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…ce travail offre un autre découragement: que de choses hardies, et que
je n’avance qu’en tremblant, seront de plats lieux communs dix
ans après ma mort…
Stendhal, Souvenirs d’Égotisme.
I
De volta da minha última peregrinação à Europa, depois de cinco anos de saudades
do Brasil, foi que, pela primeira vez, senti todo o peso e toda a tristeza
do meu isolamento e pensei com menos repugnância na hipótese de casar. Foi
a primeira vez e também a última que semelhante veleidade me passou pelo espírito;
daí a vinte e quatro horas tinha resolvido ficar eternamente solteiro.
Estava então com trinta e cinco anos. Dessa vez, como sempre me sucedia ao
pensar no casamento, veio-me logo à idéia o meu amigo Leandro, e vou dizer
por quê:
Leandro de Oviedo era, entre os meus companheiros da primeira juventude,
o único que se conservou fiel à nossa amizade. Os outros tinham todos desaparecido;
alguns simplesmente do Rio de Janeiro ou do Brasil, mas, ai! a melhor parte
havia já desertado deste mundo, para nunca mais voltar.
Leandro foi sempre um rapaz bem equilibrado: coração generoso, caráter sério,
inteligência regular, sobriedade nos costumes e tino para arranjar a vida.
Do nosso grupo era ele o mais moço e também o mais forte e bem apessoado.
Tinha excelente educação física, adquirida num colégio da Inglaterra; conhecimento
perfeito da esgrima e jogos de exercício; destreza na montaria e plena confiança
nos seus músculos.
Ainda não contava ele vinte anos quando o conheci, e a nossa intimidade foi
apenas interrompida pelas minhas viagens. Fui eu o confidente da grande paixão
que o levou a casar, quatro anos depois, com uma encantadora rapariga, filha
da velha mais fantástica, mais diabólica, mais sogra, que até hoje tenho visto.
A fúria, para consentir nesse casamento, aferrou-se às mais leoninas exigências;
impôs condições as mais humilhantes para o futuro genro. Já me não lembro
ao justo quais foram elas, posso afiançar porém que eram todas originais e
ridículas. Havia uma, entre tais cláusulas, de que nunca me esqueci, a da
assinatura de certo documento, em que o desgraçado pedia à polícia não responsabilizasse
ninguém pela sua morte, caso ele aparecesse assassinado de um dia para outro.
Mas Leandro estava irremediavelmente perdido de amores; e a moça era muito
rica, e ele o que se pode chamar pobre. Não havia para onde fugir; sujeitou-se
a tudo e – casou.
Ainda porém não tinha desfrutado o primeiro mês da sua lua-de-mel, e já a
sogra achava meios e modos de interrompê-la, separando-o violentamente da
noiva. E daí em diante o casal nunca mais teve ocasião de absoluta felicidade.
O demônio da velha parecia não poder ver o genro ao lado da filha, e o pobre
rapaz, que amava cada vez mais apaixonadamente a esposa, não lograva um segundo
de ventura junto desta, sem ver surgir logo entre eles o terrível espetro.
Não os deixava um instante sossegados, não os perdia de vista um só momento,
rondava-os, fariscava-lhes os passos, como se vigiasse a rapariga contra um
estranho mal-intencionado; perseguia o genro só pelo gostinho de atormentá-lo;
contrariava-o nas suas mais justas pretensões de marido, azedando-lhe a existência,
intrometendo-se na sua vida íntima, desunindo-o da mulher, sobre quem conservava
os mais despóticos direitos.
Causava-me ele verdadeira compaixão.
Um dia vi-o entrar por minha casa, desesperado, aflito, e atirar-se a uma
cadeira, soluçando. Sem que lhe apanhasse uma só palavra das muitas que os
seus soluços retalhavam, consegui, de dois dos seus monossílabos mais estrangulados,
perfazer a de “Sogra”, e exclamei-lhe desabridamente:
– Mas com um milhão de raios! por que não te livras por uma vez dessa víbora?!
– Livrar-me, como?! De que modo?! perguntou-me o infeliz entre dois arquejos.
– Ora, como?! De que modo?! Seja lá como for! Foge, ou torce-lhe o pescoço!
Atira-a no meio da baía! Sacode-a do alto do Pão de Açúcar!
– Impossível! Amo loucamente minha mulher, e minha mulher adora a mãe! Não
consentiria em separar-se dela, nem mo perdoaria, se o tentasse!
– Histórias!
– Além de que, sabes qual é hoje a minha posição na Praça do Rio de Janeiro;
não é das piores! mas sabes também que só agora começo a colher o resultado
de enormes sacrifícios feitos para obtê-la!… Pois bem, tudo o que sou, devo
a minha sogra! O capital é dela! O crédito foi ela quem mo deu! Um rompimento
seria a minha ruína completa!
– Oh, diabo!
– É o que te digo! Vê tu que posição a minha!
– Então, meu amigo, só te restam os extremos – resignação ou… suicídio!
Ele, ao que parece, resignou-se.
Um ano depois encontramo-nos em Paris.
– Olá! bradei-lhe. – Fugiste…
– Qual! Estou de passeio. Minha sogra mandou-me passear…
– Expulsou-te de casa?…
– Não. Mandou-me passear por algum tempo. Eu volto…
– Ah! compreendo! quer que a filha se distraia um pouco pela Europa. Dou-te
os meus parabéns!
– Não! vim só.
– Hein?! E tua mulher?
– Ficou.
– E tua sogra acompanha-te?…
– Ah! não!
Fiz-lhe, intrigado, ainda algumas perguntas, a que ele respondeu com reserva,
procurando evitá-las. Percebi que me não queria falar francamente, talvez
por medo do ridículo, e não insisti.
Jantamos em companhia um do outro, e desde então pegamos de ver-nos todos
os dias. Fizemos juntos uma viagem à Suíça, e a nossa amizade revigorou-se
com essa jornada; ficamos inseparáveis até que ele, meses depois, deixou a
Europa para tornar ao Brasil.
E eu, agora, aqui no Rio de Janeiro, ao acordar da primeira noite, passada
no detestável Freitas-Hotel, senti cair-me em cima, com o peso de mil arrobas,
todo o negrume da minha solidão. A idéia da solidão fez-me pensar em Leandro.
É verdade! Que fim teria ele levado?…
– Vou vê-lo! deliberei, saltando da cama.
Procurei o endereço da sua atual residência. “Tijuca. Alto da Serra”. Era
longe, mas o dia estava magnífico. Por que pois não ir? Enquanto lá estivesse
disfarçaria ao menos o meu tédio de celibatário. Leandro era afinal o meu
melhor amigo; além do que, apetecia-me à curiosidade saber notícias do seu
casamento e da sua fenomenal sogra. Não nos víamos havia quatro anos. Como
seria agora a sua existência? Que fim teria ele dado ao demônio da bruxa?…
Vesti-me, almocei, saí, dei um passeio pela rua do Ouvidor e tomei o tramway
da Tijuca. Na raiz da serra procurei informações sobre a casa de Leandro;
deram-nas na mesma cocheira que me alugou uma vitória para lá subir.
Às cinco e meia da tarde entrava na residência do meu amigo. Uma deliciosa
chácara, com o seu cottage ao fundo, na fralda da montanha, escondido entre
árvores floríferas e cercado por um jardim de rosas e camélias. Adivinhava-se
logo, desde o portão da rua, haver ali todo o conforto e regalo que nos podem
proporcionar os maravilhosos arrabaldes do Rio de Janeiro. Toquei o tímpano
na varanda. Fizeram-me entrar para a sala de espera; não mandei o meu cartão
intencionalmente, e, quando Leandro chegou e deu comigo, soltou uma sincera
exclamação de prazer.
Atiramo-nos nos braços um do outro.
– Que bela surpresa! – bradou ele. – Não sabia que tinhas chegado!
– Cheguei ontem. E tu como vais por aqui? A senhora como está? E tua sogra,
que fim levou?
– Minha mulher não está aí. Saiu na minha ausência com os filhos e com o
velho César. Não sei para onde foram… Mas vai entrando! vai entrando!
– Estão espairecendo naturalmente por aí perto, aventei, passando para a
sala de visitas.
– Talvez, mas talvez não. Não sei! Pode ser que voltem já e pode ser que
se demorem. Desconfio que foram fazer uma viagem…
– Como? Pois tu não sabes se tua mulher foi fazer uma viagem, ou se está
passeando pela vizinhança da casa?… Ora esta!
– Não, filho, não sei. Temos uma vida muito especial. Ela às vezes me foge,
ou eu lhe fujo. Levamos três, quatro dias fora, uma semana, um mês até, longe
um do outro, visitando parentes e amigos, ou simplesmente passeando, viajando…
Calei-me, por falta absoluta de palavras, e comecei a desconfiar que a sogra
afinal acabara por derreter os miolos do meu pobre amigo. Era de esperar!
Depois de uma pausa, aproximei-me dele e perguntei-lhe, em voz soturna, olhando
para os lados:
– E a serpente?…
– Que serpente?!
– Ora, qual há se ser? A fúria infernal, o diabo de saias, tua sogra!
– Coitada!
E Leandro soltou um grande suspiro.
Escancarei os olhos e a boca, sem compreender.
– Coitada!… repetiu ele, com um novo suspiro. – Já não existe…ah! infelizmente
já não existe!…
Recuei aterrado; senti o sangue gelar-se-me nas veias. Que estava eu ouvindo,
meu Deus? que estava dizendo o mísero rapaz? Oh! agora já não havia a menor
dúvida – era um caso perdido!
– Regenerou-se afinal… interroguei-lhe, fingindo sangue-frio, e sem me
aproximar muito desta vez.
– Não zombes, meu amigo! A memória de minha sogra é hoje para mim tão sagrada,
ou mais, do que a memória de minha própria mãe!…
– Mas, espera! quantas sogras então tiveste tu?… perguntei-lhe receando
também já um pouco pelo meu juízo.
– Uma só.
– E essa, a que te referes agora, é aquela mesma, a célebre? aquele terror,
aquela moléstia, aquele mal que te roía a existência? aquele diabo, a quem
devias o implacável inferno em que te vi espernear de desespero?…
– A mesma, Leão. Simplesmente eu, nesse tempo, era injusto…
– Aquela que, só pelo gostinho de contrariar, se metia entre ti e tua mulher,
cortando-lhes no meio as carícias e perturbando-lhes o amor?…
– Não a compreendia nessa época. O imbecil era eu!
– Aquela, que te trazia suspensa sobre a cabeça uma ameaça de morte?…
– Fazia-o, porque era adoravelmente boa!
– Aquela, que te não permitiu fosses o dono do primeiro beijo de teu filho?…
– É verdade, a mesma!
– Aquela fúria?
– Era uma santa!
E ficou muito sério, com o rosto compungido e contrito.
Até hoje ainda não sei como não caí para trás, fulminado.
Meti as mãos nos bolsos das calças, abri as pernas à marinheira, ferrei o
olhar no tapete do chão, apertei os lábios, arregacei as sobrancelhas, e embatuquei.
– Sim, senhor!…
Estava preparado para ver, sem me alterar, o meu estimável amigo Leandro
de Oviedo atirar as mãos para o chão e pôr-se a percorrer a sala de pernas
para o ar.
Que digo? Poderia ver sem pestanejar, o retrato da própria sogra de Leandro
desprender-se do seu caixilho dourado, e vir dar-lhe um beijo, ou dançar um
fandango entre nós dois.
Naquele instante nada me causaria abalo!
* * *
Mas, ao fim do jantar, reanimado por um velho e generoso Barbera, pedi ao
meu paradoxal amigo que me explicasse o milagre daquela sua tão absoluta inversão
de pontos de vista. Sempre queria ouvir!
– Não te darei uma palavra e terás a mais satisfatória explicação do mistério,
disse-me ele. – Dormes aqui, não é verdade? Dormes decerto!
– Mas…
– Podias até passar alguns dias comigo. Isto por cá é muito aprazível nesta
época. Onde estás morando?
– No Freitas.
– Ora! Não te largo esta semana! Seria desumanidade deixar-te ir! Hospedado
no Freitas!…
– Mas é que… não contava com isto… Vou sem dúvida incomodar tua família…
– Qual! Minha família não sei quando virá… Tu agora não tens ainda com
certeza o que fazer… De resto não ficas totalmente preso: podes ir à cidade
quando quiseres; trazer de lá ou mandar buscar o que precisares. Olha! aqui
pelo menos estás livre de qualquer febre! e podemos dar magníficos passeios,
a cavalo e de carro, pela Floresta, à Vista Chinesa, à Gávea. Amanhã mostro-te
as minhas estrebarias; se ainda conservas gosto pelo gênero, encontrarás o
que ver.
Confessei-me vencido, mesmo porque sentia já a curiosidade excitada.
Jogamos à noite uma partida de bilhar e, às onze horas, na ocasião de recolher
à câmara que me destinaram, exigi de Leandro a prometida explanação do milagre.
– Entra para o teu quarto, que lá ta levarei, respondeu ele, afastando-se.
E pouco depois voltava, trazendo com todo o carinho um pequeno estojo de
ébano. Abriu-o defronte de mim com uma chavezinha de prata, e tirou de dentro
um livro preciosamente encadernado.
Mostrou-me o livro, em silêncio, cheio de gestos e desvelos religiosos. Na
capa, entre guarnições de ouro e pedras finas, havia um delicadíssimo esmalte,
retratando em miniatura o busto da sogra. Estava a primor, com o seu distinto
e singelo penteado de cabelos brancos, com as suas lunetas de cristal, e com
aquele sutil sorriso malicioso, que lhe conheci noutro tempo.
– Não poderia dar-te maior prova de amizade, do que te confiando este sagrado
tesouro, disse-me Leandro. – É um manuscrito de minha sogra. Começa a lê-lo
hoje antes de dormir, e depois, quando o tenhas concluído, conversaremos a
respeito da mãe de minha mulher…
Tomei nas mãos, cuidadosamente, a sedutora relíquia, examinei-a deveras intrigado,
depu-la de novo no seu estojo, agradeci a Leandro o obséquio, impaciente por
vê-lo pelas costas.
Logo que me pilhei sozinho, fiz em três tempos a toilette, aninhei-me na
cama, cheguei para perto da luz do velador, e, com uma volúpia repassada da
mais legítima curiosidade, abri a primeira página e comecei a leitura.
Mal sabia eu que grande influência ia exercer esse manuscrito sobre minha
vida… E como hoje posso publicá-lo, não ponho nisso a menor dúvida.
É o que se segue:
II
Manuscrito de Olímpia
La nature a des perfections pour montrer qu’elle est l’image
de Dieu, et des défauts pour montrer qu’elle n’en est que l’image.
PASCAL, Pensées.
Órfã de pai e mãe, tinha eu dezoito anos de idade, quando passei das mãos
de meu tutor para as mãos do estimado e simpático Dr. Virgílio Xavier da Câmara,
que me recebeu por esposa na igreja de São João Batista em Botafogo.
Meu noivo contava vinte e sete anos.
Éramos ambos de boa família, ambos muito bem relacionados, ambos sadios,
ambos até bonitos. Ele – médico, inteligente e trabalhador, conservando intacto
um patrimônio de quarenta contos, que herdara ainda criança; gênio feliz,
costumes irrepreensíveis, nada de vícios perigosos e nada de paixões de qualquer
gênero, nem mesmo desses perturbadores sonhos de glória ou dessas ambições
descomedidas, que nos fazem sacrificar às vezes a doce tranqüilidade do presente
garantido, pela hipotética e fascinadora conquista de um nome no futuro incerto.
Eu, pelo meu lado – inocente e pura, educada sob os mais austeros exemplos
de moral e virtude, tendo feito a minha aprendizagem doméstica sem prejuízo
dos meus pequenos dotes sociais; sabendo coser, como sabendo bordar; dirigir
o serviço dos criados, governar uma casa, como sabendo tocar piano, receber
visitas e dançar uma valsa; e mais: tinha boa ortografia, alguma leitura,
que não era composta só de maus romances, um pouco de francês, um pouco de
inglês, um pouco de desenho, sessenta contos de dote, princípios religiosos
bem regulados, caráter sereno, temperamento garantido por hereditariedade
natural, seguros hábitos de asseio, alinho e gosto no vestir, que nada deixavam
a desejar, quanto à elegância, mas que jamais roçavam, nem de leve, pelos
arrebiques do janotismo equívoco.
Eis como nós éramos os dois. E eu – meiga e delicada; e meu marido – extremoso
e forte.
Casamo-nos por inclinação de parte a parte, com o aplauso de ambas as famílias,
depois de um calmo namoro de seis meses, regular e honesto, abençoado por
todos os nossos parentes e amigos.
Não se poderia, pois desejar casamento mais equilibrado, nem se poderia conceber
um par mais harmonioso, e até mais simétrico.
Não obstante, apesar de que nunca transigi dos meus deveres conjugais; apesar
de que meu marido prosperou sempre de fortuna na sua carreira médica e, depois,
na sua carreira política; apesar de que ele era bom, e apesar de que sempre
nos estimamos; apesar de tudo isso, tanto ele como eu fomos igualmente muito
desgraçados, enquanto nos não separamos; fomos os dois um casal de infelizes
amarrados um ao outro pelo duro e violento laço do matrimônio; fomos dois
calcetas, seguros na mesma corrente de ferro, condenados a suportar a existência
eternamente juntos.
Não foi possível! Quebramos a cadeia, arrancamo-nos da grilheta. O governo
nomeou-o para uma honrosa comissão fora do Brasil; aproveitamos o ensejo e
separamo-nos. Tínhamos dois filhos, um de cada sexo; a menina ficou comigo
e o menino seguiu com ele.
Ao contrário do alvitre jurídico, entendi sempre que, na separação de cônjuges,
mormente abastados, o filho ou filhos varões devem acompanhar o pai, e a filha
ou filhas devem ficar ao lado da mãe, porque esta é sem dúvida mais apta,
que um homem, para zelar pela boa educação e pureza de uma menina; ao passo
que aquele outro pode, melhor que a mulher, dirigir e encaminhar a vida de
um rapaz.
O contrato moral e íntimo do nosso apartamento foi ainda mais digno e mais
sincero do que o contrato público e material da nossa união. Não nos preocupou
a questão de dinheiro, porque éramos já bastante ricos, e podíamos ficar ambos
pecuniariamente independentes. Obriguei-me a não macular jamais o nome que
ele me dera, e esse preceito foi por mim cumprido à risca; ele, pelo seu lado,
comprometeu-se a se não descuidar nunca de nosso filho, e assim o fez, durante
os curtos anos que viveu ainda o meu pobre Gastãozinho.
Separamo-nos bons amigos, mas, ai de nós! depois de grandes desavenças domésticas
e brigas de cada instante, que fizeram até aí da nossa vida um triste inferno,
e que para sempre nos tornaram incompatível a existência em comum. O que nos
valeu foi o nosso espírito. Num momento lúcido compreendemos tudo, encaramos
a sangue-frio a situação; e abraçamos com coragem o único partido digno de
nós. Se continuássemos a viver juntos, teríamos chegado às últimas degradações
da falta de respeito um pelo outro e talvez ao crime. É possível que Virgílio
me batesse, ou me matasse, num dos nossos muitos ímpetos de irreprimível cólera
nervosa. Só os casados, só estes, poderão calcular e compreender quanto nos
injuriamos os dois, quanto nos aviltamos, por palavras e gestos, nessas secretas
e constantes lutas. O arrependimento chegava sempre, porém tarde, e nunca
aproveitava para impedir novas crises; o arrependimento só servia para mais
nos rebaixarmos aos nossos próprios olhos, com a consciência da nossa degradação.
Mais do que as rixas, os seqüentes amores na confirmação das pazes, deixavam-nos
humilhados e corridos de vergonha; e este fato, só por si, a deprimente certeza
da nossa ignomínia, era já um novo rastilho pronto e aceso para uma nova explosão
de cólera.
Afinal, o contacto, ou a só presença de qualquer dos dois, tinham se tornado
absolutamente insuportáveis para o outro. Às vezes, sem razão, não podia demorar
a vista sobre meu marido: irritavam-me nervosamente os seus gestos mais simples
e naturais. Uma ocasião, em que o contemplei pelas costas, assentado à sua
mesa de trabalho, todo embebido no que estava fazendo, com a cabeça baixa,
um gorro de seda preta, os ombros envolvidos num xale que lhe escondia o pescoço,
desejei-lhe a morte, e tive de fugir dali para não disparatar com ele.
Mas por quê? por que razão eu, que sem dúvida estimava e compreendia meu
marido, não podia às vezes suportá-lo?… por que razão ele, que me amava,
não pôde continuar a viver junto de mim?
Por quê?
Eis o difícil de explicar, e eis do que, tendo estudado minuciosamente o
meu próprio coração e o coração de meu marido, e depois de uma longa e paciente
observação de todos os instantes da vida de casados que nós dois tivemos,
tirei a base e a substância da minha filosofia sobre o amor conjugal e os
meios práticos de obter-lhe a duração.
Não o fiz por mim, mas só por minha filha, a minha Palmira, a flor mimosa
dos verdadeiros encantos da minha vida de moça, o ser único a quem neste mundo
dei, até certo momento da velhice, todo inteiro o meu coração, a quem dei
todo o meu amor, sem a mais ligeira reserva de ternura e se a menor hipocrisia
nos sorrisos e nos beijos. Amei-a mesmo antes que ela nascesse, amei-a cada
vez mais durante a existência, e creio que ainda a amaria sempre depois da
sua morte. Nunca neste amor descobri as falhas de tédio, de cansaço, e até
de absoluto enjôo, que infelizmente, logo desde o começo da minha vida conjugal,
descobri no amor que eu votava ao meu bom e querido esposo. No meio do maior
aborrecimento, no mais ingrato instante das horas de desânimo, a presença
de minha filha era sempre uma consolação e um repouso; nunca beijo nenhum
que ela me deu foi inoportuno; nunca as suas carícias chegaram fora de propósito,
e nunca deixaram de produzir em minha alma o mesmo delicioso efeito de suave
refrigério. Entretanto, quantas vezes, ainda na lua-de-mel, não me revoltei
contra mim mesma e não amaldiçoei as rebeldias do meu coração, por não poder
evitar que, a despeito da minha traiçoeira afabilidade externa, o enojo repelisse
no meu íntimo as carícias que nessa ocasião me dava meu marido?!
Ah! ele não percebia a verdade, porque eu com uma hipocrisia, que nesse tempo
acreditava honesta e generosa; uma hipocrisia, que eu supunha fazer parte
dos meus deveres de boa esposa, obrigava meus olhos, meus lábios, meus braços,
meu corpo inteiro, a mentirem, representando sem vontade essa coisa inconfessável,
ignóbil, que me tinham feito acreditar, secretamente, que era “o amor”. Que
blasfêmia! e mais – que era “o matrimônio”. Que desilusão!
Oh! quantos sorriso, quantos suspiros de volúpia e quantos beijos dados por
mentira, meu Deus! Oh! quanto me prostituí nos braços de meu marido!
E que vergonha, que repugnância, dele e de mim própria, não me assaltaram
quando descobri que com Virgílio se dava a mesma coisa a meu respeito; e que
ambos nós, procurando iludir um ao outro, representávamos cada qual no seu
transporte a mesma degradante comédia de amor? Quantas vezes percebi que seu
espírito bocejava de tédio, enquanto seus lábios me cobriam de beijos fervorosos?
Mentirá todo aquele e mentirá toda aquela que disser que a presença de sua
esposa, ou que a presença de seu marido, lhe foi sempre agradável; e mentirá,
se não confessar que muita vez se prestou a satisfazer os desejos do cônjuge
com sacrifício de todo o seu ser.
Éramos já dois desgraçados, e dali em diante começamos a ser duas vítimas
e dois verdugos recíprocos, chumbados à mesma dor e à mesma crueldade, a torturarem-se,
a devorarem-se num estreito abraço de extermínio.
Oh! definitivamente não podíamos continuar a viver juntos! E no entanto,
eu amava meu marido, e sei que era amada por ele. Nenhum casal até hoje se
estimou e respeitou mais do que nós no foro íntimo da sua alma. Juro que tínhamos
em segredo um pelo outro a maior e mais sincera consideração, e que ambos,
de parte a parte, apesar dos constantes atritos, fazíamos de cada qual o mais
alto e digno conceito. Mas juro também que muita vez me senti verdadeiramente
desgraçada nos seus braços, e ele nos meus; e que por último, muitas e muitas
vezes nos injuriamos, com as mais duras palavras de desprezo, quando, no fundo
da consciência, julgávamos mutualmente o contrário do que blasfemávamos.
Que singular monstruosidade!
E não me venham dizer que nos amávamos só com a razão e não com os sentidos.
Vou copiar fielmente um fragmento das notas póstumas de meu esposo, onde o
contrário se acha bem demonstrado. O que adiante se segue escreveu ele já
depois da nossa disjunção, longe de mim, na Itália, poucos anos antes de morrer.
Descobri essas notas entre os papéis do seu espólio. Sem as transcendentes
revelações que elas me depararam, é natural que nunca chegassem minhas pesquisas
filosóficas a qualquer resultado, e nunca me animasse eu a empreender este
doloroso manuscrito.
Atenção! É Virgílio quem agora fala:
III
“………………………………………………………….
Sim! minha mulher foi a única mulher que amei. Em meio do maior enjôo da
vida doméstica, sentia eu perfeitamente, no âmago da minha consciência, que
nenhuma outra valia tanto como Olímpia, quer no físico, quer no moral e até
no intelectual; sentia que, se ela não fosse minha esposa, minha companheira
obrigada de cama e mesa, de todo o instante, havia de desejá-la apaixonadamente;
sentia, adivinhava que, se eu viesse um dia a deixar de possuí-la, como fatalmente
sucedeu, havia de sofrer muito, como efetivamente sofri, sem nunca mais encontrar
mulher que a substituísse ou que lograsse fazer-me-la esquecer.
Não! Não podia amá-la mais do que a amei no meu noivado, do que a amei depois
nos intervalos da cólera, do que a amo hoje principalmente, nesta irremediável
viuvez da nossa fatal desunião. Todavia, antes de nos separarmos, só a desejei
deveras como mulher, além daquela época, uma vez em que tivemos de afastar-nos
um do outro por oito meses seguidos; de resto foi sempre o mesmo tédio e os
mesmos enfastiamentos na comunhão da cama. Muita vez o perfume dos seus belos
cabelos, o cheiro do seu corpo, aliás sempre limpo e bem tratado, o contacto
macio da sua pele e a frescura de seus lábios relentados no delíquio amoroso,
me fizeram repugnância.
Por quê? Não achei nunca a explicação. Mas a verdade é que, antes mesmo da
nossa primeira contenda doméstica, quando éramos ainda um para o outro, só
afagos e sorrisos, eu, apesar de amá-la muito, mas, se por condescendência
ficava um dia inteiro ao seu lado, depois de passarmos a noite juntos, como
de costume, sentia certo prazer estranho, sentia um inconfessável gozo de
alívio, se me vinham anunciar que algum amigo, mesmo dos mais insignificantes,
estava à minha espera na sala de visitas.
Quantas vezes não detive perto de mim pessoas que o não mereciam, só porque,
enquanto estivesse eu com elas conversando, não estaria conversando ou procurando
o que conversar, com a minha querida esposa?… só porque, enquanto eu estivesse
abrigado naquela visita, não sentiria no meu corpo o calor do corpo de minha
mulher, e não lhe sentiria o cheiro penetrante das carnes e dos cabelos!…
E como todo esse contraditório martírio cresceu depois do nascimento do nosso
primeiro filho? Como fiquei eu amando moralmente muito mais minha esposa e
desejando muito menos possuí-la como mulher?
Depois do nascimento de Palmira, nunca mais o meu espírito amou minha mulher
associado com o meu corpo. Meu espírito continuava a amá-la, como sempre,
meu corpo continuava, também como sempre, a unir-se ao dela para o matrimônio;
mas espírito e corpo completamente alheios e separados durante o ato conjugal.
O amor do meu espírito nada tinha de comum com o amor do meu corpo, como aliás
sucedia dantes, na primeira fase do casamento; e ai! só nesse irrecuperável
período o nosso amor foi completo, e foi amor, porque nos unia de corpo e
alma! O amor de meu espírito era um sentimento insexual, respeitoso, nobre,
feito de uma ternura de amigo, de irmão mais velho, um sentimento baseado
na proteção do mais forte que se dedica pelo mais fraco. Havia nele um quê
de mística doçura, de sagrado voto cumprido lealmente, um quê da consoladora
satisfação do desempenho de um dever honroso, um quê de religião e de ideal.
Ao passo que o amor de meu corpo era quase inconsciente, irresponsável até,
nem merecia o nome de amor, porque, no fim de algum tempo era, por bem dizer,
preenchido sem o menor concurso do coração.
E pensar que o abuso deste segundo falso amor prejudicou o primeiro, o verdadeiro,
a ponto de privar-nos da sua doçura e do seu enlevo!
Com minha mulher devia suceder a mesma coisa que sucedia comigo, porque certas
vezes, despertei-a à noite para o fim genésico, e mais dormindo que acordada
deixava indiferentemente, com os olhos fechados, que eu saciasse nela o meu
desejo material. Tanto o nosso espírito já por fim não tomava parte no desempenho
da função matrimonial, que em muitas ocasiões, enquanto nos dispúnhamos para
cumpri-la, conversávamos de vários interesses domésticos, alheios ambos ao
supremo destino que naquele instante nos aproximava um do outro.
Não! isso não era amor; isso era instinto somente; isso era brutalidade!
Entretanto, hoje, que já não possuo minha mulher; hoje, que me acho para sempre
incompatibilizado com ela, e me vejo na mesquinha contingência de recorrer,
para satisfação das minhas necessidades fisiológicas, a essas pobres máquinas
vaginais que se alugam por instantes, quanto não daria em tais momentos para
poder tê-la ao alcance de meus braços? Quanto não daria para dispor então
daquela valiosa criatura, ao lado de quem não consegui viver, e ao lado de
quem, ainda hoje, me seria impossível suportar a existência, apesar de desejá-la
tanto?
Sim! ainda aplaudo e compreendo a nossa separação, e ainda a amo. E se agora,
neste instante, por um efeito maravilhoso, me dessem a escolha de uma mulher,
entre todas as mais sedutoras e formosas que tenho visto, reclamaria, sem
hesitação, a minha própria esposa, e juro que a amaria com o mesmo arrebatamento
do primeiro desejo que ela me inspirou.
Todavia, ridículos monstros que somos nós! no tempo em que vivíamos juntos,
quantas vezes, deitados no mesmo leito, me senti apesar da sinceridade do
meu empenho em respeitar o voto nupcial, perturbado pela lembrança de outras
mulheres, que sem dúvida não valiam a sombra daquela que eu tinha ao lado?
Quantas vezes, com a consciência ressentida, não conjecturava eu a hipótese
traiçoeira de ter nos braços, naquele momento, certa provocadora mulher com
quem estivera conversando essa noite, durante o baile? E isto dava-se estando
eu deitado junto de minha esposa! Revoltava-me contra tão hipócrita deslealdade;
repelia indignado semelhantes pensamentos inconfessáveis; mas a mulher, que
não era a minha e que não valia tanto quanto ela, mas que eu só avaliava por
conjecturas, e cujo perfume de cabelo ou cheiro de corpo nunca me tinham sido
revelados na intimidade da posse, impunha-se despoticamente aos meus culposos
sentidos, acordando-me amores fogosos e enérgicos, como os já não acordava
a minha bonita companheira.
Oh! que me perdoes, Olímpia, as vezes que em ti matei desejos que vinham
de outras mulheres!
E, em consciência, não será isto já o adultério? A idéia do toque amoroso
com outra que não seja a própria esposa, não será uma traição conjugal? Castus
est Qui amorem amore, ignemque igne excludit, diz Santo Agostinho. Se assim
é, há de ser difícil descobrir um casal que se não adultere de parte a parte,
pois estou bem convencido de que com minha mulher, por excelência virtuosa,
devia suceder outro tanto; assim como estou amplamente convencido de que tudo,
tudo que em mim observei, se verificou também com ela.”
* * *
Aí termina o trecho das notas de meu marido. Ele tinha razão: Amei-o e desejei-o
também na sua ausência e, justamente quando pensava em tentar uma reconciliação,
o que hoje compreendo que seria loucura, recebi a triste notícia de sua morte.
Então a saudade e o amor que ele de longe me inspirava transformaram-se em
verdadeiro culto. Idolatrei a sua memória; mas, só depois dos estudos que
determinaram este manuscrito, pude compreender de todo quanto esse pobre homem
era bom, digno e reto, e quão nos cabia, a ele e a mim, da responsabilidade
de nossa desgraça.
Demais, o seu lugar no meu coração, quando por mais nada, estava garantido
como pai que era da minha Palmira, da minha filha idolatrada, laço único que
me ligava à vida e ao mundo. E se fui boa mãe; se consegui, à força de desvelos
e de extremos de amor, aplanar-lhe a existência das misérias que a minha corromperam,
di-lo-ão estas páginas, para ela escritas.
IV
Sim, minha filha era a minha vida, porque era o meu verdadeiro amor. Se eu
não tivesse outras razões para conservar-me honesta e digna, depois da ausência
e da morte de meu marido, tê-lo-ia feito só pelo muito que a amava.
À proporção que Palmira se desenvolvia, fortificava-se o meu caráter, apurava-se
a minha inteligência, e o meu coração fazia-se melhor. Meu pensamento pertencia-lhe
quase que exclusivamente, mesmo já nos melhores tempos de minha vida de casada.
Se então meu marido ganhava terreno na minha estima e eu na dele, era só porque
ele era seu pai e eu sua mãe; e o desenvolvimento dessa afetuosa solidariedade
estava na razão inversa do nosso amor físico.
Ah! eram inevitáveis as tristes conseqüências desse deslocamento de amor.
Foi talvez dessa época que se decidiu a nossa incompatibilidade, e que se
originou a nossa separação; entretanto ainda então sabíamos conter-nos um
defronte do outro. Em uma nota, muito anterior àquela que ficou atrás, meu
marido revela-se claramente a esse respeito. Vou transcrevê-la e será esta
a última; insisto em fazê-lo, porque todo o estudo que forma cabedal deste
meu querido livro foi inspirado nessas notas de Virgílio, e também porque
elas dizem o que eu talvez nunca tivesse a coragem de confessar a meu respeito.
Eis o que ele escreveu. Nesse tempo, note-se, ainda se não tinha quebrado
a aparente harmonia da nossa vida íntima; ainda não tinha estalado a caldeira,
onde ferviam já os humores da reação:
“Noto que os sutis efeitos desse fato (refere-se ao exclusivismo do seu amor
paterno) começam a patentear-se tristemente na intimidade egoísta da minha
vida conjugal. Começo a perceber que o arrefecimento do meu ardor amoroso
para com minha mulher vai lentamente toldando, de vaporosas mágoas, a sua
calma existência de esposa infeliz e honesta. Ela se não queixa nunca, mas
a progressiva expressão de desgosto que vão adquirindo seus formosos olhos;
o indefinível sorriso de resignação que lhe entreabre os lábios quando eu,
ao seu lado na cama, lhe falo com entusiasmo de nossos filhos, e só deles,
esquecido do resto do mundo, esquecido de tudo mais, tomado, possuído inteiramente
pelo amor de pai; tudo isso me faz cair em mim e enche-me de revolta conta
o exclusivismo do meu coração. Estudo-me e descubro com horror que já não
há em mim a menor sombra de entusiasmo amoroso por minha mulher. – Fico indignado!
Quero convencer os meus rebelados sentidos de que isto é uma indigna injustiça,
e chamo em socorro dos meus deveres de bom marido a idéia dos encantos de
Olímpia, evocando o ardor com que a desejei durante o noivado e durante a
lua-de-mel.
É tudo inútil!
Minha mulher tem agora vinte e seis anos. Está em pleno desenvolvimento de
suas graças físicas; nunca foi tão bela, tão sedutora e tão mulher. E eu,
com trinta e cinco anos, na força da idade e da saúde, reconheço tudo isso,
admiro-lhe os dotes físicos, tenho orgulho da sua beleza e, em consciência,
não compreendo mulher mais perfeita e mais digna de amor que a minha. E contudo,
o amor entra no comércio da nossa vida íntima apenas como ligeiro e fugitivo
incidente. Apesar de reconhecer o seu inapreciável valimento feminil, a riqueza
daquele palpitante tesouro de formas brancas e formosas, o preço daquele corpo
carinhoso e casto, só vejo, só enxergo nela, a mãe dos meus filhos, só vejo
o ventre sagrado, donde nasceu em ondas de sangue a minha felicidade de ser
pai.
Beijo-a, acarinho-a sinceramente, ao sair de casa, ao entrar da rua; às vezes
interrompo o meu trabalho para tomar-lhe as mãos, assentá-la um instante sobre
os meus joelhos, passar-lhe o braço na cintura. Mas estes afagos, alheios
ao transporte amoroso, são feitos de fria ternura de amigo, são meigo reconhecimento
da minha paternidade feliz.
Donde vem, pois, esta estranha coisa, esta incompreensível anomalia, de que
eu ame cada vez mais minha mulher e menos a deseje amorosamente? Por quê?
Não sei, não atino com a verdadeira causa; e a convicção do fato, que no
meu espírito de marido leal e virtuoso atinge as proporções de feia monstruosidade,
começa a torturar-me seriamente.
Sim, sim, a certeza de que a felicidade moral de Olímpia subsiste em prejuízo
da sua felicidade de mulher, atormenta-me de modo atroz. E percebo ainda,
com o coração envergonhado e a consciência em revolta, que a grande dor saída
dessa convicção não é determinada pelo mal que ela porventura cause à minha
pobre esposa, mas pela ameaça do mesmo mal prometendo cair mais tarde sobre
a cabeça de minha filha. Sim, porque minha filha há de também um dia ser esposa
e ser mãe, e terá nesse caso de sofrer as mesmas injustiças que eu faço hoje
à minha mulher, e que agora lhe entristecem a vida e lhe dão ao bondoso semblante
aquele doloroso ar de resignação.
Pois se eu, cônscio da minha íntima probidade conjugal, amando minha mulher
como a amei sempre, não pude furtar-me à cruel e misteriosa lei que me obriga,
contra a própria razão, a sentir-me farto e cansado da sua ternura, quanto
mais se eu fosse um esposo vulgar, sem escrúpulos, e sem domínio sobre si
para chamar a consciência, o coração, e até sentidos, ao bom e leal desempenho
dos seus deveres?… O que seria então?… Que horrorosa vida não teria dado
à minha mulher se não fora eu tão honestamente rigoroso no desempenho do meu
papel de esposo?… Que mundo de dores e desgostos lhe teria eu proporcionado,
se ela descobrisse o sacrifício com que às vezes suporto as suas carícias
e a hipocrisia com que as retribuo ou provoco?…
O marido de minha filha terá, como eu, a delicadeza, a bondade, de se não
revoltar, de submeter-se passivamente à convenção matrimonial, calcando no
íntimo as revoltas do tédio, e resistindo heroicamente às solicitações externas,
como eu resisti sempre até aqui?
A pertinaz sedução de mais de uma formosa mulher que encontrei na sociedade,
quebrou-se contra os meus princípios de moral; e Olímpia, que é inteligente,
bem o percebeu e bem mo agradeceu, não com palavras, mas por delicados meios,
que ainda mais me fizeram seu amigo. O marido que milha filha viesse a ter
seria capaz de tanto…
Eis o que me tortura principalmente!
E minha filha será, como é minha mulher, uma virtude inquebrantável, um espírito
orgulhoso e forte, que resista às tentações de procurar fora de casa a felicidade
que o casamento lhe terá prometido e não lhe terá dado; ou, impelida pelo
fastio da vida conjugal, irá refugiar-se nas criminosas ilusões de novas crises
de amor; nessa espécie de falsificadas luas-de-mel, que a mulher adúltera
inventa fora do lar doméstico, porque vê que neste não poderá nunca, nunca
mais, obter a reprodução da lua-de-mel verdadeira e legítima?
E, admitindo mesmo a melhor hipótese, admitindo que Palmira herde da mãe
a energia e a honestidade do caráter e o rigoroso equilíbrio do temperamento,
será justo deixar que ela passe pelas mesmas provações e sofra as mesmas dúbias
e lentas infelicidades que eu observo e estudo em Olímpia, e que me enchem
de compaixão por ela e de revolta contra mim mesmo e contra estes meus ingratos
e miseráveis sentidos? Pois será esse o belo futuro que eu preparo para minha
querida filha? Destiná-la a servir de instrumento de tédio a um marido, que
não será talvez tão resignado como eu e que não consiga amá-la como eu amo
minha mulher? Condená-la a ser, por toda a melhor parte de sua vida, nada
mais do que um ludibriado receptáculo de fingidas carícias? condená-la, coitadinha!
a apagar com os seus beijos castos o fogo de inconfessáveis desejos, criados
por outras mulheres, cuja única superioridade sobre ela será a de não serem
casadas com o homem que for seu marido? E, se este não tiver o meu gênio e
não conseguir arrancar de si os artifícios de delicadeza, que eu mantenho
para com minha mulher, terei eu o direito de acusar minha filha, no caso que
se desvie da linha inflexível dos seus deveres, e procure fora do tedioso
matrimônio os regalos exigidos pela sua mocidade e pelos reclamos que, no
seu sangue, pôs a natureza para garantia da espécie e segurança da intérmina
cadeia da vida? Se assim acontecer, terei o direito de amaldiçoá-la; terei
o direito de castigá-la com o meu desprezo e com o meu abandono?
E não será mais odioso crime punir semelhante desgraça, com outra desgraça
ainda maior para ela? Para ela e para mim, e para minha esposa; pois que –
deserdar qualquer filha do amor de seus pais – é sem dúvida para essa infeliz
um tremendo martírio, porém nunca tão grande e tão doloroso como para os desgraçados
que o infligem!”
Eis aí fica uma sincera página, escrita por meu marido, antes da nossa crise
das contendas e disputas que nos desuniram para sempre. Calculo quanto não
teria ele sofrido mais tarde, pensando no destino de nossa filha e reconhecendo
que nem ele próprio, que se considerava tão seguro na sua resignação conjugal
e tão firme na sua energia para conter as revoltas do tédio, pudera evitar
a explosão nervosa e o fatal rompimento, que nos arredaram, a ele de Palmira,
a mim do meu pobre filho! Como meu marido devia ter sofrido longe dela, coitado!
Mas a semente do seu amor paternal foi recolhida pelo meu coração de mãe,
e já vingou, e há de crescer, florir e dar bons frutos!
Sim, meu infeliz irmão, se lá no duvidoso mundo, para onde voou teu nobre
espírito, acompanha-te a mágoa do destino que terá nossa filha, e se guardas
nessa outra vida memória dos que nesta te amaram, põe a larga o coração, porque
estarei ao lado dela para evitar-lhe os escolhos, em que comigo naufragaste;
estarei a seu lado, vigiadora e fiel, para preservá-la do mal que nos separou,
e para dar-me toda inteira, de corpo e alma, para sempre à conquista de um
meio de a fazer feliz! Juro-te que nossa filha não passará pelas mesmas angústias
por que passei, nem resvalará em nenhum dos muitos modos de ser da prostituição!
Não! Palmira não terá a desgraça de ser uma esposa adúltera e desprezível,
nem será também uma vítima ridícula da sua própria virtude, privada, na idade
do amor sexual, dos direitos e dos gozos que a natureza conferiu a cada uma
das suas criaturas; nem será tampouco, como eu fui, a esposa mãe, cujos beijos
do marido nada mais eram que os restos frios do seu amor paterno! Não! minha
filha há de amar e ser dignamente amada, com todo o ardor, com todo o entusiasmo,
com toda a grande e próspera volúpia de que é capaz o verdadeiro amor! E não
somente durante o noivado, mas sempre, por toda a vida, todos os dias e todos
os instantes.
Minha filha há de ser feliz!
V
Jurara pois a mim mesma, e à memória de meu marido, que minha filha seria
feliz. Mas como realizar esse ideal?
Eis a questão. Vejamos:
Dar-lhe um marido, quando chegasse à idade do amor?…
Mas, se o meu, que fora tão bom, tão leal, e tão justo, não conseguira proporcionar-me
a felicidade?
Dar-lhe um amante?
Mas, sobre ser, debaixo do ponto de vista social, imoralíssimo o fato, em
que poderiam afinal consistir as vantagens de um amante sobre um marido?
Não seria o amante nada mais do que um marido ilegítimo, que trouxesse à
mulher todas as desvantagens domésticas do casamento e nenhuma das suas vantagens
sociais?
Para o homem, sim, a amante parece incontestavelmente preferível à esposa,
porque a mulher de posição só aceita um homem para seu concubinário quando
o ama fervorosamente; ao passo que pode tomar marido, ou só porque os seus
interesses de vida social assim o exijam, ou só porque a sua vida particular
não tenha outro meio de manter-se.
O marido é sempre para a mulher uma garantia do presente e uma garantia do
futuro; o amante é nada mais do que um incidente arriscado. O marido é uma
conquista social; o amante é um sacrifício feito ao amor. A mulher que não
tem posição social, conquista-a com o casamento; e aquela que já a tinha,
perde-a tomando um amante. Por conseguinte o casamento eleva e o concubinato
rebaixa.
No casamento o escravizado é o marido; no outro caso a escravizada é a mulher.
O casamento é o sacrifício de um homem em proveito da sociedade; o concubinato
é o sacrifício de uma mulher feito a um homem. A mulher casada vê no “seu”
marido uma propriedade sua; e, para manter a felicidade burguesa do seu lar
e para não perturbar a suposta tranqüilidade da sua vida conjugal, quer que
ele, ao entrar casado na câmera nupcial, despeje para sempre o coração de
todos os seus sonhos de glória; quer que ele abdique, em proveito do seu novo
estado, de todas as suas ambições brilhantes, de todo o seu ideal de conquistas
na vida pública. E desse dia em diante, tudo o que nele for pessoal e de alcance
exterior encontrará nela um inimigo terrível. No triunfo individual dele ela
verá uma perene ameaça aos seus direitos de proprietária conjugal. A felicidade
particular dele, posto que de caráter moral, será por ela considerada um roubo,
um atentado cometido contra a solidariedade do casal. Que ele seja um “Bom
marido” é o essencial, é quanto basta; é tudo o que ela exige dele e é só
o que ela consente que ele ambicione.
E para ser um “Bom marido” convém que ele seja caseiro, metódico, pacato,
previdente; que disponha de recursos para manter a família, e não tenha a
menor ambição de nome. O que por aí se chama “Bom marido” é um ser genérico
e coletivo, que, por si só, particularmente, nada representa, e que não pode
ser aproveitado, na cadeia dos interesses gerais da vida humana, senão como
simples e obscuro elemento de procriação. Um bom marido é útil somente porque
produz filhos.
Para ser um bom marido não pode o indivíduo ser um “homem de ação”, como
não pode ser um “contemplativo”. Não pode ser um conquistador, um revolucionário
ou um grande empreendedor, como não pode ser um poeta, um artista ou um sábio.
E como são essas as duas únicas ordens em que se divide a humanidade produtora,
da soma de cujo esforço de ação ou de pensamento tira a evolução tórica a
sua grande força de impulso e de aperfeiçoamento geral, segue-se que o “Bom
marido”, na comunhão da vida inteligente e na obra do progresso do mundo,
não tem lugar como homem, mas só como animal, e seu esforço só poderá ser
aproveitado como passivo instrumento da vontade alheia.
Por isso um bom marido deve ser única e exclusivamente um bom marido, e nisso
limitar todas a sua aspiração. Um bom marido não deve ter pátria, nem idéias.
A sua pátria é a casa, e o programa de todo o seu pensamento é o seguinte:
ter ou obter meios para a regulada subsistência da família; não perturbar
nunca a paz burguesa do lar; atrair à casa, de vez em quando, amigos sérios
e respeitadores dos princípios estabelecidos; promover partidas de dança,
em que a mulher se divirta, em que as filhas, se já estiverem desenvolvidas,
possam namorar para obter marido; não faltar nunca ao lado da esposa com o
provimento sexual de que ela, conforme o seu temperamento, careça para o seu
bem-estar e perfeita sinergia do organismo; e nunca, nunca, dar ou promover
escândalos, sejam estes de ordem política, artística, amorosa, doméstica,
ou sejam de simples e inocente folguedo.
Para o satisfatório desempenho desta última parte do programa, deve o bom
marido abster-se de escrever, com assinatura, artigos em jornais e livros
principalmente; não deve ter senão as obras que possa dar também a ler à sua
família; não deve expor ao público e à venda qualquer produção artística de
sua lavra, mas reservá-las para ornamento da sua sala de visitas ou de jantar;
no seu modo de vestir nunca trazer a roupa muito à moda, nem muito fora da
moda; deve, enfim, nisto, como em tudo absolutamente, escolher sempre o meio-termo,
o regular, o médio, porque a mediocridade deve ser o seu nível. Razão esta
para que evite, escrupulosamente, aperfeiçoar-se em qualquer ramo de conhecimento
científico ou artístico, que da perfeição pode, mesmo sem querer, cair no
sucesso e aplauso público o que lhe não convém de modo algum, por ser escandaloso.
Todo o sucesso é um escândalo, e o bom marido deve temer o escândalo antes
de tudo.
E mais: o bom marido deve recolher-se à casa sempre cedo; não sair para o
passeio ou para o teatro sem levar a família; evitar a convivência mundana
com todo o indivíduo que for popular e apontado a dedo. Não lhe convém igualmente,
e nem por sombra, a menor relação de amizade com os agitadores de idéias e
com os artistas reformadores. O seu círculo, além da família, só pode estender-se
um bocadinho às circunspectas classes conservadoras; o seu nome não deve figurar
nunca senão em listas oficiais e graves. O bom marido deve ser, nos seus atos
e nas suas funções, inalterável como uma pêndula: – Da casa para o trabalho
e do trabalho para casa. Qualquer desvio do movimento estabelecido pode alterar
a marcha do relógio, que é o lar.
Logicamente, quem deveria perder o nome com o casamento e adotar o do cônjuge
era o homem e não a mulher, porque se o casamento for o que se chama “regular”
e o marido sair “um bom marido”, é ele quem desaparece engolido pela família;
ao passo que ela, até aí escondida atrás dos parentes, sem ter mesmo até então
o direito de pensar, casando-se, surge desassombradamente à tona social e
forma à direita do esposo um novo elo na grande cadeia.
E não há mulher que não deseje que seu marido seja um “Bom marido”. No seu
indefectível egoísmo, os interesses privados do lar impõem-se antes de tudo.
Não admitirá ela nunca que seu marido pertença a qualquer outra coisa ou idéia
que não seja o próprio casamento.
Algumas não amam o esposo, mas nem por isso deixam de pesquisar-lhe a vida
inteira, até os mais pequeninos atos da existência. Esse vivo e feminil emprenho
de perquisição não vem do interesse carinhoso que ele inspira à mulher, mas
do gozo de desfrutar um direito, o direito de zelar e governar o que lhe pertence,
o que é só dela e de mais ninguém; pois que, na maior parte dos casos, a mulher
não faz questão de que o marido seja este ou aquele, desde que o sujeito preencha
os já citados requisitos de bom marido.
E o que recebe o pobre do bom marido em troca de tudo o que dá à esposa?
Só recebe uma recompensa – a felicidade de ser pai. Só esta resiste: tudo
mais que ele, de longe, nas ilusões do desejo, supunha constituir um mundo
de venturas, desfaz-se em tédio e obrigações maçantes. A mulher deixa em breve
de ser a esposa para ser “A minha companheira – a minha velha – a madama”.
Deixam ambos de ser marido e mulher para serem “Feijão com carne-seca”, como
eles lá dizem, os imbecis! O lar deixa de ser o ninho da paz e do descanso
para ser “a obrigação da casa”. E em obrigação, e obrigação acabrunhadora,
transforma-se toda a vida do homem, desde a mesa da comida até à cama, só
lhe ficando intacta a consolação de ser pai.
* * *
Com a amante sucede precisamente o contrário. O homem a quem ela se entregou
impôs-se ao seu coração por uma irresistível fatalidade do amor. Essa ligação
não entrava no programa da sua vida, como o casamento entrava no da vida da
outra; essa ligação veio como conseqüência inevitável de uma fascinação imprevista.
Em vez de investigar se o homem a quem se “deu” tinha as qualidades e requisitos
necessários para tomar mulher, o que ela quis saber, só, foi se ele a amava
tanto quanto era amado por ela; e, justamente ao inverso do que faz a mulher
na ocasião de arranjar marido, em vez de dizer:
“Aceito este ou aquele contanto que dê de si um bom marido”, o que a amante
pensou foi o seguinte: “só este me convém e quero, só este me pode servir
para amante, ainda mesmo que ele não disponha das necessárias qualidades para
ser um bom amante”. E ela assim pensa e faz, porque ama, e como o seu amor
visa certo e determinado indivíduo, só esse, tenha ele as qualidades ou defeitos
que tiver, poderá ser o seu homem.
E, como, unindo-se a esse homem, ela em vez de subir, apeou-se da sua posição
social, todo o seu empenho, depois de unidos, se transforma em desejar vê-lo
crescer e elevar-se no conceito público, porque, quanto maior for ele, tanto
mais desculpável será a queda da mulher que lhe pertence.
Ainda ao contrário do que sucede no casamento, aqui a tranqüilidade e a íntima
bem-aventurança do lar são sacrificadas aos interesses exteriores do amante,
se este tiver ambições de caráter público, quer como artista, quer como homem
de ação. A paz doméstica, os gozos do amor, tudo isso é rapidamente atirado
para o lado se a honra ou o interesse abstrato da glória reclamam o sacrifício
do homem amado.
Quando, nos grandes momentos decisivos para a vida pública de um homem, tenha
este, sem hesitação, de arriscar tudo num lance resoluto, num rasgo de coragem,
e, ou galgar de assalto a vitória completa, ou cair vencido para sempre; se
ele é casado, a mulher agarra-o com ambas as mãos, grita, chora, enlaça-o
nas suas saias e não o deixa sair de junto dela, reclamando egoisticamente
que o infeliz é seu marido e que ela não pode consntir que ele se exponha,
porque seria expor também a segurança do seu lar e da sua família; e, se o
homem não for casado, enquanto a esposa faz aquilo, o que faz a amante?
A amante, esquecendo a sua felicidade privada pelas conveniências públicas
do seu amado, e tendo pouco de si mesma que arriscar, porque tudo por ele
próprio já arriscou e não temendo cair em posição falsa, porque falsa já é
a sua posição, é a primeira a empurrá-lo para o seu posto de honra e a instigar-lhe
os brios, gritando-lhe que não perca um instante e cumpra resoluto o seu dever,
sejam quais forem as conseqüências.
Ele pode morrer! – Embora! Mas é preciso que vá, que se não desonre, porque,
se assim acontecer, ela terá perdido de um modo mais triste ainda a sua felicidade
de mulher, porque terá perdido a sua ilusão de amor, porque terá perdido moralmente
o seu amante.
Que vá! Que vá! Antes morto que desonrado!
E nisto consiste a grande vantagem que leva o concubinato sobre o casamento.
Se eu, em vez de uma filha, tivesse um filho, não hesitaria em aconselhar-lhe
que preferisse tomar uma concubina a tomar uma esposa.
Mas, na inversão do caso; quer dizer: sob o ponto de vista do interesse da
mulher, o amante será preferível ao marido?
Vejamos:
VI
À primeira vista parece que não; parece que o amante, longe de levar vantagem
sobre o marido, fica-lhe muito inferior, sob o ponto de vista dos interesses
da mulher. A princípio parece que um amante traz todas as desvantagens de
um marido vulgar e nenhuma das vantagens morais.
Já ficou estabelecido que o marido é o escravo e que o amante é o senhor.
Mas, sob o ponto de vista dos interesses domésticos e da verdadeira felicidade
privada de uma mulher, não estará justamente nesse fato de ser senhor e não
escravo a superioridade do amante sobre o marido? Qual será mais apto para
fazer a felicidade de uma mulher – um homem que a ame como senhor, ou um homem
que a ame como escravo?
Dir-me-ão talvez que, tanto um como outro, não preenchem o ideal da mulher,
e que o melhor partido é o de um homem que a ame de igual para igual.
Não. Essa igualdade é bonita, mas é impossível e, se fosse possível, seria
inconveniente. A mulher, já pela sua especial constituição física e intelectual,
já pelo seu natural estado de passividade, não pode em caso algum ser a igual
do homem com que vive.
O raro caso da absoluta superioridade da mulher é uma anomalia que traz fatalmente
o desequilíbrio no casal.
É justamente dessa desigualdade perfeita, desse contraste de aptidões físicas
e morais, que nasce a sublime harmonia do amor. É com a variedade de competências
e de necessidades de cada um, que os dois se completam.
Pois se até na idade e na estatura física é conveniente, para o bom equilíbrio
de um casal, que haja certa inferioridade da parte da mulher! No que precisa
haver identidade é no ponto de educação social e no grau de colocação na escala
etnológica. E, ainda neste particular, caso não seja possível obter a igualdade,
dada a circunstância de que uma das partes do casal tenha de ser, na raça
ou na condição, inferior à outra, é preferível, para todas as conveniências
e efeitos, que a parte inferior na raça ou na condição seja a mulher e não
o homem. É mais natural e aceitável ver um branco casado com uma mulata ou
um mulato com uma preta, do que ver uma branca ligada a um preto ou a um mulato;
pela simples razão de que, na apuração e aperfeiçoamento da casta, a mulher
só entra em concorrência como passivo auxiliar.
A mulher, regularmente constituída, não quer para sócio na procriação, nem
só um indivíduo que lhe seja etnogenicamente inferior, como não quer um homem
organicamente tão ou mais fraco do que ela, nem quer também um que lhe seja
igual na falta de energia e de ação, mas sim quer um ente superior, que lhe
sirva de firme garantia à sua fraqueza e a seu pudor; quer um homem que lhe
possa dar conselhos e amparo, e, se tanto for preciso, até o próprio castigo.
Sim, o castigo. – Um bom e verdadeiro amante é sempre um pouco pai da mulher
amada.
O marido, esse é que nunca é mais do que o par de sua mulher, e com ela discute
de igual para igual, com ela dueliza e luta, como um sócio disputando sobre
os seus interesses com o outro sócio que o quer lograr. Ela não teme desgostá-lo
com as suas palavras duras e injuriosas, porque não tem receio que ele lhe
fuja – o cabresto do casamento é rijo e apertado.
Desde que a mulher reconheça no amante a indispensável superioridade, não
pode, como aquela, ver nele o seu escravo, mas o seu dono, o dono da sua vontade
e do seu corpo; e, no passivo enternecimento de julgar-se um objeto dele,
reside a sua felicidade de mulher que ama e é amada.
A mulher, creiam todos, sente prazer em reconhecer-se passiva, em ver em
si um ente fraco e por isso mesmo digno de respeito; goza com sentir indispensável
o apoio moral e físico do homem a quem se entregou toda inteira, toda confiante,
de olhos fechados. Se ama deveras o seu concubinário, pode este fazer dela
o que quiser, uma heroína de abnegação e bondade, como pode fazer o mais perverso
dos facínoras. Dele tudo depende, porque nela é ele quem manda, ele é o senhor
e governa.
As romanas antigas, talvez se divertissem menos, porém deviam ser muito mais
felizes no interior do lar do que as nossas esposas modernas; e eram mais
felizes porque eram mais mulher, e os seus homens eram mais homem.
Ao inverso do que sucede no comum dos casamentos de pura conveniência burguesa,
a mulher mais ama o seu amante quanto mais este avulta e cresce no conceito
público, por conseguinte mais o ama quanto mais ela diminui ao lado dele,
até reduzir-se às ínfimas proporções de simples fêmea amorosa. E só então
é verdadeiramente feliz no amor.
Isto, já se vê, só se pode dar no caso do amante e nunca do esposo, porque
é justamente da prática do oposto desse fato que nasce o invencível desconcerto
entre os casados e o fatal desequilíbrio da vida conjugal. É que a mulher
casada quer, geralmente, emparelhar com o marido e acompanhá-lo nas regalias
da consideração pública e na glória das conquistas sociais, sem se lembrar
de que, se ele cresce, é pelo talento, ou pela bravura, ou pelas virtudes
enérgicas, ou simplesmente pela atividade na intriga política; cresce enfim
pela ação ou pela produção intelectual; cresce porque luta e vence. Ao passo
que ela ambiciona acompanhá-lo no mesmo vôo, substituindo aquelas asas fortes
de que ele dispõe, por uma coisa única – o amor; quando não é pela simples
circunstância ridícula de ser esposa dele. Mas, valha-me Deus! o amor físico
é uma função material e privada, é um instinto, é o instinto da conservação
da espécie, como a fome é o instinto da conservação pessoal – nada mais! E,
se o fato de ser mulher de um homem ilustre lhe desse a ela os mesmos direitos
por ele conquistados pelo talento ou pela ação, seria isso uma distinção adquirida
sem esforço e por conseguinte sem mérito e até odiosa.
Estou farta de ver todos os dias na imprensa o nome de certas senhoras figurando
com indecorosa insistência à frente de subscrições públicas, de programas
de festas patrióticas, de manifestações de vários gêneros, e até como título
de estabelecimentos de instrução ou de caridade, e tudo isso só porque são
casadas com homens postos em evidência pela política do momento ou pela alta
soma de seus haveres. Ora, tinha vontade de saber se essas esposas, que tão
afoitamente emparelham com os maridos nos seus prósperos vôos de glória, estariam
também dispostas a acompanhá-los ao patíbulo, ou a cumprir a pena de galés
perpétuas, se a tais fossem eles condenados.
E nada, todavia, seria mais justo, porque – quem come a carne deve roer os
ossos!
O que fatalmente acontece, no caso vulgar dessa tentativa de emparelhamento
no vôo da ambição do homem público, é que a mulher não consegue subir com
o esposo, nem fica também no ponto onde nunca devia ter saído – o lar, que
é o seu posto de honra, e onde, tanto mais ela cresce quanto mais se afunda.
Daí o desequilíbrio doméstico e a infelicidade de parte a parte, quando no
casamento o marido é um homem notável ou ambicioso.
E se a mulher tem elementos individuais para subir também, tanto pior para
os dois, porque nesse caso marido e mulher já não representam um casal, que
se ama e se constituiu para procriar, mas tão-somente dois êmulos, ávidos
de glória, disparados em carreira, a disputarem o passo um ao outro.
Nessa hipótese, o convênio conjugal desaparece totalmente, sem deixar vestígios.
Observe-se para exemplo a vida dos artistas, principalmente cantores e atores,
que se casam entre si.
Se a felicidade conjugal fosse coisa possível no casamento como ele é entre
nós, o único tipo de esposo, ainda assim capaz de proporcioná-la à mulher,
seria o pacóvio que lá para trás ficou etiquetado com o rótulo de “Bom marido”,
ou então, o que infelizmente deve ser muito difícil de acontecer, quando a
mulher, por uma feliz intuição do seu destino, fizesse do próprio esposo o
seu amante e tomasse corajosamente, não à sua direita, mas à sua esquerda,
a posição subalterna de uma amiga apaixonada.
A estatura moral da mulher em relação ao seu homem dever ser como a sua estatura
física – ela não deve ficar-lhe nunca abaixo do coração, nem tão alto que
chegue a nivelar a sua cabeça com a dele. O casamento seria talvez suportável,
se a esposa compreendesse esta verdade, mas em geral a mulher casada, nem
só pretende alcançar a estatura oficial do marido, como ainda quer excedê-la
na consideração pública. Nada há mais intoleravelmente ridículo do que a mulher
de um homem ilustre possuída da sua alta posição, quer dizer, da posição que
lhe reflete o marido, porque ela só por si nada representa. E, ah! quanto
isto é freqüente nesta nossa sociedade! quanto é freqüente o orgulho em pobres
criaturas casadas com altos indivíduos, que todavia são, pelo sue lado, o
mais singelo exemplo da modéstia!
Com a amante não há receio que aconteça o mesmo. Esta, não podendo acompanhar
o amigo nos vôos empreendidos pela conquista da glória, porque a sociedade
não lho permite, deixa-se ficar cá embaixo, no lar, reduzida ao papel de caseira,
e com isso tem garantido a sua felicidade e a dele.
Conclui-se pois que um amante é mais apto que um marido para fazer a felicidade
da mulher; e então, uma vez que minha filha não tivesse de viver eternamente
só, seria preferível dar-lhe um amante.
Mas, e a sociedade?…
* * *
Sim, teria eu a coragem de afrontar com inabaláveis e velhos preconceitos
estabelecidos até hoje?… Só o casamento, segundo os nossos ilógicos costumes,
tão injustos para o meu sexo, dá à mulher o livre exercício de seus direitos
naturais e só dele podemos receber a consagração da maternidade, que é o ato
capital e mais transcendente no destino genérico de nós todas.
Substituir o marido por um amante é fácil de dizer aqui nestas páginas, mas,
na vida real, é coisa delicadamente difícil de pôr em obra.
E minha filha, que não foi criada fora da sociedade, estaria disposta a consentir
nisso? Não se julgaria lesada na substituição e eternamente ferida no seu
decoro? E afinal, no fundo, qual de nós duas teria razão e bom senso: eu em
dar-lhe um amante; ou ela em rejeitá-lo? E quem me diz que, assegurando-lhe
a felicidade doméstica, não iria por outro lado fazê-la muito mais desgraçada,
privando-a dos gozos e das regalias, que o casamento proporciona à mulher,
fora dos limites do leito, e do quarto, e que a sociedade nega formalmente
a toda e infeliz que lhe não é endossada por um representante legítimo?…
As quatro paredes de uma alcova de amor podem conter um vasto paraíso de intérminas
esperanças e um mundo de venturas; o pequeno espaço de uma cama é, entre todas
as vastidões da terra, o campo mais largo e mais importante no destino do
homem – é aí que ele morre. Sim senhor! tudo isso é verdade e em tudo isso
eu creio; mas não entrarão também, como requisitos de felicidade na vida de
uma mulher de hoje – os bailes, o lírico, a estação em Petrópolis, as águas
de Caxambu, os domingos de corrida, o jogo, os jantares diplomáticos, a palestra
e a convivência enfim com o escol da sociedade?…
E, o que é mais sério, um amante, por melhor escolhido por mim, faria com
efeito a felicidade de Palmira? ou, quem sabe, se a razão do tédio e das dolorosas
falhas da vida conjugal não residiriam particularmente na forma da ligação,
mas em qualquer outro fato que tanto entrasse na esfera da ligação legítima
como na da ilegítima!…
Sim, porque meu marido foi em algum tempo também meu amante; uniu-se comigo
porque me amava e era fervorosamente correspondido; eu reconhecia nele um
ente superior e sentia-me feliz em precisar da sua proteção. E tudo isso não
impediu, apesar de nossa lealdade de conduta, que Virgílio se sentisse farto
de mim e eu dele igualmente; o que fez de nós, até nos separarmos para sempre,
dois desgraçados que amaldiçoavam, cada um no segredo da sua íntima miséria,
a existência de galés que arrastávamos ao lado um do outro.
Ah! minha filha, minha filha! inda uma vez te digo que em verdade só tu foste
a minha consolação e a minha ventura; n]ao quero que mais tarde possas, por
tua vez, dizer o mesmo, porque a maternidade, só por si, não constitui, ou
não deve constituir, a felicidade completa de uma mulher.
Não! Hás de desfrutar todo inteiro o quinhão que te toca no banquete da vida!
hás de gozar o que a natureza generosamente criou para o conforto da tua alma
e do teu corpo! Fruirás todas as delícias de que for capaz a poesia do teu
amor; terá todos os beijos que te pertencem; terás a realização de todos os
teus castos e voluptuosos sonhos de moça! E terás também, ao lado disso, todos,
todos os prazeres, que a sociedade em que nasceste proporciona dentro do seu
orgulho e dentro da sua vaidade!
VII
A promessa estava sinceramente feita, mas qual seria o meio de a cumprir?
Onde estaria afinal a misteriosa causa de se não poder obter essa felicidade
que parece à primeira vista tão simples, tão natural e tão justa? Qual seria
o meio de tornar, não só possível, mas deliciosa, a vida em comum de dois
entes, que se amem e queiram viver eternamente um para o outro?
Como conseguir a vida reta de um casal, sem a privação do amor, que é a base
de todas as felicidades da mulher perfeita, mas também sem essas intermitências
do tédio, sem os tristes desfalecimentos do entusiasmo de parte a parte? Como
descobrir para a minha Palmira uma existência larga, completa, boa e fecunda,
sem as misérias do casamento e sem as misérias da mancebia; sem os beijos
hipócritas, sem os vergonhosos recursos do fingimento conjugal, que fazem
dos casados verdadeiros cabotinos do amor; mas igualmente sem as decepções
amargas, e as dores escondidas, e as melancolias da exclusão social e o estéril
arrependimento dos casais ilegalmente constituídos?
Oh! Era impossível que não houvesse recurso para obter um ideal lógico e
tão humano! Era impossível que não pudesse eu evitar para minha filha o grande
mal que me estragou toda a vida! Era impossível que não houvesse um meio de
salvar a pobre criança da desgraça que a esperava; um meio de evitar que ela
naufragasse como eu naufraguei, apesar da minha virtude e apesar do amor e
das boas intenções de meu marido!
Sim, sim! o meio havia de existir, e eu havia de descobri-lo!
* * *
E desde esse momento, não descansei mais um instante. Dediquei todo o meu
pensamento, todo o meu coração de mãe, todo o meu esforço, em descobrir o
meio salvador.
Principiei por estudar-me a mim mesma; estudei-me longa e pacientemente,
dissecando, um a um, todos os grandes e pequenos fatos que encheram a minha
vida conjugal, e procurei descobrir quais deles marcavam as épocas divisórias
dos três estados que conheci ao lado de meu marido; a saber: 1º) o estado
de completa e franca felicidade moral e fisiológica; 2º) o estado de transição,
estado de dúvida, de tristeza sobressaltada e vago ansiar por uma felicidade,
que eu não podia determinar qual fosse, mas que me fazia muita falta à vida
e me tornava inconsolável como mulher. Foi durante esse segundo período que
nasceu, e começou logo a acentuar-se, a minha indiferença genésica por meu
marido. Foi também nesse período que acabei de amamentar Palmira; 3º) o estado
de crescente hipocondria, depois tédio e cansaço, e afinal repugnância absoluta
pela vida matrimonial, o que transformava em verdadeiro sacrifício, sacrifício
insuportável, a existência em contacto com meu esposo, a quem todavia continuava
a estimar muito, não tanto quanto a minha filha, nem também em segundo lugar,
mas logo em terceiro. O segundo lugar na minha afeição cabia já ao homem,
que até hoje ficou sendo o meu amigo e o meu verdadeiro amado, o Dr. César
Veloso, de quem lá para adiante terei muito que dizer. Só o conheci já em
meio deste terceiro período, e desde então minha alma foi, a pouco e pouco,
se chegando para ele… mas não é disso que se trata por enquanto. Vamos ao
que importa:
O primeiro estado começou na minha época de noiva, e sustentou-se até quase
ao termo da aleitação de Palmira. Esse período feliz foi apenas falhado por
alguns senões da lua-de-mel, como explicarei depois; coisas de grande alcance,
mas de possível correção, quando se tratasse do casamento de minha filha.
O segundo estado durou quatro anos, e o terceiro três, até à minha definitiva
separação de Virgílio.
Voltemos ao primeiro: Com a puberdade, como que se abriu defronte de meus
nascentes desejos um mundo de misteriosas delícias, um vasto caminho de ternura
e de esperanças, verde, alegre, risonho, todo iluminado de um sol novo e desconhecido
para mim, que me embriagava a alma. E esse desejado caminho perdia-se infinitamente
pelos meus sonhos de donzela, por entre uma cheirosa alameda de laranjeiras
em flor.
Como suspirei estendendo o meu casto desejo por esse longo e misteriosos
caminho desejado! Como eu então, pobre de mim! supunha que o meu destino fosse
uma indefinida cadeia de satisfações de todo o meu ser; e que este, sob o
fecundo eflúvio do amor de meu noivo, iria desabotoar amplamente, como uma
rosa ao sol, transbordante de seiva e de aroma! A idéia de um filho me vinha
já ao espírito, mas na poética imagem de um pequenino botão de flor ao lado
de outra flor maior, plenamente desabrochada, que era eu.
Dores, decepções, fastios e tédios, não entravam jamais no cantante programa
da minha felicidade. E note-se que eu não era, à semelhança de muitas das
minhas amigas, o que se pode chamar uma moça romântica. Não sonhei nunca para
meu noivo algum príncipe encantado, nem algum singular e formoso aventureiro,
que viesse de longínquas paragens, galgando precipícios e vendendo insuperáveis
escolhos, para chegar até a mim e depor a meus pés o seu coração de poeta
enamorado e a sua gloriosa espada de cavalheiro.
Não, e acho que essas donzelas, que sonham assim torto, são verdadeiras aleijadas
do coração, deformidade conseqüente de uma moléstia que grassava muito quando
eu tinha dezoito anos – a infecção romântica, com caráter pernicioso e acompanhada
de crises agudas de delírio e perturbações cerebrais. O que eu via no casamento,
graças a Deus o digo, em boa consciência e com orgulho do meu bom senso, era
o legítimo direito de uma felicidade natural e honesta. Sonhava um noivo razoável
e verosímil; sonhava um rapaz de gravata e fraque, sadio, inteligente, ativo,
honrado e bem-parecido.
Era ainda sonhar muito, mas, apesar disso, encontrei o ideal dos meus sonhos.
Quando encarei com Virgílio pela primeira vez, meu coração disse-me baixinho:
“Ei-lo aí está, o invasor! Prepara-te, pobre fortaleza, que vais ser tomada
de assalto e conquistada!” Rendi-me logo ao primeiro ataque – o seu primeiro
olhar venceu-me. Não sei o que me segredou estar ali naquele moço, tão sério
e tão amável, quem devia ser o meu companheiro no risonho mundo, que os olhos
da minha alma, e os meus sentidos ainda mal acordados, pressentiam com frêmitos
de felicidade.
Eu era um bom partido: além do dote, havia de herdar muito de minha avó;
já não tinha pai nem mãe. Esta última desgraçada circunstância era ainda considerada
uma vantagem pelos burgueses mal-educados, que vêem na sogra e no sogro os
principais inimigos da sua tranqüilidade; como se a tranqüilidade absoluta
fosse coisa possível no casamento comum.
O casamento é quase sempre um duelo, em que um dos dois adversários tem de
ser vencido; os sogros nada mais são que as testemunhas oficiais, imediatamente
interessadas na luta. O meu dote tirava-me pois da ridícula situação em que
se acham muitas moças, coitadas! que não podem, como eu podia, escolher noivo.
Virgílio, pelo seu lado, era também um excelente partido; de sorte que nenhum
de nós dois teve de representar, nas salas em que nos encontramos e namoramos,
o triste e odioso papel de caçador ou de caça.
Meu coração não me enganara quando mo apontou como o ente destinado a iniciar-me
na vida sexual. Desde o nosso primeiro encontro, senti logo que ele pensaria
em mim com insistência, e comecei a associá-lo a todos os meus devaneios de
donzela; comecei a amá-lo. A flor da minha cândida feminilidade expandia-se
enamorada, ao idílico frêmito das asas de outro, que lhe esvoaçavam em torno.
Caía então em longas cismas deliciosas, suspirava sem saber por quê, dormindo,
abraçava-me aos travesseiros, estendendo os lábios à procura dos beijos de
alguém, que meus braços e meu colo reclamavam com impaciência.
E era sempre e só com Virgílio que eu tinha desses sonhos. Quando ele me
pediu em casamento, passei a noite inteira a chorar de alegria. Toda eu palpitava
ao anelo daquelas núpcias. Os seus meses de nosso namoro pareceram-me séculos
de invariáveis mágoas, tanto eu morria por poder confiar-lhe toda a minha
ternura e dar-lhe toda a minha dedicação. Sentia-me ansiosa para lhe mostrar,
para lhe provar, quanto eu era meiga, pura, casta; para lhe provar quanto
e quanto o amava; para lhe mostrar por palavras, e por atos, e por ações de
todo o instante, e por toda, toda a vida, tudo aquilo que eu sentia e que
até aí não me permitira o pudor que lhe dissesse ou demonstrasse. Oh! Que
loucura apressar essa época feliz!
E amei-o, amei-o com todo o entusiasmo de minha alma desejando-o mais e mais
de dia para dia, vendo nele o melhor, o mais perfeito dos homens, o único
digno de ser amado, o único que eu amaria sempre. * * *
E quanto é belo o amor de uma virgem! Quanto ele é mais forte, mais sincero
e mais corajoso que o primeiro amor do homem!
O adolescente só vê o seu primeiro sonho de amor através do prisma da poesia;
todo o homem é poeta nos arroubos da puberdade; não deseja possuir a mulher
que ama, quer ao contrário divinizá-la, fazer dela um ídolo sagrado, diante
do qual se ajoelhe compungido e contrito, sem lábios, e sem voz, e sem mãos,
senão ára a divina prece; sem olhos senão para as estrelas confidentes do
seu enlevo.
E ela
– não! a mulher desde o seu primeiro amor de donzela, já é a mulher, já é
a carne, já é o pecado. Menos dominada pela poesia ideal, volta-se mais para
o paraíso dos céus. Não vê no homem desejado e amado um ídolo venerando, mas
nele vê o senhor e dono do todo o seu ser.
O ideal existe sempre, apenas o dela é mais natural e humano. O homem na
puberdade, ama só com o espírito; a manifestação do seu amor é um transbordamento
de resíduos de leituras romanescas e reminiscências poéticas. O seu primeiro
amor nunca aproveita para a geração. É muito raro, é raríssimo, encontrar
um homem que constituísse casal com o seu primeiro amor; em geral todo o pai,
todo o chefe de família, tem, guarda, e conserva, depois do casamento, escondido
aos olhos da mãe de seus filhos, a saudade e o culto daquela a quem ele consagrou,
na puberdade, as poéticas e suspirosas primícias do seu coração. E a virgem,
essa ama logo com todo o seu ser, com todo o seu corpo imaculado.
E goza em sentir-se pronta a dar esse mimoso corpo, todo inteiro, ao carnal
despotismo do seu amante; goza em senti-lo ameaçado pelas mãos sensuais que
se estendem avidamente para ele; goza em abandoná-lo, vencida, e deixá-lo
invadir, rasgar, e deixá-lo alterar todo transformando-o de um corpo de virgem
em um corpo de mulher.
Ela prevê que o homem não se modificará fisicamente com o novo estado que
começa no leito nupcial; ele era já um homem e continua a ser um homem como
dantes. E ela? ela vai transformar-se toda, invadida pelo amor até às entranhas;
ela sabe já que os seus delicados pomos virginais avultarão, adquirindo novas
curvas; que os seus estreitos quadris de donzela ganharão voluptuosas protuberâncias;
que o seu fino pescoço de criança vai carnear-se, formando uma garganta cheia
de ondulações misteriosas e sedutoras, um branco e tépido ninho para os beijos
dele; e que seus olhos se rasgarão, banhados de novos fluidos de volúpias,
e que seus olhares serão outros e outros os seus sorrisos, depois do amor
consumado; e que seu ventre enfim vai ser consagrado pela maternidade, e seu
sangue transformar-se em leite e seu amor transformar-se em vida. Oh! Pertence-lhe
o amor muito mais do que ao homem! O amor no homem é um incidente e nela é
um destino, é a missão principal de sua vida. O amor pode nascer ou não no
homem e pode abandoná-lo sem deixar sinal de raízes; na mulher apodera-se
de todo o seu ser, invade-lhe as entranhas, e nelas cresce, enfolha, floreja
e frutifica.
E por isso, porque nesse amor de uma donzela entra já a idéia do sacrifício
de todo o seu corpo; por isso que ele é mais da terra, mais natural e mais
humano; por isso esse amor é sem dúvida melhor que o amor do homem, pois que
este precisa para manter-se dos socorros da ilusão e do ideal.
E é por isso ainda que nós mulheres amamos, relativamente, com mais igualdade
e mais firmeza que o homem. Em qualquer casal é sempre ele o que primeiro
afrouxa de entusiasmo no amor, sendo aliás quem principia com mais intensidade
e com mais ímpeto; ao passo que a mulher, passiva desde o berço, escrava por
natureza, só chega, em geral, a enfastiar-se do seu companheiro, quando este
já não preenche, como homem, os requisitos de sedução, que no mister procriador
a natureza exige em benefício do filho.
Esta última razão é um dos pontos capitais da insignificância do casamento
como ele está instituído. O encanto, que namora, que aproxima dois indivíduos
de sexo oposto, empenhados inconscientemente na formação de um novo ser, é
coisa muito mais importante do que parece à primeira vista.
Para que o filho saia um ente perfeito – forte, inteligente e belo – é indispensável
que venha em conseqüência de um perfeito amor. A natureza, sempre amiga e
previdente, prepara o terreno para os amantes que têm de pagar o delicioso
tributo da reprodução – dá à juventude os atrativos da beleza e a sedução
da força e da inocência, como dá à flor o brilhante matiz, a frescura e o
perfume, com que ela chama o trêfego inseto condutor do pólen. Mas, quando
assim não seja, quando mulher ou homem não tenha algum deles verdadeiros atrativos
e reais encantos, o amor, isto é, o instinto da conservação da espécie, substitui
no espírito do outro, com a imaginação, os sedutores atributos que faltam
na pessoa amada.
“Quem o feio ama, bonito lhe parece”, diz o provérbio, e diz a verdade. Não
é, pois, indispensável, para a perfeição do filho, que a mulher seja deveras
formosa e o homem um perfeito ideal do amor; indispensável é que eles se amem
de fato, porque, se assim acontecer, no momento capital da irresistível atração
de um para o outro, ela representa para ele a primeira mulher do mundo, a
mais sedutora, a mais terna, a mais amável, e ele representa para ela o melhor
dos homens, o mais nobre, o mais apaixonado e o mais digno do seu amor.
Nestas condições, o filho será por força de regra, não como são os pais,
mas um ente tão perfeito como eles mutuamente se julgavam, convictos, na providencial
ilusão do seu desejo. Donde se conclui que a formação de um filho, rigorosamente
perfeito, isto é, que a garantia da seleção humana e o aperfeiçoamento da
espécie, dependem mais da imaginação dos pais do que das suas verdadeiras
virtudes e das suas qualidades físicas. Mas, pergunto eu agora, essa ilusão
pode existir sempre, entre os dois mesmos indivíduos, durante toda a sua existência
íntima de casados? Depois do nascimento e da amamentação do primeiro filho,
o homem continuará a ver na esposa a mais desejável de todas as mulheres,
e ela continuará a ver no marido o melhor e superior de todos os varões? Não!
Para isso seria preciso a possibilidade de um novo período de fascinação amorosa,
de namoro, e uma nova expectativa de lua-de-mel. Para isso seria preciso que
os dois se desejassem de novo como se desejaram da primeira vez, e que se
atirassem de novo nos braços um do outro, com o mesmo primitivo entusiasmo,
com o mesmo ardor, com a mesma ilusão.
Ora, como não é possível obter de novo essa ilusão, todo o casal, depois
de criado o primeiro filho, compõe-se de dois desiludidos. Mas, se, para que
o filho seja perfeito, é indispensável aquele conjunto de circunstâncias auxiliares,
e, se o destino fisiológico do homem é procriar, aperfeiçoando a sua espécie,
segue-se que – ter um segundo filho, com a mulher inutilizada pelo primeiro
– é um crime perante as conveniências gerais da espécie, e é um crime perante
os interesses particulares do segundo filho, que será injustamente lesado,
que será privado das regalias e das vantagens naturais de seu irmão mais velho.
Mas isto é a execrável lei dos vínculos e morgadios prevalecendo ainda fisiologicamente
na família! O segundo filho, concebido já dentro do período da desilusão dos
cônjuges, é um brutal atentado contra a natureza!
Entretanto, essa mesma mulher, agora inapta para despertar no pai de seu
filho aquelas favoráveis ilusões que, aos olhos dele, faziam dela a mais desejável
das mulheres, pode ainda acordar noutro homem, com quem nunca viveu na intimidade
procriadora, os mesmos fortes desejos, o mesmo ardor, a mesma febre de posse
carnal, que dantes levantara no primeiro. E este, que já não serve para encher
de sonhos de amor a fantasia da mãe de seus filhos, e talvez nesse momento
o objeto dos anelos de outra mulher, que o ronda enamorada, e nele vê o ente
escolhido pelo seu desejo, o eleito da sua carne, o único colaborador que
lhe convém para a sua missão reprodutora. A sociedade, porém, não quer que
se aproveitem esses dois indivíduos, ainda tão úteis à geração, e obriga-os
a ficarem perniciosamente ao lado um do outro, contra todas as leis da natureza.
Ora se tudo aquilo que for contra a natureza é imoral e vicioso, o nosso
casamento e, passada a crise do primeiro filho, nada menos do que uma condenável
imoralidade.
VIII
O casamento um ato imoral! Ó meu Deus, a que triste conclusão me arrastaram
os meus raciocínios!
Imoral o casamento! – logo, todo o homem ou toda a mulher que persiste ao
lado um do outro, depois da amamentação do primeiro filho, é um ente imoral?
E minha filha, minha pobre Palmira, teria de ficar eternamente solteira,
privada dos seus direitos naturais de mulher, ou teria de ser uma criatura
imoral, quer tomando para companheiro de vida um amante, quer aceitando um
marido?… Que horror!
Seria preferível conservá-la virgem, ou seria isto ainda maior atentado?
Se o casamento é imoral porque é contra as leias da natureza, o celibato
casto também o é pela mesma razão.
Conservá-la virgem! Mas conservá-la virgem seria matá-la por dentro, secando-lhe
com a abstinência forçada a vida dos seus mais importantes órgãos, os órgãos
direta e indiretamente empenhados na procriação!
Mas uma mulher é toda ela, dos seus pequenos pés brancos e fracos, aos longos,
cetinosos e tépidos cabelos, um simples aparelho de amor!
Tirem-lhe o que foi formado para o conjunto do mister propagador, e o que
fica?
Sim! por que tem ela os quadris mais amplos e volumosos que o homem? por
que tem as coxas grossas, as mãos mimosas, e pele fina? por que tem peitos
tão doces e tão macios? por que tem os lábios vermelhos e a boca livre e desembaraçada
de barba, senão para dar beijos? e por que tem o rosto liso e rosado, senão
para provocá-los e recebê-los? por que tem os olhos súplices, lamentosos,
banhados em ternura e desejo? por que tem os cabelos tão compridos e tão perturbadores?
e por que uma longa existência, de menina a octogenária, desde a primeira
boneca ao último netinho, ela só viveu para a carícia e para o amor? e só
teve uma função real e constante – amar, abraçar, beijar?
Não! minha filha não ficaria assim perdida para o seu verdadeiro destino
de mulher!
* * *
Mas, se o casamento como a mancebia eram ambos imorais e não podiam proporcionar
a felicidade que eu sonhava para ela, Palmira precisava de um novo cooperante
genésico todas as vezes que tivesse de ser mãe. E isso, valha-me Deus! seria
a mais completa e feia prostituição; seria perdê-la irremediavelmente para
a moral e para a sociedade! Oh! só agora, depois de pensar em tudo isto, é
que vejo quanto fui casta e quanto fui boa; quanto fui sacrificada e quanto
fui generosa! Que me não ouçam as mulheres fracas e vulgares; perder-se-iam
com a minha dolorosa filosofia. Mas as fortes, as espartanas do lar doméstico,
se algum dia souberem do segredo destas confissões, que se consolem com a
minha heróica desgraça, porque só essas compreenderão as orgulhosas lágrimas
que chorei. Triste de mim, pobre mãe, cujo único ideal na vida era agora a
inteira felicidade de minha filha, e acabava de compreender que semelhante
felicidade era impossível, tanto no celibato casto, como no matrimônio, como
na concubinagem, como na prostituição. E fora disso, nada havia a explorar.
Que desespero! * * *
Cheguei a lembrar-me do Mormonismo, a amaldiçoada seita polígama de José
Smith. Mas, no dogma dos mórmons, o caso essencial era precisamente contrário
ao que me parecia indispensável à felicidade fisiológica da mulher e às conveniências
individuais do filho. Lá o homem tem o direito de tomar quantas esposas lhe
apeteçam, desde que as possa manter; a mulher, porém, essa há de contentar-se
com um só marido, se é que se pode chamar um marido a um homem partilhado
por vinte esposas. Um vigésimo de marido!
Ora, se um achava eu insuficiente para bem gerar todos os filhos de uma mulher,
quanto mais a vigésima parte de um! Entretanto, lendo de boa-fé a exposição
dos princípios filosóficos e religiosos dos mórmons, abalei-me com certos
preceitos da moralidade conjugal por eles estabelecida e observada. Afirmam
com orgulho que, no mundo civilizado, são os únicos bons e honestos cumpridores
do sagrado mandamento de Deus: “Crescei e multiplicai-vos”, porque um varão
pode procriar duzentos filhos, e uma mulher nunca mais de vinte.
Como, pois, exigir que seja uma só mulher a mãe de todos os filhos que produza
um homem, quando precisa ela de dois anos para a gestação, parto e criação
de cada um?
Não será isso constranger o marido a uma destas três coisas: – ou condenar-se
à esterilidade forçada, para não faltar a fé conjugal;
ou transigir das regras da boa higiene, aproximando-se da consorte nos períodos
em que não deve;
ou procriar fora do casal o que lhe fará ser pai de alguns filhos legítimos
e, ao mesmo tempo, de muitos e muitos filhos inconfessáveis?
Não seria melhor, mais digno e mais generoso, argumentam eles, que o homem,
em vez de ter uma só mulher legítima e várias concubinas de ocasião, e que,
em vez de ter filhos reconhecidos e filhos abandonados, aceitasse corajosamente
as imposições do seu organismo e vivesse claramente, à luz da legalidade,
com todas as suas consorciadas, sem subterfúgios desleais e dissimulações
ridículas?
E os mórmons justificam-se com os exemplos da Bíblia: Lamech, filho de Methusael,
teve duas mulheres – Ada e Zilia; Jacob quatro; Abrahão muitas mais; David
todas as que herdou de Saul, e Salomão nunca menos de mil. E entendem que
só a poligamia pode realizar o grandioso fim do matrimônio – multiplicar e
apurar a espécie; e que ela é a regra instintiva e natural em toda a extensa
ordem dos mamíferos que povoam a terra, e que ela é ainda a garantia da felicidade
conjugal e dos direitos fisiológicos e sociais da descendência. Não há dúvida!
Tudo isso pode ser muito justo e muito razoável, apenas acho que os senhores
mórmons legislaram conforme os seus interesses de homem e conforme os interesses
da sua descendência, mas sem pensar absolutamente nas delicadas conveniências
morais e físicas da mulher. E como a minha única preocupação era o interesse
de minha filha e não o do marido que ela viesse a ter, vi e apreciei o revolucionário
dogma social pelo lado contrário ao ponto de vista dos autores, o que fez
com que a minha impressão fosse diametralmente oposta à deles. De resto, quando
fosse com efeito o casamento polígamo o melhor e mais aceitável de todos,
iria eu carregar com Palmira para Salt Lake City, abandonando a minha pátria,
os meus amigos e os meus interesses no Rio de Janeiro? E para quê? para a
levar a um sultão? para a deixar cair no serralho de Utah, como se deixasse
cair uma franga dentro de um galinheiro? Não! De tudo que li sobre os mórmons,
só uma coisa me aproveitou, foi o desejo de consultar a Bíblia a respeito
do que era possível fazer pela felicidade de minha filha. E aí, sim, encontrei
afinal a chave do problema que me atormentava. * * *
Foi na Bíblia, foi nessa inesgotável fonte de consolações para os que sofrem,
foi nesse eterno poema de amor, que me orientei sobre o único caminho que
tinha a tomar. Depois da lição dos capítulos XII e XV do Levítico, convenci-me
de que o mal do nosso casamento não estava precisamente na monogamia, mas
só no meio de exercê-la; convenci-me de que um marido, para não perder a ilusão
do seu amor conjugal, precisa afastar-se da mulher em certas ocasiões. Eis
tudo! Como afinal é sempre intuitiva e simples a base dos maiores problemas
da nossa vida! Mas prossigamos: A eterna permanência de um homem ao lado da
esposa obriga-os a prosaicas intimidades inimigas do amor, (amor sexual) e
acaba fatalmente por azedar-lhe o gênio e trazer a ambos o fastio, o tédio,
a completa relaxação do desejo, e afinal a explosão dos caracteres em perene
atrito, e as brigas, a troca violenta de injúrias, e, muita vez, se os desgraçados
por falta de educação não souberem conter os seus ímpetos nervosos, o pugilato
e até o homicídio. “L´amour finit par s’aigrir, comme le vin qui
reste trop longtemps en bouteille”, reza a velha filosofia dos provérbios.
O primeiro ponto da minha questão era, pois, fazer desaparecer a imoralidade
de dentro do casamento monógamo. Ora, este casamento era imoral e trazia o
tédio e o cansaço por parte de cada um dos cônjuges, só porque depois do desempenho
do primeiro filho, o pai e a mãe incompatibilizavam-se entre si para a concepção
perfeita de um novo descendente. Tratei pois de descobrir em que consistia
a causa dessa incompatibilidade. Não foi preciso grande esforço de inteligência
para dar logo com ela: É que o entusiasmo sensual, o amor, de um pelo outro
consorte, era um puro produto da imaginação e do desejo de ambos, e desde
que os dois se não separavam nunca, nem só se podiam desejar de novo, como
igualmente não podiam manter, de parte a parte, a mútua e cativante impressão
que os havia ligado.
O instinto da conservação da espécie, que é o amor, deve ser de qualquer
modo tratado como o instinto da conservação pessoal, que é a fome. Não há
estômago que resista a faisão-dourado todos os dias; o melhor acepipe, se
não for discretamente servido, enfastiará no fim de algum tempo. O mesmo acontece
no matrimônio: os cônjuges acabam invariavelmente por se enfararem um do outro,
não pelo uso que fazem do seu amor, mas pelo abuso mútuo da convivência e
da ternura.
Se tens um prato predileto, que se dá bem com o teu paladar e com o teu estômago,
e o qual não podes ver sem sentires a boca lubrificada pelo apetite, não abuses
desse estimável prato, para que ele se não inutilize para o teu desejo, e
para que possas continuar a saboreá-lo com o mesmo gosto; e principalmente
não comas dele sem boa vontade. A pessoa amada ganha sempre valor e novo prestígio
aos olhos do amante, quando dele se afasta por algum tempo. É nessa reforçadora
ausência que ela é mais desejada e querida. Dois amantes, inopinadamente arrancados
dos braços um do outro e desunidos por um pequeno espaço de tempo, continuarão
a amar-se e a cobiçar-se com a mesma primitiva intensidade de antes da posse;
enquanto, deixados tranqüilamente juntos, na mesma casa, na mesma mesa, na
mesma cama, no fim de alguns meses já nenhum dos dois enxergará no companheiro
os elementos de sedução que os inodou sacramentalmente, e cada um há de perguntar
de si para si, com a mais sincera estranheza, por que diabo se apaixonou por
aquela criatura que ali está a seu lado, a ponto de unir-se com ela para sempre,
por um voto eterno?
E tanto assim é, que, no caso, infelizmente tão comum, de homens casados
que mantêm uma concubina fora da casa em que moram, e com a qual não convivem
todos os dias, nem todas as noites, mas que freqüentam a furto, uma vez por
outra, amam sempre e sempre, dado mesmo a hipótese de igual valimento físico
entre as duas, muito mais a amante do que a mulher legítima, e são por ela
capazes de sacrifícios e esforços que já lhes não merece a esposa. Dir-me-ão
alguns que é porque mesmo ele nunca amou deveras a consorte; que se enganara
quando supunha amá-la, e que só depois do casamento, já irremediavelmente
tarde, reconheceu o seu erro; e que na outra mulher fora encontrar afinal
a “afinidade eletiva”, ensinada por Goethe, e pois sentira-se irresistivelmente
arrastado para ela. “O amor que pôde extinguir-se não era amor!” dir-me-ão
outros com o poeta. Pois sim! era bastante que aquelas duas mulheres trocassem
as posições entre si, para que o decantado amor também trocasse de objetivo.
Fosse a concubina morar com o amante, conviver com ele noite e dia; e começasse
a esposa a ser visitada pelo marido somente de longe em longe, em furtivas
escapulas, e veríamos qual delas seria, no fim de algum tempo, a mais amada
e desejada – a amante de cama e mesa ou a esposa proibida?
Há muito exemplo de marido, que só vejo a amar deveras à mulher, depois que
esta lhe fugiu para os braços de outro, ou de outros. Quando um homem e uma
mulher são condenados por lei a viver eternamente inseparáveis, o corpo pode
ceder a tal violência, mas a imaginação, que é a mãe do amor, essa reage e
foge, põe-se ao largo, onde as suas asas encontrem livre o espaço e o vôo
franco. O espírito do homem é por natureza independente e só se poderá escravizar
a uma mulher, o que não é tão comum, quando o faça, não por lei de qualquer
espécie, mas por livre e espontânea vontade.
A legítima esposa, que vive inalteravelmente ao lado do marido, pode, a força
de virtude e de bondade, conservar e até desenvolver a estima, a consideração
e o respeito, que ele lhe tributa; pode ser amada moralmente. Mas o outro
amor, o sensual, esse belo instinto tão necessário ao bom resultado da progênie,
esse vai para a mulher ilegal, para a inconfessável amante, cujos beijos são
mais apreciáveis, porque são mais raros, cujas horas de convivência são preciosas,
porque são contadas, minuto a minuto, e cujo ligeiro contacto de corpo é sempre,
para ele, um gozo conquistado, seja pela ternura, seja pelo dinheiro, e nunca
um dever imposto por lei ou um direito exercido com sacrifício. Estava afinal
achado o X do meu grande problema. Consistia em nada mais do que uma pequena
inversão de princípios. O meu raciocínio concludente era tudo o que há de
mais simples; era o simples:
Um casal vulgar só pode ser feliz enquanto dura de parte a parte a ilusão
do amor sensual que o determinou; uma vez esgotada a provisão de amor ou de
ilusão, o casal deixa de ter razão de ser e deve ser dissolvido. Logo, a mulher,
para ser fisiologicamente feliz, precisa substituir o seu amante por um novo,
desde que ele não continue a exercer sobre ela o fascinante prestígio que
a cativou. Ora, sendo de todo impossível substituir assim um esposo, o que
restava a fazer? – Substituir a ilusão. O ator seria sempre o mesmo, os papéis,
representados por ele aos olhos da consorte, é que teriam de variar e seriam
sempre novos. Minha filha, pois, conhecendo um só homem, teria nesse homem
uma bela e sedutora variedade de amantes. Mas, como chegar a semelhante resultado?
Como obter na vida prática a execução de tão revolucionário sistema?
Como vencer a exigência dos velhos costumes e arraigados hábitos domésticos
e sociais? Como poderia eu dispor assim de meu genro e governá-lo na sua íntima
vida conjugal?
Como conseguiria reformar-lhe ou reforçar-lhe, de quando em quando, as suas
qualidades insinuativas e os seus dotes de sedução e encanto, para desse modo
manter o amor de minha filha sempre no mesmo grau de entusiasmo?
Eis o que principiei a inquirir com alma e coração, até chegar a um resultado
satisfatório, como exporei neste manuscrito, se Deus para tanto me conservar
vida e saúde.
Posso afiançar desde já é que ao amor de mãe nada é impossível por mais transcendente
que pareça, quando se trata da felicidade do filho; e que eu, longe de desanimar
com o peso da tarefa que me impunha, sentia a minha confiança cada vez mais
segura e forte nas energias do meu coração materno.
IX
A invariável convivência matrimonial é coisa muito séria, é a grande razão
da corrente infelicidade doméstica, é a causa imediata da fatal desilusão
dos cônjuges, mesmo daqueles que se casam por amor legítimo e verdadeiro,
como eu me casei; é fonte de inevitável desgraça para a vida inteira, desgraça
que os noivos ainda mais agravam, imprudentemente, com os recursos artificiais
e hipócritas do namoro, quando aliás a mocidade, a graça natural e o amor,
deviam ser os únicos agentes da atração que os ajunta e abrocha. Quando um
moço, ou uma moça, quer casar, qual é o seu primeiro cuidado? – Enfeitar-se;
ou melhor – disfarçar-se. Ela recorre às torturas do espartilho para fazer
a cinta inverossimilmente fina, às torturas dos sapatinhos apertados para
fazer o pé microscópico; recorre aos arrebiques, ao pó de arroz, às opiatas,
ao dentista, ao cabelereiro, à modista. De feia pode fazer de si uma dessas
elegantes bonecas de salão, por quem às vezes os homens se enfeitiçam. Ele,
por outro lado, trata logo de dar brilhantina e cosmético ao bigode, calça-se
com esmero, e estuda os meios, não de conseguir a própria felicidade e a daquela
que pretende para esposa, mas de tornar-se irresistível dançando a valsa;
e põe monóculo, e faz versos, ou arranja quem lhos faça. E ambos, depois de
bem enfrascados em perfume, depois de bem adornados e convertidos no que não
são, esforçam-se, cada qual com mais empenho, em esconder aos olhos do outro
os seus defeitozinhos e as suas pequenas misérias de entes civilizados.
Ela, coitada! para de si dar cópia de um ser poético e vaporoso, recita poesias
sentimentais ao piano, fala de coisas românticas que pescou de relha, levando
a comédia ao ponto de não querer à mesa, se houver rapazes presentes, quase
que tocar nos pratos; e suspira, e requebra os olhos, e sibila os ss, e remexe-se
toda, e toma langorosas posturas estudadas; e quando anda, e quando fala,
e quando dança, e quando pousa na cadeira, é sempre com a mesma simulação
e fazendo mil esgares de faceirice, mil trejeitos de ingenuidade e ao mesmo
tempo de provocação amorosa.
Ele, bem barbeado, cheiroso, limpo e janota, afeta grande pureza de costumes
e de maneiras, escolhe para a conversa assuntos finos e termos convenientes;
faz-se terno, cordato, circunspecto, com um gênio de anjo; e fala do seu amor
e do seu futuro conjugal, com tal doçura e tão voluptuosa virtude, que uma
donzela ao ouvi-lo imagina logo que a vida, em companhia de semelhante puritano,
há de ser uma nova edição, correta e aumentada, do paraíso, antes da gulodice
da maçã.
E assim, mutuamente enganados, mutuamente iludidos e engodados – casam-se.
Essa ilusão servirá para a garantia do primeiro filho. Está muito bem! Mas
ainda os dois falam entre si e com os amigos em “lua-de-mel”, e já cada um
por sua conta começa a descobrir no companheiro imprevistas particularidades,
reais e prosaicas, que vão surdamente desdourando o insubstituível prestígio
poético que exerciam um sobre o outro.
Hoje um flato mal disfarçado, amanhã um ligeiro transbordamento de humor
bilioso, em seguida uma cólica desmoralizadora, e em breve o marido já se
não esforça por esconder os seus calos e a sua dispepsia, nem a esposa tem
o cuidado de caracterizar-se de mulher bonita: já não mete os cabelos em papelotes
para os trazer crespos sobre a testa, já não aperta com sacrifício a cintura
e os pés, já não arma aqueles divinos sorrisos provocadores que parecia fazerem
parte integrante da sua fisionomia, e já não arranja aqueles fascinantes olhares
voluptuosos, que foram talvez o que mais decisivamente determinou a conquista
do homem que agora é seu marido. E as pequenas e apoquentadoras misérias do
gênio e do caráter, que se vão revelando dia a dia? E os egoísmos feminis?
E os desleixos do corpo, que não chegam a ser desasseio, mas que já não são,
decerto, o sedutor perfume que ambos sentiam um do outro, durante o período
do namoro, e sob cuja influência se amaram, e se desejaram, e se tiveram?
O cheiro! Que importante papel representa ele no amor conjugal e nos destinos
da família!… As secreções da pele são às vezes um terrível inimigo das ilusões
do nosso amor de hoje, mesmo aquelas que a natureza em nós criou ingenuamente
para lubrificante estímulo dos sentidos. É que a natureza não contava com
a degeneração do olfato, produzida pelo abuso, pelo vício, dos perfumes, das
essências, dos desinfetantes e vinagres aromáticos, e mais das balsâmicas
pastilhas de serralho e do odorante fumo do tabaco. O homem e a mulher, que
se casam, só vêm a conhecer um do outro o verdadeiro cheiro, depois de rigorosamente
unidos pelos inabrocháveis fechos do matrimônio, quando está mais que provado
que, no amor, o cheiro particular do indivíduo tem ação tão poderosa como
a cor da sua tez e dos seus cabelos, como o timbre da sua voz, a expressão
do seu olhar e da sua boca, o feitio do seu corpo e o caráter geral do seu
modo de ser.
O olfato tem as suas idiossincrasias, tem as suas antipatias e as suas inclinações,
como as têm o ouvido, o paladar, os olhos e o tato. Nos esponsais, os direitos
desse sentido, tão respeitáveis como os dos outros seus congêneres, são perfeitamente
ludibriados pela perfumaria de toucador, sem calcularem os noivos o perigo
que com isso corre a sua futura felicidade doméstica.
O cheiro natural do corpo é por vezes o bastante para desfazer o laço amoroso
de um par, mormente quando um bom perfume artificial, usado com insistência
e regularidade, tenha, de parte a parte, como que servido de medianeiro durante
o tempo de namoro. Os perfumistas são, sem dar por isso, grandes promovedores
e grandes dissolvedores de casais. O gosto e o desgosto do olfato têm máxima
importância na questão do amor genesíaco. A mulher, durante certos períodos
fisiológicos, deve ser para o marido um ente inacessível, deve ser sagrada;
já não digo só com respeito à comunhão sexual, mas ainda para a simples coabitação
do leito ou do quarto. Ele, durante esse tempo, nem só não lhe deve tocar
no corpo, como até nem dela se deve aproximar. Eu digo – sagrada: a Bíblia
lhe chama – imunda.
E já explicou um filósofo humorista que o casamento era sempre uma permuta,
mas não de almas e corações, e sim: durante o dia – de maus humores; durante
a noite – de maus odores. Não convenho nesta jocosidade de mau gosto, mas
a mulher, com efeito, naquelas ocasiões, torna-se repulsiva pelo cheiro. A
mesma natureza como que assim está insinuando que o homem deve então afastar-se
da esposa. O homem, porém, é teimoso e deixa-se ficar; fica por falsa compreensão
dos seus deveres de ternura, ou fica por negligência e preguiçosa sujeição
aos hábitos.
E a mulher afinal torna-se grávida, e o imprudente continua a dormir ao lado
dela. Vêm as enojosas manifestações da crise gestante, as dores matrizes,
os enjôos, as desagregações pituitárias, os vômitos, o mau hálito, as aberrações
histéricas do gosto – e o teimoso não se despega. E começa então para os dois
uma existência de indecoroso promiscuidade; já não escondem absolutamente
um para o outro os seus bocejos e as suas mais repulsivas expansões do corpo.
É como se não estivessem juntos; cada qual, sem poder fugir à indefectível
necessidade do isolamento – pois que todo o homem precisa de horas de solidão,
como precisa de horas de sono, de horas de trabalho e de horas de convivência
e prazer – e, não podendo evitar nos seus lazeres a presença do companheiro,
abstrai-o do espírito, e acaba por ficar só, inteiramente só, ao lado dele.
E se um dos dois adoece gravemente, fica o outro a servir-lhe de enfermeiro,
a mudar-lhe as roupas enxovalhadas, a aplicar-lhe vesicatórios, a dar-lhe
purgantes e a ajudá-lo em todos os mais íntimos misteres. Mas onde está, que
fim levou, aquele airoso dançador de valsas, aquele gentil mancebo, que não
seria capaz de exibir-se a ninguém, e muito menos à noiva, senão depois de
caprichosamente apurado na roupa, no cabelo, nos dentes e nas unhas? aquele
irresistível galanteador, que dizia coisas tão finas e que fazia versos tão
lindos, e trescalava a sândalo ou cananga-do-japão? E onde está aquela mocinha
vaporosa, que era toda graça, delicadeza e perfumes, e que mostrava uma cintura
e uns pezinhos tão provocadores, e uma cabeça tão primorosamente penteada,
e um colo, e uns olhos, e uma boca, tão misteriosos e divinos?…
– Oh! Isso foi durante o tempo do namoro! dizem eles. – Hoje somos “papel
queimado!” Hoje somos “feijão com carne-seca!”
– Muito bem! replico eu; mas os dois que se amaram eram aqueles dois que
desapareceram e não vós, que agora aí estais defronte um do outro, sem saber
por que e para quê!
– Oh! mas agora nós nos estimamos muito mais. Se desapareceu a ilusão do
amor, ganhamos em compensação um pelo outro uma bela amizade que dantes nos
não ligava.
– Mas, adorável casal, tu te não constituíste para formar dois bons amigos
íntimos, que nenhuma reserva têm entre si e que só desejam conservar a sua
boa amizade! Tu, mancebo desiludido, e tu, querida dama despenteada, não vos
unistes pelos laços da amizade, mas sim pelos laços do amor, o que é muito
diferente; e, uma vez que já não existe amor entre vós, continuai amigos,
mas separai-vos de corpo; que vá cada um procurar além novo consórcio para
o seu amor, porque ainda podeis ser aproveitados para a única verdadeira missão
que a natureza exige de vós, procriar, e procriar bem.
– Ora, respondem eles. Mas nós somos felizes assim!…
– Não sois tal! Ah! eu conheço já de longa data essa confissão de felicidade
a vosso modo! Vós, maridos, sois todos muito felizes; mas quem tomar a sério
os vossos próprios conselhos, não se casará nunca, porque cada um de vós,
enquanto pela prática justifica o casamento, vai segredando pela boca pequena,
ao ouvido de cada um dos amigos: “Eu, cá por mim, não me posso queixar; fui
feliz! Não tenho que dizer; mas, aceita o meu conselho – não te cases! Não
te cases nunca! É um conselho de amigo, podes crer!”
E repetem quase todos eles a mesma cantiga. É difícil encontrar um marido
que não tenha na ponta da língua esta frase: “Eu não me posso queixar, mas
não te cases!” sem se lembrarem os ratões de que semelhante conselho já é
uma queixa.
Que diabo de felicidade é então essa, que os casados aconselham a todos os
seus amigos solteiros que a evitem? Será isso egoísmo na ventura, ou falso
vexame de confessar a própria desgraça?
Não, a razão é outra. Quereis saber, contraditórios casados, por que assim
falais do casamento? É porque nele sois ao mesmo tempo felizes e infelizes
– felizes na vossa amizade; infelizes no vosso amor.
E sois infelizes no vosso amor, simplesmente porque sois desiludidos.
Olhai o casamento entre a gente do campo. Por que razão o camponês é mais
feliz no casamento do que a gente civilizada da cidade? É que lá na roça quando
o João da Horta vai casar com a Joana dos Porcos já lhe conhece a medida justa
da cintura, e já lhe viu os pés descalços, as unhas sujas e a cabeça despenteada;
e ela vai sabendo já qual o verdadeiro cheiro que ele tem, e quais são os
defeitos e as boas qualidades que o acompanham.
São antes do matrimônio o que são depois – não sofrem decepções! E, como
a vida exercitada e simples do campo lhes tem naturalmente conservado melhor
a integridade do corpo, e lhes tem poupado calos, enxaquecas, hemorróidas
e dispepsias, a infinidade de misérias e inconfessáveis aborrecimentos que
sobrevêm fatalmente na coabitação dos casais civilizados, quase que não existe
entre eles.
Assim, só entre os simples, ainda se encontram casados que se amam e se desejam
fisicamente depois de ter tido vários filhos; por conseguinte só entre eles
as crianças, concebidas depois do primeiro parto, seriam sãs, fortes e inteligentes,
se nas relações matrimoniais dos camponeses concorresse o indispensável elemento
poético da imaginação, do enlevo espiritual, donde tira o filho a última daquelas
três qualidades. Só esse elemento lhes falta no amor, e é por isso que o filho
do homem do campo é que sempre bem constituído de corpo, mas em geral estúpido,
ainda mesmo passando logo a conviver entre gente mais cultivada.
Em toda a ocorrência sexual, a ilusão fascinadora do espírito é indispensável
para o perfeito equilíbrio do filho conseqüente.
Concluí pois dos meus raciocínios, não que Palmira precisasse conhecer bem
o noivo antes do casamento, ou vice-versa, porque seria isso perigoso debaixo
do ponto de vista da ilusão amorosa – ela não era uma camponesa; mas que deviam
ambos conservar, eternamente intactas e perfeitas, as boas impressões, que
um do outro tivessem porventura recebido no período em que se desejaram pela
primeira vez.
A tarefa, como se vê, era mais que penosa, delicada, e de muito difícil execução;
eu, porém, estava disposta a todos os sacrifícios por amor de minha filha,
e haveria de triunfar! De resto, com que melhor poderia eu encher a vida?
A idéia de escrever estas memórias só mais tarde começou a preocupar-me o
espírito.
* * *
Mas prossigamos. Vamos ver agora como cheguei à realização dos meus ideais.
X
Na escolha mental que fiz de um noivo para minha filha, pareceu-me fosse
preferível um oficial de marinha em serviço ativo, porquanto o marinheiro
leva no casamento duas vantagens sobre os homens de outras profissões. A primeira
porque o serviço de bordo ou em alguma fortaleza o obriga a afastar-se periodicamente
da esposa, cumprindo ele assim, por dever de ofício, com o higiênico preceito
da Bíblia; a segunda porque os perigos da sua vida aventurosa, a honra militar
e a estética da farda, lhe dão certo brilho especial de antiburguesismo e
um fascinante prestígio de altivez e denodo que muito pesam nos interesses
do amor.
Nós mulheres gostamos de ver no homem amado tudo aquilo que não possuímos
nem podemos aspirar. Quanto mais varonil e másculo for ele, tanto mais nos
impressiona e atrai. A força física, a bravura, a energia de ação, e a singela
bondade do homem forte, são os dotes masculinos que mais diretamente seduzem
uma mulher bem equilibrada. Eu, que amei tanto meu marido, nunca lhe perdoei
todavia, no íntimo do meu julgamento feminil, que ele fosse de compleição
pouco mais desenvolvido em músculos do que eu. E não era fraco.
As mulheres ordinárias, que não desgostam de ser batidas pelo seu homem,
têm a sua absolvição na mesma natureza inferior da mulher. Dar-lhes pancada
é prova de falta de respeito e é brutalidade, mas não é prova de falta de
amor; antes pelo contrário é essa uma das mais naturais expansões do domínio
e do ciúme; e quer sempre dizer superioridade física. Ora, o que a mulher
vulgar exige do seu homem não é respeito, mas só amor; logo prefere a pancada
a qualquer outra manifestação menos grosseira, porém mais deprimente dos seus
interesses sexuais.
Devia, por conseguinte, o noivo de minha filha ser um oficial de marinha
em serviço ativo, e homem forte. Mas, como a força física não basta para conquistar
um amor complexo, e para manter no mesmo grau de entusiasmo o enlevo poético
de uma mulher de certa ordem, era preciso que o meu oficial de marinha, além
de são e possante, fosse inteligente, honesto, simpático e carinhoso.
E encontraria eu um sujeito nestas circunstâncias, capaz de amar minha filha?…
Por que não? Palmira tinha dezoito anos, era bonita e perfeita, bem educada,
inteligentezinha, e com um dote animador. Seria possível que não houvesse
por aí um rapaz pobre, naquelas condições, que se apaixonasse por ela, encaminhando
eu as coisas com certo jeito?
Pus mãos à obra: comecei a procurar o meu homem. Em breve, porém, convenci-me
de que sozinha não daria conta do recado, e lembrei-me de pedir auxílio ao
meu amigo, o Dr. César Veloso, de quem já prometi falar.
Cumpra-se esta promessa antes de mais nada; César Veloso era então um belo
velho de cinqüenta a sessenta anos, médico, abastado, viúvo, já sem nenhum
de seus filhos, e vivendo em companhia de uma irmã, D. Etelvina, único parente
que lhe restava e a quem ele estremecia profundamente. Foi o melhor coração
e o melhor caráter que encontrei até hoje no meu caminho. Conheci-o, como
disse, pouco depois do nascimento de Palmira, e já desde esse tempo o estimava
mais do que a meu próprio esposo, de quem ele, só por minha causa, foi bom,
leal e verdadeiro amigo.
Deu-se na minha vida e no meu coração uma coisa muito singular a respeito
desse homem: Sem nunca formular sobre ele a mais ligeira hipótese de amor
sensual, achava-me todavia tão sua amiga, amava-o tanto, que era um verdadeiro
prazer, para minha alma, senti-lo perto de mim. Quando as desilusões do meu
casamento me prostraram os sentidos e me enegreceram a existência, foi ele
o único com quem abri o coração. Falei-lhe com toda a franqueza, queixei-me
do meu destino; disse-lhe tudo quanto eu sofria, e até, ainda hoje me parece
extraordinário! chorei em sua presença, o que, juro pela felicidade de Palmira,
seria impossível suceder com outro, mesmo com meu marido.
Desde esse momento capital da minha vida, compreendi que era também amada
por ele como a irmã eleita por sua alma e por sua inteligência. E fizemo-nos
amigos para sempre, unificamo-nos em espírito, tornamo-nos moralmente inseparáveis
por um tácito consórcio de absoluta confiança um pelo outro; consórcio de
imperturbável harmonia de ideais, de alta poesia e de amor imaculado e superior
a todas as misérias da carne. E esse amor essencial e puro, que nunca fora
nem de leve perturbado pelo sobressalto dos sentidos, era um canto tranqüilo
e doce, em que meu pobre espírito repousava da infernal campanha doméstica
e dos enojos do outro amor.
Mas como se poderá explicar essa minha estranha predileção por um homem,
que não era meu parente, nem meu companheiro de infância, e quando não havia
entre nós de parte a parte o menor impulso de sexo?…
É preciso notar que eu fora sempre considerada, pelas pessoas que me conheciam,
como um caráter seco e orgulhoso. E, com efeito, não gostei nunca de revelar,
a quem quer que fosse, meus pensamentos e meus íntimos conceitos, nem mesmo
a meu marido, com o qual guardei em todos os tempos uma reserva, que ele aliás,
coitado! jamais tivera para comigo. Posso até dizer que com Virgílio fui,
no último quartel de nossa vida de casados, mais fechada e retraída do que
com qualquer outro. No entanto, era bastante demorar-me alguns momentos sozinha
perto de César, fitá-lo e descansar por algum tempo o olhar no seu olhar sereno,
franco e bondoso, para logo me acudir à boca tudo o que meu coração, tão avaramente,
trazia escondido e fechado para os demais homens.
Às vezes, espantava-me eu própria com semelhante fato e, depois de lhe revelar
os meus mais íntimos segredos, perguntava a mim mesma – como e por que exercia
aquele homem tão grande e decisiva influência sobre meu espírito? Fazia então
vivos protestos de mudar de norma de conduta daí em diante. Afinal não havia
justificativa para uma distinção tão acentuada! Chegava a parecer-me desonestidade!
Mas, na primeira ocasião, em que de novo a sós nos encontrávamos, quando dava
por mim, já o meu coração se tinha aberto por si mesmo, e despejava-se até
ao fundo em palavras de amor.
Donde vinha toda essa confiança de minha parte? donde procedia esse poderoso
e casto sentimento que a César me ligava tanto, e que em nada me parecia com
o amor que eu mantive por meu marido, nem com o que eu sentia por meus filhos?
Não atinava então com a verdadeira causa do fenômeno e moralmente supunha-me
deveras culpada. Só muito mais tarde, continuando a estudar, no meu próprio
coração, o coração humano, pude compreender, quando afinal o conheci de todo,
que não se tratava com aquele fato de um caso meu particular, mas de uma lei
comum para a minha espécie. Essa conclusão assustou-me profundamente e veio
abalar todas as minhas idéias aparelhadas a respeito da felicidade conjugal,
e, se ela já não chegasse muito e muito tarde, ter-me-ia feito sem dúvida
reformar o programa de vida, que eu com tanto empenho e tanto cuidado traçara
para minha filha.
Do resultado dessas minhas observações, vim a perceber que, sendo a procriação
um instinto, e sendo o amor um sentimento, o grande mal, ou o grande erro,
do matrimônio vulgar, consistia no disparate de querer harmonizar e unir,
para os mesmos fins, essas duas coisas distintas – sensualidade e amizade
– tão contrárias entre si, e tão antipáticas e até perfeitamente incompatíveis.
Compreendi que a mulher – para procriar, precisa de um homem, de um varão,
escolhido pelos seus sentidos; e – para amar, precisa de um amigo, de um irmão,
eleito pela sua alma e pela sua inteligência. O associado do seu corpo, em
caso nenhum, pode ser o associado do seu espírito, ou vice-versa.
Os irracionais também são, como nós, suscetíveis de simpatia e apego de amizade,
mas nunca põem esse sentimento, que neles aliás não é tão elevado e tão perfeito
como no homem, ao serviço da sua sensualidade e do seu destino procriador.
Compreendi que…
Mas não precipitemos os fatos da minha exposição. Vamos por ordem.
* * *
Como ia dizendo: Logo que me senti fraca para realizar sozinha o programa
da felicidade de minha filha, recorri naturalmente à única pessoa com quem
eu podia contar, o Dr. César. Escrevi-lhe, pedindo-lhe uma conferência em
minha casa. Ele veio no mesmo dia.
Foi uma longa prática. Referi-lhe detalhadamente as minhas apreensões a respeito
do futuro de Palmira; expus o que nesse tempo constituía o meu cabedal de
observações concernentes ao casamento, e disse-lhe afinal qual era o meu plano
resolvido. César ouviu-me, durante todo o tempo, em silêncio, com os olhos
baixos, sem desviar um só instante a sua tenção do que eu expunha. Compreendi,
pela concentração do seu rosto, que as minhas idéias e o meu projeto o interessavam
e surpreendiam extremamente.
Quando acabei, ele tomou-me as mãos entre as suas, com um gesto carinhoso
que lhe era habitual a sós comigo; meneou a cabeça e disse-me sorrindo que
– em primeiro lugar, me fazia os seus cumprimentos pela lucidez de coração
e de inteligência que eu acabava de patentear; depois, já em ar sério, falou
da minha ilimitada dedicação materna, e declarou, ao terminar, sorrindo de
novo, que, posto não acreditasse na eficácia do meu plano, pois que em absoluto
não acreditava na felicidade, punha-se desde logo à minha disposição e pronto
a entrar em campanha, na qualidade de meu ajudante-de-ordens.
Rejubilei de contente. Agradeci-lhe com um abraço sincero. Dispondo de semelhante
ajudante-de-ordens, tinha certeza da vitória! César, amoroso e dedicado como
sempre fora para comigo, havia de tomar a peito a minha causa e destruiria,
com o seu valor de homem, os obstáculos que eu não pudesse quebrar com as
minhas mãos de mulher.
– Os seus serviços, meu amigo, disse-lhe eu, vão ser desde logo necessários
para uma prévia inspeção. Inspeção rigorosa, na pessoa de quem se propuser
para meu genro. Só consentirei que se case com Palmira um rapaz perfeito,
em plena normalidade de saúde.
– Está claro!
– A menor lesão, o menor vício de organismo ou de sangue, a menor deformação
física, é o bastante para pô-lo fora de combate. Não lhe parece?
– Decerto; e desde já respondo por mim, como médico consciencioso… disse
o meu bom amigo. Mal apareça o homem, arranje, Olímpia, um meio de pô-lo em
contacto comigo, e eu me encarregarei do resto. Desde que eu declare: “Este
serve! – Este é perfeito – Este está conforme!” pode você aceitá-lo de olhos
fechados, porque não deixarei passar gato por lebre!
Ele ficou para jantar conosco, e toda essa tarde meu coração cantou vitorioso,
como se efetivamente já tivesse segura a felicidade de Palmira.
XI
Mas o homem põe, e Deus dispõe; um ano decorreu sem que eu descobrisse, para
minha filha, um oficial de marinha que lhe conviesse. Ela acabava de fazer
dezenove anos e era um mimo de graça e de inocência; amava-me extremamente,
e jurava que me faria todas as vontades – só para me ver feliz.
Coitada! – Ver-me feliz!… a mim! Como se no mundo houvesse para mim, outra
felicidade que não fosse a dela própria.
Durante todo esse ano dei festas em minha casa; comecei a receber, às quartas-feiras,
todas as semanas. Como sabiam por aí que éramos ricas, não faltavam pretendentes
à mão de minha filha; e o bom acolhimento que dispensei logo à farda de marinha
encheu-me as salas de velhos e jovens oficiais dessa milícia, com tamanha
profusão, que cheguei a recear ter inutilizado o gênero, barateando-o aos
olhos de Palmira.
Minha casa parecia já uma repartição de Marinha, e no entretanto a rapariga
não se decidia por nenhum dos oficiais. Verdade é que bem raros se me afiguravam
corresponder aos requisitos exigidos. Só um Saturnino da Rocha, primeiro-tenente,
de vinte e cinco anos, me deu vivas esperanças. Um belo moço! Mas o Dr. César
disse que ele tinha a solitária. Pusemo-lo à margem.
Com o que eu não contava foi o que sucedeu, como acontece quase sempre. Entre
os candidatos, colhidos pela rede que atirei ao mar para pescar um noivo,
veio, de mistura com os legítimos representantes daquele poético elemento,
um empregado público, de Segunda ou terceira ordem, um amanuense de secretaria,
amador de música; um verdadeiro contrabando, impingido já me não lembra por
quem. Era ainda muito moço, bonito e bem apessoado. Estudei-o de relance;
não me pareceu mau de gênio e revelou inteligência quase regular. Tocava piano
e bandolim com certa graça; falava inglês, francês e espanhol. Era pobre.
– Quem sabe?… pensei eu. Talvez apesar da idade, cuja diferença de Palmira
me parecia pequena demais, estivesse naquele contrabando um rapaz aproveitável
para os fins que eu tinha em vista… Mas, que pena! não era oficial de marinha!…
De todos os proponentes era, todavia, e sem termo de comparação, o melhor
como estampa.
Interpelei minha filha, a respeito dele, frouxamente, como por descargo de
consciência. E qual não foi o meu espanto quando a vi reproduzir fielmente
todos os gestos retraídos, que eu própria fizera quando me consultaram, nas
mesmas condições, sobre o meu defunto esposo?
Ela abaixou os olhos, corou, sorriu quase imperceptivelmente, e começou a
percorrer com os dedos da mão direita os botões do corpinho do seu vestido.
Tomei-lhe as mãos; estavam frias e ligeiramente trêmulas. Interroguei-a de
novo, e Palmira, em vez de responder, caiu-me nos braços, soluçando.
Era a coisa, não havia dúvida! Comigo tinha sido tal e qual!
– Gostas dele… Não é verdade, minha filha?… perguntei-lhe, beijando-a
na testa.
– Eu o amo, minha mãe… foi a sua única resposta.
– Tu o amas! – Sabes lá o que é isso! Queira Deus que não estejas procurando
iludir-te; iludir a ti e a mim! Não te deixes levar por falsas impressões!…
– Só com ele me casarei por meu gosto! Só com ele serei feliz!…
– Isso é o que todas nós dizemos nas tuas condições, minha filha… Mas não
te mortifiques, que, se o rapaz te ama deveras, e se estiver em condições
de casar contigo, não serei eu que a tal me oponha, porque bem sabes que só
procuro e quero a tua felicidade.
Ela, transportada, beijou-me repetidas vezes, agradecendo-me com as suas
carícias as minhas palavras.
Todavia, talvez que de nós duas fosse eu a mais comovida nesse momento. Quando
me separei de Palmira, encerrei-me no quarto e chorei copiosamente. Por quê?
Não sei dar a razão; só afianço que um doloroso sobressalto se apossou de
mim, e uma dura e fria tristeza, tristeza de velho, encheu-me o coração e
escureceu-me a vida.
Procurei consolar-me, refugiando-me na idéia da felicidade de minha filha.
Ah! pobres corações de mãe! pobres corações, que tanto sofreis para depois
ainda mais vos amesquinhardes, chorando sob o peso infamante e ridículo desta
terrível palavra – Sogra!
E apressei-me a procurar o meu amigo. Fui logo no dia seguinte à casa dele.
César, ao receber-me, percebeu a minha tristeza; compreendeu-a talvez. Mas
não me disse uma só palavra a respeito dela; apenas tomou-me a mão e afagou-a
entre as suas, como de costume.
Para bem nos entendermos, os dois, bastava-nos o olhar!
Assentei-me junto à secretária, bem perto da sua cadeira e, em voz baixa
e comovida, dei-lhe parte de tudo, e concluí, pedindo-lhe que viesse à minha
casa na próxima reunião. – O pretendente lá estaria. César prometeu ir.
E não faltou com efeito.
* * *
Tínhamos muita gente essa noite em casa. Havia concerto e depois dança. Os
uniformes da marinha, rebrilhantes de galões dourados, cruzavam-se em todas
as salas, ofuscando as casacas pretas e dando àquela minha modesta Quarta-feira,
oficiais realces de uma festa de corte. As damas afidalgavam-se, pareciam
até mais amáveis e mimosas ao reflexo das refulgentes dragonas.
Minha filha cantaria ao piano, acompanhada pelo seu preferido. Ela resplandecia
de sedução, naqueles primeiros arrulhos de pomba amorosa, que procura fazer
ninho; estava alegre, saltitante, ébria de ilusões e de esperanças.
E pensar eu que, daí a algum tempo, toda aquela gárrula confiança no amor,
toda aquela louçania de inocência e toda aquela frescura de mocidade, poderiam
emurchecer e transformar-se no que eu sofri pouco depois que me casei!…
Ah! mas eu lá estaria ao lado dela para vigiar-lhe o leito de recém-casada,
como lhe vigilara, outrora, o berço de recém-nascida. E o meu coração de mãe
tremia tanto agora, ao vê-la assim sorrir de ventura às primeiras pulsações
do amor, quanto tremera dantes, aos seus primeiros vagidos e às primeiras
lágrimas que lhe vi nos olhos.
O concerto correu bem, Palmira foi feliz no que cantou acompanhada pelo namorado,
creio até nunca lhe ter ouvido cantar com tamanha expressão. Mal deixaram
o piano, apontei o rapaz ao meu velho amigo, que começou logo a observá-lo
disfarçadamente.
Daí a pouco apresentei-os um ao outro, e não os perdi mais de vista.
César, insinuante como é, ganhou logo a simpatia, e suponho até que a confiança
do pretendente de Palmira. Vi-os passear juntos durante longo tempo, sem deixarem
nunca de conversar com o mesmo interesse. Depois tomaram uma das janelas da
saleta de estudo, e continuaram na palestra, mais à vontade. Eu, do lugar
em que estava, podia observá-los. O médico com certeza falava já de coisas
concernentes à boa disposição física, porque notei que o outro sacudia com
desembaraço as pernas e os braços, empinando soberbo a cabeça e o peito como
para dar idéia da sua perfeita compleição muscular.
Não pude deixar de rir, principalmente quando César, lá do fundo de sua janela,
me fez sinal com os olhos de que a coisa caminhava bem.
O rapaz parecia com efeito muito bem constituído. Era delgado e forte, rico
de espádua; boa estatura, pernas e braços bem proporcionados; bom cabelo,
olhos vivos, de azul forte; tez limpa, de um moreno pálido, sadio e fresco;
barba vigorosa, bem preta, luzidia e fina; unhas másculas e rijas. E os dentes
pareciam-me de primeira ordem.
Já morria de impaciência quando o meu bom César, arranchando-se comigo para
tomar chá a um canto da sala de jantar, me veio dar conta da sua missão.
– Creio que temos o homem! – declarou logo, antes de assentar-se ao meu lado.
E segredou-me depois: – Mas não dou por enquanto a minha opinião definitiva…
– Ah!…
– Ficamos amigos… acrescentou César. Ele, sabe? vai depois de amanhã à
minha casa, e, como tem gosto pelos jogos e exercícios de força e faz grande
vaidade da sua musculatura, creio que o convencerei de que deve por sistema
tomar duchas no meu estabelecimento hidroterápico. Ah! então sim, poderei
dar com segurança o meu veredicto!
– Aqueles dentes?… Reparou se são verdadeiros?
– São. Afianço!
* * *
Daí a dias, o meu zeloso ajudante-de-ordens procurava-me para dizer-me radiante:
– Completo sucesso! Auscultei e observei minuciosamente o rapaz. Creio até
que o maganão adivinhou, ou compreendeu, qual era a razão particular que me
dirigia, porque veio, por bem dizer, ao encontro do meu desejo e prestou-se
ao exame, sorrindo, sem esconder a sua vaidade de homem forte, consciente
da sua riqueza orgânica!
Estávamos a sós, na biblioteca, lá em casa. Aproximei-me mais do meu velho
amigo, com interesse; e ele acrescentou, dando com ambas as mãos duas palmadas
simultâneas nas próprias coxas.
– Um rapagão, Olímpia! O que se pode chamar um rapagão! Equilíbrio perfeito
entre o sistema nervoso e o sistema muscular! Órgãos em belo estado de pureza!
Uma autópsia seria a mais esplêndida vitória para as suas vísceras! Devia
deixar-se dissecar, por orgulho!
– Então, César!… Fale a sério, meu amigo!
– Não lhe descobri o menor vício no organismo. Os pulmões são os de um ferreiro;
o coração funciona como um Patek Philippe; o fígado não parece fígado nacional.
Os rins fariam inveja aos de um atleta! Tórax soberbo; bíceps de gladiador!
Em minha presença manejou, com a maior facilidade e destreza, halteres de
trinta quilos cada um!
– Sim?…
– É o que lhe digo! E a conformação geral do corpo, esteticamente falando,
é simplesmente maravilhosa! Quando o vi nu, pensei ter defronte dos olhos
uma estátua grega. Marte e Apolo fundidos, formando um homem. Que belo conjunto
de força e delicadeza anatômica! Nem sei como, com a degeneração da raça latina
e com a crescente depravação de costumes, ainda possa haver – no Brasil! Um
moço em semelhantes condições físicas! Verdade é que ele é de raça catalã!
– Que entusiasmo, meu amigo!
– Entusiasmou-me com efeito, o demônio do rapaz! Nunca vi, na minha clínica,
um espécime tão puro! É verdadeiramente um belo animal!
– Acha-o então, César, quanto ao físico… no caso de preencher cabalmente
o nosso ideal de… de marido de Palmira?
– Oh! Por esse lado não poderíamos desejar melhor!
– E, pelo outro! Que tal será ele? Diga-me, achou-o simpático!…
– Ora! Um homem naquelas condições é o orgulho de sua espécie e há de ser
fatalmente simpático. O que mais é a simpatia senão o reflexo da bondade?
e a bondade é um produto lógico da saúde perfeita e da força, como são a coragem
e a alegria. Fiquei gostando dele infinitamente. Ah! se aquele ladrão fosse
meu filho?
– Ainda bem, meu amigo…
– Oh! Pode estar amplamente satisfeita com ele, Olímpia, e dá-lo, quanto
antes, para noivo da nossa formosa Palmira. Aquele, se não for vítima de algum
acidente, ou não apanha algum diabólico micróbio que o estrague, morrerá de
velho!
Agradeci penhoradíssima os bons serviços do meu querido amigo e pedi-lhe
que me ajudasse a colher, logo desde o dia seguinte, informações sobre o passado
e sobre o caráter do pretendente de minha filha.
* * *
Desde o dia seguinte, com efeito, pusemo-nos em campo. E foram quatro meses
de ininterrompidas pesquisas, em que eu despendi um grande capital de dedicação,
de atividade e de paciência, cujo segredo só mesmo um coração de mãe poderia
achar. Mas não lamento tais canseiras, porque cheguei ao completo resultado
do que eu queria.
Eis o que colhemos:
O rapaz chamava-se José Leandro de Oviedo. (Isso já eu sabia). Nasceu na
província do Rio de Janeiro, numa fazenda de Teresópolis. Era filho de Manoel
Oviedo, pinto espanhol, que o teve de uma tal Margarida Porto, senhora brasileira
por ele tomada do marido, um rico fazendeiro de café, e com a qual viveu o
pintor dez anos.
Leandro foi o primeiro filho de Oviedo, (Esta circunstância animou-me a seu
favor) e o único que sobreviveu aos pais. Criou-se na fazenda, mas aos cinco
anos fez com a família uma viagem à Europa, donde voltou com dez, já órfão
de mãe. O pai destinava-o ao comércio e quis, ao tornar aqui, pô-lo de caixeiro
em uma loja de ferragens, mas o padrinho, um tal Gonçalves, com quem o rapaz
fora habitar de volta ao Brasil, remeteu-o, três anos depois, para um colégio
na Inglaterra, donde Leandro voltou aos dezoito de idade, por morte do seu
protetor. Não consegui saber se deste herdou então alguma coisa; soube, sim,
que nesse tempo fez ele uma excursão pelas províncias do sul do Brasil, dando
com pouco sucesso concertos de piano e bandolim. Dois anos depois morreu-lhe
o pai, em completa miséria.
Alguns quadros, e outros objetos que deixou, foram vendidos para pagar o
enterro e o último mês de tratamento em uma casa de saúde. Aos vinte anos
entrou Leandro, como amanuense, para a secretaria, onde era segundo oficial
quando pretendeu minha filha.
Não me souberam informar se foi bom filho, não descobri quem era ao certo
o tal padrinho, que o mandou a educar em Londres, nem tampouco a razão por
que este, homem rico naturalmente, o protegeu tanto em vida, sem dele se lembrar
depois no testamento; afiançaram-me, porém, que Leandro era moço de bom caráter,
regularmente estimado, e que havia rejeitado casamento com a filha de um negociante
forte, mas rapariga feia e pretensiosa. Não me constou também que se desse
ao jogo, tampouco ao álcool, nem fizesse loucuras por mulheres de má vida.
Descobri que ultimamente morava ele, havia um ano, numa casa de família honesta,
que lhe alugava um quarto; e soube que tinha um amigo íntimo, com quem era
visto sempre aos domingos no clube ginástico a que ambos pertenciam, um Leão
da Cunha, rapaz rico e viajado, sócio comanditário de uma casa de comissões
no Rio de Janeiro.
E tudo isto descobrimos, César e eu; tudo desenterramos, por amor de minha
filha; e foi obtido e foi tudo feito com a máxima reserva e discrição. Leandro,
ao que suponho, não desconfiou de coisa nenhuma.
Estudando-o de mais perto reconheci que as suas maneiras eram, de fato, convenientes
e não afetadas para nos engodar durante o namoro; pareceu-me até que, por
debaixo daquela forte robustez física, havia um caráter tímido e paciente.
Notei com satisfação que ele não abusava do fumo e detestava o cachimbo. Não
me pareceu absolutamente ambicioso. Falava pouco do seu piano e do seu bandolim.
No entanto, as suas cartas a Palmira, as quais esta me mostrava sempre, eram
discretamente escritas, na forma como no fundo, e pareciam sinceras no que
diziam de amor.
Convenci-me afinal de que a coisa única que me restava a fazer era casá-los,
dando ainda graças a Deus por ter-me deparado tão bom partido.
Minha filha mostrava-se cada vez mais empenhada por ele, e Leandro cada vez
mais disposto a obedecer-me e respeitar-me nos meus desígnios. Íamos bem.
Quanto a mim, tomava-lhe já a estima e habituava-me à idéia de ver nele um
futuro filho. Tudo, não obstante, dependia da sua boa ou má disposição para
aceitar as condições do casamento. Deliberei impor-lhe as provas preliminares.
Entrei em campanha – principiei a contrariá-lo.
Comecei a ser sogra!
XII
Meu Deus, como eu, que aliás ainda não tinha então descoberto a terrível
lei da incompatibilidade do amor físico com o amor moral, me sentia já ansiosa
e apreensiva, pensando no casamento de Palmira! Aquele rapaz, mesmo rigorosamente
dirigido por mim, faria com efeito a felicidade de minha filha?… Amá-la-ia
deveras? Seria ele com efeito um bom moço, ou teria conseguido enganar-nos,
com os seus gestos de jovem atleta civilizado e com os seus claros sorrisos
de mocidade olímpica? Oh! também só nisto punha eu todo o meu empenho – em
que ele não nos iludisse; pois, quanto ao fato da sua pobreza e da sua modesta
procedência, longe de fazer-lhe carga, dava-lhe até boas vantagens ao meu
ver. Minha filha e eu éramos bastante ricas, para não precisarmos perturbar
o plano da felicidade dela, e minha, com mais esses frios interesses de dinheiro.
Que era ele um belo exemplar de homem, isso é o que ninguém poria em dúvida,
e isso valia bem pelo dote pecuniário de Palmira; pelo outro, ainda mais bonito
que ela trazia em pureza, inocência e formosura, valeria a boa vontade com
que o noivo aceitasse as estreitas e rigorosas condições, que eu lhe ia impor
ao casamento. E nesta última parte estava o ponto mais delicado da questão;
para realizá-la, sem futuros prejuízos dos meus planos de absoluto domínio
sobre eles, dispunha-me a empregar todo o esforço e toda a astúcia de que
eu fosse capaz; pois, em consciência, a verdade era que outro homem já não
queria eu, nem já me convinha, para cavalheiro de minha filha ou para gerador
de meus netos porque outro com certeza não descobriria eu em condições naturais
tão boas e perfeitas como Leandro. Até a sua própria mediocridade de inteligência
se me afigurava o belo complemento da sua perfeição de animal humano: – o
talento elevado a certo grau é sempre, no amor, uma anormalidade perigosa.
Achava-o cada vez melhor e mais próprio para bom marido; achava-o, além disso,
muito simpático e atraente; achava graça naquele seu tipo moreno pálido, de
olhos muito azuis e cabelos muito pretos; até mesmo o crespo sotaque inglês,
que a princípio lhe estranhei e me fazia torcer o nariz, agora achava eu que
lhe ia bem com o sonoro metal da sua voz masculina e forte.
Entretanto, não me convinha de modo algum que ele alcançasse com facilidade
a certeza da posse de minha filha. Afastava-os intencionalmente; começava
a representar, entre eles dois, o terrível papel de linha divisória, de linha
sanitária, estabelecida em guerra contra os traiçoeiros inimigos das suas
ilusões de amor. Ah! quanto me custava, e quanto me aprazia ao mesmo tempo,
esse altruísta e odioso mister de delicada perseguição! Quanto eu me sentia
ir ficando sogra! Mas estava disposta a não me arredar um passo do meu programa,
ainda mesmo tendo mais tarde de entestar, como já esperava, com a cólera de
meu genro e com as lágrimas de minha filha.
Seria muito preferível, em todo o caso, que ela chorasse dessas lágrimas
de ilusão a ter mais tarde de amargar as lágrimas de desengano que chorei.
* * *
O namoro de Leandro ia se tornando tanto mais insistente, quanto mais era
por mim contrariado. Só uma vez por semana lhe consentia viesse ver a desejada,
nas noites de recepção comum, como todos os outros nossos freqüentadores;
e isso bem percebia eu que o torturava cruelmente.
Vingava-se nas cartas; essas, consentia eu, fingindo ignorá-las. As cartas
não podiam prejudicar, antes serviam, opostamente, para manter firme a intensidade
do desejo.
E as coisas assim corriam bem. Ele perseguia e cercava Palmira por toda a
parte e em todos os lugares, no passeio, nos teatros, nas compras à rua do
Ouvidor; mas, quando me via, antes de ver minha filha, perturbava-se logo,
sem ânimo de vir ter conosco e contentando-se apenas em cumprimentar-nos com
o chapéu. Coitado! tinha-me medo!
Ah! se ele soubesse todavia quanto o meu coração é bom!
Pareceu-me chegada a ocasião de preparar o espírito de minha filha para a
campanha já travada. Conversei largamente com ela. Falei-lhe muito do seu
casamento, não em tom de mãe ralhadora, mas no de amiga confidente; falei-lhe
como se fosse apenas uma sua irmã mais velha. Palmira, felizmente, compreendeu
e compenetrou-se do louvável alcance da minha norma de proceder. Disse-lhe
claramente que a sua felicidade dependia daqueles alicerces; e que ela me
deixasse, a mim, parecer às vezes impertinente e dominada por espírito de
contrariedade; que deixasse, confiante no futuro; não era natural que estivesse
eu em erro, porque toda a complicada arquitetura do edifício daquela felicidade
tinha a sua base na experiência dos fatos essenciais da vida doméstica e no
profundo estudo da desgraça do amor conjugal. Ela, ameigando-me contente jurou
que de corpo e alma se entregaria às minhas mãos, e que nem só me obedeceria
sempre, mesmo depois de casada, como ainda havia de ajudar-me na execução
dos meus desígnios.
Abraçamo-nos, satisfeitas e concertadas com aquela conferência.
– Olha! disse-lhe, em remate. Asseguro-te é que, até hoje, mãe nenhuma pensou
na felicidade de sua filha com tamanha dedicação, nem fez por ela os sacrifícios
que por ti afronto, minha Palmira. O menos que me pode acontecer é ser amaldiçoada
por teu futuro marido, por quem aliás devia eu ter o direito de ser amada
como verdadeira protetora. Ah! não me iludo neste ponto! Não procuro enganar-me
– bem sei o que me espera!…
No dia seguinte a esta conversa, que sem dúvida ia ter uma grande influência
moral no destino de minha filha, mandei preparar as malas e parti com ela
para Petrópolis, combinando entre nós duas que de nada se daria parte ao pretendente.
Manobra de guerra! Queria provocar o inimigo. A minha retirada brusca era
simples negaça feita ao assaltante. Convinha que Leandro, desde logo, se fosse
habituando ao meu sistema estratégico.
Produziu efeito. Ele, três dias depois, surgia-nos por lá, com um ar de hesitação
solerte e um grande ramo de camélias frescas. Recebi por minha parte a visita
um pouco friamente, e nenhuma de nós duas insistiu com ele para que se demorasse.
O rapaz, logo à primeira despedida, foi-se, escabreado e vermelho de confusão.
Como no outro dia, encontrando-nos na rua, se embandasse conosco para um
passeio à Renana e declarasse que passaria o resto do mês em Petrópolis, tocamos
na manhã seguinte para a cidade, sem que ele desse pela nossa retirada. Palmira
tentara interceder desta vez pelo namorado; arriscara mesmo a súplica de um
dia mais de demora; eu, porém, cortei-lhe a palavra com um olhar, em que a
pobre criança leu toda a inutilidade da sua pretensão.
* * *
Foi um mês depois disso que se deu o pedido de casamento.
Era domingo; tínhamos acabado de jantar e havíamos passado para o gabinete
de trabalho que fora de meu marido, quando, depois de ouvir parar um carro
à porta da rua, veio o criado anunciar-me que o Sr. Leandro, vestido de casaca,
estava à espera na saleta do corredor e desejava falar-me.
Compreendi logo do que se tratava: César já me tinha preparado; mas nem por
isso foi menos agudo o choque que senti no coração. Troquei um olhar com Palmira,
que abaixou as pálpebras enrubescendo. Mandei que o criado conduzisse o visitante
para o salão, e disse depois a minha filha, cujo crescente sobressalto lhe
fazia arfarem os seios, que se não nos apresentasse sem ser chamada; passei-lhe
com os olhos uma rápida revista da cabeça aos pés, fiz-lhe ligeiras correções
no penteado, dei-lhe um beijo e saí do gabinete.
Ó meu Deus! ia travar-se o grande momento, que de antemão me fazia tremer
de medo; medo de que o ridículo, num só instante, derribasse todos os meus
castelos de mãe amorosa e sonhadora. O que iria passar-se naquela sala entre
mim e o pretendente de minha filha?… Mas era preciso não hesitar no que
estava por mim determinado, porque assim exigia a felicidade dela! Entrei
um instante no quarto do oratório e, numa ligeira súplica, pedi coragem a
Deus; segui depois até ao toucador, alisei melhor os cabelos sobre as fontes,
corri os olhos rapidamente pela roupa, e fui ter com a visita.
Entrei na sala vagarosamente, afetando grande tranqüilidade; havia, porém,
de estar ainda ofegante e pálida.
Leandro mostrava-se francamente comovido. Ao ver-me, precipitou-se ao meu
encontro e balbuciou algumas palavras de cortesia, que lhe não passaram dos
lábios.
Fi-lo assentar-se e assentei-me perto dele.
Com prazer notei que o belo moço, assim em alto trajo, mais belo ainda me
parecia. Tinha aparado a barba, os dentes luziam-lhe como se fossem de um
metal branco e polido, e os seus grandes olhos de safira pareciam jóias coruscantes.
A casaca assentava-lhe muito bem, desenhando-lhe a cinta esbelta, fazendo
sobressair o seu busto altivo, e deixando em desembaraço a rica musculatura
das coxas. E a comoção enriquecia-lhe mais o rosto com uma austera palidez
de mármore consagrado pelos séculos.
* * *
Depois que o meu espírito atingiu o seu pleno desenvolvimento, sempre achei
o homem mais belo que a mulher; ou por outra: achei que a beleza do homem
era mais valiosa que a beleza feminina, como de resto se observa geralmente
nas várias espécies de animais inferiores.
A mulher tem encantos, mas o homem tem real beleza. Nos encantos da mulher
há todos os perturbadores mistérios da volúpia terrestre, mas na serena e
máscula beleza do homem há sempre um quê de divino e sagrado. Nenhum homem
será capaz de impressionar-se pelos encantos físicos de uma mulher, sem que
nisso entre o concurso dos seus sentidos; ao passo que qualquer mulher pode
admirar um homem belo, sem desejá-lo sensualmente. É assim que nós mulheres
amamos Jesus Cristo; e se Maria, a formosa Virgem Santíssima, não tivesse,
para resguardar a sua enamorada e frágil boniteza de mulher, a celestial e
sacrossanta auréola de mãe de Deus, o que seria de ti, ó doce, poético e venerando
prestígio do Catolicismo?…
Cristo atravessa os séculos, todo nu, de braços abertos para a humanidade,
e a sua nudez de homem jamais trouxe rubor de pejo às faces da donzela, nem
acordou desejos no peito das mulheres.
Mas se despissem Maria das castas vestimentas que lhe escondem o divino corpo,
ela deixaria de ser a piedosa e cândida rainha dos céus, e seria Vênus, a
deusa do amor e do pecado.
Estas considerações fi-las eu defronte do homem a quem minha filha chamava,
de braços abertos e lábios postos em beijo, através das alvas e rendilhadas
pétalas do seu leito virginal – grande lírio branco, embalsamado e puro, que
franqueava a sua urna de amor ao resplandecente inseto fecundante.
Palmira tinha inteira razão em chamá-lo e desejá-lo com tamanho amor: um
homem perfeito como aquele é a melhor obra de Deus. A mulher, essa lhe é tão
inferior, em todos os sentidos, que não chega a ser o seu par, mas um simples
complemento dele. A perfeição da mulher não é absoluta, como a do homem, é
relativa. Se o homem tivesse sempre a compreensão justa do seu próprio valimento
e da superioridade, havia de ser para a pobre mulher muito melhor do que é
com efeito; seria verdadeiramente o seu protetor moral, o seu bom e paternal
amigo, e não o seu egoísta e sensual adversário. E quando um homem se colocasse,
como muita vez sucede, ao nível da fraqueza de uma mulher, para enganá-la
de igual a igual, teria vergonha e remorsos de haver com isso cometido a mais
degradante covardia que é possível no seu sexo. Se esse poderoso, belo e adorado
animal, que tem forma de Deus, e que nos governa brutalmente, compreendesse
a responsabilidade da sua força – quando um homem de trinta anos conseguisse
iludir uma rapariga de quinze, ele, e não ela, é que ficaria desonrado.
* * *
– Minha senhora… balbuciou Leandro, afinal, vergando-se para falar-me de
mais perto.
E eu interrompi meus pensamentos, para escutá-lo. E inclinei-me também, dizendo
a meia voz:
– Estou às suas ordens, amável senhor. Pode dizer qual é o motivo da
sua visita…
XIII
– Antes de falar, minha senhora, no delicado objeto que aqui me traz… principiou
Leandro, com a voz um pouco alterada, preciso da prévia garantia do seu perdão,
sem o que não teria ânimo de cometer semelhante atrevimento…
Autorizei-o a que falasse e prometi a minha indulgência.
– Imagine, minha generosa senhora, continuou ele, imagine como devo tremer
em sua presença… Juro-lhe que, se o meu amor não me merecesse todos os sacrifícios
e não me tivesse roubado a razão, não cometeria eu a loucura, a temeridade,
o crime talvez, que estou agora perpetrando…
– Continue, acudi, sem modificar a minha fisionomia.
– Imagine, minha senhora: eu, que nada sou; um pobre diabo sem passado e
sem futuro, filho de uma união irregular, atrevo-me a vir pedir-lhe me conceda
tudo o que há de melhor no mundo; tudo o que há de mais puro, de mais belo,
de mais ideal! Imagine que eu, um desgraçado, tenho o desvairamento de pedir-lhe
a mão de…
Hesitou, abaixando os olhos. Compreendi que, a menor palavra de recusa, o
pranto rebentaria deles com violência.
– O senhor está autorizado por minha filha a fazer-me semelhante pedido?
perguntei-lhe depois de uma pausa, em que ouvia a larga respiração dele.
– Sim, minha senhora.
– E, no caso que obtenha o meu consentimento, estará o senhor disposto a
fazê-la feliz, como eu o entendo?
– Juro! exclamou o rapaz.
– Não! não jure ainda, sem primeiro responder-me, se já sabe como é que tem
de a fazer feliz…
– Minha senhora, volveu Leandro, reanimado por estas palavras e aproximando
a sua cadeira para mais perto da minha, ainda há pouco não pude entrar em
pormenores, nem disse quase nada do que trago a intenção de dizer… V. Ex.a
compreenderá sem dúvida o meu estado de comoção…
– Sim. Fale.
– Minha senhora, eu adoro sua filha, e sei, e sinto, e afianço, que nunca
mais amarei assim outra pessoa em toda a minha vida! Juro que…
– Não! – interrompi. – Não prometa coisa nenhuma! Fale só do presente; deixe
lá o futuro que a Deus pertence! Quem pode nesta vida determinar com segurança
alguma coisa futura?… Pois se pelo passado, que já está vivido, nem sempre
podemos responder, porque ele às vezes nos foge da memória, como quer o senhor
legislar sobre o porvir, ainda todo incerto? Fale-me do presente!
– Tem razão, minha senhora, e consinta que eu prossiga: Amo loucamente a
senhora sua filha e só com ela posso compreender uma união eterna… Mas,
V. Ex.as são ricas e eu sou pobre… ganho pouco; esse pouco, porém, chega
com economia para duas pessoas resignadas… Entretanto, se ela própria me
não tivesse jurado aceitar com satisfação o sacrifício de partilhar da minha
pobreza, não faria a V. Ex.a, nem por pensamento, o temerário pedido que acabo
de fazer. Desejo que V. Ex.a me conceda sua filha, sem outro dote além das
virtudes que a enobrecem e além dos seus encantos pessoais…
Eu sorri. Não sei se era sincero o que ele dizia. Talvez fosse, porque a
mocidade é quase sempre generosa e o primeiro amor é leal e adora o sacrifício.
Mas a idéia, de consentir que minha filha partilhasse do magro ordenado de
um amanuense de secretaria, pareceu-me infinitamente extravagante.
Já se vê que entrava no meu sorriso um pouco de vaidade; qual é, porém, o
nosso ato social em que a vaidade não entre em grande ou pequena dose?
– Senhor José Leandro de Oviedo, declarei-lhe formalmente – o dote de minha
filha pertence a minha filha. Dele partilhará a pessoa que se casar com ela;
e se dela tiver filhos, herdará de mim, como a esposa, o que eu por minha
vez herdei de meus pais, de meu sogro e de meu marido. Isso é questão assentada
e nem é disso que convém tratar aqui. Entendo que tanto pode dignamente um
moço pobre casar com uma moça rica, como um rico dar a mão de esposo a uma
pobre, desde que essa união seja inspirada no interesse do amor e não no interesse
do dinheiro. As idéias a isso contrárias são cópia de mal-entendido orgulho
do homem. Entendem eles que uma mulher deve aceitar tudo das mãos do marido,
e que este no entanto fica humilhado recebendo iguais benefícios da mão da
consorte. Não é má essa moral! Que o homem faça do casamento um meio de enriquecer,
acho indigno, como igualmente acho se o fizer a mulher; se o consórcio, porém,
não for obra do dote e sim do amor, nada mais curial que os dois dividam amigavelmente
entre si o que um deles possua, e que vivam felizes. Mas, graças a Deus, tanto
minha filha como eu, somos bastante ricas para nos não preocuparmos em saber
se o noivo dela traz ou não traz bens de fortuna; mesmo porque o casamento
de Palmira não será um casamento vulgar, e coisas muito mais sérias que o
dinheiro têm de ser discutidas nesta ocasião, aqui entre nós dois. Ponhamos
pois de parte a questão pecuniária. Não se persuada, todavia, o senhor de
que, por não trazer dote, esteja dispensado de dotá-la. A retribuição que
exijo é de outra espécie, mas não é por isso menos valiosa que o dote dela…
– V. Ex.a tenha a bondade de dizer o que exige de mim. Seja o que for, estou
pronto a cumprir! E o que não faria eu para alcançar tão grande e sublime
prêmio?
– Pois responda às perguntas que lhe vou fazer…
– Estou inteiramente às suas ordens, minha senhora.
– O senhor ama minha filha tanto quanto diz?
– Juro que a amo tanto quanto é possível!
– E será capaz de um grande sacrifício para obtê-la em casamento?
– Desde que não seja um sacrifício de honra… estou disposto a tudo!
– Não, não é um sacrifício de honra, e antes de prosseguir, declaro-lhe que
minha filha é pura, perfeitamente pura!
– Posso então jurar que, seja qual for o sacrifício, eu o farei, minha senhora!
– E como me provará o senhor que é um homem de honra, para que sua palavra
me sirva de garantia?
– Pode V. Ex.a indagar a meu respeito de todas as pessoas que me conhecem.
Até hoje tenho sido um homem honrado: nunca faltei à minha palavra, nem cometi
ação que pudesse desdourar o meu caráter…
– E como garantir a sua palavra?
– Posso assinar um documento, um título de honra. Aceito as condições que
V. Ex.a exigir…
– Pois então o senhor assinará uma declaração, formal e precisa, dirigida
à polícia, dizendo que a ninguém devem atribuir a autoria da sua morte, porque
foi o senhor mesmo quem pôs termo aos seus dias. E empenhará comigo a sua
palavra de honra em como a ninguém revelará a existência desse documento;
documento que será reformado de três em três meses. Aceita?
– E é esse o sacrifício que V. Ex.a exige de mim?… perguntou Leandro,
a sorrir.]
– Não, respondi eu, muito séria – isso é apenas a garantia da sua palavra
e da minha impunidade, caso tenha eu algum dia de eliminá-lo para sempre de
minha família. Esse documento só servirá na hipótese de que o senhor falte
ao cumprimento de sua palavra, porque então, juro-lhe que o farei matar…
– Ah!
– Sem dúvida. E ainda está em tempo de voltar atrás. O senhor ainda se não
comprometeu comigo a coisa alguma.
– Recuar? Acha V. Ex.a que eu possa recuar, desistir da única felicidade
que ambiciono neste mundo?!
– Pense bem, antes de responder…
– Não há que pensar! Uma recusa em nada me adiantaria; V. Ex.a dispõe já
de minha vida; tem-na fechada na mão! Tanto vale dar-me a morte, negando-me
sua filha, como me fazendo assassinar.
– O senhor só será assassinado se não cumprir com a sua palavra.
– Tenha a bondade de dizer o que exige de mim.
– É pouco. O senhor, depois de casado com minha filha, não coabitará com
ela; o senhor morará só, numa boa casa, bem servida e bem mobiliada, que porei
às suas ordens; ao passo que Palmira continuará a residir em minha companhia
e só estará com o marido o tempo e às vezes que eu consentir. Serve-lhe?
– Mas eu terei então de viver separado de minha esposa?
– Separado totalmente, não. O senhor poderá vê-la e estar com ela freqüentemente,
não digo todos os dias, mas quase todos. Prometo mesmo que minha filha passará
ao lado do marido um ou mais dias; levo até a condescendência a tolerar que
fiquem juntos uma ou outra noite. Mas, desde que eu a reclame ou vá buscá-la,
o senhor não poderá opor-se a que ela venha para a minha companhia…
– V. Ex.a está gracejando com certeza… ou suporá que a minha intenção é
privá-la de ver a senhora sua filha todas as vezes que quiser? Mas, se assim
for, valha-me Deus! não vejo razão para não morarmos juntos!…
– Não! não! Não estou gracejando, nem admitirei, nunca, que o senhor more
conosco. Nunca! E só consinto no casamento, sob as condições expostas. Se
elas lhe convêm, o senhor passará o documento, e minha filha será sua esposa…
– Mas, permita, minha senhora, que…
– É inútil, senhor, toda e qualquer reclamação. Repito que só consentirei
no casamento de minha filha com o senhor, ou seja com quem for, nas condições
apresentadas. Se quer algum tempo para refletir, pode retirar-se; dou-lhe
quinze dias.
Leandro, que agora parecia ouvir minhas palavras como ouve um condenado a
sentença de morte, apertava os lábios, franzia as sobrancelhas e cerrava os
punhos, mal contendo a sua agonia. Afinal, disse com o ar submisso e a voz
resignada:
– Para que refletir, minha senhora?… Estou disposto e estou pronto para
tudo. Aceito o compromisso!
– Pois aí, na saleta ao lado, declarei, erguendo-me da cadeira – encontrará
o senhor papel e tinta; passe o documento pela minuta que lhe vou dar. Já
a tenho escrita. Com licença.
E saí da sala, para ir buscar a minuta à gaveta da minha secretária, e principalmente
para respirar, no alívio daquela solução.
Ah! felizmente estava passado o grande escolho!
De volta fui ter com Palmira. À minha primeira palavra, ela declarou, enrubescendo
e sorrindo, que ouvira toda a minha conversa com Leandro.
– Bisbilhoteira!… E o que tens tu a observar?… perguntei-lhe.
– Eu?… Mamãe bem sabe que sempre acho bem feito tudo o que a senhora
fizer…
Dei-lhe um beijo na testa e voltei ao salão, depois de fazer-lhe sinal que
podia vir também.
XIV
Ai, quanto me custou a levar a cabo aquela singular conferência com meu futuro
genro!… Como devia eu parecer-lhe caprichosa e ridícula!… Mas está claro
que não havia de sacrificar minha filha a um falso escrúpulo de momento, a
um miserável egoísmo de minha vaidade pessoal. Seria covardia indigna de mim
– abandonar, à primeira dificuldade da capanha, todo o meu trabalho de tanto
tempo, e comprometer para sempre a felicidade de Palmira e por conseguinte
a minha própria.
Depois do pedido, principiamos logo a cuidar dos aprestos para o casamento.
Mandei preparar a casa do noivo, e dispus com todo o esmero, lá em minha residência,
os aposentos destinados à noiva. Eu e minha filha acompanhamos as obras com
igual empenho e dedicação. Tanto em uma casa como na outra, tudo se fez para
o completo conforto de um par; dir-se-ia que se tratava de acomodação, não
de um, mas de dois casais.
Para meu futuro genro destaquei um pequeno e galante prédio que possuíamos
em Botafogo. Ficou excelente depois de bem mobiliado e guarnecido com esmero.
Para minha filha mandei arranjar, lá em nossa casa nas Laranjeiras, onde ela
nascera e onde eu habitava havia vinte e dois anos, uma sala, uma larga alcova
de casados, um quarto de estudo e oratório, outro de vestir, e um cômodo de
toucador e banho; tudo isso independente, por modo que ela ficasse em liberdade
e pudesse ter as suas entrevistas com o marido, quando as não realizasse em
casa dele. Ficou tudo muito bom.
Os enxovais também foram aviados em duplicata, à exceção, bem visto, do vestido
da noiva. Em qualquer das duas habitações podia um casal instalar-se comodamente.
Minha filha palpitava de alegria no antegozo do seu amor, e eu sentia-me feliz
por vê-la feliz; mas ninguém poderá calcular a dose de energia e a constância
de caráter que tive de pôr em ação, para impedir que o noivo interferisse
e se intrometesse nestes arranjos domésticos, e não estivesse sempre encarapichado
às nossas saias. O pobre rapaz queria também, como é do costume no Brasil,
vir todas as noites visitar a noive e pespegar-se ao lado dela durante o serão
até o momento de servir-se o chá. Não faltava mais nada! desalojei-o logo
dessa pretensão, declarando que a ninguém recebíamos senão às quartas-feiras;
mas, o demônio insistiu, recorrendo para vencer-me a todos os carinhosos recursos
da adulação; e afinal, reforçando suas súplicas com as de Palmira, conseguiram
os dois apanhar-me mais um dia na semana, que ficou sendo o Domingo.
Só nas vésperas do casamento permiti que se vissem todos os dias.
* * *
Por essa ocasião realizamos os três, e mais o meu velho amigo César, um belo
passeio à Floresta da Tijuca.
Ao despontar de sol estávamos já à raiz da serra. Levávamos farnel e um criado
para tomar conta dele. Deixamos na cocheira daquele ponto o carro que nos
conduziu até aí, e tomamos, para subir a formosa cordilheira, uma vitória
de dois lugares, onde eu iria com César, e em cuja boléia o criado se arranjaria
com o farnel. Palmira e Leandro tinham, prontos à sua espera, dois cavalos
escolhidos.
Era outubro, e a manhã saíra-nos encantadora. Foi deliciosa a subida até
o alto da serra, por entre as vegetações e os penhascos da estrada, ao primeiro
transbordamento do dia. A quaresma e a sucupira abriam já, na sombra azul
das matas, flores roxas e amarelas. Inebriava o espírito deslizar suavemente
naquele vasto rescender de aromas resinosos, ao hino matinal dos campos, que
se iam, ainda mal acordados dos seus sonhos de opala, preguiçosamente desnevoando
à dourada fulguração da luz nascente.
Não nos quisemos deter na cascatinha, e continuamos a subir para a Floresta.
A Floresta! Ah! quantas recordações não tinha eu desses lugares, onde tantas
vezes passeei pelo braço de Virgílio, antes do nosso casamento, antes da nossa
desilusão, quando eu ainda o amava com amor de mulher! César ao meu lado,
no carro, parecia também esquecido nas suas saudades, porque ia abstrato e
mudo, olhando fixamente o misterioso horizonte de verdura, com as mãos sobpostas
ao queixo e firmadas no castão da sua bengala.
Palmira e Leandro seguiam adiante cavalgando emparelhados, a rir e a conversar,
gárrulos e donairosos. Ah! esses não ficavam quietos e calados um só instante,
porque iam vivendo do presente e do futuro. Avançavam a galope, resplendentes
e soberbos no orgulho do seu amor e da sua mocidade, sem volver para trás
os olhos enamorados; alheios a tudo, encarando com desdém o resto do mundo,
como do alto da montaria olhavam no caminho as pobres cambaxilras, que esvoaçavam
escorraçadas fugindo e gralheando à sua vitoriosa passagem.
Penetramos no coração da Floresta. Minha alma, de comovida, abriu-se de par
em par, num êxtase contrito, num doce e profundo enlevo religioso. Tive vontade
de ajoelhar-me à sombra das velhas árvores e chorar.
Como eu te amava ainda, casto paraíso das minhas saudades! ó minha querida
floresta! Não tinhas, como eu, envelhecido, odorante e sombrio templo de verdura!
encontrei-te moça e garrida como te deixara, e como a mim tinhas visto, dantes,
muito dantes, à flor da minha juventude; o que agora te não achei foi tão
minha amiga, tão minha confidente e tão comunicativa como dantes. Eras alegre,
paraíso! achei-te triste!
Não! já não eras para mim o mesmo éden carinhoso e sorridente, que com todas
as tuas vozes me falavas de amor e de vida! Reconheci as tuas místicas estradas
murmurantes; os teus brancos caminhos serpeados entre montanhas de veludo
verde; as tuas árvores patriarcais, de longas barbas venerandas, em que se
engrimpam e dependuram orquídeas e parasitas; o teu lago quieto e melancólico,
em que as taquaras e samambaias se miram furtivamente, por entre a esparsa
e mergulhada cabeleira das algas e nenúfares; reconheci a música plangente
das tuas águas rebatidas, de cascata em cascata, a sombra amorável e doce
das tuas grutas escondidas; reconheci tudo isso, todas essas paragens encantadas;
mas já não eras a mesma para mim, Floresta, que me embalaste os sonhos de
esperança!
Oh! como Palmira nesse mesmo instante devia achar-te alegre, triste Floresta!
Triste e morto paraíso de saudades!
– Em que cisma, minha amiga?… perguntou-me César, tomando-me uma das
mãos.
– No mesmo em que você pensava ainda há pouco – no passado… Cismas de velho!…
E suspiramos ambos, desconsoladamente.
* * *
Voltei desse longo passeio, de um dia inteiro, com uma fria impressão de
tristeza, que se não dissolveu em lágrimas, mas que enlutou de sombras dolorosas
o meu velho coração de mulher.
E comigo foi sempre assim, muito antes mesmo da velhice. A contemplação de
belas paisagens como a da Floresta, as grandes obras de arte, a música principalmente,
deixavam-me na alma um amargo ressaibo de melancolia insolúvel. Atribuía isso,
então, ao fato de nunca ter sido, em nenhum tempo de minha vida, completamente
feliz. Essa tristeza era como que, não a saudade, mas a desconsolação de quem
entreviu, compreendeu e sentiu a ventura natural do viver inteiro e completo,
sem nunca poder atingi-la, sem esperanças de gozá-la ainda depois, já na velhice,
se acha afinal sem esperanças de gozá-la ainda algum dia, nesta, ou noutra
qualquer existência. Era o flébil ressentimento de um pobre coração espoliado
e vencido.
E já agora confesso tudo: cheguei a ter uma incogitável ponta de inveja por
minha filha… Mas não invejava a noiva, invejava a felicidade de mulher que
a esperava, feita e preparada por mim. Ah! eu não tivera mãe, como ela me
possuía!…
Entretanto, não me fartava de contemplá-la, embevecida de amor materno; e
não me cansava de rever-me na sua paradisíaca ventura, achando-a mais feliz
com seu amado, neste paraíso, do que no outro extinto os primitivos amantes,
que esses, ai deles! Só chegaram a conhecer o amor pelo prisma da maldição
e do pecado. Contemplei-os, feliz na minha inveja, belos como estavam, minha
filha e meu genro, naquele passeio à Floresta da Tijuca! Como a inteira segurança
da ventura os fazia monarcas absolutos da vida! Ainda agora, enquanto escrevo
estas linhas à luz do meu candeeiro de trabalho, tenho-os nitidamente defronte
dos olhos, como os vi nessa linda tarde, depois do almoço na gruta dos Dois
Irmãos. Como eram um lindo par! Ele, com a sua roupa de montaria, assentado
ao lado dela, fustigava com o chicote a pedra em que estavam ambos; Palmira,
mais esbelta na sua amazona azul-ferrete, escutava-o sorrindo com os olhos
fitos nos dele. E entre seus lábios, que nunca até então se tinham juntado,
havia sempre, no murmúrio das palavras um sussurrar de beijos.
E vendo-os assim, tão íntimos, tão confiantes um no outro, tão seguros da
sua eterna felicidade e do seu eterno amor, lembrei-me do meu tempo de noiva,
lembrei-me das minhas esperanças, e logo também das negras decepções que sobrevieram
ao meu casamento. Oh! se eu não tivesse ali, para interpor-me entre eles e
separá-los quando fosse preciso, aquele par, tão harmonioso, tão sinceramente
unido pelo amor; aqueles dois entes, tão talhados um para o outro, como eu
parecia ter sido para meu marido, seriam no fim de algum tempo, se não tivessem
reagido logo, fugindo cada um para seu lado, dois míseros infelizes, dois
perdidos para a vida, dois inimigos rancorosos, condenados a viver na mesma
casa, a comer na mesma mesa, a dormir na mesma cama!
Quão diferente fora a minha existência, se eu tivera possuído alguém capaz
de fazer pela minha felicidade um pouco do que eu fazia pela felicidade de
minha filha! Oh! mas só mesmo um coração de mãe seria capaz de tanto, e só
ele conseguiria as coisas extraordinárias, que ainda tenho a revelar nestas
sagradas páginas.
XV
Já próximos do casamento, consultei Leandro a respeito do seu futuro e aconselhei-o
que deixasse o emprego público pelo comércio. Eu me comprometia a ajudá-lo
e me encarregaria de encaminhar as coisas, no caso que ele aceitasse o meu
alvitre. César, que dispunha de boas relações na praça, tomou a seu cargo
descobrir um sócio que conviesse ao rapaz. Eu entraria com a metade do capital,
escondida atrás da firma de meu genro; a outra metade sairia do dote de Palmira.
O generoso médico, para quem minha família não tinha segredos, tomava crescente
interesse pelos noivos. Seria ele um dos padrinhos de Palmira. Entusiasmava-o
aquele casamento, assim levado a efeito contra todas as danosas praxes convencionais;
prefigurava-se-lhe o meu original proceder alta lição doméstica, e dizia que
a minha firmeza, em realizar o difícil plano concebido, dava uma bela cópia
da energia do meu caráter, e havia de produzir obra de grande alcance sobre
a futura orientação da vida conjugal. Fazia-me vaidosa o bom amigo! E começou
a empenhar-se por Leandro com tão boa vontade, que o rapaz podia dizer encontrar
nele um pai melhor que o verdadeiro. Foi César, enfim, quem moralmente o preparou
para representar, junto de Palmira, o papel que eu lhe havia designado; sem
essa inteligente e perseverante ajuda, não sei se teria conseguido chegar,
vitoriosa, ao fim da minha empresa.
Leandro pediu a sua exoneração do emprego público na mesma semana do casamento.
Este foi num sábado, às cinco horas da manhã, sem pompas e sem ruídos; era
nada mais que o meio de coonestar o namoro de Leandro com minha filha. O seu
estado de noivos continuava por bem dizer como dantes; simplesmente, já desposados,
gozavam de mais liberdade entre si, e poderiam, à sorrelfa, ir mais longe
nos seus galanteios. Quis, intencionalmente, criar-lhes um transitivo período
de beijos furtados e desejos mal contidos. Isso era necessário. Seria preferível
essa iniciação da sexualidade a deixá-los, conforme o costume, promiscuamente
encerrados numa alcova, durante muitos dias seguidos.
É torpe lançar na mesma cama, sem transição, um rapaz e uma donzela, que
horas antes se tratavam ainda com certa cerimônia e só se amavam por palavras,
olhares e sorriso. O salto é muito brusco; há de fatalmente perturbá-los.
Reinará sempre mais vexame do que felicidade entre o casal que se vê duramente
entalado na decantada lua-de-mel.
Não penso, todavia, como o Conde de Tolstoi, que o noviciado do amor seja
análogo ao noviciado do vício de fumar, e produza no iniciante as mesmas náuseas
e os mesmos incômodos; males terríveis, que os pacientes, não obstante, disfarçam
em ambos os casos, sem coragem para dizer francamente que a lua-de-mel é uma
repugnante tortura, e que o fumar não merece as honras de um belo prazer.
Não! o amor é natural, e por isso não deve causar náuseas, no começo, como
no fim. A lua-de-mel, consoante nossas práticas, é que não é natural, e deve
constranger tanto a noiva como o noivo. Ela fica mortalmente ferida no seu
ingênito decoro de mulher, e no seu congenial pudor de donzela; e ele, naturalmente
ainda mais tímido que a sua companheira de suplício, pois todo o homem, em
questões de amor, é sempre mais tímido que qualquer mulher, sofre revoltado
pelo grosseiro e agressivo papel de verdugo, que tem de representar contra
uma virgem, pela qual, no seu enlevo de amante, daria a vida se fosse reclamada.
Além disso, nas cruentas vicissitudes do iniciamento conjugal, revelam-se
na esposa naturais manifestações que, por decoro, devem ser escondidas aos
olhos de todo e qualquer homem, ainda mesmo que seja este o próprio consorte.
É preciso, em honra da moral e do respeito à natureza, que a consumação do
amor, venha, não ex-abrupto, mas como o fatal e último elo de uma deliciosa
e progressiva cadeia de ternuras; é preciso que ela seja a extrema nota de
um crescendo de beijos; é preciso que esse momento supremo chegue naturalmente,
chamado por todo o corpo reclamado por todos os sentidos, e não decretado
friamente por uma lei sacramental, numa situação adrede preparada pela família
dos noivos. Para que tão transcendente destino fisiológico se cumpra, sem
detrimento do pejo feminil e da dignidade virginal, é indispensável que os
dois agentes não tenham, no ato, absoluta consciência, nem a menor preocupação
de o consumarem; é preciso que o seu arroubo amoroso haja chegado à loucura,
depois de vibrada toda a escala de carícias, e lhes roube, nesse súbito instante
delicioso, a luz do julgamento e da razão; e que os dois na insânia do seu
desejo, sem juízo para refletir, sem olhos para ver, esquecidos de tudo e
cada um de si mesmo, se confundam num só desvairamento de volúpia, e só acordem
do seu transporte, e só dêem acordo do seu espírito, depois da ampla consumação
carnal.
A crise amorosa, levada pelas carícias ao auge do desejo, atinge às proporções
do delírio; e esse delírio, essa momentânea inconsciência dos atos praticados,
é o véu providencial com que a natureza esconde, castamente, no supremo instante
da vitória da carne, a nudez do homem aos olhos da mulher, a nudez da mulher
aos olhos do homem.
Sem esse véu, que os envolve e os oculta à vergonha um do outro, o primeiro
amor de uma donzela fica tão prostituído como esses frios amores que os libertinos
compram no regaço das perdidas. Ao contrário do que disse S. Mateus, no versículo
28 do seu livro, e com o que Tolstoi fecha o seu duro libelo niilista contra
a propagação da espécie, todo o contacto carnal, que não vier precedido de
um desejo invencível, é imoral e vicioso. E, pois, todo o enlace de sexo,
produzido exclusivamente pela fatalidade dos instintos, sem intervenção absoluta
da vontade moral, não é obra da criatura, e sim da natureza, ou de Deus, e
como tal deve ser respeitável e sagrado, seja ele na vida dos homens ou na
vida dos brutos, ou na vida das plantas; ou, quem sabe? na vida dos astros!
* * *
Haverá coisa mais repugnante e mais estúpida do que esse velho costume de
preparar a cama dos noivos? e cobri-la de flores, e cercá-la de obscenos cuidados?
E mais: depois de um baile, depois de escandalosas fórmulas e cerimônias,
em que entram véus brancos e grinaldas de flores simbólicas e depois da vexatória
exposição das duas vítimas a todos os olhares e íntimos juízos dos convidados,
conduzir a pobre noiva, toda paramentada, para o quarto que lhes destinam,
para o toro do defloramento, no meio de um cerimonial de palavras e gestos,
trocados entre madrinhas e padrinhos; e depois – abandoná-la ao noivo, de
quem se presume não haja nunca recebido uma carícia sensual; e deixá-los a
sós, presos na mesma alcova, forçosamente distraídos do seu desejo, a olharem-se
um para o outro, sem ter nenhum o que dizer, que não seja afetado e banal;
ela a tremer, intimidada pelo desconhecido e pelo terror do que a espera;
ele constrangido e aflito, por sentir-se fora de seus hábitos regulares e
longe do seu bem-estar, e tendo de despir-se ali mesmo, defronte de uma virgem,
e deitar-se com ela na mesma cama, e, afinal, tomá-la convencionalmente nos
braços, enquanto a paciente, com toda a lucidez do seu espírito, entanguida
e sarapantada de susto, em vez de pensamento de amor, em vez do apócrifo “Enfin
seuls”, só rumina e babuja entredentes esta frase ridícula e medrosa: “É agora!”.
Então, haverá coisa mais repulsiva e mais bárbara do que isto?
Ainda hoje me doem amargamente no coração as angústias que sofri na minha
primeira noite de casamento, e juro, não obstante, que amava muito meu marido,
e que, muito e muito, o desejei antes, nos meus enganosos sonhos de felicidade.
Mas, quando me vi a sós com ele, fechada no mesmo quarto, o meu desejo único
foi fugir e pedir socorro.
Toda aquela indecorosa encenação de amor; todo aquele cerimonial de que cercaram
o meu tálamo; todo aquele desusado e insociável luxo de que sobrecarregaram
o aposento, iluminado por uma lâmpada de vidro azul; e o luxo afetado e espetaculoso
da cama, e o luxo intencional de rendas e fitas na camisa que me vestiram,
e os calculados perfumes que me puseram no corpo; tudo isso, tudo me sobressaltava
e me fazia nervosa. Demais, o ar de Virgílio também me constrangia; ele não
tinha nessa ocasião as suas maneiras simples, o seu ar franco e simpático
de bom rapaz; estava até esquerdo, desajeitado, procurando disfarçar o seu
invencível embaraço.
A verdade é que nos sentíamos corridos e vexados, comparecendo assim, um
defronte do outro, naquele isolamento de alcova, mais que os dois criminosos
do paraíso, no momento do pecado capital. Prenderam-nos ali dentro, para quê?
Para uma coisa inconfessável e ridícula, desde que não era naturalmente provocada
pelos transportes da nossa mocidade, posta em jogo pelo amor. Não tínhamos
palavras um para o outro. Virgílio, todavia, caiu-me aos pés, beijou-me as
mãos e agradeceu-me com bonitos termos – aquela felicidade – que lhe era,
afinal, concedida, depois de tanto desejada.
Aquela felicidade! mas eu sentia perfeitamente que tudo isso, afirmado por
ele nessa ocasião, não era sincero; dizia-o para dizer alguma coisa, para
dar qualquer solução àquela cena difícil; e o que eu lhe respondi foi tão
falso como o que ele me mentiu. Se eu lhe pudesse falar com franqueza, se
não fosse ofendê-lo confessar-lhe a verdade, dir-lhe-ia que, naquele momento,
o meu desejo era só, e só, que ele se retirasse da minha presença; dir-lhe-ia
que, naquele instante, tudo desejaria, menos fazer a consumação carnal do
amor que eu lhe dedicava.
E percebi claramente que Virgílio ia lançar-se nos meus braços, não por impulso
do seu amor, aliás forte e verdadeiro, mas porque era essa a sua obrigação
de noivo; percebi claramente, e afianço, que, se ele pudesse saltar por cima
dessa noite difícil, sem tocar-me no corpo, e acordar no dia seguinte já familiarizado
comigo, e já desoprimido do constrangimento que a nós ambos vexava – aceitaria
essa graça como um presente do céu. E, no entanto, ia se despindo, afetando
um grande empenho em achar-se ao meu lado, na cama…
Pobre de nós! começamos a mentir um para o outro desde o primeiro dia do
nosso consórcio!
E eu já não tremia; sentia-me agora revoltada, sentia raiva! contra quem,
não sei; mas sentia ódio, sentia cólera. Não que me repugnasse a idéia do
primeiro contacto com um homem; não que tanto me apavorasse o segredo nupcial;
mas porque não caminhara até ali arrebatada pelas garras do meu desejo; arrastada
pelos impulsos do meu sexo, e porque tudo aquilo grosseiramente desrespeitava
o meu direito de vontade, rebaixava o meu caráter e ofendia o meu pudor.
* * *
A minha noite de núpcias foi, pois, uma noite de sacrifícios, nem só para
mim, como sem dúvida para meu marido. Não lhe compensara, decerto, tamanho
constrangimento o complicado prazer, que porventura lhe proporcionou o nosso
primeiro contacto, no formal desempenho daquele grosseiro enlace.
Não tive o menor gozo; tudo me fez sofrer, sofrer deveras; não só no moral,
como fisicamente, e muito. Sofri e padeci, porque, na preocupação sobressaltada
de esperar aquela noite, e no constrangimento e no choque daquele primeiro
encontro, assim tão cerimonioso, tão previsto e tão festejado, meu corpo,
sem atingir o necessário grau de apetite sexual, privou-se da indispensável
e benéfica lubrificação com que a natureza protetoramente habilita e prepara,
em tais casos, os nossos delicados órgãos do amor. E essa falta transformou
um ato, que devia ser bom e natural, em verdadeira violência. Fez-me doer;
fez-me chorar.
Apesar de toda a minha ingenuidade de donzela, compreendi que não era aquilo,
com certeza, o que a natureza queria desempenhado; não era aquilo o que todo
o meu corpo adivinhava depois da puberdade, reclamando-o com delícia, e enchendo-me
os sonhos de amorosos enleios voluptuosos, em que o espírito se me aniquilava
e só a matéria palpitava de gozo. Não! ali, naquela terrível noite, a minha
razão não sucumbiu, nem os meus próprios sentidos tomaram parte na vergonhosa
pugna; fiz-me paciente resignada, cônscia de estar cumprindo uma obrigação
penosa, aflita por ver-me livre de semelhante sacrifício. Que fosse o verdugo
meu marido, fosse Virgílio ou qualquer outro homem, ser-me-ia igual, porque
não era o amor que lhe votava o que me retinha pregada àquela cruz, crucificada
naquele pomposo leito de dores.
XVI
Ó mais tarde comecei a achar prazer nas ligações com meu marido; os primeiros
dias foram horríveis. Ainda me lembro do calefrio de medo que tive na segunda
noite, quando ele quis recomeçar a campanha da véspera.
Para evitar à minha filha todo esse ridículo infortúnio, entendi e resolvi
que ela devia entrar na sua vida de casada sem “pagar patente” com a clássica
lua-de-mel”. De sorte que, na mesma manhã do casamento, achando-se já tudo
disposto, carreguei com os noivos para a fazenda de um amigo meu, no interior
da província, a qual de antemão me fora franqueada. A fazenda estava entregue
apenas aos cuidados do feitor e da escravatura, enquanto os senhores passeavam
na Europa.
Acomodamo-nos por lá como nos foi possível, sem arranjos especiais de quarto
de noivos. Nada disso! Cada um tomou conta de seu aposento e tratou de si.
Durante a viagem de trem, e principalmente depois de chegados à fazenda,
meu genro, que não deixava a mulher um só instante, furtava-lhe beijos sempre
que eu me afastava deles, ou quando me supunham muito distraída. Não os perseguia
nem rondava, mas também não lhes facilitava ocasiões para os arrulhos. A gente
da casa não sabia se eles eram irmãos, ou primos, ou casados, ou noivos, ou
simplesmente namorados. O quarto de Palmira era distante do quarto do marido,
e entre os dois estava o meu. Esta disposição foi intencionalmente estabelecida
por mim: se eles com efeito se sentissem arrebatados um para o outro, o próprio
desejo havia de aproximá-los de qualquer modo, não era absolutamente necessário
que os fechasse eu dentro da mesma prisão, como fizeram comigo e Virgílio,
e como se faz com as cadelas e os cães de raça que têm de procriar.
Como eles se uniram pela primeira vez, em que ocasião e em que circunstâncias,
só vim a saber meses depois, narrado comovidamente por minha filha, que até
hoje guarda a mais doce, a mais poética e consoladora impressão desse momento
de completa felicidade.
Nem foi em casa, foi num sombrio, ignorado canto da mata deserta, sítio protetor
de outros amores, de cujos suspensos ninhos partiam bíblicos duetos de ternura.
Não foi sobre colchas bordadas, nem lençóis de renda adrede preparados, mas
no regaço carinhoso da floresta, ao casto e lascivo respirar da natureza,
na confidência maternal da terra.
Tínhamos chegado à fazenda às onze horas da manhã, com tal fome que, mal
nos desfizemos do pó da viagem, atiramo-nos ao almoço vorazmente. Almoço de
roça, que são os melhores, porque são os que se comem com mais apetite. Depois
não pude resistir ao cansaço daquele dia tão cheio, deitei-me, e quando acordei
soube que minha filha tinha ido dar um giro pelo campo com o – namorado. Achei
natural, e nada lhes notei na fisionomia quando os vi de volta às cinco horas
da tarde. Apenas uma coisa me impressionou suavemente, é que Leandro, ao entrar
em casa, tomou-me as mãos com meiguice e deu-me um beijo na testa. Com esse
beijo quis ele naturalmente dizer que já era meu filho, mas na ocasião não
dei por isso, notei sim que as suas roupas, como os cabelos de Palmira, respiravam
cheiro de folhas verdes esmagadas.
Seu eu reproduzisse aqui a descrição que dela ouvi desse furtivo passeio
ao fundo da mata virgem, deixaria entre estas pobres linhas uma vivida página
de romance, mas como não sou romancista, nem estou fazendo literatura, mas
tão-somente escrevendo uma justificação de meus atos de mãe e sogra, destinada
a dois únicos leitores – minha filha e meu genro, nada direi do que então
se passou entre eles, mesmo porque, a respeito de tal cena, é o caso de afirmar
com segurança que os meus leitores a conhecem já melhor do que eu.
Foi no mesmo dia, e eu, tola que sou! imaginava ainda que os brejeiros esperassem
ao menos pela noite. E o mais curioso é que nunca percebi, mesmo depois, as
vezes em que eles se uniram. Durante o dia estávamos quase sempre juntos;
às horas de recolher cada um ia para o seu quarto, depois de enchermos o serão
a fazer música ou canto, ou jogando cartas, até à ocasião do chá; e durante
a noite nunca ouvi o ruído de uma porta que se abrisse ou fechasse, nem senti
passos na varanda, nem rumor de cochichos abafados nos aposentos dela ou dele.
Podem gabar-se, os matreiros, de terem sido umas verdadeiras abelhas do amor.
Nessa ocasião o meu empenho único a respeito deles, era não deixar que faltassem
ao preceito imposto pela Bíblia no Levítico, vers. 19, do seu cap. XV, ficando
ao lado um do outro durante o período condenado. E assim foi. Logo que percebi
a aproximação da crise, mandei fazer as malas e determinei levantarmos acampamento
na manhã seguinte, sem dar ouvidos às súplicas e às reclamações dos dois.
Meu genro parecia ter endoidecido com o fato, amuou-se, resmungou, não quis
jantar; contentei-me pela minha parte em lembrar-lhe as condições do casamento.
Ele, sem se resignar de todo, recorreu então aos meios humildes; tomou-me
nos braços, beijou-me, pediu-me por amor de Deus que lhe concedesse mais uma
semana de lua-de-mel, apenas uma semana!
Fui inflexível; se cedesse logo à primeira vez, estaria desmoralizado para
sempre o meu programa.
A volta da fazendo foi por conseguinte quase muda e muito triste. Palmira
chorava em silêncio ao canto de um banco do vagão; o marido, ao lado dela,
de pernas cruzadas, sobrolho franzido e dentes cerrados, não emitia palavra,
nem desviava os olhos de um só ponto, a não ser para desferir de vez em quando,
contra mim, um fulminante olhar de ressentimento e raiva. Ia furioso!
E, já na cidade, lá em casa nas Laranjeiras, as despedidas foram dolorosas.
Uma cena violenta! – frases de maldição! Houve soluços por parte de minha
filha; lágrimas por parte de Leandro. Sim, eu vi as suas lágrimas, ele é que
não viu as minhas, porque lhas não mostrei. No entanto o meu pobre coração
chorava> doía-me separá-los tão depressa. E quando os contemplei abraçados,
a despedirem-se, com os rostos escondidos no pescoço um do outro, o corpo
de minha Palmira sacudido pelos soluços, sem ânimo nenhum dos dois de largar
dos braços o consorte, apertou-se-me tanto a alma, que, por pouco, não fraquejo
e abro mão da disciplina, deixando-os ficar juntos o tempo que entendessem.
Felizmente, porém, não sucumbi à momentânea fraqueza e tive alento para dizer
ao rapaz em tom sereno e já com a voz segura:
– Bom! O caso não é assim também para tão grandes despedidas! A separação
não é tamanha! Agora vai o senhor, meu estimável filho, para a sua casa, e
nós cá ficamos em nosso canto. Pode visitar-nos uma vez por dia, até nova
ordem. Não durará muito a interdição – descanse! Olhe: venha jantar amanhã
conosco… O Dr. César deve estar aí, e temos de conversar os três sobre interesses
comerciais. Não venha antes das três horas da tarde. Adeus, adeus.
E Leandro destacou-se com efeito para a sua casa, acompanhado pelos olhos
da esposa, que não saiu da janela enquanto ele não dobrou a esquina da rua,
depois de repetidos sinais de adeus de parte a parte.
Como passara meu genro essas primeiras horas de isolamento depois de quase
um mês de convivência com a sua amada, só o soube muito mais tarde, repetido
por minha filha, a quem ele no dia seguinte descreveu os seus tormentos. Ela
também estava então inconsolável; chegou a fazer-me biquinho. Eu, porém, tinha
de sobra no meu amor materno segredos para o desarmar contra mim. Consolei-a
o melhor que pude.
Mas que alegrão no outro dia, quando os dois se encontraram de novo! Dir-se-ia
que a ausência não fora de vinte e tantas horas, mas de vinte e tantos meses!
Leandro acudiu pontualmente à hora marcada por mim. Palmira, ao perceber da
janela que ele chegava, lançara-se com tal ímpeto pelo corredor, que não sei
como não rolou a escada. Recebeu-o nos braços, chorando de alegria.
Ele trouxe-nos flores; beijou-me a face, como sinal de que já não estava
agastado comigo, e abraçou expansivamente o Dr. César, que também fora ao
seu encontro com um calmo sorriso e uma amorável frase paterna.
E o nosso jantar foi o mais alegre que tivemos até aí. Abriu-se uma garrafa
de champanha.
Foi bastante a separação de um dia para que voltassem ao casal todos os arrulhos
de antes do matrimônio. Meu genro tocava com os pés, por debaixo da mesa,
os pés de Palmira, e segurava-lhe furtivamente a mão, e dizia-lhe em voz baixa
sedutoras palavras de amor, requestando-a de novo para um novo casamento.
Eram felizes. E eu me sentia também feliz, ao reflexo da ventura dos dois;
e sorria para César, que esse bem compreendia o alcance da minha felicidade
e orgulhava-se de ter contribuído para ela.
À meia-noite dissolveu-se a roda. Leandro retirou-se com o médico, ficando
ajustado que voltariam ambos no dia seguinte às mesmas horas. O meu velho
e querido amigo disse-me, ao sair, por ocasião de dar-me a mão:
– Vai muito bem! Vai muito bem!… Continue, Olímpia!
– Creio que consigo fazer o milagre… segredei-lhe, abraçando-o.
– Consegue, consegue tudo! Você é uma santa, minha amiga! Adeus.
XVII
Foi uma bela inspiração ter feito Leandro entrar para o comércio. Entrou
com o pé direito. A casa a que ele se reuniu começou, com o novo capital,
a prosperar de um modo admirável. Tornou-se rapidamente conhecido na Praça
e conquistou logo bonito crédito. A sua atividade e a sua inteligência, aliás
comuns, encontraram bom campo para exercitar-se, sem o menor prejuízo do seu
sistema nervoso.
Agora, já não lamentava eu que ele não fosse oficial de marinha. Reformara
todo o meu julgamento a esse respeito, por deduções que exporei mais adiante.
Ao contrário do que sucederia se Leandro fosse meu filho e não meu genro,
alegrava-me com ser ele simples negociante e não notável artista, ou afamado
escritor, ou vulto ilustre na ciência. No exclusivismo do meu amor de mãe,
teria até um grande desgosto se o marido de minha filha se revelasse, de um
dia para outro, homem de talento singular e começasse a ser aclamado pelo
público. Deus me livre! – seria uma desgraça!
Nem falar nisso é bom! o homem de talento não pertence à família, pertence
à multidão, pertence à sua pátria, pertence ao mundo pertence ao século; que
sei eu? pertence ao diabo, pertence a tudo, a tudo, menos à pobre mulher com
quem caiu na perniciosa asneira de casar. Além do que, o constante esforço
encefálico, para conceber e produzir grandes obras de arte, traz fatalmente
consigo o precoce esgotamento nervoso; o que, suponho, não preciso dizer que
é de suma importância na felicidade conjugal.
Se eu fosse homem, sacrificaria de bom grado boa parte da minha força nervosa
pela glória de ser um grande escritor, ou um grande artista, ou um grande
sábio; se eu tivesse um filho daria prontamente, nem só minha saúde, mas a
vida, se em troca de tal sacrifício alcançasse ele aquela glória; mas o que
eu tinha não era um filho, era uma filha; logo precisava de um “bom genro”,
de um bom marido para ela; e queria pois que esse meu genro fosse talhado
pelas conveniências particulares de sua mulher e não pelas conveniências gerais
de qualquer homem.
Parece absurdo, mas não é. Absurdo é o protesto que alguns artistas fazem
contra as competentes sogras, porque estas, na vigilância do seu amor materno,
se revoltam em guerra aberta contra o absorvente egoísmo do talento deles
e contra a absorvedoura preocupação das suas glórias individuais, cônscias
de que nisso reside o terrível inimigo da felicidade doméstica da filha.
Não é raro ouvirem-se deles exclamações desta ordem:
“Vejam o que é ser sogra! A minha já me declarou, face a face, que preferia
fosse eu um homem vulgar, mas – bom marido – a ser quem sou, causando à filha,
apesar do meu nome e do meu talento, as contrariedades de que ela se queixa!
Já particularizou até com toda a franqueza que preferia para genro um taverneiro
estúpido, porém exemplar como esposo, a mim ou ao mais ilustre artista do
universo!”
Decerto! Elas têm toda a razão. Não compreendem esses senhores sonhadores
de glória que a sogra, assim praticando, está perfeitamente dentro do seu
programa de mãe amorosa, ao passo que eles, contraindo casamento, traíram
o programa do seu ideal artístico, aceitando um novo ideal incompatível com
o primeiro. É impossível viver de corpo e alma para a arte e para a glória
e viver ao mesmo tempo para a família! Desses dois ideais um triunfará em
sacrifício do outro. Há uma coisa pior do que ficar eternamente solteiro –
é casar, sem sentir aptidão para ser um bom chefe de família.
“Quem não pode com o tempo não inventa modas” diz a sabedoria do povo.
A boa sogra, ou, por outra, a boa mãe, quer que seu genro seja um bom marido
de sua filha e nada mais. Não é o talento, nem são as glórias dele que a interessam,
mas é só a felicidade dela. Para isso a boa mãe ou boa sogra procura agradar
o genro, fazer-lhe as vontades, não contrariá-lo, adulá-lo até, levar-lhe
a papinha à cama; mas não por ele próprio, e sim porque tudo isso se traduz
em benefício da filha.
Leandro, pois, ao meu ver, nada por si só representava; valia muito, porém,
desde que eu o julgasse como auxiliar indispensável à felicidade de Palmira.
Por conseguinte, sob o ponto de vista do meu egoístico e extremoso amor materno,
meu genro, quanto menos individualidade intelectual tivesse, tanto melhor
para mim, porque tanto mais seria ele absorvido pela esposa.
A um genro basta a inteligência apenas necessária para não ser ridículo e
para não fazer maldades conjugais por estupidez. Na família, em que ele entra,
e à qual fica adido, nunca poderá atingir no amor dos pais o primeiro plano,
que esse pertence aos filhos. É um auxiliar do amor, como certos artistas
de ordem subalterna são os auxiliares dos artistas criadores, ou de primeira
ordem. Um genro é para nossa filho o que o gravador é para o pinto original,
de cujo quadro ele tira o seu desenho; o que o cantor é para o compositor
musical; o que o ator é para o autor; o que o executor de estátuas é para
o estatuário que as concebeu; o que o mestre-de-obras é para o arquiteto,
e o que o tradutor ou o compositor tipográfico é para o escritor. Do mesmo
modo que o artista criador não pode dispensar o artista auxiliar, porque precisa
dele para o desempenho da sua produção, assim, nós sogras, não podemos dispensar
o genro. Não o desprezamos, ao contrário – tratamo-lo com todo o carinho;
mas o seu papel em nosso amor e em nosso interesse, nunca será o primeiro
e sim o segundo, porque o primeiro pertence à sua mulher, que é nossa filha.
O que uma boa sogra tem a pedir ao genro não é estima, nem carinhos para
ela; não é tampouco que tenha talento ou seja um grande homem, é pura e simplesmente
que lhe faça a filha feliz. Se o genro fizer isto, a sogra nada mais tem a
exigir dele, e há de ser boa por força de regra.
A sogra só é má quando a filha é infeliz com o marido, ou quando, o que é
anormal, não sinta amor de mãe.
Não! para esposo de minha filha não quereria nunca um gênio, nem algum herói
glorioso, fosse ele lá de que espécie fosse; para meu genro queria simplesmente
um homem – um bom marido.
Pois bem: o negociante, segundo o meu novo modo de julgar, é quem melhor
preenche esse ideal.
Vejamos por quê:
O negociante, na comunhão do trabalho e da luta pela vida, representa apenas
o cômodo papel de uma máquina de especulação movendo-se tão-somente pela avidez
do lucro pecuniário. Para abraçar e exercer a sua carreira, ele não precisou
pôr em contribuição as suas forças nervosas, estudando um curso difícil e
fatigante; precisou nada mais do que exercitar-se materialmente na prática
do comércio. O indivíduo, sem técnica, ou habilitação para produzir qualquer
trabalho, o indivíduo intelectualmente nulo, pode abraçar, de um dia para
outro, a carreira comercial, e pode ser feliz. Não são raros os exemplos de
negociantes ricos, considerados e poderosos, absolutamente analfabetos e rasos
de inteligência.
A ignorância e a vulgaridade intelectual são até requisitos indispensáveis
ao bom êxito dessa carreira, tanto quanto a ilustração e o talento são qualidades
negativas, porque os escrúpulos, as suscetibilidades, a fidalga e generosa
linha moral de um espírito superior e cultivado, representam sérios impedimentos
para o pronto alcance de sucesso na vida comercial.
E, se descermos à análise do mercador de baixa escala, esse que por aí se
chama “negociante a retalho”, então poderemos dizer que o homem de negócio
é o que menos se gasta nervosamente no atrito do esforço comum, o único que
nada produz absolutamente, o único por conseguinte que não trabalha, e no
entanto o que mais ganha e acumula dinheiro. Esses formam uma classe especial,
e especial é o prisma por que tudo vêem. Até a sua suposta honradez é singular:
Não pagar, por exemplo, uma conta ao dia e à hora certa, é para um negociante
o ato mais desonesto que se pode cometer, mas furtar no custo de qualquer
objeto vendido, ou enganar o comprador, impingindo gato por lebre, isso é
simplesmente fazer bom negócio.
E tanto assim é que, esse mesmo traficante, que leva a iludir ao próximo
todos os dias, a toda a hora, a todo o instante, quando encontra um mais velhaco,
caso raro, que por sua vez consiga enganá-lo, comprando-lhe qualquer objeto
a crédito e não pagando no prazo ajustado, revolta-se furioso e quer brigar,
em vez de, por coerência e por honra aos seus princípios, atirar-se-lhe nos
braços, exclamando: “Ora até que afinal, entre tantos tolos, encontro um esperto
dos meus! Sejamos amigos!”
A honra do negociante é diferente da honra dos outros homens. O militar,
por exemplo, que não solver uma letra no dia do vencimento, não fica por isso
desonrado, como não fica desonrado o negociante que levar um par de bofetadas;
mas, se invertermos os casos, tão desonrado fica um como o outro. Isto quer
dizer que a chamada honra do negociante não reside, como a de toda a gente
honesta, na consciência do respeito a si mesmo e na imputabilidade pessoal,
mas no crédito abstrato da sua firma ou da sua casa de comércio; por isso
que ele, mesmo sem levar bofetadas, mas cometendo toda a sorte de baixezas,
enganando, mentindo, adulando o freguês para lesá-lo, continuará a ser um
“homem honrado”, desde que pague em dia as suas contas.
O mais interessante, porém, é que a sociedade brasileira, nem só lhe dá acesso,
como ainda o coloca no primeiro plano da sua primeira camada, emprestando-lhe,
como para justificar-se desse erro, aos olhos dos que não são traficantes
comerciais, o título das duas qualidades que ele menos possui: – trabalhador
e honrado.
Honrado trabalhador! Mas trabalho quer dizer técnica e quer dizer produção;
e o negociante não produz e só tem uma ciência – a de enganar o incauto consumidor,
para apanhar-lhe, como as cocotes, o dinheiro que puder. E eu, cá por mim,
nesta questão de exploração e gatunagem, prefiro, com franqueza, e acho menos
nocivo e mais sincero, o gatuno que rouba o relógio ao transeunte ou arrebata
um queijo da porta do súcio, porque esse é castigado pelo seu próprio aviltamento
e arrisca a liberdade quando furta; ao passo que o outro a nada se expõe e,
em vez do castigo correcional, recebe em prêmio da sua próspera ganância todas
as honras e todas as considerações da nossa melhor sociedade.
Ninguém será capaz de apresentar-me o exemplo de um taverneiro que não furte
ou não tenha furtado; no entanto os proprietários prediais, desta aristocrática
cidade, preferem, para a indispensável garantia dos aluguéis das suas casas,
a qualquer outra firma, a firma de um vendeiro.
Isto tudo para explicar que eu, quando falo da conveniência de ser o marido
negociante, não quero dizer que desejaria para esposo de minha filha um taverneiro
ou coisa que o valha; mas um desses homens de ação e de atividade, que conseguem
fazer da inteligente especulação do capital ou do crédito um bom e rendoso
meio de vida e de riqueza. Em abono da classe em geral, afirmarei que esses
são incapazes de pequenos furtos e jamais sujam as mãos no cobre alheio, porque
só tocam em ouro, e ouro não suja, como eles dizem, ainda mesmo que não seja
o nosso. São homens limpos, afáveis, em geral de boas maneiras, vivos, penetrantes
e muita vez inteligente. A um conheci eu, muito polido e galante, que conseguia
casar com o seu hebraico e frio entusiasmo pelo rei dos metais certo calor
de imaginação poética. Esse dizia, sorrindo de volúpia, que “o juro é o perfume
do capital” e outras tantas coisas assim bonitas e inspiradas. Era um encanto
ouvi-lo nos seus sonoros devaneios.
Na sua qualidade de mero especulador parasitário da produção científica,
industrial, artística, literária ou agrícola, não passando nunca de ávido
intermediário entre o produtor e o consumidor, o negociante não se esgota
nervosamente, sem todavia deixar-se ficar em completa ociosidade, tão enervante
e perniciosa como o excesso de trabalho intelectual; e por isso deve ser um
excelente procriador. A mulher tem sempre a lucrar fisiologicamente todas
as vezes que o marido, em vez de trabalhos intelectuais, execute serviços
materiais. O espírito perde, mas o animal aproveita. E a felicidade doméstica,
a despeito de tirar da imaginação o segredo de manter o entusiasmo do amor,
baseia-se menos no espírito que na matéria.
Não se suponha que, por ser material a vida do comércio, sejam materialistas
os negociantes e sejam incapazes das ilusões do amor. Não! o fato justamente
do positivismo forçado da sua profissão, leva-os por uma simples lei de contrastes,
a buscar nas coisas idealizáveis o necessário repouso do pensamento. Os artistas,
os filósofos e os poetas, esses sim, é que, fazendo do ideal matéria de trabalho
e cabedal de ofício, precisam ser materialistas nas horas de descanso.
O poeta, quanto mais sublime e elevado for na sua obra, tanto mais prosaico
e terrestre será na vida privada; ao passo que o burguês do comércio, depois
de deixar o estúpido serviço, começa a viver para a fantasia e para o coração.
O poeta sonha quando trabalha e animaliza-se para descansar. O comerciante
trabalha como animal e repousa com o sonho. Aquele precisa deixar folgar o
cérebro com a vida do corpo, e o outro dá folga ao corpo com a vida do pensamento.
É por isso que todo homem de vida material detesta, em questões de arte,
o naturalismo e a verdade, encontre-os na estatuária, na pintura, no romance
ou no teatro, e adora o maravilhoso e o fantástico. São como as crianças.
O mercador do Brasil, quando não sonhe outras quimeras, com uma nunca deixa
de sonhar – é a da comenda. E, mal a suponha realizada, começa a sonhar com
o título de barão, e depois com o de visconde ou conde.
Ora, se o poeta, ou qualquer homem de talento só tem ilusões dentro do seu
ideal artístico ou científico, ao contrário do que sucede ao homem de vida
prática, e, se para a felicidade doméstica da mulher, é indispensável a ilusão
do amor por parte do marido, segue-se que para este fim é preferível entre
aqueles o segundo e não o primeiro. E, como nos diversos ramos da atividade
material, o comércio leva grandes vantagens sobre todas as outras ocupações
desse gênero, conclui-se que o negociante é quem melhor preenche o ideal do
esposo.
– Então, a mulher só pode ser feliz casando-se com um negociante? perguntar-me-ão
talvez.
– Não digo isso; mas, com efeito, nessa ordem de casamentos, é onde relativamente
aparece menor número de desgraças conjugais.
Há porém um ponto desta questão que jamais foi atendido e que merece todavia
ser estudado de perto, porque destrói em parte as vantagens do negociante
como esposo. Vem a ser o seguinte:
O tipo de negociante em geral não é o de um homem fascinador. Além da falta
de talento que o atirou para a vida material, faltam-lhe o hábito e as boas
maneiras da gente fina; falta-lhe elegância, bom gosto; falta-lhe educação.
Ora, sucede quase sempre que a gentil rapariga, ao passar das mãos dos seus
parentes para os braços dele, entende fazer com isso um sacrifício à família,
porque, de si para si, já tinha naturalmente criado na fantasia um ideal de
noivo muito diferente do que lhe deram; quando já não o tenha escolhido real
e palpável, mas em silêncio, entre os estudantes acadêmicos ou entre os poetas
e artistas pobres.
O noivo adotado pela família é claro que será o prevalecente, e mais se o
pai da moça for comendador.
Pois vejamos agora quais são as tristes conseqüências desse casamento, feito
assim, só com a vontade do comendador pai e só com a vontade do futuro comendador
genro. Admitamos, antes de mais nada, que a desposada é virtuosa e compreende
perfeitamente os deveres do seu novo estado, o que a torna incapaz de trair
o marido. É esta a melhor hipótese. Ainda assim, o que sucede?
Sucede que ela, desiludida por aquele casamento, que em nada veio realizar
os seus sonhos de felicidade, resigna-se, mas sem fazer o menor empenho para
tornar melhor e mais feliz do que a dela a vida do esposo. Não o desonra,
mas também não lhe dá um só momento de verdadeira alegria e de verdadeiro
amor. Ele, pelo seu lado, que esperava achar no matrimônio a realização de
uma contínua felicidade, honesta e calam, fica por sua vez desiludido e desesperado,
e começa a ser desde então nada mais que um burro de carga daquela casa, que
nunca foi o seu lar ou o seu ninho, pois que não se compreende ninho ou lar
sem amor.
Vem o filho, e a desventura doméstica dos pais transforma-se então em novos
elementos de desgraça para a geração inteira: A mãe, que até aí conservou
intacto o cabedal de meiguice feminil com que veio ao mundo, põe-se a adorar
o bebê e despeja-lhe de uma só vez, na tenra moleira, todo esse inestimável
tesouro de ternura, que ela trazia no coração para gastar durante toda a sua
vida de mulher; o marido, por outro lado, não tendo tido também até aí com
quem aproveitar o seu farnel de dedicação e de amor, porque encontrou a esposa
sempre de peito fechado para recebê-lo, recorre ao filho, e começa a fazer
dele o exclusivo objeto de todos os seus carinhos e exagerados desvelos. Se
o pimpolho não desmedra e morre logo no berço, sufocado de beijos e abraços,
qual será a conseqüência desse excesso de mimos? Será que a criança fica irremissivelmente
estragada e perdida para todos os efeitos, fica malcriada, voluntariosa, insuportável
de gênio: fica reduzida a um mimalho adulado pelo papá e pela mamã. E como
o desvelo por ele foi até ao ponto de o não deixarem correr e brincar com
liberdade, e como sempre o trouxeram afogado em ondas de rendas e de fitas,
e de fraldas e cueiros; e como lhe não deixaram descansar o estômago das balas
de açúcar e confeitos e bonecas meladas, fica ainda o desgraçadinho tão minguado
de corpo como de espírito.
E que homem pode vir desse mimanço? O pai, comendador, destina-o para doutor,
está claro! mas, à proporção que o filho for crescendo, os mimos vão aumentando,
e o infeliz ir-se-á tornando pior, cada vez mais insuportável para os estranhos,
e cada vez mais adulado pelo papá e pela mamã. Como até então ninguém o constrangeu
ao menor esforço ou dever de trabalho, ninguém obterá também dele que consiga
aprender alguma coisa; ficará condenado a ser um belo tolo; adquirirá vícios
antes de ser homem; o seu curso acadêmico, se chegar à academia: o que é natural
porque é fácil, será um curso de bebedeiras, de pândegas e de aprovações obtidas
à custa do aviltamento de seu caráter, ou do caráter dos pais. E o mimalho
acabará fatalmente por apresentar ao mundo mais um espécime desses milhões
de bacharéis inúteis, pretensiosos e tristes, incapazes da obra mais insignificante,
mantendo-se à custa da família ou da herança até à velhice, e só vivendo para
desorganizar o meio em que vegetam.
Eis por que o negociante nem sempre convém para marido de nossas filhas.
E eis por que, para sintetizar a escala geral da família brasileira feita
pelos portugueses, formei este axioma:
Pais – comendadores; filhos – bacharéis; netos – mendigos.
Se outras razões não ocorressem para promover eu a todo o transe a conservação
do amor sexual entre minha filha e meu genro só o fato de que o contrário
seria nocivo a meus netos, mereceria de mim todos os sacrifícios que àquela
causa tenho até hoje dedicado.
XVIII
Com orgulho e com prazer declaro que a vida conjugal de minha filha ia por
adiante, desenrolando-se feliz. Meu genro continuava a morar sozinho em Botafogo
e nós duas no bairro de Laranjeiras. Ao fim de vinte meses de casados, Leandro
era para a sua adorada Palmira o mesmo amante dos primeiros dias.
Mas é que nunca se aproximou dela nos período em que a Bíblia manda que o
homem se afaste da mulher – por imunda; nem jamais demorada promiscuidade
deu-lhes margem e vagar a que se estudassem em silêncio, no enojo de bocejados
lazeres, ao lado um do outro na mesma cama, quando o corpo, cansado de amar,
deixa que só o pensamento trabalhe por sua conta própria, enquanto ele repousa.
Nunca enfim tiveram ocasião de enfastiar-se juntos, consorcialmente, porque
o tempo de que dispunham nas suas desejadas entrevistas era pouco para os
interesses de seu amor e para o muito que cada um, de parte a parte, tinha
para dizer ao companheiro, com respeito à felicidade de ambos.
Eram felizes. Contudo, mais de uma vez, tentou Leandro imbecilmente revoltar-se
contra mim, queixando-se com amargura da suposta falsa posição que eu lhe
impusera ao lado da esposa. Chamei-o à razão e ao bom desempenho de sua palavra
de honra, sem lhe dar todavia segura explicação do meu modo de proceder, porque
me não convinha ainda que ele alcançasse por inteiro o secreto espírito das
minhas intenções. Palmira também, a princípio, não parecia muito disposta
a conformar-se com o meu regime estabelecido, mas tal carinho pus no que lhe
disse, e tal eloqüência emprestou a meu amor de mãe as minhas palavras, que
se ela em verdade não se deu por convencida, pelo menos entregou-me os pulsos
resignada.
Não me desgostava ouvir-lhe as queixas; sinal era de que amava fisicamente
o marido, virtude esta que se vai fazendo rara em nossos dias.
– Olha, minha filha, disse-lhe uma vez, enquanto costurávamos à mesma mesa
– o que não poderás negar são as vantagens, que tens sobre as outras esposas,
com esse sistema de vida conjugal que te arranjei… O casamento, longe de
roubar-te aos prazeres que dantes desfrutavas na sociedade, veio trazer-te
novos, sem falar no inestimável gozo de satisfação do amor instintivo que
ainda não conhecias. Continuas a ter hoje, em minha companhia, os teus bailes,
os teus passeios e os teus teatros, como no tempo de solteira; teu marido,
sempre enamorado de ti, nunca falta aos pontos onde saiba que estejas. Entre
os homens que te galanteiam é sempre ele o mais solícito em merecer-te as
graças, em reqüestar-te, em perseguir-te como verdadeiro apaixonado.
Ora, quero que me digas quantas senhoras casadas encontras tu por aí nestas
condições a respeito dos competentes maridos?…
Nenhuma.
Pudessem eles e nunca em público compareceriam ao lugar onde elas se acha,
ainda mesmo quando as amem.
E isso por quê? porque sabe cada qual de antemão que, ao recolher-se à casa,
há de invariavelmente encontrar a mulher à sua espera, e que terá a sua companhia
por toda a noite, e por todo o dia seguinte, e pelo outro depois, e por todos
os que seguirem, e enfim por toda a vida! “Estamos unidos para sempre!” suspira
o desgraçado. E vê, minha filha, repara quanto esta frase é terrivelmente
assustadora! repara como é ela em tudo oposta a essa outra frase, que teu
marido repete todas as vezes que tão amargamente se queixa de mim: “Nunca
estou com minha mulher todo o tempo que desejo!” sem se lembrar, o ingrato!
que nisso consiste justamente o segredo da felicidade de vocês dois! Vamos,
confessa qual das duas esposas é a mais feliz – aquela, cujo marido se preocupa
com a irremediável eternidade da sua união; ou tu, minha tolinha, cujo marido
lamenta a cada instante que as horas passadas contigo nunca são tantas e tão
largas quanto ele desejava?…
– Mas, observou Palmira – eu amo tanto meu marido!… Não me cansaria
em estar ao lado dele…
– É o que te parece agora, como a todo o sujeito, atormentado pelo apetite,
parece que se não cansaria de comer! Estivessem vocês sempre e sempre juntos,
e haverias de dar razão às minhas palavras…
– Ora, mamãe, não há de ser tanto assim… murmurou ela.
– E, se não podes responder por ti, quanto mais por ele!…
– Oh! Ele me ama deveras! Disso tenho eu certeza!
– E eu também. E justamente para que essa bela chama não se extinga,
dou-me ao cuidado de reformar-lhe o combustível.
Palmira soltou uma risada e não insistiu no assunto. Mas, à noite desse mesmo
dia, a questão voltou com mais força. Meu genro, quando veio para jantar,
trazendo como de costume, flores para a mulher e uma pequena lembrança literária
para mim, (creio que dessa vez foi um livro de Olavo Bilac) percebeu logo,
pela conversa travada entre nós duas, que ele essa noite iria para Botafogo,
pois havia já três seguidas que ficava com Palmira.
Não protestou logo, apenas franziu o nariz. À sobremesa, porém, começou a
lamentar-se sozinho em casa – e que, com franqueza, antes não tivesse casado
– e que era preferível não amar a esposa como ele a amava – e não sei que
muitas frases deste gênero.
Fingi não perceber a sua rabugice e, para mudar de conversa, falei-lhe de
interesses comerciais, atirando-lhe perguntas sobre perguntas, a que tinha
ele de responder a todas. Mas Leandro, que se conservava ao lado da mulher
não descia da sua preocupação e, por meias palavras em segredo a gestos dissimulados,
instigava Palmira a protestar contra o meu arbítrio. Palmira, a furto, olhava-me
suplicante.
Findo o jantar fomos jogar o pôquer, e ele durante o jogo parecia cada vez
mais contrariado. Ao chá mostrou-se ainda carinhoso com minha filha, não obstante
ir visivelmente se agravando o seu mau humor à medida que se aproximava a
hora da separação. E depois do chá deixou-se ficar conversando, sem se resolver
a tomar o chapéu e a bengala.
Levantei-me e chamei o criado para dizer-lhe que se preparasse para apagar
as luzes e fechar a casa, porque o senhor Leandro ia sair. Palmira então veio
ter comigo com o ar embaraçado, as mãos um tanto frias; deu-me um beijo, e
pediu-me, hesitante, comovida, e em segredo que eu consentisse ao marido passar
com ela ainda aquela noite.
Durante isto, meu genro, sem abalar donde estava, sacudia com impaciência
a perna que tinha dobrada sobre a outra. E olhava-me à esconsa.
– Não! não! respondi à minha filha.
– Mamãe!…
– Ele já cá ficou três noites seguidas… É preciso que se vá embora.
Palmira ia insistir a fazer-me novas carícias, mas o marido interrompeu-a
secamente, erguendo-se.
– Não insistas! disse. Para quê?… Deixa lá tua mãe! Ela não quer!
Acabou-se!
Não dei palavra. E ele acrescentou, sem se poder conter: – Ora! afinal isto
é humilhante e ridículo para mim! Não sei agora que me parece ser preciso
andar eu solicitando, como um grande favor, uma coisa que no fim de contas
é do meu direito!
Era a primeira vez que meu genro me falava com semelhante aspereza. Até aí
sempre me guardara respeito, fugindo até a discutir comigo. Produziram-me
pois má impressão o tom e a forma do seu protesto; mas, no íntimo dos meus
interesses maternais, ria de gozo por ver aquele desespero com que o pobre
rapaz disputava mais uma noite ao lado da esposa, e a comoção e ardor com
que esta o acompanhava nesse empenho.
Definitivamente o suspirado milagre do amor matrimonial tinha-o eu realizado
em benefício de minha filha!
Mas Leandro prosseguiu entredentes:
– Afinal, por menos que se pareçam as sogras, hão de ser sempre sogras!
– Que quer meu genro dizer com isso?… perguntei; agora ressentida, a despeito
de tudo.
Aquela terrível palavra “Sogra”, tão mal reputada e tão corrompida pelo mau
gosto dos zombeteiros da imprensa, lançada assim à queima-roupa, produziu-me
o efeito do mais feio insulto.
Ele respostou:
– Ora, que quero dizer!… Quero dizer que a senhora minha sogra abusa do
pacto feito entre nós quando me casei! E abusa da sua posição de minha benfeitora,
contrariando-me e torturando-me só pelo gostinho de ser sogra!
Palmira interveio a favor dele, mas em tom modesto.
– Leandro tem razão, mamãe! Que mal faz que ele fique hoje comigo? Ele é
meu marido!…
– E a senhora que gosta tanto de citar a Bíblia, reforçou meu genro, devia
saber que ela manda à mulher deixar pai e mãe para seguir o marido.
– É, mamãe! A Bíblia manda!… confirmou minha filha com uma carinha brejeira.
Lembre-se de que Deus Nosso Senhor disse a Eva para obedecer a Adão e acompanhá-lo
por todo lugar onde ele fosse!
– Mas, observei-lhe, Eva não tinha mãe, a seu lado, que, se a tivesse, não
daria ouvidos à serpente…
– Oh! exclamou Leandro agastado. Dir-se-ia que a senhora me chamou “Serpente!”
Serpente! Tem graça!… Eu é que sou a serpente!… Pois minha senhora, se
aqui temos pomo de discórdia, não sou eu com certeza que o promovo. E, quanto
ao fato de Eva não ter mãe, digo-lhe então, francamente, que Adão, esse é
que era deveras um felizardo, porque não tinha sogra! Ouviu, minha senhora?
– Não tinha sogra
E depois de passear agitado pela sala, respingou ainda, enquanto eu, assentada
junto à mesa, percorria as páginas de uma ilustração:
– Serpente! Ora esta! – Serpente!
– Eu lhe não chamei serpente, homem de Deus! disse afinal, fitando-o através
das minhas lunetas. O senhor não tem razão! Creio que até agora ainda não
exorbitei dos meus direitos ajustados antes do casamento! O senhor é que se
está excedendo, meu genro!
E tornei ao meu jornal.
E serenou um pouco e prosseguiu depois, sem deixar de espacear pela sala:
– Mas enfim, queria que me dissessem que mal viria ao mundo, se eu ficasse
hoje ao lado da Palmira!…
E parou defronte de mim, para me falar em voz mais baixa: – Quer que lhe
diga então uma coisa, Sr.a D. Olímpia? A senhora, com essas suas exigências,
faz-me ter idéias que me repugnam! Eu amo muito minha mulher; sou homem, sinto-me
comovido ao lado dela; desejo-a; (E creio que com isso não cometo um crime!)
mas, depois de jantarmos juntos e juntos passarmos algumas horas, tenho de
retirar-me e meter-me sozinho em casa! Ora diga-me: parece-lhe que seria muito
censurável, se eu, ao sair daqui, fosse procurar onde não tenho direito as
consolações de que a senhora me priva ao lado da única mulher que legitimamente
mas pode dar?…
– Leandro! Leandro, não digas isso! exclamou minha filha, correndo a lançar-se
nos braços do marido. Ouça, mamãe! ouça o que ele está dizendo!…
– Não te podes queixar de mim, filhinha! respondeu meu genro, triunfante
com o seu estratagema. Queixa-te de tua própria mãe!
– Não! protestou ela, passando-lhe os braços em volta do pescoço e beijando-º
Não quero que digas isso, mesmo sabendo que serias incapaz de semelhante deslealdade!
E correndo de novo para mim, já com as lágrimas a quebrarem-lhe a voz: –
Vamos, mamãe, diga-lhe por amor de Deus que fique! Bem vê que estas coisas
me põem nervosa! – E batendo com o pé: – Eu não consinto que Leandro vá hoje
daqui sozinho! Se mamãe não o deixa ficar, sou eu que me vou com ele! Sozinho
já o não deixo hoje!
– Pois fiquem juntos! fiquem! respondi finalmente, erguendo-me, disposta
a retirar-me para o quarto. Vocês no fim de contas não passam de duas crianças,
e fazem-me a mim também criança!
Palmira pôs-se a saltar, batendo palmas; e, assim aos saltos, veio até a
mim, apanhou-me o rosto com ambas as mãos e cobriu-me de beijos estalados.
Leandro, cuja fisionomia fora a pouco e pouco se abrindo e alegrando, chegou-se
também para despedir-se de mim.
Notei, no seu olhar, que ele me agradecia sinceramente aquela concessão.
– Vá! Vá! disse-lhe eu, batendo-lhe uma amigável palmada no ombro. Mas fica
para outra vez prevenido desde já de que, quanto mais longe forem as suas
ameaças, tanto pior para o senhor… Deus lhe dê muito boa noite!
Apertei-lhe a mão, beijei inda uma vez Palmira e retirei-me para o meu quarto.
Bem ouvi ainda resmungar meu genro com a mulher. Queixava-se de mim, naturalmente.
Compreendi que nesse momento estava sendo amaldiçoada por ele, mas sentia-me
radiante, porque tinha ampla convicção de que minha filha, apesar de casada
havia já quase dois anos, ia ser feliz, muito feliz, nos braços do esposo.
Recolhida, depois da minha habitual oração, em que pedia a Deus continuasse
a dar-nos, a ela a felicidade e a mim forças para poder zelar por esta, deitei-me
e adormeci, com a alma nadando em júbilo.
Tinha eu conseguido boa parte do meu ideal. À custa daqueles dúbios enfados
e arrufos passageiros, a grande ilusão do amor instinto, a deliciosa quimera
da felicidade sensual, mantinha-se equilibrada, sem cair por terra como desalada
mentira, nem perder-se no vago como desvairado sonho.
* * *
Mas, dentro em pouco, uma grande ocorrência vinha alterar nossa vida, tão
custosamente bem feita, e revolucionar-nos a casa, abrindo entre minha filha
e meu genro uma cena cruel, cena de lágrimas e soluços, agora verdadeiros,
de verdadeira dor.
XIX
Manifestaram-se em Palmira os sintomas de gravidez. Isto, que em outra família
seria motivos de regozijo, lá conosco foi razão de sérias lutas por mim travadas
contra meu genro e minha filha.
Declarei logo que ela, desde esse dia, deixava de coabitar com o marido,
e que este seguiria no primeiro paquete a sair para a Europa, ou partiríamos
nós duas. Se ele fosse, todas as despesas da sua viagem correriam por minha
conta, mas Leandro só tornaria a ver a mulher, quando esta pudesse apresentar-lhe
nos braços o filhinho, já dignamente livre dos cueiros e das cuecas, todo
enfeitado, coberto de rendas e fitas e cheirando como um botão de rosa.
Uma bomba de dinamite não causaria maior explosão do que este meu decreto.
Foi fulminante: minha filha quase perde os sentidos ao recebê-lo; meu genro,
que acabava de almoçar conosco, enterrou o chapéu na cabeça e desgalgou de
casa como um raio, exclamando que fugia – para não fazer ali mesmo uma loucura.
Eu, porém, estava resolvida a não ceder um passo. E não cedi.
Em vão minha filha recorreu a todos os modos da súplica; em vão chorou e
jurou que morreria se tivesse o filho longe de Leandro; em vão ameaçou-me
de que seria capaz de um infanticídio para não sofrer aquela minha exigência
– assim tão dura, tão desumana e tão ridícula.
– Nunca pensei, mamãe, disse-me ela, que a senhora levasse tão longa a sua
mania de separar-me de meu marido! Nem parece que vosmecê é mãe e já esteve
grávida, porque então devia saber que uma mulher, quando está neste estado
e tem de dar à luz, o primeiro filho principalmente, quem mais deseja perto
de si é o esposo!…
– É justamente porque já estive grávida; é porque te dei à luz; é porque
sou mãe; e é porque também fiz grande questão em que teu pai acompanhasse
todo o período da minha gravidez, e assistisse, do começo ao fim, o parto
donde nasceste – que agora não consinto, por forma nenhuma, suceda contigo
a mesma coisa! Sei o que faço, minha filha! E, desde já, previne teu marido
de que, se se opuser às minhas determinações, não conte ele comigo para mais
nada, a não ser perseguição e vingança!
Desta vez não fui pedir à Bíblia o outro versículo do Levítico, em que o
Senhor, muito expressamente, dá a Moisés e Aarão, para que a transmitam aos
filho de Israel, a lei especial do afastamento durante o nojo da parturição
e da prenhez. Já me não animava a citar a Bíblia; tal firmeza mostrei porém
na minha vontade, que meu genro compreendeu a inutilidade de abrir luta, a
não ser com um rompimento completo e brusco.
O pobre rapaz ficou aflito, bem o vi, e na realidade causava-me pena. Parecia
ter perdido a cabeça; não se animava a romper comigo por uma vez, nem se queria
resignar tampouco à minha inflexível ditadura de sogra; não que o preocupasse
a sua declaração escrita, creio eu, mas porque um rompimento comigo seria
a sua desgraça comercial, ou pelo menos violento golpe dardejado na sua nova
carreira até aí tão próspera.
Reconheci que desta vez o sacrifício imposto ao coração de ambos era, com
efeito, muito mais sério que das outras, e por isso procurei suavizá-lo não
m agastando com as impertinências dele, nem com os ressentimentos de minha
filha. A tudo resisti serenamente, e, com boas palavras e maneiras calmas,
fiz ver a meu genro que ao lado de sua mulher – ficava eu; e ao lado da enferma
– ficava um bom médico, que era o Dr. César.
Ele pois que embarcasse tranqüilo e confiante; a competência profissional
do meu velho amigo e os meus desvelos de mãe não deixariam sentir a nossa
Palmira a falta dos seus cuidados.
Leandro começou daí por diante a evitar a minha presença; a falar-me secamente
e o menos que podia; começou a não me tratar senão por “Minha sogra”, dando
a esta palavra uma expressão tão agressiva e tão dura, que por fim já me doía
e magoava bem cruelmente.
Urgia contudo não perder tempo. Era preciso que meu genro partisse quanto
antes, e, uma vez que ele me não queria falar, fui ter humilhada ao seu encontro.
Animei-o, como a um filho malcriado e caprichoso, e, apesar da ofensiva secura
com que me ouviu, achei meios de dizer-lhe que não visse no meu ato uma ridícula
pirraça de velha rabugenta, dominada pelo espírito de contradição; fiz-lhe
sentir que, se ele dentro de poucos dias não despregasse do Rio de Janeiro,
nos obrigava, a mim e a minha filha, duas senhoras – uma idosa e a outra pejada,
a aventurarmo-nos numa viagem, onde Palmira não encontraria decerto o conforto
e os socorros que o seu estado reclamava. Além disso, da Europa ele apenas
mal conhecia Londres, através de um colégio. Precisava agora vê-la e estudá-la
como homem. Que melhor ocasião para fazer esse passeio?… Iria descansar
um pouco, espairecer, instruir-se, ganhar novas idéias e novos pontos de vista,
cujos bons frutos seriam aproveitados em favor da sua profissão comercial
e em favor da educação de seu filho.
– Sim, replicou Leandro, desejo ir à Europa, e muito, mas em companhia de
minha mulher!
– Irá depois com ela… correspondi – e eu mesma os acompanharei, e mais
o nosso herdeirozinho… É até muito mais conveniente que o senhor primeiro
realiza sozinho essa viagem, para poder ensinar depois sua mulher a ver e
apreciar aquilo que o senhor já tenha visto. É mais correto! Num casal bem
constituído, o chefe deve sempre levar vantagens sobre a esposa, tanto no
seu grau de cultura intelectual, como no seu conhecimento prático da vida
e do mundo…
– Mas abandonar minha mulher quando a vejo naquele estado?!
– O senhor não a abandona, meu genro; o senhor a deixa entregue aos meus
desvelos e ao meu amor de mãe. Quanto ao estado dela – não queira também exagerar
as coisas! a gravidez e o parto, em boa normalidade de circunstâncias, são
funções naturais e quase tão simples como o próprio amor que os produziu.
– Mas é o primeiro parto!
– O que lhe não impedirá de ser muito benigno, porque o filho foi concebido
nas melhores condições que é possível desejar. Fique certo, meu genro, que
em geral – os filhos gerados com todo o amor e com todo o desejo, nem só são
os únicos perfeitos, como ainda são os que nascem com a maior e mais lisonjeira
facilidade. É preciso desconfiar sempre da harmonia e boa ventura doméstica
de um casal, cujos filhos encontrem dificuldade em entrar na vida, a não ser
que haja vício orgânico por parte da mulher ou vício de sangue por parte do
homem. Entre os dois instintos garantidores da vida – o amor e a fome, existem
as mais estreitas analogias: Da mesma forma que – comer sem apetite produz
má digestão, conceber sem amor – produz má gravidez e mau parto; quando não
produz o aborto, que é a legítima indigestão do amor. Meu neto há de ter um
nascimento feliz, sou eu quem lho assegura! E imagine agora o prazer que lhe
está reservado para a sua volta, meu amigo! Prefigure-se tornando à casa depois
de alguns meses de ausência e vindo encontrar o seu filhinho nos braços da
nossa Palmira! Hein? não lhe parece que o prazer da volta compensa um pouco
os sacrifícios da ausência?
– Ausência de quase um ano!…
– Qual! Ela está grávida de três meses, creio. Ponhamos um para a viagem
– quatro! Ao senhor basta demorar-se lá seis ou sete, quando muito… Ora,
seis meses passam depressa, principalmente em passeio pelo Europa, vendo coisas
bonitas!…
– Bonitas! Bonito será se, daqui em diante, mal perceba que minha mulher
está grávida, tenha de entrouxar as malas a toda a pressa e fugir para a Europa!
– Ora deixe lá o futuro, que a Deus pertence, meu filho, e cuidemos do presente,
que é a nossa obrigação. E já não fazemos pouco!
* * *
Quando nos separamos essa noite, depois do chá, meu genro estava resignado
a fazer a viagem. Faltava-me, porém, a outra, que me parecia mais difícil
de ceder, sem ficar prostrada pelo sacrifício.
E, com efeito, maior resistência encontrei em Palmira do que em Leandro.
Mas com prazer descobri logo que semelhante reação não vinha tanto dos seus
terrores do parto, como dos seus mal disfarçados ciúmes pelo marido, que se
ia ausentar assim por tanto tempo.
Desde que percebi isto, tinha por ganha a vitória.
Fiz ver-lhe logo que aquela ausência de Leandro, longe de ser desfavorável
à esposa, era uma nova garantia para o amor e para a felicidade de ambos.
Deixando-o ir agora, surpreendido assim violentamente no auge do seu enlevo
amoroso, ela podia ficar segura de que o marido iria resguardado pela saudade
e nada cometeria que pudesse ser lesivo ao ente estremecido que ele deixava
tão distante. Leandro honraria o seu voto sagrado e guardaria fidelidade,
justamente por se achar então a contragosto separado da sua “pobre e querida
mulherzinha”.
– Ficando aqui, disse-lhe eu, vendo-te ele todos os dias, sem aliás poder
aproximar-se de ti para o matrimônio, haveria de trair-te, fatalmente, durante
os resguardos da prenhez e do parto, porque a consciência lhe descobriria
absolvição para tal delito nas supostas necessidades do seu organismo de homem
e na tua acidental inutilidade de mulher. Ser-te-ia infiel, convencido de
que com isso não cometeria baixeza, nem maldade, porque havia de resgatar
a sua culpa junto à tua cama de doente, à força de constante dedicação, à
força de desvelos de enfermeiro e pequeninos cuidados de bom amigo. Ao passo
que, por mim arrancado barbaramente dos teus braços e repelido para longe,
hão de a ausência e a saudade envolver-te, à proporção que os dias se passarem,
num prestigioso véu de poesia e desgraça; há de dar-te irresistível e fascinante
auréola de vítima resignada, a quem seria baixa perfídia enganar traiçoeiramente.
A tua ausência será pois a garantia do seu amor e da sua fidelidade. Ele
terá medo de pecar, porque já saberá de antemão que a sua consciência lhe
não perdoará semelhante injustiça. Aquilo mesmo que aqui, ao teu lado, seria
por ele admitido como fatal conseqüência do resguardo da crise puerperal,
lá atingirá no seu foro íntimo às negras proporções de torpe covardia. Lá,
sem elementos de resgate do crime, para fazer calar a consciência, sem poder
de resto prestar socorros à tua gravidez, nem poder consolar-te do teu estado,
ele não terá ânimo de faltar à fé conjugal, porque todo o seu coração será
pouco para se lembrar de ti! Todo ele, minha filha, será pouco para ter um
só ideal – tornar a ver-te, e beijar o filho! Todo o seu corpo só terá um
desejo, uma preocupação constante, uma necessidade expansiva: – o de cair-te
nos braços, soluçando palavras de amor, e matar com os teus beijos a grande
saudade que o devorava longe da tua ternura e longe do teu corpo!
E, vamos lá… acrescentei, tomando as mãos de minha filha, que me escutava
imobilizada, com o olhar ferrado num só ponto. Falemos com franqueza: achas
tu que as coisas correriam deste modo, continuando ele aqui ao teu lado? Sabes
tu, porventura como permanecerás gravada no seu espírito durante a ausência
necessária à tua parturição?… ficarás gravada como ele te veja pela última
vez, no momento do beijo da despedida; aparecer-lhe-ás no espírito como te
tenho agora defronte dos meus olhos – com o corpo ainda não deformado como
estará daqui a poucos meses. Por enquanto, Palmira, a gravidez te não prejudicou
a beleza, ao contrário: vai bem ao teu rosto essa cor misteriosa e pálida
e essa tristeza de sorrir; não te fica mal ainda essa languidez no andar,
como essa vaga expressão que tens nos olhos e nos gestos. Mas, quando o teu
feto atingir ao seu último período de gestação, sabes tu, minha filha, como
estarás diferente e como serás outra? – abatida, desbotada, sem cintura, com
os pés inchados, a cara intumescida, as pernas trôpegas, o ventre enorme,
e o estômago em revolta, o que seguro te produzirá engulhos e mau hálito!…
Palmira interrompeu o seu silêncio, sem interromper o seu olhar, para responder
com um suspiro profundo:
– Ora! meu marido me amará de qualquer modo!… Não faço questão de ser bonita
para ele!…
– Então para quem fazes tu questão de ser bonita, se não é para teu marido?
A mim é que agradarás do mesmo modo em qualquer estado, porque sou tua mãe;
mas a ele, e só a ele, te convém seduzir como mulher. E acredita, minha Palmira,
que nesse erro consiste boa parte das comuns infelicidades domésticas! Em
geral, por aí, a esposa só se enfeita e faz bonita, para sair à rua, quando
dentro de sua casa, é que ela precisa ser sedutora, porque é dentro de sua
casa que ela tem um homem a quem agradar por toda a vida!
– Sim, mas a gravidez também não dura eternamente. Eu voltaria a ser o que
era dantes…
– Não! Para teu marido nunca mais, depois do parto, volverias a ser o que
dantes foras! Dantes foste o que agora continuas ainda a ser no espírito de
Leandro – a encantadora e mimosa criatura que se fez mulher nos braços dele;
e depois do parto serias e continuarias a ser para sempre – a mulher que nos
seus braços se fez mãe! Todos os teus encantos feminis, todas as graças da
tua mocidade em flor, desapareceriam, para só ficar o ventre sagrado, que
se abriu defronte de seus olhos e lhe despejou um filho nos braços! Bem vês
que não é a mesma coisa!
– Não deve ser tanto assim! Mamãe exagera com certeza!
– Exagero?! Sabes lá que impressão deixa um parto ao homem que o assiste?…
Impressão que escandaliza os olhos, os ouvidos e o olfato! Sangrento drama,
que comove e repugna! que faz dó e faz náuseas! Nele a mulher perde inconscientemente
a noção do seu mais cativante e natural instinto, a sua única superioridade
sobre o homem, o seu único meio de dominá-lo e prendê-lo – o pudor!
No parto, em presença do esposo amado, o pudor, como todas as outras seduções
da mulher, desfazem-se-lhe na lama infecta e generosa do seu sangue de mãe,
para só prevalecer o filho que, de um salto, imediatamente, se apodera do
principal lugar até aí ocupado por ela no coração do marido. E este, embriagado
com a felicidade daquele novo amor, começa desde então a viver só em reviver
no entezinho recém-nascido e melindroso, que é agora todo o encantamento do
seu lar; enquanto a mulher, ainda mesmo que recupere as graças primitivas,
fica, nos intervalos de resfriado matrimônio, encostada a um canto, esquecida
como uma máquina em descanso.
Palmira soltou um suspiro mais longo que o outro, e continuou a fixar o mesmo
ponto, com os olhos imóveis.
Eu prossegui:
– E depois!… logo depois do parto?… Enquanto o filho, nos seus primeiros
dias de vida, com o seu primeiro choro, vai roubando à mãe todos os carinhos
sensuais do marido dela, o que é a mulher?… É uma pouca de carne dolorida
e mole que ali está sobre a cama! E é preciso defumar o quarto, mudar constantemente
as roupas sujas! Ela, coitada! num resguardo absoluto, sem se poder lavar
completamente, nem pentear-se, nem desinfetar os cabelos e o corpo, só vive
para a sua recente maternidade e para o gozo animal do seu estado de alívio,
depois que despejou a carga que a oprimia por tantos meses e que lhe fazia
sofrer dores físicas e sobressaltos morais. Dos beijos de compaixão e de reconhecimento
que o esposo lhe dá durante esse período do cheiro de alfazema, nasce entre
os dois uma doce amizade, uma respeitosa estima de bons companheiros, um sentimento
muito bonito, muito sério, muito duradouro, mas que é o inimigo mortal do
amor genésico.
A sexualidade que entre eles vier depois, já nada tem que ver com o poderoso
instinto, que os arrastou abraçados ao leito conjugal, e será mero produto
do hábito, uma preguiçosa permuta de carícias frouxas, obra quase inconsciente
da matéria, sem o menor concurso do espírito ou da imaginação, donde faz entretanto
o amor fecundo a sua gloriosa força.
Não! não! não, minha filha! teu esposo não te verá de ventre crescido, não
te sentirá mau hálito, não ouvirá teus gemidos e gritos de parturiente, nem
assistirá a sair-te das entranhas, entre as viscosas esponjosidades da placenta
e a nauseante fedentina dos humores puerperais, um ensangüentado feto, uma
posta vermelha de lodo vivo! Teu esposo, não te verá amolentada, entre mornos
travesseiros, impregnada de cheiro de alfazema, parida! Não! não há de ver!
Não quero!
Ela soltou um novo suspiro e mudou de mira, sem alterar a fixidez dos olhos.
– Não! arrematei. Hás de conservar-te integralmente sedutora na imaginação
de teu marido! Quero que ele te deixe fresca e bonita, como ainda estás agora,
e te venha encontrar depois, ainda mais interessante do que te deixou, com
uma linda e cheirosa criancinha ao colo. O teu parto não há de inutilizar
aos seus olhos a mulher que ele em ti ama. Não quero que ele se converta no
teu amigo extremoso; quero enfim que Leandro se não desiluda contigo, como
homem, para que ele não precise nunca substituir-te secretamente por outra
mulher!
E, depois de uma pausa, terminei carinhosamente com estas palavras: – Ora
aí tens tu, minha filha, a razão do meu procedimento. Agora a ti compete apreciá-lo
bem ou mal…
Palmira levantou-se, beijou-me, e caiu soluçando nos meus braços.
– Minha boa mãe!… disse ela.
A pobre criança tinha compreendido tudo, e a sua singela frase pagou-me nesse
instante de todos os desgostos que sofri e de todos os desvelos que por seu
amor mantive até aí com tanta luta.
– De hoje em diante, segredei-lhe eu, enxugando-lhe as lágrimas, dormirás
comigo no meu quarto, meu amor, ao lado de mim, na mesma cama, até à volta
de teu marido. Está dito?
– Sim, sim, mamãe!
XX
E assim foi. Durante os poucos dias que precederam a viagem de meu genro,
minha filha dormiu todas as noites comigo.
Imagine-se o que dele não tive de sofrer por semelhante fato. Quando soube
da minha resolução, desesperou-se; dessa vez chegou a chamar-me “jararaca!”
Mas Palmira estava bem convencida das minhas razões e tanto me bastava, porque
era todo o meu empenho não lhe irritar os nervos, contrariando-a. Quanto ao
marido – que esbravejasse à vontade, contanto que se pusesse ao largo.
Também era só o que faltava – que fosse eu agora impressionar-me com o infantil
egoísmo de meu genro! Procurava, é exato, esconder aos olhos de Palmira a
minha superioridade sobre ele, fingindo até respeitá-lo e temê-lo, mas só
pelo receio de que a compreensão justa da verdade viesse a prejudicar o juízo
que minha filha mantinha com respeito ao valor moral de seu marido. Em uma
palavra – receava que ele se amesquinhasse aos olhos dela.
Convém notar que Leandro, depois que aceitara, resmungando, a minha ditadura
de sogra intransigente, começou a ter impertinências e rebugices de uma verdadeira
criança. Ia ao ponto de fazer manha, para que a mulher o consolasse com carinhos
e se fizesse zangada, de mentira, contra mim, fingindo-se revoltada e afetando
indignação nas suas palavras, como a ama que, para engodar o bebê, diz injúrias
à cadeira em que ele por acaso deu uma pancada com o corpo.
Nestas coisas de dentro de casa, no segredo do cofre doméstico, o marido
quase sempre é muito mais pueril e piegas que a mulher. Esta só aparenta infantilidade
na rua ou na exibição social, para se fazer inocente e cândida, porque assim
dela exige o público; e aquele, para o efeito contrário, é aí que sustenta,
ou simplesmente afeta, a rija linha do seu sexo forte. Da porta da rua para
fora, ela é criança e ele é gente grande; mas, da porta da rua para dentro,
é o homem quem dá a nota infantil, ao passo que a mulher em geral é quem garante
a tranqüila seriedade do lar, com a sua moral e o seu bom senso prático, com
a sua perspicácia e com a sua constância, resignação e força de paciência.
Receosa de que semelhantes pieguices em meu genro viessem a deprimir sobremaneira
a ilusão do amor que minha filha consagrava, tratei em tempo de providenciar
neste sentido, mas dei logo pouco depois pelo meu erro, percebendo que as
mesmas pequenas separações por mim impostas aos dois, como preservativo contra
o tédio, longe de extinguirem as infantilidades de Leandro, ainda mais lhes
davam vida. E acabei por convencer-me de que o fato era natural e próprio
do caráter mesmo do amor, e que por conseguinte nunca poderia ser ele desagradável
à mulher amada.
Parece, à primeira vista, que o homem, quando se faz piegas e submisso ao
lado de uma mulher, deve tornar-se ridículo aos olhos dela e pois incompatível
com o seu amor; assim não acontece, porém, desde que tal pieguice e tal humilhação
sejam praticadas só e exclusivamente com essa mulher e rigorosamente escondidas
a todos os mais. E se esse homem, assim pueril e mimalho para com essa mulher
amada, for opostamente para os outros, como muita vez sucede, um caráter enérgico
e um espírito respeitável, então a coisa é completa no interesse do amor de
ambos.
Está bem claro que tudo isso só se pode bem verificar quando o casal goza
a felicidade de ter parentes mais velhos que o dominem, e contra os quais
possa o esposo e a esposa queixarem-se entre si. Esta é uma das vantagens
de ter sogra; enquanto o genro briga com a sobra não briga com a mulher; antes
pelo contrário mais se chega para esta; e os frescos e surdos laços da conspiração
que os reúne e religa, conseguem em muitos e muitos casos o que os afrouxados
laços do instinto sexual já não podiam obter entre eles.
* * *
Bem diferente, pois, é no homem o seu modo de amar comparado com o modo de
amar da mulher, como bem diferente são as manifestações do amor de cada um.
O homem tem o jogo franco no amor; a mulher tem o jogo encoberto. O homem,
desde que ame deveras, não pode guardar segredos para a mulher amada; tem,
por uma lei congênita à sua própria ternura, de abrir defronte dela o seu
coração, de par em par, como uma carteira, que ele todavia para outros trouxesse
avaramente oculta e bem fechada; tem de expor-lhe a alma toda nua, e nu todo
o seu mais recôndito pensamento. Não lhe esconderá nada do que se passa dentro
dele, cavando e desencerrando até às mais íntimas e fundas circunstâncias,
ainda mesmo aquelas que possam ser deprimentes do seu caráter, nocivas ao
seu amor, e até mesmo desagradáveis e humilhantes para a mulher que as ouve.
O homem, que ama sinceramente, começa logo por contar à sua amada todas as
particularidades de sua vida, chegando sempre a ser ridículo pela insistência
em despejar aos pés dela todo o seco e frio bagaço do seu passado. Não se
esquece do menor episódio; diz-lhe tudo, tudo, tudo! E a mulher suporta isto
a sorrir, e recolhe o inútil despejo com sua condescendência de que o homem
não seria capaz para com ela.
Ao passo que a mulher, por maior amor que consagre a um homem, nunca lhe
mostra a alma por inteiro, nunca lhe franqueia totalmente o coração e nunca
lhe confia de todo, nas suas confidências mais íntimas, o resíduo do seu passado.
A mulher é amiga apaixonada do mistério, apesar de ser a eterna inimiga do
segredo.
A mulher ama sempre de emboscada, armando laços e esparrelas; quer apanhar
de surpresa o homem amado, sem que ele dê pela armadilha e possa a tempo defender-se.
E daí o ela conhecer sempre tão profundamente o homem que ama e com quem vive;
fato de grande desvantagem para ele, porque não há homem, por superior, capaz
de resistir sem ridículo a semelhante análise; o que ainda constituí, a meu
ver, mais um escolho para a convivência matrimonial.
Entretanto, o homem nunca chega a conhecer de todo a mulher que lhe pertence,
por mais que ela o ame. Assim sucede que muita vez, na intimidade de um casal
já de muitos anos constituído, lá uma bela ocasião o esposo fica admirado
de ouvir falar à mulher de um fato, já velho na vida dela, e no entanto perfeitamente
desconhecido para ele.
– Como, diz o homem, pois isso aconteceu?… Não sabia! ignorava-o até agora!
Tu nunca mo disseste!…
– E por que havia de ter dito?… argumenta a mulher. Nunca tive ocasião
de falar-te em semelhante coisa… Nunca me perguntaste nada a esse respeito…
E aqui está justamente a grande diferença no modo de amar dos dois sexos.
O homem diz – espontaneamente, e a mulher confessa – interrogada.
Algumas há, casadas, que põem melindroso empenho em nunca mentir ao marido,
e, sem jamais mentir com efeito, escondem-lhe tudo o que lhes convém ocultar,
e às vezes coisas que são a desonra dele. Mas não mentiram.
O homem em conclusão, dada mesmo a melhor hipótese da sua altivez e energia
de caráter, pode ser banal e piegas no seu amor. E meu genro era assim, com
a circunstância, porém, de que a sua puerilidade era toda cariciadora e amorosa
para minha filha e era para mim só feita de impertinências e rabugens de criança
malcriada. Como, não obstante, eu sabia pesar e dar o verdadeiro valor a tudo
isso, não o responsabilizava por tais misérias, e íamos vivendo. De resto,
como eu só o amava pelo efeito reflexivo do muito que eu queria a Palmira,
achava-o ridículo, sem contudo sentir por ele ódio, nem desprezo, como nos
sucede comumente acharmos ridículas, nos outros, muitas coisas que são naturais
e que observamos em nós mesmos e em nós mesmos lhes reconhecemos a utilidade.
Todavia, a sua partida comoveu-me bastante. Fomos levá-lo a bordo. O Dr.
César não pôde ir conosco, porque tinha em casa a irmã muito mal com uma pneumonia
aguda.
Era em abril, num belo dia de sol. Palmira estava encantadora; fiz-lhe pôr,
intencionalmente, um vestido preto enfeitado de rendas valencianas, porque
assim convinha à sua palidez, que se agravara naquela última quinzena; o chapéu,
muito simples e também preto, guardava-lhe apenas uma parte da cabeça, envolvido,
com o rosto, num vaporoso véu cor-de-rosa, que à luz da manhã fazia realçar
o tom magoado da sua formosura.
Na lancha, assentada ao lado do marido, com o busto destacando nitidamente
do fundo brilhante e verde do mar, parecia-me mais bonita do que nunca. Durante
a ida, Leandro conservou por toda a viagem uma das mãos dela entre as suas,
lançando sobre mim, de vez em quando, olhares de feroz ressentimento. Eu fingia
não perceber o seu ódio, e era toda ouvidos para o que os dois conversavam
em voz baixa, esquecidos um no outro, num alheio egoísmo de amantes sobressaltados.
Percebi que minha filha lhe murmurava dos ciúmes que ia sentir por ele durante
a ausência e ouvi distintamente a resposta de meu genro:
– Se tu soubesse como levo este coração despedaçado, não me falarias nisso…
Maldita a hora em que empenhei minha palavra!…
E, depois de desferir contra mim mais um olhar colérico, tirou o lenço da
algibeira, para esconder o rosto, resmungando com azedume alguma coisa, no
que senti ferir-me ainda a ponta de uma desconhecida injúria.
– Ora, coitado! pensei, julga-me mal e me não perdoa o mal que me julga…
Mais tarde me fará justiça!…
E larguei tudo isso de mão, para só pensar no valor daquele vivo e palpitante
ciúme de minha Palmira, tão amada e tão desejada pelo esposo…
Ah! esse espetáculo fazia lembrar-me de que eu, infeliz que fui! nunca tivera
tido ciúmes de meu marido!
* * *
Há muita gente que diz do ciúme o que os franceses ainda não se lembraram
de dizer contra os alemães, e eu mesma estou de acordo em que, na maior parte
dos casos, ele nada mais seja do que uma grosseira manifestação do despeito
e da vaidade. Mas, quando em vez de vir do orgulho ou do amor-próprio, ele
vem objetivamente do nosso terno e vivedouro entusiasmo por certo e determinado
ente querido, é uma das mais legítimas expansões do amor. Todo o indivíduo
que ama de qualquer modo, cerca de zelos vivos a pessoa amada.
Entre marido e mulher, como o casamento não é natural nem lógico, o ciúme
complica-se e torna-se ridículo. Ao marido não assiste sequer o direito de
mostrar ciúmes pela esposa, porque, das duas uma: – ou ele tem razão para
revelá-los, ou não tem. Se tem razão não deve contentar-se com expô-los, deve
por dignidade romper imediatamente os laços que a ela o prendem; e, se não
tem razão, para que pois ofender e ferir em cheio na honra uma mulher inocente?
Sei, e posso afiançar, é que minha filha me fez inveja inda uma vez. Eu nunca
senti, nem causei ciúmes em toda a minha existência; e isso faz muita falta
na vida de uma mulher! A nossa felicidade não é como a do homem, compõe-se
de um conjunto infinito de pequeninas alegrias e pequeninas mágoas. A vida
de uma mulher feliz é complicadíssimo mosaico de lágrimas, beijos, suspiros
e sorrisos; mas tudo isso ligeiro e passageiro, que não chegue nunca a prostrar
pelo sofrimento, nem pelo gozo.
Eis o que me veio ao espírito, quando, já a bordo do paquete inglês que tinha
de levar Leandro, vi saltarem dos olhos de Palmira as lágrimas que ela dava
em sacrifício da conservação do seu amor conjugal.
Ah! tomara eu aquelas lágrimas, na minha mocidade! Quem me dera tê-las um
dia chorado?…
Meu genro chorou também, e isso me comoveu, a despeito do modo frouxo por
que ele, por mera formalidade, me abraçou em despedida. Antes assim, porém,
do que ter abraços seus bem apertados e sinceros sabendo que os outros, dados
à esposa, haviam de afrouxar em breve. Deplorável que és tu, meu pobre coração
de mulher! nesse momento, em que meus olhos choravam tanto como os de Palmira,
tive vontade de chamar para meu peito de mãe aquele criançola resmungão e
aquietá-lo com carícias: No fim de contas, apesar de tudo, era ele, sem consciência
disso, o meu associado na obra da felicidade de minha filha. E esta o amava
tanto, que seria impossível deixar de amá-lo eu também. Contudo, Leandro me
detestava, o ingrato!
E a dor forte daquela separação de minha filha e meu genro, lembrou-me outra
separação também entre dois casados, quando meu marido se ausentou de mim
por oito meses. Éramos ainda bem moços e também choramos no abraço da despedida,
mas ai! as nossas lágrimas foram bem diferentes daquelas, e não rescendiam
àquele triste e poético aroma de amor ainda cego!… foram lágrimas de dois
bons amigos incompatibilizados pelo casamento! Meu marido antevia que a viagem,
e depois o estádio num país estranho, seriam alegre e salutar variante na
sua existência trabalhosa e monótona do Brasil; e eu por mim, confesso, não
fazia o menor sacrifício com aquele apartamento de Virgílio. Já não nos amávamos
sexualmente – eis a verdade!
Palmira, ah! essa ficou inconsolável… Voltamos tristes de bordo. Por longo
tempo, da nossa lancha, agitamos os lenços no ar, em resposta a uma pequenina
asa branca que palpitava, lá ao longe, no tombadilho do vapor.
Uma vez em terra, dentro do carro, mandei tocar com força para Laranjeiras,
compreendendo que Palmira, no seu silêncio ameaçador, reprimia a explosão
de soluços que ameaçavam sufocá-la.
E a tempestade desencadeou-se com efeito, mal me recolhi à casa com minha
filha. Foi um longo transbordar de soluços, que lhe sacudiam nervosamente
o corpo inteiro. Ela não quis almoçar, enfiou pelo quarto, arrojando o chapéu,
as luvas, a sombrinha, e atirou-se em seguida à cama, com o rosto escondido
nos braços e nos travesseiros, a chorar, a chorar, a chorar!
E eu vi tudo, sorrindo no íntimo ao contemplar satisfeita aquela cena transcendente.
Deixei-a soluçar por longo tempo, assim estendida sobre a cama, bela naquele
desespero de saudade Ah! – não se sustenta o amor sem o elemento dramático,
e não há drama sem lágrimas!
Mas, pouco a pouco, o temporal foi serenando, descaindo em longos e espaçados
suspiros de desabafo, e, quando à noite nos recolhemos ao mesmo aposento,
Palmira tomou-se o rosto entre as mãos e, sem uma palavra, beijou-me as faces
repetidas vezes, e pousou depois a sua cabeça no meu ombro, abraçando-me em
silêncio.
Na oração que fizemos juntas antes de tomar o leito agradeci a Deus ter-me
concedido a realização daquele milagre de amor conjugal, e pedi-lhe, do fundo
da alma, que continuasse a proteger a poética felicidade daquelas duas pobres
criaturas, que eu aninhava sob as asas da minha experiência de mulher e do
meu amor de mãe.
XXI
o dia seguinte o assunto exclusivo da conversa de Palmira foi só o marido,
mas nos subseqüentes, sem se esquecer dele por um instante, pensou também
um pouco no filhinho esperado; até que, daí a algumas semanas, a sua preocupação
se dividia por ambos em partes iguais. E o seu ventre foi tranqüilamente crescendo,
e ela foi cada vez mais se fazendo mãe, no meio dos cuidados do enxoval, que
a nós duas traziam ocupadas de manhã até à noite. O Dr. César, agora que supunha
a irmã fora de perigo, aparecia-nos com mais freqüência e ficava às vezes
palestrando conosco durante o serão, entre o jantar e o chá. A progressiva
marcha da gravidez de minha filha era fiscalizada por ele com especial solicitude.
Chegou a primeira carta de Leandro. Que alegrão para nós três! Não era uma
carta de marido, era uma longa, sentida e despejada confidência de amante
infeliz; comovia a força de expressão e de sinceridade, sem cair jamais no
sentimentalismo patético; era simples, forte e natural, como o mesmo amor
que a inspirava. Assim de longe sob o domínio absoluto de uma dor verdadeira,
meu genro volvia-se homem, e nem uma só vez recorria às manhas e pieguices
que tinha dantes ao lado da família. Referia-se ao filho secamente, quase
com azedume, como se falasse de um importuno que viera intrometer-se na sua
felicidade. E não dizia nunca “meu filho” ou “nosso filho”, dizia “essa criança”.
Isto perturbou-me um pouco. Teria eu, quem sabe? preparado com aquela separação
uma desgraça terrível, prejudicando meu neto no seu direito de filho ao amor
de seu pai?… Não seria indispensável, para a boa formação, que o pai acompanhasse
de perto, lado a lado, todos os fenômenos patológicos que na mulher precedem
o nascimento do filho, e os que ocorrem durante e depois da parturição?…
Não teria eu talvez, para conservar o amor de Leandro por minha filha e impedir
que se quebrasse entre estes o encanto do desejo, roubado ao meu pobre netinho
a parte que de direito lhe tocava no coração de seu pai?… Não estaria eu
maquinando contra a pobre criaturinha uma tremenda maldade, com fazer que
ficasse todo inteiro o coração de meu genro em posse da esposa?… Não estaria
eu cometendo um crime?…
Consultei nesse sentido o Dr. César.
– Não! respondeu-me ele, sem hesitar. Não, minha amiga! Afaste do juízo semelhante
apreensão. O amor de pai não se pronuncia antes do nascimento do filho e só
é formado e desenvolvido com a convivência entre os dois. O amor materno,
sim; existe desde a vida uterina do feto, com ele cresce, avulta quando ele
nasce, e vai aumentando sempre na proporção do crescimento do filho. E está
nisto a razão por que o amor d mãe é sempre, até que o filho atinja à puberdade,
maior e mais intenso que o amor paterno; é que ele, na sua carreira, sai com
grande avanço. O outro, quando acorda, encontra-o já vigoroso e adiantado.
A natureza foi muito previdente na constituição destas coisas: o filho só
poderia ser privado do amor de sua mãe, se alguém conseguisse de uma mulher
fazê-la conceber e dar à luz sem que ela tivesse consciência disso, e ainda
assim não conseguiria privá-lo dos desvelos e dos cuidados maternais: a doida
concebe e tem filhos sem sentir por eles o menor vislumbre de amor, mas sem
nunca aliás se descuidar, guiada só pelo seu instinto de fêmea, de prestar-lhe
os socorros maternos. Faz tudo isso como qualquer bruto – pare, corta com
os dentes o cordão umbilical, prepara o filho para a vida: assopra-lhe na
boca, se for preciso dar-lhe aos pulmões o primeiro ar; bate-lhe nas palmas
dos pés e das mãos; depois cria-o, e defende-o dos perigos materiais que o
ameacem; mas não o ama. Aquele bocado de carne viva e palpitante é uma pouca
da sua própria carne; e a carne, essa nunca enlouquece! Considere agora, minha
amiga, que, pelo lado paterno, não há sequer esta circunstância material do
desdobramento do corpo, do desdobramento da carne. Na mulher, aquele poderoso
instinto animal, associado à razão e à consciência não menos poderosas, produz
o que se chama o amor materno. E tudo isso se dá antes de chegar o amor paterno,
que pode até nunca chegar, se não houver convivência entre o pai e o filho.
Não é banal que todo o homem é muito mais filho da mulher do que do homem;
o que me leva a sustentar que na sociedade ele devia apresentar-se com o nome
da mãe e não do pai!
Fiquei perfeitamente tranqüila com estas palavras e pus o coração a larga.
Na segunda carta, Leandro enviava o retrato à mulher, e uma poesia inspirada
na saudade, acompanhando tudo um amor-perfeito colhido em certo jardim, na
ocasião em que, diziam os versos, “no meio da alegria geral e do riso dos
convivas – seu coração sangrava o martírio daquela terrível ausência, que
o privava do estremecido objeto do seu amor…” Li e reli essa composição
poética; não era um primor da arte, mas Palmira chorou de comoção ao lê-la.
E comparei mentalmente aquela carta do marido de minha filha com as cartas
que meu marido me escreveu na sua ausência dos oito meses. Que diferença!
Que contraste!
E vamos lá! tinha eu ou não razão para estar orgulhosa com a minha obra?
Qual é aí o marido que até à presente data já escreveu versos de amor à sua
mulher, durante o desgracioso período da gravidez ou da parturição? Qual é
ele? Versos ao filho conseqüente, sim, muitos o têm feito, esquecidos da pobre
criatura enfeada pelo parto, que jaz molemente sobre uma cama de colchões
mornos, entre mornos travesseiros, defumados de alfazema!
Na carta, onde havia uma página, toda inteira, dedicada ao Dr. César, que
aliás da primeira remessa tinha já recebido uma particularmente a ele dirigida,
só uma fria frase me cabia. Era esta: “Apresenta meus cordiais respeitos a
tua mãe e pede-lhe, em nosso nome, que me escreva por ti, quando porventura
já não possas fazer.” A única frase, pois, que ele me concedia fora ainda
assim determinada pelo amor de Palmira. Não me revoltei: Era o caso do doente
que, desvairado pela dor, morde a mão do médico que o opera. Pois me mordesse!
Que me mordesse quanto quisesse! Contanto que aquela mesma boca, que me mordia
a mão, continuasse no futuro a beijar com duplicado ardor a boca de minha
filha!
Não me agastei!, nem me senti menos feliz por isso.
* * *
A natureza é boa amiga! Como sabe ela dar a todas as estações da existência
novos interesses de vida! novas dores e novos prazeres! Nunca pensei que fosse
tão intensa a felicidade de ser avó!…
À proporção todavia que se aproximava o grande acontecimento, comecei a palpitar
de impaciência e sobressalto. Desfazia-me em pequenos cuidados com a enferma;
afigurava-se-me que era eu a única responsável pelo que viesse a suceder;
sentia-me tão dentro daquela situação, que era como se eu fosse o pai e tivesse
de ser a mãe daquele filho! Talvez não acreditem, mas juro que me impressionei
ainda mais do que quando eu própria estive para dar à luz pela primeira vez!
E agora, inesperadas apreensões vinham perturbar a confiança que eu até aí
depositava cegamente nas ótimas circunstâncias em que fora aquele filho concebido.
Não descansava um instante, não me descuidava um momento da minha Palmira.
De madrugada era eu a primeira a levantar-me e vencer-lhe a indolência, e
obrigá-la a vestir-se e a sair comigo, para os passeios matutinos. Arrependia-me
agora de lhe ter falado tão abertamente do parto, porque ia começando a descobrir
nela também receios e sobressaltos. Mas animava-a com tanto carinho e habilidade,
que a boa criança nunca se atreveu a fazer-me a mais leve queixa, mesmo indireta,
contra a ausência do marido.
Minha gaveta da secretária estava cheia de livros de medicina, concernentes
ao assunto que inteiro me possuía. Sempre que eu pilhava alguma folga, ou
quando podia roubar algumas horas ao sono, devorava o Traité de l’art
des accouchements de Gazeaux, e tomava notas para discutir depois com o Dr.
César, que nesses últimos tempos não nos deixava de visitar todos os dias.
Devia já parecer ridícula aos olhos do bom médico com as fumaças de doutora
que eu agora me dava na conversa.
E a crise aproximava-se.
Eu já me não pertencia; não tinha a cabeça no lugar; comia sem apetite; passava
noites de insônia. Estava tão abatida, ou mais, que minha própria filha, e
juro que dentro do meu coração palpitava o feto que ela trazia no ventre.
Mas afinal chegou o dia supremo. A casa revolucionou-se. César estava conosco,
felizmente. Não posso afiançar que sofresse eu as dores puerperais, mas sei
que sofri muito e que não abandonei minha filha um só instante, até receber
nos meus braços um belo menino, perfeito, forte, com o crânio coberto já de
cabelo preto.
Oh! Vitória! Vitória completa!
Saltaram-me as lágrimas dos olhos. Tive vontade de misturar meus cansados
soluços de avó com aquele angelical vagido, que meu netinho me trazia do mistério
da antevida, alguma coisa de um balbuciar divino, que ainda não é voz humana
e também já não é simples eco de puro cântico de anjos! Minha filha, quase
morta de prostração, branca e fria, como se todo o sangue e toda a vida lhe
tivessem escorrido pelo ventre aberto, gemia ainda, devagarinho, e seus gemidos
cortavam a alma.
Entreguei a criança ao médico e a uma parteira que nos acompanhava, e dei-me
toda aos cuidados da puérpera. Não me despeguei mais do seu lado, até que
ela serenou de todo.
Ah! correu tudo muito bem: confirmou-se a minha convicção de que o bom parto
depende das boas circunstâncias de amor em que o filho é concebido. Transbordava-me
agora o coração de alegria. Quando vi minha filha fora de perigo e prestados
a meu neto os primeiros cuidados, corri ao quarto do oratório, ajoelhei-me
defronte da Virgem-Mãe, e aí, com a alma também parturiente e aliviada das
ânsias e sobressaltos que a pejavam, agradeci aos céus, entre lágrimas consoladoras,
a ventura que eles nos enviavam.
Mas tornei logo para junto da enferma. Tomei-lhe a cabeça no regaço, e foi
assim que Palmira adormeceu, como nos outros tempos, quando eu era moça e
ela pequenina.
XXII
Mês e meio depois do nascimento de meu lindo netinho, recebia Leandro na
Europa uma carta que o chamava para junto da esposa.
Fomos buscá-lo a bordo e César foi conosco.
A mulher que restituí aos braços e aos lábios sequiosos de meu genro era
de novo a formosa criatura que ele deixara oito meses antes; se não é que,
com cumprir o seu mais alto destino de mulher, ganhara em graça e sedução,
como certas plantas que só são verdadeiramente belas e viçosas depois de darem
o seu primeiro fruto.
Ele também vinha mais forte e bem disposto. Notei, no seu primeiro olhar
trocado comigo, depois que cobriu de beijos sôfregos as faces, as mãozinhas
e os pezinhos de seu filho, que Leandro me não guardava rancor, e estive quase
a acreditar que ele já tivesse afinal chegado a compreender-me. Mas percebi
logo o meu engano: ainda era muito cedo para tanto. Um homem vulgar não compreende
assim tão facilmente as complicadas delicadezas de um coração de mãe.
César, esse é que me compreendia bem e tomava parte direta nas minhas alegrias
e nas minhas vitórias. Com que ar de satisfação acompanhou o meu bom amigo,
essa tarde, a reentrada de meu genro em casa da mulher, e com que sinceridade
de contentamento se tornaram a ver!
O nosso jantar foi uma festa. Houve brindes, dirigidos quase todos ao pequerrucho,
que compareceu à mesa nos braços da ama, e que, valha a verdade, se portou
muito incorretamente. Ainda não vi criança para berrar tão forte, nem para
ensopar cueiros daquele modo!
À noite vieram visitas; tocou-se, cantou-se e dançou-se. Atentando para uma
das amigas de Palmira, acompanhada à nossa casa pelo marido, a qual também,
havia poucos meses antes, tivera o seu primeiro filho, não me pude eximir
de comparar esse casal com o meu casal, e reconhecer quão diferente era nos
dois pares o modo por que se mantinha e conduzia cada um de per si. No entanto,
o casamento daqueles era sem dúvida muito mais recente que o de Leandro com
minha filha.
Não me contive e disse ao ouvido desta:
– Olha! ali tens uma infeliz, cujo parto foi com certeza fiscalizado de perto
pelo marido. Vê como os dois nunca se aproximam francamente um do outro, e
repara como só conversam quando há uma terceira pessoa que forneça o assunto.
– Estão separados pelo filho!…
E, porque Palmira fizesse um vivo gesto de surpresa com esta última frase,
acrescentei em segredo, para bem lhe explicar minha sentença: – O filho, desde
que o pai assista ao seu nascimento, é um traço de união moral, um laço de
amizade, que se estabelece entre os dois indivíduos donde ele nasce, mas é
ao mesmo tempo uma fria linha isoladora, que se cava para sempre entre o corpo
de um homem e o corpo de uma mulher, que sensualmente até aí se amavam e se
queriam.
Ela teve para mim um sorriso inteligente, em que lhe veio ao rosto toda a
sua gratidão pelos meus desvelos, e o seu sorriso desabotoou-se num beijo
que recebi na face. Quis detê-la ainda um instante, Leandro, porém, acercou-se
de nós, com o seu ar de namorado feliz, passou-lhe o braço na cintura, e os
dois afastaram-se, rindo e conversando intimamente.
Sentia-me um pouco fatigada. As canseiras daqueles últimos tempos deixaram-me
abatida. Doíam-me as costas e o peito. Levantei-me com intenção de ir lá dentro
tomar um copo de leite quente com uma gota de conhaque, quando um fato, em
extremo desagradável, veio interromper a nossa festa: Acabava de chegar da
casa do Dr. César um recado exigindo que ele seguisse imediatamente para lá,
porque a irmã, que nesse dia se mostrara aliás muito melhor, fora, ao cair
da noite, acometida por uma terrível hemoptise e parecia agora em perigo de
vida.
O bom homem não esperou segunda ordem para tomar às pressas o sobretudo,
o chapéu e a bengala. Corri a ter com ele e pedi-lhe, enquanto agitado me
apertava a mão, que, se o caso fosse com efeito grave, me mandasse prevenir
logo ao chegar à casa.
Infelizmente era. O mesmo cocheiro do nosso carro, em que fora o Dr. César,
voltou com a notícia de que D. Etelvina agonizava. Entreguei logo a casa a
meus filhos, agasalhei-me, tomei o meu livro de orações, despedi-me das visitas,
e segui por minha vez, mandando puxar bem pelos cavalos.
* * *
César morava na praia do Flamengo. Quando cheguei lá, a pobre senhora expirava
nos braços do irmão. Muito magra, muito descorada, com os olhos imóveis e
sem fito, a boca ressequida babando sangue, o nariz laminoso e com um brilho
sinistro, ela era apenas uma fugitiva sombra humana, que se exinania em soluços
de morte.
Havia algumas pessoas presentes, mulheres e homens. Ajoelhei-me ao lado da
cabeceira da cama, abri o meu livro de orações e pus-me a rezar em silêncio.
A moribunda já não dava acordo do que se passava em torno do seu aniquilamento.
Um colega de César, que com este lhe acompanhara a moléstia, sacudia os ombros
desanimado, pronto já para sair.
E ali, dentro daquele quarto, defronte dos nossos olhos, uma vida apagou-se,
deixando vazia e fria a quebradiça lâmpada de argila. Ninguém dava palavra,
e todos, em volta, contemplavam o cadáver, como se a força de fitá-lo, procurassem
compreender alguma coisa daquele fato tão comum e sempre tão extraordinário
e tão comovedor.
Eu já não rezava, fitava-o também, como os outros, pensando nesse misterioso
destino de todos nós. E lembrei-me de meu neto, que, com o mesmo mistério
daquela retirada, havia pouco antes entrado na vida. Um a chegar e outro a
sair!… Donde baixava ele?… e ela, para onde descia?… De que vívido manancial
e para que fundo e soturno depósito – vinham e iam essas pobres almas, que
vemos passar ruidosamente no cenário da existência, entrando e saindo pelos
bastidores de treva?… O que haveria lá dentro, na misteriosa caixa desse
teatro, onde talvez não repercuta uma só gargalhada ou um único soluço da
comédia ou da tragédia que representamos cá fora?… Por que seria que os
atores não voltavam nunca à cena, mesmo depois de muito aplaudidos?… Ou
quem sabe se voltariam, mas já descaracterizados e já irreconhecíveis para
aqueles que em vida os vitoriaram com o seu amor ou com o seu ódio!…
Trevas e trevas!
Uma velha amiga da morta interrompeu o seu pranto, para pedir aos homens
que se retirassem dali: ia preparar-se o cadáver para entrar na terra. Nessa
ocasião, César encarregava um amigo de cuidar do enterro. E nenhuma de nós
descansou um instante até que o corpo de Etelvina, depois de lavado, vestido,
penteado e calçado, foi posto sobre um sofá da sala próxima, com as ósseas
mãos cruzadas sobre a carcaça do peito, e com o escaveirado queixo seguro
por um lenço de seda branca. E, à cabeceira do sofá, armou-se uma mesa, coberta
por uma toalha de rendas, com a imagem de Cristo crucificado, entre duas velas
de cera, que ardiam com uma luz amarela e fumegante.
Então, assentaram-se todos em volta do cadáver, e continuaram a contemplá-lo.
E o silêncio foi de novo se condensando, numa oprimidora harmonia com o frio
da madrugada e com o longínquo ladrar dos cães lá fora na rua. E mais e mais
pesada e úmida se foi fazendo a tristeza. As velas, ao lado do crucifixo,
pareciam chorar com aquelas suas quentes e longas lágrimas de cera, a escorrerem-lhe
em vagarosos fios e a pingarem, gota a gota.
A primeira mosca pousou no lábio da defunta.
Em torno, numa desolação muda, ouvia-se de longe em longe, um longo suspiro.
E tristes figuras, negras de luto, permaneciam imóveis, com o queixo apoiado
na mão – a fitar o cadáver.
Eu também o fitava sempre, irresistivelmente, sem saber por quê.
Serviu-se café. Tomei a chávena que me levaram e continuei a encarar o cadáver…
Mas, de súbito, uma idéia, que nunca até então me viera ao espírito, atravessou-me
o coração de lado a lado, como com aquela mesma agulha que eu vira pouco antes
coser o lençol da defunta: “E se a minha hora estivesse também a bater?…
Sim, nada mais natural!… Achava-me velha, fraca; sentia-me doente… podia
pois morrer de um momento para outro!… E minha filha?! ficaria para sempre
abandonada à imprevidência moral do marido, sem ter quem lhes dirigisse a
vida?… Mas assim, os dois acabariam fatalmente por cair na vulgaridade do
casamento e no tédio da promiscuidade sexual!… E a minha obra, tão penosamente
levada ao ponto em que se achava, seria perdida, completamente perdida!…”
Esta idéia fez-me fechar os olhos, para não ver o cadáver. Compreendi que
outras pessoas que lá estavam em redor dele e pareciam dormir, tinham apenas,
como eu, fechado os olhos, também para não ver a morte.
Como me sucedia sempre ao preocupar-me qualquer idéia sem pronta solução,
pensei em César, e lembrei-me de que, havia talvez mais de duas horas, notara
eu a sua ausência da sala, e não tivera por conseguinte trocado com ele senão
algumas frases de pêsame oficial, em presença de estranhos; e que, pois, não
lhe havia recolhido ainda uma só palavra de dor, quando aliás devia o meu
pobre amigo estar mortalmente ferido no coração: – Aquela sua irmã, agora
ali finda e putrescente, era toda a sua última família, era a sua extinta
comunhão doméstica!… E eu sabia perfeitamente quão extremoso fora o amor
que os ligara por mais de vinte anos. Ainda não lhe tinha visto uma lágrima
– devia sofrer muito! Precisava ir para junto dele…
Levantei-me à sua procura. Talvez estivesse no seu gabinete de trabalho.
Fui ver.
O gabinete tinha luz e o reposteiro estava corrido. O pobre homem lá se achava
com efeito, sozinho, assentado à secretária, o rosto escondido entre as mãos,
de costas voltadas para a porta de entrada. Os seus cabelos brancos, cortados
à escovinha, brilhavam argentinamente ao reflexo da luz do gás que lhes batia
de cima.
– Posso entrar, César?…
Ele ergueu-se com sobressalto e veio receber-me. Tomou-me as mãos, puxou-me
para junto de si, fechou-me nos braços sobre o peito, e desatou a soluçar,
como se só esperasse por mim para dar curso àquela explosão de desabafo.
Eu compreendi – cerrei-o forte no meu colo e pousei a cabeça no seu peito
generoso, procurando fazê-lo sentir, bem no fundo do coração, que ainda lhe
ficava neste mundo de misérias – uma irmã, uma amiga, uma camarada fiel, para
o amar estremecidamente como a outra o amara durante a vida inteira.
E assim estivemos muito tempo, estreitados nos braços um do outro, a chorarmos
ambos, sem achar nenhum de nós uma palavra, dele para mim, ou de mim para
ele.
* * *
Ia, no entanto, naquela ocasião, decidir-se entre nós dois o fato mais extraordinário
de toda a nossa existência.
XXIII
Ele afinal fez-me tomar uma cadeira e assentou-se perto de mim. Nunca lhe
tinha visto a fisionomia que lhe vi nesse momento: Ela dizia ao mesmo tempo
todos os velhos, intemináveis desgostos do seu passado ao roto e sem fundo,
e todo o desespero do seu presente restrito e sem saída. Num relance veio-me
ao espírito a síntese da sua longa existência de sessenta e tantos anos –
um rosário de lutos: Mulher, filhos e genros foram todos pouco a pouco caindo
em torno da sua velha dor sobrevivente, até que a última da família, aquela
retardatária irmã que o estremecia, lhe fugia também agora, depois de uma
tossegosa e gemebunda existência de hética!
– Acabou-se tudo!… murmurou o infeliz, como se seguisse o rápido vôo do
meu pensamento.
Tomei-lhe as mãos.
– Não… disse em segredo, que minhas lágrimas tornavam mais abafado e íntimo,
ainda lhe resta uma amiga, uma irmã, uma companheira…
Ele levou à boca as minhas mãos que se orvalharam nas suas barbas úmidas
de pranto.
– Mas como hei de viver agora?… prosseguiu. Como hei de viver sozinho aqui,
neste frio hospital abandonado, donde vi saírem, um a um, para o cemitério,
todos os entes que me pertenciam?… Diga, minha amiga, diga-me como hei de
suportar esta miséria? – E cobriu o rosto com o lenço, soluçando mais forte.
– Ah destino injusto e perverso!… levar-me a morte os outros todos e deixar-me
a mim, o mais velho e o mais necessitado de morrer! O que fico eu fazendo
aqui?… O que fico fazendo?…
A sua agonia retalhava-me o coração. Chamei-lhe a encanecida cabeça para
o meu colo de amiga, e assim ficamos longo tempo, calados ambos.
As moscas, acordadas essa noite com a presença de um cadáver na casa, zumbiam
alegres no silêncio do quarto.
César desviou-se do meu colo e deixou-se ficar cabisbaixo, com as suas mãos
nas minhas. Compreendi que nesse instante o meu pensamento ia caminhando ao
lado do dele, em silêncio, como dois velhos e tristes companheiros inseparáveis;
e por fim o nosso pensamento foi se derretendo em palavras, apenas balbuciadas.
César começou a falar em voz muito baixa, soturnamente, como se temesse acordar
a irmã, que dormia lá na sala, no seu leito frio. Falava em segredo, com o
rosto quase unido ao meu, numa surda conspiração contra a vida. Era o resíduo
do seu pobre coração, já de muito tempo despedaçado, que vinha agora assim
diluído pelas lágrimas.
E ele murmurou, como num sonho:
– Ultimamente, minha Olímpia, uma estranha amargura me persegue… a nosso
respeito… uma dor secreta, penosa como um arrependimento tardio… alguma
coisa da mágoa de não ter colhido a felicidade, no bom momento em que ela
nos passou cantando diante dos olhos… um irremissível desgosto de não ter
sido em tempo o teu marido ou me ter feito o teu amante…
Abaixei os olhos. Era a primeira vez que falávamos abertamente do nosso velho
amor.
César prosseguiu no mesmo tom: – Sim, sim, minha amiga… nós nascemos um
para o outro!… Foi uma tremenda infelicidade não nos termos encontrado antes
dos nossos loucos casamentos… ou não termos então rompido com todas as conveniências
e com todas as convenções – para nos unirmos para sempre; para nos pertencermos,
exclusivamente, sem o menor desvio da nossa ternura; e para que enfim pudéssemos
ser agora, minha amada, inseparáveis companheiros neste fim de vida!…
– Não… respondi, não meu querido amigo, não seria a mesma coisa: não seríamos
ainda hoje moralmente e virtualmente consorciados como somos. O casamento
ou a concubinagem desvirtuariam o espírito do nosso amor, tão puro e tão elevado…
O matrimônio carnal é incompatível com a sagrada amizade, com a verdadeira
dedicação, porque vive dos sentidos e não do sentimento… Se tivéramos algum
dia unido os nossos corpos, as nossas almas estariam hoje separadas! Se algum
dia tivéramos tido em nosso consórcio, que foi tão claro e tão casto, outros
laços que não o desta profunda e delicada afeição que nos irmana; hoje, que
somos velhos ambos e pois inúteis para a sensualidade, não teríamos – tu em
mim a tua consoladora amiga; eu em ti o meu derradeiro amor…
César encarou-me surpreso:
Como assim? Pois eu negava o amor dos sentidos ligados ao sentimento do amor?…
– Certamente. Na língua não há palavras para exprimir essas duas coisas tão
diversas e até tão opostas: – o amor produzido pelo instinto sensual e o amor
produzido pela simpatia e atração moral de dois espíritos que se procuram
e se casam. O grande erro do casamento vulgar o que o torna insuportável,
é pretender aliar o instinto da procriação com o sentimento do amor ou da
amizade, que nada tem a ver com ele e até o repele. O irracional também é
como o homem suscetível de apego de amizade, nunca porém se preocupa com isso,
quando trata de cumprir o seu mister procriador. O homem não deve ter comunicação
carnal com a mulher que ama!
César mostrava-se cada vez mais surpreso.
– E tua filha!… interpelou ele; tua filha não ama e não é amada pelo
marido?…
– Ama sensualmente, respondi; mas, para o outro amor, para este que nos ligou
até hoje, ela está perfeitamente incompatibilizada com ele. O marido não pode
ser nunca o amigo. O esposo do corpo não pode ser ao mesmo tempo o esposo
da alma; e nisto estava a razão de ser e a grande força dos confessores primitivos.
Mas o padre não era amigo sincero e nem foi leal e foi casto; daí a causa
única por que ele não persistiu e não ficou para sempre nos casais junto à
mulher e ao lado do marido.
César meditou um instante, e disse depois:
– Tens razão talvez… O que não impede que, apesar de nos amarmos sempre
e apesar de termos nascido um para o outro, e apesar dos meus sessenta e cinco
anos, e apesar de que sejas agora uma avó de cabelos brancos, não possamos
viver juntos, como eu vivi até hoje com minha irmã, porque não somos casados…
E, se aqui te detenho comigo, assim neste gabinete, se te cingi ao meu peito
e te guardei um instante nos meus braços já trêmulos, é porque há aí a pequena
distância de nós um cadáver que tudo justifica; ao contrário nem isso mesmo
seria razoável!… Vê tu que escravidão a nossa!]
– É a convenção social, meu amigo…
– Oh! o código social! Sofram-se tudo; suportem-se todas as misérias, mas
não se falte nunca aos seus preceitos! Mas, antes de aparecer esse mesquinho
código arranjado pelo homem, já um outro existia, imposto pela natureza, muito
mais sábio, mais justo e mais generoso; e esse mesmo homem que reclama sob
pena dos maiores castigos, o bom cumprimento do seu código, calça aos pés,
a cada momento, as leis do outro, sem receber por isso, dos seus semelhantes,
a menor punição! De sorte que eu, tendo uma amiga a quem estremeço, com quem
poderia arrastar menos tristemente o sudário da minha velhice, não hei de
valer-me da companhia dela, nem usar livremente da sua casta amizade, porque
o tal código social não me permite! É caso para lamentar não seres tu homem,
ou não ser eu mulher!
– Não, César, nada aproveitaríamos com ser do mesmo sexo… Nunca houve equilíbrio
perfeito de qualquer amor senão entre pessoas de sexo diferente. O amor que
te tenho, apesar de ideal, nunca poderia eu senti-lo por outra mulher, fosse
esta minha mãe, minha irmã ou minha filha…
– Mas, meu Deus, isso é a negação das tuas teorias sobre o casamento…
– Não… Por quê?…
– Segundo o que acabas de dizer, duas pessoas de sexo diferente podem então,
sem incompatibilidade, viver eternamente juntas…
– Decerto, desde que se amem castamente como nós dois nos amamos, e não tenham
entre si a menor aproximação carnal. O que incompatibiliza moralmente os cônjuges
é o amor físico. Se dois amigos do sexo diferente pudessem, na plenitude da
mocidade, realizar um consórcio naquelas condições, e vivessem juntos sem
a menor preocupação dos sentidos, seriam eternamente felizes e cada vez mais
se amariam, porque para eles a convivência constante, ao contrário do que
sucede aos que se unem pelo sexo, longe de enfraquecer-lhes o amor, havia
de ir cristalizando-o lentamente, até fazê-lo atingir o supremo estado de
pureza, inquebrantável e límpido como um diamante. Seria esse o único casamento
eterno!
– E os filhos?
– Que filhos? Acaso figuraste semelhante hipótese, quando há vinte anos te
uniste eternamente a essa tua pobre irmã, que acaba de morrer, deixando-te
a alma viúva do seu amor?…
– Eu a amava, justamente porque nos amos. E assim deve ser entre todos os
homens e todas as mulheres que se amam.
– Oh! seria isso a extinção da espécie… a não ser que, em tal casamento,
a cada um dos consortes assistisse o direito de ir buscar fora do casal, onde
melhor o levassem os seus apetites carnais, a satisfação do instinto procriador!…
– E por que não? O instinto materialíssimo da procriação nada tem que ver
com o amor, isto é, com o verdadeiro sentimento de humanidade elevado ao seu
mais alto grau de comoção. A fêmea é para o macho – produzem; a mulher é para
o homem – amam-se. Entre os que se ajuntam instintivamente, não pode existir
o amor, só há sensualidade! É o caso de minha filha e meu genro; é o contrário
do nosso caso!
– Então, para que fazer questão de sexo?…
– Porque, repito, entre duas pessoas do mesmo sexo, a não ser no caso particular
do amor materno, que é um desdobramento do amor-próprio, só pode haver ligeiras
relações de estima e simpatia. Amor, verdadeiramente amor, só pode existir
entre o homem e a mulher; só entre estes se fará inteira confiança de parte
a parte, inteiro equilíbrio de espíritos e de corações. A sexualidade física
refletindo-se no moral é tão poderosa que se estende até aos pais com relação
aos próprios filhos, ou vice-versa. A filha ama sempre mais o pai do que a
mãe, e o filho mais a mãe do que o pai. Pode-se afirmar que não é só o corpo
que tem sexo, a alma também o tem, e só a alma de uma mulher pode compreender
a alma de um homem e só por esta pode ser compreendida. Há muita coisa que
um homem não confia ao espírito de outro homem, nem uma mulher ao de outra
mulher. Eu, por exemplo, em caso nenhum teria jamais revelado a outra pessoa
do meu sexo tudo o que até hoje te relatei da minha vida íntima e dos meus
íntimos pensamentos; e tu, meu velho amigo, juro que também não serias capaz
nunca de pôr a alma nua defronte de nenhum homem, como tantas e tantas vezes
a exibiste defronte dos meus olhos. Por quê? porque sempre nos amamos sinceramente,
e muito, tanto quanto é possível, sem nunca todavia depravarmos o nosso amor
humano com a rasteira preocupação de nossos instintos bestiais! Se o tivéramos
feito, não te poderia eu falar agora deste modo, nem tu me ouvirias a sério
e de boa-fé, como me estás ouvindo: Rir-nos-íamos um do outro; achar-nos-íamos
ridículos!… Os indivíduos, sujeitados e unidos pela sensualidade, quando
se acham a sós os dois, só podem falar com empenho dos interesses do próprio
instinto que os uniu, seja dos interesses do gozo sexual, ou seja dos interesses
dos filhos; no mais, as poucas e frias palavras que trocam entre si são concernentes
a coisas chatas, caseiras e materiais como o mesmo amor que os liga. E nós,
desde o primeiro dia em que nos conhecemos até hoje, conservamos um para o
outro a mesma poesia do amor?
Calei-me, e só então notamos que o dia acabava de invadir o gabinete por
uma larga janela envidraçada.
César ergueu-se, e eu também. Ele, lívido com aquela noite de insônia e de
lágrimas, parecia um espetro.
Adiantou-se lentamente para mim, estendendo-me as mãos trêmulas.
– Se assim é… disse-me comovido e suplicante; não nos separemos mais!…
Vivamos juntos este resto de vida, unidos por este elevado amor de que me
falas!… Posto nossas almas há muito se esposaram, casemo-nos, já que assim
o quer a sociedade; e que eu te possa ter a meu lado, e que eu te fale e te
veja todos os dias, a qualquer instante; e que eu possa contar contigo, minha
amiga, perto do meu leito, quando este pobre corpo morrer de todo!
Abaixei a cabeça.
Depois de longa pausa, tartamudeei muito triste:
– Ninguém nos compreenderia… Seríamos cobertos de ridículo, por todos,
por minha família, até por minha filha!
– Não! insistiu ele. Não acontecerá assim: Já todos se habituaram a ver em
ti um espírito superior, emancipado de preconceitos mesquinhos. Casar-nos-emos
para poder viver perto um do outro, mas separados de corpo, como dois irmãos.
Lembras-te de que hoje tua família é o meu único herdeiro e eu preciso justificar
publicamente esse fato. Não me abandones aqui com as minhas saudades, sem
ter eu um coração onde aqueça esta velha alma tua amiga! Casando-me contigo,
minha querida irmã, não é só uma companhia que trarei para meu lado; Palmira
será também minha filha e Leandro será meu filho… E eu terei o direito de
amá-los e de importuná-los um pouco com as minhas rabugices de velho… E
terei, para se rir de mim, para puxar-me as barbas e trepar-me pelas pernas,
o teu netinho, Olímpia! Ele, o diabrete, vendo-me todos os dias a teu lado
e habituando-se a brincar comigo, acabará por amar-me, como se com efeito
fosse neto de nós dois… E só a idéia de que lhe ouvirei ainda chamar-me
“Vovô”! só com esta idéia… vês tu, minha filha?… correm-me já as lágrimas
pelo rosto!
Aproximei-me dele, para cingi-lo nos meus braços.
– Descansa, respondi-lhe. Não ficarás abandonado, meu bom amigo! Mesmo nestes
pesados dias de nojo serei desde já a tua companheira. Logo mais voltarei
com Palmira, para passarmos três dias contigo. Leandro ficará lá em casa durante
esse tempo.
César amparou-se em mim, soluçando. Entre as suas lágrimas só uma palavra
compreendi das que me disse: “Obrigado! Obrigado!” Depois tomou-me a cabeça
entre as mãos e beijou-me na testa. Eu lhe respondi com um beijo igual.
Foi o primeiro beijo que trocamos em toda a nossa longa vida de amor.
* * *
Ao sair do gabinete, dirigi-me logo para a sala em que estava o cadáver.
Em volta dele pareceu-me tudo ainda mais triste com aquela deslavada luz do
amanhecer. As raras pessoas que ficaram a guardar a morta dormiam nas suas
cadeiras, com a cabeça pendida sobre o peito. As velas choravam sempre, e
mais sinistras achei agora as suas lágrimas. O corpo, já completamente rijo,
fazia mais frio o ambiente, e um ligeiro fedor úmido evolava-se dele.
XXIV
Quando, pela manhã, cheguei à casa, sentia-me muito mal disposta. Era sem
dúvida a reação de todas aquelas canseiras acumuladas ultimamente. – Mas tudo
isso passaria com algumas horas de absoluto repouso. – Recolhi-me ao quarto,
quase sem forças para despir-me. Despedi a criada, recomendando-lhe que não
me chamasse enquanto eu estivesse na cama.
Deitei-me, e comecei a pensar, à espera do sono; teria eu ânimo de realizar
a boa ação que vinha de prometer ao meu amigo?… Teria a coragem de afrontar
com o ridículo, que porventura iria despertar aquele casamento feito entre
dois velhos?… Compreenderiam essa ligação moral; esse esposório de duas
almas amigas, que se estremecem e se buscam, através de uma existência inteira;
e afinal se abraçam, não para a satisfação do amor, mas para afugentar o medo
que, separadas e sozinhas, sentiria cada uma no frio resto do seu caminho
já ensombrado pela morte?…
Não, com certeza, ninguém compreenderia! Não obstante, esse casamento, singular
embora, era perfeitamente lógico e era essencialmente humano! Em que e por
que o amor e os reclamos da alma valem e merecem menos que as sensuais necessidades
do corpo?… Acaso a solidariedade da carne, instinto de todo animal, é mais
digna que a solidariedade do espírito, privilégio exclusivo do homem?… Pois
tão facilmente aceitavam todos e compreendiam a conveniência de um companheiro
para os nosso sentidos inconscientes, e não compreenderiam a razão de um companheiro
para o nosso espírito, que é a parte racional do ser humano, o que o sobreleva
dos brutos e o que o aproxima de Deus?…
Não, ninguém compreenderia!… Entretanto, aquele casamento seria de grande
utilidade, nem só para o meu velho amigo, como para mim própria. Cansada já,
precisava ter mais perto o meu auxiliar na obra da felicidade matrimonial
de Palmira; precisava de um substituto imediato para as faltas, que eu seguro
iria fazer agora no meu posto de vigia. De resto, e talvez principalmente,
a expectativa de ter César a meu lado neste último quartel da vida, enchia-me
o coração de uma inefável esperança de completa felicidade moral.
Mas, que diria meu genro?… que pensaria minha filha?…
Oh! para esses ficaria tudo, mais tarde, explicado neste manuscrito, que
em tempo lhes chegaria às mãos! E, quanto ao mais – já muito fazia eu em dar-lhe
a pública satisfação do casamento!
Sim! estava resolvido – César viria acabar seus dias a meu lado!
E comecei a pensar na disposição da casa para acomodá-lo convenientemente,
e até em nosso futuro modo de viver.
Havia um aposento magnífico para ele, e o meu quarto de trabalho, que era
vasto, passaria a ser comum entre nós dois. Seria o nosso ponto principal
de convivência: Enquanto César aí estivesse ocupado lá com os seus trabalhos,
estaria eu costurando, lendo ou escrevendo; e isso não impediria que minha
filha continuasse a passar nessa mesma sala, as horas que costumava passar
comigo.
E via já o meu velho camarada, ao almoço e ao jantar, assentado ao lado de
meu neto, a rirem-se os dois um com o outro, a brincarem, como duas crianças.
E via-o depois passeando conosco, nas belas manhãs de Petrópolis, levando-me
pelo braço, feliz com aquela família toda inteira e completa, que eu lhe dava,
como um presente de bodas, para consolação do resto da sua existência. E via-o
à noite, na sala, de cabeça coberta e lenço ao pescoço, jogando comigo antes
do chá, enquanto Palmira ao piano acompanhava o enamorado e choroso bandolim
do marido. E via-o afinal estendido no seu leito extremo, já prestes a deixar
a vida, guardando as minhas mãos nas suas, e entregando-me o último suspiro
da sua alma irmã da minha, tão generosa, tão adorável e tão pura.
Mas o sono não vinha e a minha indisposição crescia vivamente. Dolorosos
calefrios obrigavam-me a encolher-me toda debaixo dos cobertores. Sentia doer-me
o lado da cintura, a boca seca, o estômago ansiado. Compreendi que não podia
dormir. Tateei o tímpano, vibrei e pedi à criada uma chávena de chá bem quente.
Ao tomar os primeiros goles, vomitei logo, e senti dores no estômago.
Quando minha filha, alvoroçada com a notícia do meu incômodo, me procurou
aflita, eu ardia em febre e não podia conter os gemidos. Meu genro veio também
pouco depois, todo de luto, já preparado para o enterro de D. Etelvina, que
seria à tarde. Apesar do sofrimento, falei-lhes no abandono em que ia ficar
o nosso Dr. César e no estado de desconsolo em que eu o deixara ao lado do
cadáver da irmã, último parente que lhe fugia para debaixo da terra.
Leandro prometeu-me que lhe faria uma visita logo em seguida ao almoço e
ficaria com ele até as horas do saimento. Pedi-lhe mais que depois do enterro,
o não deixasse sozinho naquele casarão triste e solitário; que, em meu nome,
o persuadisse de vir para junto de nós, ao menos por esses primeiros dias;
e lhe dissesse que eu não podia ir lá com Palmira, como prometera e tencionava,
mas que viesse ele; entregasse a casa aos serventes e trouxesse de companhia
o seu velho criado Antônio. Era isso o bastante.
* * *
Recebidas estas disposições, Leandro saiu do quarto, e minha filha começou
a tratar de mim, convencida, como eu, de que era passageiro o mal. Não valia
a pena chamar médico; César viria à tarde ou à noite e daria as providências
necessárias. A despeito da minha crescente indisposição, perguntei a Palmira
que tal lhe parecia a idéia de convidarmos o meu velho amigo para ficar morando
indefinidamente conosco. Ela não se abalou com o alvitre, como esperava eu.
– Ali, disse, todos queriam e estimavam tanto o Dr. César, que este era para
a família menos um estranho que um parente.
Recomendei-lhe então falasse a esse respeito com Leandro e desse-me depois
sincera conta da impressão que semelhante idéia produzisse no ânimo dele.
– Ora! respondeu minha filha. Leandro é deveras amigo do velho César. Mamãe
bem sabe que ele o estima e respeita como a um pai! Há de sem dúvida ficar
satisfeito com a notícia…
– Sim, mas fala-lhe, porque talvez não fiquem as coisas neste ponto.
O pior é que o meu padecimento aumentava, e do meio para o fim do dia, tão
mal me achei e tão pouco acordo dei de mim, que não posso agora render cópia
exata do que se passou. Caí em modorra de febre; creio que delirei. Sei apenas
que César veio logo ao fechar da noite; que me receitou; deu-me a tomar os
remédios e não me abandonou até o momento em que, já tarde, Palmira o constrangeu
a recolher-se ao quarto que lhe destinávamos.
E eu, que o tinha chamado para aliviá-lo das suas penas, recebia agora dele
os desvelos de amigo e os cuidados de médico, e de enfermeiro. O que supúnhamos
febre passageira era nada menos que uma inflamação de fígado. A moléstia caracterizou-se
nessa mesma noite com a alteração na glândula, e o Dr. César fez logo o seu
diagnóstico: “Hepatite intersticial, proveniente de impaludismo.”
E tive de guardar o leito no dia seguinte e nos outros imediatos, mostrando-se
César ao meu lado de uma solicitude sem igual.
* * *
Mas, ao fim da primeira semana, reconhecíamos já que a nossa posição era
falsa. Desde que constou a minha enfermidade, começaram as visitas, algumas
de mera cerimônia, outras de verdadeira estima; e o meu pobre amigo confessava-se
constrangido ali, à vista dos estranhos. Além disso, era natural que ele,
sem estar de todo transferido lá para casa, sentisse falta dos seus velhos
hábitos; homem, como sempre foi, dado metodicamente a longos estudos e a trabalhos
científicos. Não me animava contudo a propor-lhe a mudança absoluta, sem a
justificativa do casamento. E a situação, dentro em pouco, complicou-se ainda
mais, pela contingência em que me vi de ter, para segurança da cura, de aproveitar,
ainda no primeiro período da moléstia, a estação das águas de Caxambu.
Foi assim que se resolveu em família, e logo se apressou, o nosso singular
casamento.
Como ainda não podia eu sair à rua, tivemos de solicitar uma licença da Igreja
para realizá-lo em casa. Não foi difícil, e a formalidade religiosa durou
pouco tempo, sem grande escândalo na vizinhança.
As pessoas de nossa amizade receberam a comunicação do fato nos seguintes
termos:
“Olímpia da Câmara e o Dr. César Veloso participam a V. Ex.a que contraíram
o direito de passar junto a sua velhice, aparentando-se legalmente pelos vínculos
conjugais.”
Não sei se a novidade foi muito comentada lá fora, nos vários grupos das
nossas relações; não mo disseram, nem eu tampouco a ninguém o perguntei. Quanto
a lá por casa – Ah! isso foi diferente: O senhor meu genro não procurou sequer
disfarçar o riso que o fato lhe provocava! O leviano, sem atingir o alcance
do meu proceder, só nele via o ridículo casamento de dois velhos. Perdoei-lhe,
não obstante, ainda essa descortesia, porque ela não era obra da maldade do
seu coração, mas só da sua inferioridade moral.
Palmira, essa não riu logo, pelo menos em minha presença; ficou a cismar,
sem ânimo de interpelar-me, e daí por diante evitava até de entrar em conversa
comigo sobre este assunto. Mas, com César, já não foi tão generosa, porque
um dia a surpreendi a faceciar contra o padrasto a respeito do caso. Ele,
não sei o que tinha dito, que ela com aqueles seus modos de rapariga travessa,
pois nunca os perdeu de todo, tomou-lhe as lunetas, armou-as no nariz e começou
a arremedar os meus gestos e a minha voz, exclamando comicamente, com o dedo
no ar e a cabecinha empertigada:
– Casaram-se?… Está muito bem! mas não consinto que fiquem juntos muitos
dias seguidos… Não! não! a felicidade conjugal, meu caro Dr. César, é nisto
que se baseia! E se duvida, vou já buscar-lhe a Bíblia!…
César pôs-se a rir, e eu não pude deixar de fazer o mesmo. Ela, ao dar comigo,
que a espreitava, ficou desapontada e corrida; desprendeu as lunetas do nariz,
entregou-as ao dono; e o diabrete veio correndo atirar-me ao pescoço e pedir-me
com seus beijos o beijo do meu perdão.
* * *
Todavia, eu continuava doente. Realizou-se a mudança definitiva de César
lá para casa, e daí a dois dias arribamos todos para Caxambu. Fui bem prostrada.
No fim de um mês de águas estava de pé, mas compreendi que me havia empolgado
a moléstia que terá de matar-me. Alguma coisa se modificou no meu ser físico,
alguma coisa em mim se quebrou para sempre. Reconheci que um novo marco divisório
se firmara na minha existência, separando o último período vivido de um novo
período que começava. Este deve ser naturalmente o último, porque em minha
família nunca vamos além dos sessenta anos.
Agora, porém, que me importava a idéia de morrer, se estava tudo bem disposto
para garantir a felicidade dos entres queridos que eu deixava no mundo?
Depois de três meses de Caxambu voltamos à casa de Laranjeiras, e de novo
entrou definitivamente nos seus eixos a nossa vida doméstica, mais completa
agora com a presença de César. Pouco a pouco, à vista da atitude que guardávamos,
eu e meu esposo, Leandro foi compreendendo a nossa verdadeira situação. Deixou
de rir; e, tanto ele como Palmira, começaram a envolver o meu venerável companheiro
na mesma atmosfera de carinhoso respeito em que ela sempre me teve e em que
aquele ultimamente me firmava.
A minha aliança com César era a de dois velhos irmãos amoráveis; e o exemplo
do nosso mútuo respeito, da inalterável delicadeza de palavras e maneiras
que mantínhamos um pelo outro, e principalmente a ação constante daquela nossa
profunda amizade, casta, sagrada e puramente espiritual, não tardaram a dar
de si os frutos que eu pressupunha, refletindo-se diretamente no ânimo de
minha filha e de meu genro. Foi para eles tão eficaz e poderoso o efeito desse
exemplo de amor impoluto, que no fim de alguns meses se tornava de todo desnecessária
a minha intervenção para obrigá-los a cumprir o regime de vida que eu lhes
impusera, sem haver, não obstante, desfalecimento de amor sensual por parte
de nenhum dos dois. Ou porque tivessem afinal se habituado às periódicas separações
de leito, ou porque compreendessem já o seu valor e eficácia; ou fosse enfim
que o alto exemplo da nossa calma ternura lhes apurasse o espírito e lhes
aperfeiçoasse o coração, o certo é que eles iam agora, sem esforço, naturalmente,
vivendo como lhes ensinara eu a viver, e confessavam-se felizes; e, pela primeira
vez, mostravam-se gratos ao meu maternal desvelo.
Com a convivência Leandro foi cada vez mais se fazendo filho de César; afinal,
muitas vezes, nos seus regulares afastamentos do tálamo, meu genro dormia
no mesmo quarto com o padrastro, e Palmira e meu neto dormiam comigo. E iam-se
assim os dias passando, sem a mais ligeira nuvem de desarmonia, sem o menor
atrito de caracteres, nem sombras de descontentamento, porque, ao contrário
do que em geral sucede nas famílias ainda mesmo pouco numerosas, não formávamos
pequenos grupos conspiradores; não havia segredos entre todos nós, nem por
conseguinte podia haver ressentimento.
A liberdade moral e física de cada um era completa, sem despertar nos outros
o vislumbre de uma ofensiva suspeita. Leandro entrava e saía de nossa casa
livremente; ora dormia, ora não dormia perto da mulher, e deixava de aparecer-lhe
nos dias que lhe convinha, sem que isso nela despertasse ciúmes ou enfados
de despeito.
Sem o preclaro exemplo da minha comovida e amorosa castidade, não sei se
poderia, apesar do empenho que pus em dirigir a felicidade de Palmira, ter
evitado entre ela e o marido as ridículas contendas e as enervantes misérias
do matrimônio. E com efeito – que bela lição de amor e que virtuoso exemplo
de ventura não era esse casal de velhos, assim vivendo unidos só pelo coração
e pelo espírito, sem jamais se fatigarem da presença um do outro, sem nunca
precisar nenhum dos dois fingir nos seus sorrisos e nas suas palavras de ternura!…
Ah! tínhamos sempre o que conversar, porque bem pouco falávamos de nós mesmos,
o que equivale a falar dos nossos instintos ou dos nossos interesses materiais.
Podíamos penetrar desassombradamente em todos os assuntos, discutir os pontos
mais elevados da moral e da razão porque não nos tínhamos jamais incompatibilizado
intelectualmente pelas grosseiras animalidades do corpo. Podíamos olhar-nos
bem de face um para o outro, sem corar ou sem rir, porque éramos igualmente
puros aos nossos olhos, porque nunca entre nós esvoaçou a asa do mais fugitivo
menoscabo, e porque tínhamos sido sempre, na mocidade, e éramos e continuávamos
a sê-lo na velhice, os mesmos amigos castos, os mesmos irmãos amorosos, cujas
idéias e cujas revelações de gestos e palavras jamais foram postas entre nós
ao serviço da luxúria e das vergonhosas e inconfessáveis imundícias da carne!
Oh! juro que eu era, como esposa, ainda mais feliz que minha filha, para
cuja felicidade trabalhei eficazmente durante toda a minha vida de mulher.
Sim, fui e sou feliz, apesar da moléstia que me vai minando a existência.
Sou agora, neste momento em que escrevo estas palavras, a mais venturosa das
mães, a mais enternecida das avós e a mais bem-aventurada das esposas. Enquanto
escrevo isto, sinto perto, bem perto de mim, o meu amigo amado, que aí está
a dois passos, descansando numa poltrona, a fumar o seu charuto, enquanto
lê um jornal. Ouço-lhe com volúpia o fraco e curto resfolegar de velho, afinado
pela minha respiração de enferma e pela débil respiração do meu netinho. Sinto,
pensando nisto, invadirem minha alma a paz e o amor que cercam os meus gemidos
e os meus cabelos brancos… Sei que Palmira é feliz e sei que ela me ama;
sei que meu genro me fará justiça e me amará um dia tanto quanto minha filha;
sei que morrerei abençoada por eles e…
* * *
Mas não posso continuar a escrever: César acaba de levantar-se e vir ter
comigo. Tomou-me a mão esquerda e disse-me com autoridade de médico:
– Bem! por hoje basta! Qualquer abuso de trabalho, minha amiga, pode prostrar-te
de cama… Vamos antes dar um passeio pela chácara… A tarde está magnífica!
XXV
São passados nada menos de um ano e dois meses depois que escrevi as últimas
palavras que aí ficam para trás; só agora pude voltar ao meu manuscrito e
talvez, quem sabe? para me despedir dele, porque é já com bastante custo que
ainda lanço no papel estas linhas, trêmulas e pálidas como a própria mão que
as traça.
Como estou desfeita e abatida!
Depois das enganadoras melhoras granjeadas com os ares e águas de Caxambu,
o mal acordou de novo, para seguir vitoriosamente o seu negro curso. O meu
terrível fígado, apesar dos cuidados médicos, aumentou sempre durante o segundo
período da moléstia; e agora, já no terceiro, sinto que me matará este depauperamento
geral de forças e esta cruel ascite, que me dá o absurdo aspecto de uma tísica
em último grau e grávida.
Todavia, durante esse tempo fizemos uma excursão pela Europa; já de volta
ao Rio de Janeiro, operei a minha hidropsia abdominal, e só hoje consigo,
ainda sem deixar a cama, tentar sobre a mesa de cabeceira esta página difícil…
Ai! dói-me todo o lado direito; doem-me os pulmões e sinto falta de ar!
Mas é preciso arrastar-me até ao fim das minhas revelações. Vamos: Palmira
está pejada de novo; o marido, sem que ninguém lhe falasse nisso, declarou
já que iria aos Estados Unidos durante o resguardo puerperal. Recomendei-lhe
que não deixasse de visitar Salt Lake City, capital do território de Utah
e procurasse, como o Afonso Celso, conversar com os prosélitos e sectários
de José Smith, patriarca dos mórmons. A convicção filosófica dessa tribo de
homens fortes pode preparar-lhe o espírito para a metade da existência que
lhe falta viver ainda com a mulher.
Meu esposo goza da melhor saúde que é dado gozar a um velho, e seria completamente
feliz se não foram os meus padecimentos. Creio que só aos seus desvelos de
amigo e de médico, tenho ainda conseguido viver; pelo menos…
Ai! senti agora mesmo nos pulmões uma dor aguda! Não posso continuar a escrever…
Bem me dizia César que seria imprudência dar-me a este trabalho…
* * *
E terminava aqui o curioso manuscrito que Leandro me deu para ler na sua
pitoresca vivenda da Tijuca. As últimas páginas não pareciam escritas pelo
mesmo punho que traçara as primeiras com letra tão firme e corrente. As frases
finais eram quase ininteligíveis.
Devorei-o em duas secções: uma à noite, antes de dormir, até às duas horas
da madrugada seguinte, e a outra entre o almoço e o jantar desse mesmo dia.
Mal o terminei, corri ao meu amigo para pedir-lhe os pormenores da morte dessa
inteligente e singular senhora, a quem tão mal julgara eu até aí e por quem,
depois daquela leitura, sentia a mais profunda admiração e o mais enternecido
respeito; e eis em substância o que me narrou Leandro:
D. Olímpia, depois que interrompeu com um gemido aquela sua página interminada,
nunca mais levantou a cabeça dos travesseiros, vindo a falecer da moléstia
que a prostrava.
Durou muitos dias a sua agonia mortal. Durante esse tempo, César fez todos
os milagres da dedicação e do amor para salvá-la. Jamais amante nenhum foi
tão extremoso e digno desse nome; nem jamais noivo de vinte anos chorou com
tamanha paixão o desviver da noiva virginal e formosa.
A casta companheira da sua velhice morreu-lhe nos braços e recebeu o seu
beijo derradeiro entre as lágrimas dos filhos. Poucos momentos antes de expirar,
chamou estes dois para bem junto dela e, tomando uma das mãos de Leandro,
e tomando uma das mãos de Palmira, falou-lhes com a flébil sombra de voz que
ainda lhe restava:
– Logo que eu feche os olhos, disse-lhes compassadamente, abram aquela gaveta
da minha secretária, cuja chave está debaixo deste travesseiro, e tirem de
lá o manuscrito que fui escrevendo depois que Palmira se casou. Encontrarão
aí a justificação plena de todos os meus atos e de todas as minhas palavras.
Foi por amor de ti, minha filha, que concebi aquelas idéias, e foi para ti,
meu genro, que as escrevi. Leiam-no ambos com atenção e procurem seguir à
risca os preceitos que lá se acham estabelecidos, porque essa é a minha derradeira
e única vontade, ao deixar este mundo. Se o fizerem, hão de ser eternamente
felizes como animais humanos: terão a felicidade material em que se funda
a vida orgânica da nossa espécie; mas, se quiserem desfrutar a outra felicidade,
a melhor, a mais alta e mais perfeita; essa, que nenhum dos dois conhece ainda;
essa, que gozei longe e ao lado deste meu atual esposo; essa, em que se baseia
e garante a vida moral – tenha cada um de vocês dois o seu amigo, o amado
do seu espírito, o eleito da sua inteligência, porque todo o homem, como toda
a mulher, precisa tanto de um companheiro para a sua carne, como de um companheiro
para a sua alma! A vida é o amor, e o amor não é só a procriação. Cristo não
deixou filhos, mas a semente de seu amor vive e frutifica até hoje no coração
dos homens… É possível que a ideal melancolia do seu beijo maculado, chorando
eternamente através dos séculos, secasse muitos ventres, esterilizasse muitos
homens, mas fecundou de imorredoura ternura muitos e muitos corações!… A
carne é egoísta – temam o despotismo da carne! A carne é irmã degenerada –
é o Caim da alma! Afastem um do outro esses dois irmãos irreconciliáveis,
para que o ideal não caia assassinado pela besta! Vá cada um de vocês dois,
meus filhos, buscar o esposo da sua alma, fora e bem longe do leito matrimonial,
com os olhos bem limpos de luxúria, com a boca despreocupada de beijos terrenos,
com o sangue tranqüilo e o corpo deslodado das lubrificações carnais! Minha
filha – toma um amante – para teu espírito! Meu filho – elege uma amiga –
para o teu coração de homem!
E calou-se.
Foram estas as suas últimas palavras. Depois de balbuciá-las, deixou pender
a cabeça sobre o colo do esposo, e morreu sem um gemido.
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