o que a outrem fez sofrer em anterior existência. As vicissitudes que
experimenta são, por sua vez, uma correção temporária
e uma advertência quanto às imperfeições que lhe
cumpre eliminar de si, a fim de evitar males e progredir para o bem. São
para a alma lições da experiência, rudes às vezes,
mas tanto mais proveitosas para o futuro, quanto profundas as impressões
que deixam. Essas vicissitudes ocasionam incessantes lutas que lhe desenvolvem
as forças e as faculdades intelectivas e morais. Por essas lutas a
alma se retempera no bem, triunfando sempre que tiver denodo para mantê-las
até ao fim.

O prêmio da vitória está na vida espiritual, onde a alma
entra radiante e triunfadora como soldado que se destaca da refrega para receber
a palma gloriosa.

4. – Em cada existência, uma ocasião se depara à alma
para dar um passo avante; de sua vontade depende a maior ou menor extensão
desse passo: franquear muitos degraus ou ficar no mesmo ponto. Neste último
caso, e porque cedo ou tarde se impõe sempre o pagamento de suas dívidas,
terá de recomeçar nova existência em condiçõotilde;es
ainda mais penosas, porque a uma nódoa não apagada ajunta outra
nódoa.

É, pois, nas sucessivas encarnações que a alma se despoja
das suas imperfeições, que se purga, em uma palavra, até
que esteja bastante pura para deixar os mundos de expiação como
a Terra, onde os homens expiam o passado e o presente, em proveito do futuro.
Contrariamente, porém, à idéia que deles se faz, depende
de cada um prolongar ou abreviar a sua permanência, segundo o grau de
adiantamento e pureza atingido pelo próprio esforço sobre si
mesmo. O livramento se dá, não por conclusão de tempo
nem por alheios méritos, mas pelo próprio mérito de cada
um, consoante estas palavras do Cristo: – A cada um, segundo as suas obras,
palavras que resumem integralmente a justiça de Deus.

5. – Aquele, pois, que sofre nesta vida pode dizer-se que é porque
não se purificou suficientemente em sua existência anterior,
devendo, se o não fizer nesta, sofrer ainda na seguinte. Isto é
ao mesmo tempo eqüitativo e lógico. Sendo o sofrimento inerente
à imperfeição, tanto mais tempo se sofre quanto mais
imperfeito se for, da mesma forma por que tanto mais tempo persistirá
uma enfermidade quanto maior a demora em tratá-la. Assim é que,
enquanto o homem for orgulhoso, sofrerá as conseqüências
do orgulho; enquanto egoísta, as do egoísmo.

6. – Devido às suas imperfeições, o Espírito
culpado sofre primeiro na vida espiritual, sendo-lhe depois facultada a vida
corporal como meio de reparação. É por isso que ele se
acha nessa nova existência, quer com as pessoas a quem ofendeu, quer
em meios análogos àqueles em que praticou o mal, quer ainda
em situações opostas à sua vida precedente, como, por
exemplo, na miséria, se foi mau rico, ou humilhado, se orgulhoso.

A expiação no mundo dos Espíritos e na Terra não
constitui duplo castigo para eles, porém um complemento, um desdobramento
do trabalho efetivo a facilitar o progresso. Do Espírito depende aproveitá-lo.
E não lhe será preferível voltar à Terra, com
probabilidades de alcançar o céu, a ser condenado sem remissão,
deixando-a definitivamente? A concessão dessa liberdade é uma
prova da sabedoria, da bondade e da justiça de Deus, que quer que o
homem tudo deva aos seus esforços e seja o obreiro do seu futuro; que,
infeliz por mais ou menos tempo, não se queixe senão de si mesmo,
pois que a rota do progresso lhe está sempre franca.

7. – Considerando-se quão grande é o sofrimento de certos Espíritos
culpados no mundo invisível, quanto é terrível a situação
de outros, tanto mais penosa pela impotência de preverem o termo desses
sofrimentos, poder-se-ia dizer que se acham no inferno, se tal vocábulo
não implicasse a idéia de um castigo eterno e material.

Mercê, porém, da revelação dos Espíritos
e dos exemplos que nos oferecem, sabemos que o prazo da expiação
esta subordinado ao melhoramento do culpado.

8. – O Espiritismo não nega, pois, antes confirma, a penalidade futura.
O que ele destrói é o inferno localizado com suas fornalhas
e penas irremissíveis. Não nega, outrossim, o purgatório,
pois prova que nele nos achamos, e definindo-o precisamente, e explicando
a causa das misérias terrestres, conduz à crença aqueles
mesmos que o negam. Repele as preces pelos mortos? Ao contrário, visto
que os Espíritos sofredores as solicitam; eleva-as a um dever de caridade
e demonstra a sua eficácia para os conduzir ao bem e, por esse meio,
abreviar-lhes os tormentos (1). Falando à inteligência, tem levado
a fé a muito incrédulo, incutindo a prece no ânimo dos
que a escarneciam. O que o Espiritismo afirma é que o valor da prece
está no pensamento e não nas palavras, que as melhores preces
são as do coração e não dos lábios, e,
finalmente, as que cada qual murmura de si mesmo e não as que se mandam
dizer por dinheiro. Quem, pois, ousaria censurá-lo?

(1) Vede O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XXVII – “Ação
da prece”

9. – Seja qual for a duração do castigo, na vida espiritual
ou na Terra, onde quer que se verifique, tem sempre um termo, próximo
ou remoto. Na realidade não há para o Espírito mais que
duas alternativas, a saber: – punição temporária e proporcional
à culpa, e recompensa graduada segundo o mérito. Repele o Espiritismo
a terceira alternativa, da eterna condenação. O inferno reduz-se
a figura simbólica dos maiores sofrimentos cujo termo é desconhecido.
O purgatório, sim, é a realidade.

A palavra purgatório sugere a idéia de um lugar circunscrito:
eis por que mais naturalmente se aplica à Terra do que ao Espaço
infinito onde erram os Espíritos sofredores, e tanto mais quanto a
natureza da expiação terrena tem os caracteres da verdadeira
expiação.

Melhorados os homens, não fornecerão ao mundo invisível
senão bons Espíritos; e estes, encarnando-se, por sua vez só
fornecerão à Humanidade corporal elementos aperfeiçoados.
A Terra deixará, então, de ser um mundo expiatório e
os homens não sofrerão mais as misérias decorrentes das
suas imperfeições.

Aliás, por esta transformação, que neste momento se
opera, a Terra se elevará na hierarquia dos mundos. (2)

(2) Idem, cap. III – “Progressão dos mundos”.

10. – Mas, por que não teria o Cristo falado do purgatório?
É que, não existindo a idéia, não havia palavra
que a representasse.

O Cristo serviu-se da palavra inferno, a única usada, como termo genérico,
para designar as penas futuras, sem distinção. Colocasse ele,
ao lado da palavra inferno, uma equivalente a purgatório e não
poderia precisar-lhe o verdadeiro sentido sem ferir uma questão reservada
ao futuro; teria, enfim, de consagrar a existência de dois lugares especiais
de castigo. O inferno em sua concepção genérica, revelando
a idéia de punição, encerrava, implicitamente, a do purgatório,
que não é senão um modo de penalidade.

Reservado ao futuro o esclarecimento sobre a natureza das penas, competia-lhe
igualmente reduzir o inferno ao seu justo valor. Uma vez que a Igreja, após
seis séculos, houve por bem suprir o silêncio de Jesus quanto
ao purgatório, decretando-lhe a existência, é porque ela
julgou que ele não havia dito tudo. E por que não havia de dar-se
sobre outros pontos o que com este se deu?

Doutrina das penas eternas

Origem da doutrina das penas eternas

1. – A crença na eternidade das penas perde terreno dia a dia, de
modo que, sem ser profeta, pode prever-se-lhe o fim próximo.

Tais e de tal ordem poderosos e peremptórios têm sido os argumentos
a ela opostos, que nos parece quase supérfluo ocuparmo-nos de tal doutrina
de ora em diante, deixando que por si mesma se extinga.

Mas não se pode contestar que, apesar de caduca, ainda constitui a
tecla dos adversários das idéias novas, o ponto que defendem
com mais obstinação, convictos aliás da vulnerabilidade
que ela apresenta, e não menos convictos das conseqüências
dessa queda.

Por este lado, a questão merece sério exame.

2. – A doutrina das penas eternas teve sua razão de ser, como a do
inferno material, enquanto o temor podia constituir um freio para os homens
pouco adiantados intelectual e moralmente.

Na impossibilidade de apreenderem as nuanças tantas vezes delicadas
do bem e do mal, bem como o valor relativo das atenuantes e agravantes, os
homens não se impressionariam, então, a não ser pouco
ou mesmo nada com a idéia das penas morais.

Tampouco compreenderiam a temporalidade dessas penas e a justiça decorrente
das suas gradações e proporções.

3. – Quanto mais próximo do estado primitivo, mais material é
o homem.

O senso moral é o que de mais tardio nele se desenvolve, razão
pela qual também não pode fazer de Deus, dos seus atributos
e da vida futura, senão uma idéia muito imperfeita e vaga.

Assimilando-o à sua própria natureza, Deus não passa
para ele de um soberano absoluto, tanto mais terrível quanto invisível,
como um rei despótico que, fechado no seu palácio, jamais se
mostrasse aos súditos. Sem compreenderem o seu poder moral, só
o aceitam pela força material. Não o vêem senão
armado com o raio, ou no meio de coriscos e tempestades, semeando de passagem
a destruição, a ruína, semelhantemente aos guerreiros
invencíveis.

Um Deus de mansuetude e cordura não seria um Deus, porém um
ser fraco e sem meios de se fazer obedecer. A vingança implacável,
os castigos terríveis, eternos, nada tinham de incompatível
com a idéia que se fazia de Deus, não lhes repugnavam à
razão. Implacável também ele, homem, nos seus ressentimentos,
cruel para os inimigos e inexorável para os vencidos, Deus, que lhe
era superior, deveria ser ainda mais terrível.

Para tais homens eram precisas crenças religiosas assimiladas à
sua natureza rústica. Uma religião toda espiritual, toda amor
e caridade não podia aliar-se à brutalidade dos costumes e das
paixões.

Não censuremos, pois, a Moisés sua legislação
draconiana, apenas bastante para conter o povo indócil, nem o haver
feito de Deus um Deus vingativo. A época assim o exigia, essa época
em que a doutrina de Jesus não encontraria eco e até se anularia.

4. – À medida que o Espírito se desenvolvia, o véu material
ia-se-lhe dissipando pouco a pouco, e os homens habilitavam-se a compreender
as coisas espirituais. Mas isso não aconteceu senão lenta e
gradualmente. Por ocasião de sua vinda, já Jesus pôde
proclamar um Deus clemente, falando do seu reino, não deste mundo,
e acrescentando: – Amai-vos uns aos outros e fazei bem aos que vos odeiam,
ao passo que os antigos diziam: olho por olho, dente por dente.

Ora, quais eram os homens que viviam no tempo de Jesus?

Seriam almas novamente criadas e encarnadas? Mas se assim fosse, Deus teria
criado para o tempo de Jesus almas mais adiantadas que para o tempo de Moisés?
E daí o que teria decorrido para estas últimas? Consumir-se-iam
por toda a eternidade no embrutecimento? O mais comezinho bom-senso repele
essa suposição. Não; essas almas eram as mesmas que viviam
sob o império das leis mosaicas e que tinham adquirido, em várias
existências, o desenvolvimento suficiente à compreensão
de uma doutrina mais elevada, assim como hoje mais adiantadas se encontram
para receber um ensino ainda mais completo.

5. – O Cristo não pôde, no entanto, revelar aos seus contemporâneos
todos os mistérios do futuro. Ele próprio o disse: Muitas outras
coisas vos diria se estivésseis em estado de as compreender, e eis
por que vos falo em parábolas. Sobretudo no que diz respeito à
moral, isto é, aos deveres do homem, foi o Cristo muito explícito
porque, tocando na corda sensível da vida material, sabia fazer-se
compreender; quanto a outros pontos, limitou-se a semear sob a forma alegórica
os germens que deveriam ser desenvolvidos mais tarde.

A doutrina das penas e recompensas futuras pertence a esta última
ordem de idéias. Sobretudo, em relação às penas,
ele não poderia romper bruscamente com as idéias preconcebidas.
Vindo traçar aos homens novos deveres, substituir o ódio e a
vingança pelo amor do próximo e pela caridade, o egoísmo
pela abnegação, era já muito; além disso, não
podia racionalmente enfraquecer o temor do castigo reservado aos prevaricadores,
sem enfraquecer ao mesmo tempo a idéia do dever.

Se ele prometia o reino dos céus aos bons, esse reino estaria interdito
aos maus, e para onde iriam eles? Demais, seria necessária a inversão
da Natureza para que inteligências ainda muito rudimentares pudessem
ser impressionadas de feição a identificarem-se com a vida espiritual,
levando-se em conta a circunstância de Jesus se dirigir ao povo, à
parte menos esclarecida da sociedade, que não podia prescindir de imagens
de alguma sorte palpáveis, e não de idéias sutis.

Eis a razão por que Jesus não entrou em minúcias supérfluas
a este respeito; nessa época não era preciso mais do que opor
uma punição à recompensa.

6. – Se Jesus ameaçou os culpados com o fogo eterno, também
os ameaçou de serem lançados na Geena. Ora, que vem a ser a
Geena? Nada mais nada menos que um lugar nos arredores de Jerusalém,
um monturo onde se despejavam as imundícies da cidade.

Dever-se-ia interpretar isso também ao pé da letra? Entretanto
era uma dessas figuras enérgicas de que ele se servia para impressionar
as massas. O mesmo se dá com o fogo eterno. E se tal não fora
o seu pensar, ele estaria em contradição, exaltando a demência
e misericórdia de Deus, pois demência e inexorabilidade são
sentimentos antagônicos que se anulam. Desconhecer-se-ia, pois, o sentido
das palavras de Jesus, atribuindo-lhes a sanção do dogma das
penas eternas, quando todo o seu ensino proclamou a mansidão do Criador,
a sua benignidade

No Pai Nosso Jesus nos ensina a dizer: – Perdoai-nos, Senhor, as nossas faltas,
assim como nós perdoamos aos nossos devedores. Pois se o culpado não
devesse esperar algum perdão, inútil seria pedi-lo.

Esse perdão é, porém, incondicional? É uma remissão
pura e simples da pena em que se incorre? Não; a medida desse perdão
subordina-se ao modo pelo qual se haja perdoado, o que equivale dizer que
não seremos perdoados desde que não perdoemos. Deus, fazendo
do esquecimento das ofensas uma condição absoluta, não
podia exigir do homem fraco o que Ele, onipotente, não fizesse.

O Pai Nosso é um protesto cotidiano contra a eterna vingança
de Deus.

7. – Para homens que só possuíam da espiritualidade da alma
uma idéia confusa, o fogo material nada tinha de improcedente, mesmo
porque já participava da crença pagã, quase universalmente
propagada. Igualmente a eternidade das penas nada tinha que pudesse repugnar
a homens desde muitos séculos submetidos à legislação
do terrível Jeová. No pensamento de Jesus o fogo eterno não
podia passar, portanto, de simples figura, pouco lhe importando fosse essa
figura interpretada à letra, desde que ela servisse de freio às
paixões humanas. Sabia ele ao demais que o tempo e o progresso se incumbiriam
de explicar o sentido alegórico, mesmo porque, segundo a sua predição,
o Espírito de Verdade viria esclarecer aos homens todas as coisas.
O caráter essencial das penas irrevogáveis é a ineficácia
do arrependimento, e Jesus nunca disse que o arrependimento não mereceria
a graça do Pai.

Ao contrário, sempre que se lhe deparou ensejo, ele falou de um Deus
clemente, misericordioso, solícito em receber o filho pródigo
que voltasse ao lar paterno; inflexível, sim, para o pecador obstinado,
porém, pronto sempre a trocar o castigo pelo perdão do culpado
sinceramente arrependido. Este não é, por certo, o traço
de um Deus sem piedade. Também convém assinalar que Jesus nunca
pronunciou contra quem quer que fosse, mesmo contra os maiores culpados, a
condenação irremissível.

8. – Todas as religiões primitivas, revestindo o caráter dos
povos, tiveram deuses guerreiros que combatiam à frente dos exércitos.

O Jeová dos hebreus facultava-lhes mil modos de exterminar os inimigos;
recompensava-os com a vitória ou punia-os com a derrota. Tal idéia
a respeito de Deus levava a honrá-lo ou apaziguá-lo com sangue
de animais ou de homens, e daí os sacrifícios sangrentos que
representavam papel tão saliente em todas as religiões da antigüidade.
Os judeus tinham abolido os sacrifícios humanos; os cristãos,
apesar dos ensinamentos do Cristo, por muito tempo julgaram honrar o Criador
votando, aos milhares, às chamas e às torturas, os que denominavam
hereges, o que constituía sob outra forma verdadeiros sacrifícios
humanos, pois que os promoviam para maior glória de Deus, e com acompanhamento
de cerimônias religiosas. Hoje, ainda invocam o Deus dos exércitos
antes do combate, glorificam-no após a vitória, e quantas vezes
por causas injustas e anticristãs.

9. – Quão tardo é o homem em desfazer-se dos seus hábitos,
prejuízos e primitivas idéias! Quarenta séculos nos separam
de Moisés, e a nossa geração cristã ainda vê
traços de antigos usos bárbaros, senão consagrados, ao
menos aprovados pela religião atual! Foi preciso a poderosa opinião
dos não-ortodoxos para acabar com as fogueiras e fazer compreender
a verdadeira grandeza de Deus. Mas, à falta de fogueiras, prevalecem
ainda as perseguições materiais e morais, tão radicada
está no homem a idéia da crueldade divina. Nutrido por sentimentos
inculcados desde a infância, poderá o homem estranhar que o Deus
que lhe apresentam, lisonjeado por atos bárbaros, condene a eternas
torturas e veja sem piedade o sofrimento dos culpados? Sim, são filósofos,
ímpios como querem alguns, que se hão escandalizado vendo o
nome de Deus profanado por atos indignos dele. São eles que o mostram
aos homens na plenitude da sua grandeza, despojando-o de paixões e
baixezas atribuídas por uma crença menos esclarecida.

Neste ponto a religião tem ganho em dignidade o que tem perdido em
prestígio exterior, porque se homens há devotados à forma,
maior é o número dos sinceramente religiosos pelo sentimento,
pelo coração.

Mas, ao lado destes, quantos não têm sido levados, sem mais
reflexão, a negarem toda a Providência! O modo por que a religião
tem estacionado, em antagonismo com os progressos da razão humana,
sem saber conciliá-los com as crenças, degenerou em deísmo
para uns, em cepticismo absoluto para outros, sem esquecermos o panteísmo,
isto é, o homem fazendo-se deus ele próprio, à falta
de um mais perfeito.

Argumentos a favor das penas eternas
10. – Voltemos ao dogma das penas eternas. Eis o principal argumento invocado
em seu favor: “É doutrina sancionada entre os homens que a gravidade
da ofensa é proporcionada à qualidade do ofendido. O crime de
lesa-majestade, por exemplo, o atentado à pessoa de um soberano, sendo
considerado mais grave do que o fora em relação a qualquer súdito,
é, por isso mesmo, mais severamente punido. E sendo Deus muito mais
que um soberano, pois é infinito, deve ser infinita a ofensa a Ele,
como infinito o respectivo castigo, isto é, eterno.”

Refutação: Toda refutação é um raciocínio
que deve ter seu ponto de partida, uma base sobre a qual se apóie,
premissas, enfim. Tomemos essas premissas aos próprios atributos de
Deus; – único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente
justo e bom, infinito em todas as perfeições.

É impossível conceber Deus de outra maneira, visto como, sem
a infinita perfeição, poder-se-ia conceber outro ser que lhe
fosse superior. Para que seja único acima de todos os seres, faz-se
mister que ninguém possa excedê-lo ou sequer igualá-lo
em qualquer coisa, Logo, é necessário que seja de todo infinito.

É porque são infinitos, os atributos divinos não sofrem
aumento nem diminuição, sem o que não seriam infinitos
e Deus perfeito tampouco. Se se tirasse a menor parcela de um só dos
seus atributos, não haveria mais Deus, por isso que poderia coexistir
um ser mais perfeito. O infinito de uma qualidade exclui a possibilidade da
existência de outra qualidade contrária que pudesse diminuí-la
ou anulá-la. Um ser infinitamente bom não pode ter a menor parcela
de maldade, nem o ser infinitamente mau pode ter a menor parcela de bondade.
Assim também um objeto não seria de um negro absoluto com a
mais leve nuança de branco, e vice-versa. Estabelecido este ponto de
partida, oporemos aos argumentos supra os seguintes:

11. – Só um ser infinito pode fazer algo de infinito. O homem, finito
nas virtudes, nos conhecimentos, no poderio, nas aptidões e na existência
terrestre, não pode produzir senão coisas limitadas.

Se o homem pudesse ser infinito no mal que faz, sê-lo-ia igualmente
no bem, igualando-se, então, a Deus. Mas se o homem fosse infinito
no bem não praticaria o mal, pois o bem absoluto é a exclusão
de todo o mal.

Admitindo-se que uma ofensa temporária à Divindade pudesse
ser infinita, Deus, vingando-se por um castigo infinito, seria logo infinitamente
vingativo; e sendo Deus infinitamente vingativo não pode ser infinitamente
bom e misericordioso, visto como um destes atributos exclui o outro. Se não
for infinitamente bom não é perfeito; e não sendo perfeito
deixa de ser Deus.

Se Deus é inexorável para o culpado que se arrepende, não
é misericordioso; e se não é misericordioso, deixa de
ser infinitamente bom. E por que daria Deus aos homens uma lei de perdão,
se Ele próprio não perdoasse? Resultaria dai que o homem que
perdoa aos seus inimigos e lhes retribui o mal com o bem, seria melhor que
Deus, surdo ao arrependimento dos que o ofendem, negando-lhes por todo o sempre
o mais ligeiro carinho.

Achando-se em toda parte e tudo vendo, Deus deve ver também as torturas
dos condenados; e se Ele se conserva insensível aos gemidos por toda
a eternidade, será eternamente impiedoso; ora, sem piedade, não
há bondade infinita.

12. – A isto se responde que o pecador arrependido, antes da morte, tem a
misericórdia de Deus, e que mesmo o maior culpado pode receber essa
graça. Quanto a isto não há dúvida, e compreende-se
que Deus só perdoe ao arrependido, mantendo-se inflexível para
com os obstinados; mas se Ele é todo misericordioso para a alma arrependida
antes da morte, por que deixará de o ser para quem se arrepende depois
dela? Por que a eficácia do arrependimento só durante a vida,
um breve instante, e não na eternidade que não tem fim? Circunscritas
a um dado tempo, a bondade e misericórdia divinas teriam limites, e
Deus não seria infinitamente bom.

13. – Deus é soberanamente justo. A soberana justiça não
é inexorável absolutamente, nem leva a complacência ao
ponto de deixar impunes todas as faltas; ao contrário, pondera rigorosamente
o bem e o mal, recompensando um e punindo outro eqüitativa e proporcionalmente,
sem se enganar jamais na aplicação.

Se por uma falta passageira, resultante sempre da natureza imperfeita do
homem e muitas vezes do meio em que vive, a alma pode ser castigada eternamente
sem esperança de clemência ou de perdão, não há
proporção entre a falta e o castigo -não há justiça.
Reconciliando-se com Deus, arrependendo-se, e pedindo para reparar o mal praticado,
o culpado deve subsistir para o bem, para os bons sentimentos. Mas, se o castigo
é irrevogável, esta subsistência para o bem não
frutifica, e um bem não considerado significa injustiça. Entre
os homens, o condenado que se corrige tem por comutada e às vezes mesmo
perdoada a sua pena; e, assim, haveria mais equidade na justiça humana
que na divina.

Se a pena é irrevogável, inútil será o arrependimento,
e o culpado, nada tendo a esperar de sua correção, persiste
no mal, de modo que Deus não só o condena a sofrer perpetuamente,
mas ainda a permanecer no mal por toda a eternidade. Nisso não há
nem bondade nem Justiça.

14. Sendo em tudo infinito, Deus deve abranger o passado e o futuro; deve
saber, ao criar uma alma, se ela virá a falir, assaz gravemente, para
ser eternamente condenada. Se o não souber, a sua sabedoria deixará
de ser infinita, e Ele deixará de ser Deus. Sabendo-o, cria voluntariamente
uma alma desde logo votada ao eterno suplício, e, nesse caso, deixa
de ser bom.

Uma vez que Deus pode conferir a graça ao pecador arrependido, tirando-o
do inferno, deixam de existir penas eternas, e o juízo dos homens está
revogado.

15. Conseguintemente, a doutrina das penas eternas absolutas conduz à
negação, ou, pelo menos, ao enfraquecimento de alguns atributos
de Deus, sendo incompatível com a perfeição absoluta,
donde resulta este dilema: Ou Deus é perfeito, e não há
penas eternas, ou há penas eternas, e Deus não é perfeito.

16. – Também se invoca a favor do dogma da eternidade das penas o
seguinte argumento:

“A recompensa conferida aos bons, sendo eterna, deve ter por corolário
a eterna punição. Justo é proporcionar a punição
à recompensa.”

Refutação: Deus criou as almas para fazê-las felizes
ou desgraçadas?

Evidentemente a felicidade da criatura deve ser o fito do Criador, ou Ele
não seria bom. Ela atinge a felicidade pelo próprio mérito,
que, adquirido, não mais o perde. O contrário seria a sua degeneração.
A felicidade eterna é, pois, a conseqüência da sua imortalidade.

Antes, porém, de chegar à perfeição, tem lutas
a sustentar, combates a travar com as más paixões. Não
tendo sido criada perfeita, mas suscetível de o ser, a fim de que tenha
o mérito de suas obras, a alma pode cair em faltas, que são
conseqüentes à sua natural fraqueza. E se por esta fraqueza fora
eternamente punida, era caso de perguntar por que não a criou Deus
mais forte?

A punição é antes uma advertência do mal já
praticado, devendo ter por fim reconduzi-la ao bom caminho. Se a pena fosse
irremissível, o desejo de melhorar seria supérfluo; nem o fim
da criação seria alcançado, porquanto haveria seres ‘predestinados
à felicidade ou à desgraça. Se uma alma se arrepende,
pode regenerar-se, e podendo regenerar-se pode aspirar à felicidade.

E Deus seria justo se lhe recusasse os respectivos meios?

Sendo o bem o fim supremo da Criação, a felicidade, que é
o seu prêmio, deve ser eterna; e o castigo, como meio de alcançá-la,
temporário. A noção mais comezinha da justiça
humana prescreve que se não pode castigar perpetuamente quem se mostra
desejoso de praticar o bem.

17. – Um último argumento a favor das penas eternas é este:

“O temor das penas eternas é um freio; anulado este, o homem,
por nada temer, entregar-se-ia a todos os excessos.”

Refutação: Esse raciocínio procederia se a temporalidade
das penas importasse, de fato, na supressão de toda sanção
penal.

A felicidade ou infelicidade futura é conseqüência rigorosa
da justiça de Deus, pois a identidade de condições para
o bom e para o mau seria a negação dessa justiça.

Mas, em não ser eterno, nem por isso o castigo deixa de ser temeroso,
e tanto maior será o temor quanto maior a convicção.

Esta, por sua vez, tanto mais profunda será, quanto mais racional
a procedência do castigo. Uma penalidade, em que se não crê,
não pode ser um freio, e a eternidade das penas está nesse caso.

A crença nessa penalidade, já o afirmamos, teve a sua utilidade,
a sua razão de ser em dada época; hoje, não somente deixa
de impressionar os ânimos, mas até produz descrentes.

Antes de a preconizar como necessidade, fora mister demonstrar a sua realidade.
Seria preciso, além disso, observar a sua eficácia junto àqueles
que a preconizam e se esforçam por demonstrá-la.

E, desgraçadamente, entre esses, muitos provam pelos atos que nada
temem das penas eternas.

Assim, impotente para reprimir os próprios profitentes, que império
poderá exercer sobre os descrentes e refratários?

Impossibilidade material das penas eternas
18. – Até aqui, só temos combatido o dogma das penas eternas
com o raciocínio. Demonstremo-lo agora em contradição
com os fatos positivos que observamos, provando-lhe a impossibilidade.

Por este dogma a sorte das almas, irrevogavelmente fixada depois da morte,
é, como tal, um travão definitivo aplicado ao progresso.

Ora, a alma progride ou não? Eis a questão: – Se progride,
a eternidade das penas é impossível.

E poder-se-á duvidar desse progresso, vendo a variedade enorme de
aptidões morais e intelectuais existentes sobre a Terra, desde o selvagem
ao homem civilizado, aferindo a diferença apresentada por um povo de
um a outro século? Se se admite não ser das mesmas almas, é
força admitir que Deus criou almas em todos os graus de adiantamento,
segundo os tempos e lugares, favorecendo umas e destinando outras a perpétua
inferioridade o que seria incompatível com a justiça, que, aliás,
deve ser igual para todas as criaturas.

19. – É incontestável que a alma atrasada moral e intelectualmente,
como a dos povos bárbaros, não pode ter os mesmos elementos
de felicidade, as mesmas aptidões para gozar dos esplendores do infinito,
como a alma cujas faculdades estão largamente desenvolvidas. Se, portanto,
estas almas não progredirem, não podem em condições
mais favoráveis gozar na eternidade senão de uma felicidade,
por assim dizer, negativa.

Para estar de acordo com a rigorosa justiça, chegaremos, pois, à
conclusão de que as almas mais adiantadas são as atrasadas de
outro tempo, com progressos posteriormente realizados. Mas, aqui atingimos
a questão magna da pluralidade das existências como meio único
e racional de resolver a dificuldade. Façamos abstração,
porém, dessa questão e consideremos a alma sob o ponto de vista
de uma única existência.

20. – Figuremos um rapaz de 20 anos, desses que comumente se encontram, ignorante,
viciado por índole, céptico, negando sua alma e a Deus, entregue
à desordem e cometendo toda sorte de malvadeza. Esse rapaz encontra-se,
depois, num meio favorável, melhor; trabalha, instrui-se, corrige-se
gradualmente e acaba por tornar-se crente e piedoso. Eis aí um exemplo
palpável do progresso da alma durante a vida, exemplo que se reproduz
todos os dias. Esse homem morre em avançada idade, como um santo, e
naturalmente certa se lhe torna a salvação. Mas qual seria a
sua sorte se um acidente lhe pusesse termo à existência, trinta
ou quarenta anos mais cedo? Ele estava nas condições exigidas
para ser condenado, e, se o fosse, todo o progresso se lhe tornaria impossível.

E assim, segundo a doutrina das penas eternas, teremos um homem salvo somente
pela circunstância de viver mais tempo, circunstância, aliás,
fragilíssima, uma vez que um acidente qualquer poderia tê-la
anulado fortuitamente. Desde que sua alma pôde progredir em um tempo
dado, por que razão não mais poderia progredir depois da morte,
se uma causa alheia à sua vontade a tivesse impedido de fazê-lo
durante a vida? Por que lhe recusaria Deus os meios de regenerar-se na outra
vida, concedendo-lhos nesta? Neste caso, o arrependimento veio, posto que
tardio; mas se desde o momento da morte se impusesse irrevogável condenação,
esse arrependimento seria infrutífero por todo o sempre, como destruídas
seriam as aptidões dessa alma para o progresso, para o bem.

21. – O dogma da eternidade absoluta das penas é, portanto, incompatível
com o progresso das almas, ao qual opõe uma barreira insuperável.
Esses dois princípios destroem-se, e a condição indeclinável
da existência de um é o aniquilamento do outro. Qual dos dois
existe de fato? A lei do progresso é evidente: não é
uma teoria, é um fato corroborado pela experiência: é
uma lei da Natureza, divina, imprescritível. E, pois, que esta lei
existe inconciliável com a outra, é porque a outra não
existe. Se o dogma das penas eternas existisse verdadeiramente, Santo Agostinho,
S. Paulo e tantos outros jamais teriam visto o céu, caso morressem
antes de realizar o progresso que lhes trouxe a conversão.

A esta última asserção respondem que a conversão
dessas santas personagens não é um resultado do progresso da
alma, porém, da graça que lhes foi concedida e de que foram
tocadas.

Porém, isto é simples jogo de palavras. Se esses santos praticaram
o mal e depois o bem, é que melhoraram; logo, progrediram. E por que
lhes teria Deus concedido como especial favor a graça de se corrigirem?
Sim, por que a eles e não a outros? Sempre, sempre a doutrina dos privilégios,
incompatível com a justiça de Deus e com seu igual amor por
todas as criaturas.

Segundo a Doutrina Espírita, de acordo mesmo com as palavras do Evangelho,
com a lógica e com a mais rigorosa justiça, o homem é
o filho de suas obras, durante esta vida e depois da morte, nada devendo ao
favoritismo: Deus o recompensa pelos esforços e pune pela negligência,
isto por tanto tempo quanto nela persistir.

A doutrina das penas eternas fez sua época
22. – A crença na eternidade das penas prevaleceu salutarmente enquanto
os homens não tiveram ao seu alcance a compreensão do poder
moral. É o que sucede com as crianças durante certo tempo contidas
pela ameaça de seres quiméricos com os quais são intimidadas:
-chegadas ao período do raciocínio, repelem por si mesmas essas
quimeras da infância, tornando-se absurdo o querer governá-las
por tais meios. Se os que as dirigem pretendessem incutir-lhes ainda a veracidade
de tais fábulas, certo decairiam da sua confiança. É
isso que se dá hoje com a Humanidade, saindo da infância e abandonando,
por assim dizer, os cueiros. O homem não é mais passivo instrumento
vergado à força material, nem o ente crédulo de outrora
que tudo aceitava de olhos fechados.

23. – A crença é um ato de entendimento que, por isso mesmo,
não pode ser imposta. Se, durante certo período da Humanidade,
o dogma da eternidade das penas se manteve inofensivo e benéfico mesmo,
chegou o momento de tornar-se perigoso. Imposto como verdade absoluta, quando
a razão o repele, ou o homem quer acreditar e procura uma crença
mais racional, afastando-se dos que o professam, ou, então, descrê
absolutamente de tudo. Quem quer que estude o assunto, calmamente, verá
que, em nossos dias, o dogma da eternidade das penas tem feito mais ateus
e materialistas do que todos os filósofos.

As idéias seguem um curso incessantemente progressivo, e absurdo é
querer governar os homens desviando-os desse curso; pretender contê-los,
retroceder ou simplesmente parar enquanto ele avança, é condenar-se,
é perder-se. Seguir ou deixar de seguir essa evolução
é uma questão de vida ou de morte para as religiões como
para os governos.

Este fatalismo é um bem ou um mal? Para os que vivem do passado, vendo-o
aniquilar-se, será um mal; mas para os que vivem pelo futuro é
uma lei do progresso, de Deus em suma.

E contra uma lei de Deus é inútil toda revolta, impossível
a luta. Para que, pois, sustentar a todo o transe uma crença que se
dissolve em desuso fazendo mais danos que benefícios à religião?
Ah! contrista dizê-lo, mas uma questão material domina aqui a
questão religiosa.

Esta crença tem sido grandemente explorada pela idéia de que
com dinheiro se abrem as portas do céu, livrando das do inferno. As
quantias por estes meios arrecadadas, outrora e ainda hoje, são incalculáveis,
e verdadeiramente fabuloso o imposto prévio pago ao temor da eternidade.
E sendo facultativo tal imposto, a renda é sempre proporcional à
crença; extinta esta, improdutivo será aquele.

De bom grado cede a criança o bolo a quem lhe promete afugentar o
lobisomem, mas se a criança já não acreditar em lobisomens,
guardará o bolo.

24. – A Nova Revelação, dando noções mais sensatas
da vida futura e provando que podemos, cada um de nós, promover a felicidade
pelas próprias obras, deve encontrar tremenda oposição,
tanto mais viva por estancar uma das mais rendosas fontes de receita. E assim
tem sido, sempre que uma nova descoberta ou invento abala costumes inveterados
e preestabelecidos.

Quem vive de velhos e custosos processos jamais deixa de preconizar-lhes
a superioridade e excelência e de desacreditar os novos, mais econômicos.

Acreditar-se-á, por exemplo, que a imprensa, apesar dos benefícios
prestados à sociedade, tenha sido aclamada pela classe dos copistas?

Não, certamente eles deveriam profligá-la. O mesmo se tem dado
em relação a maquinismos, caminho de ferro e centenares de outras
descobertas e aplicações.

Aos olhos dos incrédulos o dogma da eternidade das penas afigura-se
futilidade da qual se riem; para o filósofo esse dogma tem uma gravidade
social pelos abusos que acoroçoa, ao passo que o homem verdadeiramente
religioso tem a dignidade da religião interessada na destruição
dos abusos que tal dogma origina, e da sua causa, enfim.

Ezequiel contra a eternidade das penas e o pecado original
25. – A quem pretenda encontrar na Bíblia a justificação
da eternidade das penas, pode-se opor os textos contrários que a tal
respeito não comportam ambigüidades. As seguintes palavras de
Ezequiel são a mais explícita negação, não
somente das penas irremissíveis, mas da responsabilidade que o pecado
do pai do gênero humano acarretasse à sua raça:

1. O Senhor novamente me falou e disse: – 2. Donde vem o uso desta parábola
entre vós e consagrada proverbialmente em Israel: Os pais, dizeis,
comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos ficaram estragados? – 3. Por mim
juro, disse o Senhor Deus, que essa parábola não passará
mais entre vós, como provérbio em Israel: – 4. Pois todas as
almas me pertencem; a do filho está comigo como a do pai; a alma que
tiver pecado morrerá ela própria.

5. Se um homem for justo, se proceder segundo a eqüidade e a justiça;
– 7. Se não magoar nem oprimir ninguém; se entregar ao seu devedor
o penhor que este lhe houver dado; se não tomar nada do bem de outrem
por violência; se dá o seu pão a quem tem fome; se veste
os que estão nus; – 8. Se não se presta à usura e não
percebe mais do que tem dado; se desvia sua mão da iniqüidade
e promove um juízo conciliatório entre dois que contendem; –
9. Se caminha segundo a pauta dos meus preceitos e observa as minhas ordens
para obrar conforme a verdade, esse homem é justo e viverá mui
certamente, disse o Senhor Deus.

10. Se esse homem tem um filho que dê em ladrão, e derrame sangue,
ou que cometa algumas destas faltas; – 13. Esse filho morrerá mui certamente,
pois tem praticado todas essas ações detestáveis, e seu
sangue permanecerá sobre a terra.

14. Se esse homem tem um filho que, vendo todos os crimes por seu pai cometidos,
se aterrorize e evite imitação; – 17. Este não morrerá
por causa da iniqüidade de seu pai, mas viverá mui certamente.
– 18. Seu pai, que tinha oprimido os outros por calúnias e que tinha
praticado ações criminosas no meio do seu povo, morreu por causa
da sua própria iniqüidade.

19. Se dizes: Por que o filho não tem suportado a iniqüidade
de seu pai? É porque o filho tem obrado segundo a eqüidade e a
justiça; tem guardado todos os meus preceitos; e porque os tem praticado
viverá mui certamente.

20. A alma que tem pecado morrerá ela mesma: o filho não sofrerá
pela iniqüidade do pai e o pai não sofrerá pelo iniqüidade
do filho; a justiça do justo verterá sobre ele mesmo, a impiedade
do ímpio verterá sobre ele.

21. Se o ímpio fez penitencia de todos os pecados que tem cometido,
se observou todos os meus preceitos, se obra segundo a eqüidade e a justiça,
ele viverá certamente e não morrerá. – 22. Eu não
me lembrei mais de todas as iniqüidades que ele tenha cometido; viverá
nas obras de justiça que houver praticado.

23. É que eu quero a morte do ímpio? disse o Senhor Deus, e
não quero antes que se converta e desgarre do mau caminho que trilha?
(Ezequiel, cap. XVIII.)

Dizei-lhes estas palavras: Eu juro por mim mesmo que não quero a morte
do ímpio, mas que o ímpio se converta, que abandone o mau caminho
e que viva. (Ezequiel, cap. XXXIII, v. 11.)

As penas futuras segundo o Espiritismo

A carne é fraca

Há tendências viciosas que são evidentemente próprias
do Espírito, porque se apegam mais ao moral do que ao físico;
outras, parecem antes dependentes do organismo, e, por esse motivo, menos
responsáveis são julgados os que as possuem: consideram-se como
tais as disposições à cólera, à preguiça,
à sensualidade, etc.

Hoje, está plenamente reconhecido pelos filósofos espiritualistas
que os órgãos cerebrais correspondentes a diversas aptidões
devem o seu desenvolvimento à atividade do Espírito. Assim,
esse desenvolvimento é um efeito e não uma causa. Um homem não
é músico porque tenha a bossa da música, mas possui essa
tendência porque o seu Espírito é musical. Se a atividade
do Espírito reage sobre o cérebro, deve também reagir
sobre as outras partes do organismo.

O Espírito é, deste modo, o artista do próprio corpo,
por ele talhado, por assim dizer, à feição das suas necessidades
e à manifestação das suas tendências.

Desta forma a perfeição corporal das raças adiantadas
deixa de ser produto de criações distintas para ser o resultado
do trabalho espiritual, que aperfeiçoa o invólucro material
à medida que as faculdades aumentam.

Por uma conseqüência natural deste principio, as disposições
morais do Espírito devem modificar as qualidades do sangue, dar-lhe
maior ou menor atividade, provocar uma secreção mais ou menos
abundante de bílis ou de quaisquer outros fluidos. É assim,
por exemplo, que ao glutão enche-se-lhe a boca de saliva diante dum
prato apetitoso.

Certo é que a iguaria não pode excitar o órgão
do paladar, uma vez que com ele não tem contacto; é, pois, o
Espírito, cuja sensibilidade é despertada, que atua sobre aquele
órgão pelo pensamento, enquanto que outra pessoa permanecerá
indiferente à vista do mesmo acepipe. É ainda por este motivo
que a pessoa sensível facilmente verte lágrimas. Não
é, porém, a abundância destas que dá sensibilidade
ao Espírito, mas precisamente a sensibilidade deste que provoca a secreção
abundante das lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o organismo
condiciona-se (1) à disposição normal do Espírito,
do mesmo modo por que se condiciona à disposição do Espírito
glutão.

(1) O autor escreveu s’est approprié (p. 93, 4ª edição,
Paris, 1869), à falta, na época, de verbo mais específico
à perfeita tradução da idéia. Nota da Editora
(FEB), em 1973.

Seguindo esta ordem de idéias, compreende-se que um Espírito
irascível deve encaminhar-se para estimular um temperamento bilioso,
do que resulta não ser um homem colérico por bilioso, mas bilioso
por colérico. O mesmo se dá em relação a todas
as outras disposições instintivas: um Espírito indolente
e fraco deixará o organismo em estado de atonia relativo ao seu caráter,
ao passo que, ativo e enérgico, dará ao sangue como aos nervos
qualidades perfeitamente opostas. A ação do Espírito
sobre o físico é tão evidente que não raro vemos
graves desordens orgânicas sobrevirem a violentas comoções
morais.

A expressão vulgar: – A emoção transtornou-lhe o sangue
– não é tão destituída de sentido quanto se poderia
supor. Ora, que poderia transtornar o sangue senão as disposições
morais do Espírito?

Pode admitir-se por conseguinte, ao menos em parte, que o temperamento é
determinado pela natureza do Espírito, que é causa e não
efeito.

E nós dizemos em parte, porque há casos em que o físico
influi evidentemente sobre o moral, tais como quando um estado mórbido
ou anormal é determinado por causa externa, acidental, independente
do Espírito, como sejam a temperatura, o clima, os defeitos físicos
congênitos, uma doença passageira, etc.

O moral do Espírito pode, nesses casos, ser afetado em suas manifestações
pelo estado patológico, sem que a sua natureza intrínseca seja
modificada. Escusar-se de seus erros por fraqueza da carne não passa
de sofisma para escapar a responsabilidades.

A carne só é fraca porque o Espírito é fraco,
o que inverte a questão deixando àquele a responsabilidade de
todos os seus atos. A carne, destituída de pensamento e vontade, não
pode prevalecer jamais sobre o Espírito, que é o ser pensante
e de vontade própria.

O Espírito é quem dá à carne as qualidades correspondentes
ao seu instinto, tal como o artista que imprime à obra material o cunho
do seu gênio. Libertado dos instintos da bestialidade, elabora um corpo
que não é mais um tirano de sua aspiração, para
espiritualidade do seu ser, e é quando o homem passa a comer para viver
e não mais vive para comer.

A responsabilidade moral dos atos da vida fica, portanto, intacta; mas a
razão nos diz que as conseqüências dessa responsabilidade
devem ser proporcionais ao desenvolvimento intelectual do Espírito.
Assim, quanto mais esclarecido for este, menos desculpável se torna,
uma vez que com a inteligência e o senso moral nascem as noções
do bem e do mal, do justo e do injusto.

Esta lei explica o insucesso da Medicina em certos casos. Desde que o temperamento
é um efeito e não uma causa, todo o esforço para modificá-lo
se nulifica ante disposições morais do Espírito, opondo-lhe
uma resistência inconsciente que neutraliza a ação terapêutica.
Por conseguinte, sobre a causa primordial é que se deve atuar.

Dai, se puderdes, coragem ao poltrão, e vereis para logo cessados
os efeitos fisiológicos do medo. Isto prova ainda uma vez a necessidade,
para a arte de curar, de levar em conta a influência espiritual sobre
os organismos. (Revue Spirite, março de 1869, pág. 65.)

Princípios da Doutrina Espírita sobre as
penas futuras

A Doutrina Espírita, no que respeita às penas futuras, não
se baseia numa teoria preconcebida; não é um sistema substituindo
outro sistema: em tudo ela se apóia nas observações,
e são estas que lhe dão plena autoridade. Ninguém jamais
imaginou que as almas, depois da morte, se encontrariam em tais ou quais condições;
são elas, essas mesmas almas, partidas da Terra, que nos vêm
hoje iniciar nos mistérios da vida futura, descrever-nos sua situação
feliz ou desgraçada, as impressões, a transformação
pela morte do corpo, completando, em uma palavra, os ensinamentos do Cristo
sobre este ponto.

Preciso é afirmar que se não trata neste caso das revelações
de um só Espírito, o qual poderia ver as coisas do seu ponto
de vista, sob um só aspecto, ainda dominado por terrenos prejuízos.
Tampouco se trata de uma revelação feita exclusivamente a um
indivíduo que pudesse deixar-se levar pelas aparências, ou de
uma visão extática suscetível de ilusões, e não
passando muitas vezes de reflexo de uma imaginação exaltada.
(1) T

rata-se, sim, de inúmeros exemplos fornecidos por Espíritos
de todas as categorias, desde os mais elevados aos mais inferiores da escala,
por intermédio de outros tantos auxiliares (médiuns) disseminados
pelo mundo, de sorte que a revelação deixa de ser privilégio
de alguém, pois todos podem prová-la, observando-a, sem obrigar-se
à crença pela crença de outrem.

(1) Vede cap. VI, nº 7, e O Livro dos Espíritos nºs 443
e 444.

Código penal da vida futura

O Espiritismo não vem, pois, com sua autoridade privada, formular
um código de fantasia; a sua lei, no que respeita ao futuro da alma,
deduzida das observações do fato, pode resumir-se nos seguintes
pontos:

1º – A alma ou Espírito sofre na vida espiritual as conseqüências
de todas as imperfeições que não conseguiu corrigir na
vida corporal. O seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente
ao seu grau de pureza ou impureza.

2º A completa felicidade prende-se à perfeição,
isto é, à purificação completa do Espírito.
Toda imperfeição é, por sua vez, causa de sofrimento
e de privação de gozo, do mesmo modo que toda perfeição
adquirida é fonte de gozo e atenuante de sofrimentos.

3º – Não há uma única imperfeição
da alma que não importe funestas e inevitáveis conseqüências,
como não há uma só qualidade boa que não seja
fonte de um gozo.

A soma das penas é, assim, proporcionada à soma das imperfeições,
como a dos gozos à das qualidades.

A alma que tem dez imperfeições, por exemplo, sofre mais do
que a que tem três ou quatro; e quando dessas dez imperfeições
não lhe restar mais que metade ou um quarto, menos sofrerá.

De todo extintas, então a alma será perfeitamente feliz. Também
na Terra, quem tem muitas moléstias, sofre mais do que quem tenha apenas
uma ou nenhuma. Pela mesma razão, a alma que possui dez perfeições,
tem mais gozos do que outra menos rica de boas qualidades.

4º – Em virtude da lei do progresso que dá a toda alma a possibilidade
de adquirir o bem que lhe falta, como de despojar-se do que tem de mau, conforme
o esforço e vontade próprios, temos que o futuro é aberto
a todas as criaturas. Deus não repudia nenhum de seus filhos, antes
recebe-os em seu seio à medida que atingem a perfeição,
deixando a cada qual o mérito das suas obras.

5º – Dependendo o sofrimento da imperfeição, como o gozo
da perfeição, a alma traz consigo o próprio castigo ou
prêmio, onde quer que se encontre, sem necessidade de lugar circunscrito.

O inferno está por toda parte em que haja almas sofredoras, e o céu
igualmente onde houver almas felizes.

6º – O bem e o mal que fazemos decorrem das qualidades que possuímos.
Não fazer o bem quando podemos e, portanto, o resultado de uma imperfeição.
Se toda imperfeição é fonte de sofrimento, o Espírito
deve sofrer não somente pelo mal que fez como pelo bem que deixou de
fazer na vida terrestre.

7º – O Espírito sofre pelo mal que fez, de maneira que, sendo
a sua atenção constantemente dirigida para as conseqüências
desse mal, melhor compreende os seus inconvenientes e trata de corrigir-se.

8º – Sendo infinita a justiça de Deus, o bem e o mal são
rigorosamente considerados, não havendo uma só ação,
um só pensamento mau que não tenha conseqüências
fatais, como não na uma única ação meritória.
um só bom movimento da alma que se perca, mesmo para os mais perversos,
por isso que constituem tais ações um começo de progresso.

9º – Toda falta cometida, todo mal realizado é uma dívida
contraída que deverá ser paga; se o não for em urna existência,
sê-lo-á na seguinte ou seguintes, porque todas as existências
são solidárias entre si. Aquele que se quita numa existência
não terá necessidade de pagar segunda vez.

10º – O Espírito sofre, quer no mundo corporal, quer no espiritual,
a conseqüência das suas imperfeições. As misérias,
as vicissitudes padecidas na vida corpórea, são oriundas das
nossas imperfeições, são expiações de faltas
cometidas na presente ou em precedentes existências.

Pela natureza dos sofrimentos e vicissitudes da vida corpórea, pode
julgar-se a natureza das faltas cometidas em anterior existência, e
das imperfeições que as originaram.

11º – A expiação varia segundo a natureza e gravidade
da falta, podendo, portanto, a mesma falta determinar expiações
diversas, conforme as circunstâncias, atenuantes ou agravantes, em que
for cometida.

12º – Não há regra absoluta nem uniforme quanto à
natureza e duração do castigo: – a única lei geral é
que toda falta terá punição, e terá recompensa
todo ato meritório, segundo o seu valor.

13º – A duração do castigo depende da melhoria do Espírito
culpado.

Nenhuma condenação por tempo determinado lhe é prescrita.
O que Deus exige por termo de sofrimentos é um melhoramento sério,
efetivo, sincero, de volta ao bem.

Deste modo o Espírito é sempre o árbitro da própria
sorte, podendo prolongar os sofrimentos pela pertinácia no mal, ou
suavizá-los e anulá-los pela prática do bem.

Uma condenação por tempo predeterminado teria o duplo inconveniente
de continuar o martírio do Espírito renegado, ou de libertá-lo
do sofrimento quando ainda permanecesse no mal. Ora, Deus, que é justo,
só pune o mal enquanto existe, e deixa de o punir quando não
existe mais (1); por outra, o mal moral, sendo por si mesmo causa de sofrimento,
fará este durar enquanto subsistir aquele, ou diminuirá de intensidade
à medida que ele decresça.

(1) Vede cap. VI, nº 25, citação de Ezequiel.

14º – Dependendo da melhoria do Espírito a duração
do castigo, o culpado que jamais melhorasse sofreria sempre, e, para ele,
a pena seria eterna.

15º – Uma condição inerente à inferioridade dos
Espíritos é não lobrigarem o termo da provação,
acreditando-a eterna, como eterno lhes parece deva ser um tal castigo. (2)

(2) Perpétuo é sinônimo de eterno. Diz-se o limite das
neves perpétuas; o eterno gelo dos pólos; também se diz
o secretário perpétuo da Academia, o que não significa
que o seja ad perpetuam, mas unicamente por tempo ilimitado. Eterno e perpétuo
se empregam, pois, no sentido de indeterminado. Nesta acepção
pode dizer-se que as penas são eternas, para exprimir que não
têm duração limitada; eternas, portanto, para o Espírito
que lhes não vê o termo.

16º – O arrependimento, conquanto seja o primeiro passo para a regeneração,
não basta por si só; são precisas a expiação
e a reparação.

Arrependimento, expiação e reparação constituem,
portanto, as três condições necessárias para apagar
os traços de uma falta e suas conseqüências. O arrependimento
suaviza os travos da expiação, abrindo pela esperança
o caminho da reabilitação; só a reparação,
contudo, pode anular o efeito destruindo-lhe a causa. Do contrário,
o perdão seria uma graça, não uma anulação.

17º – O arrependimento pode dar-se por toda parte e em qualquer tempo;
se for tarde, porém, o culpado sofre por mais tempo.

Até que os últimos vestígios da falta desapareçam,
a expiação consiste nos sofrimentos físicos e morais
que lhe são conseqüentes, seja na vida atual, seja na vida espiritual
após a morte, ou ainda em nova existência corporal.

A reparação consiste em fazer o bem àqueles a quem se
havia feito o mal. Quem não repara os seus erros numa existência,
por fraqueza ou má-vontade, achar-se-á numa existência
ulterior em contacto com as mesmas pessoas que de si tiverem queixas, e em
condições voluntariamente escolhidas, de modo a demonstrar-lhes
reconhecimento e fazer-lhes tanto bem quanto mal lhes tenha feito. Nem todas
as faltas acarretam prejuízo direto e efetivo; em tais casos a reparação
se opera, fazendo-se o que se deveria fazer e foi descurado; cumprindo os
deveres desprezados, as missões não preenchidas; praticando
o bem em compensação ao mal praticado, isto é, tornando-se
humilde se se tem sido orgulhoso, amável se se foi austero, caridoso
se se tem sido egoísta, benigno se se tem sido perverso, laborioso
se se tem sido ocioso, útil se se tem sido inútil, frugal se
se tem sido intemperante, trocando em suma por bons os maus exemplos perpetrados.
E desse modo progride o Espírito, aproveitando-se do próprio
passado. (1)

(1) A necessidade da reparação é um princípio
de rigorosa justiça. que se pode considerar verdadeira lei de reabilitação
morai dos Espíritos. Entretanto, essa doutrina religião alguma
ainda a proclamou. Algumas pessoas repelem-na porque acham mais cômodo
o poder quitarem-se das más ações por um simples arrependimento,
que não custa mais que palavras, por meio de algumas fórmulas;
contudo, crendo-se, assim, quites, verão mais tarde se isso lhes bastava.
Nós poderíamos perguntar se esse principio não é
consagrado pela lei humana, e se a justiça divina pode ser inferior
à dos homens? E mais, se essas leis se dariam por desafrontadas desde
que o indivíduo que as transgredisse, por abuso de confiança,
se limitasse a dizer que as respeita infinitamente.

Por que hão de vacilar tais pessoas perante uma obrigação
que todo homem honesto se impõe como dever, segundo o grau de suas
forças?

Quando esta perspectiva de reparação for inculcada na crença
das massas, será um outro freio aos seus desmandos, e bem mais poderoso
que o inferno e respectivas penas eternas, visto como interessa a vida em
sua plena atualidade, podendo o homem compreender a procedência das
circunstâncias que a tornam penosa, ou a sua verdadeira situação.

18º – Os Espíritos imperfeitos são excluídos dos
mundos felizes, cuja harmonia perturbariam. Ficam nos mundos inferiores a
expiarem as suas faltas pelas tribulações da vida, e purificando-se
das suas imperfeições até que mereçam a encarnação
em mundos mais elevados, mais adiantados moral e fisicamente. Se se pode conceber
um lugar circunscrito de castigo, tal lugar é, sem dúvida, nesses
mundos de expiação, em torno dos quais pululam Espíritos
imperfeitos, desencarnados à espera de novas existências que
lhes permitam reparar o mal, auxiliando-os no progresso.

19º – Como o Espírito tem sempre o livre-arbítrio, o progresso
por vezes se lhe torna lento, e tenaz a sua obstinação no mal.
Nesse estado pode persistir anos e séculos, vindo por fim um momento
em que a sua contumácia se modifica pelo sofrimento, e, a despeito
da sua jactância, reconhece o poder superior que o domina.

Então, desde que se manifestam os primeiros vislumbres de arrependimento,
Deus lhe faz entrever a esperança. Nem há Espírito incapaz
de nunca progredir, votado a eterna inferioridade, o que seria a negação
da lei de progresso, que providencialmente rege todas as criaturas.

20º – Quaisquer que sejam a inferioridade e perversidade dos Espíritos,
Deus jamais os abandona. Todos têm seu anjo de guarda (guia) que por
eles vela, na persuasão de suscitar-lhes bons pensamentos, desejos
de progredir e, bem assim, de espreitar-lhes os movimentos da alma, com o
que se esforçam por reparar em uma nova existência o mal que
praticaram. Contudo, essa interferência do guia faz-se quase sempre
ocultamente e de modo a não haver pressão, pois que o Espírito
deve progredir por impulso da própria vontade, nunca por qualquer sujeição.

O bem e o mal são praticados em virtude do livre-arbítrio,
e, conseguintemente, sem que o Espírito seja fatalmente impelido para
um ou outro sentido.

Persistindo no mal, sofrerá as conseqüências por tanto
tempo quanto durar a persistência, do mesmo modo que, dando um passo
para o bem, sente imediatamente benéficos efeitos.

OBSERVAÇÃO – Erro seria supor que, por efeito da lei de progresso,
a certeza de atingir cedo ou tarde a perfeição e a felicidade
pode estimular a perseverança no mal, sob a condição
do ulterior arrependimento: primeiro porque o Espírito inferior não
se apercebe do termo da sua situação; e segundo porque, sendo
ele o autor da própria infelicidade, acaba por compreender que de si
depende o fazê-la cessar; que por tanto tempo quanto perseverar no mal
será infeliz; finalmente, que o sofrimento será intérmino
se ele próprio não lhe der fim. Seria, pois, um cálculo
negativo, cujas conseqüências o Espírito seria o primeiro
a reconhecer. Com o dogma das penas irremissíveis é que se verifica,
precisamente, tal hipótese, visto como é para sempre interdita
qualquer idéia de esperança, não tendo pois o homem interesse
em converter-se ao bem, para ele sem proveito.

Diante dessa lei, cai também a objeção extraída
da presciência divina, pois Deus, criando uma alma, sabe efetivamente
se, em virtude do seu livre-arbítrio, ela tomará a boa ou a
má estrada; sabe que ela será punida se fizer o mal; mas sabe
também que tal castigo temporário é um meio de fazê-la
compreender o erro, cedo ou tarde entrando no bom caminho. Pela doutrina das
penas eternas conclui-se que Deus sabe que essa alma falirá e, portanto,
que está previamente condenada a torturas infinitas.

21º – A responsabilidade das faltas é toda pessoal, ninguém
sofre por erros alheios, salvo se a eles deu origem, quer provocando-os pelo
exemplo, quer não os impedindo quando poderia fazê-lo.

Assim, o suicida é sempre punido; mas aquele que por maldade impele
outro a cometê-lo, esse sofre ainda maior pena.

22º – Conquanto infinita a diversidade de punições, algumas
há inerentes à inferioridade dos Espíritos, e cujas conseqüências,
salvo pormenores, são pouco mais ou menos idênticas.

A punição mais imediata, sobretudo entre os que se acham ligados
à vida material em detrimento do progresso espiritual, faz-se sentir
pela lentidão do desprendimento da alma; nas angústias que acompanham
a morte e o despertar na outra vida, na conseqüente perturbação
que pode dilatar-se por meses e anos.

Naqueles que, ao contrário, têm pura a consciência e na
vida material já se acham identificados com a vida espiritual, o trespasse
é rápido, sem abalos, quase nula a turbação de
um pacífico despertar.

23º – Um fenômeno mui freqüente entre os Espíritos
de certa inferioridade moral é o acreditarem-se ainda vivos, podendo
esta ilusão prolongar-se por muitos anos, durante os quais eles experimentarão
todas as necessidades, todos os tormentos e perplexidades da vida.

24º – Para o criminoso, a presença incessante das vitimas e das
circunstâncias do crime é um suplício cruel.

25º – Espíritos há mergulhados em densa treva; outros
se encontram em absoluto insulamento no Espaço, atormentados pela ignorância
da própria posição, como da sorte que os aguarda. Os
mais culpados padecem torturas muito mais pungentes por não lhes entreverem
um termo.

Alguns são privados de ver os seres queridos, e todos, geralmente,
passam com intensidade relativa pelos males, pelas dores e privações
que a outrem ocasionaram. Esta situação perdura até que
o desejo de reparação pelo arrependimento lhes traga a calma
para entrever a possibilidade de, por eles mesmos, pôr um termo à
sua situação.

26º – Para o orgulhoso relegado às classes inferiores. é
suplício ver acima dele colocados, cheios de glória e bem-estar,
os que na Terra desprezara. O hipócrita vê desvendados, penetrados
e lidos por todo o mundo os seus mais secretos pensamentos, sem que os possa
ocultar ou dissimular; o sátiro, na impotência de os saciar,
tem na exaltação dos bestiais desejos o mais atroz tormento;
vê o avaro o esbanjamento inevitável do seu tesouro, enquanto
que o egoísta, desamparado de todos, sofre as conseqüências
da sua atitude terrena; nem a sede nem a fome lhe serão mitigadas,
nem amigas mãos se lhe estenderão às suas mãos
súplices; e pois que em vida só de si cuidara, ninguém
dele se compadecerá na morte.

27º – O único meio de evitar ou atenuar as conseqüências
futuras de uma falta, está no repará-la, desfazendo-a no presente.
Quanto mais nos demorarmos na reparação de uma falta, tanto
mais penosas e rigorosas serão, no futuro, as suas conseqüências.

28º – A situação do Espírito, no mundo espiritual,
não é outra senão a por si mesmo preparada na vida corpórea.

Mais tarde, outra encarnação se lhe faculta para novas provas
de expiação e reparação, com maior ou menor proveito,
dependentes do seu livre-arbítrio; e se ele não se corrige,
terá sempre uma missão a recomeçar, sempre e sempre mais
acerba, de sorte que pode dizer-se que aquele que muito sofre na Terra, muito
tinha a expiar; e os que gozam uma felicidade aparente, em que pesem aos seus
vícios e inutilidades, paga-la-ão mui caro em ulterior existência.
Nesse sentido foi que Jesus disse: – “Bem-aventurados os aflitos, porque
serão consolados,” (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V.)

29º – Certo, a misericórdia de Deus é infinita, mas não
é cega. O culpado que ela atinge não fica exonerado, e, enquanto
não houver satisfeito à justiça, sofre a conseqüência
dos seus erros. Por infinita misericórdia, devemos ter que Deus não
é inexorável, deixando sempre viável o caminho da redenção.

30º – Subordinadas ao arrependimento e reparação dependentes
da vontade humana, as penas, por temporárias, constituem concomitantemente
castigos e remédios auxiliares à cura do mal. Os Espíritos,
em prova, não são, pois, quais galés por certo tempo
condenados, mas como doentes de hospital sofrendo de moléstias resultantes
da própria incúria, a compadecerem-se com meios curativos mais
ou menos dolorosos que a moléstia reclama, esperando alta tanto mais
pronta quanto mais estritamente observadas as prescrições do
solícito médico assistente. Se os doentes, pelo próprio
descuido de si mesmos, prolongam a enfermidade, o médico nada tem que
ver com isso.

31º – As penas que o Espírito experimenta na vida espiritual
ajuntam-se as da vida corpórea, que são conseqüentes às
imperfeições do homem, às suas paixões, ao mau
uso das suas faculdades e à expiação de presentes e passadas
faltas. z na vida corpórea que o Espírito repara o mal de anteriores
existências, pondo em prática resoluções tomadas
na vida espiritual. Assim se explicam as misérias e vicissitudes mundanas
que, à primeira vista, parecem não ter razão de ser.
Justas são elas, no entanto, como espólio do passado – herança
que serve à nossa romagem para a perfectibilidade. (1)

(1) Vede 1ª’ Parte, cap. V, “O purgatório”, nº
3 e seguintes; e, após, 2ª Parte, cap. VIII, “Expiações
terrestres”. Vede, também, O Evangelho segundo o Espiritismo,
cap. V, “Bem-aventurados os aflitos”.

32º – Deus, diz-se, não daria prova maior de amor às suas
criaturas, criando-as infalíveis e, por conseguinte, isentas dos vícios
inerentes à imperfeição? Para tanto fora preciso que
Ele criasse seres perfeitos, nada mais tendo a adquirir, quer em conhecimentos,
quer em moralidade. Certo, porém, Deus poderia fazê-lo, e se
o não fez é que em sua sabedoria quis que o progresso constituísse
lei geral. Os homens são imperfeitos, e, como tais, sujeitos a vicissitudes
mais ou menos penosas. E pois que o fato existe, devemos aceitá-lo.

Inferir dele que Deus não é bom nem justo, fora insensata revolta
contra a lei.

injustiça haveria, sim, na criação de seres privilegiados,
mais ou menos favorecidos, fruindo gozos que outros porventura não
atingem senão pelo trabalho, ou que jamais pudessem atingir. Ao contrário,
a justiça divina patenteia-se na igualdade absoluta que preside à
criação dos Espíritos; todos têm o mesmo ponto
de partida e nenhum se distingue em sua formação por melhor
aquinhoado; nenhum cuja marcha progressiva se facilite por exceção:
os que chegam ao fim, têm passado, como quaisquer outros, pelas fases
de inferioridade e respectivas provas.

Isto posto, nada mais justo que a liberdade de ação a cada
qual concedida. O caminho da felicidade a todos se abre amplo, como a todos
as mesmas condições para atingi-la. A lei, gravada em todas
as consciências, a todos é ensinada. Deus fez da felicidade o
prêmio do trabalho e não do favoritismo, para que cada qual tivesse
seu mérito.

Todos somos livres no trabalho do próprio progresso, e o que muito
e depressa trabalha, mais cedo recebe a recompensa. O romeiro que se desgarra,
ou em caminho perde tempo, retarda a marcha e não pode queixar-se senão
de si mesmo.

O bem como o mal são voluntários e facultativos: livre, o homem
não é fatalmente impelido para um nem para outro.

33º – Em que pese à diversidade de gêneros e graus de sofrimentos
dos Espíritos imperfeitos, o código penal da vida futura pode
resumir-se nestes três princípios:

1º – O sofrimento é inerente à imperfeição.

2º – Toda imperfeição, assim como toda falta dela promanada,
traz consigo o próprio castigo nas conseqüências naturais
e inevitáveis: assim, a moléstia pune os excessos e da ociosidade
nasce o tédio, sem que haja mister de uma condenação
especial para cada falta ou indivíduo.

3º – Podendo todo homem libertar-se das imperfeições por
efeito da vontade, pode igualmente anular os males consecutivos e assegurar
a futura felicidade.

A cada um segundo as suas obras, no Céu como na Terra: – tal é
a lei da Justiça Divina.

Os anjos

Os anjos segundo a Igreja

1. – Todas as religiões têm tido anjos sob vários nomes,
isto é, seres superiores à Humanidade, intermediários
entre Deus e os homens.

Negando toda a existência espiritual fora da vida orgânica, o
materialismo naturalmente classificou os anjos entre as ficções
e alegorias. A crença nos anjos é parte essencial dos dogmas
da Igreja, que assim os define (1):

(1) Extraímos este resumo da pastoral do Monsenhor Gousset, cardeal-arcebispo
de Reims, para a quaresma de 1864. Por ele podemos, pois, considerar os anjos,
assim como os demônios, cujo resumo tiramos da mesma origem e citamos
no capítulo seguinte, como última expressão do dogma
da Igreja neste sentido.

2. – “Acreditamos firmemente, diz um concílio geral e ecumênico
(2), que só há um Deus verdadeiro, eterno e infinito, que no
começo dos tempos tirou conjuntamente do nada as duas criaturas – espiritual
e corpórea, angélica e mundana – tendo formado depois, como
elo entre as duas, a natureza humana, composta de corpo e Espírito.”

(2) Concílio de Latrão.

“Tal é, segundo a fé, o plano divino na obra da criação,
plano majestoso e completo como convinha à eterna sabedoria. Assim
concebido, ele oferece aos nossos pensamentos o ser em todos os seus graus
e condições.”

“Na esfera mais elevada aparecem a existência e a vida puramente
espirituais; na última ordem, uma e outra puramente materiais e, intermediariamente,
uma união maravilhosa das duas substâncias, uma vida ao mesmo
tempo comum ao Espírito inteligente e ao corpo organizado.”

“Nossa alma é de natureza simples e indivisível, porém
limitada em suas faculdades. A idéia que temos da perfeição
faz-nos compreender que pode haver outros seres simples quanto ela, e superiores
por suas qualidades e privilégios.”

“A alma é grande e nobre, porém, está associada
à matéria, servida por órgãos frágeis e
limitada no poder e na ação. Por que não haver outras
ainda mais pobres, libertas dessa escravidão, dessas peias e dotadas
de uma força e atividade maiores e incomparáveis? Antes que
Deus houvesse colocado o homem na Terra, para conhecê-lo, servi-lo,
e amá-lo, não teria já chamado outras criaturas, a fim
de compor-lhe a corteceleste e adorá-lo no auge da glória? Deus,
enfim, recebe das mãos do homem os tributos de honra e homenagem deste
universo: é, portanto, de admirar que receba das mãos dos anjos
o incenso e as orações do homem? Se, pois, os anjos não
existissem, a grande obra do Criador não patentearia o acabamento e
a perfeição que lhe são peculiares; este mundo, que atesta
a sua onipotência, não fora mais a obra-prima da sabedoria; nesse
caso a nossa razão, posto que fraca, poderia conceber um Deus mais
consumado. Em cada página dos sagrados livros, do Velho como do Novo
Testamentos, se fez menção dessas inteligências sublimes,
já em piedosas invocações, já em referências
históricas. A sua intervenção aparece manifestamente
na vida dos patriarcas e dos profetas. Serve-se Deus de tal ministério,
ora para transmitir a sua vontade, ora para anunciar futuros acontecimentos,
e os anjos são também quase sempre órgãos de sua
justiça e misericórdia. A sua presença ressalta das circunstâncias
que acompanham o nascimento, a vida e a paixão do Salvador; a sua lembrança
é inseparável da dos grandes homens, como dos fatos mais grandiosos
da antigüidade religiosa. A crença nos anjos existe no seio mesmo
do politeísmo e nas fábulas da mitologia, porque essa crença
é tão universal e antiga quanto o mundo. O culto que os pagãos
prestavam aos bons e maus gênios não era mais que falsa aplicação
da verdade, um resto degenerado do primitivo dogma. As palavras do santo concílio
de Latrão contêm fundamental distinção entre os
anjos e os homens: – ensinam-nos que os primeiros são puros Espíritos,
enquanto que os segundos se compõem de um corpo e de uma alma, isto
é, que a natureza angélica subsiste por si mesma não
só sem mistura como dissociada da matéria, por mais vaporosa
e sutil que se suponha, ao passo que a nossa alma, igualmente espiritual,
associa-se ao corpo de modo a formar com ele uma só pessoa, sendo tal
e essencialmente o seu destino.”

“Enquanto perdura tão íntima ligação de
alma e corpo, as duas substâncias têm vida comum e se exercem
recíproca influência; daí o não poder a alma libertar-se
completamente das imperfeições de tal condição:
as idéias chegam-lhe pelos sentidos na comparação dos
objetos externos e sempre debaixo de imagens mais ou menos aparentes. Eis
por que a alma não pode contemplar-se a si mesma, nem conceber Deus
e os anjos sem atribuir-lhes forma visível e palpável. O mesmo
se dá quanto aos anjos, que para se manifestarem aos santos e profetas
hão de revestir formas tangíveis e palpáveis. Essas formas
no entanto não passavam de corpos aéreos que faziam mover-se
e identificar-se com eles, ou de atributos simbólicos de acordo com
a missão a seu cargo.”

“Seu ser e movimentos não são localizados nem circunscritos
a limitado e fixo ponto do Espaço. Desligados integralmente do corpo,
não ocupam qualquer espaço no vácuo; mas assim como a
nossa alma existe integral no corpo e em cada uma de suas partes, assim também
os anjos estão, e quase que simultaneamente, em todos os pontos e partes
do mundo. Mais rápidos que o pensa-mento, podem agir em toda parte
num dado momento, operando por si mesmos sem outros obstáculos, senão
os da vontade do Criador e os da liberdade humana. Enquanto somos condenados
a ver lenta e limitadamente as coisas externas; enquanto as verdades sobrenaturais
se nos afiguram enigmas num espelho, na frase de S. Paulo, eles, os anjos,
vêem sem esforço o que lhes importa saber, e estão sempre
em relação imediata com o objeto de seus pensamentos. Os seus
conhecimentos são resultantes não da indução e
do raciocínio, mas dessa intuição clara e profunda que
abrange de uma só vez o gênero e as espécies deles derivadas,
os princípios e as conseqüências que deles decorrem. A distância
das épocas, a diferença de lugares, como a multiplicidade de
objetos, confusão alguma podem produzir em seus espíritos.”

“Infinita, a essência divina é incompreensível;
tem mistérios e profundezas que se não podem penetrar; mas em
lhes serem defesos os desígnios particulares da Providência,
ela lhos desvenda quando em certas circunstâncias são encarregados
de os anunciarem aos homens. As comunicações de Deus com os
anjos e destes entre si, não se fazem como entre nós por meio
de sons articulados e de sinais sensíveis. As puras inteligências
não têm necessidade nem de olhos para ver, nem de ouvidos para
ouvir; tampouco possuem órgão vocal para manifestar seus pensamentos.
Este instrumento usual de nossas relações é-lhes desnecessário,
pois comunicam seus sentimentos de modo só a eles peculiar, isto é,
todo espiritual. Basta-lhes querer para se compreenderem. Unicamente Deus
conhece o número dos anjos. Este número não é,
sem dúvida, infinito, nem pudera sê-lo; porém, segundo
os autores sagrados e os santos doutores, é assaz considerável,
verdadeiramente prodigioso. Se se pode proporcionar o número de habitantes
de uma cidade à sua grandeza e extensão, e sendo a Terra apenas
um átomo comparada ao firmamento e às imensas regiões
do Espaço, força é concluir que o número dos habitantes
do ar e do céu é muito superior ao dos homens.E se a majestade
dos reis se ostenta pelo brilhantismo e número dos vassalos, dos oficiais
e dos súditos, que haverá de mais próprio a dar-nos idéia
da majestade do Rei dos reis do que essa multidão inumerável
de anjos que povoam céus e Terra, mar e abismos, a dignidade dos que
permanecem continuamente prostrados ou de pé ante seu trono?”

“Os padres da Igreja e os teólogos ensinam geralmente que os
anjos se dividem em três grandes hierarquias ou principados, e cada
hierarquia em três companhias ou coros.”

“Os da primeira e mais alta hierarquia designam-se conformemente às
funções que exercem no céu: – Os Serafins são
assim designados por serem como que abrasadosperante Deus pelos ardores da
caridade; outros, os Querubins, por isso que refletem luminosamente a divina
sabedoria; e finalmente Tronos os que proclamam a grandeza do Criador, cujo
brilho fazem resplandecer.”

“Os anjos da segunda hierarquia recebem nomes consentâneos com
as operações que se lhes atribui no governo geral do Universo,
e são: – as Dominações, que determinam aos anjos de classes
inferiores suas missões e deveres; as Virtudes, que promovem os prodígios
reclamados pelos grandes interesses da Igreja e do gênero humano; e
as Potências, que protegem por sua força e vigilância as
leis que regem o mundo físico e moral.”

“Os da terceira hierarquia têm por missão a direção
das sociedades e das pessoas, e são: os Principados, encarregados de
reinos, províncias e dioceses; os Arcanjos, que transmitem as mensagens
de alta importância, e os Anjos de guarda, que acompanham as criaturas
a fim de velarem pela sua segurança e santificação.”

Refutação
3. – O princípio geral resultante dessa doutrina é que os anjos
são seres puramente espirituais, anteriores e superiores à Humanidade,
criaturas privilegiadas e votadas ã felicidade suprema e eterna desde
a sua formação, dotadas, por sua própria natureza, de
todas as virtudes e conhecimentos, nada tendo feito, aliás, para adquiri-los.
Estão, por assim dizer, no primeiro plano da Criação,
contrastando com o último onde a vida &eeacute; puramente material;
e, entre os dois, medianamente existe a Humanidade, isto é, as almas,
seres inferiores aos anjos e ligados a corpos materiais.

De tal sistema decorrem várias dificuldades capitais: – Em primeiro
lugar, que vida é essa puramente material? Será a da matéria
bruta? Mas a matéria bruta é inanimada e não tem vida
por si mesma. Acaso referir-se-á aos animais e às plantas?

Neste suposto seria uma quarta ordem na Criação, pois não
se pode negar que no animal inteligente algo há de mais que numa planta,
e nesta, que numa simples pedra.

Quanto à alma humana, que estabelece a transição, essa
fica diretamente unida a um corpo, matéria bruta, aliás; porque
sem alma o corpo tem tanta vida como qualquer bloco de terra.

Evidentemente, esta divisão é obscura e não se compadece
com a observação; assemelha-se à teoria dos quatro elementos,
anulada pelos progressos da Ciência. Admitamos, entretanto, estes três
termos: – a criatura espiritual, a humana e a corpórea, pois que tal
é, dizem, o plano divino, majestoso e completo como convém à
Eterna Sabedoria. Notemos antes de tudo que não há ligação
alguma necessária entre esses três termos, e que são três
criações distintas e formadas sucessivamente, ao passo que em
a Natureza tudo se encadeia, mostrando-nos uma lei de unidade admirável,
cujos elementos, não passando de transformações entre
si, têm, contudo, seus laços de união.

Mas essa teoria, incompleta embora, é, até certo ponto, verdadeira,
quanto à existência dos três termos; faltam-lhe os pontos
de contacto desses termos, como é fácil demonstrar.

4. – Diz a Igreja que esses três pontos culminantes da Criação
são necessários à harmonia do conjunto. Desde que lhe
falte um só que seja, a obra incompleta não mais se compadece
com a Sabedoria Eterna. Entretanto, um dos dogmas fundamentais diz que a Terra,
os animais, as plantas, o Sol e as estrelas e até a luz foram criados
do nada, há seis mil anos. Antes dessa época não havia,
portanto, criatura humana nem corpórea – o que importa dizer que no
decurso da eternidade a obra divina jazia imperfeita. É artigo de fé
capital a criação do Universo, há seis mil anos, tanto
que há pouco ainda era a Ciência anatematizada por destruir a
cronologia bíblica, provando maior ancianidade da Terra e de seus habitantes.

Apesar disso, o concílio de Latrão, concílio ecumênico
que faz lei em matéria ortodoxa, diz: “Acreditamos firmemente
num Deus único e verdadeiro, eterno e infinito, que no começo
dos tempos tirou conjuntamente do nada as duas criaturas – espiritual e corpórea.”
Por começo dos tempos só podemos inferir a eternidade transcorrida,
visto ser o tempo infinito como o Espaço, sem começo nem fim.
Esta expressão, começo dos tempos, é antes uma figura
que implica a idéia de uma anterioridade ilimitada. O concílio
de Latrão acredita, pois, firmemente, que as criaturas espirituais
como as corpóreas foram simultaneamente formadas e tiradas em conjunto
do nada, numa época indeterminada, no passado. A que fica reduzido,
assim, o texto bíblico que data a Criação de seis mil
dos nossos anos? E, ainda que se admita seja tal o começo do Universo
visível, esse não é seguramente o começo dos tempos.
Em qual crer: – no concílio ou na Bíblia?

5. – O concílio formula, além disso, uma estranha proposição:
“Nossa alma, diz, igualmente espiritual, é associada ao corpo
de maneira a não formar com ele mais que uma pessoa, e tal é,
essencialmente, o seu destino.” Ora, se o destino essencial da alma é
estar unida ao corpo, esta união constitui o estado normal, o desígnio,
o fim, por isso que é o seu destino. Entretanto, a alma é imortal
e o corpo não; a união daquela com este só se realiza
uma vez, segundo a Igreja, e ainda que durasse um século, nada seria
em relação à eternidade. E sendo apenas de algumas horas
para muitos, que utilidade teria para a alma união tão efêmera?
Mas, que se prolongue essa união tanto quanto se pode prolongar uma
existência terrena e, ainda assim, poder-se-á afirmar que o seu
destino é estar essencialmente integrada? Não, essa união
mais não é na realidade do que um incidente, um estádio
da alma, nunca o seu estado essencial.

Se o destino essencial da alma é estar ligada ao corpo humano; se
por sua natureza e segundo o fim providencial da Criação, essa
união é necessária às manifestações
das suas faculdades, forçoso é concluir que, sem corpo, a alma
humana é um ser incompleto. Ora, para que a alma preencha os seus desígnios,
deixando um corpo preciso se faz que tome um outro – o que nos conduz à
pluralidade forçada das existências, ou, por outra, à
reencarnação, à perpetuidade.

É verdadeiramente estranhável que um concílio, havido
por uma das luzes da Igreja, tenha a tal ponto identificado os seres espiritual
e material, de modo a não subsistirem por si mesmos, pois que a condição
essencial da sua criação é estarem unidos.

6. – O quadro hierárquico dos anjos nos mostra que várias ordens
têm, nas suas atribuições, o governo do mundo físico
e da Humanidade, para cujo fim foram criados. Mas, segundo a Gênese,
o mundo físico e a Humanidade não existem senão há
seis mil anos; e o que faziam, pois, tais anjos, anteriormente a essa era,
durante a eternidade, quando não existia o objetivo das suas ocupações?
E teriam eles sido criados de toda a eternidade? Assim deve ser, uma vez que
servem à glorificação do Todo-Poderoso. Mas, criando-os
numa época qualquer determinada, Deus ficaria até então,
isto é, durante uma eternidade, sem adoradores.

7 – Diz ainda o concílio: “Enquanto dura esta união tão
intima da alma com o corpo.” Há, por conseguinte, um momento em
que a união se desfaz? Esta proposição contradita a que
sustenta a essencialidade dessa união. E diz mais o concílio:
“As idéias lhes chegam pelos sentidos, na comparação
dos objetos exteriores.” Eis aí uma doutrina filosófica
em parte verdadeira, que não em sentido absoluto.

Receber as idéias pelos sentidos é, segundo o eminente teólogo,
uma condição inerente à natureza humana; mas ele esquece
as idéias inatas, as faculdades por vezes tão transcendentes,
a intuição das coisas que a criança traz do berço,
não devidas a quaisquer ensinos. Por meio de quais sentidos, jovens
pastores, naturais calculistas, admiração dos sábios,
adquirem idéias necessárias à resolução
quase instantânea dos mais complicados problemas? Outro tanto pode dizer-se
de músicos, pintores e filólogos precoces.

“Os conhecimentos dos anjos não resultam da indução
e do raciocínio”; têm-nos porque são anjos, sem necessidade
de aprendê-los, pois tais foram por Deus criados: quanto à alma,
essa deve aprender. Mas se a alma só recebe as idéias por meio
dos órgãos corporais, que idéias pode ter a alma de uma
criança morta ao fim de alguns dias, se admitirmos com a Igreja que
essa alma não renasce?

8. Aqui reponta uma questão vital, qual a de saber-se se a alma pode
adquirir conhecimentos após a morte do corpo. Se uma vez liberta do
corpo não pode adquirir novos conhecimentos, a alma da criança,
do selvagem, do imbecil, do idiota ou do ignorante permanecera tal qual era
no momento da morte, condenada à nulidade por todo o sempre. Mas se,
ao contrário, ela adquire novos conhecimentos depois da vida atual,
então, é que pode progredir.

Sem progresso ulterior para a alma, chega-se a conclusões absurdas,
tanto quanto admitindo-o se conclui pela negação de todos os
dogmas fundados sobre o estacionamento, a sorte irrevogável, as penas
eternas, etc. Progredindo a alma, qual o limite do progresso? Não há
razão para não atingir por ele ao grau dos anjos, ou puros Espíritos.
Ora, com tal possibilidade não se justificaria a criação
de seres especiais e privilegiados, isentos de qualquer labor, gozando incondicionalmente
de eterna felicidade, ao passo que outros seres menos favorecidos só
obtêm essa felicidade a troco de longos, de cruéis sofrimentos
e rudes provas. Sem dúvida que Deus poderia ter assim determinado,
mas, admitindo-lhe o infinito de perfeição sem a qual não
fora Deus, força é admitir que coisa alguma criaria inutilmente,
desmentindo a sua justiça e bondade soberanas.

9. – “E se a majestade dos reis ostenta o seu brilhantismo pelo número
dos vassalos, oficiais e súditos, que haverá de mais próprio
a dar-nos idéia da majestade do Rei dos reis do que essa inumerável
multidão de anjos que povoam céu e terra, mar e abismos, a dignidade
dos que permanecem continuamente prostrados ou de pé ante seu trono?”

E não será rebaixar a Divindade confrontá-la com o fausto
dos soberanos da Terra? Essa idéia, inculcada no espírito das
massas ignorantes, falseia a opinião de sua verdadeira grandeza. Sempre
Deus reduzido às mesquinhas proporções da Humanidade!
Atribuir-lhe, como necessidade, milhões de adoradores, perenemente
genuflexos, é emprestar-lhe vaidade e fraqueza próprias dos
orgulhosos déspotas do Oriente! E que é que engrandece os soberanos
verdadeiramente grandes? É o número e brilho dos cortesãos?
não; é a bondade, é a justiça, é o título
merecido de pais do seu povo. perguntareis se haverá algo de mais próprio
a dar-nos a idéia da grandeza e majestade de Deus do que a multidão
de anjos que lhe compõem a corte… Mas, certamente que há,
e essa coisa melhor é apresentar-se Deus às suas criaturas soberanamente
bom, justo e misericordioso, que não colérico, invejoso, vingativo,
exterminador e parcial, criando para sua própria glória esses
seres privilegiados, cumulados de todos os dons e nascidos para a felicidade
eterna, enquanto a outros impõe condições penosas na
aquisição de bens, punindo erros momentâneos com eternos
suplícios…

10. – A respeito da união da alma com o corpo, o Espiritismo professa
uma doutrina infinitamente mais espiritualista, para não dizer menos
materialista, tendo ao demais a seu favor a conformidade com a observação
e o destino da alma. Ele ensina-nos que a alma é independente do corpo,
não passando este de temporário invólucro: a espiritualidade
é-lhe a essência, e a sua vida normal é a vida espiritual.
O corpo é apenas instrumento da alma para exercício das suas
faculdades nas relações com o mundo material; separada desse
corpo, goza dessas faculdades mais livre e altamente.

11. – A união da alma com o corpo, em ser necessária aos seus
primeiros progressos, só se opera no período que poderemos classificar
como da sua infância e adolescência; atingido, porém, que
seja, um certo grau de perfeição e desmaterialização,
essa união é prescindível, o progresso faz-se na sua
vida de Espírito. Demais, por numerosas que sejam as existências
corpóreas, elas são limitadas à existência do corpo,
e a sua soma total não compreende, em todos os casos, senão
uma parte imperceptível da vida espiritual, que é ilimitada.

Os anjos segundo o Espiritismo
12. – Que haja seres dotados de todas as qualidades atribuídas aos
anjos, não restam dúvidas. A revelação espírita
neste ponto confirma a crença de todos os povos, fazendo-nos conhecer
ao mesmo tempo a origem e natureza de tais seres.

As almas ou Espíritos são criados simples e ignorantes, isto
é, sem conhecimentos nem consciência do bem e do mal, porém,
aptos para adquirir o que lhes falta. O trabalho é o meio de aquisição,
e o fim – que é a perfeição – é para todos o mesmo.
Conseguem-no mais ou menos prontamente em virtude do livre-arbítrio
e na razão direta dos seus esforços; todos têm os mesmos
degraus a franquear, o mesmo trabalho a concluir. Deus não aquinhoa
melhor a uns do que a outros, porquanto é justo, e, visto serem todos
seus filhos, não tem predileções. Ele lhes diz: Eis a
lei que deve constituir a vossa norma de conduta; ela só pode levar-vos
ao fim; tudo que lhe for conforme é o bem; tudo que lhe for contrário
é o mal. Tendes inteira liberdade de observar ou infringir esta lei,
e assim sereis os árbitros da vossa própria sorte.

Conseguintemente, Deus não criou o mal; todas as suas leis são
para o bem, e foi o homem que criou esse mal, divorciando-se dessas leis;
se ele as observasse escrupulosamente, jamais se desviaria do bom caminho.

13. – Entretanto, a alma, qual criança, é inexperiente nas
primeiras fases da existência, e daí o ser falível. Não
lhe dá Deus essa experiência, mas dá-lhe meios de adquiri-la.
Assim, um passo em falso na senda do mal é um atraso para a alma, que,
sofrendo-lhe as conseqüências, aprende à sua custa o que
importa evitar. Deste modo, pouco a pouco, se desenvolve, aperfeiçoa
e adianta na hierarquia espiritual até ao estado de puro Espírito
ou anjo. Os anjos são, pois, as almas dos homens chegados ao grau de
perfeição que a criatura comporta, fruindo em sua plenitude
a prometida felicidade. Antes, porém, de atingir o grau supremo, gozam
de felicidade relativa ao seu adiantamento, felicidade que consiste, não
na ociosidade, mas nas funções que a Deus apraz confiar-lhes,
e por cujo desempenho se sentem ditosas, tendo ainda nele um meio de progresso.
(Vede 1ª Parte, cap. III, “O céu”.)

14. A Humanidade não se limita à Terra; habita inúmeros
mundos que no Espaço circulam; já habitou os desaparecidos,
e habitará os que se formarem. Tendo-a criado de toda a eternidade,
Deus jamais cessa de criá-la. Muito antes que a Terra existisse e por
mais remota que a suponhamos, outros mundos havia, nos quais Espíritos
encarnados percorreram as mesmas fases que ora percorrem os de mais recente
formação, atingindo seu fim antes mesmo que houvéramos
saído das mãos do Criador.

De toda a eternidade tem havido, pois, puros Espíritos ou anjos; mas,
como a sua existência humana se passou num infinito passado, eis que
os supomos como se tivessem sido sempre anjos de todos os tempos.

15. Realiza-se assim a grande lei de unidade da Criação; Deus
nunca esteve inativo e sempre teve puros Espíritos, experimentados
e esclarecidos, para transmissão de suas ordens e direção
do Universo, desde o governo dos mundos até os mais ínfimos
detalhes. Tampouco teve Deus necessidade de criar seres privilegiados, isentos
de obrigações; todos, antigos e novos, adquiriram suas posições
na luta e por mérito próprio; todos, enfim, são filhos
de suas obras.

E, desse modo, completa-se com igualdade a soberana justiça do Criador.

Os Demônios

Origem da crença nos demônios

1. – Em todos os tempos os demônios representaram papel saliente nas
diversas teogonias, e, posto que consideravelmente decaídos no conceito
geral, a importância que se lhes atribui, ainda hoje, dá à
questão uma tal ou qual gravidade, por tocar o fundo mesmo das crenças
religiosas. Eis por que útil se torna examiná-la, com os desenvolvimentos
que comporta.

A crença num poder superior é instintiva no homem. Encontramo-la,
sob diferentes formas, em todas as idades do mundo. Mas, se hoje, dado o grau
de cultura atingido, ainda se discute sobre a natureza e atributos desse poder,
calcule-se que noções teria o homem a respeito, na infância
da Humanidade.

2. – Como prova da sua inocência, o quadro dos homens primitivos extasiados
ante a Natureza e admirando nela a bondade do Criador é, sem dúvida,
muito poético, mas pouco real. De fato, quanto mais se aproxima do
primitivo estado, mais o homem se escraviza ao instinto, como se verifica
ainda hoje nos povos bárbaros e selvagens contemporâneos; o que
mais o preocupa, ou, antes, o que exclusivamente o preocupa é a satisfação
das necessidades materiais, mesmo porque não tem outras.

O único sentido que pode torná-lo acessível aos gozos
puramente morais não se desenvolve senão gradual e morosamente;
a alma tem também a sua infância, a sua adolescência e
virilidade como o corpo humano; mas para compreender o abstrato, quantas evoluções
não tem ela de experimentar na Humanidade! Por quantas existências
não deve ela passar!

Sem nos remontarmos aos tempos primitivos, olhemos em torno a gente do campo
e perscrutemos os sentimentos de admiração que nela despertam
o esplendor do Sol nascente, do firmamento a estrelada abóbada, o trino
dos pássaros, o murmúrio das ondas claras, o vergel florido
dos prados. Para essa gente o Sol nasce por hábito, e uma vez que desprende
o necessário calor para sazonar as searas, não tanto que as
creste, está realizado tudo o que ela almejava; olha o céu para
saber se bom ou mau tempo sobrevirá; que cantem ou não as aves,
tanto se lhe dá, desde que não desbastem da seara os grãos;
prefere às melodias do rouxinol, o cacarejar da galinhada e o grunhido
dos porcos; o que deseja dos regatos cristalinos, ou lodosos, é que
não sequem nem inundem; dos prados, que produzam boa erva, com ou sem
flores.

Eis aí tudo o que essa gente almeja, ou, o que é mais, tudo
o que da Natureza apreende, conquanto muito distanciada já dos primitivos
homens.

3. – Se nos remontarmos a estes últimos, então, surpreendê-los-emos
mais exclusivamente preocupados com a satisfação de necessidades
materiais, resumindo o bem e o mal neste mundo somente no que concerne à
satisfação ou prejuízo dessas necessidades.

Acreditando num poder extra-humano e porque o prejuízo material é
sempre o que mais de perto lhes importa, atribuem-no a esse poder, do qual
fazem, aliás, uma idéia muito vaga. E por nada conceberem fora
do mundo visível e tangível, tal poder se lhes afigura identificado
nos seres e coisas que os prejudicam.

Os animais nocivos não passam para eles de representantes naturais
e diretosdesse poder. Pela mesma razão, vêem nas coisas úteis
a personificação do bem: dai, o culto votado a certas plantas
e mesmo a objetos inanimados.

Mas o homem é comumente mais sensível ao mal que ao bem; este
lhe parece temor suplanta o reconhecimento.

Durante muito tempo o homem não compreendeu senão o bem e o
mal físicos; os sentimentos morais só mais tarde marcaram o
progresso da inteligência humana, fazendo-lhe entrever na espiritualidade
um poder extra-humano fora do mundo visível e das coisas materiais.
Esta obra foi, seguramente, realizada por inteligências de escol, mas
que não puderam exceder certos limites.

4. – Provada e patente a luta entre o bem e o mal, triunfante este muitas
vezes sobre aquele, e não se podendo racionalmente admitir que o mal
derivasse de um benéfico poder, concluiu-se pela existência de
dois poderes rivais no governo do mundo. Daí nasceu a doutrina dos
dois princípios, aliás lógica numa época em que
o homem se encontrava incapaz de, raciocinando, penetrar a essência
do Ser Supremo.

Como compreenderia, então, que o mal não passa de estado transitório
do qual pode emanar o bem, conduzindo-o à felicidade pelo sofrimento
e auxiliando-lhe o progresso? Os limites do seu horizonte moral, nada lhe
permitindo ver para além do seu presente, no passado como no futuro,
também não lhe permitia compreender que já houvesse progredido,
que progrediria ainda individualmente, e muito menos que as vicissitudes da
vida resultavam das imperfeições do ser espiritual nele residente,
o qual preexiste e sobrevive ao corpo, na dependência de uma série
de existências purificadoras até atingir a perfeição.

Para compreender como do mal pode resultar o bem é preciso considerar
não uma, porém, muitas existências; é necessário
apreender o conjunto do qual – e só do qual – resultam nítidas
as causas e respectivos efeitos.

5. – O duplo princípio do bem e do mal foi, durante muitos séculos,
e sob vários nomes, a base de todas as crenças religiosas. Vemo-lo
assim sintetizado em Oromase e Arimane entre os persas, em Jeová e
Satã entre os hebreus. Todavia, como todo soberano deve ter ministros,
as religiões geralmente admitiram potências secundárias,
ou bons e maus gênios. Os pagãos fizeram deles individualidades
com a denominação genérica de deuses e deram-lhes atribuições
especiais para o bem e para o mal, para os vícios e para as virtudes.
Os cristãos e os muçulmanos herdaram dos hebreus os anjos e
os demônios.

6. – A doutrina dos demônios tem, por conseguinte, origem na antiga
crença dos dois princípios. Compete-nos examiná-la aqui
tão-somente no ponto de vista cristão para ver se está
de acordo com as noções mais exatas que possuímos hoje,
dos atributos da Divindade.

Esses atributos são o ponto de partida, a base de todas as doutrinas
religiosas; os dogmas, o culto, as cerimônias, os usos e a moral, tudo
é relativo à idéia mais ou menos justa, mais ou menos
elevada que se forma de Deus, desde o fetichismo até o Cristianismo.
Se a essência de Deus continua a ser um mistério para as nossas
inteligências, compreendemo-la no entanto melhor que nunca, mercê
dos ensinamentos do Cristo. O Cristianismo racionalmente ensina-nos que: Deus
é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente
justo e bom, infinito em todas as perfeições.

Foi por isso que algures dissemos – (1ª Parte cap. VI, “Doutrina
das penas eternas”) “Se se tirasse a menor parcela de um só
dos seus atributos, não haveria mais Deus, por isso que poderia coexistir
um ser mais perfeito.” Estes atributos, na sua plenitude absoluta, são,
pois, o critério de todas as religiões, estalão da verdade
de cada um dos princípios que ensinam. E para que qualquer desses princípios
seja verdadeiro, preciso é que não encerre um atentado às
divinas perfeições. Vejamos se assim é, de fato, na doutrina
vulgar dos demônios.

Os demônios segundo a Igreja

7 . Satanás, o chefe ou o rei dos demônios, não é,
segundo a Igreja, uma personificação alegórica do mal,
mas uma entidade real, praticando exclusivamente o mal, enquanto que Deus
pratica exclusivamente o bem.

Tomemo-lo, pois, tal qual no-lo representam. Satanás existe de toda
a eternidade, como Deus, ou ser-lhe-á posterior? Existindo de toda
a eternidade é incriado, e, por conseqüência, igual a Deus.
Este Deus, por sua vez, deixará de ser único, pois haverá
um deus do mal. Mas se lhe for posterior? Neste caso passa a ser uma criatura
de Deus. Como tal, só praticando o mal por incapaz de fazer o bem e
tampouco de arrepender-se, Deus teria criado um ser votado exclusiva e eternamente
ao mal. Não sendo o mal obra de Deus, seria contudo de uma das suas
criaturas, e nem por isso deixava Deus de ser o autor, deixando igualmente
de ser profundamente bom. O mesmo se dá, exatamente, em relação
aos seres maus chamados demônios.

8. – Tal foi, por muito tempo, a crença neste sentido. Hoje dizem
(1): “Deus, que é a bondade e santidade por excelência,
não os havia criado perversos e maus. A mão paternal que se
apraz imprimir em todas as suas obras o cunho de infinitas perfeições,
cumulara-os de magníficos predicados. As qualidades eminentíssimas
de sua natureza, juntara as liberalidades da sua graça; em tudo os
fizera iguais aos Espíritos sublimes de glória e felicidade;
subdivididos por todas as suas ordens e adstritos a todas as classes, eles
tinham o mesmo fim e idênticos destinos. Foi seu chefe o mais belo dos
arcanjos. Eles poderiam até ter alcançado a confirmação
de justos para todo o sempre, e serem admitidos ao gozo da bem-aventurança
dos céus. Este último favor, que deverá ser o complemento
de todos os outros, constituía o prêmio da sua docilidade, mas
dele desmereceram por insensata e audaciosa revolta.”

(1) As citações seguintes são extraídas da pastoral
de Monsenhor Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para a quaresma de 1865.
Atentos ao mérito pessoal e à posição do autor,
podemos considerá-las a última expressão da Igreja sobre
a doutrina dos demônios.

“Qual foi o escolho da sua perseverança? Que verdade desconheceram?
Que ato de adoração, de fé, recusaram a Deus? A Igreja
e os anais das santas escrituras não no-lo dizem positivamente, mas
certo parece que não aquiesceram à mediação do
Filho de Deus, nem à exaltação da natureza humana em
Jesus-Cristo.”

“O Verbo Divino, criador de todas as coisas, é também
o mediador e salvador único, na Terra como no Céu. O fim sobrenatural
não foi dado aos anjos e aos homens senão na previsão
de sua encarnação e méritos, pois não há
proporção alguma entre a obra dos Espíritos eminentes
e a recompensa, que é o próprio Deus. Nenhuma criatura poderia
alcançar tal fim, sem esta maravilhosa e sublime intervenção
da caridade. Ora, para preencher a distância infinita que separa a sua
essência das suas obras, preciso fora reunisse à sua pessoa os
dois extremos, associando à divindade as naturezas ou do anjo, ou do
homem: e preferiu então a natureza humana. Esse plano, concebido de
toda eternidade, foi manifestado aos anjos muito antes da sua execução:
o Homem-Deus foi-lhes mostrado como Aquele que deveria confirmá-los
na graça e guiá-los à glória, sob a condição
de o adorarem durante a missão terrestre, e para todo o sempre no céu.
Revelação inesperada, arrebatadora visão para corações
generosos e gratos, mas – mistério profundo – humilhante para espíritos
soberbos! Esse fim sobrenatural, essa glória imensa que lhes propunham
não seria unicamente a recompensa de seus méritos pessoais.
Nunca poderiam atribuir a si próprios os títulos dessa glória!
Uni mediador entre Deus e eles! Que injúria à sua dignidade!
E a preferência espontânea pela natureza humana? Que injustiça!
que afronta aos seus direitos!”

“E chegarão eles a ver esta Humanidade, que lhes é tão
inferior, deificada pela união com o Verbo, sentada à mãatilde;o
direita de Deus em trono resplandecente? Consentirão enfim que ela
ofereça a Deus, eternamente, a homenagem da sua adoração?”

“Lúcifer e a terça parte dos anjos sucumbiram a tais pensamentos
de inveja e de orgulho. S. Miguel e com ele muitos exclamaram: “Quem
é semelhante a Deus? Ele é o dono de seus dons, o soberano Senhor
de todas as coisas. Glória a Deus e ao Cordeiro, que tem de ser imolado
à salvação do mundo.” O chefe dos rebeldes, porém,
esquecido de que a Deus devia a sua nobreza e prerrogativas, raiando pela
temeridade, disse: “Sou eu quem ao céu subirá; fixarei
residência acima dos astros; sentar-me-ei sobre o monte da aliança,
nos flancos do Aquilão, dominarei as nuvens mais elevadas e serei semelhante
ao Altíssimo.” Os que de tais sentimentos partilharam, acolheram
essas palavras com murmúrios de aprovação, e partidários
houve em todas as hierarquias. A sua multidão, contudo, não
os preserva do castigo.”

9. – Está doutrina suscita várias objeções:

1ª – Se Satã e os demônios eram anjos, eles eram perfeitos;
como, sendo perfeitos, puderam falir a ponto de desconhecer a autoridade desse
Deus, em cuja presença se encontravam? Ainda se tivessem logrado uma
tal eminência gradualmente, depois de haver percorrido a escala da perfeição,
poderíamos conceber um triste retrocesso; não, porém,
do modo por que no-los apresentam, isto é, perfeitos de origem.

A conclusão é esta: – Deus quis criar seres perfeitos, porquanto
os favorecera com todos os dons, mas enganou-se: logo, segundo a Igreja, Deus
não é infalível! (1)

(1) Esta doutrina monstruosa é corroborada por Moisés, quando
diz (Gênese, cap. VI, vv. 6 e 7): “Ele se arrependeu de haver criado
o homem na Terra e, penetrado da mais intima dor, disse: Exterminarei a criação
da face da Terra; exterminarei tudo, desde o homem aos animais, desde os que
rastejam sobre a terra até os pássaros do céu, porque
me arrependo de os ter criado.” Ora, um Deus que se arrepende do que
fez não é perfeito nem infalível; portanto, não
é Deus. E são estas as palavras que a Igreja proclama! Tampouco
se percebe o que poderia haver de comum entre os animais e a perversidade
dos homens, para que merecessem tal extermínio.

2ª – Pois que nem a Igreja e nem os sagrados anais explicam a causa
da rebelião dos anjos para com Deus e apenas dão como problemática
(quase certa) a relutância no reconhecimento da futura missão
do Cristo, que valor – perguntamos -que valor pode ter o quadro tão
preciso e detalhado da cena então ocorrente? A que fonte recorreram,
para inferir se de fato foram pronunciadas palavras tão claras e até
simples colóquios? De duas uma: ou a cena é verdadeira ou não
é. No primeiro caso, não havendo dúvida alguma, por que
a Igreja não resolve a questão? Mas se a Igreja e a História
se calam se a coisa apenas parece certa, claro, não passa de hipótese,
e acena descritiva é mero fruto da imaginação. (2)

(2) Encontra-se em Isaías, cap. XIV, Vv. 11 e seguintes: “Teu
orgulho foi precipitado nos infernos; teu corpo morto baqueou par terra; tua
cama verterá podridão, e vermes tua vestimenta. Como caíste
do Céu, Lúcifer, tu que parecias tão brilhante ao romper
do dia? Como foste arrojado sobre a Terra, tu que ferias as nações
com teus golpes; que dizias de coração: Subirei aos céus,
estabelecerei meu trono acima dos astros de Deus, sentar-me-ei acima das nuvens
mais altas e serei igual ao Altíssimo! E todavia foste precipitado
dessa glória no inferno, até o mais fundo dos abismos. Os que
te virem, aproximando-se, encarar-te-ão, dizendo: “Será
este o homem que turbou a Terra, que aterrou seus remos, que fez do mundo
um deserto, que destruiu cidades e reteve acorrentados os que se lhe entregaram
prisioneiros?” Estas palavras do profeta não se relerem à
revolta dos anjos,’ são, sim, uma alusão ao orgulho e à
queda do rei de Babilônia, que retinha os judeus em cativeiro, como
atestam os últimos versículos. O rei de Babilônia é
alegoricamente designado por Lúcifer, mas não se faz aí
qualquer menção da cena supra descrita. Essas palavras são
do rei que as tinha no coração e se colocava por orgulho acima
de Deus, cujo povo escravizara. A profecia da libertação do
povo judeu, da rainha de Babilônia e do destroço dos assírios
é, ao demais, o assunto exclusivo desse capítulo.

3ª- As palavras atribuídas a Lúcifer revelam uma ignorância
admirável num arcanjo que, por sua natureza e grau atingido, não
deve participar, quanto à organização do Universo, dos
erros e dos prejuízos que os homens têm professado, até
serem pela Ciência esclarecidos. Como poderia, então, dizer que
fixaria residência acima dos astros, dominando as mais elevadas nuvens?!

É sempre a velha crença da Terra como centro do Universo, do
céu como que formado de nuvens estendendo-se às estrelas, e
da limitada região destas, que a Astronomia nos mostra disseminadas
ao infinito no infinito espaço! Sabendo-se, como hoje se sabe, que
as nuvens não se elevam a mais de duas léguas da superfície
terráquea, e falando-se em dominá-las por mais alto, referindo-se
a montanhas, preciso fora que a observação partisse da Terra,
sendo ela, de fato, a morada dos anjos. Dado, porém, ser esta em região
superior, inútil fora alçar-se acima das nuvens. Emprestar aos
anjos uma linguagem tisnada de ignorância, é confessar que os
homens contemporâneos são mais sábios que os anjos. A
Igreja tem caminhado sempre erradamente, não levando em conta os progressos
da Ciência.

10. – A resposta à primeira objeção acha-se na seguinte
passagem:

“A escritura e a tradição denominam céu o lugar
no qual se haviam colocado os anjos, no momento da sua criação.
Mas esse não era o céu dos céus, o céu da visão
beatifica, onde Deus se mostra de face aos seus eleitos, que o contemplam
claramente e sem esforço, porque aí não há mais
possibilidade nem perigo de pecado; a tentação e a dúvida
são aí desconhecidas; a justiça, a paz e a alegria reinam
imutáveis, a santidade e a glória imperecíveis. Era,
portanto, outra região celeste, uma esfera luminosa e afortunada, essa
em que permaneciam tão nobres criaturas favorecidas pelas divinas comunicações,
que deveriam receber com fé e humildade até serem admitidas
no conhecimento da sua realidade essência do próprio Deus.”

Do que precede se infere que os anjos decaídos pertenciam a uma categoria
menos elevada e perfeita, não tendo atingido ainda o lugar supremo
em que o erro é impossível. Pois seja: mas, então, há
manifesta contradição nesta afirmativa: – Deus em tudo os tinha
criado semelhantes aos espíritos sublimes que, subdivididos em todas
as ordens e adstritos a todas as classes, tinham o mesmo fim e idênticos
destinos, e que seu chefe era o mais belo dos arcanjos. Ora, em tudo semelhantes
aos outros, não lhes seriam inferiores em natureza; idênticos
em categorias, não podiam permanecer em um lugar especial. Intacta
subsiste, portanto, a objeção.

11. – E ainda há uma outra que é, certamente, a mais séria
e a mais grave.

Dizem: – “Este plano (a intervenção do Cristo), concebido
desde toda a eternidade, foi manifestado aos anjos muito antes da sua execução.”
Deus sabia, portanto, e de toda a eternidade, que os anjos, tanto quanto os
homens, teriam necessidade dessa intervenção. Ainda mais: –
o Deus onisciente sabia que alguns dentre esses anjos viriam a falir, arcando
com a eterna condenação e arrastando a igual sorte uma parte
da Humanidade. E assim, de caso pensado, previamente condenava o gênero
humano, a sua própria criação. Deste raciocínio
não há fugir, porquanto de outro modo teríamos que admitir
a inconsciência divina, apregoando a não presciência de
Deus. Para nós é impossível identificar uma tal criação
com a soberana bondade. Em ambos os casos vemos a negação de
atributos, sem a plenitude absoluta dos quais Deus não seria Deus.

12. – Admitindo a falibilidade dos anjos como a dos homens, a punição
é conseqüência, aliás justa e natural, da falta;
mas se admitirmos concomitantemente a possibilidade do resgate, a regeneração,
a graça, após o arrependimento e a expiação, tudo
se esclarece e se conforma com a bondade de Deus. Ele sabia que errariam,
que seriam punidos, mas sabia igualmente que tal castigo temporário
seria um meio de lhes fazer compreender o erro, revertendo alfim em benefício
deles. Eis como se explicam as palavras do profeta Ezequiel: – “Deus
não quer a morte, porém a salvação do pecador.”
(1)

(1) Vede 1ª’ Parte, cap. VI, nº 25, citação de Ezequiel.

A inutilidade do arrependimento e a impossibilidade de regeneração,
isso sim,importaria a negação da divina bondade. Admitida tal
hipótese, poder-se-ia mesmo dizer, rigorosa e exatamente, que estes
anjos desde a sua criação, visto Deus não poder ignorá-lo,
foram votados à perpetuidade do mal, e predestinados a demônios
para arrastarem os homens ao mal.

13. – Vejamos agora qual a sorte desses tais anjos e o que fazem:

“Mal apenas se manifestou a revolta na linguagem dos Espíritos,
isto é, no arrojo dos seus pensamentos, foram eles banidos da celestial
mansão e precipitados no abismo. Por estas palavras entendemos que
foram arremessados a um lugar de suplícios no qual sofrem a pena de
fogo, conforme o texto do Evangelho, que é a palavra mesma do Salvador.
Ide, malditos, ao fogo eterno preparado pelo demônio e seus anjos. S.
Pedro expressamente diz: que Deus os prendeu às cadeias e torturas
infernais, sem que lá estejam, contudo, perpetuamente, visto como só
no fim do mundo serão para sempre enclausurados com os réprobos.
Presentemente, Deus ainda permite que ocupem lugar nesta criação,
à qual pertencem, na ordem de coisas idênticas à sua existência,
nas relações enfim que deviam ter com os homens, e das quais
fazem o mais pernicioso abuso. Enquanto uns ficam na tenebrosa morada, servindo
de instrumento da justiça divina contra as almas infelizes que seduziram,
outros, em número infinito, formam legiões e residem nas camadas
inferiores da atmosfera, percorrendo todo o globo. Envolvem-se em tudo que
aqui se passa, tomando mesmo parte muito ativa nos acontecimentos terrenos.”

Quanto ao que diz respeito às palavras do Cristo sobre o suplício
do fogo eterno, já nos explanamos no cap. IV, “O Inferno”.

14. – Por esta doutrina, apenas uma parte dos demônios está
no inferno; a outra vaga em liberdade, envolvendo-se em tudo que aqui se passa,
dando-se ao prazer de praticar o mal e isso até o fim do mundo, cuja
época indeterminada não chegará tão cedo, provavelmente.
Mas, por que uma tal distinção? Serão estes menos culpados?
Certo que não, a menos que se não revezem, como se pode inferir
destas palavras: “Enquanto uns ficam na tenebrosa morada, servindo de
instrumento da justiça divina contra as almas infelizes que seduziram.”

Suas ocupações consistem, pois, em martirizar as almas que
seduziram. Assim, não se encarregam de punir faltas livre e voluntariamente
cometidas, porém as que eles próprios provocaram. São
ao mesmo tempo a causa do erro e o instrumento do castigo; e, coisa singular,
que a justiça humana por imperfeita não admitiria – a vitima
que sucumbe por fraqueza, em contingências alheias e porventura superiores
à sua vontade, é tanto ou mais severamente punida do que o agente
provocador que emprega astúcia e artifício, visto como essa
vitima, deixando a Terra, vai para o inferno sofrer sem tréguas, nem
favor, eternamente, enquanto que o causador da sua primeira falta, o agente
provocador, goza de uma tal ou qual dilação e liberdade até
o fim do mundo.

Como pode a justiça de Deus ser menos perfeita que a dos homens?

15. – Mas, ainda não é tudo: “Deus permite que ocupem
lugar nesta criação, nas relações que com o homem
deviam ter e das quais abusam perniciosamente.” Deus podia ignorar, no
entanto, o abuso que fariam de uma liberdade por ele mesmo concedida? Então,
por que a concedeu? Mas nesse caso é com conhecimento de causa que
Deus abandona suas criaturas à mercê delas mesmas, sabendo, pela
sua onisciência, que vão sucumbir, tendo a sorte dos demônios.
Não serão elas de si mesmas bastante fracas para falirem, sem
a provocação de um inimigo tanto mais perigoso quanto invisível?
Ainda se o castigo fora temporário e o culpado pudesse remir-se pela
reparação!… Mas não: a condenação é
irrevogável, eterna! Arrependimento, regeneração, lamentos,
tudo supérfluo!

Os demônios não passam portanto de agentes provocadores e de
antemão destinados a recrutar almas para o inferno, isto com a permissão
de Deus, que antevia, ao criar estas almas, a sorte que as aguardava. Que
se diria na Terra de um juiz que recorresse a tal expediente para abarrotar
prisões? Estranha idéia que nos dão da Divindade, de
um Deus cujos atributos essenciais são: – justiça e bondade
soberanas!

E dizer-se que é em nome de Jesus, dAquele que só pregou amor,
perdão e caridade, que tais doutrinas são ensinadas! Houve um
tempo em que tais anomalias passavam despercebidas, porque não eram
compreendidas nem sentidas; o homem, curvado ao jugo do despotismo, submetia-se
à fé cega, abdicava da razão. Hoje, porém, que
a hora da emancipação soou, esse homem compreende a justiça,
e, desejando-a tanto na vida quanto na morte, exclama: – Não é,
não pode ser tal, ou Deus não fora Deus.

16. – “O castigo segue por toda a parte os seres decaídos: o
inferno está neles e com eles: nem paz nem repouso, transformadas em
amargores as doçuras da esperança, que se lhes torna odiosa.
A mão de Deus desferiu-lhes o castigo no ato mesmo de pecarem, e sua
vontade galvanizou-se no mal.

“Tornados perversos, obstinam-se em o ser e sê-lo-ão para
sempre.

“São, depois do pecado, o que é o homem depois da morte.
A reabilitação dos que caíram torna-se também
impossível; a sua perda é, desde então, irreparável,
mantendo-se eles no seu orgulho perante Deus, no seu ódio contra o
Cristo, na sua inveja contra a Humanidade.

“Não tendo podido apropriar-se da glória celeste pelo
desmesurado da sua ambição, esforçam-se por implantar
seu império na Terra, banindo dela o reino de Deus. O Verbo encarnado
cumpriu, apesar disso, os seus desígnios para salvação
e glória da Humanidade. Também por isso procuram por todos os
meios promover a perda das almas pelo Cristo resgatadas: o artifício
e a importunação, a mentira e a sedução, tudo
põem em jogo para arrastá-las ao mal e consumar-lhes a perda.

“E como são infatigáveis e poderosos, a vida do homem
com inimigos tais não pode deixar de ser uma luta sem tréguas,
do berço ao túmulo.

“Efetivamente esses inimigos são os mesmos que, depois de terem
introduzido o mal no mundo, chegaram a cobri-lo com as espessas trevas do
erro e do vício; os mesmos que, por longos séculos, se fizeram
adorar como deuses e que reinaram em absoluto sobre os povos da antigüidade;
os mesmos, enfim, que ainda hoje exercem tirânica influência nas
regiões idólatras, fomentando a desordem e o escândalo
até no seio das sociedades cristãs. Para compreender todos os
recursos de que dispõem ao serviço da malvadez, basta notar
que nada perderam das prodigiosas faculdades que são o apanágio
da natureza angélica. Certo, o futuro e sobretudo a ordem natural têm
mistérios que Deus se reservou e que eles não podem penetrar;
mas a sua inteligência é bem superior à nossa, porque
percebem de um jacto os efeitos nas causas e vice-versa. Esta percepção
permite-lhes predizer acontecimentos futuros que escapam às nossas
conjeturas. A distância e variedade dos lugares desaparecem ante a sua
agilidade. Mais prontos que o raio, mais rápidos que o pensamento,
acham-se quase instantaneamente sobre diversos pontos do globo e podem descrever,
a distância, os acontecimentos na mesma hora em que ocorrem.

“As leis pelas quais Deus rege o Universo não lhes são
acessíveis, razão por que não podem derrogá-las,
e, por conseguinte, predizer ou operar verdadeiros milagres; possuem no entanto
a arte de imitar e falsificar, dentro de certos limites, as divinas obras;
sabem quais os fenômenos resultantes da combinação dos
elementos, predizem com maior ou menor êxito os que sobrevêm naturalmente,
assim como os que por si mesmos podem produzir. Daí os numerosos oráculos,
os extraordinários vaticínios que sagrados e profanos livros
recolheram, baseando e acoroçoando tantas e tantas superstições.

“A sua substância simples e imaterial subtrai-os às nossas
vistas; permanecem ao nosso lado sem que os vejamos, interessam-nos a alma
sem que nos firam o ouvido. Acreditando obedecer aos nossos pensamentos, estamos
no entanto, e muitas vezes, debaixo da sua funesta influência. As nossas
disposições, ao contrário, são deles conhecidas
pelas impressões que delas transparecem em nós, e atacam-nos
ordinariamente pelo lado mais fraco. Para nos seduzirem com mais segurança,
costumam servir-se de sugestões e engodos conformes com as nossas inclinações.
Modificam a ação segundo as circunstâncias e os traços
característicos de cada temperamento. Contudo, suas armas favoritas
são a hipocrisia e a mentira.”

17. – Afirmam que o castigo os segue por toda parte; que não sabem
o que seja paz nem repouso. Esta asserção de modo algum destrói
a observação que fizemos quanto ao privilégio dos que
estão fora do inferno, e que reputamos tanto menos justificado por
isso que podem fazer, e fazem, maior mal. É de crer que esses demônios
extra-infernais não sejam tão felizes como os bons anjos, mas
não se deverá ter em conta a sua relativa liberdade? Eles não
possuirão a felicidade moral que a virtude defere, mas são incontestavelmente
mais felizes que os seus comparsas do inferno flamífero. Depois, para
o mau, sempre há um certo gozo na prática do mal, de mais a
mais livremente. Perguntai ao criminoso o que prefere: se ficar na prisão,
ou percorrer livremente os campos, agindo à vontade? Pois o caso é
exatamente o mesmo.

Afirmam, outrossim, que o remorso os persegue sem tréguas nem misericórdia,
esquecidos de que o remorso é o precursor imediato do arrependimento,
quando não é o próprio arrependimento. “Tornados
perversos, obstinam-se em o ser, e sê-lo-ão para sempre.”
Mas desde que se obstinam em ser perversos, é que não têm
remorsos; do contrário, ao menor sentimento de pesar, renunciariam
ao mal e pediriam perdão. Logo, o remorso não é para
eles um castigo.

18. – “São, depois do pecado, o que é o homem depois da
morte. A reabilitação dos que caíram torna-se, portanto,
impossível.”

Donde provém essa impossibilidade? Não se compreende que ela
seja a conseqüência de sua similitude com o homem depois da morte,
proposição que, ao demais, é muito ambígua.

Acaso provirá da própria vontade dos demônios? Porventura
da vontade divina? No primeiro caso a pertinácia denota uma extrema
perversidade, um endurecimento absoluto no mal, e nem mesmo se compreende
que seres tão profundamente perversos pudessem jamais ter sido anjos
de virtude, conservando por tempo indefinido, na convivência destes,
todos os traços da sua péssima índole e natureza.

No segundo caso, ainda menos se compreende que Deus inflija como castigo
a impossibilidade da reparação, após uma primeira falta.
O Evangelho nada diz que com isso se pareça.

19. – “A sua perda é desde então irreparável, mantendo-se
eles no seu orgulho perante Deus.” E de que lhes serviria não
manterem tal orgulho, uma vez que é inútil todo o arrependimento?
O bem só poderia interessá-los se eles tivessem uma esperança
de reabilitação, fosse qual fosse o seu preço. Assim
não acontece, no entanto, e pois se perseveram no mal é porque
lhes trancaram a porta da esperança. Mas por que lhes trancaria Deus
essa porta? Para se vingar da ofensa decorrente da sua insubmissão.
E, assim, para saciar o seu ressentimento contra alguns culpados, Deus prefere
não somente vê-los sofrer, mas agravar o mal com mal maior; impelir
à perdição eterna toda a Humanidade, quando por um simples
ato de demência podia evitar tão grande desastre, aliás
previsto de toda a eternidade!

Trata-se, no caso vertente, de um ato de demência, de uma graça
pura e simples que pudesse transformar-se em estimulo do mal? Não,
trata-se de um perdão condicional, subordinado a uma regeneração
sincera e completa. Mas, ao invés de uma palavra de esperança
e misericórdia, é como se Deus dissera: “Pereça
toda a raça humana antes que minha vingança.” E com semelhante
doutrina ainda muita gente se admira de que haja incrédulos e ateus!
E é assim que Jesus nos representa seu Pai? Ele que nos deu a lei expressa
do esquecimento e do perdão das ofensas, que nos manda pagar o mal
com o bem, que prescreve o amor dos nossos inimigos como a primeira das virtudes
que nos conduzem ao céu, quereria desse modo que os homens fossem melhores,
mais justos, mais indulgentes que o próprio Deus?

Os demônios segundo o Espiritismo
20. Segundo o Espiritismo, nem anjos nem demônios são entidades
distintas, por isso que a criação de seres inteligentes é
uma só. Unidos a corpos materiais, esses seres constituem a Humanidade
que povoa a Terra e as outras esferas habitadas; uma vez libertos do corpo
material, constituem o mundo espiritual ou dos Espíritos, que povoam
os Espaços. Deus criou-os perfectíveis e deu-lhes por escopo
a perfeição, com a felicidade que dela decorre. Não lhes
deu, contudo, a perfeição, pois quis que a obtivessem por seu
próprio esforço, a fim de que também e realmente lhes
pertencesse o mérito. Desde o momento da sua criação
que os seres progridem, quer encarnados, quer no estado espiritual. Atingido
o apogeu, tornam-se puros espíritos ou anjos segundo a expressão
vulgar, de sorte que, a partir do embrião do ser inteligente até
ao anjo, há uma cadeia na qual cada um dos elos assinala um grau de
progresso.

Do expresso resulta que há Espíritos em todos os graus de adiantamento,
moral e intelectual, conforme a posição em que se acham, na
imensa escala do progresso.

Em todos os graus existe, portanto, ignorância e saber, bondade e maldade.
Nas classes inferiores destacam-se Espíritos ainda profundamente propensos
ao mal e comprazendo-se com o mal. A estes pode-se denominar demônios,
pois são capazes de todos os malefícios aos ditos atribuídos.
O Espiritismo não lhes dá tal nome por se prender ele à
idéia de uma criação distinta do gênero humano,
como seres de natureza essencialmente perversa, votados ao mal eternamente
e incapazes de qualquer progresso para o bem.

21. – Segundo a doutrina da Igreja os demônios foram criados bons e
tornaram-se maus por sua desobediência: são anjos colocados primitivamente
por Deus no ápice da escala, tendo dela decaído. Segundo o Espiritismo
os demônios são Espíritos imperfeitos, suscetíveis
de regeneração e que, colocados na base da escala, hão
de nela graduar-se. Os que por apatia, negligência, obstinação
ou má-vontade persistem em ficar, por mais tempo, nas classes inferiores,
sofrem as conseqüências dessa atitude, e o hábito do mal
dificulta-lhes a regeneração. Chega-lhes, porém, um dia
a fadiga dessa vida penosa e das suas respectivas conseqüências;
eles comparam a sua situação à dos bons Espíritos
e compreendem que o seu interesse está no bem, procurando então
melhorarem-se, mas por ato de espontânea vontade, sem que haja nisso
o mínimo constrangimento. “Submetidos à lei geral do progresso,
em virtude da sua aptidão para o mesmo, não progridem, ainda
assim, contra a vontade.” Deus fornece-lhes constantemente os meios,
porém, com a faculdade de aceitá-los ou recusá-los. Se
o progresso fosse obrigatório não haveria mérito, e Deus
quer que todos tenhamos o mérito de nossas obras. Ninguém é
colocado em primeiro lugar por privilégio; mas o primeiro lugar a todos
é franqueado à custa do esforço próprio.

Os anjos mais elevados conquistaram a sua graduação, passando,
como os demais, pela rota comum.

22. – Chegados a certo grau de pureza, os Espíritos têm missões
adequadas ao seu progresso; preenchem assim todas as funções
atribuídas aos anjos de diferentes categorias.

E como Deus criou de toda a eternidade, segue-se que de toda a eternidade
houve número suficiente para satisfazer às necessidades do governo
universal. Deste modo uma só espécie de seres inteligentes,
submetida à lei de progresso, satisfaz todos os fins da Criação.

Por fim, a unidade da Criação, aliada à idéia
de uma origem comum, tendo o mesmo ponto de partida e trajetória, elevando-se
pelo próprio mérito, corresponde melhor à justiça
de Deus do que a criação de espécies diferentes, mais
ou menos favorecidas de dotes naturais, que seriam outros tantos privilégios.

23. – A doutrina vulgar sobre a natureza dos anjos, dos demônios e
das almas, não admitindo a lei do progresso, mas vendo todavia seres
de diversos graus, concluiu que seriam produto de outras tantas criações
especiais. E assim foi que chegou a fazer de Deus um pai parcial, tudo concedendo
a alguns de seus filhos, e a outros impondo o mais rude trabalho. Não
admira que por muito tempo os homens achassem justificação para
tais preferências, quando eles próprios delas usavam em relação
aos filhos, estabelecendo direitos de primogenitura e outros privilégios
de nascimento. Podiam tais homens acreditar que andavam mais errados que Deus?

Hoje, porém, alargou-se o circulo das idéias: o homem vê
mais claro e tem noções mais precisas de justiça; desejando-a
para si e nem sempre encontrando-a na Terra, ele quer pelo menos encontrá-la
mais perfeita no Céu.

E aqui está por que lhe repugna à razão toda e qualquer
doutrina, na qual não resplenda a Justiça Divina na plenitude
integral da sua pureza.

Intervenção dos demônios nas modernas
manifestações

1. – Os modernos fenômenos do Espiritismo têm atraído
a atenção sobre fatos análogos de todos os tempos, e
nunca a História foi tão compulsada neste sentido como ultimamente.
Pela semelhança dos efeitos, inferiu-se a unidade da causa. Como sempre
acontece relativamente a fatos extraordinários que o senso comum desconhece,
o vulgo viu nos fenômenos espíritas uma causa sobrenatural, e
a superstição completou o erro ajuntando-lhes absurdas crendices.
Provém dai uma multidão de lendas que, pela maior parte, são
um amálgama de poucas verdades e muitas mentiras.

2. – As doutrinas sobre o demônio, prevalecendo por tanto tempo, haviam
de tal maneira exagerado o seu poder, que fizeram, por assim dizer, esquecer
Deus; por toda parte surgia o dedo de Satanás, bastando para tanto
que o fato observado ultrapassasse os limites do poder humano. Até
as coisas melhores, as descobertas mais úteis, sobretudo as que podiam
abalar a ignorância e alargar o circulo das idéias -foram tidas
muita vez por obras diabólicas. Os fenômenos espíritas
de nossos dias, mais generalizados e mais bem observados à luz da razão
e com o auxilio da Ciência, confirmaram, é certo, a intervenção
de inteligências ocultas, porém agindo dentro de leis naturais
e revelando por sua ação uma nova força e leis até
então desconhecidas.

A questão reduz-se, portanto, a saber de que ordem são essas
inteligências.

Enquanto se não possuía do mundo espiritual noções
mais que incertas e sistemáticas, a verdade podia ser desviada; mas
hoje que observações rigorosas e estudos experimentais esclareceram
a natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como o seu modo de
ação e papel no Universo – hoje, dizemos, a questão se
resolve por fatos. Sabemos, agora, que essas inteligências ocultas são
as almas dos que viveram na Terra. Sabemos também que as diversas categorias
de bons e maus Espíritos não são seres de espécies
diferentes, porém que apenas representam graus diversos de adiantamento.
Segundo a posição que ocupam em virtude do desenvolvimento intelectual
e moral, os seres que se manifestam apresentam os mais fundos contrastes,
sem que por isso possamos supor não tenham saído todos da grande
família humana, do mesmo modo que o selvagem, o bárbaro e o
homem civilizado.

3. – Sobre este ponto, como sobre muitos outros, a Igreja mantém as
velhas crenças a respeito dos demônios. Diz ela: “Há
princípios que não variam há dezoito séculos,
porque são imutáveis.” O seu erro é precisamente
esse de não levar em conta o progresso das idéias; é
supor Deus insuficientemente sábio para não proporcionar a revelação
ao desenvolvimento das inteligências; é, em suma, falar aos contemporâneos
a mesma linguagem do passado. Ora, progredindo a Humanidade enquanto a Igreja
se abroquela em velhos erros sistematicamente, tanto em matéria espiritual
como na científica, cedo virá a incredulidade, avassalando a
própria Igreja.

4. – Eis como esta explica a intervenção exclusiva dos demônios
nas manifestações espíritas: (1)

(1) As citações deste capítulo são extraídas
da mesma pastoral indicada no precedente, e da qual são corolários.
É a mesma fonte e, por conseguinte, a mesma autoridade.

“Nas suas intervenções exteriores os demônios procuram
dissimular a sua presença, a fim de afastar suspeitas. Sempre astutos
e pérfidos, seduzem o homem com ciladas antes de algemá-lo na
opressão e no servilismo.

“Aqui lhe aguçam a curiosidade com fenômenos e partidas
pueris; além, despertam-lhe a admiração e subjugam-no
pelo encanto do maravilhoso.

“Se o sobrenatural aparece e os desmascara, então, acalmam-se,
extinguem quaisquer apreensões, solicitam confiança e provocam
familiaridade.

“Ora se apresentam como divindades e bons gênios, ora assimilam
nomes e mesmo traços de memorados mortos. Com o auxílio de tais
fraudes dignas da antiga serpente, falam e são ouvidos; dogmatizam
e são acreditados; misturam com suas mentiras algumas verdades e inculcam
o erro debaixo de todas as formas. Eis o que significam as pretensas revelações
de além-túmulo. E é para tal resultado que a madeira
e a pedra, as florestas e as fontes, o santuário dos ídolos
e os pés das mesas e as mãos das crianças se tornam oráculos:
é por isso que a pitonisa profetiza em delírio; que o ignorante
se torna cientista num sono misterioso. Enganar e perverter, tal é,
em toda parte e de todos os tempos, o supremo objetivo dessas manifestações.

“Os resultados surpreendentes dessas práticas ou atos ordinariamente
fantásticos e ridículos, não podendo provir da sua virtude
intrínseca, nem da ordem estabelecida por Deus, só podem ser
atribuídos ao concurso das potências ocultas. Tais são,
notadamente, os fenômenos extraordinários obtidos em nossos dias
pelos processos aparentemente inofensivos do magnetismo, como os das mesas
falantes. Por meio das operações da moderna magia, vemos reproduzirem-se
no presente as evocações, as consultas, as curas e sortilégios
que ilustraram os templos dos ídolos e os antros das sibilas. Como
outrora, interroga-se a madeira e esta responde; manda-se e ela obedece; isto
em todas as línguas e sobre todos os assuntos; acha-se a gente em presença
de seres invisíveis a usurparem nomes de mortos, e cujas pretensas
revelações têm o cunho da contradição e
da mentira; formas inconsistentes e leves aparecem rápidas e repentinas,
patenteando-se dotadas de força sobre-humana.

“Quais são os agentes secretos desses fenômenos, os verdadeiros
atores dessas cenas inexplicáveis? Os anjos, esses não aceitariam
tais papéis indignos, como também não se prestariam a
todos os caprichos da curiosidade.

“As almas dos mortos, que Deus proíbe evocar, essas demoram no
lugar que lhes designa a sua justiça, e não podem, sem sua permissão,
colocar-se às ordens dos vivos. Assim, os seres misteriosos que acodem
ao primeiro apelo do herege, do ímpio ou do crente – o que importa
dizer da inocência ou do crime – não são nem enviados
de Deus, nem apóstolos da verdade e da salvação, porém
fatores do erro e agentes do inferno. Apesar do cuidado com que se ocultam
sob os mais veneráveis nomes, eles traem-se pela nulidade das suas
doutrinas, pela baixeza dos atos e incoerência das palavras.

“Procuram apagar do símbolo religioso os dogmas do pecado original,
da ressurreição do corpo, da eternidade das penas, como de toda
a revelação divina, para subtrair às leis a sua verdadeira
sanção e abrir ao vício todas as barreiras. Se as suas
sugestões pudessem prevalecer, acabariam por formar uma religião
cômoda para uso do socialismo e de todos a quem importuna a noção
do dever e da consciência.

“A incredulidade do nosso século facilitou-lhes o caminho. Assim
possam as sociedades cristãs, por uma sincera dedicação
à fé católica, escapar ao perigo desta nova e terrível
invasão!”

5. – Toda esta teoria deriva do princípio de que os anjos e os demônios
são seres distintos das almas humanas, sendo estas antes o produto
de uma criação especial, aliás inferiores aos demônios
em inteligência, em conhecimento e em toda espécie de faculdade.
E é assim que opina pela exclusiva intervenção dos maus
anjos, nas antigas como nas modernas manifestações dos Espíritos.

A possibilidade da comunicação dos mortos é uma questão
de fato, é o resultado de observações e experiências
que não vêm ao caso discutir aqui. Admitamos, porém, como
hipótese, a doutrina acima citada, e vejamos se ela se não destrói
por si mesma com os seus próprios argumentos.

6. – Das três categorias de anjos segundo a Igreja, a primeira ocupa-se
exclusivamente do céu; a segunda do governo do Universo, e a terceira,
da Terra. É nesta última que se encontram os anjos de guarda
encarregados da proteção de cada indivíduo. Somente uma
parte dos anjos, desta última categoria, é que compartilhou
da revolta e foi transformada em demônios. Ora, desde que Deus lhes
permitira com tanta liberdade, já por sugestões ocultas, já
por ostensivas manifestações, induzir os homens em erro, e porque
esse Deus é soberanamente justo e bom, devia ao menos, para atenuar
os males de tão odiosa concessão, permitir também a manifestação
dos bons anjos. Ao menos, assim, os homens teriam a liberdade e o recurso
da escolha. Dar, porém, aos anjos maus o monopólio da tentação,
com poderes amplos de simular o bem para melhor seduzir; e vedando ao mesmo
tempo toda e qualquer intervenção dos bons, é atribuir
a Deus o intuito inconcebível de agravar a fraqueza, a inexperiência
e a boa-fé dos homens.

É mais ainda: é supor da parte de Deus um abuso de confiança,
pela fé que nos merece. A razão recusa admitir tanta parcialidade
em proveito do mal. Vejamos os fatos.

7. – Aos demônios concedem-se faculdades transcendentes: nada perderam
da natureza angélica; possuem o saber, a perspicácia, a previdência
e a penetração dos anjos, tendo ainda, a mais, astúcia,
ardil e artifício, tudo em grau mais elevado. O objetivo que os move
é desviar os homens do bem, afastá-los de Deus e arrastá-los
ao inferno, do qual são provedores e recrutadores. Assim, compreende-se
que se dirijam de preferência aos que estão no bom caminho e
nele persistem; compreende-se o emprego das seduções e simulacros
do bem para atraí-los e perdê-los; mas o que se não compreende
é que se dirijam aos que já lhes pertencem de corpo e alma,
procurando reconduzi-los a Deus e ao bem.

Quem mais estará nas garras do demônio do que aquele que de
Deus blasfema, atido ao vício e à desordem das paixões?
Esse não estará no caminho do inferno? Mas então como
compreender que a uma tal presa esse demônio exorte a rogar a Deus,
a submeter-se à sua vontade, a renunciar ao mal?

Como se compreende que exalte aos seus olhos a vida deliciosa dos bons Espíritos
e lhe pinte a horrorosa posição dos maus? Jamais se viu negociante
realçar aos seus fregueses a mercadoria do vizinho em detrimento da
sua, aconselhando-os a ir à casa dele. Nunca se viu um arrebanhador
de soldados depreciar a vida militar, decantando o repouso da vida doméstica!
Poderá ele dizer aos recrutas que terão vida de trabalhos e
privações com dez probabilidades contra uma de morrerem ou,
pelo menos, de ficarem sem braços nem pernas? É este, no entanto,
o papel estúpido do demônio, pois é notório – e
é um fato – que as instruções emanadas do mundo invisível
têm regenerado incrédulos e ateus, insuflando-lhes n’alma fervor
e crenças nunca havidos.

Ainda por influência dessas manifestações têm-se
visto – e vêem-se diariamente – regenerarem-se viciosos contumazes,
procurando melhorarem-se a si mesmos. Ora, atribuir ao demônio tão
benéfica propaganda e salutar resultado, é conferir-lhe diploma
de tolo.

E como não se trata de simples suposição, mas de fato
experimental contra o qual não há argumento, havemos de concluir,
ou que o demônio é um desazado de primeira ordem, ou que não
é tão astuto e mau como se pretende, e, conseguintemente, tão
temível quanto dizem; ou, então, que todas as manifestações
não partem dele.

8. – “Eles inculcam o erro sob todas as formas, e é para obter
esse resultado que a madeira, a pedra, as florestas, as fontes, os santuários
dos ídolos, os pés das mesas e as mãos dos meninos se
tornam oráculos.”

Mas, se assim é, qual o sentido e valor destas palavras do Evangelho:
– “Eu repartirei meu Espírito por toda a carne: – vossos filhos
e filhas profetizarão; os jovens terão visões e os velhos
terão sonhos. Nesses dias repartirei meu Espírito por todos
os meus servidores e servidoras, e eles profetizarão.” (Atos dos
Apóstolos, cap. II, vv. 17 e 18.)

Não estará nessas palavras a predição tácita
da mediunidade dos nossos dias a todos concedida, mesmo às crianças?
E essa faculdade foi anatematizada pelos apóstolos? Não; eles
a apregoam como graça divina e não como obra do demônio.

Terão os teólogos de hoje mais autoridade que os apóstolos?
Por que não ver antes o dedo de Deus na realização daquelas
palavras?

9. – “Por meio das operações da moderna magia vemos reproduzirem-se
no presente as evocações, as consultas, as curas e os sortilégios
que ilustraram os templos dos ídolos e os antros das sibilas.”

Nós perguntamos: que há de comum entre as operações
da magia e as evocações espíritas?

Houve tempo em que tais operações faziam fé e acreditava-se
na sua eficácia, mas hoje são simplesmente ridículas.
Ninguém as toma a sério, e o Espiritismo condena-as. Na época
em que florescera a magia, era imperfeita a noção sobre a natureza
dos Espíritos, geralmente havidos por seres dotados de poder sobre-humano.

A troco da própria alma, ninguém os evocava que não
fosse para obter favores da sorte e da fortuna, achar tesouros, revelar o
futuro ou obter filtros. A magia com seus sinais, fórmulas e práticas
cabalísticas era increpada de fornecer segredos para operar prodígios,
constranger Espíritos a ficarem às ordens dos homens e satisfazerem-lhes
os desejos. Hoje sabemos que os Espíritos são as almas dos mortos
e não os evocamos senão para receber conselhos dos bons, moralizar
os maus e continuar relações com seres que nos são caros.
Eis o que diz o Espiritismo a tal respeito:

10. Não podereis obrigar nunca a presença de um Espírito
vosso igual ou superior em moralidade, por vos faltar autoridade sobre ele;
mas, do vosso inferior, e sendo para seu beneficio, consegui-lo-eis, visto
como outros Espíritos vos secundam. ( O Livro dos Médiuns, 2ª
Parte, cap. XXV.)

– A mais essencial de todas as disposições para evocar é
o recolhimento, quando desejarmos tratar com Espíritos sérios.
Com a fé e o desejo do bem, mais aptos nos tornamos para evocar Espíritos
superiores. Elevando nossa alma por alguns instantes de concentração
no momento de evocá-los, identificamo-nos com os bons Espíritos,
predispondo a sua vinda. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap.
XXV.)

– Nenhum objeto, medalha ou talismã tem a propriedade de atrair ou
repelir Espíritos, pois a matéria ação alguma
exerce sobre eles. Nunca um bom Espírito aconselha tais absurdos. A
virtude dos talismãs só pode existir na imaginação
de pessoas simplórias. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte,
cap. XXV.)

– Não há fórmulas sacramentais para evocar Espíritos.
Quem quer que pretendesse estabelecer uma fórmula, poderia ser tachado
de usar de charlatanismo, visto que para os Espíritos puros a fórmula
nada vale. A evocação deve, porém, ser feita sempre em
nome de Deus. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XVII.)

– Os Espíritos que prefixam entrevistas em lugares lúgubres,
e a horas indevidas, são os que se divertem a custa de quem os ouve.
É sempre inútil e muitas vezes perigoso ceder a tais sugestões;
inútil, porque nada se ganha além de uma mistificação,
e perigoso, não pelo mal que possam fazer os Espíritos, mas
pela influência que tais fatos podem exercer sobre cérebros fracos.
(O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

– Não há dias nem horas mais especialmente propícios
às evocações: isso, como tudo que é material,
é completamente indiferente aos Espíritos, além de ser
supers ticiosa a crença em tais influências. Os momentos mais
favoráveis são aqueles em que o evocador pode abstrair-se melhor
das suas preocupações habituais, calmo de corpo e de espírito.
( O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

– A crítica malévola apraz-se em representar as comunicações
espíritas revestidas das práticas ridículas e supersticiosas
da magia e da nigromancia. Entretanto, se os que falam do Espiritismo, sem
conhecê-lo, procurassem estudá-lo, poupariam trabalhos de imaginação
e alegações que só servem para demonstrar a sua ignorância
e má-vontade.

Para conhecimento das pessoas estranhas à ciência, diremos que
não há horas mais propícias, umas que outras, como não
há dias nem lugares, para comunicar com os Espíritos. Diremos
mais: que não há fórmulas nem palavras sacramentais ou
cabalísticas para evocá-los; que não há necessidade
alguma de preparo ou iniciação; que é nulo o emprego
de quaisquer sinais ou objetos materiais para atraí-los ou repeli-los,
bastando para tanto o pensamento; e, finalmente, que os médiuns recebem
deles as comunicações sem sair do estado normal, tão
simples e naturalmente como se tais comunicações fossem ditadas
por uma pessoa vivente. Só o charlatanismo poderia emprestar às
comunicações formas excêntricas, enxertando-lhes ridículos
acessórios. ( O que é o Espiritismo, cap. II, nº 49.)

– O futuro é vedado ao homem por princípio, e só em
casos raríssimos e excepcionais é que Deus faculta a sua revelação.
Se o homem conhecesse o futuro, por certo que negligenciaria o presente e
não agiria com a mesma liberdade. Absorvidos pela idéia da fatalidade
de um acontecimento, ou procuramos conjurá-lo ou não nos preocupamos
dele. Deus não permitiu que assim fosse, a fim de que cada qual concorresse
para a realização dos acontecimentos mesmos, que porventura
desejaria evitar. Ele permite, no entanto, a revelação do futuro,
quando o conhecimento prévio de uma coisa não estorva, mas facilita
a sua realização, induzindo a procedimento diverso do que se
teria sem tal circunstância. ( O Livro dos Espíritos, Parte 3ª,
cap. X.)

– Os Espíritos não podem guiar descobertas nem investigações
científicas. A Ciência é obra do gênio e só
deve ser adquirida pelo trabalho, pois é por este que o homem progride.
Que mérito teríamos nós se, para tudo saber, apenas bastasse
interrogar os Espíritos? Por esse preço, todo imbecil poderia
tornar-se sábio. O mesmo se dá relativamente aos inventos e
descobertas da indústria. Chegado que seja o tempo de uma descoberta,
os Espíritos encarregados da sua marcha procuram o homem capaz de levá-la
a bom termo e inspiram-lhe as idéias necessárias, isto de molde
a não lhe tirar o respectivo mérito, que está na elaboração
e execução dessas idéias. Assim tem sido com todos os
grandes trabalhos da inteligência humana. Os Espíritos deixam
cada indivíduo na sua esfera: do homem apenas apto para lavrar a terra
não fazem depositários dos segredos de Deus, mas sabem arrancar
da obscuridade aquele que se mostra capaz de secundar-lhes os desígnios.
Não vos deixeis, por conseguinte, dominar pela ambição
e pela curiosidade, em terreno alheio ao do Espiritismo, que tais fitos não
tem, pois com eles só conseguireis as mais ridículas mistificações.
( O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXVI.)

– Os Espíritos não podem concorrer para a descoberta de tesouros
ocultos. Os superiores não se ocupam de tais coisas e só os
zombeteiros podem entreter-se com elas, já indicando tesouros que o
mais das vezes não existem, já apontando sítios diametralmente
opostos àqueles em que realmente existem. Esta circunstância
tem, contudo, uma utilidade, qual a de mostrar que a verdadeira fortuna reside
no trabalho. Quando a Providência tem destinado a alguém quaisquer
riquezas ocultas, esse alguém as encontrará naturalmente; do
contrário não, nunca. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte,
cap. XXVI.)

– Esclarecendo-nos sobre as propriedades dos fluidos – agentes e meios de
ação do mundo invisível constituindo uma das forças
e potências da Natureza – o Espiritismo nos dá a chave de inúmeros
fatos e coisas inexplicadas e inexplicáveis de outro modo, fatos e
coisas que passaram por prodígios, em outras eras. Do mesmo modo que
o magnetismo, ele nos revela uma lei, senão desconhecida, pelo menos
incompreendida, ou então, para melhor dizer, efeitos de todos os tempos
conhecidos, pois que de todos os tempos se produziram, mas cuja lei se ignorava
e de cuja ignorância brotava a superstição. Conhecida
essa lei, desaparece o maravilhoso e os fenômenos entram para a ordem
das coisas naturais. Eis por que os Espíritos não produzem milagres,
fazendo girar as mesas ou escrever os mortos, como milagre não faz
o médico em restituir à vida o moribundo, e o físico
provocando a queda do raio. Quem pretendesse fazer milagres pelo Espiritismo
não passaria de ignorante, ou então de mero prestidigitador.
( O Livro dos Médiuns, 1ª Parte, cap. II.)

Pessoas há que fazem das evocações uma idéia
muito falsa: há mesmo quem acredite que os mortos evocados se apresentam
com todo o aparelho lúgubre do túmulo. Tais suposições
podem ser atribuídas ao que vemos nos teatros ou lemos nos romances
e contos fantásticos, onde os mortos aparecem amortalhados com o chocalhar
dos ossos.

O Espiritismo, que nunca fez milagres, também não faz esse,
pois que jamais fez reviver um corpo morto. O Espírito, fluídico,
inteligente, esse não baixa à campa com o grosseiro invólucro,
que lá fica definitivamente. Separa-se dele no momento da morte, e
nada mais têm de comum entre si. ( O que é o Espiritismo, cap.
II, n.º 48.)

11 – Ampliamos estas citações para mostrar que os princípios
do Espiritismo não têm relação alguma com os da
magia. Assim, nem Espíritos às ordens dos homens; nem meios
de os constranger; nem sinais ou fórmulas cabalísticas; nem
descobertas de tesouros; nem processos para enriquecer, e tampouco milagres
ou prodígios, adivinhações e aparições
fantásticas: nada, enfim, do que constitui o fim e os elementos essenciais
da magia. O Espiritismo não só reprova tais coisas como demonstra
a impossibilidade e ineficácia delas. Não há, afirmamo-lo
ainda uma vez, analogia alguma entre os processos e fins da magia e os do
Espiritismo; só a ignorância e a má-fé poderão
confundi-los. Dessa forma, tal erro não pode prevalecer, uma vez que
os princípios espíritas não se furtam ao exame, e aí
estão formulados inequívoca e claramente para todos.

Quanto às curas, reconhecidas como reais na pastoral precitada, o
exemplo está mal selecionado como meio de evitar relações
com os Espíritos. Efetivamente, essas curas são outros tantos
benefícios que levam à gratidão e que todos podem experimentar.
Pouca gente estará disposta a renunciar a elas, mormente depois de
haver esgotado outros recursos antes de recorrer ao diabo. Depois, se o diabo
cura, força é confessar que faz uma boa e meritória ação.
(1)

(1) Querendo persuadir as pessoas curadas pelo Espiritismo que o foram pelo
diabo, grande numero delas se há separado da Igreja, sem que jamais
pensassem fazê-lo.

12. – “Quais são os agentes secretos de tais fenômenos,
os verdadeiros autores dessas cenas inexplicáveis? Os anjos, esses
não aceitariam papéis indignos, como também não
se prestariam aos caprichos todos da curiosidade.”

O autor quer falar das manifestações físicas dos Espíritos,
no número das quais algumas há evidentemente pouco dignas de
Espíritos superiores. Nós lhe pediremos, contudo, que substitua
o vocábulo anjo pelo de espíritos puros ou espíritos
superiores, pois que assim teremos exatamente o que diz o Espiritismo. Indignas,
porém, dos bons Espíritos, não se pode considerar uma
multidão de comunicações dadas pela escrita, pela palavra,
pela audição, etc., pois que tais comunicações
seriam e são dignas dos homens mais eminentes da Terra. O mesmo poderemos
dizer quanto às curas, aparições e um sem-número
de fatos que os livros santos citam em profusão como obra de anjos
ou de santos. Se, pois, os anjos e os santos produziram outrora fenômenos
semelhantes, por que não os produzirão hoje? Por que serem idênticos
fatos julgados bruxaria nas mãos de uns, enquanto nas mãos de
outros se reputam santos milagres?

Sustentar semelhante tese é abdicar toda a lógica.

O autor da Pastoral labora em erro quando afirma que tais fenômenos
são inexplicáveis. O que se dá é justamente o
contrário, isto é, hoje esses fenômenos são perfeitamente
explicados, tanto que se não consideram mais como maravilhosos e sobrenaturais.
Dado, porém, de barato que assim não fora, tão lógico
seria atribuí-los ao diabo, quanto era lógico noutros tempos
dar a este as honras de todos os fenômenos naturais, cuja causa então
se desconhecia.

Por papéis indignos devemos entender os que visam o mal e o ridículo,
a menos que queiramos qualificar de tal a obra salutar dos bons Espíritos,
que promovem o bem, encaminhando os homens para Deus, pela virtude.

Ora, o Espiritismo diz expressamente que os papéis indignos não
cabem aos Espíritos superiores, como se infere dos seguintes preceitos:

13. – A categoria do Espírito se reconhece por sua linguagem: os verdadeiramente
bons e superiores têm-na sempre digna, nobre, lógica, imune de
qualquer contradição; ressumbra sabedoria, modéstia,
benevolência e a mais pura moral.

Além disso é concisa, clara, sem redundâncias inúteis.
Os Espíritos inferiores, ignorantes ou orgulhosos, é que suprem
a vacuidade das idéias com abundância de frases. Todo pensamento
implicitamente falso, toda máxima contrária à sã
moral, todo conselho ridículo, toda expressão grosseira, trivial
ou simplesmente frívola, qualquer sinal de malevolência, de presunção
ou de arrogância, são indícios incontestáveis da
inferioridade de um Espírito.

– Os Espíritos superiores só se ocupam de comunicações
inteligentes, visando instruir-nos.

As manifestações físicas ou puramente materiais competem
mais comumente aos Espíritos inferiores, vulgarmente designados por
Espíritos batedores, pela mesma razão por que entre nós
os torneios de força e agilidade são próprios de saltimbancos
e não de sábios. Absurdo seria supor que um Espírito,
por pouco elevado que sela, goste do alarde e do reclamo. ( O que é
o Espiritismo, cap. II, ns. 37, 38, 39, 40 e 60. Vede também O Livro
dos Espíritos, Parte 2ª, cap. I – Diferentes ordens de Espíritos;
Escala espírita, e O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap.
XXIV – Identidade dos Espíritos; Distinção dos bons e
maus Espíritos.)

Qual é o homem de boa-fé que pode lobrigar nestes preceitos
atribuições incompatíveis com Espíritos elevados?
Não, o Espiritismo não confunde os Espíritos, antes,
pelo contrário, distingue-os. A Igreja, sim, atribui aos demônios
uma inteligência igual à dos anjos, ao passo que o Espiritismo
afirma e confirma, baseado na observação dos fatos, que os Espíritos
inferiores são mais ou menos ignorantes, tendo muito limitados o seu
horizonte moral e perspicácia, de feição a terem das
coisas uma idéia muita vez falsa e incompleta, incapazes de resolver
certas questões e, conseguintemente, de fazer tudo quanto se atribui
aos demônios.

14. – “As almas dos mortos, que Deus proíbe evocar, essas demoram
no lugar que lhes designa a sua justiça, e não podem, sem sua
permissão, colocar-se à disposição dos vivos.”

O Espiritismo vai além, é mais rigoroso: não admite
manifestação de quaisquer Espíritos, bons ou maus, sem
a permissão de Deus, ao passo que a Igreja de tal não cogita
relativamente aos demônios, os quais, segundo a sua teoria, se dispensam
de tal permissão.

O Espiritismo diz mais que, mediante tal permissão e correspondendo
ao apelo dos vivos, os Espíritos não se põem à
disposição destes.

O Espírito evocado vem voluntariamente, ou é constrangido a
manifestar-se?

Obedecendo à vontade de Deus, isto é, à lei que rege
o Universo, ele julga da utilidade ou inutilidade da sua manifestação,
o que constitui uma prerrogativa do seu livre-arbítrio.

O Espírito superior não deixa de vir sempre que é evocado
para um fim útil, só se recusando a responder quando em reunião
de pessoas pouco sérias que levem a coisa em ar de gracejo. ( O Livro
dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

– Pode o Espírito evocado recusar-se a vir pela evocação
que lhe fazem? Perfeitamente, visto como tem o seu livre-arbítrio.
Podeis acaso acreditar que todos os seres do Universo estejam à vossa
disposição? E vós mesmos vos julgais obrigados a responder
a todos quantos pronunciam o vosso nome? Mas quando digo que o Espírito
pode recusar-se, subordino essa negativa ao pedido do evocador, por isso que
um Espírito inferior pode ser constrangido por um superior a manifestar-se.
( O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

Tanto os espíritas estão convencidos de que nada podem sobre
os Espíritos diretamente, sem a permissão de Deus, que dizem,
quando evocam: “Rogamos a Deus todo-poderoso permitir que um bom Espírito
se comunique conosco, bem como aos nossos anjos de guarda assistir-nos e afastarem
os maus Espíritos.” E em se tratando de evocação
de um Espírito determinado: – “Rogamos a Deus todo-poderoso permitir
que tal Espírito se comunique conosco”, etc. ( O Livro dos Médiuns,
2ª Parte, cap. XVII, n° 203.)

15. – As acusações formuladas pela Igreja, contra as evocações,
não atingem, portanto, o Espiritismo, porém as práticas
da magia, com a qual este nada tem de comum. O Espiritismo condena tanto quanto
a Igreja as referidas práticas, ao mesmo tempo que não confere
aos Espíritos superiores um papel indigno deles, nem algo pergunta
ou pretende obter sem a permissão de Deus.

Certo, pode haver quem abuse das evocações, quem delas faça
um jogo, quem lhes desnature o caráter providencial em proveito de
interesses pessoais, ou ainda quem por ignorância, leviandade, orgulho
ou ambição se afaste dos verdadeiros princípios da Doutrina;
o verdadeiro Espiritismo, o Espiritismo sério os condena porém,
tanto quanto a verdadeira religião condena os crentes hipócritas
e os fanáticos. Portanto, não é lógico nem razoável
imputar ao Espiritismo abusos que ele é o primeiro a condenar, e os
erros daqueles que o não compreendem. Antes de formular qualquer acusação,
convém saber se é justa. Assim, diremos: A censura da Igreja
recai nos charlatães, nos especuladores, nos praticantes de magia e
sortilégio, e com razão. Quando a crítica religiosa ou
céptica, dissecando abusos, profliga o charlatanismo, não faz
mais que realçar a pureza da sã doutrina, auxiliando-a no expurgo
de maus elementos e facilitando-nos a tarefa. O erro da critica está
no confundir o bom e o mau, o que muitas vezes sucede pela má-fé
de alguns e pela ignorância do maior número. Mas a distinção
que uma tal crítica não faz, outros a fazem. Finalmente, a censura
aplicada ao mal e à qual todo espírita sincero e reto se associa,
essa nem prejudica nem afeta a Doutrina.

16. – “Assim, os seres misteriosos que acodem ao primeiro apelo do herege,
do ímpio ou do crente – o que importa dizer: – da inocência ou
do crime – não são nem enviados de Deus, nem apóstolos
da verdade e da salvação, mas fatores do erro e agentes do inferno.”

Estas palavras persuadem que Deus não permite a manifestação
de bons Espíritos que possam esclarecer e salvar da eterna perdição
o herege, o ímpio e o criminoso! Somente os prepostos do inferno se
lhes envia, para mais mergulhá-los no lodaçal. Pesa dizê-lo,
mas, segundo a Igreja, Deus não envia à Inocência senão
seres perversos para seduzi-la!

Essa Igreja não admite entre os anjos, entre as criaturas privilegiadas
de Deus, um ser bastante compassivo que venha em socorro das almas transviadas!
Para que servem, pois, as brilhantes qualidades que exornam tais seres? Acaso
e tão-somente para seu gozo pessoal? E serão eles realmente
bons, quando, extasiados pelas delícias da contemplação,
vêem tantas almas no caminho do inferno sem que procurem desviá-las?
Mas isso é precisamente a imagem do egoísmo desses potentados
que, impiedosos na farta opulência, deixam morrer à fome o mendigo
que lhes bate à porta!

É mais ainda: É o próprio egoísmo arvorado em
virtude e colocado aos pés do Criador!

Mas vós vos admirais que bons Espíritos venham ao herege e
ao ímpio, certamente porque vos esquecestes desta parábola do
Cristo: – “Não é o homem são que precisa de médico.”
Então não tendes um ponto de vista mais elevado que o dos fariseus
daquele tempo? E vós mesmos, vós vos recusareis mostrar o bom
caminho ao descrente que vos chamasse? Pois bem: os bons Espíritos
fazem o que faríeis; dirigem-se ao ímpio para dar-lhe bons conselhos.
Oh! em lugar de anatematizardes as comunicações de além-túmulo,
melhor fora bendissésseis os decretos do Senhor, admirando-lhe a onipotência
e bondade infinitas.

17. – Dizem que há anjos de guarda; mas quando não podem insinuar-se
pela voz misteriosa da consciência ou da inspiração, por
que não empregarem meios de ação mais diretos e materiais
de modo a chocar os sentidos, uma vez que tais meios existem? E pois que tudo
provém de Deus e nada ocorre sem a sua permissão, podemos admitir
que Ele faculte tais meios aos maus Espíritos e os recuse aos bons?

Nesse caso é preciso confessar que Deus facilita mais poderes ao demônio,
para perder aos homens, do que aos anjos de guarda para salvá-los!
Pois bem! o que os anjos de guarda, segundo a Igreja, não podem fazer,
fazem por si os demônios: servindo-se de tais comunicações,
ditas infernais, reconduzem a Deus os que o renegavam e ao bem os escravizados
ao mal. Esses demônios fazem mais: dão-nos o espetáculo
de milhões de homens acreditando em Deus por intercessão da
sua potência diabólica, ao passo que a Igreja era impotente para
convertê-los. Homens que jamais oraram, fazem-no hoje com fervor, graças
às instruções desses demônios! Quantos orgulhosos,
egoístas e devassos se tornaram humildes, caridosos e re-catados?!
E tudo por obra do diabo! Ah! mas se assim for, claro é que a toda
essa gente o demônio tem prestado melhor serviço e guarda que
os próprios anjos. É necessário, porém, formar
uma triste opinião do senso humano dos nossos tempos. para crer que
os homens aceitem cegamente tais idéias. Uma religião, porém,
que faz pedra angular de tal doutrina, uma religião que se destrói
pela base, em se lhe tirando os seus demônios, o seu inferno, as suas
penas eternas e o seu deus impiedoso; uma religião tal, dizemos, é
uma religião que se suicida.

18. – Dizem que Deus enviou o Cristo, seu filho, para salvar os homens, provando-lhes
com isso o seu amor. Como se explica, entretanto, que os deixasse depois em
abandono?

Não há dúvida de que Jesus é o mensageiro divino
enviado aos homens para ensinar-lhes a verdade, e, por ela, o caminho da salvação;
mas contai – e somente após a sua vinda – quantos não puderam
ouvir-lhe a palavra da verdade, quantos morreram e morrerão sem conhecê-la,
quantos, finalmente, dos que a conhecem, a põem em prática.
Então, por que não lhes enviar Deus, sempre solícito
na salvação de suas criaturas, outros mensageiros, que, baixando
a todas as terras, entre grandes e pequenos, ignorantes e sábios, crédulos
e cépticos, venham ensinar a verdade aos que a desconhecem, torná-la
compreensível aos que não a compreendem, e suprir, enfim, pelo
seu ensino direto e múltiplo, a insuficiência na propagação
do Evangelho, abreviando o evento do reinado divino? Mas eis que chegam esses
mensageiros em hostes inumeráveis, abrindo os olhos aos cegos, convertendo
os ímpios, curando os enfermos, consolando os aflitos, a exemplo de
Jesus! Que fazeis vós, e como os recebeis vós? Ah! vós
os repudiais, repelis o bem que fazem e clamais: são demônios!

Outra não era a linguagem dos fariseus relativamente ao Cristo, que,
diziam, fazia o bem por artes do diabo! E o Nazareno respondeu-lhes: “Reconhecei
a árvore por seu fruto: a má árvore não pode dar
bons frutos.”

Para os fariseus eram maus os frutos de Jesus, porque ele vinha destruir
o abuso e proclamar a liberdade que lhes arruinaria a autoridade. Se ao invés
disso Jesus tivesse vindo lisonjear-lhes o orgulho, sancionar os seus erros
e sustentar-lhes o poder, então, sim, ele seria o esperado Messias
dos judeus. Mas o Cristo era só, pobre e fraco: decretaram-lhe a morte
julgando extinguir-lhe a palavra, e a palavra sobreviveu-lhe porque era divina.
Importa contudo dizer que essa palavra só lentamente se Propagou, e,
após dezoito séculos, apenas é conhecida de uma décima
parte do gênero humano. Além disso, em que pese a tais razões,
numerosos cismas rebentaram já do seio da cristandade. Pois bem: agora,
Deus, em sua misericórdia, envia os Espíritos a confirmá-la,
a completá-la, a difundi-la por todos e em toda a Terra – a santa palavra
de Jesus. E o grande caso é que os Espíritos não estão
encarnados num só homem cuja voz fora limitada: eles são inumeráveis,
andam por toda parte e não podem ser tolhidos. Também por isso,
o seu ensino se amplia com a rapidez do raio; e porque falam ao coração
e à razão, são pelos humildes mais compreendidos.

19. – Não é indigno de celestes mensageiros – dizeis – o transmitirem
suas instruções por meio tão vulgar qual o das mesas?
Não será ultrajá-los o supor que se divertem com frivolidades
deixando a sua mansão de luz para se porem à disposição
do primeiro curioso?

Jesus também deixou a mansão do Pai para nascer num estábulo.
E quem vos disse que o Espiritismo atribui frioleiras aos Espíritos
superiores? Não; o Espiritismo afirma positivamente o contrário,
isto é, que as coisas vulgares são próprias de Espíritos
vulgares. Não obstante, dessas vulgaridades resulta um benefício,
qual o de abalar muitas imaginações, provando a existência
do mundo espiritual e demonstrando à saciedade que esse mundo não
é tal, porém muito diferente do que se julgava. Essas manifestações
iniciais eram porventura simples como tudo que começa, mas nem por
germinar de minúscula semente a árvore deixa um dia de estender
virente e copada a sua ramagem.

Quem acreditaria que da misérrima manjedoura de Belém pudesse
sair a palavra que havia de transformar o mundo?

Sim! O Cristo é bem o Messias divino. A sua palavra é bem a
palavra da verdade, fundada na qual a religião se torna inabalável,
mas sob condição de praticar os sublimes ensinamentos que ela
contém, e não de fazer do Deus justo e bom, que nela reconhecemos,
um Deus faccioso, vingativo e cruel.

Da proibição de evocar os mortos

1. – A Igreja de modo algum nega a realidade das manifestações.
Ao contrário, como vimos nas citações precedentes, admite-as
totalmente, atribuindo-as à exclusiva intervenção dos
demônios. É debalde invocar os Evangelhos como fazem alguns para
justificar a sua interdição, visto que os Evangelhos nada dizem
a esse respeito. O supremo argumento que prevalece é a proibição
de Moisés. A seguir damos os termos nos quais se refere ao assunto
a mesma pastoral que citamos nos capítulos precedentes:

“Não é permitido entreter relações com eles
(os Espíritos), seja imediatamente, seja por intermédio dos
que os evocam e interrogam. A lei mosaica punia os gentios. Não procureis
os mágicos, diz o Levítico, nem procureis saber coisa alguma
dos adivinhos, de maneira a vos contaminardes por meio deles. (Cap. XIX, v.
31.) Morra de morte o homem ou a mulher em quem houver Espírito pitônico;
sejam apedrejados e sobre eles recaia seu sangue. (Cap. XX, v. 27.) O Deuteronômio
diz: Nunca exista entre vós quem consulte adivinhos, quem observe sonhos
e agouros, quem use de malefícios, sortilégios, encantamentos,
ou consultem os que têm o Espírito pitônico e se dão
a práticas de adivinhação interrogando os mortos. O Senhor
abomina todas essas coisas e destruirá, à vossa entrada, as
nações que cometem tais crimes.” (Cap. XVIII, vv. 10, 11
e 12.)

2. – É útil, para melhor compreensão do verdadeiro sentido
das palavras de Moisés, reproduzir por completo o texto um tanto abreviado
na citação antecedente. Ei-lo:

“Não vos desvieis do vosso Deus para procurar mágicos;
não consulteis os adivinhos, e receai que vos contamineis dirigindo-vos
a eles. Eu sou o Senhor vosso Deus.” (Levítico, cap. XIX, v. 31.)
O homem ou a mulher que tiver Espírito pitônico, ou de adivinho,
morra de morte. Serão apedrejados, e o seu sangue recairá sobre
eles.” (Idem, cap. XX, v. 27.) Quando houverdes entrado na terra que
o Senhor vosso Deus vos há de dar, guardai-vos; tomai cuidado em não
imitar as abominações de tais povos; – e entre vós ninguém
haja que pretenda purificar filho ou filha passando-os pelo fogo; que use
de malefícios, sortilégios e encantamentos: que consulte os
que têm o Espírito de Píton e se propõem adivinhar,
interrogando os mortos para saber a verdade. O Senhor abomina todas essas
coisas e exterminará todos esses povos, à vossa entrada, por
causa dos crimes que têm cometido. ( Deuteronômio, cap. XVIII,
vv. 9, 10, 11 e 12.)

3. – Se a lei de Moisés deve ser tão rigorosamente observada
neste ponto, força é que o seja igualmente em todos os outros.
Por que seria ela boa no tocante às evocações e má
em outras de suas partes? É preciso ser conseqüente. Desde que
se reconhece que a lei mosaica não está mais de acordo com a
nossa época e costumes em dados casos, a mesma razão procede
para a proibição de que tratamos.

Demais, é preciso expender os motivos que justificavam essa proibição
e que hoje se anularam completamente. O legislador hebreu queria que ‘o seu
povo abandonasse todos os costumes adquiridos no Egito, onde as evocações
estavam em uso e facilitavam abusos, como se infere destas palavras de Isaías:
“O Espírito do Egito se aniquilará de si mesmo e eu precipitarei
seu conselho; eles consultarão seus ídolos, seus adivinhos,
seus pítons e seus mágicos.” (Cap. XIX, v. 3.)

Os israelitas não deviam contratar alianças com as nações
estrangeiras, e sabido era que naquelas nações que iam combater
encontrariam as mesmas práticas. Moisés devia pois, por política,
inspirar aos hebreus aversão a todos os costumes que pudessem ter semelhanças
e pontos de contacto com o inimigo. Para justificar essa aversão, preciso
era que apresentasse tais práticas como reprovadas pelo próprio
Deus, e dai estas palavras: – “O Senhor abomina todas essas coisas e
destruirá, à vossa chegada, as nações que cometem
tais crimes.”

4. – A proibição de Moisés era assaz justa, porque a
evocação dos mortos não se originava nos sentimentos
de respeito, afeição ou piedade para com eles, sendo antes um
recurso para adivinhações, tal como nos augúrios e presságios
explorados pelo charlatanismo e pela superstição. Essas práticas,
ao que parece, também eram objeto de negócio, e Moisés,
por mais que fizesse, não conseguiu desentranhá-las dos costumes
populares.

As seguintes palavras do profeta justificam o asserto: – “Quando vos
disserem: Consultai os mágicos e adivinhos que balbuciam encantamentos,
respondei: – Não consulta cada povo ao seu Deus? E aos mortos se fala
do que compete aos vivos?” (Isaías, cap. VIII, v. 19.) “Sou
eu quem aponta a falsidade dos prodígios mágicos; quem enlouquece
os que se propõem adivinhar, quem transtorna o espírito dos
sábios e confunde a sua ciência vã.” (Cap. XLIV,
v. 25.)

“Que esses adivinhos, que estudam o céu, contemplam os astros
e contam os meses para fazer predições, dizendo revelar-vos
o futuro, venham agora salvar-vos. -Eles tornaram-se como a palha, e o fogo
os devorou; não poderão livrar suas almas do fogo ardente; não
restarão das chamas que despedirem, nem carvões que possam aquecer,
nem fogo ao qual se possam sentar. – Eis ao que ficarão reduzidas todas
essas coisas das quais vos tendes ocupado com tanto afinco: os traficantes
que convosco traficam desde a infância foram-se, cada qual para seu
lado, sem que um só deles se encontre que vos tire os vossos males.”
(Cap. XLVII, vv. 13, 14 e 15.)

Neste capítulo Isaías dirige-se aos babilônios sob a
figura alegórica “da virgem filha de Babilônia, filha de
caldeus”. (v. 1.) Diz ele que os adivinhos não impedirão
a ruína da monarquia. No seguinte capítulo dirige-se diretamente
aos israelitas.

“Vinde aqui vós outros, filhos de uma agoureira, raça
dum homem adúltero e de uma mulher prostituída. – De quem vos
rides vós? Contra quem abristes a boca e mostrastes ferinas línguas?
Não sois vós filhos perversos de bastarda raça – vós
que procurais conforto em vossos deuses debaixo de todas as frontes, sacrificando-lhes
os tenros filhinhos nas torrentes, sob os rochedos sobranceiros? Depositastes
a vossa confiança nas pedras da torrente, espalhastes e bebestes licores
em sua honra, oferecestes sacrifícios. Depois disso como não
se acender a minha indignação?” (Cap. LVII, vv. 3, 4, 5
e 6.)

Estas palavras são inequívocas e provam claramente que nesse
tempo as evocações tinham por fim a adivinhação,
ao mesmo tempo que constituíam comércio, associadas às
práticas da magia e do sortilégio, acompanhadas até de
sacrifícios humanos. Moisés tinha razão, portanto, proibindo
tais coisas e afirmando que Deus as abominava.

Essas práticas supersticiosas perpetuaram-se até à Idade
Média, mas hoje a razão predomina, ao mesmo tempo que o Espiritismo
veio mostrar o fim exclusivamente moral, consolador e religioso das relações
de além-túmulo.

Uma vez, porém, que os espíritas não sacrificam criancinhas
nem fazem libações para honrar deuses; uma vez que não
interrogam astros, mortos e augures para adivinhar a verdade sabiamente velada
aos homens; uma vez que repudiam traficar com a faculdade de comunicar com
os Espíritos; uma vez que os não move a curiosidade nem a cupidez,
mas um sentimento de piedade, um desejo de instruir-se e melhorar-se, aliviando
as almas sofredoras; uma vez que assim é, porque o é – a proibição
de Moisés não lhes pode ser extensiva.

Se os que clamam injustamente contra os espíritas se aprofundassem
mais no sentido das palavras bíblicas, reconheceriam que nada existe
de análogo, nos princípios do Espiritismo, com o que se passava
entre os hebreus. A verdade é que o Espiritismo condena tudo que motivou
a interdição de Moisés; mas os seus adversários,
no afã de encontrar argumentos com que rebatam as novas idéias,
nem se apercebem que tais argumentos são negativos, por serem completamente
falsos.

A lei civil contemporânea pune todos os abusos que Moisés tinha
em vista reprimir.

Contudo, se ele pronunciou a pena última contra os delinqüentes,
é porque lhe faleciam meios brandos para governar um povo tão
indisciplinado. Esta pena, ao demais, era muito prodigalizada na legislação
mosaica, pois não havia muito onde escolher nos meios de repressão.
Sem prisões nem casas de correção no deserto, Moisés
não podia graduar a penalidade como se faz em nossos dias, além
de que o seu povo não era de natureza a atemorizar-se com penas puramente
disciplinares. Carecem portanto de razão os que se apóiam na
severidade do castigo para provar o grau de culpabilidade da evocação
dos mortos. Conviria, por consideração à lei de Moisés,
manter a pena capital em todos os casos nos quais ele a prescrevia? Por que,
então, reviver com tanta insistência este artigo, silenciando
ao mesmo tempo o principio do capítulo que proíbe aos sacerdotes
a posse de bens terrenos e partilhar de qualquer herança, porque o
Senhor é a sua própria herança? (Deuteronômio,
cap. XXVIII, vv. 1 e 2.)

5. – Há duas partes distintas na lei de Moisés: a lei de Deus
propriamente dita, promulgada sobre o Sinal, e a lei civil ou disciplinar,
apropriada aos costumes e caráter do povo. Uma dessas leis é
invariável, ao passo que a outra se modifica com o tempo, e a ninguém
ocorre que possamos ser governados pelos mesmos meios por que o eram os judeus
no deserto e tampouco que os capitulares de Carlos Magno se moldem à
França do século XIX. Quem pensaria hoje, por exemplo, em reviver
este artigo da lei mosaica: “Se um boi escornar um homem ou mulher, que
disso morram, seja o boi apedrejado e ninguém coma de sua carne; mas
o dono do boi será julgado inocente”? ( Êxodo, cap. XXI,
vv. 28 e seguintes.)

Este artigo, que nos parece tão absurdo, não tinha, no entanto,
outro objetivo que o de punir o boi e inocentar o dono, equivalendo simplesmente
à confiscação do animal, causa do acidente, para obrigar
o proprietário a maior vigilância. A perda do boi era a punição
que devia ser bem sensível para um povo de pastores, a ponto de dispensar
outra qualquer; entretanto, essa perda a ninguém aproveitava, por ser
proibido comer a carne. Outros artigos prescrevem o caso em que o proprietário
é responsável.

Tudo tinha sua razão de ser na legislação de Moisés,
uma vez que tudo ela prevê em seus mínimos detalhes, mas a forma,
bem como o fundo, adaptavam-se às circunstâncias ocasionais Se
Moisés voltasse em nossos dias para legislar sobre uma nação
civilizada, decerto não lhe daria um código igual ao dos hebreus.

6. – A esta objeção opõem a afirmativa de que todas
as leis de Moisés foram ditadas em nome de Deus, assim como as do Sinal.
Mas julgando-as todas de fonte divina, por que ao decálogo limitam
os mandamentos? Qual a razão de ser da diferença? Pois não
é certo que se todas essas leis emanam de Deus devem todas ser igualmente
obrigatórias? E por que não conservaram a circuncisão,
à qual Jesus se submeteu e não aboliu? Ah! esquecem que, para
dar autoridade às suas leis, todos os legisladores antigos lhes atribuíam
uma origem divina. Pois bem: Moisés, mais que nenhum outro, tinha necessidade
desse recurso, atento o caráter do seu povo; e se, a despeito disso,
ele teve dificuldade em se fazer obedecer, que não sucederia se as
leis fossem promulgadas em seu próprio nome!

Não veio Jesus modificar a lei mosaica, fazendo da sua lei o código
dos cristãos?

Não disse ele: – “Vós sabeis o que foi dito aos antigos,
tal e tal coisa, e eu vos digo tal outra coisa?” Entretanto Jesus não
proscreveu, antes sancionou a lei do Sinai, da qual toda a sua doutrina moral
é um desdobramento. Ora, Jesus nunca aludiu em parte alguma à
proibição de evocar os mortos, quando este era um assunto bastante
grave para ser omitido nas suas prédicas, mormente tendo ele tratado
de outros assuntos secundários.

7. – Finalmente convém saber se a Igreja coloca a lei mosaica acima
da evangélica, ou por outra, se é mais judia que cristã.
Convém também notar que, de todas as religiões, precisamente
a judia é que faz menos oposição ao Espiritismo, porquanto
não invoca a lei de Moisés contrária às relações
com os mortos, como fazem as seitas cristãs.

8. – Mas temos ainda outra contradição: – Se Moisés
proibiu evocar os mortos, é que estes podiam vir, pois do contrário
inútil fora a proibição. Ora, se os mortos podiam vir
naqueles tempos, também o podem hoje; e se são Espíritos
de mortos os que vêm, não são exclusivamente demônios.
Demais, Moisés de modo algum fala nesses últimos.

É duplo, portanto, o motivo pelo qual não se pode aceitar logicamente
a autoridade de Moisés na espécie, a saber: – primeiro, porque
a sua lei não rege o Cristianismo; e, segundo, porque é imprópria
aos costumes da nossa época. Mas, suponhamos que essa lei tem a plenitude
da autoridade por alguns outorgada, e ainda assim ela não poderá,
como vimos, aplicar-se ao Espiritismo. É verdade que a proibição
de Moisés abrange a interrogação dos mortos, porém
de modo secundário, como acessória às práticas
da feitiçaria..

O próprio vocábulo interrogação, junto aos de
adivinho e agoureiro, prova que entre os hebreus as evocações
eram um meio de adivinhar; entretanto, os espíritas só evocam
mortos para receber sábios conselhos e obter alivio em favor dos que
sofrem, nunca para conseguir revelações ilícitas. Certo,
se os hebreus usassem das comunicações como fazem os espíritas,
longe de as proibir, Moisés acoroçoá-las-ia, porque o
seu povo só teria que lucrar.

9. – É certo que alguns críticos jucundos ou mal-intencionados
têm descrito as reuniões espíritas como assembléias
de negromantes ou feiticeiros, e os médiuns como astrólogos
e ciganos, isto porque talvez quaisquer charlatães tenham afeiçoado
tais nomes às suas práticas, que o Espiritismo não pode,
aliás, aprovar.

Em compensação, há também muita gente que faz
justiça e testemunha o caráter essencialmente moral e grave
das reuniões sérias. Além disso, a Doutrina, em livros
ao alcance de todo o mundo, protesta bem alto contra os abusos, para que a
calúnia recaia sobre quem merece.

10. – A evocação, dizem, é uma falta de consideração
para com os mortos, cujas cinzas devem ser respeitadas. Mas quem é
que diz tal? São os antagonistas de dois campos opostos, isto é,
os incrédulos que nas almas não crêem, e os crédulos
que pretendem que só os demônios, e não as almas, podem
vir.

Quando a evocação é feita com recolhimento e religiosamente;
quando os Espíritos são chamados, não por curiosidade,
mas por um sentimento de afeição e simpatia, com desejo sincero
de instrução e progresso, não vemos nada de irreverente
em apelar-se para as pessoas mortas, como se fizera com os vivos. Há,
contudo, uma outra resposta peremptória a essa objeção,
e é que os Espíritos se apresentam espontaneamente, sem constrangimento,
muitas vezes mesmo sem que sejam chamados. Eles também dão testemunho
da satisfação que experimentam por comunicar-se com os homens,
e queixam-se às vezes do esquecimento em que os deixam. Se os Espíritos
se perturbassem ou se agastassem com os nossos chamados, certo o diriam e
não retornariam; porém, nessas evocações, livres
como são, se se manifestam, é porque lhes convém.

11. – Ainda uma outra razão é alegada: – As almas permanecem
na morada que a justiça divina lhes designa – o que equivale dizer
no céu ou no inferno. Assim, as que estão no inferno, de lá
não podem sair, posto que para tanto a mais ampla liberdade seja outorgada
aos demônios. As do céu, inteiramente entregues à sua
beatitude, estão muito superiores aos mortais para deles se ocuparem,
e são bastantemente felizes para não voltarem a esta terra de
misérias, no interesse de parentes e amigos que aqui deixassem. Então
essas almas podem ser comparadas aos nababos que dos pobres desviam a vista
com receio de perturbar a digestão? Mas se assim fora essas almas se
mostrariam pouco dignas da suprema bem-aventurança, transformando-se
em padrão de egoísmo!

Restam ainda as almas do purgatório, porém, estas, sofredoras
como devem ser, antes que doutra coisa, devem cuidar da sua salvação.
Deste modo, não podendo nem umas nem outras almas corresponder ao nosso
apelo, somente o demônio se apresenta em seu lugar.

Então é o caso de dizer: se as almas não podem vir,
não há de que recear pela perturbação do seu repouso.

12. – Mas aqui reponta uma outra dificuldade. Se as almas bem-aventuradas
não podem deixar a mansão gloriosa para socorrer os mortais,
por que invoca a Igreja a assistência dos santos que devem fruir ainda
maior soma de beatitude? Por que aconselha invocá-los em casos de moléstia,
de aflição, de flagelos? Por que razão e segundo essa
mesma Igreja os santos e a própria Virgem aparecem aos homens e fazem
milagres? Estes deixam o céu para baixar à Terra; entretanto
os que estão menos elevados não o podem fazer!

13. – Que os cépticos neguem a manifestação das almas,
vá, visto que nelas não acreditam; mas o que se torna estranhável
é ver encarniçar-se contra os meios de provar a sua existência,
esforçando-se por demonstrar a impossibilidade desses meios, aqueles
mesmos cujas crenças repousam na existência e no futuro das almas!
Parece que seria mais natural acolherem como benefício da Providência
os meios de confundir os cépticos com provas irrecusáveis, pois
que são os negadores da própria religião. Os que têm
interesse na existência da alma deploram constantemente a avalancha
da incredulidade que invade, dizimando-o, o rebanho de fiéis: entretanto,
quando se lhes apresenta o meio mais poderoso de combatê-la, recusam-no
com tanta ou mais obstinação que os próprios incrédulos.
Depois, quando as provas avultam de modo a não deixar dúvidas,
eis que procuram como recurso de supremo argumento a interdição
do assunto, buscando, para justificá-la, um artigo da lei mosaica do
qual ninguém cogitara, emprestando-lhe, à força, um sentido
e aplicação inexistentes. E tão felizes se julgam com
a descoberta, que não percebem que esse artigo é ainda uma justificativa
da Doutrina Espírita.

14. – Todas as razões alegadas para condenar as relações
com os Espíritos não resistem a um exame sério. Pelo
ardor com que se combate nesse sentido é fácil deduzir o grande
interesse ligado ao assunto. Daí a insistência. Em vendo esta
cruzada de todos os cultos contra as manifestações, dir-se-ia
que delas se atemorizam.

O verdadeiro motivo poderia bem ser o receio de que os Espíritos muito
esclarecidos viessem instruir os homens sobre pontos que se pretende obscurecer,
dando-lhes conhecimento, ao mesmo tempo, da certeza de um outro mundo, a par
das verdadeiras condições para nele serem felizes ou desgraçados.
A razão deve ser a mesma por que se diz à criança: –
“Não vá lá, que há lobisomens.” Ao homem
dizem: -” Não chameis os Espíritos: – São o diabo.”
– Não importa, porém: – impedem os homens de os evocar, mas
não poderão impedi-los de vir aos homens para levantar a lâmpada
de sob o alqueire.

O culto que estiver com a verdade absoluta nada terá que temer da
luz, pois a luz faz brilhar a verdade e o demônio nada pode contra esta.

15. – Repelir as comunicações de além-túmulo
é repudiar o meio mais poderoso de instruir-se, já pela iniciação
nos conhecimentos da vida futura, já pelos exemplos que tais comunicações
nos fornecem. A experiência nos ensina, além disso, o bem que
podemos fazer, desviando do mal os Espíritos imperfeitos, ajudando
os que sofrem a desprenderem-se da matéria e a se aperfeiçoarem.
Interdizer as comunicações é, portanto, privar as almas
sofredoras da assistência que lhes podemos e devemos dispensar.

As seguintes palavras de um Espírito resumem admiravelmente as conseqüências
da evocação, quando praticada com fim caritativo:

“Todo Espírito sofredor e desolado vos contará a causa
da sua queda, os desvarios que o perderam. Esperanças, combates e terrores;
remorsos, desesperos e dores, tudo vos dirá, mostrando Deus justamente
irritado a punir o culpado com toda a severidade. Ao ouvi-lo, dois sentimentos
vos acometerão: o da compaixão e o do temor! compaixão
por ele, temor por vós mesmos. E se o seguirdes nos seus queixumes,
vereis então que Deus jamais o perde de vista, esperando o pecador
arrependido e estendendo-lhe os braços logo que procure regenerar-se.
Do culpado vereis, enfim, os progressos benéficos para os quais tereis
a felicidade e a glória de contribuir, com a solicitude e o carinho
do cirurgião acompanhando a cicatrização da ferida que
pensa diariamente.” (Bordéus, 1861.)

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