Estâncias a Emma

Machado de Assis

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I

Saímos, ela e eu, dentro de um carro,
Um ao outro abraçados; e como era
Triste e sombria a natureza em torno,
Ia conosco a eterna primavera.

No cocheiro fiávamos a sorte
Daquele dia, o carro nos levava
Sem ponto fixo onde aprouvesse ao homem;
Nosso destino em suas mãos estava.

Quadrava-lhe Saint-Cloud. Eia! Pois vamos!
É um sítio de luz, de aroma e riso.
Demais, se as nossas almas conversavam,
Onde estivessem era o paraíso.

Fomos descer juntos ao portão do parque.
Era deserto e triste e mudo; o vento
Rolava nuvens cor de cinza; estavam
Seco o arbusto, o caminho lamacento.

Rimo-nos tanto, vendo-te, ó formosa,
(E felizmente ninguém mais te via!)
arregaçar a ponta do vestido
Que o lindo pé e a meia descobria!

Tinhas o gracioso acanhamento
Da fidalga gentil pisando a rua;
Desafeita ao andar, teu passo incerto
Deixava conhecer a raça tua.

Uma das tua mãos alevantava
O vestido de seda; as saias finas
Iam mostrando as rendas e os bordados,
Lambendo o chão, molhando-te as botinas.

Mergulhavam teus pés a cada instante,
Como se o chão quisesse ali guardá-los,
E que afã! Mal podíamos nós ambos
Da cobiçosa terra libertá-los.
Doce passeio aquele! E como é belo
O amor no bosque, em tarde tão sombria!
Tinhas os olhos úmidos, — e a face
A rajada do inverno enrubecia.

Era mais belo que a estação das flores;
Nenhum olhar nos espreitava ali;
Nosso era o parque, unicamente nosso;
Ninguém! estava eu só ao pé de ti!

Perlustramos as longas avenidas
Que o horizonte cinzento limitava,
Sem mesmo ver as deusas conhecidas
Que o arvoredo sem folhas abrigava.

O tanque, onde nadava um níveo cisne
Placidamente, — o passo nos deteve;
Era a face do lago uma esmeralda
Que refletia o cisne alvo de neve.

Veio este a nós, e como que pedia
Alguma coisa, uma migalha apenas;
Nada tinhas que dar; a ave arrufada
Foi-se cortando as águas tão serenas.

E nadando parou junto ao repucho
Que de água viva aquele tanque enchia;
O murmúrio da gotas que tombavam
Era o único som que ali se ouvia.

Lá ficamos tão juntos um do outro,
Olhando o cisne e escutando as águas;
Vinha a noite; a sombria cor do bosque
Emoldurava as nossas próprias mágoas.

Num pedestal, onde outras frases ternas,
A mão de outros amantes escreveu,
Fui traçar, meu amor, aquela data
E junto dela por o nome teu!

Quando o estio volver aquelas árvores;
E à sombra delas for a gente a flux,
E o tanque refletir as folhas novas,
E o parque encher-se de murmúrio e luz,

Irei um dia, na estação das flores,
Ver a coluna onde escrevi teu nome,
O doce nome que minha alma prende,
E o que o tempo, quem sabe? já consome!

Onde estarás então? Talvez bem longe,
Separada de mim, triste e sombrio;
Talvez tenhas seguido a alegre estrada,
Dando-me áspero inverno em pleno estio.

Porque o inverno não é o frio e o vento,
Nem a erma alameda que ontem vi;
O inverno é o coração sem luz, nem flores,
É o que eu hei de ser longe de ti!

II

Correu um ano desde aquele dia
Em que fomos ao bosque, um ano, sim!
Eu já previa o fúnebre desfecho
Desse tempo feliz, — triste de mim!

O nosso amor nem viu nascer as flores;
Mal aquecia um raio de verão
Para sempre, talvez, das nossas almas
Começou a cruel separação.

Vi esta primavera em longes terras,
Tão ermo de esperanças e de amores,
Olhos fitos na estrada, onde esperava
Ver-te chegar, como a estação das flores.

Quanta vez meu olhar sondou a estrada
Que entre espesso arvoredo se perdia,
Menos triste, inda assim, menos escuro
Que a dúvida cruel que me seguia!

Que valia esse sol abrindo as plantas
E despertando o sono das campinas?
Inda mais altas que as searas louras,
Que valiam as flores peregrinas?

De que servia o aroma dos outeiros?
E o canto matinal dos passarinhos?
Que me importava a mim o arfar da terra,
E nas moitas em flor os verdes ninhos?

O sol que enche de luz a longa estrada,
Se me não traz o que minha alma espera,
Pode apagar seus raios sedutores:
Não é o sol, não é a primavera!

Margaridas, caí, morrei nos campos,
Perdei o viço e as delicadas cores;
Se ela vos não aspira o hálito brando,
Já o verão não sois, já não sois flores!

Prefiro o inverno desfolhado e mudo,
O velho inverno, cujo olhar sombrio
Mal se derrama nas cerradas trevas,
E vai morrer no espaço úmido e frio.

É esse sol das almas desgraçadas;
Venha o inverno, somos tão amigos!
Nossas tristezas são irmãs em tudo:
Temos ambos o frio dos jazigos!

Contra o sol, contra Deus, assim falava
Dês que assomavam matinais albores;
Eu aguardava as tuas doces letras
Com que o céu perdoasse as belas cores!

Iam assim, um após outro, os dias.
Nada. – E aquele horizonte tão fechado
Nem deixava chegar aos meus ouvidos
O eco longínquo do teu nome amado.

Só, durante seis meses, dia e noite
Chamei por ti na minha angústia extrema;
A sombra era mais densa a cada passo,
E eu murmurava sempre: — Oh! minha Emma!

Um quarto de papel – é pouca coisa;
Quatro linhas escritas – não é nada;
Quem não quer escrever colhe uma rosa,
No vale aberta, à luz da madrugada.

Mandam-se as folhas num papel fechado;
E o proscrito, ansiando de esperança,
Pode entreabrir nos lábios um sorriso
Vendo naquilo uma fiel lembrança.

Era fácil fazê-lo e não fizeste!
Meus dias eram mais desesperados.
Meu pobre coração ia secando
Como esses frutos no verão guardados.

Hoje, se o comprimissem, mal deitava
Uma gota se sangue; nada encerra.
Era uma taça cheia: uma criança,
De estouvada que foi, deitou-a em terra!

É este o mesmo tempo, o mesmo dia.
Vai o ano tocando quase no fim;
É esta hora em que, formosa e terna,
Conversavas de amor, junto de mim.

O mesmo aspecto: as ruas estão ermas,
A neve coalha o lago preguiçoso;
O arvoredo gastou as roupas verdes,
E nada o cisne triste e silencioso.

Vejo ainda no mármore o teu nome,
Escrito quando ali comigo andaste.
Vamos! Sonhei, foi um delírio apenas,
Era um louco, tu não me abandonaste!

O carro espera: vamos. Outro dia,
Se houver bom tempo, voltaremos, não?
Corre este véu sobre teus olhos lindos,
Olha não caias, dá-me a tua mão!

Choveu: a chuva umedeceu a terra.
Anda! Ai de mim! em vão minha alma espera.
Estas folhas que eu piso em chão deserto
São as folhas de outra primavera!

Não, não estás aqui, chamo-te embalde!
Era ainda uma última ilusão.
Tão longe desse amor fui inda o mesmo,
E vivi dois invernos sem verão.

Porque o verão não é aquele tempo
De vida e de calor que eu não vivi;
É a alma entornando a luz e as flores,
É o que hei de ser ao pé de ti!

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