História de um mulato

Lima Barreto

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O livro do Sr. Enéias Ferraz – História de João Crispim – aparecido recentemente, apesar de umas ousadias fáceis que a sua mocidade desculpa, é obra de mérito que merece ser lida.

É livro de um tipo só, porque os outros, mesmo o do poeta Afonso Pina, mais longamente estudado, ficam apagados diante da força com que o autor analisou o seu personagem central; e essa análise é feita – pode-se dizer sem favor algum – é feita com grande cuidado e rara lucidez.

Trata-se de um rapaz de cor, de grande cultura, egresso de toda e qualquer sociedade, menos da das bodegas, tascas e prostíbulos reles.

É um caso de “moléstia da cor”, como qualifica Sílvio Romero, tratando de Tito Lívio de Castro, no prefácio que escreveu para – A mulher e a sociogenia – desse malogrado escritor.

O derivativo para essa tortura, para essa moléstia especial, no personagem do Sr. Enéias Ferraz, não é o estudo, embora seja ele um estudioso; não é o bordel, embora não hesite em freqüentar o mais baixo que seja; não é a arte, embora escreva e seja ilustrado; é o álcool, álcool forte, “whisky”, cachaça.

Redator de jornal, possuidor de uma pequena fortuna, leva uma vida solta de boêmio, trocando, na verdade, o dia pela noite, quando corre lugares suspeitos, após os trabalhos de redação, mesmo, às vezes, nela dormindo.

A sua dor íntima, a ninguém revela; e ninguém percebe naquela alma e naquela inteligência, o motivo de tão estranho viver quando, quem o levava – como diz o vulgar – “podia ser muita coisa”.

Temperamentos como este que o Sr. Enéias Ferraz estuda, tão comuns entre nós, nunca tentou a pena de um romancista. Ao que me conste, o autor da História de João Crispim é o primeiro que o faz, pelo menos, na parte estática, se assim se pode dizer.

Como o Sr. Ferraz se saiu da tentativa, toda a gente pode vê-lo com a leitura de seu interessante e atraente livro.

Há nessas almas, nesses homens assim alanceados, muito orgulho e muito sofrimento. Orgulho que lhes vem da consciência da sua superioridade intrínseca, comparada com os demais semelhantes que os cercam; e sofrimento por perceber que essa superioridade não se pode manifestar plenamente, completamente, pois há, para eles, nas nossas sociedades democraticamente niveladas, limites tacitamente impostos e intransponíveis para a sua expansão em qualquer sentido.

De resto, com o sofrimento, um homem que possui uma alma dessa natureza enche-se de bondade, de afetuosidade, de necessidade de simpatizar com todos, pois acaba, por sua vez, compreendendo a dor dos outros; de forma que, bem cedo, está ele cheio de amizades, de dedicações de toda a sorte e espécie, que lhe tiram o direito de uma completa e total revolta contra a sociedade que o cerca, para não ferir os amigos.

João Crispim é assim: por toda a parte, é querido; por toda a parte, é estimado.

O marmorista que lhe fez o túmulo da mãe simpatiza com ele; mas lastima que gostasse tanto do “copito”. Entretanto, mal sabia ele, o marmorista, que se não fôsse o “copito” – expansão da dor íntima de Crispim – talvez o fabricante de túmulos não amasse o moço mulato.

Cercado de amigos, encontrando por toda a parte uma afeição e uma simpatia, uma vida, como a do personagem do Sr. Ferraz, perde a sua significação e trai o seu destino.

A sua significação era a insurreição permanente contra tudo e contra todos; e o seu destino seria a apoteose, ou ser assassinado por um bandido, a sôldo de um poderoso qualquer, ou pelo governo; mas a gratidão e as amizades fazem-no recalcar a revolta, a explosão de ódio, de fel contra as injustiças que o obrigaram a sofrer, tanto mais que os que a sorte aquinhoa e o Estado estimula, com honrarias e cargos, não têm nenhuma espécie de superioridade essencial sobre ele, seja em que for.

Crispim, nem de leve, se insurgiu, a não ser inofensivamente em palestras e na platônica insurreição do cálice de cachaça, sorvidos, nos lábios de um rapaz, embora mulato, mas educado e com instrução superior à vulgar. Morre, porém, debaixo das rodas de um automóvel, num sábado de carnaval; vai para o necrotério, donde a caridade do Estado, após os folguedos de Momo – como se diz nos jornais – leva-lhe o cadáver para [a] sepultura, como indigente, pois não foi reconhecido. A orgia carnavalesca não permitiu que o fosse…

Não quero epilogar sobre essa cena, que é, aliás, uma das mais belas do livro; não posso, porém, deixar de observar que um tipo como esse João Crispim devia ser conhecido, mais ou menos, por todo o mundo, neste vasto Rio de Janeiro, onde sujeitos menos originais que Crispim são apontados por toda a gente.

Isto, porém, é uma nuga sem importância, sobre a qual não vale a pena insistir.

Os detalhes da obra do Sr. Ferraz são, em geral, excelentes; e ele possui, como ninguém, o sentimento da cidade, de suas várias partes e de seus vários aspectos, em diversas horas do dia e da noite.

Quase sempre, nós nos esquecemos muito dos aspectos urbanos, do “ar” das praças, das ruas, lojas etc., das cidades que descrevemos em nossos livros, conforme as horas em que eles nos interessam em nossos escritos. A Balzac e a Dickens, os mestres do romance moderno, não escapa isso; e ao Sr. Ferraz também interessou essa feição do romancear do nosso tempo, tanto assim que nos dá belas descrições de trechos e coisas da cidade. Não citarei senão aquele das imediações do Teatro Municipal, alta noite; e também a da tradicional livraria do velho Martins, na rua General Câmara – um Daumier!

No final de contas, a estréia do Sr. Enéias Ferraz não é uma simples promessa; vai muito além disso, sem que se possa dizer que seja uma afirmação, mesmo porque nós só nos afirmamos com o conjunto de nossas obras, e o Sr. Ferraz ainda pode e deve compor muitas outras.

Sobra-lhe talento e vocação para isso; o que é preciso, porém, é não esmorecer, não perder o entusiasmo, nem embriagar-se com os louros colhidos. É o que espero, como amigo que sou dele.

O País, 17-4-1922

 

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