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Voltaire
Apresentação
Voltaire (1694-1778) foi um dos maiores pensadores de seu tempo. Seu estilo,
inconfundível, está presente em todos os seus romances, peças
teatrais, trabalhos sobre filosofia e ciências. O traço mais
marcante de seus textos é a agressividade inteligente, manifesta através
de críticas ácidas e de uma ironia grave, geralmente beirando
o sarcasmo.
Voltaire, com humor, castigou reis, nobres, ministros, religiões,
teorias científicas e filosóficas. Nesse aspecto “Dicionário
filosófico” é, talvez, o trabalho mais significativo.
Não perdoou autoridades, costumes, crenças ou teorias; é
difícil lembrar alguma que não tenha sido alvo de sua verve.
Suas críticas procuram demonstrar as contradições embutidas
nas concepções que ataca. Às vezes o faz de forma leve
e sutil, como neste argumento, em que ridiculariza a certeza humana:
“Se perguntásseis a todos os homens antes de Copérnico:
— O sol levantou-se hoje? O sol se pôs?
— Temos absoluta certeza – responder-vos-iam à uma voz.
Tinham certeza, e no entanto estavam errados.”
Em outros momentos, investe com mais severidade:
“Pretendiam alguns escritores europeus que nunca haviam estado na
China que o governo de Pequim era ateu. Wolf elogiara Pequim. Logo, Wolf era
ateu. Melhores silogismos nunca souberam forjar a inveja e o ódio.”
Não raro recorre à hostilização aberta:
“As inimitáveis tragédias de Racine foram todas criticadas,
e pessimamente: porque as criticaram rivais. Certo, os artistas são
juizes de arte competentes, porém quase sempre lhes falta integridade.”
Chega a apelar para a pilhéria:
“Assistia eu certa vez à representação de uma
tragédia em companhia de um filósofo.
— Como é belo! – dizia ele.
— Que viu o sr. de belo?
— O autor atingiu seu fim.
No dia seguinte ele tomou um purgante que lhe fez efeito.
— O purgante atingiu seu fim – disse-lhe eu. Eis um belo purgante.
Ele compreendeu não se poder dizer que um purgante seja belo, e que
para chamar belo a alguma coisa é preciso que nos cause admiração
e prazer. Conveio em que a tragédia lhe inspirara estas duas emoções,
e que nisso estava o to kalon, o belo.”
Em outros casos o chiste chega a ser corrosivo:
“Ben al Betif, digno chefe dos dervís, disse-lhes um dia: “Meus
irmãos, muito conveniente é que useis com toda freqüência
esta fórmula sagrada do nosso Alcorão: Em nome de Deus mui misericordioso,
pois Deus usa de misericórdia e vós aprendereis a praticá-la
com repetir freqüentemente os termos que recomendam uma virtude sem a
qual poucos homens restariam sobre a terra. Mas, meus irmãos, abstende-vos
de imitar esses temerários que a todo transe se jactam de trabalhar
pela glória de Deus. Se um jovem imbecil sustenta uma tese sobre as
categorias, tese presidida por um ignorante encasacado, não deixa de
escrever em grossos caracteres no cabeçalho de sua tese: Ek Allah abron
doxa: ad majorem Dei gloriam. Um bom muçulmano fez pintar o seu salão
gravando em sua porta essa tolice; um saca carrega água para maior
glória de Deus. É um costume ímpio, piedosamente posto
em uso. Que diríeis de um pequeno tchauch que ao limpar a privada do
nosso ilustre sultão gritasse: “Para maior glória do nosso
invencível monarca”? Há certamente maior distância
do sultão a Deus que do sultão ao pequeno tchauch.”
Voltaire não simpatizava com menções a milagres e reprovava:
“Segundo a energia do termo, um milagre é uma coisa admirável.
Nesse caso, tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação
de cem milhões de globos ao redor de um milhão de sóis,
a atividade da luz, a vida dos animais, constituem perpétuos milagres.
Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à violação
dessas leis divinas e eternas. Assim, quando houver um eclipse do Sol durante
a Lua cheia, quando um morto fizer a pé duas léguas de caminho
levando a cabeça de baixo do braço, isto quer dizer que sucedeu
um milagre.”
O tema da ressurreição tampouco o animava, disparava com precisão:
“Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são
monumentos de um povo de escravos. Foi preciso pôr de baixo de canga
toda uma nação, sem o que essas vis massas não teriam
sido levantadas. Que finalidade tinham? Conservar em uma pequena câmara
a múmia de algum príncipe, de algum governador, de um intendente
qualquer, porque ao cabo de mil anos sua alma devia reanimá-la. Mas
se esperavam a ressurreição dos corpos, por que lhes extraiam
os miolos antes de embalsamá-los? Será que os egípcios
deviam ressuscitar sem cérebro?”
Incomodava-o a idolatria, com presteza denunciava:
“Escreveram-se volumes imensos, debitaram-se sentimentos diversos
sobre a origem desse culto rendido a Deus ou a vários deuses sob figuras
sensíveis: esta multitude de livros e de opiniões não
atesta senão ignorância. Não se sabe quem inventou as
vestes e os calçados e quer-se saber quem primeiro inventou os ídolos?”
Contra as críticas, Voltaire devolvia outras,muitas vezes em defesa
do criticado:
“Dizem alguns teólogos que o divino imperador Antonino não
era virtuoso; que era um estóico tençoeiro que, não contente
de governar os homens, ainda queria ser estimado por eles; que fazia reverterem
a si próprio os benefícios que fazia ao gênero humano;
que foi toda a sua vida justo, trabalhador, benfeitor por simples vaidade,
e que apenas enganou os homens com a sua virtude; neste caso exclamarei: ‘Meu
Deus, dai-nos a basto velhacos desta laia!’”
Outro exemplo sugestivo:
“Um mendigo dos arredores de Madri esmolava nobremente. Disse-lhe
um transeunte:
— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão
infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, – respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro
e não conselhos.
E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas. Era um mendigo soberbo.
Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor
de si mesmo não suportava reprimendas.”
Esse era o genial Voltaire. A leitura de suas obras nos faz meditar melhor
sobre nossos pensamentos e a forma como os comunicamos. Podemos não
rir de suas frases, mas um sorriso discreto e salutar é inevitável.
Nélson Jahr Garcia
ABRAÃO
Abraão é um desses nomes célebres na Ásia Menor
e na Arábia, como Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro
na Pérsia, Hércules na Grécia, Orfeu na Trácia,
Odin nas nações setentrionais e tantos outros mais conhecidos
por sua celebridade do que por uma história bem comprovada. Não
falo aqui senão da história profana, pois quanto à dos
judeus, nossos mestres e nossos inimigos, em quem cremos e que detestamos,
tendo sido a história desse povo visivelmente escrita pelo próprio
Espírito Santo, temos por ela os sentimentos que devemos ter. Dirijo-me
apenas aos árabes; que se gabam de descender de Abraão por Ismael;
que acreditam ter sido esse patriarca o fundador de Meca, onde teria morrido.
O fato é que a raça de Ismael foi infinitamente mais favorecida
por Deus do que a raça de Jacó. Uma e outra, é verdade,
produziram ladrões. Mas os ladrões árabes foram incomparavelmente
superiores aos ladrões judaicos. Os descendentes de Jacó não
conquistaram mais que uma faixa de terra insignificante, que perderam. Os
descendentes de Ismael avassalaram parte da Ásia, parte da África
e parte da Europa, edificaram um império mais vasto que o império
dos romanos e enxotaram os judeus de suas cavernas – que estes chamavam
terra da promissão.
Bem difícil seria, à luz da história moderna, ter sido
Abraão pai de duas nações tão diferentes. Dizem
que nasceu na Caldéia, filho de pobre oleiro que ganhava a vida fazendo
pequenos ídolos de barro. É pouco verossímil que esse
filho de oleiro se haja abalançado a ir fundar Meca a trezentas léguas
de distância, de baixo do trópico, tendo de vingar desertos intransitáveis.
Se foi um conquistador, certamente ter-se-á dirigido ao belo pais da
Assíria. Se, como o despintam, não passou de um pobre diabo,
então não terá fundado reinos senão na própria
terra
Reza o Gênesis que tinha Abraão setenta e cinco anos ao emigrar
do país de Harã, após a morte de seu pai Tareu o oleiro.
O mesmo Gênesis, porém, diz que Tareu, tendo gerado Abraão
aos setenta anos, viveu até a idade de duzentos e cinco anos, e que
Abraão só saiu de Harã depois da morte do pai. Portanto
é claro, segundo o próprio Gênesis, que Abraão
contava cento e trinta e cinco anos quando deixou a Mesopotâmia. Saiu
de um pais idólatra para outro país idólatra: Siquêm,
na Palestina. Por que? Por que deixou as férteis margens do Eufrates
por terras tão remotas, estéreis e pedregosas? A língua
caldaica devia ser muito diferente da língua de Siquêm. Não
se tratava de lugar de comércio. Siquêm dista da Caldéia
mais de cem léguas. É preciso transpor desertos para lá
chegar. Mas Deus queria que Abraão realizasse essa viagem. Queria mostrar-lhe
a terra que séculos depois haviam de habitar seus pósteros.
Custa ao espírito humano compreender os motivos de tal peregrinação.
Mal arriba ao montanhoso rincão de Siquêm, obriga-o a fome
a abandoná-lo. Vai para o Egito em companhia de sua mulher, à
procura de com que viver. Duzentas léguas medeiam de Siquêm e
Menfis. Será natural ir buscar trigo tão longe? Num país
de que nem se sabe a língua? Estranhas viagens empreendidas à
idade de quase cento e quarenta anos.
Traz a Menfis sua mulher Sara. Sara era extremamente jovem em comparação
com ele, pois não contava mais que sessenta e cinco anos. Como fosse
muito bonita, Abraão resolveu tirar proveito de sua beleza. “Façamos
de conta que você é minha irmã,” – disse-lhe
– “a fim de que me acolham com benevolência”. “Façamos
de conta que é minha filha” – devia dizer. O rei enamora-se
da jovem Sara e presenteia o pretenso irmão com muitas ovelhas, bois,
burros, mulas, camelos e servos. O que prova – que já então
era o Egito um reino poderoso e civilizado – por conseguinte antigo
– e que se recompensavam magnificamente os irmãos que vinham
oferecer as irmãs aos reis de Menfis.
Tinha a jovem Sara noventa anos, segundo a Escritura, quando Deus lhe prometeu
que Abraão, que então tinha cento e sessenta, lhe daria um filho.
Abraão, que gostava de vigiar, tomou o caminho do hórrido
deserto de Cades, acompanhado da mulher grávida, sempre jovem e bonita.
Como acontecera com o rei egípcio, enamorou-se também de Sara
um rei do deserto – O pai dos crentes pregou a mesma mentira que no
Egito: fez passar a esposa por irmã. O que mais uma vez lhe valeu ovelhas,
bois e servos. Pode-se dizer que, graças a sua mulher, Abraão
se tornou riquíssimo.
Os comentaristas escreveram um número prodigioso de volumes para
justificar o procedimento de Abraão e conciliar a cronologia. Cumpre-me,
pois, a eles remeter o leitor. São todos espíritos finos e sutis,
excelentes metafísicos, senhores sem preconceito e profundamente avessos
à pedanteria.
ALMA
Seria maravilhoso ver a própria alma. Conhece-te a ti mesmo (1) é
excelente preceito, mas só a Deus é dado pô-lo em prática.
Quem mais pode conhecer a própria essência?
Alma chamamos ao que anima. É tudo o que dela sabemos: a inteligência
humana tem limites. Três quartos do gênero humano não vão
alêm, nem se preocupam com o ser pensante. O outro quarto indaga. Ninguém
obteve nem obterá resposta.
Pobre filósofo! Vês uma planta que vegeta, e dizes vegetação,
ou alma vegetativa. Notas que os corpos têm e comunicam movimento, e
dizes força. Vês teu cão de caça aprender contigo
teu ofício, e crias instinto, alma sensitiva. Tens idéias combinadas,
e dizes espírito.
Mas que entendes tu por estas palavras? Aquela flor vegeta. Existirá
porém um ser material – vegetação? Aquele corpo
impele outro. Porém encerra ele em si um ente distinto – força?
Aquele cão traz-te uma perdiz. Existirá porém um ser
chamado instinto? Não te ririas de um raciocinador (teria sido preceptor
de Alexandre) que te dissesse Todos os animais vivem; logo, encerram uma forma
substancial – a vida?
Se uma tulipa pudesse falar e dissesse: Minha vegetação e
eu somos dois seres juntos formando um só, não te ririas da
tulipa?
Vejamos primeiro o que sabes, e do que estás certo. Que andas com
os pés. Que digeres com o estômago. Que sentes com todo o corpo.
Que pensas com a cabeça.
Pois bem. Pode a tua razão só por só dar-te luzes suficientes
para concluíres, sem um recurso sobrenatural, que tens uma alma?
Os primeiros filósofos, quer caldeus, quer egípcios, disseram:
Forçoso é haver em nós algo que produza o pensamento;
esse algo deve ser extremamente sutil: sopro, fogo, éter, substrato,
um tênue simulacro, uma enteléquia, um número, uma harmonia.
Finalmente, segundo o divino Platão, é um composto do mesmo
e do outro. São átomos que pensam em nós, disse Epicuro
depois de Demócrito. Mas, meu amigo, como pensa o átomo? Confessa
que nem o imaginas.
Aceita-se seja a alma um ser imaterial. Mas vós não concebeis
o que seja esse ente imaterial.
— Não, – respondem os sábios – porém
conhecemos sua natureza: pensar.
— Como o sabeis?
— Porque ela pensa.
— Oh sábios! Muito receio que sejais tão ignorantes
quanto Epicuro. A natureza de uma pedra é cair porque ela cai. Pergunto-vos:
que a faz cair?
— Sabemos que uma pedra não tem alma.
— De acordo.
— Sabemos que uma negação, uma afirmação
não são divisíveis, não são partes da matéria.
— Da mesma opinião. Mas a matéria, que aliás
desconhecemos, tem qualidades não materiais, não divisíveis.
Possui gravitação para um centro, que Deus lhe deu. Essa gravitação
não é formada de partes, não é divisível.
A força motriz dos corpos não é ente composto de partes.
A vegetação dos corpos organizados, sua vida, seu instinto,
não são seres à parte, seres divisíveis. Não
podeis cortar em duas a vegetação de uma rosa, a vida de um
cavalo, o instinto de um cão, da mesma forma como não podeis
cindir em duas uma sensação, uma negação, uma
afirmação. Portanto vosso grande argumento inferido da indivisibilidade
do pensamento absolutamente nada prova.
Que chamais então vossa alma? Que idéia tendes dela? Por vós
mesmos, sem revelação, não podeis admitir em vós
senão um poder de vós desconhecido de sentir, de pensar.
Agora dizei-me sinceramente: é esse poder de sentir e pensar o mesmo
que vos faz digerir e andar? Confessais que não. Porque debalde ordenaria
vosso entendimento a vosso estômago doente: Digere! Ele não digeriria.
Debalde vosso ser imaterial intimaria a vossos pés gotosos: Caminhem!
Eles não caminhariam.
Com razão observaram os gregos não ter o pensamento quase
nenhuma influência no funcionamento dos órgãos. Admitiam
para os órgãos uma alma animal. Para o pensamento uma alma mais
tênue, mais sutil: um nous.
Mas eis a alma do pensamento que em milhares de ocasiões governa
a alma animal. Ordena a alma pensante às mães que apreendam:
as mãos apreendem. Porém não pode ordenar ao coração
que bata. Ao sangue que circule. Que se forme o quilo. Tudo isso se faz independentemente
dela. Aí estão as vossas duas almas metidas em maus lençóis
e feitas péssimas donas de casa.
Claro que a primeira alma não existe. Não passa do movimento
dos órgãos. Em guarda, homem! Tua fraca razão não
é capaz de provar a existência da outra também. Não
podes concebê-la senão pela fé. Tu Nasces. Vives. Ages.
Pensas. Velas. Dormes. Sem saber como. Deus conferiu-te a faculdade de pensar
como tudo o mais. E se não viesse ensinar-te nas idades assinaladas
pela sua providência que tens uma alma imaterial e imortal, dela não
terias prova alguma.
Relanceemos os interessantes sistemas arquitetados pela tua filosofia em
torno dessas almas.
Um diz que a alma humana é parte da substância do próprio
Deus. Outro que é parte do todo infinito. Terceiro que foi criada ab
eterno. Quarto que foi feita e não criada. Outros afirmam que Deus
as fabrica à proporção necessária, e que chegam
no instante da cópula. Alojam-se nos animálculos seminais, exclama
este. Não, diz aquele, vão habitar as trompas de Fallopio. Todos
vós estais errados, intervêm aqueloutro: a alma espera seis semanas
até que esteja formado o feto; então se acomoda na glândula
pineal; se, porém, encontra um germe maligno, volta, a espera de melhor
ocasião. A última opinião é que sua morada é
no corpo caloso. É o local que lhe atribui La Peyronie. Era preciso
ser primeiro cirurgião do rei de França para dispor assim do
alojamento da alma. Pena é que o corpo caloso do ar. La Peyronie não
tenha tido a mesma fortuna que o dono.
Diz Santo Tomás (questão septuagésima quinta e subseqüentes)
que a alma é uma forma subsistante per se. Que está em todas
as coisas. Que sua essência difere de sua potência. Que há
três almas vegetativas: nutritiva, aumentativa, generativa. Que a memória
das coisas espirituais é espiritual. Que a memória das coisas
corporais é corporal. Que a alma racional é uma forma imaterial
quanto às operações e material quanto ao ser. Sto. Tomás
escreveu duas mil páginas dessa força e dessa clareza. É
o pai da escola.
Não é menor o número de sistemas forjados sobre a maneira
de sentir da alma depois de desertar do corpo por meio de que sente. Como
ouvirá sem ouvidos. Como olfatará sem nariz. Como tocará
sem mãos. Que corpo retomará de futuro: o que tinha aos doze
ou aos oitenta anos? Como o eu, a identidade da mesma pessoa subsistirá.
Como a alma de um indivíduo tornado cretino à idade de quinze
anos e que cretino tenha morrido aos setenta anos retomará o fio das
idéias interrompido na puberdade. Por que milagre uma alma que haja
perdido uma perna na Europa e um braço na América reencontrará
essa perna e esse braço. (Que, tendo se transformado em legumes, terão
virado sangue de algum outro animal).
Singular é não haver nas leis do povo de Deus palavra sequer
a respeito da espiritualidade e imortalidade da alma. Nem no Decálogo,
nem no Levítico nem no Deuteronômio.
Em passo algum – e sobre isto não paira a menor dúvida
– Moisés promete aos judeus recompensas e castigos em outra vida.
Nem lhes fala da imortalidade da alma. Não lhes acena com céu
nem os ameaça com inferno. Tudo é temporal.
Antes de morrer diz-lhes no Deuteronômio: “Se depois de terdes
filhos e netos vós prevaricardes, sereis exterminados no país
e reduzidos a número ínfimo entre as nações.
“Eu sou um deus cioso que pune a iniqüidade dos pais até
terceira e quarta geração.
“Honrai pai e mãe para que vivais longo tempo.
“Nunca vos faltará o que comer.
“Se seguirdes deuses estrangeiros sereis destruídos…
“Se obedecerdes tereis chuva na primavera como no outono. Tereis frumento,
óleo e vinho. Tereis feno para os vossos animais. Para que comais e
vos farteis.
“Gravai estas palavras em vossos corações, em vossas
mãos, aos vossos olhos. Escrevei-as em vossas portas. Para que vossos
dias se multipliquem.
“Fazei o que vos ordeno sem tirar nem pôr.
“Se se erguer um profeta e vos predisser causas prodigiosas; se a
predição for verdadeira e se cumprir; e se ele vos disser: Vamos!
Sigamos deuses estrangeiros…- matai-o incontinenti. E que todo o povo vos
acompanhe.
“Quando o Senhor vos entregar nações estrangeiras, degolai
a todos. Não poupeis um só homem. Não tenhais piedade
de ninguém.
“Não comais aves impuras como a águia, o grifo, o ixiao.
“Não comais animais que ruminem e que não tenham a unha
fendida, como o camelo, a lebre, o porco espinho, etc.
“Observando todos os preceitos sereis abençoados na cidade
como no campo. Abençoados serão os frutos do vosso ventre, da
vossa terra, dos vossos animais…
“Se não observardes todos os mandamentos e todas as cerimônias,
amaldiçoados sereis na cidade como no campo… Padecereis fome, pobreza.
Morrereis de miséria, de frio, de penúria, de febre. Tereis
ronha, rabugem, fístula. Tereis úlceras nos joelhos e na barriga
das pernas.
“O estrangeiro vos emprestará a onzena, e vós não
lhe emprestareis a onzena… Por não servirdes ao Senhor.
“E comereis o fruto do vosso ventre. A carne dos vossos – filhos,
etc.”.
É manifesto nada haver em todas essas promessas e ameaças
que não seja temporal. Nem uma palavra sobre imortalidade da alma.
Nem uma palavra sobre vida futura.
Muitos comentadores ilustres foram de parecer que Moisés estava perfeitamente
avisado destes dois grandes dogmas. Provam-no com palavras de Jacó,
que julgando que seu filho fora devorado pelas feras, exclamou em sua dor:
“Eu acompanharei meu filho à sepultura, in infernum, ao inferno”.
Isto é: eu morrerei, já que meu filho morreu.
Provam-no ainda com trechos de Isaías e Ezequiel. Porém os
hebreus a quem falava Moisés não podiam ter lido Ezequiel nem
Isaías. Porque Ezequiel e Isaías só viveram muitos séculos
depois.
Inútil discutir quanto aos sentimentos secretos de Moisés.
O fato é que nas leis públicas ele nunca falou de vida futura.
Todos os castigos, todos os prêmios, restringe-os ao presente. Se conhecia
a vida vindoura, por que não expôs expressamente tão importante
dogma? E se não a conheceu, qual o objeto de sua missão? É
o que perguntam muitas personagens ilustres. E respondem que o Mestre de Moisés
e de todos os homens se reservava o direito de explicar a bom tempo aos judeus
uma doutrina que eles não estavam em condições de compreender
quando no deserto.
Houvesse Moisés anunciado o dogma da imortalidade da alma, não
o teria combatido uma grande escola de judeus. Não teria sido autorizada
pelo estado a grande escola dos saduceus. Os saduceus não teriam ocupado
os primeiros cargos. De seu seio não teriam saído grandes pontífices.
Parece que só depois da fundação de Alexandria os judeus
se cindiriam em três seitas: fariseus, saduceus, essênios. Ensina
o historiador fariseu José no livro 13 das Antigüidades que os
fariseus acreditavam na metempsicose. Criam os saduceus que a alma se extinguia
com o corpo. Para os essênios – é ainda José quem
o afiança – a alma era imortal; segundo eles as almas, sob forma
aérea, desciam do fastígio do firmamento violentamente atraídas
pelos corpos. Após a morte as almas das pessoas boas iam morar além
oceano, num país onde não fazia calor nem frio, não ventava
nem chovia. Lugar de todo em todo oposto era o desterro das almas ruins. Tal
a teologia dos judeus.
Aquele que devia ensinar todos os homens veio condenar essas três
seitas. Sem ele, porém, jamais saberíamos coisa alguma da própria
alma. Porque os filósofos nunca souberam nada certo e Moisés,
único verdadeiro legislador do mundo antes do nosso, Moisés
que falava com Deus face a face e não o via senão pelas costas,
deixou os homens em profunda ignorância dessa magna questão.
Há apenas mil e setecentos anos que estamos certos da existência
e imortalidade da alma.
Cícero não tinha mais que dúvidas. Seus netos aprenderam
a verdade com os primeiros galileus que arribaram a Roma.
Mas antes disso, e até depois disso em todo o resto da terra onde
não penetraram os apóstolos, cada um devia dizer à própria
alma: Que és tu? De onde vens? Que fazes? Para onde vais? Tu és
não sei que, que pensa e que sente. Mas ainda que pensasses e sentisses
cem bilhões de anos, nada saberias por tuas próprias luzes,
sem o auxílio de Deus.
Homem! Deus outorgou-te o entendimento para bem procederes e não
para penetrares a essência das coisas por ele criadas.
AMIZADE
Contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas.
Sensíveis porque um monge, um solitário, pode não ser
ruim e viver sem conhecer a amizade. Virtuosas porque os maus não adjungem
mais que cúmplices. Os voluptuosos careiam companheiros de devassidão.
Os interesseiros reúnem sócios. Os políticos congregam
partidários. O comum dos homens ociosos mantêm relações.
Os príncipes têm cortesãos. Só os virtuosos possuem
amigos. Cétego era cúmplice de Catilina. Mecenas era cortesão
de Otávio. Mas Cícero era amigo de Ático. Que estabelece
esse convênio entre duas almas ternas e honestas? As obrigações
são mais ou menos intensas consoante a sensibilidade de uma e de outra
e o número de serviços prestados, etc.
O entusiasmo da amizade foi mais forte entre gregos e árabes que
entre nós. São admiráveis as histórias que teceram
esses povos em torno deste sentimento. Não temos iguais. Somos em tudo
um pouco secos.
A amizade era objeto de religião e legislação entre
os gregos. Os tebanos tinham o regimento dos amantes. Magnífico regimento!
Houve quem o tomasse por um regimento de sodomitas. Engano: seria tomar o
acessório pelo essencial. A amizade era prescrita na Grécia
pela lei e pela religião. Infelizmente tolerava-se a pederastia. Aliás:
toleravam-na os costumes. É preciso não imputar à lei
abusos vergonhosos. Voltaremos ao assunto.
AMOR
Amor omnibus idem (2). Cumpre recorrermos à imagem. O amor é
a estopa da natureza bordada pela imaginação. Quereis ter uma
idéia do amor? Vede os pardais do vosso jardim. Vede vossos pombos.
Contemplai o touro que levam à novilha. Admirai aquele soberbo cavalo
que dois de vossos camaradas conduzem à égua que passiva o espera
e arreda a cauda para recebê-lo. Observai como seus olhos chamejam.
Ouvi seus relinchos. Admirai aqueles saltos, aquelas curvetas, aquelas orelhas
em pé, aquela boca que Se abre com ligeiras convulsões, aquelas
narinas aflantes bafejando inflamadamente, aquelas crinas que se empinam e
esvoaçam, o movimento imperioso com que se lança sobre o objeto
que lhe destinou a natureza.
Mas não os invejeis. Pensai nas vantagens da espécie humana.
Que contrabalançam força, beleza, ligeireza, impetuosidade todos
os predicados de que a natureza dotou os irracionais.
Há animais que não conhecem o gozo. Carecem desse prazer os
peixes escamados. A fêmea lança sobre a vasa milhões de
ovas e o macho que as encontra fecunda-as com o sêmen sem preocupar-se
com a dona.
A maioria dos animais que se acasalam não experimenta prazer por
mais que um único sentido. Satisfeito o apetite está tudo acabado.
Nenhum animal senão vós conhece os afagos. Todo o vosso corpo
é sensível. Vossos lábios sobre tudo experimentam uma
volúpia inexaurível – prazer exclusivo da vossa espécie.
Enfim podeis amar em qualquer tempo, enquanto os animais só o podem
em épocas determinadas. Se refletirdes nestas preeminências direis
com, o conde de Rochester: “O amor, em um país de ateus, faria
adorar a Divindade”
Como recebeu o dom de aperfeiçoar tudo o que lhe concedeu a natureza,
o homem aperfeiçoou o amor. A higiene, o cuidado com o próprio
corpo, tornando a pele mais delicada, aumentam o prazer do tato. O zelo da
própria saúde faz mais sensíveis os órgãos
da volúpia.
Todos os outros sentimentos de presto se amalgamam com o amor como metais
em fusão com o ouro.
Vêem reforçá-lo a amizade, a estima. São outros
elos de união os dotes do corpo e do espírito.
Nam facit ipsa suis interdum famina factis,
morigerisque modis, et mundo corpore cultu,
ut facile insuescat secum vir degere vitam.
(Lucrécio, liv. 4).
Principalmente o amor próprio estreita esses liames. Palmeamo-nos
a própria escolha, e as ilusões em chusma são ornamentos
dessa obra de que a natureza lançou os alicerces.
Eis o que possuís de superior aos animais. Se, porém, fruís
prazeres que eles desconhecem, também quantos sofrimentos padeceis
de que eles nem têm idéia! O que há de horrível
para vós é haver a natureza em três quartos da terra envenenado
os prazeres do amor e as fontes da vida com um mal tremendo, a que só
o homem está sujeito e que lhe infecciona os órgãos da
geração.
Esta peste não é como tantas outras doenças filhas
de nossos excessos. Não foi a dissolução que a introduziu
no mundo. As Frinéias, as Laíses, as Floras, as Messalinas não
foram vítimas dela. Nasceu em ilhas onde os homens viviam na inocência
e de lá propagou pelo mundo antigo.
Se alguma vez se pôde acusar a natureza de desamar a própria
obra, de contradizer o próprio plano, de tramar contra os próprios
fins, foi então. Não tínhamos o melhor dos mundos possíveis?
Se César, Antônio, Otávio não foram vítimas
desse mal, por que o foi Francisco I? Não, direis, tudo foi disposto
da melhor forma possível. Quero crer. Mas é difícil.
AMOR PRÓPRIO
Um mendigo dos arredores de Madri esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte:
— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão
infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, – respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro
e não conselhos. – E com toda a dignidade castelhana virou-lhe
as costas.
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor
de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.
Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado
de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear
em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas
moedas do país.
— Que renúncia de si próprio! – dizia um dos espectadores.
— Renúncia de mim próprio? – retorquiu o faquir.
– Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão
para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós
mesmos a base de todos as nossas ações – na Índia,
na Espanha como em toda a terra habitável.
Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo
também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio.
O amor próprio é o instrumento da nossa conservação.
Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie.
Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos – E cumpre ocultá-lo.
AMOR SOCRÁTICO
Por que motivo um vício que se fosse geral extinguiria o gênero
humano, atentado infame à natureza, é contudo tão natural
? Parece o último degrau da corrupção refletida –
Entanto manieta de cotio adolescentes que nem sequer tiveram tempo de ser
corrompidos. Entra corações tenros que não conhecem nem
a ambição, nem a fraude, nem a sede de riqueza. É a juventude
cega que, por instinto mal definido, se precipita na depravação
apenas dobra a infância.
Bem cedo se manifesta a inclinação recíproca dos sexos.
Mas, diga-se o que se disser das mulheres africanas e da Ásia meridional,
essa inclinação é geralmente muito mais forte no homem
que na mulher. É uma lei que a natureza ditou aos animais. É
sempre o macho que ataca a fêmea.
Sentindo essa força que a natureza começa a insuflar-lhes
e não encontrando o objeto natural do instinto, atiram-se os jovens
machos da nossa espécie sobre o que melhor se lhe semelhe. Não
raro, pela frescura da tez, pelo lustre das cores, pela doçura dos
olhos, durante dois ou três anos um jovem parece-se a uma rapariga.
Se o amamos, é porque a natureza se equivoca. Amamos nele o sexo a
que evoca sua beleza. Até que, dissipando-se a semelhança, a
natureza se corrige
Citraque juventam
oetatis breve ver et primos carpere flores(3)
Assaz sabido é ser esse equívoco da natureza muito mais comum
nos climas suaves que nos gelos do norte. Porque nos climas mais doces o sangue
é mais quente e mais freqüente a ocasião. Daí o
que não se considera mais que uma fraqueza no jovem Alcibíades
ser uma abominação num marinheiro holandês ou num vivandeiro
moscovita.
Não posso admitir que, como se pretende, tenham os gregos autorizado
semelhante licenciosidade. Cita-se o legislador Sólon por haver dito
em dois maus versos:
Algum dia inda amarás
um glabro e belo rapaz.
Mas seria Sólon legislador quando escreveu essa ridícula parelha?
Ainda era jovem. E quando o libertino se fez sábio, não iria
incluir .tamanha infâmia nas leis da sua república. É
como se se acusasse Teodoro de Besis de ter pregado o homossexualismo em sua
igreja por haver, na juventude, dedicado versos ao jovem Cândido e dito:
Amplector hunc et illam.
Abusa-se do texto de Plutarco, que, em suas tagarelices no Diálogo
do Amor, faz dizer a uma personagem que as mulheres não são
dignas do amor verdadeiro. Outra personagem, porém, sustenta devidamente
o partido das mulheres.
Certo é, tanto quanto o pode ser a ciência da antigüidade,
que o amor socrático não era um amor infame. A palavra amor
foi que enganou. O que se chamavam os amantes de um jovem era nem mais nem
menos o que são hoje os infantes de companhia dos nossos príncipes,
os jovens companheiros de educação de um menino distinto, participando
dos mesmos estudos, dos mesmos exercícios militares – instituição
guerreira e santa de que se abusou como das festas noturnas e das orgias.
A tropa dos amantes instituída por Laio era um corpo invencível
de jovens guerreiros unidos pelo juramento de dar a vida uns pelos outros.
Foi o que de mais belo possuiu a disciplina antiga.
Asseveram Sexto Empírico e outros que o homossexualismo tinha guarida
nas leis da Pérsia. Que citem o texto da lei. Que mostrem o código
dos persas. Mas ainda que o provem eu não acreditarei – Direi
que é mentira. Porque não seria possível, não
é da natureza humana elaborar uma lei que contradiz e ultraja a natureza.
Lei que aniquilaria o gênero humano se fosse literalmente observada.
Práticas vergonhosas toleradas pelas leis do país! Sexto Empírico,
que duvidava de tudo, devia duvidar dessa jurisprudência. Se vivesse
em nossos dias e visse dois ou três jesuítas abusarem de alguns
escolares, teria direito de concluir ser tal depravação permitida
pelas constituições de Inácio de Loiola?
Era tão comum o amor entre rapazes em Roma que ninguém pensava
em puni-lo. Otávio Augusto, esse assassino devasso e poltrão
que teve o desplante de exilar Ovídio, achou muito natural que Virgílio
cantasse Aleixo e Horácio escrevesse odes a Ligurino. Não obstante,
sempre subsistiu a lei Scantínia, preventiva da pederastia. Repô-la
em vigor o imperador Filipe, que expulsou de Roma os meninos que se dedicavam
ao ofício. Enfim não creio que em tempo algum nação
civilizada haja lavrado leis contra os próprios costumes.
ANJO
Enviado em grego. Baldio será acrescentar que os persas tinham peris,
os hebreu malakhs, os gregos seus daimones. Mas talvez nos aclare saber que
uma das primeiras idéias do homem foi interpor seres intermediários
entre a Divindade e nós. São os demônios, os gênios
ideados pela antigüidade. O homem sempre criou os deuses à sua
imagem. Viam-se os príncipes transmitir suas ordens por mensageiros:
então a Divindade também tinha seus correios. Mercúrio,
Isis, eram mensageiros, arautos.
Os hebreus – povo conduzido pela própria Divindade –
a princípio não deram nomes aos anjos que por fim Deus condescendia
em enviar-lhes. Tomaram de empréstimo os nomes que lhes davam os caldeus,
quando a nação judaica esteve cativa em Babilônia. Miguel
e Gabriel são referidos pela primeira vez por Daniel, escravo entre
aqueles povos. O judeu Tobias, que vivia em Nínive, conheceu o anjo
Rafael, que viajou com seu filho para ajudá-lo a reaver certa soma
que lhe devia o judeu Gabael.
Não se faz nas leis dos judeus, isto é, o Levítico
e o Deuteronômio, a menor menção à existência
dos anjos. Muito menos ao seu culto. Tão pouco criam em anjos os saduceus.
Nas histórias judaicas, porém, os anjos são a basto
falados. Eram corporais e tinham asas nas costas, como imaginaram os antigos
que tivesse Mercúrio nos calcanhares – Às vezes escondiam-nas
sob as vestes. Como não teriam corpo se bebiam e comiam? Se os habitantes
de Sodoma quiseram cometer o pecado da pederastia com os anjos que foram à
casa de Ló?
Segundo Ben Memon, admitia a antiga tradição judaica dez graus,
dez ordens de anjos – Primeira: cheios acodesh – puros, santos.
Segunda: ofamim – rápidos Terceira: oralim – fortes. Quarta:
chasmalim – flamas. Quinta: seraphim – centelhas. Sexta: malakhim
– mensageiros, deputados. Sétima: eloim – deuses ou juizes.
Oitava: ben eloim – filhos dos deuses. Nona: cherubim – imagens.
Décima: ychim – animados.
Não consta nos livros de Moisés a história da queda
dos anjos. Seu primeiro testemunho dá-no-lo o profeta Isaías,
que, apostrofando o rei, exclama: “Que é feito do exator das
tribos? Os pinheiros e cedros regozijam-se com sua queda. Como caíste
do céu, ó Helel, estrela da manhã?” (4). Traduziu-se
Helel pela palavra latina Lúcifer. Depois, em sentido alegórico,
deu-se o nome de Lúcifer ao príncipe dos anjos que atiçaram
a guerra no céu. Finalmente o termo, que significa fósforo e
aurora, tornou-se nome do diabo.
A religião cristã funda-se na queda dos anjos. Os que se revoltaram
foram precipitados das esferas que habitavam ao inferno, no centro da terra,
e transmudaram-se em diabos. Um diabo transfigurado em serpente tentou Eva
e desgraçou o gênero humano. Jesus veio resgatar os homens e
vencer o diabo, que ainda nos tenta. Essa tradição fundamental,
contudo, só a refere o livro apócrifo de Enoque. E ainda assim
muito outra da tradição aceita.
Não trepida Santo Agostinho (carta centésima nona) em reportar
tanto aos anjos bons como aos anjos maus corpos livres e ágeis. Reduziu
o papa Gregório II a nove coros, nove hierarquias ou ordens os dez
coros de anjos admitidos pelos judeus. São eles: serafins, querubins,
tronos, dominações, virtudes, potências, arcanjos e finalmente
os anjos, que emprestam o nome às oito outras hierarquias.
Tinham os judeus no templo dois querubins, cada um com duas cabeças
– uma de boi e outra de águia – e seis asas. Representamo-los
hoje sob a forma de uma cabeça solta com duas asinhas abaixo das orelhas.
Pintamos os anjos e os arcanjos sob a figura de jovens com um par de asas
nas costas. Quanto a tronos e dominações, ainda ninguém
se lembrou de retratá-los.
Diz Sto. Tomás (questão centésima oitava, artigo 2o.)
estarem os tronos tão próximos de Deus quanto os serafins, pois
é sobre eles que se acha sentada a Divindade. Scot contou um bilhão
de anjos. Tendo o antigo mito dos gênios bons e maus passado do Oriente
à Grécia e Roma, consagramo-lo admitindo para cada pessoa um
anjo bom e outro mau. Um ajuda-a e o outro molesta-a do nascimento, à
morte. Ainda não se estabeleceu, contudo, se esses anjos bons e maus
mudam continuamente de posto ou são rendidos por outros. Consulte-se
sobre o ponto a Suma de Sto. Tomás
Outro ponto que tem dado pano a muita controvérsia é o lugar
onde se conjuntariam, os anjos – no ar, no vácuo ou nos astros?
Não aprouve a Deus pôr-nos a par dessas questões.
ANTROPÓFAGOS
Falamos do amor. É duro passar de pessoas que se beijam a pessoas
que se comem. Não resta dúvida terem existido antropófagos.
Encontramo-los na América, onde é possível que ainda
os haja. Na antigüidade não foram os ciclopes os únicos
a se alimentarem às vezes de carne humana. Conta Juvenal que entre
os egípcios – esse povo tão sábio, tão famigerado
por suas leis, esse povo tão piedoso que adorava crocodilos e cebolas
– os tentiritas comeram certa vez um inimigo que lhes caiu nas mãos.
Não o diz de outiva: estava no Egito, porto de Têntiro, quando
se cometeu o crime quase aos seus olhos. E lembra, ao relatar o caso, os gascões
e saguntinos, que outrora se alimentaram de carne dos próprios compatriotas.
Em 1725 trouxeram-se quatro selvagens do Mississipi a Fontainebleau –
Tive a honra de falar-lhes. Havia entre eles uma dama do país, a quem
perguntei se havia comido gente. Respondeu-me muito singelamente que sim.
Fiquei um tanto escandalizado, e ela desculpou-se dizendo ser preferível
comer o inimigo, depois de morto, a deixá-lo servir de pasto às
feras; que demais o vencedor merecia a preferência. Nós outros,
em batalha campal ou não, por fas ou por nefas matamos nossos vizinhos
e. pela mais vil recompensa pomos em função o engenho da morte.
Aqui é que está o horror. Aqui é que está o crime
– Que importa que depois de morto se seja comido por um soldado, por
um urubu ou por um cão?
Respeitamos mais os mortos que os vivos. Cumpria respeitar uns e outros.
Bem fazem as nações que chamamos civilizadas em não meter
no espeto os inimigos vencidos. Porque se fosse permitido comer os vizinhos,
começariam a comer-se entre si os próprios compatriotas, o que
seria grande desdouro para as virtudes sociais. Mas as nações
que hoje são civilizadas não o foram sempre. Todas elas foram
muito tempo selvagens. E com o sem número de revoluções
de que tem sido palco o mundo, o gênero humano foi ora mais ora menos
numeroso. Sucedeu com os homens o que hoje sucede com os elefantes, leões,
tigres, cujas espécies minoraram consideravelmente. Quando uma região
estava ainda escassamente povoada de seres humanos e as artes eram rudimentares,
os homens se dedicavam à caça. O hábito de se alimentarem
do que matavam facilmente levou-os a tratar os inimigos como tratavam os cervos
e javalis. A superstição fez imolar vítimas humanas.
A necessidade as fez comer.
Qual o crime maior: reunir-se religiosamente para cravar em honra da Divindade
uma faca no coração de uma menina enfitada, ou comer um bandido
morto em legítima defesa?
No entanto há muito mais exemplos de meninas e meninos sacrificados
que de meninas e meninos comidos. Quase todas as nações conhecidas
sacrificaram crianças. Os judeus imolavam-nas. É o que se chamava
o anátema um verdadeiro sacrifício. Ordena-se no capítulo
27 do Levítico não se pouparem as almas viventes prometidas,
porém em ponto algum se prescreve que sejam comidas. Isto era outro
caso: tratava-se exclusivamente de uma ameaça. Como vimos, disse Moisés
aos judeus que caso não observassem as cerimônias, não
só teriam ronha, como as mães comeriam os próprios filhos.
Positivamente no tempo de Ezequiel os judeus deviam comer carne humana, pois
diz esse profeta no capítulo 39 que Deus os faria comer não
apenas os cavalos dos seus inimigos, mas ainda os cavaleiros e os outros guerreiros.
É positivo. De fato, por que não teriam os judeus sido antropófagos?
Seria a última coisa a faltar ao povo de Deus para ser a mais abominável
nação da terra.
Li nas anedotas da história da Inglaterra do tempo de Cromwell que
uma sebeira de Dublin vendia excelentes candeias feitas com gordura de inglês.
Certa vez queixou-se-lhe um de seus fregueses de que as candeias já
não eram tão boas como antes. – Ah, – disse ela
– é que este mês faltaram ingleses. – Pergunto eu:
quem o mais culpado: quem passava os ingleses à faca ou a mulher que
fazia velas com sua banha?
APIS
Era o boi Apis adorado em Menfis como deus, como símbolo ou como
boi? É de crer que os fanáticos nele vissem um deus, os cultos
mero símbolo e que o vulgo ignorante adorasse o boi. Terá Cambises
feito bem, quando conquistou o Egito, em matar esse boi com as próprias
mãos? Por que não? Com isso fez ver aos imbecis que se podia
passar seu deus à faca sem que a natureza se armasse para vingar o
sacrilégio.
Incensaram-se muito os egípcios. Não sei de povo mais desprezível.
Encarrapatou-se-lhes sempre no caráter e no governo um vício
radical que os fez um povo de eternos e vis escravos. Que tenham, em épocas
imemoriais, conquistado a terra. Na clareira dos tempos históricos,
porém, avassalaram-nos quantos povos quiseram dar-se ao trabalho –
assírios, persas, gregos, romanos, árabes, mamelucos, turcos,
enfim, toda gente, salvo os cruzados, que não lhes conheciam a fraqueza.
Foi a milícia dos mamelucos que venceu os franceses. Não há
talvez mais que duas coisas sofríveis nessa nação: primeiro,
que adorando um boi nunca constrangeram quem adorasse um macaco a mudar de
religião; segundo, terem inventado a chocadeira artificial.
Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são monumentos
de um povo de escravos. Foi preciso pôr de baixo de canga toda uma nação,
sem o que essas vis massas não teriam sido levantadas. Que finalidade
tinham? Conservar em uma pequena câmara a múmia de algum príncipe,
de algum governador, de um intendente qualquer, porque ao cabo de mil anos
sua alma devia reanimá-la. Mas se esperavam a ressurreição
dos corpos, por que lhes extraiam os miolos antes de embalsamá-los?
Será que os egípcios deviam ressuscitar sem cérebro?
APOCALIPSE
Justino o Mártir, que escreveu pelo ano de 170(5) da nossa era, é
quem primeiro fala no Apocalipse. Perfilha-o ao apóstolo João
o Evangelista. Perguntando-lhe o judeu Trifão se não cria que
Jerusalém devesse ser algum dia restaurada, respondeu Justino que sim,
como o acreditavam todos os cristãos que pensavam com acerto. “Houve
entre nós” – diz – “uma personagem de nome
João, um dos doze apóstolos de Jesus, o qual predisse passarão
os fiéis mil anos em Jerusalém”.
Foi opinião por muito tempo aceita pelos cristãos a de um
reinado de mil anos. Esse período desfrutava de grande crédito
entre os gentios. Passados mil anos retomavam os corpos as almas entre os
egípcios. O mesmo espaço de tempo, et mille per annos, penavam
as almas no purgatório de Virgílio. A nova Jerusalém
de mil anos teria doze portas, em memória dos doze apóstolos.
A forma seria quadrada. Comprimento, largura e altura seriam de doze mil estádios
– quinhentas léguas – de maneira que as casas teriam também
quinhentas léguas de alto. Haveria de ser bem desagradável morar
no último andar. Mas enfim é o que diz o Apocalipse, capítulo
21.
Se foi Justino o primeiro em atribuir o Apocalipse a S. João, personalidades
houve que lhe refugaram o testemunho, atendendo a que no mesmo diálogo
com o judeu Trifão diz ele que, consoante o relato dos apóstolos,
Jesus Cristo, descendo ao Jordão, ferveu-lhe e inflamou-lhe as águas.
O que não consta em nenhum dos escritos dos apóstolos.
O mesmo S. Justino não hesita em citar os oráculos das sibilas.
E pretende ter visto restos das celas em que, no tempo de Herodes, foram encerrados
no farol de Alexandria os setenta e dois intérpretes. O testemunho
de um homem que teve a má fortuna de ver tais celas parece indicar
mas é que devia ser metido nelas.
Posteriormente Sto. Ireneu, que também acreditava no reinado de mil
anos, diz ter sabido de um velho que o Apocalipse era de autoria de S. João(6).
Mas já se reprochou a Sto. Ireneu o haver escrito não deverem
existir senão quatro Evangelhos pela só razão de ter
o mundo apenas quatro partes, quatro serem os ventos cardeais e não
ter Ezequiel visto mais que quatro animais. Chama ele a isso demonstração.
Em singularidade, a demonstração do ar. Ireneu não fica
atrás da visão do sr. Justino.
Clemente de Alexandria, nas Electa, só se refere a um Apocalipse
de S. Pedro, a que se reportava extraordinária monta. Tertuliano, partidário
ferrenho do reinado de mil anos, não se contenta em afirmar que S.
João predisse a ressurreição e o reinado milenário
na cidade de Jerusalém: quer também que esta Jerusalém
já se começava a formar no ar; que todos os cristãos
da Palestina, e até os pagãos, a tinham visto durante quarenta
dias sucessivos às últimas horas da noite. Infelizmente, porém,
mal despontava o dia a cidade se esvaecia.
Em seu prefácio sobre o Evangelho de S. João e nas Homilias,
cita Orígenes os oráculos do Apocalipse, mas igualmente cita
os oráculos das sibilas. Já S. Dinis de Alexandria, que escreveu
por meados do século III, diz em um de seus fragmentos conservados
por Eusébio (7) que a quase totalidade dos eruditos rejeitava por uma
boca o Apocalipse como livro destituído de razão. Que esse livro
não o escreveu S. João, e sim um tal Cerinto, que se servira
de um grande nome para dar mais peso a suas fantasias
O concílio de Laodicéia (360) não recenseou o Apocalipse
entre os livros canônicos. Singular é haver Laodicéia
repulsado um tesouro que lhe fora enviado expressamente, e que também
o refutasse o bispo de Éfeso, cidade em que se descobrira, enterrado,
esse livro de S. João.
Para todos S. João ainda padejava na sepultura, fazendo a terra levantar
e baixar continuamente. Entanto esses mesmos senhores certos de que S. João
não estava de todo morto, também estavam certos de que ele não
escrevera o Apocalipse. Os advogados do reinado de mil anos, não obstante,
mantiveram-se irremovíveis em sua opinião. Sulpício Severo
(História Sagrada, livro 9) chama insensatos e ímpios aos que
não acatavam o Apocalipse. Afinal, depois de muita dúvida, muita
oposição de concílio a concílio prevaleceu o parecer
de Sulpício Severo. Deslindado o mistério, decidiu a igreja
ser o Apocalipse incontestavelmente de S. João. Não há,
pois, apelar.
Atribuíram as comunhões religiosas cada qual a si as profecias
desse livro. Nele viram os ingleses as revoluções da Grã
Bretanha. Os luteranos, as convulsões da Alemanha. Os reformados da
França, o reinado de Carlos IX e a regência de Catarina de Médicis.
Todos tiveram igualmente razão.
Bossuet e Newton comentaram o Apocalipse. As declamações eloqüentes
de um e as sublimes descobertas de outro foram-lhes, todavia, muito mais honrosas
que seus comentários.
ATEU, ATEÍSMO
Antigamente, quem quer que tivesse um segredo numa arte corria o risco de
passar por bruxo. Toda seita nova era acusada de degolar crianças em
seus mistérios. Todo filósofo que se desgarrasse da jíria
da escola era criminado de ateísmo pelos fanáticos e espertalhões.
E condenado pelos cretinos.
Anaxágoras tem o atrevimento de pretender não ser o sol conduzido
por Apolo montado numa quadriga: chamam-lhe ateu e o obrigam a expatriar-se.
Aristóteles é culpado de ateísmo por um sacerdote.
Não podendo fazer punir o caluniador, retira-se para Calcis. Mas a
morte de Sócrates é o que de mais odioso tem a história
da Grécia
Quem primeiro induziu os atenienses a verem um ateu em Sócrates foi
Aristófanes, que os comentadores admiram por ter sido grego, esquecendo-lhes
que Sócrates também o era.
Esse poeta cômico, que não foi nem cômico nem poeta,
não seria admitido entre nós a representar farsas na feira de
Saint-Laurent. Parece-me muito mais vil e desprezível do que o despinta
Plutarco. Eis o que diz o sábio Plutarco de tal farsista: “A
linguagem de Aristófanes denuncia o miserável charlatão
que é. São as graçolas mais canalhas e repugnantes. Não
chega a agradar o povo e as pessoas de discernimento e pundonor não
o toleram. Não há quem suporte sua arrogância, e sua malignidade
é intolerável às pessoas de bem” (8).
Aí está – para dizê-lo de passo – o Tabarin
que a sra. Dacier tem o ousio de admirar. Eis o homem que de longe confeccionou
o veneno com que juizes infames assassinaram o homem mais virtuoso da Grécia.
Curtidores, sapateiros e costureirinhas de Atenas aplaudiram uma comédia
em que se representava Sócrates suspenso num cesto proclamando que
não existiam deuses e jactando-se de haver roubado uma capa enquanto
ensinava filosofia. Um povo cujo mau governo permitia tão infames licenças
bem merecia o fim que teve – ser vassalo dos romanos e hoje dos turcos.
Demos um salto à antigüidade. Detenhamo-nos na república
romana. Os romanos, muito mais sábios que os gregos, nunca perseguiram
filósofos por motivo de opiniões. A mesma isenção
não exalça os povos bárbaros que medraram por sobre os
destroços do império romano. Desde que o imperador Frederico
II questiona com o papa, que o acusam de ateísmo e de ter escrito com
seu chanceler de Vinéia o livro Dos Três Impostores.
Manifesta-se o nosso grande chanceler do Hospital contrário às
perseguições: é quanto basta para levar a tacha de ateu.
Homo doctus, sed verus atheos. Um jesuíta que se acha tão abaixo
de Aristófanes quanto Aristófanes o está de Homero, um
miserável cujo nome se tornou ridículo entre os próprios
fanáticos, em uma palavra, o jesuíta Garasse, em toda gente
vê ateístas. É assim que chama a todos aqueles contra
quem investe. De ateísta acoima ele Teodoro de Besis. Foi ele quem
induziu em erro a respeito de Vanini.
O desgraçado fim de Vanini não nos move a indignação
nem a piedade como o de Sócrates porque Vanini não passava de
um pedante estrangeiro sem mérito nenhum. Mas a verdade é que
não era ateu, como se pensava. Muito pelo contrário
Tratava-se de um pobre padre napolitano, pregador e teólogo de seu
mister, polemista apaixonado das qüididades e dos universais, et utrum
chimera bombinans in vacuo possit comedere secundas intentiones. Não
tinha, porém, a veia do ateísmo. Sua noção de
Deus era da mais sã e acatada teologia. “Deus é o princípio
e o fim, pai de um e de outro, prescindindo de um e de outro. Eterno sem estar
no tempo. Onipresente sem se achar em parte alguma. Não tem passado
nem futuro. Está em tudo e fora de tudo, tudo governando, tudo havendo
criado – Imutável, infinito, imparticular. Seu poder é
sua vontade, etc.”
Vangloriava-se Vanini de renovar este belo conceito de Platão abraçado
por Averrois: que Deus criou uma cadeia graduada de seres cujo último
anel se ata ao seu trono eterno. Idéia em verdade mais sublime que
veraz, mas tão distante do ateísmo quanto o ser do não
ser.
Viajou com o fito em dinheiro e polêmicas – infelizmente, porém,
a senda da disputa conduz a polo contrário ao da riqueza. Granjeiam-se
tantos inimigos irreconciliáveis quantos os sábios ou pedantes
com quem se terça a palavra. Nem foi outra a origem da desdita de Vanini
– Custaram-lhe seu calor e grosseria na discussão o ódio
de não poucos teólogos, um dos quais – Francon ou Franconi,
amigo de seus inimigos – o acusou de ateu e de pregar o ateísmo.
Teve esse Francon ou Franconi, esteado por algumas testemunhas, a barbárie
de sustentar na acareação o que tivera o descaramento de falsear.
Interrogado no banco dos réus acerca do que pensava de Deus, respondeu
Vanini adorar com a igreja um Deus em três pessoas. Tomando uma palha
do chão: “Basta isto” – disse “para provar
que existe um criador”. Pronunciou então magnífico discurso
sobre a vegetação e o movimento e sobre a necessidade de um
Ser Supremo, sem o qual não existiria nem movimento nem vegetação.
O presidente Grammont, que então se achava em Tolosa, transcreve
esse discurso na sua Histoire de France, hoje tão esquecida. Por inconceptível
prejuízo pretende o mesmo Grammont que Vanini dissesse tudo isso mais
por vaidade ou medo que por persuasão interior
A que arrimar o julgamento temerário e atroz do presidente Grammont?
Patente é que a resposta de Vanini o absolvia da criminação
de ateísmo. Que sucedeu, porém! Esse caipora abeberara-se também
de medicina. Encontraram em sua casa um sapo que ele conservava vivo em um
vaso com água: foi a conta para ser tachado de feiticeiro. Disseram
que o sapo era o seu deus. Emprestaram sentido ímpio a diversos passos
de seus livros – o que é facílimo e muito comum –
tomando objeções por respostas, interpretando com malícia
uma ou outra frase equívoca, envenenando expressões inocentes.
Por fim a facção que o perseguia extorquiu dos juizes a sentença
que o condenou à morte.
Para justificar tal crime, havia-se mister fazer pesarem sobre esse infeliz
as calúnias mais medonhas. O menor e muito menor Mersenne levou a demência
a ponto de imprimir que Vanini partira de Nápoles com doze apóstolos
para converter o mundo ao ateísmo. Santa ingenuidade. Como poderia
ter um pobre padre doze homens a seu dispor? Como poderia convencer doze napolitanos
a viajarem dispendiosamente para propagar aos quatro ventos uma doutrina abominável
e revoltante – com risco de vida? Seria um rei bastante poderoso para
pagar doze pregadores de ateísmo? Ninguém, antes de Mersenne,
aventurara semelhante absurdo. Depois dele, porém, toda gente se pôs
a estribilhá-lo, com ele envenenando jornais e dicionários históricos
– E o mundo, que gosta do extraordinário, aceitou à carga
cerrada essa fábula.
O próprio Bayle, nas suas Pensées Diverses, fala de Vanini
como de um ateu – Serve-se desse exemplo para estribar seu paradoxo
de poder subsistir uma sociedade de ateus; afirma que Vanini era um homem
de costumes rigorosamente regrados, e ter sido o mártir de sua opinião
filosófica. Engana-se tanto num ponto como noutro. Depreende-se dos
Dialogues de Vanini, escritos à imitação de Erasmo, ter
ele tido uma amante de nome Isabelle. Era livre no escrever como no viver.
Porém não ateu.
Um século após sua morte o sábio La Croze e aquele
que adotou o nome de Philalèthe (9) empreenderam justificá-lo.
Mas como ninguém se interessa pela memória de um infeliz napolitano,
que para agravo de seus pecados era péssimo escritor, passaram quase
despercebidas essas apologias.
O jesuíta Hardouin, mais culto que Garasse e não menos temerário,
denuncia como ateus no livro Athei Detecti os Descartes, Arnauld, Pascal,
Nicole e Malebranche. Que, porém, felizmente não tiveram a mesma
sorte que Vanini.
Mas voltemos à questão de moral aventada por Bayle: se seria
possível uma sociedade de ateus. Sublinhemos à primeira ser
grande a contradição em torno do problema. Os que mais indignadamente
se levantaram contra a opinião de Bayle, os que com maior carga de
injúrias lhe desmentiram a possibilidade de uma sociedade de ateus,
com o mesmo aferro sustentaram mais tarde ser o ateísmo a religião
do governo da China.
Positivamente enganaram-se no que respeita ao governo chinês. Se houvessem
lido os éditos desse vasto país teriam visto não serem
outra coisa senão sermões, sermões repletos de referências
ao Ser Supremo, guia, vingador e premiador.
Não se enganaram menos quanto à impossibilidade de uma sociedade
atéia. E não sei como pôde o sr. Bayle esquecer um exemplo
conclusivo que talvez valesse a vitória a sua causa.
Por que impossível uma sociedade atéia? Porque sem um freio
os homens não poderiam viver em harmonia? Por nada poderem as leis
contra os crimes secretos? Por ser preciso um Deus vingador que puna, neste
ou em outro mundo, os malfeitores escapos à justiça humana!
Ilusão. Os judeus, muito embora não ensinassem as leis de
Moisés nenhuma vida por vir, não ameaçassem castigos
depois da morte, não ensinassem aos primeiros judeus a imortalidade
da alma, os judeus, longe de ser ateus, longe de contar subtrair-se à
vingança divina, foram os mais religiosos dos homens. Não somente
criam na existência de um Deus eterno, como o acreditavam constantemente
em sua presença. Temiam ser castigados na pessoa de si mesmos, da mulher,
dos filhos, na posteridade, até a quarta geração. E esse
freio era poderosíssimo.
Entre os gentios, porém, muitas seitas houve desempeçadas
de quaisquer ferropéias. Os cépticos duvidavam de tudo –
De tudo inopinavam os acadêmicos. Estavam persuadidos os epicuristas
de que a divindade não metia a colher torta nos negócios dos
homens, e em verdade não admitiam deuses de espécie alguma.
Abrigavam a convicção de não ser a alma de natureza substancial,
mas rasamente uma faculdade que nasce e morre com o corpo. Não tinham,
por conseguinte, outras rédeas além da moral e da honra. Verdadeiros
ateus eram os senadores e cavaleiros romanos. Para quem não os temem
e deles nada esperam os deuses não existem – Era pois o senado
romano um congresso de ateus contemporâneos de César e Cícero.
Na oração pró Cluêncio diz o grande orador ao
senado reunido: “Que mal lhe pode trazer a morte? Nós impugnamos
todas as fábulas ineptas dos infernos. Que então lhe tirou a
morte? Nada mais que a sensação da dor”.
Querendo salvar a vida de seu amigo Catilina perante o mesmo Cícero,
não lhe objeta César que condenar à morte não
é punir, que a morte não é nada, senão apenas
o fim dos sofrimentos, momento mais feliz do que fatal? E não reconheceram
Cícero e todo o senado a justeza de tais razões? Não
há negá-lo. Vencedores e legisladores do mundo conhecido formavam
uma sociedade de homens destemerosos dos deuses – verdadeiros ateus,
portanto.
Pondera Bayle a seguir se não é a idolatria mais perigosa
que o ateísmo, se crime maior não será nutrir sobre a
divindade conceitos indignos que dela descrer. E opina com Plutarco ser preferível
não ter de Deus concepção nenhuma a te-la má –
Em que pese a Plutarco, porém, inegável é ter sido infinitamente
preferível para os gregos temer Ceres, Netuno, Júpiter, a não
temer coisa alguma. Irrecusavelmente é necessária a santidade
dos juramentos, e antes fiar-se em quem creia que um falso juramento será
punido do que em quem pense poder jurar falso impunemente. Não há
dúvida ser preferível, em uma cidade policiada, ter uma religião
ainda que má a não ter nenhuma.
Parece-me que Bayle devia antes examinar qual o mais nocivo, se o fanatismo,
se o ateísmo. O fanatismo é certamente mil vezes mais funesto,
porquanto o ateísmo não inspira, como ele, paixão sanguinária.
O ateísmo não se opõe ao crime: o fanatismo o atiça.
Suponhamos com o autor do Commentarium Rerum Gallicarum fosse ateu o chanceler
do Hospital. Não elaborou ele senão leis sábias, não
aconselhou senão moderação e concórdia: os fanáticos
cometeram as mortandades de São Bartolomeu. Havia-se Hobbes por ateu:
entanto viveu tranqüila e inocentemente. Os fanáticos de seu tempo
ensanguentaram a Inglaterra, Escócia e Irlanda. Spinoza, sobre ser
ateu, ensinava o ateísmo: parece contudo não ter sido ele quem
participou do assassínio jurídico de Barneveldt, quem fez em
traçalhos os irmãos de Witt e os comeu à grelha.
O mais das vezes são os ateus sábios audazes e tresmalhados
que raciocinam mal e que, não compreendendo a criação,
a origem do mal e outras dificuldades, recorrem à hipótese da
eternidade das coisas e da necessidade.
Aos ambiciosos, aos voluptuosos, falta-lhes tempo para raciocinar e abraçar
maus sistemas. Têm mais que fazer que comparar Lucrécio com Sócrates
–
É o que sucede conosco.
O mesmo não se dava com o senado romano, composto na quase totalidade
de ateus que ateus eram teórica e praticamente. Isto é: que
não acreditavam nem na Providência nem na vida futura. Era uma
congregação de filósofos, de voluptuosos e ambiciosos,
todos nocentissimos e que perderam a república.
Não me agradaria o depender de um príncipe ateu cujo interesse
fosse mandar-me pilar num morteiro. Não quereria, se fosse soberano,
ter de tratar com cortesãos ateus cujo interesse fosse envenenar-me:
ser-me-ia necessário estar tomando ao acaso contravenenos todos os
dias. É pois absolutamente imprescindível aos príncipes
e aos povos o estar profundamente gravada nos espíritos a idéia
de um Ser Supremo, criador, condutor, remunerador e vingador.
Há povos ateus, assevera Bayle em suas Pensées sur les Comètes.
Os cafres, hotentotes, tupinambás e muitas outras pequenas nações
não têm Deus. É possível. Mas isso não quer
dizer que neguem Deus não o negam nem o afirmam, porque nunca ouviram
falar em tal. Dizei-lhes que Deus existe, e cre-lo-ão facilmente. Dizei-lhes
que tudo se faz pela natureza das coisas, e cre-lo-âo da mesma forma
– Pretender que sejam ateus é o mesmo que pretender que sejam
anticartesistas: não são nem contra nem a favor de Descartes.
São verdadeiras crianças. Uma criança não é
atéia nem teista: não é nada.
Que concluir de tudo isso? Que o ateísmo é um monstro perniciosíssimo
para os que governam, e igualmente para os estadistas em disposição,
ainda que cidadãos inocentes, pois podem um dia ou outro ser elevados
à boléia do poder. Que, se não é tão funesto
como o fanatismo, é quase sempre fatal à virtude. Ajuntemos
principalmente que hoje em dia há menos ateus que nunca, depois que
os filósofos reconheceram não haver nenhum ser vegetante sem
germe, nenhum germe sem desígnio etc., e que o trigo não nasce
da podridão.
Geômetras não filosóficos enjeitaram as causas finais,
porém os verdadeiros filósofos as admitem. E, como disse um
autor conhecido, o catequista anuncia Deus às crianças e Newton
o demonstra aos sábios.
BATISMO
Palavra grega que quer dizer imersão.
Como sempre se guiam pelos sentidos, facilmente imaginaram os homens que
quem lavasse o corpo também lavava a alma. Havia nos subterrâneos
dos templos egípcios grandes cubas para os sacerdotes e iniciados.
Desde tempos imemoriais que os hindus se purificaram nas águas do Ganges,
e ainda hoje essa cerimônia está muito em voga. Da Índia
passou à Judéia. Era costume entre os hebreus batizar todos
os estrangeiros que abraçassem a lei judaica e não quisessem
submeter-se à circuncisão. Sobre tudo batizavam-se as mulheres,
que não faziam essa operação, salvo na Etiópia,
onde a circuncisão era de lei. Tratava-se de uma regeneração.
Criam os hebreus, como os egípcios, que o batismo dava alma nova. Consultem-se
sobre o assunto Epifânio, Memonide e la Gemara.
João batizou-se no rio Jordão. Ali também ele batizou
Jesus, que, conquanto nunca haja batizado ninguém, condescendeu todavia
em consagrar essa cerimônia
Em si, todos os sinais são indiferentes. Confere Deus sua graça
ao sinal que lhe aprouver escolher. Bem cedo tornou-se o batismo em primeiro
rito e chancela da religião cristã. Contudo, embora fossem circuncidados,
não se sabe ao certo se receberam o batismo os quinze primeiros bispos
de Jerusalém
Muito se abusou desse sacramento nos primeiros séculos do cristianismo.
Nada era mais comum que aguardar a agonia para receber o batismo. É
assaz ilustrativo o exemplo do imperador Constantino. Eis como raciocinava:
O batismo de tudo expurga; portanto posso matar minha mulher, meus filhos,
todos os meus parentes; depois batizo-me e irei para o céu –
O que efetivamente levou a prática. O exemplo era perigosíssimo.
Paulatinamente foi se abolindo o vezo de esperar a morte para tomar o banho
sagrado.
Sempre conservaram os gregos o batismo por imersão. Pelo fim do século
VIII os latinos, havendo estendido sua religião às Gálias
e à Germânia, receosos de que a imersão pudesse matar
as crianças nos países frios, substituíram-na por simples
aspersão, o que lhes custou numerosos anátemas de parte da igreja
grega.
Perguntou-se a S. Cipriano se estavam realmente batizadas as pessoas que,
em vez de tomarem o banho, eram apenas borrifadas. Respondeu ele (septuagésima
sexta carta) que “achavam muitas igrejas não serem cristãs
tais pessoas; quanto a ele, era de parecer que sim, bem que sua graça
fosse infinitamente menor que a das imersas três vezes conforme o uso”.
Entre os cristãos, desde que um indivíduo recebia a imersão
estava iniciado. Antes do batismo era simples catecúmeno. Para iniciar-se
era de mister apresentar cauções, responsáveis, –
a que se dava um nome correspondente a padrinho – a fim de que a igreja
se certificasse da fidelidade dos novos cristãos e não fossem
divulgados os mistérios. Essa a razão por que nos primeiros
séculos fossem os gentios geralmente tão mal instruídos
dos mistérios cristãos quanto o eram os cristãos dos
mistérios de Isis e de Eleusina.
Assim se expressava Cirilo de Alexandria em seu escrito contra o imperador
Juliano: “Falaria do batismo se não temesse que minhas palavras
chegassem aos não iniciados”.
Data do século II o costume de batizar crianças. Era natural
desejassem os cristãos que seus filhos, que sem esse sacramento seriam
condenados às penas eternas, dele fossem apercebidos. Concluiu-se enfim
ser necessário ministrá-lo ao fim dos oito primeiros dias de
vida por ser essa entre os judeus a idade da circuncisão. Ainda conserva
o costume a igreja grega, conquanto no século III o uso a tenha levado
a subministrar o batismo à morte.
Quem morria na primeira semana de existência estava condenado, asseveravam
os padres da igreja mais rigorosos. No século V, porém, ideou
Pedro Crisólogo o limbo, espécie de inferno suavizado, e propriamente
lindes do inferno, extramuros infernais, para onde iriam as criancinhas finadas
sem batismo, e onde estariam os patriarcas antes da descensão de Jesus
Cristo aos infernos. De sorte que desde então prevaleceu a opinião
de que Cristo desceu ao limbo e não ao inferno.
Perguntou-se se, nos desertos da Arábia, poderia um cristão
ser batizado com areia: respondeu-se que não. Se se poderia batizar
com água impura: estabeleceu-se ser conveniente água munda,
mas que em última instância servia água barrenta. É
fácil ver que toda essa disciplina foi ditada pela prudência
dos primeiros pastores.
BELO, BELEZA
Perguntai a um sapo que é a beleza, o supremo belo, o to kalon. Responder-vos-á
ser a sapa com os dois olhos exagerados e redondos encaixados na cabeça
minúscula, a boca larga e chata, o ventre amarelo, o dorso pardo. Interrogai
um negro da Guiné O belo para ele é – uma pele negra e
oleosa, olhos cravados, nariz esborrachado. Indagai ao diabo. Dir-vos-á
que o belo é um par de cornos, quatro garras e cauda. Inquiri os filósofos.
Responder-vos-ão com aranzéis. Falta-lhes algo de conforme ao
arquétipo do belo em essência, o to kalon.
Assistia eu certa vez à representação de uma tragédia
em companhia de um filósofo.
— Como é belo! – dizia ele.
— Que viu o sr. de belo?
— O autor atingiu seu fim.
No dia seguinte ele tomou um purgante que lhe fez efeito.
— O purgante atingiu seu fim – disse-lhe eu. – Eis um
belo purgante.
Ele compreendeu não se poder dizer que um purgante seja belo, e que
para chamar belo a alguma coisa é preciso que nos cause admiração
e prazer. Conveio em que a tragédia lhe inspirara estas duas emoções,
e que nisso estava o to kalon, o belo.
Realizamos uma viagem à Inglaterra. Lá se representava a mesma
peça, impecavelmente traduzida. Fez bocejarem todos os espectadores.
— Oh! – exclamou o filósofo – o to kalon não
é o mesmo para os ingleses e os franceses.
Após muita reflexão concluiu ser o belo extremamente relativo,
como o que é decente no Japão é indecente em Roma, o
que é moda em Paris não o é em Pequim.
BEM (SUPREMO)
Muito discutiu a antigüidade em torno do supremo bem. Que é
o supremo bem? Seria o mesmo que perguntar que é o supremo azul, o
supremo acepipe, o supremo andar, o ler supremo, etc.
Cada um põe a felicidade onde pode, e quanto pode ao seu gosto.
Quid dem? quid non dem? Renuis tu quod jubet alter…
Castor gaudet equis; ovo prognatus eodem pugnis…(10).
Sumo bem é o bem que vos deleita a ponto de polarizar-nos toda a
sensibilidade, assim como mal supremo é aquele que vos torna completamente
insensível. Eis os dois pólos da natureza humana. Esses dois
momentos são curtos.
Não existem deleites extremos nem extremos tormentos capazes de durar
a vida inteira. Supremo bem e supremo mal são quimeras.
Conhecemos a bela fábula de Crântor, que fez comparecer aos
jogos olímpicos a Fortuna, a Volúpia, a Saúde e a Virtude.
Fortuna: – O sumo bem sou eu, pois comigo tudo se obtém.
Volúpia: – Meu é o pomo, porquanto não se aspira
à riqueza senão para ter-me a mim.
Saúde: – Sem mim não há volúpia e a riqueza
seria inútil.
Virtude: – Acima da riqueza, da volúpia e da saúde estou
eu, que embora com ouro, prazeres e saúde pode haver infelicidade,
se não há virtude.
Teve o pomo a Virtude.
A fábula é engenhosa, mas não solve o problema absurdo
do supremo bem. Virtude não é bem, senão dever. Pertence
a plano superior. Nada tem que ver com as sensações dolorosas
ou agradáveis. Com cálculos e gota, sem arrimo, sem amigos,
privado do necessário, perseguido, agrilhoado por um tirano voluptuoso
aboletado no fausto, o homem virtuoso é infelicíssimo, e o perseguidor
insolente que acaricia uma nova amante em seu leito de púrpura, felicíssimo.
Podeis dizer ser preferível o sábio perseguido ao perseguidor
impertinente. Podeis dizer amar a um e detestar ao outro. Mas esquece-vos
que le sage dans les fers enrage. Se não concordar o sábio,
engana-vos: é um charlatão.
BEM (TUDO ESTÁ)
Armou-se grande estardalhaço nas escolas e até entre as pessoas
que raciocinam quando, parafraseando Platão, lançou Leibnitz
seu edifício do melhor dos mundos possíveis, dizendo que tudo
corria às mil maravilhas (11). Afirmou ele no norte da Alemanha que
Deus não poderia fazer mais que um único mundo. Platão
pelo menos concedera-lhe a liberdade de fazer cinco, pela razão de
cinco serem os corpos sólidos regulares: tetraedro ou pirâmide
trifacial de base igual às faces, cubo, hexaedro, dodecaedro, icosaedro.
Mas como o nosso mundo não tem a forma de nenhum dos seus cinco sólidos,
devia conceder a Deus uma sexta forma.
Deixemos em paz o divino Platão. Leibnitz, que certamente era melhor
geômetra e mais profundo metafísico que ele. prestou ao gênero
humano o serviço de lhe fazer ver que devemos estar contentíssimos
e ter sido impossível a Deus fazer por nós mais do que fez.
Que necessariamente Deus escolhera entre todos os partidos sem contradita
o melhor.
— E o pecado original? – perguntavam-lhe.
— Foi o que podia ser – explicavam Leibnitz e seus amigos. Mas
praceiramente escrevia ele entrar o pecado original necessariamente no melhor
dos mundos.
Ora essa! Ser expulso de um lugar de delícias onde se viveria eternamente
se não se tivesse comido uma maçã! Como! Chafurdado na
miséria, pôr no mundo filhos miseráveis que tudo hão
de sofrer, que tudo farão sofrer aos outros! Que! Padecer todas as
doenças, sofrer todos os martírios, morrer na dor, e como refrigério
ser assado na eternidade dos séculos! Seria esse o melhor quinhão
que tinha Deus para nos dar? Nada tem de bom para nós. E em que poderia
tê-lo para Deus?
Compreendia Leibnitz nada ter que responder. Escreveu também maçudos
livros, mas calou o ponto.
Negar a existência do mal, pode negá-la rindo um Luculo refestelado
na opulência, após lauto jantar libado em companhia dos amigos
e da amante no salão de Apolo. Mas que ponha a cabeça à
janela. Verá o que é o mundo.
Repugna-me citar. É empresa de ordinário espinhosa: negligencia-se
o que precede e o que segue a citação, e se expõe a querelas.
Cumpre-me, todavia, citar Lactâncio, padre da igreja, que em seu capítulo
13, Da Cólera de Deus, põe estas palavras na boca de Epicuro:
“Ou Deus quer abolir o mal do mundo e não pode; ou pode e não
quer; ou nem pode nem quer; ou enfim quer e pode. Se quer e não pode
é impotente, o que contradiz a natureza divina; se pode e não
quer, é mau, o que não é menos contrário à
sua natureza; se não quer nem pode, é a um tempo mau e impotente;
se quer e pode (a única conjuntura que convêm a Deus) qual então
a origem do mal sobre a terra?”
O argumento é instante. Lactâncio respondeu muito mal, dizendo
que Deus quer o mal porém nos deu a sabedoria, com que podemos alcançar
o bem. A resposta é fraquíssima. Supõe que Deus não
podia dar a sabedoria senão de par com o mal. Demais nós possuímos
uma sabedoria agradável!
A origem do mal foi sempre um abismo de que ninguém conseguiu lobrigar
o fundo. Daí tantos filósofos e legisladores antigos se socorrerem
de dois princípios, um do bem e outro do mal. Tifão era o princípio
do mal entre os egípcios, Arimã entre os persas. Adotaram essa
teologia, como se sabe, os maniqueus. Como porém anteriormente nunca
falaram nem em um nem em outro desses princípios, convêm não
lhes dar ouvidos.
Entre os absurdos de que regurgita o mundo, não é dos menores
este, que pode entrar no rol dos nossos males: imaginar dois seres todo poderosos
duelando-se para ver quem dá mais de si ao mundo, e acordando um convênio
como os dois médicos de Molière Passe-me o emético que
lhe farei a sangria.
Rasteando os platonistas, pretendeu Basilídio no primeiro século
da igreja que Deus acometera a tarefa de forjar o nosso mundo aos últimos
de seus anjos, os quais não sendo lá muito peritos desalinhavaram
as coisas como aí estão. Refuta tal fábula teológica
esta objeção irretorquível: não é de Deus
onipotente e onisciente confiar a construção de um mundo a arquitetos
inaptos.
Sentindo a objeção, preveniu-a Simão asseverando que
em virtude do péssimo desempenho da incumbência Deus condenou
aos infernos o anjo que presidia à oficina celeste. Por mais esturricado
que esteja, contudo, a condenação desse anjo não nos
cala o sofrimento.
Não responde melhor à objeção a aventura de
Pandora dos gregos. Inegavelmente a história da boceta que encerra
todos os males e em cujo fundo jaz a esperança é uma bela alegoria.
Mas essa tal Pandora, tê-la Vulcano tão somente para fazer pique
a Prometeu, que havia feito um homem de barro.
Os hindus não foram mais engenhosos: tendo criado o homem, Deus lhe
deu uma droga que lhe asseguraria permanente saúde; o homem carregou
seu asno dessa droga, o asno ficou com sede, a serpente ensinou-lhe uma fonte:
enquanto o asno bebia a serpente pilhou a droga.
Imaginaram os sírios que, tendo o homem e a mulher sido criados no
quarto céu, quiseram comer de uma torta em vez de ambrósia,
seu manjar natural. A ambrósia exalava-se pelos poros. Comendo a torta,
porém, era preciso ir à secreta. O homem e a mulher pediram
a um anjo lhes indicasse onde ficava tal repartição do Paraíso.
– Estão vendo – disse-lhes o anjo – aquele planetinha
insignificante, a uns sessenta milhões de léguas daqui? Pois
é lá. – Para lá se foram, e lá os deixaram.
Desde então o mundo é o que é.
É o caso de perguntar aos sírios por que Deus permitiu que
o homem comesse da torta e que temos nós que ver com o pato.
Para nos forrarmos ao tédio, saltemos do quarto céu ao Sr.
Bolingbroke. Este homem, incontestavelmente genial, deu ao célebre
Pope seu plano de tudo está bem, que de fato lá vem palavra
por palavra nas obras póstumas de Bolingbroke, e que anteriormente
inserira Shaftesbury em seus Característicos. Leia-se o capítulo
deste livro dedicado aos moralistas. Lá se encontrará:
“Há muito que responder a essas lamúrias sobre defeitos
da natureza. Como saiu tão impotente e falha das mãos de um
ser perfeito? Mas eu nego que a natureza seja imperfeita… Sua beleza resulta
das contrariedades. De perpétuo combate nasce a concórdia universal…
É preciso que cada ser seja imolado a outros: os vegetais aos animais,
os animais à terra… Demais não será por amor de miserável
verme que as leis do poder central e da gravitação, de que decorrem
o peso e o movimento dos corpos celestes, serão perturbadas. Miserável
verme que, por muito bem protegido que esteja por essas leis, longe não
está o dia em que por elas mesmas será reduzido a pó
de traque”.
Bolingbroke, Shaftesbury e Pope – lapidário dos primeiros –
não solvem a questão melhor que os outros. Seu tudo está
bem não diz senão que o todo é regido por leis imutáveis.
Quem não sabe disso? Para ninguém é novidade saber, depois
dos netos, que as moscas foram feitas para ser comidas pelas aranhas, as aranhas
pelas andorinhas, as andorinhas pelas pegas, as pegas pelas águias,
as águias para ser mortas pelos homens, os homens para matar-se uns
aos outros, ser comidos pelos vermes e em seguida pelo diabo.
Eis aí ordem nítida e constante entre os animais de todas
as espécies. Em tudo existe ordem. Quando se forma um cálculo
em minha bexiga, verifica-se uma mecânica admirável. Pouco a
pouco aparecem no sangue sucos calculosos, que se filtram nos rins, passam
pelas uréteres, caem na bexiga e ali se depositam em virtude de excelente
atração newtoniana; forma-se a concreção, que
cresce, e eu sofro dores mil vezes piores que a morte, por mais maravilhosamente
ordenado que esteja o mundo. Um cirurgião que aperfeiçoou a
arte inventada por Tubalcain enterra-me um ferro agudo e trinchante no perineu,
agarra o cálculo com suas tenazes: por um mecanismo necessário,
a pedra se desfaz sob seus esforços. E pelo mesmo mecanismo necessário
entrego a alma ao diabo em meio de tormentos medonhos. Tudo isso está
bem. Tudo isso é conseqüência evidente dos inalteráveis
princípios físicos. Reconheço-o. Mas, como vós,
já o sabia
Se fôssemos insensíveis, nada haveria que dizer a esta física.
Não se trata disso, porém Pergunto-vos se não existem
males sensíveis, e de onde provêem. “Não existem
males” – decreta Pope em sua quarta epístola acerca do
tudo está bem. “Ou, se os há particulares, compõem
o bem geral”.
Singular bem geral, constituído de cálculos, gota, de todos
os crimes, de todos os sofrimentos, da morte e da condenação.
A queda do homem é o emplasto que aplicamos a todas essas doenças
particulares do corpo e do espírito, que vós chamais saúde
geral. Mas Shaftesbury e Bolingbroke escarnecem do pecado original. Pope não
se digna mencioná-lo. É evidente que tal sistema solapa a religião
cristã nos alicerces, e não explica coisa alguma.
No entanto foi há pouco aprovado por muitos teólogos, que
de bom grado admitem os contrários. Assim sendo, a ninguém é
preciso invejar o consolo de raciocinar como melhor puder sobre o dilúvio
de males que nos assoberba. Justo é conceder aos doentes sem esperança
que comam o que quiserem. Chegou-se até a pretender ser esse sistema
consolador. “Deus” – leciona Pope – vê com os
mesmos olhos morrer o herói e o pardal, precipitar-se na ruína
um átomo ou mil planetas, formar-se um mundo ou uma bolha de sabão”.
Deliciosa consolação! Não sentis grande lenitivo com
o decreto do sr. Shaftesbury, que diz, Deus não vai modificar suas
leis eternas por um miserável verme como o homem? Convenha-se contudo
ter esse verme direito de lamentar-se humildemente e lamentando-se diligenciar
compreender por que tais leis eternas não foram feitas para bem de
todos.
O sistema do tudo está bem apresenta o autor da natureza como um
déspota poderoso e mau, pouco se incomodando que seus caprichos custem
a vida a milhares de seres humanos, enquanto os restantes arrastam seus dias
na penúria e na dor.
Longe de consolar, a teoria do melhor dos mundos possível é
desesperadora. O problema do bem e do mal permanece um caos inextricável
para todos aqueles que perquirem de boa fé. Para os polemistas, é
um motivo de chiste: são forçados brincando com os próprios
grilhões. Para o povo não pensante, é o caso de peixes
transportados de um rio para um reservatório; não alimentam
a menor idéia que estão ali para ser comidos na quaresma.
Nada sabemos do porquê do nosso destino. Cumpre subpor ao fim de quase
todos os capítulos da metafísica as duas letras dos juizes romanos,
quando não entendiam uma causa: N. L., non liquet, – não
é claro.
CADEIA DOS ACONTECIMENTOS
Há muito que se crêem os acontecimentos encadeados uns aos
outros por invencível fatalidade – o Destino – que é
em Homero superior ao próprio Júpiter. Sem refolhos confessava
o soberano dos deuses e dos homens não poder impedir que seu filho
Sarpédon morresse no prazo preestabelecido. No momento em que devia
nascer Sarpédon nascera, nem poderia deixar de ser assim. Não
podia morrer em outro lugar senão diante de Tróia. Não
podia ser enterrado senão em Lícia. Seu corpo, no prazo preestabelecido,
produziria legumes que se transmudariam em substância de alguns licienses.
Seus herdeiros haveriam de estabelecer nova ordem em seus estados. Essa nova
ordem influiria nos reinos vizinhos. Do que resultariam novas disposições
de guerra e paz com os vizinhos dos vizinhos de Licia. E assim sucessivamente
o destino da terra dependeu da morte de Sarpédon, a qual dependeu de
outro acontecimento, que por seu turno se ata por intermédio de outros
à origem das coisas.
Tivesse um único desses fatos acontecido diferentemente, outro fora
o mundo. Ora, impossível que o mundo atual existisse e não existisse
ao mesmo tempo: portanto impossível fora a Júpiter salvar a
vida do filho, por muito Júpiter que fosse.
Diz-se que este sistema da necessidade e fatalidade inventou-o Leibnitz
em nossos dias, chamando-lhe razão suficiente. Entretanto é
antiquíssimo. Não é de hoje que não há
efeito sem causa e que muitas vezes a mais insignificante das causas produz
os maiores efeitos.
Conta o sr. Bolingbroke que lhe proporcionaram ocasião de concertar
o tratado particular da rainha Ana com Luís XIV as questiúnculas
da sra. Marlborough e da sra. Masham. Esse tratado conduziu à paz de
Utrecht. A paz de Utrecht firmou Filipe V no trono de Espanha. Filipe V conquistou
Nápoles e Sicília à frente da casa da Áustria.
Deve o príncipe que é atualmente rei de Nápoles seu trono
à sra Masbam. Não o seria, talvez nem existisse, se a duquesa
de Marlborough tivesse sido mais complacente para com a rainha de Inglaterra.
Sua existência dependia em Nápoles de uma tolice a mais ou a
menos na corte londrina. Examinai a situação de todos os povos
do mundo: é o que é por força de uma série de
acontecimentos aparentemente insulados, porém realmente baraçados
em íntimo emaranhamento. São tudo rodagens, polés, cabos,
molas dessa máquina colossal.
O mesmo sucede na ordem física. Um vento que sopre do fundo da África
ou dos mares austrais acarreta parte da atmosfera africana que recai em chuva
nos declívios dos Alpes. Essas chuvas fecundam nossas terras. Nosso
vento do norte, por sua vez, leva nossos vapores daqui para o continente negro.
Nós beneficiamos a Guiné e a Guiné nos beneficia. A cadeia
se estende de cabo a cabo do mundo.
Parece-me contudo abusar-se demais desse princípio. Conclui-se não
haver e mais ínfimo átomo que não tenha influído
na disposição atual do mundo inteiro. Que não há
o menor acidente, quer entre os homens, quer entre os animais, que não
seja anel essencial da grande cadeia do destino.
Entendo eu: todo efeito tem evidentemente sua causa, remontante de causa
em causa até o abismo da eternidade. Mas nem toda causa transmite seu
efeito até o fim dos séculos. Todo acontecimento decorre um
de outro, admito. O presente sai do passado. O futuro sairá do presente.
Tudo tem pai. Mas nem tudo tem filhos. Precisamente como numa árvore
genealógica: toda família remonta, como é sabido, a Adão,
mas na família muitos indivíduos morrem sem deixar posteridade.
Existe uma árvore genealógica dos acontecimentos. Incontestavelmente
os habitantes das Gálias e de Espanha descendem de Gomer e os russos
de Magogue, seu irmão mais novo: encontra-se esta genealogia em tantos
livros maçudos! Nesse pé, não há negar devermos
a Magogue os sessenta mil russos em armas hoje às portas da Pomerânia
e os sessenta mil franceses que combatem nas abas de Francfort. Mas que Magogue
haja expectorado à direita ou à esquerda ao pé do Cáucaso,
tenha dado duas ou três voltas em redor de um poço, haja dormido
do lado esquerdo ou direito, não vejo como possa isso ter influído
capitalmente na resolução tomada pela imperatriz da Rússia
Elizabete de enviar um exército em socorro da imperatriz romana Maria
Teresa. Que meu cão sonhe ou não quando dorme, não percebo
que relação poderá ter tão importante fato com
os negócios do grão mogol.
É necessário atentar em que nem tudo é cheio na natureza
e que nem todo movimento se transmite consecutivamente até descrever
a volta ao mundo. Lance-se n’água um corpo de mesma densidade.
Facilmente se compreenderá que ao cabo de algum tempo assim o movimento
do corpo como aquele que comunicou à água se extinguem. O movimento
consome-se e repara-se. Por conseguinte o movimento que possa ter produzido
Magogue escarrando num poço não pode ter influência no
que hoje se passa. na Rússia e na Prússia. Nem todos os acontecimentos
pretéritos são pais dos acontecimentos presentes. Todo acontecimento
atual provém em linhas diretas do passado. Porém milhares de
linhas colaterais há que em nada os interessam. Repitamos: tudo tem
pai, mas nem tudo tem filhos. Retornaremos ao assunto ao falar do Destino.
CARÁTER
A palavra grega impressão, gravura. É o que em nós
gravou a natureza. Podemos apagá-lo? Transcendental questão.
Se tenho o nariz de esconso e olhos de gato, posso escondê-los sob uma
máscara. Poderei encobrir melhor o caráter?
Apresenta-se perante Francisco I de França, a fim de queixar-se de
uma preterição, um indivíduo de natural violento e impetuoso.
O semblante do príncipe, a postura respeitosa dos cortesãos,
o local mesmo impressionam-no fundamente. Maquinalmente baixa os olhos, a
voz rude se abranda e faz o pedido humildemente. Crer-se-ia nascido tão
manso quanto os cortesãos em meio dos quais parece quase desconsertado.
Entretanto facilmente descobre Francisco I em seus olhos baixos, porém
acesos de um fogo sombrio, nos músculos retesos do rosto, nos lábios
contracerrados, que esse homem não é tão humilde como
aparenta. Esse homem acompanha-o a Pávia, é aprisionado com
ele e com ele levado para Madri. Já não lhe infunde a mesma
impressão a majestade do rei. Familiariza-se com o objeto de seu respeito.
Um dia, ao descalçar-lhe as botas, e fazendo-o desleixadamente, Francisco,
azedado pelo infortúnio, ralha-lhe. Nosso homem manda o rei plantar
batatas e atira as botas pela janela.
Nascera Sixto Quinto petulante, opiniático, soberbo, impetuoso, vingativo,
arrogante. As provas do noviciado parecem ter-lhe adoçado o caráter.
Mal começa a desfrutar de certo crédito em sua ordem, lança-se
contra um guardião e alomba-o a punhadas. Inquisidor em Veneza, exerce
o cargo com insolência. Cardeal, é possuído della rabbia
papale. Embuça na obscuridade sua pessoa e seu caráter. Mascara-se
de humilde e moribundo. Elegem-no papa: é quando dá à
mola do natural toda a elasticidade longo tempo retesada pela política.
É o mais arrogante e despótico dos soberanos.
Naturam expellas furca, tamen usque recurret.
Religião, moral, são freios retentores do caráter.
Não podem, porém, matá-lo. Enclausurado, reduzido a dois
dedos de sidra às refeições, pode o bêbedo deixar
de embriagar-se, mas ansiará sempre pelo vinho.
A idade amolenta o caráter. Transforma-o em uma árvore que
não dá senão um ou outro fruto abastardado, mas sempre
da mesma natureza. Enodoa-se, cobre-se de musgo, caruncha. Jamais deixará
de ser carvalho ou pereira, porém. Se fosse possível alterar
o caráter, a gente mesmo o plasmaria a bel prazer, seria senhor da
natureza. Podemos lá criar alguma coisa? Não recebemos tudo?
Experimentai animar o indolente de contínua atividade, inspirar gosto
à musica a quem careça de gosto e de ouvido. Não tereis
melhor resultado do que se empreenderdes dar vista a cego de nascença.
Nós aperfeiçoamos, esborcelamos, embuçamos o que nos
estereogravou a natureza. Não há, porém, alterar-lhe
a obra.
Direis a um criador: – O Sr. tem peixe demais nesse viveiro; assim
eles não vingam. Seus campos estão sobrelotados de gado; o capim
não dá, os animais emagrecerão. – Com isso deixa
o nosso homem que as solhas lhe comam metade das carpas, e os lobos metade
dos carneiros. Os restantes engordam. Gabar-se-á ele dessa economia?
Este camponês és tu mesmo. Uma de tuas paixões devorou
as outras, e tu julgas haver triunfado sobre ti próprio. Não
parecemos quase todos nós com aquele velho general de noventa anos
que, encontrando alguns jovens oficiais mexendo com umas moças, perguntou-lhes
colérico: “Senhores, é esse o exemplo que lhes dou?”.
CATECISMO CHINÊS
(Ou diálogos de Cu Su, discípulo de Cong-fu-tseu, com o príncipe
Cu, filho do rei de Lou, tributário do imperador çhinês
Gnenvã, 417 anos antes da nossa era. Traduzido em latim pelo padre
Fouquet ex-jesuíta. Encontra-se o manuscrito na biblioteca do Vaticano,
número 42.759).
C.
Que devo entender quando me dizem que adore o céu (Chang ti)?
C. S.
Não se trata do céu material que vemos, que não é
outra coisa senão ar, composição de todas as emanações
da terra. Imenso disparate seria adorar vapores.
C.
Pois não me surpreenderia. Parece-me que os homens cometeram disparates
ainda maiores.
C. S.
De fato. Mas vós estais destinado a governar. Cumpre-vos ser sábio.
C.
Há tantos povos que adoram o céu e os planetas!
C. S.
Os planetas não passam de mundos como o nosso. Temos tanto motivo
para adorar a areia e o barro da Lua, por exemplo, como a Lua para se pôr
de joelhos diante da areia e do barro da Terra.
C.
Que se quer dizer quando se fala: O céu e a terra, acenda ao céu,
seja digno do céu?
C. S.
Diz-se tremenda asneira. Não existe céu: cada planeta é
circundado como que de uma casca chamada atmosfera, e gira no espaço
em torno de seu sol. Cada sol é centro de porção de planetas
que o acompanham espaço em fora. Não existe alto nem baixo,
subida nem descida. Compreendeis que se habitantes da Lua dissessem que se
sobe para a Terra, que era preciso tornar-se digno da Terra, diriam um absurdo.
Da mesma forma proferimos uma frase sem nexo quando dizemos ser necessário
fazer-se digno do céu. É como se disséssemos: é
preciso tornar-se digno do ar, digno da constelação do Dragão,
digno do espaço.
C.
Creio compreender. Devemos adorar somente o Deus que criou o céu
e a terra.
C. S.
Isso! Só Deus merece ser adorado. Mas quando dizemos que Deus fez
o céu e a terra, piamente proferimos uma grande ingenuidade. Porque,
se por céu entendemos o espaço portentoso em que Deus acendeu
tantos sóis e fez girar tantos mundos, é mais ridículo
dizer o céu o a terra do que dizer as montanhas e um grão de
areia. Infinitamente menor que um grão de areia é o nosso globo
perto desses quintilhões de mundos, em meio aos quais desaparecemos.
Tudo o que podemos fazer é juntar nossa débil voz ao coro dos
seres incontáveis que no abismo da amplidão rendem homenagem
a Deus.
C.
Então enganaram-nos quando nos disseram que Fo desceu do quarto céu
e se nos apresentou sob a forma de um elefante branco?
C. S.
Isso são histórias que os bonzos contam às crianças
e aos velhos. Não devemos adorar senão o autor eterno de todos
os seres.
C.
Mas como pôde um ser fazer os outros?
C. S.
Olhai aquela estrela – Acha-se a um trilhão e quinhentos bilhões
de lis(12)do nosso minúsculo globo. Dela projetam-se raios que vêm
formar em nossos olhos dois ângulos iguais pelo vértice. Os mesmos
ângulos formam nos olhos de todos os animais. Não vedes nisso
um desígnio evidente? Não vedes nisso uma lei admirável?
Ora, quem faz uma obra senão um obreiro? Quem elabora leis senão
um legislador? Existe pois um obreiro, um legislador eterno.
C.
Mas quem fez esse obreiro? Como é ele?
C. S.
Meu príncipe, passeando ontem pelos arredores do palácio mandado
construir pelo rei vosso pai, ouvi dois grilos conversando, um dos quais dizia:
– Que palácio formidável! – Sim, – disse o
outro – com toda a minha presunção confesso que deve ser
alguém mais poderoso que os grilos o autor de tal prodígio.
Mas nem imagino quem seja. Vejo que há de existir, mas não sei
quem é.
C.
Confesso serdes um grilo mais entendido que eu. O que me agrada em vós
é não pretenderdes saber o que ignorais.
Segundo diálogo
C. S.
Então convindes haja um ser todo poderoso, existente por si próprio,
supremo artesão de toda a natureza?
C.
Sim. Mas se existe por si mesmo nada pode demarcá-lo, está
em toda parte. Acha-se então em toda a matéria, em todas as
partes de mim mesmo?
C. S.
Por que não?
C.
Nesse caso eu próprio seria parte da divindade.
C. S.
Não me parece certa a conclusão. Este caco de vidro é
de todos os lados penetrado pela luz. Entanto será ele luz? Não;
é simplesmente areia. Tudo está em Deus, não resta dúvida:
o que tudo anima em tudo deve estar. Deus não é como o imperador
da China, que mora em um palácio e transmite suas ordens por calao.
Desde que exista, necessário é que sua existência encha
todo o espaço e todas as suas obras. E já que está em
vós é uma advertência contínua para que nada façais
que vos possa envergonhar em sua presença.
C.
Que fazer para ousar olhar-se a si mesmo sem repugnância e sem pejo
diante do ser supremo?
C. S.
Ser justo.
C.
Que mais?
C. S.
Ser justo.
C.
Mas diz a seita de Lao Quium não existir justiça nem injustiça,
vício nem virtude.
C. S.
Diz a seita de Lao Quium não existir saúde nem doença?
C.
Não, ela não diria tamanho absurdo.
C. S.
Absurdo tão grande e mais funesto é pensar não existir
saúde nem moléstia da alma, virtude nem vício. Os que
disseram ser tudo a mesma coisa são monstros. Será a mesma coisa
criar o filho ou esmagá-lo em cima de uma pedra? Assistir à
mãe ou cravar-lhe um punhal no coração?
C.
Fazeis-me estremecer. Eu execro a seita de Lao Quium. Mas são tantos
os matizes do justo e do injusto! As vezes fica-se perplexo. Quem saberá
precisamente o que é permitido e o que não o é? Quem
será capaz de estabelecer seguramente as fronteiras que separam o bem
do mal? Que norma me dais para discerni-los?
C. S.
As normas de Cong-fu-tseu, meu mestre: “Vive como ao morrer desejarias
ter vivido. Trata o próximo como queres que ele te trate”.
C.
Confesso que tais máximas devem ser o código do gênero
humano. Mas que me importará ao morrer ter bem vivido? Que ganharei
com isso? Acaso, ao se quebrar, se sentirá feliz aquele relógio
por haver bem soado as horas?
C. S.
Aquele relógio não sente, não pensa Não pode
ter remorsos, ao passo que vós os tendes quando vos sentis culpado.
C.
E se, após cometer muitos crimes, vier a não mais os sentir?
C. S.
Nesse caso seria preciso reprimir-vos. E ficai certo que entre os homens
que não gostam de ser oprimidos alguém haveria que vos tolheria
as mãos.
C.
Quer dizer que Deus, que está neles, consentiria que fossem maus
depois de tê-lo permitido a mim?
C. S.
Deus vos galardoou com a razão: que dela não abuseis nem vós
nem eles. Não somente seríeis infeliz nesta vida, como ainda
quem vos disse não o seríeis em outra?
C.
Quem vos disse existir outra vida?
C. S.
Na dúvida, procedei como se existisse.
C.
Se eu tivesse certeza de que não existe?
C. S.
Desafio-vos.
Terceiro diálogo
C.
Mas para poder ser punido ou recompensado quando deixar de existir, forçoso
é que subsista em mim algo que sinta e que pense. Ora, se antes de
nascer nada de mim havia que sentisse ou pensasse, como haverá depois
que morrer? Que poderia ser essa parte inconceptível de mim mesmo?
Subsistirá o zumbido daquela abelha à sua morte? Subsistirá
a vegetação desta planta a seu desarraigamento? Vegetação
não é uma palavra de que nos servimos para exprimir a maneira
inexplicável como quis o Ser Supremo que a planta absorvesse os sucos
da terra? Tal e qual, alma é uma palavra inventada para exprimir pobremente
e obscuramente os princípios essenciais da vida humana. Todos os animais
se movem. A esse poder de mover-se chamamos força ativa. Mas não
existe um ser distinto – força ativa. Temos paixões, memória,
razão. Porém razão, memória, paixões não
são, é claro, coisas a parte. Não são seres em
nós existentes. Não são indivíduos de existência
própria: são termos genéricos por nós inventados
para expressarmos nossas idéias. Alma – memória, razão,
paixões – não passa pois de uma palavra. Quem anima a
natureza de movimento? Deus. Quem faz vegetar as plantas? Deus. Quem dá
vida aos animais? Deus. Quem gera o pensamento humano? Deus.
Se a alma humana fosse um anãozinho que habitasse o nosso corpo,
governando-nos os movimentos e as idéias, não denotaria isso
impotência e artifício indignos do eterno artesão do mundo?
Não seria ele capaz de fazer átomos por si próprios dotados
de movimento e pensamento? Ensinastes-me grego, fizestes-me ler Homero. Reputo
Vulcano um ferreiro divino quando faz trípodas de ouro que se apresentam
sozinhas perante o conselho dos deuses. Vil charlatão parecer-me-ia
porém se houvesse escondido no corpo das trípodas um moleque
que, sem que ninguém percebesse, as fizesse mover-se.
Criaram frios sonhadores a fantasia de atribuir o movimento dos astros a
gênios que incessantemente os impelissem espaço em fora. Mas
Deus não poderia ver-se reduzido a tão mísero recurso.
Em uma palavra, para que duas molas quando basta uma? Não ousareis
negar tenha Deus o poder de animar o ente pouco conhecido a que chamamos matéria.
Por que então haveria de recorrer a outro agente?
Mais: que seria essa alma que tão liberalmente dais ao nosso corpo?
De onde veio? Quando? Seria preciso plantar-se tempo sem tempo o Criador do
universo a coca da união de homem e mulher, observando atentamente
o instante em que saísse um germe do corpo do homem e entrasse no corpo
da mulher para então enviar-lhe às pressas uma alma? E se o
germe morresse, que seria da alma? Teria sido criada inutilmente, ou esperaria
outra oportunidade.
Estranha ocupação para o senhor do mundo. Tanto mais que não
se veria abarbado apenas com as cópulas da espécie humana: precisaria
ter olhos para a reprodução de todos os animais, porque todos
os animais têm memória, idéias, paixões. E se para
criar sentimentos, memória, idéias, paixões fosse necessária
uma alma, cumpriria a Deus afanar-se incessantemente a forjar almas para elefantes,
pulgas, mochos, peixes, bonzos.
Que idéia teríeis do arquiteto de tantos milhões de
mundos apeado a fazer cavilhas invisíveis da manhã à
noite a fim de perpetuar sua obra?
Aí tendes ínfima parte das razões que me fazem duvidar
da existência da alma.
C. S.
Raciocinais de boa fé. E vosso sincero parecer, errôneo embora,
há de ser grato ao Ser Supremo. Podeis enganar-vos, mas não
o procurais. Sois, pois, desculpável. Mas vede que não me propusestes
senão dúvidas, e dúvidas tristes. Admiti verossimilhanças
mais consoladoras. É duro ser aniquilado; esperai viver. Sabeis que
um pensamento não é matéria, nada tem que ver com a matéria:
por que há de ser tão difícil crerdes que Deus vos haja
inoculado um princípio divino que – indissolúvel –
escape é morte? Ousareis dizer impossível terdes uma alma? Não,
certamente. E sendo possível, não será muito provável?
Enjeitareis um sistema tão belo e tão necessário ao gênero
humano? Por somenos impedimentos?
C.
Grato ser-me-ia abraçar tal sistema, de vez que me fosse provado.
Não sou. senhor de ver o que não enxergo. Sempre me impressionou
a idéia grandiosa de que Deus tudo criou, em tudo está, tudo
penetra, a tudo inspira vida e movimento. E se, estando em toda a natureza,
se acha em todas as partículas do meu ser, não vejo que necessidade
tenho de uma alma. Para que um pequeno ente subalterno, quando sou animado
do próprio Deus? De que me serviria essa alma? Nossas próprias
idéias, não somos nós quem as elaboramos: acodem-nos
não raro a despeito de nós mesmos; temo-las enquanto dormimos.
Tudo em nós se opera sem a nossa intervenção. Por mais
que a alma dissesse ao sangue e aos espíritos animais: Circulai, peço-vos,
de tal ou tal maneira, eles circulariam eternamente e impassivelmente da forma
que Deus lhes ditou. Prefiro ser máquina de um Deus que se me evidencia
a sê-la de uma alma de cuja existência duvido.
C. S.
Pois bem! Se vos anima o próprio Deus, nunca profaneis com crimes
a sua presença. E se vos deu uma alma, que essa alma jamais o ofenda.
Num sistema como noutro tendes vontade. Sois livre, dispondes do poder de
fazer o que quiserdes; usai desse poder para servir a Deus que vo-lo outorgou.
Bom é que sejais filósofo: necessário que sejais justo.
Sê-lo-eis ainda mais quando crerdes possuir uma alma imortal.
Dignai-vos responder-me: não é verdade ser Deus a suma justiça?
C.
Sem dúvida. E ainda que fosse possível deixar de sê-la
(o que é uma blasfêmia) eu mesmo quereria proceder com eqüidade.
C. S.
Quando estiverdes no trono, não é verdade ser vosso dever
recompensar as ações virtuosas e punir as culposas? Quereríeis
que Deus não fizesse o que vós mesmo fareis? Sabeis que há
e sempre haverá nesta vida virtudes infelizes e crimes impunes. Necessário
é pois que bem e mal encontrem seu julgamento em outra existência.
Foi esta idéia tão simples, tão natural, tão geral
que gerou em tantas nações a crença da imortalidade da
alma e da justiça divina, que a julgará quando se despir do
despojo mortal. Haverá sistema mais razoável, mais conforme
à Divindade e mais útil ao gênero humano?
C.
Por que então muitas nações não o abraçaram?
Sabeis haver em nossa província coisa de duzentas famílias de
antigos sinús(13) que habitaram outrora parte da Arábia Pétrea.
Pois nem eles nem seus avitos jamais creram a alma imortal. Têm seus
Cinco Livros, como nós temos nossos Cinco Quings(14). Li-lhes a tradução;
suas leis, necessariamente semelhantes às de todos os outros povos,
ordenam-lhes respeitar os pais, não furtar, não mentir, não
cometer o adultério nem o homicídio. Não lhes falam,
porém, de recompensas e castigos em outra vida.
C. S.
Se essa idéia ainda não se desenvolveu nesse pobre povo, desenvolver-se-á
sem dúvida algum dia. Demais, que nos importa uma insignificante e
miserável nação quando babilônios, egípcios,
hindus, todos os povos civilizados admitiram esse dogma tão salutar?
Se estivésseis doente, refugaríeis um remédio aprovado
por todos os chineses só porque meia dúzia de bárbaros
das montanhas não o tomariam? Deus concedeu-vos a razão, e diz-vos
a razão que a alma deve ser imortal. É o próprio Deus
que vo-lo diz, portanto.
C.
Mas como poderei ser recompensado ou punido quando já não
for eu mesmo, quando nada existir do que constitui a minha pessoa? Tão
somente por força da memória é que sou sempre eu mesmo.
Ora, a memória, perdê-la-ei na derradeira doença. Haverá
então um milagre depois de minha morte que ma restitua, para que eu
retorne à existência?
C. S.
Nesse caso um príncipe que houvesse decapitado a família para
reinar, tiranizado os súditos, eximir-se-ia de culpa dizendo a Deus:
– Não fui eu, eu perdi a memória, vós vos equivocais,
eu já não sou a mesma pessoa. – Julgais que Deus se daria
por achado com semelhante sofisma?
C.
Pois bem. Seja, rendo-me. Se praticaria o bem por mim próprio, fá-lo-ei
igualmente para comprazer ao Ser Supremo. Eu pensava bastar minha alma ser
justa nesta vida para ser feliz em outra. Vejo que tal opinião é
boa para os povos e para os príncipes, mas o culto de Deus me preocupa.
Quarto diálogo
C. S.
Que achais de esquisito em nosso Chu Quing, esse primeiro livro canônico
tão respeitado por todos os imperadores chineses? Para servir de exemplo
ao povo trabalhais um campo com as próprias mãos reais e dele
ofertais as primícias a Chang-ti, a Tien, ao Ser Supremo. A ele sacrificais
quatro vezes ao ano. Sois rei e pontífice. Prometeis a Deus todo o
bem que estiver em vosso poder. Não há nisso algo que repugne?
C.
Sei que Deus não tem nenhuma necessidade de nossos sacrifícios
e de nossas preces. Nós é que temos precisão de nos sacrificarmos
e de orar. O culto de Deus não foi estabelecido por ele, mas por nós.
Muito me apraz orar, e quero sobretudo que minhas orações não
sejam ridículas. Porque se me ponho a gritar que “a montanha
do Chang-ti é uma montanha gorda, é que não se deve olhar
para as montanhas gordas,” (15) e faço fugir o Sol e apagar a
Lua, seriam essas algarvias do agrado do Ser Supremo, úteis a meus
súdito e a mim mesmo?
Não suporto principalmente a demência das seitas. De um lado
vejo Lao Tseu concebido pela união do céu e da terra e cuja
mãe o carregou no ventre durante oitenta anos. Não tenho mais
fé em sua doutrina do aniquilamento e da renúncia universal
que nos cabelos brancos com que nasceu ou na vaca preta que montou para ir
pregar sua doutrina.
Não creio mais no deus Fo, ainda que tenha tido por pai um elefante
branco e prometa a vida eterna.
Mais que tudo me desagrada serem tais fantasias continuamente pregadas pelos
bonzos, que seduzem o povo para governá-lo. Fazem-se respeitáveis
por mortificações que repugnam à natureza. Uns se privam
toda a vida dos alimentos mais salutares, como se não se pudesse agradar
a Deus senão com um mau regime. Outros põem argolas de ferro
no pescoço, o que por vezes lhes dá um ar digníssimo.
Enterram cravos nas coxas, como se fossem tábuas. E o povo segue-os
em chusma. Se um rei decreta um édito que os desagrada, dizem-vos friamente
que tal édito não se encontra no comentário do deus Fo,
e que mais vale obedecer a Deus que aos homens. Como remediar tão extravagante
e nociva doença popular? Sabeis ser a tolerância o princípio
do governo da China como de todos os povos da Ásia. Não vos
parece, porém, funesta semelhante indulgência, quando expõe
um império a ser transtornado por opiniões fanáticas?
C. S.
Que o Chang-ti me livre de querer desenvolver em vós o espírito
de tolerância, virtude tão respeitável, que é para
a alma o que é para o corpo a liberdade de saciar a fome. Permite a
lei natural a cada um crer o que quiser, como se alimentar do que bem entender.
O médico não pode matar os clientes por não terem observado
a dieta prescrita. Não assiste ao príncipe o direito de mandar
prender os súdito que não pensarem como ele. Mas cumpre-lhe
prevenir perturbações, e se for sábio, facílimo
lhe será extirpar as superstições. Sabeis o que se passou
com Daão, sexto rei da Caldéia, há cerca de quatro mil
anos?
C.
Não. Dar-me-eis prazer contando-mo.
C. S.
Os sacerdotes caldeus adoravam as solhas do Eufrates. Diziam que uma solha
memorável – Oanés – ensinara-lhes outrora a teologia,
que essa solha era imortal, tinha três pés de comprido e um pequeno
crescente na cauda. Por amor de Oanés era proibido comer solhas. Levantou-se
grande barulho entre os teólogos a fim de saber se a solha Oanés
era macho ou fêmea Os dois partidos se excomungaram reciprocamente e
por não poucas vezes chegou-se a vias de fato. Eis o que fez o rei
Daão para pôr termo à referta.
Ordenou a ambas as facções um rigoroso jejum de três
dias, findo o qual chamou à sua presença os partidários
da solha fêmea, que assistiram a seu jantar. Mandou trazer uma solha
de três pês de comprimento, em cuja cauda fizera desenhar um crescente.
— É este o vosso deus? – perguntou aos doutores.
— Sim, majestade. Tem o crescente na cauda e seguramente há
de ter ovas.
Ordenou o rei que se abrisse a solha, que se evidenciou macho.
—.Estais vendo não ser o vosso deus, pois não tem ovas,
– concluiu o rei. E comeu-a com seus sátrapas, com grande regozijo
dos teólogos das ovas, que viam frito o deus dos adversários.
Em seguida mandou virem os doutores do outro partido. Mostrou-lhes um deus
de três pés de longo, com um crescente na cauda e que tinha ovas.
Afirmaram os doutores ser o deus Oanés, e que era macho. Como da primeira
vez, o rei mandou fritá-lo e viu-se que era fêmea. Então,
evidenciando-se ambos os partidos igualmente tolos, e como não tivessem
almoçado, disse-lhes o bom rei Daão que não tinha senão
solhas para dar-lhes de jantar. E os doutores comeram-nas gulosamente, fossem
fêmeas ou machos. Terminou a guerra civil, todos bendisseram o rei e
de então em diante toda gente fez servir à mesa quantas solhas
lhe aprouvesse.
C.
Muito simpatizo com o rei Daão. Prometo imitá-lo na primeira
ocasião que se apresentar. Sem violências, hei de impedir o quanto
possa que se adorem Fos e solhas.
Sei que existem em Pegú e Tonquim pequenos deuses e talapões
que dizem fazer baixar a lua no minguante e predizer claramente o futuro,
isto é, verdadeiramente o que não existe, porque o futuro não
existe. No que de mim depender, vedarei aos talapões virem ao meu império
inventar o futuro e arriar à lua.
Que humilhação haver seitas que vão de cidade em cidade
a propagar seus mitos, como charlatães vendendo suas drogas! Que opróbrio
para o espírito humano presumirem naçõezinhas insignificantes
ser a verdade exclusividade sua, e que o vasto império da China chafurde
no erro! Então não seria o Ser Supremo senão o deus da
ilha Formosa ou de Bornéu? Abandonaria o resto do mundo ? Meu caro
Cu Su, ele é o pai de todos os homens. A todos permite comer solhas.
Ser virtuoso é a mais digna homenagem que se lhe possa render. Um coração
puro é o mais sublime dos templos, como dizia o grande imperador Hiao.
Quinto diálogo
C. S.
De vez que amais a virtude, como a praticareis quando fordes rei?
Não sendo injusto nem para com meus vizinhos nem para com meu povo.
C. S.
Não basta não fazer o mal. Devereis praticar o bem. Dareis
o que comer aos pobres empregando-os em trabalhos úteis, e não
presenteando-os com a ociosidade. Embelezareis as estradas reais, abrireis
canais, construireis edifícios públicos, estimulareis as artes,
premiareis o mérito em que quer que se manifeste, perdoareis as faltas
involuntárias.
C.
A isso chamo não ser injusto. Trata-se de deveres.
C. S.
Pensais como verdadeiro rei. Mas há o rei e o homem, a vida pública
e a vida privada. Logo vos casareis. Quantas esposas contais ter?
C.
Tenho que uma dúzia será o suficiente. Mais poderia furtar-me
ao trabalho. Não gosto desses reis que têm trezentas esposas
e setecentas concubinas, e milhares de eunucos para servi-las. Essa mania
de eunucos sobretudo parece-me um tremendo ultraje à natureza humana.
Que se capem, quando muito, os galos. Com isso ficam melhores de comer. Nunca
se viram, porém, eunucos na panela. Para que mutilá-los? Tem
o dalai lama cinqüenta eunucos para cantarem em seu pagode. Gostaria
de saber se é grato ao Chang-ti ouvir as vozes de taquara rachada desses
cinqüenta desmembrados.
Acho também muito ridículos esses bonzos que não se
casam. Gabam-se de ser mais sábios que os demais chineses. Pois bem!
Que façam então filhos sábios. Boa moda essa honrar o
Chang-ti privando-o de adoradores! Singular maneira de servir o gênero
humano, dando-lhe o exemplo da própria extinção! Dizia
o bom pequeno lama Stelca ed isant Errepi (16) que todo padre devia fazer
o maior número de filhos possível. Ele próprio dava o
exemplo e foi muito útil em seu tempo. Por mim casarei todos os lamas
e bonzos e lamizas e bonzas que tiverem vocação para esta santa
obra. Serão melhores cidadãos, e com isso creio prestar grande
benefício ao reino de Lou.
C. S.
Oh que excelente príncipe teremos! Fazeis-me chorar de alegria. Mas
certamente não tereis só mulheres e súdito. Porque afinal
não se pode passar a vida a lavrar éditos e fabricar filhos.
Sem dúvida tereis amigos?
C.
Já os tenho, e bons. Advertem-me de meus defeitos e eu tomo a liberdade
de apontar-lhes os seus. Consola-me e eu os consolo. A amizade é o
bálsamo da vida, bálsamo superior ao do químico Erueil
(17) e até aos saquetes do grande Ranoud (18). Admira-me não
se haver feito da amizade um preceito de religião. Desejaria inseri-lo
em nosso ritual.
C. S.
Preservai-vos de semelhante arbitrariedade. A amizade já é
sagrada por si mesma. Nunca a forceis. O coração precisa ser
livre. Se fizésseis da amizade um preceito, um mistério, um
rito, uma cerimônia, milhares de bonzos, pregando e escrevendo suas
tolices, cobririam esse sentimento de ridículo. Não deveis expô-lo
a semelhante profanação.
Mas como procedereis em relação aos vossos inimigos? Vinte
vezes recomenda Cong-fu-tseu que os amemos. Não vos parece um pouco
difícil?
C.
Amar os próprios inimigos? Se é tão comum!
C. S.
Como o entendeis?
C.
Como é de mister, creio; Fiz o aprendizado da guerra sob o príncipe
de Décon (19) contra o príncipe de Vis Brunck. Quando um inimigo
era ferido e caía em nossas mãos; tratávamo-lo como se
fosse nosso irmão. Muitas vezes demos o próprio leito a inimigos
feridos e prisioneiros, dormindo-lhes ao pé sobre peles de tigre estendidas
no chão. Servíamo-los nós mesmos. Que mais quereríeis?
Que os amássemos como se ama às amantes?
C. S.
Muito me edifica tudo o que dissestes, e desejaria que todas as nações
vos compreendessem. Porque me afirmam haver povos assaz impertinentes para
dizer que nós não conhecemos a verdadeira virtude, que nossas
boas ações não passam de pecados esplêndidos, que
necessitamos das lições de seus talapões para que nos
ensinem bons princípios. Coitados! Mal aprenderam a ler e escrever
e já querem ensinar aos próprios mestres!
Sexto diálogo
C. S.
Não vos repetirei todos os lugares comuns que há cinco ou
seis mil anos se repisam entre nós acerca de todas as virtudes. Há
virtudes que não o são senão para nós mesmos,
como a prudência para guiar a alma, a temperança para governar
o corpo – meros preceitos de política e higiene. Verdadeiras
virtudes são as virtudes úteis à sociedade: fidelidade,
magnanimidade, beneficência, tolerância, etc. Graças aos
céus não há avó entre nós que não
ensine aos netos todas essas virtudes. Elas constituem o cimento da nossa
juventude, na cidade como na aldeia. Há contudo uma grande virtude
que começa a ser esquecida, o que é deplorável.
C.
Qual é? Vamos, dizei-me, eu tomarei a peito realentá-la.
C. S.
A hospitalidade. Essa virtude tão social, esse sagrado liame entre
os homens, que começa a relaxar-se desde que temos tavernas. Ao que
dizem, veio-nos essa perniciosa instituição de certos selvagens
do Ocidente. Parece que esses miseráveis não têm casas
para acolher os viajores. Que prazer receber na grande cidade de Lou, na linda
praça de Honchã, na casa de Qui, um generoso estrangeiro recém
chegado de Samarcande, para quem me tornaria de então em diante um
homem sagrado e a quem todas as leis – divinas e humanas – obrigariam
a receber-me em sua casa quando eu viajasse pela Tartária e a ser meu
amigo íntimo!
Os bárbaros de que vos falava só recebem os forasteiros quando
pagos, e ainda assim em achavascados cochicholos. Vendem caro esse acolho
miserável. Apesar de tudo ouço dizer que essa pobre gente se
presume superior a nós e se vangloria de ter moral mais pura. Querem
que seus pregadores falem melhor que Cong-fu-tseu. Enfim pretendem ensinar-nos
justiça por venderem mau vinho nas estradas reais, suas mulheres saírem
como loucas pelas ruas e dançarem enquanto as nossas cultivam bichos
de seda.
C.
Acho plausível a hospitalidade e pratico-a com prazer. Mas receio
o abuso. Existem, nas cercanias do grande Tibete, povos que vivem pessimamente
alojados, amantes de andejar, que sem motivo algum seriam capazes de palmilhar
o mundo de ponta a ponta. Entanto, se fordes ao grande Tibete desfrutar entre
eles do direito da hospitalidade, não vos darão cama nem comida.
Coisas tais podem fazer desgostar da polidez.
C. S.
O mal é pequeno e fácil de remediar, não se recebendo
senão pessoas bem recomendadas. Não há virtude que não
ofereça seus riscos. Por isso mesmo é belo abraçá-las.
Quão santo e sábio é o nosso Cong-fu-tseu! Não
há virtude que não inspire. Em suas sentenças está
a felicidade dos homens. Eis uma que me vem à memória –
a qüinquagésima terceira:
Recompensai os benefícios com benefícios e jamais vos vingueis
das injúrias.
Qual a máxima, qual a lei dos povos do Ocidente comparável
a moral tão pura? Em quantos passos preceitua Cong-fu-tseu a humildade!
Se os homens praticassem esta virtude jamais haveria querelas sobre a terra.
C.
Li tudo o que escreveram Cong-fu-tseu e os árabes dos séculos
passados a respeito da humildade. Mas ninguém me parece tê-la
definido com exatidão. Talvez seja pouca humildade atrever-me a increpá-los,
mas tenho pelo menos a humildade de confessar não os haver compreendido.
Dizei-me, que pensais dessa virtude?
C. S.
Obedecer-vos-ei humildemente. Reputo a humildade a modéstia da alma,
porque a modéstia exterior não passa de civilidade. Ser humilde
não é negar a si próprio uma superioridade que se possa
ter adquirido sobre outrem. Um bom médico não pode deixar de
reconhecer saber mais que seu cliente em delírio. Força é
que um professor de astronomia admita ser mais ciente que seus discípulos.
Não podendo negá-lo, não deve todavia presumir-se. Humildade
não é abjeção: é corretivo do amor próprio,
como a modéstia o é do orgulho.
C.
Pois bem! É no exercício de todas essas virtudes e no culto
de um Deus simples e universal que quero viver, longe dos delírios
dos sofistas e das ilusões dos falsos profetas. No trono, o amor ao
próximo será minha virtude, o amor a Deus minha religião.
Desprezarei o deus Fo e Lao Tseu e Vichnú, que tantas vezes se encarnou
entre os hindus, e Samonocodom, que baixou do céu para fazer de escaravelho
entre os siameses, e os camis, vindos da lua ao Japão.
Desgraçado do povo suficientemente cretino e bárbaro para
pensar existir um Deus exclusivamente para o recanto do mundo em que habita!
É uma blasfêmia. Se a luz do sol alumia todos os olhos, não
iluminaria a luz de Deus mais que uma mísera nação num
canto do globo! Que blasfêmia! Que dislate! A Divindade fala ao coração
de todos os homens, e de extremo a extremo do mundo devem uní-los os
laços da caridade.
C. S.
O sábio filho o rei de Lou! Falastes como que inspirado pelo próprio
Chang-ti. Sereis um príncipe digno. Fui vosso mestre, agora sou vosso
discípulo.
CATECISMO DO JAPONÊS (20)
Hindu
É verdade que antigamente os japoneses não sabiam cozinhar,
que haviam entregue seu reino ao grande lama, que o grande lama decidia soberanamente
do que devíeis comer e beber e de tempos em tempos vos enviava um pequeno
lama a fim de cobrar tributos, pagando-vos com um sinal de proteção
feito com os dois primeiros dedos e o polegar?
Japonês
Ai! Nada mais verdadeiro. Todos os cargos de canusi(21) – os grandes
cozinheiros da nossa ilha – conferia-os o lama, e não certamente
por amor de Deus. Além disso todas as famílias seculares pagavam
uma onça de prata por ano a esse grande cozinheiro do Tibete. Em paga
dava-nos minguados pratos de horrível paladar chamados sobejos. E quando
lhe dava na veneta alguma nova fantasia, como declarar guerra aos povos do
Tangate, escorchava-nos com subsídios suplementares. Muitas vezes nos
queixamos, porém baldamente, quando não nos fazia pagar mais
ainda. Por fim o amor, que tudo resolve maravilhosamente, libertou-nos dessa
servidão. Um de nossos imperadores desaveio-se com o grande lama por
causa. de uma mulher. Mas devo confessar que quem mais nos valeram nessa questão
foram os nossos canusi, também chamados paiscospie. A eles devemos
a libertação.
Eis o que se deu.
O grande lama tinha uma mania engraçada: julgava sempre ter razão.
Uma vez ou outra, pelo menos, queriam os nossos canusi tê-la também.
O grande lama achou absurda tamanha pretensão. Nossos canusi não
arredaram pé e romperam definitivamente com ele.
Hindu
E de então em diante vivestes sem dúvida felizes e tranqüilos?
Japonês
Não inteiramente. Fomos perseguidos, dilacerados, devorados durante
perto de dois séculos. Em vão pleiteavam nossos canusi ter razão.
Somente há cem anos são razoáveis. Também, desde
então podemos orgulhosamente considerar-nos uma das nações
mais felizes da terra.
Hindu
Como podeis ser felizes se – a crer no que me disseram – vosso
império se acha dilacerado por doze facções de cozinha?
No mínimo tereis doze guerras civis por ano.
Japonês
Por que? Será que por termos doze chefes de cozinha, cada qual com
uma receita diferente, deveremos matar-nos em vez de jantar? Pelo contrário,
comeremos todos às mil maravilhas, cada um do cozinheiro que mais lhe
agradar.
Hindu
De fato gostos não se devem discutir. A história, porém,
é que ninguém se compenetra disso. Discutem, e da discussão
às do cabo é um passo.
Japonês
Depois de muito discutirmos, vendo que com isso só tínhamos
que perder, acabamos optando tolerar-nos mutuamente. Era, não há
dúvida, o melhor partido que nos restava tomar.
Hindu
Poderíeis dizer-me quais são os chefes de cozinha que partilham
a vossa nação na arte de beber e comer?
Japonês
Primeiramente há os breuseh, que em caso algum vos dariam morcela
ou lardo. Preconizam as fontes puras da cozinha do tempo do onça. Prefeririam
morrer a mordiscar um frango. Quanto ao mais, exímios calculadores,
e fosse o caso de dividir uma onça de prata entre eles e os onze outros
cozinheiros, açambarcariam logo a metade, deixando o resto para os
que melhor soubessem contar.
Hindu
Presumo não costumais cear com gente tão esdrúxula?
Japonês
Claro. Em seguida vêm os pispatas, que em determinados dias da semana
e em boa parte do ano prefeririam cem vezes comer rodelas de rodovalhos, trutas,
linguados, salmões, esturjões, a saborear uma fritada de vitela
que lhes ficaria por um nada.
Quanto a nós outros canusi, somos devotos apreciadores de carne de
vaca e de certa pastelaria que em japonês se diz pudim. Toda gente convém
em que os nossos cozinheiros sejam muito mais hábeis que os dos pispatas.
Ninguém melhor que nós sabe preparar o garum dos romanos, as
cebolas do antigo Egito, a pasta de gafanhoto dos primeiros árabes,
a carne de cavalo dos tártaros. Sempre há o que aprender nos
livros dos canusi, comumente chamados paiscospie.
Escuso-me de falar dos que comem a Teluro, assim como dos adeptos do regime
de Vicalno, dos batistandos e que tais. Os quekars, porém, merecem
atenção particular. São os únicos convivas que
nunca vi se emborracharem nem praguejarem. Dificílimos de enganar,
também nunca enganam ninguém. Parece que a lei que manda amar
o próximo como a si mesmo foi feita especialmente para eles. Porque,
verdade se diga, como pode um japonês dizer amar o próximo como
a si próprio se por uma bagatela mete-lhe uma bala de chumbo na cabeça
ou decapita-o com um cris de quatro dedos de largo? Quando ele próprio
vive em constante risco de ser degolado ou engolir balas de chumbo? Com mais
propriedade se dirá que ele odeia o próximo como a si mesmo.
Os quekars nunca tiveram desses furores. Dizem eles serem os homens efêmeros
vasos de argila e que não vale a pena se despedaçarem deliberadamente
uns contra os outros.
Confesso que se não fosse canusi não me desagradaria ser quekar.
Força é reconhecer que não há meio de brigar com
cozinheiros tão pacíficos. Há outros, em número
incontável, a que chamamos diestas. Dão os diestas de comer
a toda gente indiferentemente e em sua casa sois livre de comer o que vos
der na língua – recheado, lardeado, sem recheio, sem lardo, com
ovos, com óleo; perdiz, salmão, vinho palhete, vinho tinto,
tudo lhes é indiferente. Contanto que façais alguma oração
a Deus antes ou após o jantar, ou simplesmente antes do almoço,
e sejais honrado, de bom grado rirão convosco à custa do grande
lama, de Vicalno, de Memnão e o mais que segue. Felizmente reconhecem
que nossos canusi são doutíssimos em matéria culinária,
e sobretudo nunca falam em cercear nossas rendas. Assim, vivemos na mais edênica
harmonia.
Hindu
Mas a final deve haver uma cozinha predominante, a cozinha do rei.
Japonês
Confesso-o. Mas naturalmente depois de seus gordos banquetes o rei está
derretendo de bom humor e não põe embargos à digestão
de ninguém.
Hindu
E se algum cabeça dura encasquetar de comer no nariz do rei salsichas
que lhe repugnem? Se se reunirem armados de grelhas quatro ou cinco mil desses
indivíduos para cozer suas salsichas? Se insultarem as pessoas avessas
e salsichas?
Japonês
Nesse caso será preciso puni-los como bêbedos que perturbam
o repouso dos cidadãos. Previmos o perigo. Só os que comem à
real são contemplados com as dignidades do estado. Todos os outros
podem comer como lhes ditar a fantasia, porém são excluídos
dos cargos. Soberanamente interditos e punidos sem remissão são
os tumultos à mesa. Atalha-se cuidadosamente toda discussão,
consoante o preceito do grande cozinheiro japonês Sufi Raho Cus Flac(22),
que escreveu na língua sagrada:
Natis in usum laetitae scyphis
pugnare Thracum est…
O que quer dizer: O jantar foi feito para gáudio recatado e mundo,
e não se devem atirar copos à cabeça.
Com essas máximas vivemos felizmente em nossa terra. A liberdade
individual roborou-se sob os nossos tecosema. Cresce nossa riqueza. Possuímos
duzentos juncos de linha, e constituímos o terror dos nossos vizinhos.
Hindu
Por que motivo então o bom versificador Recina(23), filho do poeta
indiano do mesmo nome, tão delicado, tão exato, tão harmonioso,
tão eloqüente, disse em uma obra didática rimada intitulada
A Graça (não As Graças):
O Japão, onde brilharam tantas luzes,
hoje é um triste acervo de loucas visões –?
Japonês
O próprio Recina de que me falais é um grande visionário.
Ignorará esse mísero hindu que fomos nós quem lhe ensinamos
o que é a luz? Que se na Índia conhecem a rota dos planetas,
a nós o devem? Que fomos nós quem ensinamos aos homens as leis
primordiais da natureza e o cálculo do infinito. Que, se é preciso
descer a coisas mais triviais, conosco aprenderam os hindus a construir juncos
segundo proporções matemáticas? Que nos devem até
os borzeguins chamados meias do ofício com que cobrem as pernas? Seria
possível que tendo inventado tantas coisas admiráveis ou úteis
não fôssemos nós mais que loucos, e que um homem que escreveu
em versos os desvairos de outrem fosse o único sábio? Deixe-nos
com a nossa cozinha, e se quiser que faça versos sobre assuntos mais
poéticos.
Hindu
Que quereis. Ele está intoxicado dos preconceitos de sua terra, de
seu partido e dos seus próprios.
Japonês
Arre! Quanto preconceito!
CATECISMO DO PÁROCO
Aríston
Então, caro Teótimo, ides ser pároco no interior?
Teótimo
É verdade. Deram-me uma paroquiazinha, mas prefiro-a a uma grande.
Minha inteligência e atividade são restritas. Não poderia,
por certo, dirigir setenta mil almas, pois só tenho uma. Admirou-me
sempre a confiança dos que põem ombros à empresa de manobrar
o leme desses imensos distritos. A mim me falecem forças para me abalançar
a tanto. Um rebanho muito grande me amedronta, conquanto possa prestar algum
benefício a um pequeno. Estudei suficientemente jurisprudência
para impedir, tanto quanto me for possível, que meus paroquianos se
arruinem em demandas. Sei de medicina o bastante para prescrever-lhes remédios
simples quando caírem doentes. Conheço de agricultura o quanto
basta para dar-lhes lá uma vez ou outra um conselho útil. O
senhor do lugar e sua esposa são pessoas honradas, que me ajudarão
a praticar o bem. Espero ser feliz e felizes fazer os meus paroquianos.
Aríston
Não sentis não ter uma esposa Seria um grande consolo. Como
seria agradável encontrardes no lar, após haver pregado, cantado,
confessado, comungado, batizado, enterrado, uma mulherzinha doce e virtuosa,
que cuidasse de vossa roupa e de vossa pessoa, que vos desagastasse na saúde
e vos assistisse na doença, que vos brindasse com bonitos filhos cuja
boa educação aproveitaria ao estado! Lamento-vos, a vós
que servis aos homens, de vos ver privado de tão necessário
lenitivo.
Teótimo
A igreja grega incita os clérigos ao casamento. O mesmo faz a igreja
anglicana e os protestantes. Diversamente pensa a igreja latina, e forçoso
é que me submeta. Talvez hoje, que o espírito filosófico
realizou tão notáveis progressos, um concilio instituísse
leis mais consoantes à humanidade que o concílio de Trento.
Nesse em meio, porém, devo conformar-me às leis vigentes. É
custoso, bem o sei, mas tanta gente melhor que eu a tanto se resignou que
não devo murmurar.
Aríston
Sábio sois e sábia é a vossa eloquência. Como
contais pregar aos camponeses?
Teótimo
Como pregaria a reis. Falar-lhes-ei a todo instante de moral e jamais de
controvérsias. Defende-me Deus aprofundar a graça concomitante,
a graça eficaz a que se resiste, a suficiente que não basta.
Veda-me inquirir se tinham corpo os anjos que comeram com Abraão e
Ló, ou se fingiram comer. Há mil coisas que meu auditório
não entenderia, e eu tão pouco. Diligenciarei fazer gente de
bem e igualmente sê-lo. Mas não farei teólogos, e se-lo-ei
o menos possível.
Aríston
Oh que excelente cura! Hei de comprar uma casa de campo na vossa paróquia.
Que pensais da confissão?
Teótimo
A confissão é um ótimo freio contra os crimes, que
nos legou a mais remota antigüidade. Era costume, outrora, confessar-se
na celebração de todos os mistérios. Imitamos e santificamos
esta sábia usança. A confissão move os corações
ulcerados de ódio a perdoar e os ladrões à devolução
do furto. Tem suas inconveniências: há muitos confessores indiscretos,
particularmente entre os monges, que não raro ensinam às moças
mais indecências que todos os rapazes de uma aldeia. Nada de pormenores
na confissão. Não se trata de interrogatório judicial,
senão do reconhecimento das próprias faltas perante Deus, feito
por um pecador nas mãos de outro pecador, que de seu turno também
se acusará. Não se faz esse desabafo salutar para satisfazer
a curiosidade de ninguém.
Aríston
E a excomunhão? Usá-la-eis?
Teótimo
Não. Há rituais em que se excomungam as bailarinas, os feiticeiros
e os comediantes. Não precisarei proibir a entrada à igreja
às bailarinas, pois nunca a freqüentam. Não excomungarei
os feiticeiros, pois não os há. Quanto aos comediantes, como
os pensiona o rei e autoriza-os o magistrado, abster-me-ei de os difamar.
Até vos confesso, como a amigo, que muito aprecio a comédia.
quando não vai de encontro aos costumes. Nutro verdadeira paixão
a O Misantropo, Atália e outras peças que me parecem da escola
da virtude e do decoro. O senhor da minha aldeia faz representar em seu castelo
peças dessa natureza por jovens de talento. Tais espetáculos
inspiram a virtude em consórcio com o prazer. Educam o gosto, ensinam
a bem falar e bem pronunciar. Não vejo nisso senão uma recreação
inocente e até muito útil. Conto, para ilustrar-me, assistir
a esses espetáculos. Fa-lo-ei todavia em camarote fechado, para não
escandalizar os simples.
Aríston
Quanto mais me revelais vossos sentimentos, mais desejo tornar-me vosso
paroquiano. Uma coisa preocupa-me: como fareis para evitar que os campônios
se embriaguem nos dias de festa? É essa a solenidade com que as celebram.
Haveis de vê-los prostrados pelo álcool, cabeça pensa,
mãos descaídas, estrouvinhados, reduzidos a estado mais vil
que o dos brutos, reconduzidos titubeantes para casa pelas esposas desfeitas
em pranto, incapazes de enfrentar o trabalho no dia seguinte, muitas vezes
doentes e embrutecidos para o resto da existência. Ve-los-eis, enfunados
pelo vinho, travar rixas sangrentas, atarracarem-se como feras, e não
raro desfecharem em morte estas cenas que cobrem de opróbrio a espécie
humana. Perde o estado mais súdito em festas do que em batalhas. Como
atalhareis em vossa paróquia tão execrando abuso?
Teótimo
Meu partido está tomado. Consentirei, instarei até que cultivem
seus campos nos dias de festa, após o serviço divino, que celebrarei
ao alvorecer. O ócio do feriado é que os leva à taverna.
Não há cabida, nos dias consagrados ao trabalho, para a devassidão
e o assassínio. O trabalho moderado é propiciador de saúde
do corpo e da alma. Demais, necessita-o o estado. Suponhamos pessimistamente
cinco milhões de homens cujo trabalho diário renda dez mil réis
por indivíduo. Ao cabo de um ano, cinco milhões de homens inúteis
durante trinta dias serão trinta vezes cinco milhões de notas
de dez mil réis perdidas pelo estado em mão de obra. Ora, claro
é que Deus jamais preceituou semelhantes desperdícios e borracheiras.
Aríston
Assim conciliareis a religião e o trabalho. Um e outro foram prescritos
por Deus. Servireis a Deus e ao próximo. Mas que partido tomareis em
face das disputas eclesiásticas?
Teótimo
Nenhum. Como controverter a virtude, se a virtude provém de Deus?
Discutir, só as opiniões dos homens.
Aríston
Oh excelente pároco! Sapientissimo pároco
CERTO, CERTEZA
Que idade tem vosso amigo Cristóvão?
Vinte e oito anos. Vi sua certidão de casamento e de batismo, conheço-o
desde criança. Tem vinte e oito anos, tenho certeza, estou certo.
Mal acabo de ouvir a resposta desse homem tão seguro do que diz e
de vinte outros que o corroboram, venho a saber que, por motivos secretos
e singular engenho, se antedatou a certidão de batismo de Cristóvão.
Aqueles com quem falei nada sabem ainda. No entanto, sempre tiveram certeza
do que não é.
Se perguntásseis a todos os homens antes de Copérnico:
— O sol levantou-se hoje? O sol se pôs?
— Temos absoluta certeza – responder-vos-iam à uma
Tinham certeza, e no entanto estavam errados.
Sortilégios, adivinhações, obsessões foram durante
longo tempo as coisas mais certas do mundo aos olhos de todos os povos. Quanta
gente presa dessas ilusões não estava certa do que presumia
ver! Hoje acha-se menos em voga essa certeza.
Vem visitar-me um jovem estudante de geometria. Principiante, ainda se acha
às voltas com a definição dos triângulos.
— Não é certo – pergunto-lhe – que os três
ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos
retos?
— Não só não tenho certeza – responde-me
– como nem sequer compreendo claramente essa proposição.
Demonstro-lha. Certifica-se, e para o resto da vida.
Eis aí uma certeza muito diferente das anteriores. Aquelas não
eram mais que probabilidades que, examinadas, revelaram-se erros. A certeza
matemática, porém, é imutável e eterna.
Existo. Penso. Sinto. Será isso tão certo quanto uma verdade
geométrica? Sim. Por que? Porque as verdades se provam pelo princípio
de que nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Não Posso existir
e simultaneamente não existir, sentir e não sentir. Um triângulo
não pode ter cento e oitenta graus – a soma de dois ângulos
retos – e ao mesmo tempo não os ter.
De mesmo valor são pois a certeza física de que existo, de
que sinto e a certeza matemática, embora de gêneros diversos.
O mesmo não acontece com a certeza que se funda em aparências
ou testemunhos unânimes dos homens.
— Ora essa! Então não estais certo de que Pequim existe?
Não tendes em casa estofos de Pequim! Indivíduos dos mais diversos
países e opiniões, que escreveram violentamente uns contra os
outros pregando a verdade em Pequim, não vos asseveraram a existência
dessa cidade?
— Acho muitíssimo provável ter existido tal cidade.
Mas não apostaria a vida em como exista, se bem não hesite em
apostá-la em como os três ângulos de um triângulo
perfazem dois retos.
Estampou-se no Dictionnaire Encyclopédique uma coisa jovialíssima.
Sustenta-se lá que, se mo dissesse toda Paris, eu deveria estar tão
seguro, tão certo de que o marechal de Saxe ressuscitou, como o estou
de que ele venceu a batalha de Fontenoy, quando toda Paris mo assevera. O
raciocínio é admirável: Creio em Paris quando toda ela
me diz coisa moralmente possível; portanto não devo cre-la quando
me diz coisa moral e fisicamente impossível.
Parece que o autor queria rir, e que o outro autor que se extasia ao fim
desse artigo escrito contra si próprio também o queria.
CÉU DOS ANTIGOS (O)
Se um bicho da seda desse o nome de céu ao frouxel que lhe envolve
o casulo, não raciocinaria pior que os antigos chamando céu
à atmosfera, que é, como muito bem diz o Sr. de Fontenelle em
seus Mondes, o cotão do nosso casulo.
Os vapores que se exalam dos mares e do solo e formam as nuvens, os meteoros
e os trovões, foram a princípio tomados pela morada dos deuses.
Em Homero os deuses sempre descem em nuvens de ouro. Vem daí ainda
hoje representarem-nos os pintores sentados em uma nuvem. Mas como era justo
estivesse o senhor dos deuses mais a vontade que os outros, deram-lhe uma
águia por veículo, por ser a ave que mais alto voa.
Vendo os senhores das cidades morarem em cidadelas eretas nas assomadas
das montanhas, julgaram os antigos gregos que os deuses também. deviam
ter uma cidadela, e colocaram-na na Tessália, no monte Olimpo, cujo
vértice não raro se amortalha de nuvens De sorte que seu palácio
se achava no mesmo nível do céu.
Estrelas e planetas, que parecem engastados na abóbada azul da atmosfera,
foram transformados em outras tantas moradas de deuses. Sete dentre estes
tiveram cada um seu planeta. Os outros alojaram-se onde melhor puderam. Em
sala a que conduzia a via láctea reunia-se o conselho geral dos deuses:
necessário era que tivessem seu congresso no ar, já que os homens
tinham seus paços municipais na terra.
Quando os titãs, espécie de animais entre os deuses e os homens,
declararam uma guerra justíssima aos deuses em vindicação
de sua herança paterna – sendo como eram filhos do Céu
e da Terra – não tiveram mais que empilhar duas ou três
montanhas umas sobre outras para se tornarem senhores do céu e do castelo
do Olimpo.
Neve foret terris securior arduus aether,
affectasse ferunt regnum coeleste gigantes,
altaque congestos struxisse ad sidera montes.
Essa física de crianças e de velhos era antiquíssima.
Contudo é muito provável tivessem os caldeus idéias tão
sãs quanto nós do que se chama o céu. Colocavam eles
o Sol no centro do nosso mundo planetário, em distância da Terra
aproximadamente a mesma reconhecida hoje. Em torno do Sol faziam girar a Terra
e todos os planetas, ensina-nos Aristarco de Samos. É o verdadeiro
sistema do universo, posteriormente reeditado por Copérnico. Os filósofos,
porém, guardavam o segredo para si, a fim de serem mais respeitados
pelos reis e pelo povo, ou antes, para não serem perseguidos.
É tão familiar aos homens a linguagem do erro que ainda chamamos
céu aos vapores e ao espaço entre a Terra e a Lua. Dizemos subir
ao céu, como dizemos que o Sol gira, conquanto saibamos que não
é assim. Possivelmente, para habitantes da Lua, nós é
que somos o céu. Cada planeta coloca o seu céu no planeta vizinho.
Se se perguntasse a Homero para que céu tinha ido a alma de Sarpédon,
onde estava a de Hércules, pôr-se-ia o grande poeta em calças
pardas. Certamente responderia com versos harmoniosos.
Como saber se a alma aérea de Hércules se acharia mais a vontade
em Vênus ou Saturno que na Terra? Ou estaria no Sol? É de crer
que não estivesse muito a vontade nessa fornalha. Finalmente, que entenderiam
os antigos por o céu? Ignoravam o que fosse. Sempre disseram o céu
e a terra. É como se dissessem o infinito e um átomo. Propriamente
falando não existe céu. O que há é uma quantidade
prodigiosa de globos girando no vazio do espaço, um dos quais é
a Terra.
Criam os antigos que ir aos céus era subir. A verdade, porém,
é que não se sobe de um astro a outro. Estão os corpos
celestes tanto abaixo como acima do nosso horizonte. Assim, supondo que, tendo
vindo a Pafos, Vênus regressasse a seu planeta quando este se houvesse
posto, não subiria em relação ao nosso horizonte: pelo
contrário, desceria, e nesse caso deveria dizer-se descer ao céu.
Porém os antigos não alcançavam tais sutilezas. Tinham
noções vagas, incertas, contraditórias sobre tudo que
concernia à, física. Escreveram-se volumes de légua e
meia a fim de saber o que pensavam acerca de um sem número de questões
que tais. Bastariam duas palavras: não pensavam.
Sempre é bom excetuar alguns sábios Mas vieram mais tarde.
Poucos manifestaram seus pensamentos, e foi o quanto bastou para que os charlatães
os mandassem para o céu pelo caminho mais curto
Pretendeu um escritor, chamado, creio; Pluche, promover Moisés a
grande físico. Já antes outro o conciliara com Descartes e dera
à estampa o Cartesius Mosaizans. A dar-lhe ouvidos foi Moisés
quem primeiro concebeu os turbilhões e a matéria sutil. É
no entanto por de mais sabido que Deus, fazendo Moisés um grande legislador,
um grande profeta, nem sequer lhe passou pela veneta fazê-lo professor
de física. Moisés ensinou aos judeus qual era seu dever, mas
não lhes disse palavra de filosofia. Calmet, que compilou às
pazadas e sem nunca raciocinar, fala de sistema dos hebreus. Porém
esse povo grosseiro nunca teve sistema algum. Nem sequer possuíam escola
de geometria. O termo era grego para eles. Sua ciência era o ofício
de corretor e a usura.
Deparam-se em seus livros algumas idéias obscuras, incoerentes, dignas
em tudo por tudo de um povo bárbaro, sobre a estrutura do céu.
Seu primeiro céu era o ar. O firmamento, sólido e de gelo, sustinha
as águas superiores, que ao tempo do dilúvio vazaram desse reservatório
por portas, esclusas e cataratas.
Acima do firmamento ou das águas superiores estava o terceiro céu
ou empíreo, para onde foi arrebatado S. Paulo. Formava o firmamento
uma espécie de meia abóbada continente da Terra. O Sol não
girava em torno da Terra porque sequer concebiam que a terra fosse redonda.
Chegando ao ocidente, voltava ao oriente por caminho desconhecido. E se não
se via era em virtude de que, como disse o barão de Foeneste, desandava
de noite.
Todas essas fantasias, adotaram-nas os hebreus dos outros povos. Considerava
o céu a maioria das nações, tirante a escola dos caldeus,
como um sólido. A Terra, fixa e imóvel, era mais longa um grande
terço de oriente a ocidente que de meio dia a norte. Daí as
expressões longitude e latitude, por nós perfilhadas. Claro
que, desta forma, era impossível haver antípodas. Sto. Agostinho
trata a idéia de antípodas de absurdo, e diz expressamente Lactâncio:
“Haverá indivíduos tão estúpidos a ponto
de crerem que possa haver homens de cabeça para baixo?”
Pergunta S. Crisóstomo em sua décima quarta homilia: “Onde
estão os que pretendem que os céus sejam imóveis e de
forma circular?”
Diz ainda Lactâncio no livro terceiro das Instituições:
“Poderia demonstrar-vos com uma enfiada de argumentos que é impossível
que o céu circunde a Terra”
Que diga quanto quiser o autor do Espetáculo da Natureza terem sido
Lactâncio e S. Crisóstomo grandes filósofos. Responder-lhe-eis
terem sido grandes santos e que para tanto não é indispensável
ser bom astrônomo. Acreditá-los-eis no céu: mas força
é confessardes que ignorais em que ponto precisamente.
CHINA (DA)
Vamos à China a procura de terra, como se nos faltasse. Tecidos,
como se de tecidos carecêssemos. Certa erva para infundir n’água,
como se nossos climas não produzissem símplices. Em paga timbramos
em querer converter os chineses. Zelo plausibilíssimo. Mas nem por
isso precisamos contestar sua antigüidade e lançar-lhes a tacha
de idólatras. Que diríeis de um capuchinho que, depois de generosamente
acolhido pelos Montmorency em um de seus castelos, quisesse persuadi-los de
que são nobres feitos da noite para o dia, como os secretários
do rei, e os acusasse de idólatras por encontrar no castelo duas ou
três estátuas de condestáveis a quem os Montmorency votassem
profundo respeito?
Proferiu certa vez o famoso Wolf, catedrático de matemáticas
na universidade de Halle, um magnífico discurso em louvor da filosofia,
chinesa. Elogiou a essa milenária. estirpe de homens – diferentes
de nós pela barba, pelos olhos, pelo nariz, pelas orelhas e pelo raciocínio
– o adorarem um Deus supremo e amarem a virtude Rendia essa justiça
aos imperadores da China, aos colao, aos tribunais, às letras. A justiça
que se rende aos bonzos é um pouco diferente.
Wolf atraía a Halle um milheiro de estudantes de todas as nações.
Havia na mesma universidade um professor de teologia – atendia ao nome
de Lange – que não atraía ninguém. Este homem,
desesperado por gelar de frio sozinho no locutório, resolveu perder
o professor de matemáticas. Macaqueando os de sua igualha, acusou-o
de não crer em Deus.
Pretendiam alguns escritores europeus que nunca haviam estado na China que
o governo de Pequim era ateu. Wolf elogiara Pequim. Logo, Wolf era ateu. Melhores
silogismos nunca souberam forjar a inveja e o ódio. Corroborado por
uma cabala e um protetor, achou o rei de Inglaterra conclusivo o argumento
de Lange e propôs ao matemático um dilema formal: deixar Halle
em vinte e quatro horas ou ser pendurado – Como tinha e quisesse conservar
a cabeça no lugar, Wolf escolheu o primeiro alvitre. Sua retirada subtraiu
ao rei duzentos ou trezentos mil escudos anuais, que era quanto fazia entrar
no reino esse filósofo pela afluência de discípulos.
Serve este exemplo para mostrar aos soberanos que nem sempre é conveniente
dar ouvidos à calúnia e sacrificar um grande homem à
inveja de um imbecil.
Voltemos à China.
Como é que nos atrevemos, nós, cá do fim do Ocidente,
a disputar encarniçadamente e com torrentes de injúrias por
deslindar se houve ou não catorze príncipes na China antes do
imperador Fo-hi, e se Fo-hi viveu a três mil ou dois mil e novecentos
anos antes da era vulgar? Engraçadíssimo que dois irlandeses
se pusessem a brigar em Dublin por saber quem foi, no século XII, o
possessor das terras que hoje me pertencem. Não é evidente que
deveriam deixá-lo a mim, que tenho os arquivos em mãos?
O mesmo, penso eu, é o caso dos primeiros imperadores da China: cumpre
recorrer aos tribunais do país
Agatanhai-vos quanto vos aprouver por amor dos catorze primeiros príncipes
que reinaram antes de Fo-hi. Não conseguirão provar vossos bate-bocas
mais que já então era a China densamente povoada e vivia sob
o império da lei. Agora pergunto-vos: não supõe prodigiosa
antigüidade uma nação sedimentada, com leis e príncipes?
Pensai em quanto tempo é necessário para que singular concurso
de circunstâncias leve a descobrir o ferro nas minas, se empregue na
agricultura e se inventem as artes.
Os que fazem filhos a penadas imaginaram um cálculo interessantíssimo.
Por uma suputação do arco da velha, dá o jesuíta
Pétau à terra, duzentos e oitenta e cinco anos após o
dilúvio, população cem vezes maior do que não
ousamos atribuir-lhe hoje. Menos cômicos não são os cálculos
dos Cumberland e Whiston. Não tinham esses ingênuos senão
que consultar os registros das nossas colônias na América para
se desencantarem. Ficariam sabendo quão pouco se multiplica o gênero
humano, e que não raro diminui em vez de aumentar.
Deixemos, pois, nós que somos de ontem, nós descendentes dos
celtas, nós que mal acabamos de surribar as florestas de nosso selvagem
habitáculo, deixemos os chineses e hindus desfrutarem em paz de seu
maravilhoso clima e de sua antigüidade. Sobretudo demos de mão
a essa história de xingar de idólatras o imperador da China
e o subabe do Decã.
Não é preciso, todavia, ser fanático do mérito
chinês É verdade ser a constituição desse império
a melhor do mundo, a única fundada no poder paternal (o que não
obsta que os mandarins não vivam a espancar os filhos), a única
na qual é punido o governador de província que ao deixar o cargo
não seja aclamado pelo povo. A única que instituiu prêmios
à virtude, de passo que em todas as outras nações as
leis se limitam a castigar o crime. A única que impôs suas leis
aos próprios vencedores, enquanto nós ainda vivemos sujeitos
aos costumes dos borgúndios, francos e godos que nos avassalaram. Deve-se
reconhecer, todavia, ser o vulgacho governado por bonzos tão canalha
quanto o nosso. Que, como nós, não perdem ocasião de
escorchar o estrangeiro Que nas ciências nos caranguejam a reboque com
dois séculos de atraso. Que como a nós gafa-os sem conto de
preconceitos ridículos. Que acreditam, como por muito tempo cremos,
em talismãs e na astrologia judiciária.
Confessemos ainda que ficaram queixicaídos ante o nosso termômetro,
ante o costume de gelarmos licores com salitre e ante todas as experiências
de Torricelli e Otto de Guericke, exatamente como o ficamos, quando presenciamos
pela primeira vez a esses brincos da física. Que seus médicos
não curam melhor que os nossos as doenças mortais e que, tal
qual como aqui, na China as moléstias triviais são relegadas
aos cuidados exclusivos da natureza. Nada disso impede, porém, que
há quatro mil anos, quando sequer sabíamos ler, já estivessem
os chins de posse de todas as coisas essencialmente úteis de que hoje
fazemos alarde.
CIRCUNCISÃO
Ao narrar o que lhe disseram os bárbaros cujos países viajou,
Heródoto, como a maioria dos nossos viajores, não nos diz mais
que tolices. Não devemos dar-lhe crédito, igualmente, quando
fala da aventura de Giges e Candolo, de Árion montado num delfim, do
oráculo consultado para saber o que fazia Creso, o qual respondeu que
ele estava cozendo uma tartaruga numa panela tampada, do cavalo de Dario que,
tendo sido o primeiro em nitrir, proclamou seu dono rei, e de cem outras fábulas
próprias para divertir crianças e ser compiladas por retóricos.
Quando, porém, fala do que viu, dos costumes dos povos que estudou,
das, antigüidades que submeteu a exame, aí sim dirige-se a gente
grande.
“Quero crer” – diz no livro Euterpe – “que
os habitantes da Cólchida sejam originários do Egito. Julgo-o
mais por mim mesmo que de outiva, porque verifiquei ser mais viva a recordação
dos antigos egípcios na Cólchida que no Egito a lembrança
dos velhos costumes de Colchos.
“Pretendia esse povo praieiro do Ponto Euxino ser uma colônia
fundada por Sesostris. Quanto a mim, já o conjeturava, não somente
por serem adustos e terem os cabelos frisados, mas porque os povos da Cólchida,
Egito e Etiópia são os únicos na terra que sempre praticaram
a circuncisão. Quanto aos fenícios e aos habitantes da Palestina,
confessam ter copiado tal prática aos egípcios. Da mesma forma
os sírios, que hoje estanciam às abas do Termódon e da
Parténia, e seus vizinhos mácrons reconhecem não haver
muito tempo que se conformaram a esse costume egípcio. É esse
até um dos principais atestados de sua ascendência. egipcíaca.
“Quanto à Etiópia e ao Egito, como a circuncisão
é antiquíssima tanto num como noutro, não sei qual dos
dois tenha importado essa cerimônia. O mais provável, contudo,
é terem-na recebido os etíopes dos egípcios. Assim como,
contrariamente, desterraram os fenícios o uso de circuncidar as crianças
recém nascidas desde que se intensificou seu comércio com os
gregos.”
É evidente, de acordo com esse passo de Heródoto, que muitos
foram os povos que receberam a circuncisão do Egito. Nenhum, porém,
jamais pretendeu tê-la importado dos judeus. A quem atribuir então
a origem desta prática: a uma nação de que confessam
havê-la perfilhado cinco ou seis outras, ou a uma nação
muito menos poderosa, menos comerciante, menos guerreira, encafurnada num
canto da Arábia Pétrea, que nunca comunicou a povo nenhum o
mais insignificante de seus costumes?
Dizem os judeus ter sido outrora caritativamente acolhidos pelos egípcios.
Não é muito verossímil haver o povo ínfimo imitado
um uso do grande povo? Não é natural terem os judeus adotado
um ou outro costume de seus senhores?
Conta Clemente de Alexandria que, viajando o Egito, Pitágoras foi
obrigado a deixar circuncidar-se para ser admitido em seus mistérios.
Quer dizer que era absolutamente imprescindível ser circunciso para
ingressar no sacerdócio egípcio. Tal sacerdócio já
existia quando José foi dar com os costados no país das pirâmides.
Antiquíssimo era o governo, e as cerimônias se observavam com
a mais escrupulosa exatidão.
Confessam os judeus ter permanecido duzentos e cinco anos no Egito. E dizem
não haver praticado a circuncisão nesse espaço de tempo.
Claro é por conseguinte que os egípcios não poderiam
ter-lhes copiado essa prática enquanto os tiveram como hóspedes.
Te-lo-iam feito posteriormente, depois de os judeus lhes haverem roubado todos
os vasos que lhes tinham sido emprestados e se rasparem a sete pés
para o deserto levando consigo o fruto do roubo, segundo seu próprio
testemunho? Adotará um senhor o selo da religião de um escravo
que o roubou e fincou pé no mundo? Não o admite a natureza humana.
Diz-se no livro de Josué que os judeus foram circuncidados nos desertos:
“Eu vos livrei do que constituía o vosso opróbrio entre
os egípcios”. Ora, qual podia ser esse opróbrio para uma
nação encravada entre a Fenícia, Arábia e Egito,
senão o que os tornava desprezíveis aos olhos destes três
povos? Como livrá-los desse opróbrio? Livrando-os de um pouco
de prepúcio. Não é o sentido natural do trecho a cima
citado?
Diz o Gênesis que Abraão foi circunciso. Mas Abraão
esteve no Egito, que era havia muito reino florescente, governado por poderoso
rei. Nada impede que nesse reino tão antigo fosse a circuncisão
praticada desde muito tempo antes que se formasse a nação judaica.
Demais a circuncisão de Abraão foi um caso insulado. Só
depois de Josué foi que se vulgou entre seus pósteros esse sacramento.
Ora, antes de Josué os israelitas aprenderam, como eles mesmos confessam,
muitos costumes dos egípcios. Imitaram-nos em não poucos sacrifícios,
cerimônias, como os jejuns às vésperas das festas de Isis,
as abluções, o costume de rapar a cabeça dos padres,
o incenso, o candelabro, o sacrifício da vaca ruça, a purificação
com hissopo, a abstinência da carne de porco, a aversão aos utensílios
de cozinha dos estrangeiros, tudo atestando que o diminuto povo hebreu, mau
grado sua antipatia à grande nação egípcia, retivera
infinidade de usos de seus ex-senhores. O bode Hazazel, que enviavam ao deserto
carregado dos pecados do povo, era visível imitação de
uma prática egípcia. Os próprios rabinos convêm
em que a palavra Hazazel não é hebraica. Nada obsta portanto
que os hebreu hajam imitado os egípcios na circuncisão, como
o fizeram seus vizinhos árabes.
Nada de extraordinário há em que Deus, que santificou o batismo,
tão antigo entre os asiáticos, santificasse também a
circuncisão, não menos antiga entre os africanos. Já
dissemos ser senhor de conferir suas graças aos sinais que se dignar
eleger.
Demais de tudo, desde que, sob Josué, os judeus foram circuncisos,
mantiveram essa prática até nossos dias. O mesmo fizeram os
árabes. Os egípcios, porém, que a princípio circuncidavam
os jovens de ambos os sexos, com o tempo deixaram de submeter as moças
a tal operação, terminando por restringi-la aos sacerdotes,
astrólogos e profetas. É o que nos ensinam Clemente de Alexandria
e Orígenes. Efetivamente, nunca se ouviu dizer que os Tolemeus tivessem
sido circuncidados.
Os autores latinos, que tratam os judeus com tão profundo desprezo
que lhes chamam curtas Apella, por derisão, credat Judaeus Appella,
curti Judaei, não dão epítetos tais aos egípcios.
Hoje a circuncisão é de regra no Egito, mas por outra razão:
porque o mafomismo adotou a antiga circuncisão da Arábia.
Foi essa circuncisão árabe que passou à Etiópia,
onde ainda se circuncidam os jovens de ambos os sexos.
Não há negar ser à primeira vista bem estranha a cerimônia
da circuncisão. Mas note-se que em todos os tempos os sacerdotes do
Oriente se consagraram a suas divindades por marcas particulares. Entre os
padres de Baco o sinal era uma folha de hera gravada a buril. Diz Luciano
que os devotos da deusa Tais imprimiam sinais no pulso e pescoço. Os
sacerdotes de Cibele faziam-se eunucos.
É muito provável que os egípcios, que veneravam o instrumento
da geração e carregavam-lhe a imagem em suas procissões,
tivessem a idéia de oferecer a Isis e Osiris, deuses que presidiam
a todos os fenômenos de reprodução, uma partícula
do membro por que quiseram essas divindades que o gênero humano se perpetuasse.
São os antigos costumes orientais tão diferentes dos nossos
que nada parecerá extraordinário a quem quer que tenha um pouco
de leitura. Um parisiense fica admirado ao saber que os hotentotes cortam
aos filhos um dos testículos. Os hotentotes ficariam admiradíssimos
se soubessem que os parisienses conservam os dois.
CONVULSÕES
Dançou-se pelo ano de 1724 no cemitério de Saint-Médard.
Deram-se no local um sem número de milagres, de que nos dá amostra
uma canção da duquesa de Maine:
Um engraxate à real,
do pé esquerdo aleijado,
teve por graça especial
ser do direito privado
Como é sabido, as convulsões miraculosas continuaram até
que foi posto um guarda no cemitério.
Em nome do rei veda-se entrar
doravante a Deus neste lugar.
Os jesuítas, como se sabe, já não podendo fazer de
tais milagres desde que seu Xavier esgotara as graças da Companhia
ressuscitando nove mortos contados a dedo, lembraram-se, para balançar
o crédito dos jansenistas, de estampar uma imagem de Jesus Cristo vestido
de jesuíta. Como ainda é sabido, escreveu um burlão do
partido jansenista em baixo da estampa:
Que jesuítas manhosos!
De medo que vos amássemos,
estes monges engenhosos
vos vestiram à sua imagem.
Os jansenistas, a fim de melhor provar que jamais Cristo poderia tomar o
hábito de jesuíta, puseram Paris de pernas para o ar e carrearam
o mundo para sua banda. O conselheiro parlamentar Carré de Montgerou
apresentou ao rei um relatório in-4 de todos esses milagres, atestados
por milhares de testemunhas. Foi metido, como de direito, sob grades, onde
se tratou de restabelecer-lhe o cérebro pelo regime. Mas a verdade
sobrepaira a todas as perseguições: os milagres se perpetuaram
durante trinta anos a fio, sem solução de continuidade. Chamava-se
sóror Rosa, sóror Iluminada, sóror Prometida, sóror
Confita: açoitavam-nas até o sangue, e no dia seguinte estavam
como se nada houvesse acontecido. Vergastavam-lhe o estômago bem encouraçado,
bem estofado, sem sequer sentirem. Punham-nas ao fogo, o rosto emplastado
de pomadas, e nada de queimar. Enfim, como todas as artes se aperfeiçoam,
terminou-se por fincar-lhes espadas nas carnes e por crucificá-las.
Chegou-se até a crucificar um teólogo famoso(24), tudo para
convencer o mundo do ridículo de certa bula, o que se poderia ter feito
sem tanto custo. Nesse em meio jesuítas e jansenistas uniram-se contra
o Espírito dos leis, e contra… e contra… e contra …e contra…
E temos o ousio, depois de tudo isso, de escarnicar dos lapões, dos
samoiedas e dos negros!
CORPO
Assim como não sabemos o que seja espírito, ignoramos o que
seja corpo. Percebemo-lhe apenas propriedades. Mas que é o ente em
que residem tais propriedades? Tudo é corpo, dizia Demócrito
e Epicuro. Não existem corpos, contravinham os discípulos de
Zênon de Eléia.
Berkeley, bispo de Cloyne, foi o último que, por cem sofismas capciosos,
pretendeu provar que os corpos não existem. Eles não têm,
disse, nem cor, nem odor, nem calor. Tudo isso está em vossas sensações
e não nos objetos. O Sr. Berkeley podia ter-se poupado ao trabalho
de demonstrar semelhante verdade: conhecemo-la de sobejo. Mas daí passa
à extensão, à solidez, que são essências
do corpo, e julga provar não haver extensão num retalho de pano
verde porque em verdade o pano não é verde. A sensação
do verde acha-se tão somente em vós: por conseguinte a impressão
de extensão não está também senão em vós.
Após destruir a extensão, conclui que a solidez cai consequentemente
por si mesma, e que portanto nada existe além das nossas idéias.
De sorte que, segundo esse doutor, dez mil homens trucidados por dez mil balas
de canhão não passam em suma de dez mil apreensões da
nossa alma.
Só mesmo o sr. bispo de Cloyne seria capaz de cometer tamanho ridículo.
Presume demonstrar que não existe extensão porque com lunetas
um corpo lhe parece quatro vezes maior que a olho desarmado, e quatro vezes
menor com auxílio de outro vidro. Daí concluir que, não
podendo um corpo ter quatro, dezesseis e um só pé de extensão
ao mesmo tempo, tal extensão não existe. Logo nada existe. Bastava-lhe
medi-lo e dizer: não importa o tamanho que me pareça ter, este
corpo tem tantos centímetros.
Muito fácil lhe seria ver que o caso da extensão e da solidez
não é o mesmo dos sons, das cores, dos sabores e dos odores.
Claro que estes são impressões subjetivas em nós excitadas
pela configuração das partes. A extensão, porém,
não é sensação. Se se consumir este lenho, deixarei
de sentir calor. Não sendo ferido o ar, não ouvirei. Estiole-se
esta rosa e já não lhe sentirei o perfume. Independentemente
de mim, entretanto, este lenho, este ar, esta rosa têm extensão.
Nem merece refutação o paradoxo de Berkeley.
Cai a talho saber o que o levara a semelhante paradoxo. Há muito
tempo tive com ele algumas palestras. Disse-me que a origem de sua opinião
era o não se poder conceber o que seja o sujeito da extensão.
Efetivamente ele triunfa em seu livro quando pergunta a Hilas o que é
esse sujeito, esse substrato, essa substância. “É o corpo
estendido” – responde Hilas. Então o bispo, sob o nome
de Filonous, põe-se a escarnecê-lo. E o pobre Filonous, percebendo
ter dito que a extensão é sujeito da extensão, e que
cometeu uma rata, fica atalhado e confessa nada compreender, que não
existe corpo nem tão pouco mundo material, que só existe o mundo
intelectual. Bastava Hilas dizer a Filonous: Nós nada sabemos sobre
a essência desse sujeito, dessa substância estendida, sólida,
divisível, móvel, figurada, etc. Não a conheço
mais que o sujeito que pensa, que sente e que quer. Mas sua existência
é tão inegável como a deste, pois tem propriedades essenciais
de que não há despojá-lo.
Somos como a maior parte das damas de Paris, que se regalam em régios
banquetes sem saber o que entra nos acepipes. Semelhantemente, desfrutamos
dos.. corpos sem saber de que se compõem. De que é feito o corpo?
De partes, que por sua vez se resolvem em outras partes. Que são as
últimas partículas? Sempre corpos. Dividireis eternamente e
jamais passareis disso.
Afinal um sutil filósofo, notando que um painel se compõe
de ingredientes de natureza diversa, e uma casa de materiais dos quais nenhum
é casa, imaginou (de maneira um pouco outra) serem os corpos constituídos
de infinidade de seres infinitamente pequenos que não são corpos
– as mônadas. Tal sistema não deixa de possuir certa exeqüibilidade,
e se fosse revelado eu o creria até muito possível. Todos esses
entes ínfimos seriam pontos matemáticos, espécies de
almas que não esperariam mais que uma capa para se vestirem: seria
uma metempsicose contínua. Uma mônada estaria ora numa baleia,
ora numa árvore, ora no corpo de um pelotiqueiro. É um sistema
e tanto. Tenho-o no mesmo conceito que a declinação dos átomos,
as formas substanciais, a graça versátil e os vampiros de dom
Calmet.
CRISTIANISMO
Pesquisas históricas. – Não poucos eruditos manifestaram
sua surpresa em não se lhes deparar no historiador José o menor
traço a respeito de Jesus Cristo. Porque todos são acordes hoje
em que o breve trecho que lhe dedica o historiador fariseu em sua História
foi interpolado. No entanto o pai de José devia ter sido testemunha
de todos os milagres de Jesus. José era da casta sacerdotal, parente
da rainha Mariana, esposa de Herodes. Esparrama-se nas mais ociosas minudências
sobre os mais corriqueiros atos desse príncipe, e contudo não
diz palavra sobre a vida ou morte de Jesus. Demais esse historiador, que não
encapa nenhuma das crueldades de Herodes, cala o morticínio de todas
as crianças por ele ordenado atento à nova de que nascera um
rei judeu. Conta o calendário grego catorze mil crianças degoladas
nessa ocasião. É o mais abominável dos crimes de todos
os soberanos. Não tem símile na história da civilização.
A acontecimento tão singular quanto execrável, entretanto, não
faz a mais leve referência o melhor escritor que em todos os tempos
possuíram os judeus, o único prezado por gregos e romanos. Tão
pouco regista ele o aparecimento da nova estrela que teria acendido no céu
após o nascimento do Redentor, fenômeno ruidoso que não
devia escapar a um historiador esclarecido como José. Mantém
silêncio ainda sobre as trevas que, à morte do Salvador, com
o sol a pino cobriram toda a terra por espaço de três horas,
e sobre a grande quantidade de túmulos que então se abriram
e a multidão dos justos ressurretos.
Não cessam os eruditos de manifestar sua surpresa de ver que nenhum
historiador romano regista semelhantes prodígios, consumados sob o
reinado de Tibério, aos olhos de uma guarnição e de um
governador romano, que devia ter enviado ao imperador e ao senado relatório
circunstanciado do mais miraculoso evento que ouvidos humanos ouviram contar.
A própria Roma devia ter-se imerso durante três horas em espessas
trevas. Deviam assinalar tamanho prodígio os fastos de Roma e de todas
as nações. Deus não quis fossem tais coisas divinas escritas
por mãos profanas.
Outras dificuldades empacham os eruditos na história dos Evangelhos.
Observam eles que em S. Mateus Jesus diz aos escribas e aos fariseus que sobre
eles recairia todo o sangue inocente derramado na terra, desde Abel até
Zacarias, filho de Baraque, por eles assassinado no templo. Ora, a história
dos hebreus não menciona, afirmam os eruditos, nenhum Zacarias morto
no templo, nem antes nem depois do advento do Messias. O único historiador
a registar o fato é José, livro 4, capítulo 19, ao falar
do sítio de Jerusalém. Daí suspeitaram eles ter o Evangelho
segundo S. Mateus sido escrito depois da tomada de Jerusalém por Tito.
Mas todas as dúvidas e objeções dessa espécie
se dirimem desde que se considere a infinita diversão que forçosamente
há de haver entre os livros divinamente inspirados e os livros dos
homens. Aprouve a Deus envolver numa nuvem tão respeitável quanto
obscura o seu nascimento, sua vida e sua morte. Em tudo diferem seus métodos
dos nossos.
Outro ponto que tem quebrado a cabeça aos literatos é a diferença
das duas genealogias de Cristo. S. Mateus dá por pai a José,
Jacó, a Jacó, Matã, a Matã, Eleazar. S. Lucas,
ao contrário, diz que José era filho de Heli, Heli de Matate,
Matate de Leví, Leví de Jana, etc.
Engasga-os ainda a suposição de Jesus não ser filho
de José, mas de Maria. Atalham-nos também certas dúvidas
quanto aos milagres do nosso Redentor, atentos os escritos de Sto. Agostinho,
Sto. Hilário e outros, que atribuíram ao relato de tais milagres
sentido místico, alegórico. Exemplos: a figueira amaldiçoada
e secada para não dar frutos, quando não era tempo de figo.
Os demônios enviados no corpo de porcos, num país onde não
havia porcos. A água transformada em vinho ao fim de um repasto, quando
os comensais já se achavam excitados. Todas essas críticas dos
doutos, porém, confunde-as a fé, que com isso não faz
senão aviventar-se. Outro não é o escopo deste artigo
senão rastear o fio histórico e dar uma idéia tanto quanto
possível exata dos fatos sobre que ninguém discute.
Primeiramente, Jesus nasceu sob a lei mosaica, segundo esta lei foi circuncidado,
dela cumpriu todos os preceitos e celebrou todas as festas. Só pregou
moral. Não revelou o mistério da própria encarnação
nem disse aos judeus haver nascido de uma virgem. Recebeu a bênção
de João nas águas do rio Jordão, cerimônia a que
muitos judeus se submetiam, conquanto ele próprio jamais tenha batizado
ninguém. Não falou dos sete sacramentos – Humanamente
não se colocou em nenhuma hierarquia eclesiástica. Ocultou a
seus contemporâneos ser filho de Deus, eternamente gerado, consubstancial
a Deus, e que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho. Não
disse que sua pessoa se compunha de duas naturezas e de duas vontades. Quis
que esses grandes mistérios fossem revelados aos homens no decorrer
dos tempos por aqueles que haviam de ser esclarecidos pelas luzes do Espírito
Santo. Vivo, em nada se arredou da lei de seus pais. Não mostrou aos
homens mais que um justo grato a Deus, perseguido pelos invejosos e condenado
à morte por magistrados prevenidos. Quis que sua Santa Igreja, por
ele fundada, fizesse o resto.
Fala José no capítulo 12 de sua História de uma seita
de judeus rigoristas, recentemente fundada por um tal Judas galileu –
“Eles desprezam” – diz – “os males terrenos,
triunfando dos tormentos pela constância. Preferem, pela glória,
a morte à vida. Optaram sofrer ferro e fogo, deixar que lhes quebrassem
os ossos a pronunciar a menor palavra contra seu legislador ou comer carnes
vedadas”.
O retrato parece quadrar aos judaístas e não aos essênios.
Palavras de José: “Judas foi autor de uma nova seita, de todo
ponto diversa das três outras – de saduceus, fariseus e essênios”.
A breve trecho: “São judeus de nacionalidade. Vivem unidos entre
si, e consideram vício a volúpia”. Denota o sentido natural
da frase ser dos judaístas que fala o autor.
Seja como for, conheceram-se esses judaístas antes que os discípulos
de Cristo constituíssem partido considerável no mundo.
Os terapeutas eram uma sociedade diferente de essênios e judaístas.
Tiravam aos ginossofistas da Índia e aos bramas. “Anima-os”
– atesta Fílon – “um ímpeto de amor celeste
que os transporta ao entusiasmo dos bacantes e coribantes e guinda-os ao estado
de contemplação a que aspiram. Esta seita nasceu em Alexandria,
então inçada de judeus, e alastrou ferazmente pelo Egito”.
Os discípulos de João Batista também proliferaram um
pouco no Egito, mas principalmente na Síria e Arábia. Medraram
outrossim na Ásia Menor. Dizem os Atos dos Apóstolos (capítulo
19) haver Paulo encontrado muitos deles em Éfeso, aos quais indagou:
“— Recebestes o Espírito Santo
— Nem sequer ouvimos falar que houvesse um Espírito Santo.
— Que batismo recebestes
— O batismo de João.”
Existiam, nos primeiros anos que se seguiram à morte de Cristo, sete
sociedades ou seitas distintas entre os judeus: fariseus, saduceus, essênios,
judaístas, terapeutas, discípulos de João e discípulos
de Cristo, cujo diminuto rebanho Deus conduzia a sendas desconhecidas da sabedoria
humana.
Foram os fiéis apelidados cristãos em Antióquia, por
beira do ano 60 da era vulgar. No império romano, como adiante veremos,
foram conhecidos por outros nomes De primeiro não se distinguiam senão
pela denominação de irmãos, santos ou fiéis. Deus,
que baixara à terra a fim de ser exemplo de humildade e pobreza, dera
assim toscos alicerces à sua igreja e guiara-a no mesmo estado de humilhação
em que lhe aprouvera nascer. Foram os primeiros cristãos homens obscuros,
trabalhadores manuais. Diz o apóstolo Paulo que ganhava a vida construindo
tendas. S. Pedro ressuscitou a costureira Dorcas, que fazia os hábitos
dos irmãos. Os fiéis reuniam-se em Jope, em casa de um curtidor
de nome Simão, reza o capítulo 9 dos Atos dos Apóstolos.
Secretamente os fiéis se infiltraram na Grécia, e de lá
alguns conseguiram transladar-se a Roma de contrabando com os judeus, a quem
os romanos permitiam o funcionamento de uma sinagoga. Não se lhes separaram
logo. Observavam a circuncisão e, como alhures já se advertiu,
os quinze primeiros bispos de Jerusalém foram todos circuncidados.
Ao tomar consigo Timóteo, que era filho de pai gentio, o apóstolo
Paulo circuncidou-o com as próprias mãos no lugarejo de Listra.
Tito, porém, outro discípulo seu, não se deixou circuncidar.
Mantiveram-se os irmãos discípulos de Cristo em união
com os judeus até que Paulo foi perseguido em Jerusalém por
levar estrangeiros ao templo. Acusavam-no os judeus de querer substituir a
lei mosaica por Jesus Cristo. Foi para expungir-se dessa acusação
que o apóstolo Jaques propôs ao apóstolo Paulo fazer-se
rapar a cabeça e purificar-se no templo com quatro judeus. que haviam
feito voto de se barbearem. “Tomai-os convosco” – disse-lhe
Jaques (capítulo 21, Atos dos Apóstolos). – “Purificai-vos
com eles, e que todos saibam ser falso o que de vós se diz e que continuais
a observar a lei de Moisés”.
Paulo foi criminado também de impiedade e heresia, e seu processo
durou longo tempo. Evidencia-se porém das próprias acusações
contra ele assacadas que ele viera a Jerusalém para observar os ritos
judaicos.
São palavras textuais de Paulo a Festo (capítulo 25 dos Atos):
“Não pequei nem contra a lei judaica nem contra o templo”.
Os apóstolos anunciavam Cristo como judeu, observador da lei judaica,
enviado de Deus para fazê-la observar.
“A circuncisão é útil” – diz o apóstolo
Paulo (capítulo 2, Epístolas aos Romanos) – “se
observais a lei. Mas se a violais vossa circuncisão torna-se em prepúcio.
Se o incircunciso observa a lei, é como se fosse circunciso. Verdadeiro
judeu é o que o é interiormente”.
Ao falar de Jesus em suas Epístolas, não revela esse apóstolo
o mistério inefável da consubstancialidade do Crucificado com
Deus. “Por ele fomos salvos” – diz (capítulo 5, Epístolas
aos Romanos) “da cólera de Deus – Pela graça concedida
a um só homem – Jesus Cristo – derramou-se sobre nós
o dom divino. Pelo pecado de um só homem, reinou a morte. Por um só
homem – Jesus – os justos reinarão.” E no capítulo
8: “Nós, os herdeiros de Deus e os co-herdeiros de Cristo.”
No capítulo 16: “A Deus, que é o sábio único,
honra e glória por Jesus Cristo. -. – Vós estais em Jesus,
e Jesus está em Deus” (1a. Aos Coríntios, cap. 3). E (ibd.,
cap. 15, v. 27): “A ele tudo está sujeito, que a ele Deus tudo
sujeitou”.
Teve-se certa dificuldade em explicar este lanço da Epístola
aos Filipinos: “Nada façais por glória vã. Crede
mutuamente pela humildade que os outros vos são superiores. Abrigai
os mesmos sentimentos que Jesus, que, achando-se em missão de Deus,
nem por isso cogitou usurpá-lo a ele se igualando”. Penetra-o
e esclarece-lhe o verdadeiro sentido uma carta que nos legaram as igrejas
de Viena e Lião, escrita no ano 117, precioso monumento da antigüidade.
Louva-se nela a modéstia de alguns fiéis: “Eles não
quiseram” – reza – “aureolar-se do título de
mártires (por algumas tribulações) a exemplo de Jesus,
que, em representação divina, não cogitou usurpar a qualidade
de par de Deus”. Assim também diz Orígenes em seu Comentário
sobre João: “Mais irradiante foi a grandeza de Jesus humilhando-se
do que se tivesse usurpado a paridade com Deus”. Efetivamente, seria
visível contra senso a interpretação contrária.
Que significaria: “Crede os outros superiores a vós. Imitai Jesus,
que não cogitou ser usurpação igualar-se a Deus”?
Seria contradizer-se grosseiramente, seria dar um exemplo de grandeza por
um exemplo de modéstia. Seria pecar contra o senso comum.
Assim fundava a sabedoria dos apóstolos a igreja nascente. Sabedoria
que a disputa sobrevinda entre os apóstolos Pedro, Jaques e João
de um lado e Paulo de outro não conseguiu turbar. Essa disputa sobreveio
em Antióquia. O apóstolo Pedro, também chamado Cefas,
ou ainda Simão Barjone, comia com os gentios conversos e com eles não
observava as cerimônias da lei nem a distinção das carnes.
Comiam, ele, Barnabé e outros discípulos, indiferentemente carne
de porco, carnes afogadas de animais que tinham o pé fendido e que
não ruminavam. Havendo chegado, entretanto, numerosos judeus cristãos,
com eles S. Pedro retornou à abstinência das carnes proibidas
e às cerimônias da lei mosaica.
A medida era prudente. Ele não queria escandalizar os judeus cristãos
seus companheiros. Porém Paulo levantou-se contra ele com um pouco
de dureza. “Eu lhe resistia” – disse-lhe no rosto –
“porque era condenável”. (Epístola aos Gálatas,
cap. 2).
Essa querela parece tanto mais extraordinária da parte de S. Paulo
quanto a princípio ele fora perseguidor, o que o devia tornar mais
modesto, fizera sacrifícios no templo de Jerusalém, circuncidara
seu discípulo Timóteo e cumprira os ritos judeus que agora censurava
em Cefas. Pretende S. Jerônimo que essa disputa entre Paulo e Cefas
era de encomenda. Diz em sua primeira Homilia, tomo 2, que eles fizeram como
dois advogados que, para ter mais autoridade sobre os clientes, se escandecem
e se aferrotoam no tribunal. E sugere que, pretendendo Pedro Cefas pregar
aos judeus e Paulo aos gentios; simularam querelar, Paulo para carear os gentios,
Pedro para conquistar os judeus. Sto. Agostinho, porém, não
está pelos autos: “Amofina-me” – escreve na Epístola
a Jerônimo – “que um tão grande homem se torne patrono
do embuste, patronum mendacii”.
De mais a mais, se Pedro ia pregar aos judeus judaizantes e Paulo aos estrangeiros,
é muito provável que Pedro não haja vindo a Roma. Nenhuma
menção fazem dessa viagem os Atos dos Apóstolos.
Seja como for, foi por volta do ano 60 da nossa era que os cristãos
começaram a desquitar-se da comunhão judaica, o que tantas encrencas
e perseguições lhes custou de parte das sinagogas de Roma, Grécia,
Egito e Ásia. Acusaram-nos seus irmãos judeus de irreligiosidade,
ateísmo e excomungavam-nos três vezes nos dias de sabate. Mas
Deus protegeu-os em meio ao alude das perseguições.
Pouco a pouco proliferaram igrejas, e antes do fim do primeiro século
ultimou-se o divórcio entre judeus e cristãos. O governo romano
ignorava essa separação. Nem o senado nem os imperadores tinham
olhos para as brigas de um partido insignificante que até então
Deus conduzira na obscuridade e só insensivelmente trazia à
luz diurna.
Balancemos o estado em que a esse tempo se achava a religião do império
romano. Em quase toda a terra gozavam de crédito os mistérios
e as expiações. Imperadores, grandes e filósofos, é
verdade, não tinham a menor fé em tais mistérios. Mas
o povo, que em matéria de religião dita a lei aos grandes, impunha-lhes
a necessidade de se conformarem aparentemente com seu culto. Cumpre, para
encadeá-lo, arrastar as mesmas cadeias que ele. O próprio Cícero
iniciou-se nos mistérios de Eleusina. A concepção monoteica
era o principal dogma que se anunciava nessas festas misteriosas e magníficas.
Não há negar serem as orações e os hinos que desses
mistérios nos restam o que de mais piedoso e admirável possui
o paganismo.
O serem os cristãos também monoteístas muito lhes facilitou
a conversão dos gentios. Alguns filósofos da seita de Platão
bandearam para o cristianismo. Aí está por que foram platônicos
todos os padres da igreja dos três primeiros séculos.
O zelo inconsiderado de alguns não conseguiu opor empeços
às verdades fundamentais. Reprovou-se a S. Justino, um dos primeiros
padres, o haver dito em seu Comentário sobre Isaías que, em
reinado de mil anos sobre a terra, os santos gozariam de todos os bens sensuais.
Reputou-se-lhe crime o dizer na Apologia do Cristianismo que, tendo Deus criado
a terra, deixou-a aos cuidados dos anjos, que, enamorando-se das mulheres,
lhes fizeram filhos, que são os demônios.
Condenou-se a Lactâncio e outros padres o terem dado crédito
aos oráculos das sibilas. Pretendia ele haver a sibila Eritréia
composto estes quatro versos gregos, que traduzo à cortiça da
letra: – Com cinco pães e dois peixes – ele alimentará
cinco mil homens no deserto. – E, juntando os sobejos, – doze
cestos encherá.
Acoimou-se outrossim aos primeiros cristãos a falsa alegação
de certos versos acrósticos de uma antiga sibila, os quais começavam
todos pelas letras iniciais do nome de Jesus Cristo dispostas na mesma ordem.
Esses escrúpulos anticientíficos de alguns cristãos
não impediram a igreja de realizar os progressos que lhe reservava
Deus. Primitivamente os cristãos celebravam seus mistérios em
casas retiradas, em subterrâneos, de noite. Daí, atesta Minútio
Félix, lhes veio o apelido de lucifugaces. Fílon chamava-os
gesseanos. Nos quatro primeiros séculos foram mais comumente conhecidos
por galileus e nazarenos. Sobre todas essas denominações, todavia,
prevaleceu a de cristãos.
Nem a hierarquia nem as práticas foram estabelecidas de uma vez.
Os tempos apostólicos foram diferentes dos que se lhes seguiram. Ensina-nos
S. Paulo (1a. Aos Coríntios) que estando os irmãos retinidos
– circuncisos ou não – só podiam falar dois ou três
profetas, e se entrementes alguém tivesse uma revelação,
o profeta que tomara a palavra era obrigado a calar-se.
Sobre esse uso da igreja primitiva ainda hoje se fundam muitas comunhões
cristãs, em cujas reuniões não há hierarquia.
Inicialmente qualquer pessoa tinha o direito de falar na igreja, tirante as
mulheres. A santa missa de hoje, que se celebra de manhã, primitivamente
celebrava-se à tarde e era a ceia. Esses costumes mudaram à
proporção que a igreja se fortaleceu. Sociedade mais extensa
exigia evidentemente maior número de regulamentos, e a prudência
dos pastores soube conformar-se às diferenças de tempo e lugar.
Abonam S. Jerônimo e Eusébio que, constituídas as igrejas,
paulatinamente foram se distinguindo cinco ordens eclesiásticas: os
vigilantes. – episcopoi – de onde provêem os bispos; os
antigos da sociedade – presbyteroi – padres; os serventes ou diáconos
– diaconoi; pistoi – crentes, iniciados, isto é, os batizados,
que participavam das ceias dos ágapes; finalmente os catecúmenos
e energúmenos, candidatos ao batismo. O hábito era o mesmo para
as cinco ordens. Todas deviam manter o celibato, testemunham o livro de Tertuliano
dedicado a sua mulher e o exemplo dos apóstolos. Nos três primeiros
séculos nenhuma representação, pintada ou esculpida,
presidia a suas reuniões. Os cristãos escondiam cuidadosamente
seus livros aos gentios, não os confiando senão aos iniciados.
Nem aos catecúmenos era permitido recitar a oração dominical.
O que mais caracteristicamente distinguia os cristãos, e que veio
até nossos dias, era o poder de espantar os diabos com o sinal da cruz.
Conta Orígenes no Tratado contra Celso, número 133, que Antinous,
divinizado pelo imperador Adriano, fazia milagres no Egito por força
de encantamentos e prestígios. Acrescenta, entretanto, bastar a simples
pronunciação do nome de Jesus para os diabos deixarem o corpo
dos possessos. Tertuliano vai mais longe e dos fundos da África proclama:
“Se vossos deuses não confessarem ser diabos na presença
de um vero cristão, de bom grado vos veria derramar o sangue desse
cristão”. (Apologética, capítulo 23). Haverá
coisa mais evidente?
Efetivamente, Jesus Cristo enviou seus apóstolos a fim de correr
os demônios. Dom de expulsá-los tiveram também os judeus,
porque, quando Jesus livrou possessos e espaventou os diabos no corpo de uma
vara de porcos e operou outras curas que tais, disseram os fariseus: expulsa
os demônios pelo poder de Belzebu. – Se é por Belzebu que
eu os expulso – retrucou Jesus – por quem os expulsam vossos filhos!”
É incontestável que os judeus se gabavam desse poder. Tinham
exorcistas e exorcismos. Invocavam o nome do deus de Jacó e de Abraão.
Introduziam ervas consagradas no nariz dos demoníacos. (José
relata parte dessas cerimônias). Esse poder sobre os diabos, que os
judeus perderam, transmitiu-se aos cristãos, que também parecem
tê-lo perdido desde algum tempo.
Compreendia o poder de expulsar os demônios também o de desfazer
as operações da magia. Porque a magia esteve em voga em todos
os tempos e em todas as nações. Todos os padres da igreja a
ela se referem. Observa S. Justino (Apologética, livro 3) ser muito
comum invocar-se a alma dos mortos, tirando daí um argumento em favor
da imortalidade da alma. Lactâncio (Instituições Divinas,
livro 7) diz que “Se ousásseis negar a subsistência da
alma ao corpo, o mago vos convenceria do contrário fazendo-a aparecer”.
Ireneu, Clemente Alexandrino, Tertuliano, o bispo Cipriano, todos afirmam
a mesma coisa – Verdade é que hoje tudo mudou e que já
não existem magos nem endemoninhados. Mas certamente voltarão
à cena quando for da vontade de Deus.
Quando as sociedades cristãs se tornaram mais ou menos numerosas
e muitas se levantaram contra o culto do império romano, contra elas
agiram rigorosamente os magistrados e sobretudo as perseguiu o povo. Não
se perseguia aos judeus, que gozavam de privilégios particulares e
se encaramujavam em suas sinagogas. Permitia-se-lhes o exercício de
sua religião, como ainda o permite a Roma de hoje. Todos os cultos
do império eram tolerados, embora não os adotasse o senado.
Tendo porém os cristãos se declarado inimigos de todos esses
cultos, e sobretudo da religião do império, expuseram-se muitas
vezes a cruéis provações.
Um dos primeiros e mais célebres mártires foi Inácio,
bispo de Antióquia, condenado pelo próprio imperador Trajano,
então na Ásia, e por ordens suas transportado a Roma a fim de
ser exposto às feras. Isso num tempo em que ainda não era costume
trucidar cristãos em Roma. Ignora-se de que tenha sido acusado junto
desse imperador, afamado pela demência. Necessário era que Inácio
tivesse inimigos figadais. De qualquer forma, conta a história de seu
martírio haver-se encontrado em seu coração, gravado
em letras de ouro, o nome de Jesus Cristo. Daí apelidarem-se os cristãos
em alguns lugares teóforos, como a si próprio se chamava Inácio.
Conserva-se uma carta sua em que pede aos bispos e aos cristãos não
se oporem a seu martírio, fosse porque já então eram
os fiéis em número suficiente para impedi-lo, fosse porque os
houvesse bastante acreditados para obter-lhe a graça. Notável
é ter-se consentido que, ao ser trazido a Roma, os cristãos
desta cidade fossem recebê-lo. O que prova que se punia nele a pessoa
e não a seita.
Não foram continuadas as perseguições. Escreve Orígenes
(Tratado contra Celso, livro 3): “Poucos foram os cristãos que
morreram por sua religião. Só muito raramente se verificavam
execuções dessa natureza”.
Tantos carinhos dispensou Deus a sua igreja que, a despeito de seus desafetos,
fez que tivesse cinco concílios (congressos tolerados) no primeiro
século, dezesseis no segundo e trinta no terceiro. Por vezes tais congressos
foram proibidos, quando a falsa prudência dos magistrados temia que
degenerassem em tumultos. Poucos são os processos verbais que nos restam
de procônsules e pretores que condenaram cristãos à morte.
Só à vista desses documentos poderíamos julgar das acusações
contra eles assacadas e de seus suplícios.
Temos um fragmento de Dinís de Alexandria, no qual se relata o extrato
da chancelaria de um procônsul do Egito sob o imperador Valeriano. Ei-lo:
Introduzidos na sala de audiência Dinís, Fausto, Máximo,
Marcelo e Queremão, disse-lhes o prefeito Emiliano: “Tomastes
conhecimento, pelas palestras que convosco tive e por tudo que a respeito
tenho escrito, quão bondosos têm sido nossos príncipes
em relaç&atatilde;o a vós. Repito-o: a vós mesmos entregaram
vossa conservação e vossa saúde. Vosso destino está
em vossas mãos. Uma única coisa vos pedem, coisa que a razão
exige a toda pessoa razoável: que adoreis os deuses protetores de seu
império e renegueis a esse culto contrário à natureza
e ao bom senso”.
Respondeu Dinís: “Nem todos os homens têm os mesmos deuses.
Cada um adora os que julga verdadeiramente serem-no.”
Replicou o prefeito Emiliano: “Vejo que sois ingratos e que abusais
da bondade dos imperadores. Pois bem: não continuareis nesta cidade.
Mandá-los-ei para Cefro, nos confins da Líbia, conforme ordem
que recebí dos nossos imperadores. Não penseis reeditar lá
vossas reuniões nem orar nesses lugares a que chamais cemitérios:
tal vos é terminantemente vedado, e não o permitirei a ninguém”.
Nada mais possivelmente verdadeiro que esse processo verbal. Evidencia-se
que houve tempo em que eram proibidas as reuniões dos cristãos,
assim como entre nós se interdiz aos calvinistas congregarem-se em
Languedoc. Chegamos até, uma vez ou outra, a fazer enforcar e rodar
ministros e pregadores que promoveram congressos a despeito da lei. Na Inglaterra
e Irlanda, igualmente, proíbem-se as reuniões de católicos
romanos, e ocasiões houve em que os delinqüentes foram condenados
à morte.
Mau grado essas interdições das leis romanas, Deus inspirou
a muitos imperadores a indulgência para com os cristãos. O próprio
Diocleciano, que os ignorantes têm como perseguidor, Diocleciano, cujo
primeiro ano de reinado ainda se enevoa na idade dos mártires, foi
durante muitos anos protetor declarado do cristianismo, a ponto de numerosos
cristãos deterem dos principais cargos ao pé de sua pessoa.
Chegou a tolerar que em Nicomedia, sua residência, se elevasse uma igreja
defronte a seu palácio.
Infelizmente prevenido contra os cristãos, de quem temia viesse algum
dia a se lamentar, o césar Galério fez Diocleciano destruir
a catedral de Nicomédia. Um cristão mais piedoso que reportado
fez em pedaços o édito do imperador, acendendo a famosa perseguição
que condenou à morte mais de duzentas pessoas em toda a extensão
do império romano, sem contar as que, contra as formas jurídicas,
sacrificou a fúria do populacho, sempre fanático e sempre bárbaro.
Tão copioso é o rol dos mártires que seria conveniente
cuidar de não baralhar a história dos verdadeiros confessores
da nossa santa religião com o perigoso emaranhado de fábulas
e falsos mártires.
O beneditino dom Ruinart, por exemplo, homem aliás de tanta instrução
quanto respeitável e zeloso, devia ter escalrachado com mais discrição
seus Atos Sinceros. Não é só escabichar um manuscrito
em meio à papelada do abade de Saint-Benoît-sur-Loire ou de um
convento de celestinos de Paris, conforme a um manuscrito dos fuldenses, e
decretá-lo autêntico. É necessário que seja antigo,
escrito por contemporâneos e, sobretudo, que estampe o selo da verdade.
Exemplo: o caso do jovem Romano, que a história situa no ano 303.
Romano obtivera, em Antióquia, o perdão de Diocleciano. Sentencia
o sr. Ruinart, no entanto, ter sido ele condenado ao fogo pelo juiz Asclepíades.
Judeus presentes ao espetáculo haveriam mofado do jovem S. Romano,
acoimando aos cristãos o abandoná-los seu Deus à tortura
do fogo, ele que salvara ao forno Sidraque, Misaque e Abdenago. Presto se
levantaria, no mais sereno do tempo, uma tempestade que apagaria o fogo. Então
o juiz teria ordenado que se cortasse a língua ao jovem Romano. Encontrando-se
ali o primeiro médico do imperador, oficiosamente desempenharia a função
de algoz, cortando-lhe cerce a língua. De improviso o jovem, que era
tartamudo, começaria a parolar muito a prazer. Assombrando-se o imperador
de que se falasse tão bem sem língua, o médico, para
reiterar a experiência, cortaria a língua ao primeiro passante
que visse, o qual morreria instantaneamente.
Eusébio, de quem o beneditino Ruinart extraiu esse conto, devia respeitar
um pouco mais os verdadeiros milagres operados no Velho e Novo Testamento
(que ninguém terá o desplante de pôr em dúvida)
e não enxertar-lhes histórias tão suspeitas, que podem
escandalizar os simples.
Essa última perseguição não se estendeu a todo
o império. Havia então na Inglaterra uns brotos de cristianismo,
os quais se eclipsaram incontinenti para logo pôr a cabecinha de fora
sob os reis saxões. Inçadas de cristãos estavam as Gálias
meridionais e a Espanha. Muito os protegeu em todas essas províncias
o césar Constâncio Cloro. Teve até uma concubina cristã:
a mãe de Constantino, conhecida por Sta. Helena. Porque o fato é
que nunca se provou que fossem casados, e efetivamente, ao esposar a filha
de Maximiano Hércules, em 292, Constâncio recambiou-a. Helena,
contudo, conservara sobre ele grande ascendência, inspirando-lhe profunda
afeição a nossa santa religião.
Preparou a divina Providência, por vias que mais parecem humanas que
divinas, o triunfo de sua igreja. Constâncio Cloro morreu no ano 306,
em York, Inglaterra, quando os rebentos que tivera da filha de um césar
mal se haviam emancipado dos cueiros, não podendo portanto candidatar-se
ao trono. Fez-se Constantino eleger em York por cinco ou seis mil soldados,
alemães, gauleses e ingleses na maior parte. Nada augurava que semelhante
eleição, realizada sem consentimento de Roma, do senado e dos
exércitos, pudesse prevalecer. Deus, não obstante, deu-lhe a
vitória sobre Maxêncio, eleito em Roma, e por fim desembaraçou-o
de todos os rivais. De tudo isso depreende-se que não o tornara indigno
dos favores do céu o haver assassinado todos aqueles que dele se aproximaram,
a própria mulher e o próprio filho.
Impossível duvidar do que a respeito relata Zósimo. Diz que,
mordido de remorsos depois de tantos crimes, Constantino perguntou aos pontífices
do império se ainda havia expiação possível para
ele, ao que lhe responderam não conhecer. Verdade é que também
não a houvera para Nero, que não ousara assistir aos sacros
mistérios na Grécia. Estavam em voga, entretanto, os taurobólios,
e seria difícil crer que um imperador que tudo podia não encontrasse
um padre que lhe concedesse sacrifícios expiatórios. Menos crível
ainda será que, absorvido pela guerra, sua ambição, seus
projetos e rodeado de bajuladores, tivesse Constantino tempo para sentir remorsos.
Acrescenta Zósimo que um padre egípcio vindo da Espanha, que
tinha acesso a sua porta, prometeu-lhe a expiação de todos os
seus crimes dentro da religião cristã. Desconfia-se tratar-se
de Ózio, bispo de Córdova.
Seja como for, Constantino comungou com os cristãos, se bem nunca
tivesse sido catecúmeno, e reservou o batismo para a hora da morte.
Mandou construir a cidade de Constantinopla, que se tornou centro do império
e da religião cristã. Então a igreja tomou uma forma
augusta.
Note-se que desde o ano 314, antes de Constantino fixar residência
em sua nova cidade, os que haviam perseguido os cristãos foram por
estes punidos de suas crueldades. Os cristãos lançaram a mulher
de Maximiano ao Oronte, degolaram todos os seus parentes e trucidaram no Egito
e Palestina os magistrados que mais abertamente tinham se declarado contra
o cristianismo. Identificadas a viúva e a filha de Diocleciano, que
se haviam refugiado em Tessalônica, atiraram-nas ao mar. Seria de desejar
dessem os cristãos menos ouvidos ao espírito de vingança.
Mas quis Deus, que castiga segundo a sua justiça, que as mãos
dos cristãos se tingissem do sangue de seus perseguidores apenas as
tivessem desvencilhadas.
Convocou, reuniu Constantino em Nicéia, em frente a Constantinopla,
o primeiro concílio ecumênico, presidido por Ózio. Lá
se decidiu a magna questão que agitava a igreja, referente à
divindade de Jesus Cristo.
Uns esposavam a opinião de Orígenes, que diz no sexto capítulo
contra Celso: “Endereçamos as nossas preces a Deus por Jesus,
que está entre as naturezas criadas e a natureza incriada, que nos
transmite a graça de seu pai e, na qualidade de pontífice nosso,
depõe a Deus as nossas orações”. Estribavam-se
outrossim em diversos passos de S. Paulo, alguns dos quais transcrevemos páginas
atrás. Sobretudo arrimavam-se a estas palavras de Cristo: “Meu
pai é maior que eu”. Viam em Jesus o primogênito da criação,
a mais pura emanação do Ser Supremo, mas não Deus precisamente.
Outros, ortodoxos, traziam à luz argumentos mais conformes à
divindade eterna de Jesus, como este: “Meu pai e eu somos a mesma coisa”
Palavras que seus adversários interpretavam como significando: “Meu
pai e eu temos o mesmo desígnio, a mesma vontade. Não tenho
outros desejos senão os de meu pai”. Capitaneavam os ortodoxos
primeiro Alexandre, bispo de Alexandria, e depois Atanásio. No partido
contrário alinhavam-se Eusébio, bispo de Nicomedia, o padre
Ario e mais dezessete bispos e numerosos padres. Logo de saída azedou-se
a disputa por haver Alexandre tratado de anticristos seus adversários.
Enfim, ao cabo de muita discussão assim se pronunciou o Espírito
Santo no concílio pela boca de duzentos e noventa e nove bispos contra
dezoito: “Jesus é o filho único de Deus, gerado do Pai,
isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz da luz, vero
Deus de vero Deus, consubstancial ao Pai. Cremos igualmente no Espírito
Santo, etc.” Foi esta a fórmula do concílio. Vê-se
pelo exemplo o quanto prevaleciam os bispos sobre os simples padres. Dois
mil membros da segunda ordem perfilhavam o parecer de Ario, segundo relação
de dois patriarcas de Alexandria que escreveram a crônica dessa cidade
em árabe. Ano foi exilado por Constantino. Logo o foi também
Atanásio, e Ario de novo chamado a Constantinopla. Porém tão
fervorosamente pediu Macário a Deus que o fizesse morrer antes de entrar
na catedral que foi atendido. Faleceu Ario a caminho da igreja, no ano 330.
Em 337 finou-se Constantino. Entregou seu testamento a um padre ariano e morreu
nos braços do chefe dos arianos, Eusébio, bispo de Nicomedia,
só se batizando à hora da morte. Deixou a igreja triunfante,
embora dividida.
Tremenda guerra estalou entre os partidários de Atanásio e
os de Eusébio, e o chamado arianismo vigorou longo tempo em todas as
províncias do império.
Juliano o filósofo, cognominado o Apóstata, tentou pôr
cobro a tais divisões, porém em vão.
O segundo concílio geral reuniu-se em Constantinopla, em 381. Esclareceu-se
então o que o concílio de Nicéia não julgara a
propósito dizer sobre o Espírito Santo, e acrescentou-se à
fórmula niceana que “O Espírito Santo é senhor
vivificante procedente do Pai, e adorado e glorificado como o Pai e o Filho”.
Só no século IX estatuiu gradativamente a igreja latina proceder
o Espírito Santo do Pai e do Filho.
Em 431 o terceiro concílio geral realizado em Éfeso resolveu
que Maria foi de fato mãe de Deus, e que Jesus tinha duas naturezas
e uma pessoa. Querendo Nestório, bispo de Constantinopla, que a Santa
Virgem fosse chamada mãe de Cristo, declarou-o judas o concílio.
Confirmou a dualidade de naturezas de Cristo o concílio de Calcedônia.
Refiro-me a lume de palha aos séculos subsequentes por sobejamente
conhecidos. Infelizmente todas essas disputas eram pomo de guerras, de forma
que volta e meia a igreja se via obrigada a combater. Aprouve a Deus, a fim
de provar a paciência dos fiéis, que no século IX gregos
e latinos rompessem definitivamente. Aprouve-lhe ainda que se formassem no
Ocidente vinte e nove cismas sangrentos para o púlpito de Roma.
Entretanto quase toda a igreja grega e toda a igreja da África foram
avassaladas pelos árabes, em seguida pelos turcos, os quais erigiram
a igreja de Mafoma por sobre as ruínas da de Cristo. A igreja romana
subsistiu, porém, manchada de sangue por mais de seiscentos anos de
discórdia entre o império do Oriente e o sacerdócio.
Tornaram-na até mais poderosa essas dissensões. Bispos e abades
na Alemanha transformaram-se em príncipes, e paulatinamente os papas
investiram-se de domínio absoluto em Roma e numa região de cem
léguas. Assim experimentou Deus sua igreja por humilhações,
tumultos e esplendor.
Ao descambar do século XVI a igreja latina perdeu metade da Alemanha,
a Dinamarca, Suécia, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Suíça
e Holanda. Territorialmente essas perdas foram vantajosamente compensadas
pelas conquistas espanholas na América. Não, porém, quanto
ao número de súditos.
Para compensar o desmembramento da Ásia Menor, Síria, Grécia,
Egito, África, Rússia e as outras nações de que
falamos, parece que a Divina Providência lhe reservava o Japão,
Siam, Índia e China. S. Francisco Xavier, que levou o Santo Evangelho
às Índias Orientais e ao Japão, quando lá foram
em busca de mercadorias os portugueses, fez inúmeros milagres, atestados
todos pelos RR. PP. jesuítas. Dizem até que ressuscitou nove
mortos. Na Flor dos Santos abate o R. P. Ribadeneira esse número para
quatro, o que aliás já é bastante. Quis a Providência
que em menos de cem anos milhares de católicos romanos enxameassem
as ilhas do Japão. Porém o diabo semeou seu joio em meio da
boa semente. Tramaram os cristãos uma conjuração acompanhada
de uma guerra civil, em que foram totalmente exterminados (1638). Os japoneses
fecharam as portas do país a todos os estrangeiros, salvo aos holandeses,
em quem viam mercadores e não cristãos, mas que ainda assim
foram obrigados a espezinhar a cruz para obter permissão de vender
suas mercancias na prisão onde os trancafiaram logo que puseram pé
em Nagasaqui.
Recentemente a China proscreveu a religião católica, apostólica
e romana, bem que com menos crueldade. Em verdade os jesuítas não
ressuscitaram mortos na corte de Pequim. Contentaram-se em ensinar astronomia,
fundir canhões e ser mandarins. Suas intempestivas contendas com dominicanos
e outros de tal forma escandalizaram o grande imperador Iong-tching que este
príncipe, que era a justiça e a bondade em pessoa, teve a cegueira
de proibir em seu estado o ensino da nossa santa religião, no seio
da qual nem os próprios missionários viviam em paz. Expulsou-os
paternalmente, fornecendo-lhes meios de subsistência e veículos
até os confins de seu império.
Toda a Ásia, toda a África, metade da Europa, todas as colônias
inglesas e holandesas da América, todas as tribos americanas não
domadas, todas as terras austrais, que constituem um quinto do globo, permanecem
presa do demônio, para provar esta santa sentença: “Muitos
são os chamados, mas poucos os eleitos”. Se há na terra
um bilhão e seiscentos milhões de homens, como pretendem os
entendidos, cerca de sessenta milhões pertencerão à santa
igreja romana católica universal: ou seja, mais da vigésima
sexta parte da população do mundo conhecido.
CRÍTICA
Não pretendo falar dessa crítica de escoliastas, que se limita
a substituir por outra pior uma frase de um escritor antigo que antes se entendia
muito bem. Não me refiro às críticas de lei que, na medida
das forças humanas, devassaram os mais recônditos escaninhos
da história e da filosofia antigas. Viso às criticas que descambam
para a sátira.
Um amador de letras lia certa vez Tasso comigo. Antolhou-se-lhe esta estância:
Chiama gli abitator dell’ombre eterne
il rauco suon della tartarea tromba.
Treman le spaziose atre caverne;
e l’aer cieco a quel rumor rimbomba:
nè sì stridendo mai dalle superne
regioni dei cielo il folgor piomba;
nè sì scossa giammai trema la terra,
quando i vapori in sen gravida serra. (25)
Leu em seguida ao acaso várias estâncias dessa força
e harmonia.
— Ora! – exclamou – então é isso o que o
seu Boileau chama farfalhice? Então é assim que pretende rebaixar
um grande homem que viveu cem anos antes dele para melhor entronar outro grande
homem que viveu dezesseis séculos antes, e que teria ele próprio
rendido justiça a Tasso?
Console-se. Vejamos as óperas de Quinault.
Logo à abertura do livro deparou-se-nos com que nos abespinharmos
com a crítica. Dando com os olhos na tradução do admirável
poema Armida, lemos:
Sidonie
La haine est affreuse et barbare,
l’amour contraint les cours dont il s’empare
à souffrir des maux rigoureux.
Si votre sort est en votre puissance,
faltes choix de l’indifférence:
elie assure un repos heureux.
Armide
Non, non, il ne m’est pas possible
de passer de mon trouble en un état paisible;
mon coeur ne se peut plus calmer;
Renaud m’offense trop, il n’est que trop aimable;
c’est pour moi désormais un choix indispensable
de le haïr ou de l’aimer.
Lemos de fio a pavio a peça Armida, na qual o gênio de Tasso
recebe novos encantos das mãos de Quinault.
— Veja só, – observo a meu amigo – no entanto é
este Quinault que Boileau sempre se esforçou por fazer ver como o mais
reles escrevinhador. Chegou a meter na cabeça de Luís XIV que
esse escritor gracioso, comovente, patético, elegante, outro mérito
não tinha além do que tomava de empréstimo ao músico
Lulli.
— Compreende-se. Boileau não invejava o músico, porém
invejava o poeta. Que pensar de um homem que, para rimar um verso em aut,
denigre ora Boursault, ora Hénault, ora Quinault, conforme esteja bem
ou mal com esses senhores?
“Mas, para que não se arrefece a sua repugnância da injustiça,
ponha a cabeça à janela, veja aquela bela fachada do Louvre,
por que se imortalizou Perrault. Este homem de invulgar habilidade era irmão
de um acadêmico sapientíssimo, com quem Boileau tivera uma disputa
eis o quanto bastou para levar a tacha de arquiteto ignorante.”
Depois de breve sisma, prossegue meu amigo com um Suspiro:
— Assim é a natureza humana – Em suas Mémoires,
acha o duque de Sully de inquinar de maus ministros o cardeal de Ossat e o
secretário de estado Villeroi Tudo fez Louvois para deslustrar o grande
Colbert.
— Não se agatanhavam pessoalmente – reparo. – Trata-se
de uma estupidez restrita quase exclusivamente à literatura, à
cavilação e à teologia.
“Tivemos um homem de mérito: Lamotte, que compôs estâncias
belíssimas:
Quelque fois au feu qui la charme
résiste une jeune beauté,
et contre elle-même elle s’arme
d’une pénible fermeté.
Hélas! cette contrainte extrême
la prive du vice qu’elle aime,
pour fuir la honte qu’elle hait.
La sévérité n’est que faste,
et l’honneur de passer pour chaste
la résout à l’être en effet.
En vain ce sévère stoïque,
sous mille défauts abattu,
se vante d’une âme héroïque
toute vouée à la vertu:
ce n’est point la vertu qu’il aime;
mais son coeur, ivre de lui-même,
voudrait usurper les autels,
et par sa sagesse frivole
il ne veut que parer l’idole
qu’il offre an culte des mortels.
Les champs de Pharsale et d’Arbelle
ont vu triompher deux vainqueurs,
l’un et l’autre digne modèle
que se proposent les grands coeurs.
Mais le succès a fait leur gloire;
et, si te sceau de la victoire
n’eût consacré ces demi-dieux,
Alexandre, aux yeux du vulgaire,
n’aurasit été qu’un téméraire,
et César qu’un seditieux.
“Este autor” – continuo – “foi um sábio
que por mais de uma vez emprestou o encanto dos versos à filosofia.
Escrevesse sempre estâncias desse quilate e teria sido o maior dos poetas
líricos. Sem embargo, foi justamente quando produzia desses primores
que dele disse um contemporâneo:
Um certo pato, caça de galinheiro.
“Em outro lugar:
De seus versos a enfadonha – beleza.
“Em outro:
…Só vejo um senão: falta a essas odes descavalgar o verso
a Quinault para atingir a perfeição.
“E, nesse ciscar de imperfeições, em tudo encontra secura
e quebra de harmonia.
“Quer ver as odes que anos depois escreveu esse mesmo censor que julgava
Lamotte de cátedra e o difamava como inimigo? Leia:
Cette influence souveraine
n’est pour lui qu’une ilustre chaîne
qui l’attache au bonheur d’autrui;
tous les brillants qui l’embellisent,
tons les talents qui l’ennoblissent,
sont en lui, mais non pas à lui.
Il n’est rien que te temps n’absorbe, ne dévore,
et les faits qu’on ignore
sont bien peu différents des faits non avenus.
La bonté qui brille en elle
de ses charmes les plus doux
est une image de celle
qu’elle voit briller en vous.
Et, par vous seule enrichie,
sa politesse, affranchie
des moindres obscurités
est la lueur réfléchie
de vos sublimes clartés.
Ils ont vu par la bonne foi
de leurs peuples troublés d’effroi
la crainte heureusement déçue,
et déracinée à jamais
la haine si souvent reçue
en survivance de la paix.
Dévoile à ma vue empressée
ces déités d’adoption,
synonymes de la pensée,
symboles de l’abstraction.
N’est ce pas une fortune,
quand d’une charge commune
deux moities portent le faix,
que la moindre le réclame,
et que du bonheur de l’âme
le corps seul fasse les frais?
— Não era preciso – convém meu judicioso amante
das letras – dar coisas tão detestáveis para modelo àqueles
a quem tão azedamente criticava. Antes deixasse em paz seu adversário
com seu mérito e ficasse ele com o que tivesse. Mas, que quer você?
O genus irritabile vatum é doença da mesma bilis que o atormentava
outrora. O público perdoa essas tacanhezas às pessoas de talento
porque não quer senão se divertir. Ele vê, numa alegoria
intitulada Plutão, juizes condenados a ser esfolados e a sentar-se
nos infernos em um banco coberto com as próprias peles em vez de flores
de lis. Pouco importa ao leitor que os juizes o mereçam ou não,
que tenha ou não razão o autor que os cita perante Plutão.
Lê esses versos unicamente por prazer. Se lhe agradam, não quer
mais. Se lhe desagradam, põe de lado a alegoria e não daria
um passo para fazer confirmar ou cassar a sentença.
“As inimitáveis tragédias de Racine foram todas criticadas,
e pessimamente: porque as criticaram rivais. Certo, os artistas são
juizes de arte competentes, porém quase sempre lhes falta integridade.
“Excelente crítico seria o artista senhor de bom cabedal de
ciência e de bom gosto, isento de prejuízos e inveja. O que é
difícil encontrar.”
DESTINO
De todos os livros que até nós chegaram, o mais antigo é
Homero. É em Homero que se nos deparam os costumes da antigüidade
profana, os heróis e deuses toscamente talhados à imagem do
homem. Em Homero também encontramos os embriões da filosofia
e sobretudo a idéia do destino, que é senhor dos deuses como
são os deuses senhores dos homens.
Debalde quer Júpiter salvar Heitor. Consulta os destinos, pesando
numa balança os destinos de Heitor e Aquiles: diz a sorte que o troiano
será irrevogavelmente morto pelo grego, e nada pode opor-lhe o soberano
dos deuses. Apolo, o gênio guardião de Heitor, é então
obrigado a abandoná-lo (26). Não que Homero não seja
pródigo de idéias opostas, consoante o privilégio da
antigüidade. Mas enfim é o primeiro em que aparece a noção
do destino. Devia estar, pois, muito em voga em seu tempo.
Os fariseus, na pequena nação judaica, só conceberam
o destino muitos séculos depois, porquanto, embora tenham sido os primeiros
judeus letrados, eram muito novos em relação aos gregos. Mesclaram
em Alexandria parte dos dogmas dos estóicos às antigas idéias
judaicas. Chega a pretender S. Jerônimo não ser sua seita muito
anterior à nossa era. Os filósofos sempre prescindiram de Homero
e dos fariseus para se persuadirem de que tudo está sujeito a leis
imutáveis, tudo está determinado, tudo é efeito necessário.
Ou o mundo subsiste pela própria natureza, pelas leis físicas,
ou formou-o um Ser Supremo conforme supremas leis. Num caso como noutro as
leis são imutáveis e tudo é necessário. Os corpos
graves tendem para o centro da terra, não podendo tender a repousar
no ar. Pereiras nunca poderiam dar ananases. O instinto de um espanhol não
pode ser o instinto de um austríaco Tudo se acha ordenado, engranzado
e limitado.
Não pode o homem ter mais que certo número de dentes, cabelos
e idéias. Tempo vem em que inevitavelmente perde os dentes, os cabelos
e as idéias
Contraditório seria que ontem não fosse ontem e hoje não
fosse hoje. Tão contraditório como se o que há de ser
pudesse deixar de sê-lo.
Se pudesses torcer o destino de uma mosca, nada te impediria de traçar
o destino de todas as outras moscas, de todos os outros animais, de todos
os homens, de toda a natureza. Enfim, serias mais poderoso que Deus.
Dizem os cretinos: O médico arrancou minha tia aos braços
da morte, fê-la viver dez anos mais do que deveria viver. Outra modalidade
de imbecis – os capazes, – sentenciam: O homem prudente forja
o próprio destino.
Nullum numen abest, si sit prudentia, sed te
nos facimus, fortuna, deam, coeloque locamus.
Asseveram profundos políticos que se oito dias antes que se decapitasse
Carlos I se tivessem assassinado Cromwell, Ludlow, Ireton e uma dúzia
de outros parlamentares, esse rei ainda podia ter vivido e morrer no leito.
Têm razão. E poderiam acrescentar que se o mar houvesse tragado
toda a Inglaterra esse monarca não teria morrido em um patíbulo
junto a Whitehall, ou sala, branca. Porém as coisas estavam dispostas
de maneira que Carlos teria irrevogavelmente o pescoço cortado.
Não resta dúvida que o cardeal de Ossat era mais prudente
que um louco das Petites-Maisons. Mas não é evidente que os
órgãos do sábio de Ossat não eram os mesmos que
os de um desmiolado, da mesma forma como os de uma raposa diferem dos de um
grou ou uma calhandra.
O médico salvou tua tia. Mas não contradisse a natureza: obedeceu-lhe.
Claro que tua tia não podia deixar de nascer senão na cidade
em que nasceu, em ocasião certa ter certa moléstia, que o médico
não podia estar alhures senão na cidade em que estava, que tua
tia forçosamente o chamaria a ele, o qual necessariamente lhe prescreveria
os remédios que a curaram.
Crê um camponês haver geado em seu campo por acaso. Mas um filósofo
sabe que não existe acaso e que era impossível, na constituição
deste mundo, que precisamente naquele dia não geasse precisamente naquele
lugar.
Há pessoas que, aterrorizadas ante essa verdade, só concordam
pela metade, como devedores que oferecem metade aos credores e pedem mora
para a outra metade. Existem, dizem elas, acontecimentos necessários
e acontecimentos não necessários. Engraçado um mundo
metade em ordem metade em desordem. Que parte do que acontece precisava acontecer,
outra não. Basta chegar-se-lhe um pouco mais o nariz para ver ser absurda
semelhante teoria. Mas há muitos indivíduos que nasceram para
raciocinar mal, outros para não raciocinar .e outros para perseguir
os que raciocinam.
Perguntareis:
— E a liberdade?
Não vos entendo. Não sei o que seja essa liberdade de que
falais. Há tanto tempo discutis acerca de sua natureza que seguramente
não a conheceis. Se quiserdes, ou melhor, se puderdes examinar calmamente
comigo o que se deve entender por essa palavra, saltai à letra L.
DEUS
Imperante Arcádio, Logômacos, teologal de Constantinopla, empreendeu
uma viagem à Cítia, e deteve-se ao pé do Cáucaso,
nos férteis plainos de Zefirim, nos términos da Cólchida.
Estava o bom velho Dondindaque em sua ampla sala baixa, entre seu grande aprisco
e a vasta granja. Estava ajoelhado em companhia da mulher, dos cinco filhos
e cinco filhas, seus pais e seus criados, e cantavam os louvores a Deus após
ligeiro repasto.
— Que fazes, idólatra? – perguntou-lhe Logômacos.
— Não sou idólatra – retorquiu Dondindaque.
— Claro que o és, pois és cita e não grego. Que
cantavas em tua bárbara geringonça da Cítia I
— Todas as línguas soam da mesma forma aos ouvidos de Deus.
Cantávamo-lhe os louvores.
— Eis uma coisa extraordinária! Uma família cita que
ora a Deus sem ter sido instruída por nós!
Seguiu-se um diálogo entre o grego Logômacos e o cita Dondindaque,
pois o teologal sabia um pouco de cita e o outro um pouco de grego. Encontrou-se
esse diálogo num manuscrito conservado na biblioteca de Constantinopla
Logômacos
Vejamos se sabes teu catecismo. Por que oras a Deus?
Dondindaque
Justo é que adoremos o Ser Supremo que tudo nos deu.
Logômacos
Oh! Para um bárbaro não está mal. E que lhe pedes?
Dondindaque
Agradeço-lhe os bens de que gozo e os males com que lhe apraz provar-me.
Abstenho-me porém de pedir-lhe seja o que for. Melhor que nós
sabe ele o que nos falta. Demais poderia dar-se que quando eu pedisse bom
tempo meu vizinho pedisse chuva.
Logômacos
Ah! Logo vi que ia dizer alguma asneira. Passemos a plano mais elevado.
Bárbaro, quem te disse que Deus existe?
Dondindaque
Toda a natureza.
Logômacos
Não basta. Que idéia tens do Ser Supremo?
Dondindaque
Que é o meu criador, meu soberano, que me recompensará quando
praticar o bem e me castigará quando cometer o mal.
Logômacos
Que frioleiras! Vamos ao essencial – Deus é infinito secundum
quid ou segundo a essência?
Dondindaque
Não vos entendo.
Logômacos
Sujeito tapado! Deus está algures ou ao mesmo tempo em tudo e fora
de tudo?
Dondindaque
Não sei… Como quiserdes.
Logômacos
Ignorante! Pode Deus demover o acontecido? Pode fazer que um bastão
não tenha duas pontes? Como verá o futuro: como futuro ou como
presente? Como faz para tirar o ser do nada e para aniquilar o ser?
Dondindaque
Tais coisas nunca me passaram pela cabeça.
Logômacos
Que sujeito bronco! Bem, vejo que preciso baixar a trave. Dize-me, meu amigo,
achas que a matéria possa ser eterna?
Dondindaque
Que me importa que seja eterna ou não? Eu, posso afirmar que não
o sou. De qualquer forma, Deus é o meu senhor. Deu-me a noção
de justiça, devo segui-la. Não quero ser filósofo, quero
ser homem.
Logômacos
São o diabo, essas cabeças duras! Vamos aos poucos: Que é
Deus?
Dondindaque
Meu soberano, meu juiz, meu pai.
Logômacos
Não é isso o que pergunto. Qual é sua natureza?
Dondindaque
Ser poderoso e bom.
Logômacos
Mas é corporal ou espiritual?
Dondindaque
Como quereis que o saiba?
Logômacos
Arre! Não sabes o que é um espírito?
Dondindaque
Nem imagino: de que me serviria isso? Tornar-me-ia acaso mais justo? Seria
melhor marido, melhor pai, melhor amo, melhor cidadão?
Logômacos
É absolutamente necessário ensinar-te o que seja espírito.
Escuta: é, é, é… Bem, fica para outra ocasião.
Dondindaque
Muito receio que me fôsseis dizer o que ele não é. Permiti-me
fazer-vos a meu turno uma pergunta. Vi há muito um de vossos templos:
por que motivo pintais Deus com uma longa barba?
Logômacos
É questão muito complexa, que requer instruções
preliminares.
Dondindaque
Antes de receber vossas instruções, vou contar-vos o que me
aconteceu certo dia. Eu acabava de fazer construir uma privada no fim de meu
jardim, quando ouvi uma toupeira conversando com um besouro:
— Eis uma bela fábrica! – dizia a toupeira. – Deve
ser uma toupeira bem poderosa o autor dessa obra.
— Gracejais – respondeu o besouro. – Bem sabeis que foi
um besouro, um besouro genial o arquiteto desse edifício.
Desde então resolvi nunca discutir.
ESCALA DOS SERES
A primeira vez em que li Platão e observei essa gradação
de seres desde o mais ínfimo átomo até o Ser Supremo,
essa escala impressionou-me fundamente. Considerando-a porém atentamente,
esvaeceu-se o grande fantasma, como outrora fugiam as aparições
ao canto do galo.
De princípio compraz-se a imaginação em ver a transição
imperceptível da matéria bruta à matéria organizada,
das plantas aos zoófitos, dos zoófitos aos animais, dos animais
ao homem, do homem aos gênios, dos gênios revestidos de corpo
aéreo a substâncias imateriais, e enfim mil ordens diferentes
dessas substâncias que, de belezas a perfeições, se escadeiam
até Deus. Essa hierarquia é muito do gosto dos ingênuos,
que vêem o papa e seus cardeais seguidos dos arcebispos e bispos, após
quem vêm os curas, os vigários, os simples padres, os diáconos,
os subdiáconos, os frades e finalmente, fechando a coluna, os capuchinhos.
Porém há um pouco mais de distância entre Deus e suas
mais perfeitas criaturas que entre o santo padre e o decano do sacro colégio.
O decano pode vir a ser papa, enquanto o mais perfeito dos gênios criados
pelo Ser Supremo jamais poderá vir a ser Deus. Entre Deus e ele há
o infinito.
Tão pouco entre os animais e vegetais se verifica essa pretensa escala
ou gradação. Prova está em existirem plantas e animais
extintos. Já não temos múrices. Era proibido entre os
judeus comer o grifo e o ixião, espécies hoje desaparecidas,
diga o que disser o Sr. Bochart. Onde então escala?
Ainda que não se houvessem extinto algumas espécies, patente
é que isso pode acontecer. Os leões, os rinocerontes começam
a rarear.
Muito provavelmente existiram raças humanas hoje desaparecidas. Quero
crer contudo que todas hajam subsistido, da mesma forma como os brancos, negros,
cafres, a quem a natureza deu um avental da própria pele, caindo do
ventre ao meio das coxas; os samoiedas, cujas mulheres têm um mamilo
de belo ébano, etc.
Não há visivelmente um vazio entre o macaco e o homem? Não
é fácil imaginar um bípede implume que seria inteligente
sem usar da palavra nem ter o nosso aspecto, que poderíamos domesticar,
que correspondesse aos nossos macacos e nos servisse? E entre essa nova espécie
e o homem não poderíamos conceber outras?
Acima do homem colocais no céu, vós, divino Platão,
uma série de substâncias celestes. Cremos nós outros em
algumas dessas substâncias porque no-lo ensina a fé. Mas vós,
que razão tendes para crê-las? Até parece que não
falastes ao gênio de Sócrates, e que o simplório Heres,
expressamente ressurreto para vos pôr ao corrente dos segredos do outro
mundo, nada vos tenha ensinado acerca de tais substâncias.
A pretensa escala não é menos descontínua no mundo
sensível.
Que gradação – pergunto – há entre os vossos
planetas? A Lua é quarenta vezes menor que o nosso globo. Vênus
é quase do tamanho da Terra. Mercúrio descreve uma elipse muito
diferente da circunferência percorrida por Vênus e é vinte
e sete vezes menor que nós. O Sol é um milhão de vezes
maior que o planeta em que vivemos, Marte cinco vezes menor. Marte completa
seu giro em dois anos, Júpiter, seu vizinho, em doze, Saturno, o mais
afastado de todos, conquanto menor que Júpiter, em trinta. Onde a tal
gradação?
Depois, como quereis que em imensos espaços vazios haja uma cadeia
que tudo ligue? Se alguma cadeia existe, é certamente a descoberta
por Newton. É ela que faz todos os globos do mundo planetário
gravitarem uns em torno dos outros no vácuo infinito.
Admirado Platão, vós não contastes mais que fábulas!
Na ilha de Cassitérides, onde em vosso tempo os homens viviam completamente
nus, nasceu um filósofo que ensinou aos homens verdades tão
grandes quanto pueris eram vossos devaneios.
ESTADOS, GOVERNOS
Qual o melhor? – Até o presente não conheci quem não
tenha governado algum estado. Não falo dos ministros que governam efetivamente,
uns dois ou três anos, outros seis meses, outros seis semanas. Falo
de todos esses senhores que, à hora das refeições ou
em seus gabinetes, expõem seu sistema de governo, reformando os exércitos,
a igreja, a magistratura e as finanças.
O abade de Bourzeis meteu-se a governar a França pelo ano de 1645,
sob o nome do cardeal de Richelieu, e escreveu seu Testamento Político,
no qual procurou arrolar a nobreza na cavalaria por três anos, fazer
pagar a talha aos tribunais de contas e aos parlamentos e privar o rei do
produto dos seus impostos sobre o consumo. Afirma ele que, para entrar em
campanha com cinqüenta mil homens, por economia é preciso levar
cem mil. Assevera que só a Provença tem mais belos portas de
mar que a Espanha e Itália juntas
O abade de Bourzeis não tinha viajado. Aliás sua viagem acha-se
repleta de anacronismos e erros. Faz o cardeal de Richelieu assinar como nunca
assinou e falar como nunca falou. E gasta um capítulo inteiro para
dizer que a razão deve ser a pauta do estado, e a se esforçar
por provar essa descoberta. Essa obra das trevas, esse bastardo do abade de
Bourzeis passou muito tempo por filho legítimo do cardeal de Richelieu.
E todos os acadêmicos, em seus discursos de recepção,
não deixavam de louvar desmedidamente essa obra prima de política.
O senhor Gatien de Courtilz, vendo o extraordinário sucesso do Testamento
Político de Richelieu, fez imprimir em Haia o Testamento de Colbert,
com uma pomposa carta do senhor Colbert ao rei. Está claro que se esse
ministro tivesse feito semelhante testamento, seria preciso interdizê-lo;
entretanto, esse livro foi citado por alguns autores.
Outro velhaco cujo nome se ignora partejou o Testamento de Louvois, pior
ainda, se possível, que o de Colbert. E um abade de Chevremont também
fez testar Carlos, duque de Lorena (27).
O senhor de Bois Guillebert, autor do Détail de la France, impresso
em 1695, apresenta o projeto inexeqüível do dízimo real
sob o nome do marechal de Vauban (28).
Um louco sem eira nem beira chamado La Jonchêre escreveu em 1720 um
projeto de finança em 4 volumes. E alguns parvos citaram essa produção
como obra de La Jonchêre, o tesoureiro geral, imaginando que um tesoureiro
não pode escrever um mau livro de finanças.
Mas é preciso convir em que homens avisados, dignos sem dúvida
de governar, têm escrito sobre a administração dos estados,
seja na França, na Espanha ou na Inglaterra. Seus livros têm
feito muito bem: não porque hajam corrigido os ministros então
no governo, já que um ministro não se corrige de modo algum
nem pode ser corrigido: é árvore já muito crescida; basta
de instruções, basta de conselhos; escasseia-lhe tempo para
os ouvir, arrasta-o a corrente dos negócios. Mas esses bons livros
formam a juventude destinada aos cargos. Formam os príncipes, e a segunda
geração é instruída.
Ultimamente tem sido examinado de perto o forte e o fraco dos governos.
Dizei-me, vós que haveis viajado, vivestes e vistes, sob que espécie
de governo desejaríeis ter nascido? Compreendo que um grande proprietário
de terra, na França, não desgostaria de haver nascido na Alemanha:
seria soberano em vez de vassalo. A um par de França muito agradariam
os privilégios do pariato inglês: seria legislador.
O magistrado e o financeiro achar-se-iam melhor em França que alhures.
Mas que pátria escolheria um homem sábio, livre, um homem
de fortuna medíocre e sem preconceitos?
Um membro do conselho de Pondichéry, senhor de sólida cultura,
voltou à Europa por terra em companhia de um brâmane mais instruído
do que o comum dos brâmanes.
— Que tal achais o governo do grão mogol? – perguntou
o conselheiro.
— Abominável – respondeu o brâmane. – Como
quereis que um estado seja bem governado pelos tártaros? Nossos rajas,
nossos omrás, nossos nababos estão muito contentes; mas os cidadãos
muito ao contrário, e milhões de cidadãos são
alguma coisa.
O conselheiro e o brâmane percorreram, conversando, toda a alta Ásia.
— Cheguei a uma conclusão – disse o brâmane: –
que não existe sequer uma república em toda esta vasta parte
do mundo.
— Houve outrora a de Tiro, – retrucou o conselheiro –
mas não durou muito. Houve ainda outra, perto da Arábia Pétrea,
num recanto denominado Palestina, se é que se pode honrar com o nome
de república uma horda de ladrões e de onzeneiros governados
ora por juizes, ora por espécies de reis, ora por grandes pontífices,
escravizados sete ou oito vezes e enfim expulsos do país que usurparam.
— Julgo, – disse o brâmane – que não deve
haver sobre a terra senão pouquíssimas repúblicas. Raramente
são os homens dignos de se governar por si mesmos. Tal felicidade não
deve pertencer senão a povos pequenos, que se insulem em ilhas ou entre
montanhas, como coelhos a se esconderem dos carnívoros. Mas sempre
acabam sendo descobertos e devorados.
Quando os dois viajantes chegaram à Ásia Menor, perguntou
o conselheiro ao brâmane:
— Acreditaríeis ter existido uma república formada num
canto da Itália, que durou mais de quinhentos anos e possuiu esta Ásia
Menor, Ásia, África, Grécia, Gálias, Espanha e
toda a Itália?
— Então, cedo se transformou em monarquia? – perguntou
o brâmane.
— Adivinhastes – respondeu o outro; – porém essa
monarquia caiu e vivemos a fazer empoladas dissertações para
encontrar a causa de sua decadência.
— Perdeis vosso tempo inutilmente, – disse o hindu: –
esse império caiu porque existia. Tudo cai. Espero que assim aconteça
também ao império da Mongólia.
— A propósito – disse o europeu. Julgais ser necessário
mais honra num estado despótico e mais virtude numa república?
– Tendo feito com que se lhe explicasse o que se entende por honra,
respondeu o hindu ser de opinião que ela era mais necessária
numa república, e a virtude a mais precisa num estado monárquico.
— Porque – explicou – um homem que pretenda ser eleito
pelo povo não o será se não for honrado. Ao passo que
na corte poderá obter facilmente um cargo, segundo a máxima
de um grande príncipe, que disse que para o conseguir não deve
o cortesão ter honra nem humor. Com respeito à virtude, é
preciso te-la muita numa corte para ousar dizer a verdade. O homem virtuoso
está bem mais à vontade na república, por não
precisar bajular ninguém.
— Acreditais – interrogou o europeu – que as leis e religiões
sejam feitas para os climas assim como os agasalhos forrados para Moscou e
os tecidos de gaza para Delí?
— Sim, sem dúvida – disse o brâmane. Todas as leis
que concernem o físico são calculadas pelo meridiano em que
se habita; para um alemão basta uma mulher, um persa precisa de três
ou quatro. Da mesma natureza são os ritos da religião. Como
desejaríeis que eu, se fosse cristão, dissesse a missa em minha
província, onde não há pão nem vinho? Quanto aos
dogmas, o caso é outro: o clima nada faz. Vossa religião não
nasceu na Ásia, de onde foi expulsa? Não subsiste no Mar Báltico,
onde era desconhecida?
— Em que estado, sob que domínio preferiríeis viver?
– perguntou o conselheiro.
— Em qualquer parte que não a minha terra, – respondeu
o companheiro – e encontrei muitos siameses, tonquineses, persas e turcos
que diziam outro tanto.
—.Mas, – ainda uma vez disse o europeu – que estado escolheríeis?
– Respondeu o brâmane:
— Aquele onde apenas se obedecesse às leis.
— É uma velha resposta, – argüiu o conselheiro.
— E não é má – disse o brâmane.
— Onde fica esse país? – perguntou o conselheiro.
— É de mister procurá-lo – respondeu o brâmane.
EZEQUIEL (DE)
De alguns passos singulares desse profeta e de alguns hábitos antigos
Sabe-se hoje muito bem que não se devem julgar os costumes antigos
pelos modernos. Quem desejasse reformar a corte de Alcinos, na Odisséia,
tomando como modelo a do grão turco ou a de Luís XIV, não
seria bem recebido pelos sábios. Quem reprovasse a Virgílio
o haver representado o rei Evandro coberto com uma pele de urso e acompanhado
de dois cães para receber os embaixadores, seria um mau crítico.
Os costumes dos judeus de antanho são ainda mais diferentes dos nossos
que aqueles do rei Alcinos, de Nausica, de sua filha e do bonacheirão
Evandro.
Ezequiel, escravo dos caldeus, teve uma visão perto do ribeirão
de Cobar, que se perde no Eufrates.
Não nos devemos admirar de que ele tenha visto animais de quatro
faces e quatro asas, com pés de bezerro, nem das rodas que caminhavam
por si mesmas e continham o espírito da vida: esses símbolos
até agradam à imaginação. Mas vários críticos
se revoltaram contra a ordem que lhe deu o Senhor de comer durante trezentos
e noventa dias, pão de cevada, de frumento e de milho, coberto de excremento.
— Irra! – exclamou o profeta. – Minh’alma até
hoje não tinha sido poluída.
Respondeu-lhe o Senhor:
— Pois bem, eu te darei estrume de boi em lugar de excrementos humanos,
e tu comerás teu pão com esse estrume.
Visto não ser absolutamente de uso comer tais confeitos com o pão,
a maioria dos homens acha essas ordens indignas da majestade divina. Entretanto,
deve-se lembrar que o estrume de vaca e os diamantes do grão mogol
são perfeitamente iguais, não só ante os olhos de um
ser divino mas também aos do verdadeiro filósofo. Com respeito
às razões que Deus poderia ter para impor ao profeta um tal
almoço, não nos cabe procurá-las. Basta fazer ver que
essas ordens, que nos parecem estranhas, não se afiguraram tais aos
judeus.
É verdade que a sinagoga não permitia, no tempo de S. Jerônimo,
a leitura de Ezequiel antes da idade de trinta anos. Mas isso porque no capítulo
18 ele diz que os filhos não arcarão com a iniqüidade dos
pais e que já não se dirá: os pais comeram raízes
verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados.
Nesse ponto ele se achava em contradição com Moisés,
que no capítulo 28 dos Números afirma que os filhos sofrem a
iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração.
Ezequiel, no capítulo 20, faz ainda dizer ao Senhor ter ele dado
aos judeus preceitos que não são bons. Eis por que a sinagoga
interdisse aos jovens uma leitura que poderia pôr em dúvida a
irrefragabilidade das leis de Moisés.
Aos censores de nossos dias, ainda mais os surpreende o capítulo
26 de Ezequiel: eis como o profeta se arranja para fazer conhecer os crimes
de Jerusalém. Ele apresenta o Senhor dizendo a uma moça:
“Quando nascestes, ainda não vos tinham cortado o cordão
umbilical, ainda não éreis batizada, estáveis completamente
nua, eu me apiedei de vós; depois crescestes, vosso seio se formou,
vossas axilas cobriram-se de veios; eu passei, eu vos vi, eu compreendi que
era o tempo dos amantes; eu cobri vossa ignomínia; estendi por sobre
vós o meu manto; viestes a mim; eu vos lavei, perfumei, vesti bem e
bem aqueci; dei-vos um chale de lã, braceletes, um colar; eu vos pus
jóias no nariz, brincos nas orelhas e uma coroa na fronte, etc.
“Então, confiando em vossa beleza, fornicastes por vossa conta
com todos os passantes… E trilhastes um mau caminho… e vos prostituístes
até nas praças públicas e abristes as pernas a todos
os passantes… e vos deitastes com os egípcios… e enfim pagastes
amantes e lhes fizestes presentes a fim de que se deleitassem com outras moças.
O provérbio é: Tal mãe, tal filha; e é isso que
se diz de vós, etc.”
Ainda com maior indignação se insurgem contra o capítulo
28. Uma mãe tinha duas filhas que perderam muito cedo a virgindade;
a maior chamava-se Oola e a menor Ooliba. “…Oola era louca pelos jovens
senhores, magistrados, cavaleiros; deitou-se com egípcios desde a mais
tenra mocidade… Ooliba, sua irmã, fornicou mais ainda com oficiais,
magistrados e cavaleiros bem parecidos; descobriu sua vergonha e multiplicou
suas fornicações. Procurou com arrebatamento os abraços
daqueles cujo membro se parece com o de um asno e que expandem a sua semente
como cavalos…”
Essas descrições que escandalizam tantos espíritos
fracos não significam, entretanto, senão as iniqüidades
de Jerusalém e de Samaria; as expressões que nos parecem livres
não o eram então. A mesma franqueza aparece sem receio em mais
de um ponto das Escrituras. Fala-se freqüentemente em abrir a vulva.
Os termos de que elas se servem para explicar o contato de Booz com Rute,
de Judas com sua nora, não são desonestos em hebreu, mas se-lo-iam
em nossa língua.
Não se usa véu quando não se tem vergonha de sua nudez.
Como é possível que se ruborizasse uma pessoa nos tempos passados
ao ouvir falar dos órgãos genitais, quando era costume tocá-los
àqueles a quem se fazia alguma promessa? Era um sinal de respeito,
um símbolo de fidelidade, como outrora entre nós punham os senhores
feudais suas mãos entre as dos seus senhores soberanos.
Traduzimos os testículos por coxa. Eliezer pousa a mão sobre
a, coxa de Abraão; José pousa a mão sobre a coxa de Jacó.
Esse costume era antiqüissimo no Egito. Os egípcios estavam tão
longe de ligar à ignomínia coisas que nós não
ousamos nem descobrir nem nomear, que conduziam em procissão uma grande
figura do membro viril chamada phallum, para agradecer aos deuses a bondade
demonstrada em fazer servir esse membro à propagação
do gênero humano.
Todos esses fatos provam bem que nossos decoros não são os
mesmos dos outros povos. Em que tempo houve entre os romanos maior polidez
do que no século de Augusto? Entretanto, Horácio não
tergiversou em dizer numa peça moral:
Nec vereor ne, dum futuo, vir rure recurrat(29).
Um homem que entre nós pronunciasse a palavra correspondente a futuo
seria considerado um bêbado indecente; essa e várias outras palavras
de que se servem Horácio e outros autores nos parecem ainda mais indecorosas
do que as expressões de Ezequiel. Desfaçamo-nos de nossos preconceitos
quando lermos autores antigos ou quando viajarmos por nações
longínquas. A natureza é a mesma em toda parte e os costumes
em toda parte diferentes.
FÁBULAS
Não são as mais antigas fábulas visivelmente alegóricas?
A primeira que conhecemos dentro de nossa maneira de calcular o tempo não
é aquela que vem no nono capítulo do livro dos Juizes? Tratava-se
de escolher um rei entre as árvores; a oliveira não queria abandonar
o cuidado do seu azeite, nem a figueira o de seus figos, nem a vinha o de
seu vinho, nem as outras árvores o de seus frutos; o espinheiro, que
nada tinha de bom, tornou-se rei, porque tinha espinhos e podia praticar o
mal
A antiga fábula de Vênus, tal como a relata Hesíodo,
não é uma alegoria de toda a natureza? As partes da geração
caíram do éter às costas do mar; Vênus nasce dessa
escuma preciosa; seu primeiro nome é o de amante da geração:
existirá imagem mais sensível Vênus é a deusa da
beleza; a beleza deixa de ser amada se caminhar sem as graças; a beleza
faz nascer o amor; o amor tem qualidades que trespassam os corações;
leva uma venda que esconde os defeitos do objeto amado.
A sabedoria é concebida no cérebro do senhor dos deuses sob
o nome de Minerva; a alma do homem é um fogo divino que Minerva mostra
a Prometeu, que se serve desse fogo divino para animar o homem.
É impossível deixar de reconhecer nessas fábulas uma
pintura viva de toda a natureza. A maioria das outras fábulas são
ou corrupções de histórias antigas ou caprichos da imaginação.
Sucede com as antigas fábulas o mesmo que com os nossos contos modernos:
há as morais que são encantadoras; outras são insípidas.
FALSIDADE DAS VIRTUDES HUMANAS
Quando o duque de La Rochefoucaud escreveu os seus pensamentos sobre o amor
próprio, pondo a descoberto esse impulso do homem, um senhor Espírito,
do Oratório, escreveu um livro capcioso intitulado: Da falsidade das
virtudes humanas. Diz esse Espírito que a virtude não existe;
mas, por graça termina cada capítulo reconsiderando a caridade
cristã. Assim, segundo o senhor Espírito, nem Catão,
nem Aristides, nem Marco Aurélio, nem Epicteto foram pessoas de bem;
estas apenas podem ser encontradas entre os cristãos. Entre os cristãos,
apenas os católicos são virtuosos ; entre os católicos
seria ainda necessário excetuar os jesuítas, inimigos dos oratorianos;
portanto a virtude não se acha senão entre os inimigos dos jesuítas.
Esse senhor Espírito começa por dizer que a prudência
não é uma virtude, e a razão é o ser freqüentemente
enganada. É como se se dissesse que César não foi um
grande capitão por ter sido derrotado em Dirráquio.
Se o senhor Espírito fosse um filósofo, não teria examinado
a prudência como uma virtude e sim como um talento, como uma qualidade
útil, feliz: pois um celerado pode ser prudente e eu conheci gente
dessa espécie. Que infâmia pretender que ninguém pode
ter virtude senão nós e nossos amigos!(30).
Que é a virtude, meu amigo? É praticar o bem: pratiquemo-lo
e será o suficiente. Então, nós te explicaremos o motivo.
Como! Segundo teu modo de ver não existiria nenhuma diferença
entre o presidente de Thou e Ravaillac, entre Cícero e esse Popílio
ao qual ele salvou a vida e que lhe cortou a cabeça por dinheiro? E
considerarás Epicteto e Porfírio libertinos por terem seguido
os nossos dogmas? Tamanha insolência revolta. E não vou adiante
para não perder as estribeiras.
FANATISMO
Fanatismo é para a superstição o que o delírio
é para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele
que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como realidades
e as imaginações como profecias é um entusiasta; aquele
que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático. João
Diaz, retirado em Nuremberg, firmemente convicto de que o papa é o
Anticristo do Apocalipse e que tem o signo da besta, não era mais que
um entusiasta; Bartolomeu Diaz, que partiu de Roma para ir assassinar santamente
o seu irmão e que efetivamente o matou pelo amor de Deus, foi um dos
mais abomináveis fanáticos que em todos os tempos pôde
produzir a superstição.
Polieuto, que vai ao templo num dia de solenidade derrubar a destruir as
estátuas e os ornamentos, é um fanático menos horrível
do que Diaz, mas não menos tolo. Os assassinos do duque Francisco de
Guise, de Guilherme, príncipe de Orange, do rei Henrique III, do rei
Henrique IV e de tantos outros foram energúmenos enfermos da mesma
raiva de Diaz
O mais detestável exemplo de fanatismo é aquele dos burgueses
de Paris que correram a assassinar, degolar, atirar pelas janelas, despedaçar,
na noite de São Bartolomeu, seus concidadãos que não
iam à missa. Há fanáticos de sangue frio: são
os juizes que condenam à morte aqueles cujo único crime é
não pensar como eles; e esses juizes são tanto mais culpados,
tanto mais merecedores da execração do gênero humano,
quanto, não estando tomados de um acesso de furor como os Clément,
os Chatêl, os Ravaillac, os Gérard, os Damien, parece que poderiam
ouvir a razão.
Quando uma vez o fanatismo gangrenou um cérebro a doença é
quase incurável. Eu vi convulsionários que, falando dos milagres
de S. Páris, sem querer se acaloravam cada vez mais; seus olhos encarniçavam-se,
seus membros tremiam, o furor desfigurava seus rostos e teriam morto quem
quer que os houvesse contrariado.
Não há outro remédio contra essa doença epidêmica
senão o espírito filosófico que, progressivamente difundido,
adoça enfim a índole dos homens, prevenindo os acessos do mal
porque, desde que o mal fez alguns progressos, é preciso fugir e esperar
que o ar seja purificado. As leis e a religião não bastam contra
a peste das almas; a religião, longe de ser para elas um alimento salutar,
transforma-se em veneno nos cérebros infeccionados. Esses miseráveis
têm incessantemente presente no espírito o exemplo de Aode, que
assassina o rei Eglão; de Judite, que corta a cabeça de Holoferne
quando deitada com ele; de Samuel, que corta em pedaços o rei Agague.
Eles não vêem que esses exemplos respeitáveis para a antigüidade
são abomináveis na época atual; eles haurem seus furores
da mesma religião que os condena.
As leis são ainda muito impotentes contra tais acessos de raiva;
é como se lêsseis um aresto do Conselho a um frenético.
Essa gente está persuadida de que o espírito santo que os penetra
está acima das leis e que o seu entusiasmo é a única
lei a que devem obedecer.
Que responder a um homem que vos diz que prefere obedecer a Deus a obedecer
aos homens e que, consequentemente, está certo de merecer o céu
se vos degolar?
De ordinário, são os velhacos que conduzem os fanáticos
e que lhes põem o punhal nas mãos: assemelham-se a esse Velho
da Montanha que fazia – segundo se diz – imbecis gozarem as alegrias
do paraíso e que lhes prometia uma eternidade desses prazeres que lhes
havia feito provar com a condição de assassinarem todos aqueles
que ele lhes apontasse. Só houve uma religião no mundo que não
foi abalada pelo fanatismo, é a dos letrados da China. As seitas dos
filósofos estavam não somente isentas dessa peste como constituíam
o remédio para ela: pois o efeito da filosofia é tornar a alma
tranqüila e o fanatismo é incompatível com a tranqüilidade.
Se a nossa santa religião tem sido freqüentemente corrompida por
esse furor infernal, é à loucura humana que se deve culpar.
Assim, das asas que teve,
Ícaro perverteu o uso;
teve-as para seu bem
e as empregou em seu dano.
(Bertaud, bispo de Séez).
FIM, CAUSAS FINAIS
Parece que seria preciso estar fora de si para negar que os estômagos
sejam feitos para digerir, os olhos para ver e os ouvidos para ouvir. De outro
lado, é preciso ter um estranho amor às causas finais para afirmar
que a pedra foi feita para construir casas e que os bichos da seda nasceram
na China para que tenhamos cetim na Europa.
Mas, objeta-se, se Deus fez visivelmente uma coisa preconcebida, fez portanto
todas as outras com um desígnio. É ridículo admitir a
Providência num caso e negá-la em outros. Tudo o que está
feito foi previsto, coordenado. Nenhuma coordenação há
sem objeto, nenhum efeito sem causa; portanto tudo é igualmente o resultado,
o produto de uma causa final; portanto é tão verdadeiro dizer
que os narizes foram feitos para levar lunetas e os dedos para ser ornados
de diamantes quanto é verdade que os ouvidos foram feitos para ouvir
os sons e os olhos para receber a luz.
Creio ser muito fácil esclarecer essa dificuldade. Quando os efeitos
são invariáveis em todo lugar e em todos os tempos, quando esses
efeitos uniformes são independentes dos seres a que pertencem, então
existe uma causa final visível.
Todos os animais têm olhos, e enxergam; todos têm uma boca com
a qual comem; um estômago ou coisa semelhante, pelo qual digerem; todos,
um orifício que expele os excrementos, todos um órgão
gerador: e esses dons da natureza operam neles sem auxílio de meios
artificiais. Eis ai causas finais claramente estabelecidas, e seria perverter
nossa faculdade de pensar pretender negar uma verdade tão universal.
Porém as pedras, em toda parte e em todos os tempos, não fazem
construções. Nem todos os narizes levam lunetas. Nem todos os
dedos têm anel; nem todas as pernas são cobertas por uma meia
de seda. Um bicho de seda, portanto, não foi criado para cobrir as
pernas assim como a vossa boca foi feita para comer e vosso posterior para
ir à secreta. Existem, pois, efeitos produzidos por causas finais e
grande número de outros que não o são.
Porém tanto uns como outros figuram igualmente no plano da providência
geral: nada sem dúvida pode ser feito mau grado seu, nem mesmo sem
ela. Tudo que pertence à natureza é uniforme, imutável,
é obra imediata do Senhor; foi ele quem criou leis pelas quais a Lua
entra em três quartos nas causas do fluxo e do refluxo do oceano e o
Sol no quarto; foi ele que deu movimento de rotação ao Sol,
mediante o qual esse astro envia, em cinco minutos e meio, raios de luz aos
olhos dos homens, dos crocodilos e dos gatos.
Mas se depois de tantos séculos nós nos lembramos de inventar
tesouras e espetos, de tosquiar com umas a lã dos carneiros e de os
cozer com os outros para comê-los, que outra coisa se pode inferir senão.
que Deus nos fez de modo que um dia nos tornássemos necessariamente
industriosos e carniceiros?
Naturalmente os cordeiros não foram feitos de forma alguma para ser
cozidos e comidos, porquanto grande número de nações
se abstêm dessa coisa horrorosa; os homens não foram criados
essencialmente para se chacinarem, pois os brâmanes e os quakers não
matam ninguém; mas a massa de que somos feitos produz morticínios
freqüentes, assim como produz calúnias, vaidades, persecuções
e impertinências. Não que a formação do homem seja
precisamente a causa final de nossos furores e de nossas tolices: porque uma
causa final é invariável em todos os tempos e lugares; porém
os horrores e os absurdos da espécie humana não figuram menos
na ordem eterna das coisas. Quando batemos o trigo, o batedor é a causa
final da separação do grão. Mas se esse batedor, batendo
o grão, esmaga também milhares de insetos, não é
por nossa vontade determinada, nem tão pouco por acaso: é que
esses insetos se encontraram nessa ocasião sob o nosso cacete e aí
deviam estar.
É em virtude da natureza das coisas que um homem é ambicioso,
que esse homem arregimenta algumas vezes outros homens, que seja vencedor
ou que seja batido; mas jamais se poderá dizer: o homem foi criado
por Deus para ser morto na guerra.
Os instrumentos que a natureza nos deu não podem ser sempre causas
finais em movimento, que tenham efeito infalível. Os olhos, dados para
ver, não estão sempre abertos; cada sentido tem seus momentos
de repouso. Existem até sentidos que nunca usamos. Por exemplo, uma
pobre imbecil, encerrada num convento aos catorze anos, fecha para si a porta
de onde deveria sair uma nova geração, para sempre; mas a causa
final não deixa de subsistir, ela agirá logo que seja livre.
FRAUDE
Se é preciso usar de fraudes piedosas com o povo.
O faquir Bambabefe encontrou um dia um dos discípulos de Cong-fu-tseu,
que chamamos Confúcio, e esse discípulo chamava-se Uang; e Bambabefe
sustinha que o povo tem necessidade de ser enganado, e Uang pretendia que
jamais se deve enganar quem quer que seja; e eis em resumo a sua disputa.
Bambabefe
É preciso imitar o Ente Supremo, que não nos mostra as coisas
tais como são; ele nos faz ver o Sol sob um diâmetro de dois
ou três pés, não obstante esse astro ser um milhão
de vezes maior do que a Terra; ele nos faz ver a Lua e as estrelas deitadas
sobre um mesmo fundo azul, enquanto na realidade estão a distâncias
diferentes; quer que uma torre quadrada nos pareça redonda de longe;
quer que o fogo nos pareça quente, apesar de não ser nem frio
nem quente; enfim ele nos cerca de erros convenientes a nossa natureza.
Uang
Isso a que chamais erro não o é absolutamente. O Sol, tal
como está colocado a milhões de milhões de léguas
além do nosso globo, não é o que vemos. Realmente, nós
não percebemos, nem podia deixar de sê-lo, senão o Sol
que se grava em nossa retina, sob um ângulo determinado. Nossos olhos
não nos foram dados para conhecermos as grandezas e as distâncias;
são precisos outros recursos e operações para conhecê-las.
Bambabefe ficou muito admirado dessas proposições. Uang, que
era muito paciente, explicou-lhe a teoria da ótica; e Bambabefe, que
tinha um certo tino, rendeu-se à evidência das demonstrações
do discípulo de Cong-fu-tseu; em seguida reencetou a disputa nestes
termos:
Bambabefe
Se Deus não nos engana quanto aos nossos sentidos, como eu pensava,
deveis convir ao menos em que os médicos enganam sempre as crianças
para o seu próprio bem: dizem-lhes que lhes estão dando açúcar,
e na realidade trata-se de ruibarbo. Portanto, meu caro faquir, posso muito
bem enganar o povo, que é tão ignorante como as crianças.
Uang
Tenho dois filhos e jamais os enganei; disse-lhes quando estiveram doentes:
“Eis um remédio muito amargo, é preciso ter coragem para
tomá-lo; se fosse doce vos faria mal”. Nunca admiti que suas
amas e seus preceptores lhes metessem medo contando-lhes histórias
de feitiçarias; é assim que os criei, como cidadãos corajosos
e sábios.
Bambabefe
O povo não nasceu tão feliz como vossa família.
Uang
Todos os homens se parecem; nasceram com as mesmas disposições.
Os faquires é que corrompem a natureza dos homens
Bambabefe
Ensinamos-lhes muitos erros, reconheço-o; mas é para o seu
próprio bem. Fazemo-lhes crer que se não comprarem nossos cravos
bentos, se não expiarem seus pecados dando-nos dinheiro, tornar-se-ão,
na outra vida, cavalos de posta, cães ou lagartos: isto os intimida,
e então eles se tornam pessoas de bem.
Uang
Mas não percebeis que dessa forma perverteis essa pobre gente? Existem
entre o povo, mais do que se pensa, pessoas que raciocinam, que zombam de
vossos cravos, de vossos milagres, de vossas superstições, que
vêem muito bem que não se irão transformar nem em lagartos
nem em cavalos de posta. Que acontece? Elas têm bastante bom senso para
ver que vós lhes pregais uma religião impertinente, e não
o têm, entretanto, suficiente para se elevar numa religião pura
e isenta de superstições como é a nossa. Suas paixões
lhes fazem pensar que não existe religião, uma vez que a única
que lhes ensinam é ridícula; tornai-vos pois culpado de todos
os vícios aos quais elas se atiram.
Bambabefe
De forma alguma, porquanto nós apenas lhes ensinamos uma boa moral.
Uang
Seríeis lapidado pelo povo se lhe ensinásseis uma moral impura.
Os homens são feitos de forma tal que querem cometer o mal mas não
admitem que lho preguemos. Seria simplesmente necessário não
imiscuir uma sábia moral com fábulas absurdas, pois enfraqueceis
com vossas imposturas, de que poderíeis vos abster, essa moral que
sois forçados a ensinar.
Bambabefe
Como! Julgais que se pode ensinar a verdade ao povo sem a sustentar pelas
fábulas?
Uang
Creio-o firmemente. Nossos letrados são da mesma massa que nossos
alfaiates, tintureiros e camponeses. Adoram um Deus criador, remunerador e
vingador Eles não contaminam o seu culto com sistemas absurdos nem
cerimônias extravagantes; e há muito menos crimes entre os letrados
que entre o povo. Por que não nos dignarmos instruir nossos operários
como instruímos nossos letrados?
Bambabefe
Cometeríeis uma grande tolice; é como se pretendêsseis
que eles tivessem a mesma polidez, que fossem jurisconsultos: isso não
é possível nem conveniente. É preciso que exista pão
branco para os amos e pão negro para os domésticos.
Uang
Reconheço que nem todos os homens devam ter os mesmos conhecimentos;
mas há coisas necessárias a todos. É necessário
que cada um seja justo, e a maneira mais segura de inspirar a justiça
a todos os homens é inspirar-lhes a religião sem superstição.
Bambabefe
É um belo projeto, mas impraticável. Julgais que seja suficiente
aos homens acreditar num Deus que puna e recompense? Vós me dissestes
acontecer freqüentemente que os mais avisados entre o povo se revoltam
contra minhas fábulas; da mesma forma se revoltarão contra vossa
verdade. Dirão: Quem me pode assegurar que um Deus pune a recompensa?
Onde está a prova? Que missão tendes? Que milagre fizestes para
que eu vos creia? Eles zombarão de vós muito mais do que de
mim
Uang
Eis o vosso erro. Imaginais que hão de sacudir o jugo de uma idéia
honesta, verossímil, útil a toda gente, uma idéia que
está em perfeito acordo com a razão humana, por que se rejeitam
as coisas indecorosas, absurdas, inúteis, nocivas, que fazem fremir
o bom senso.
O povo está sempre muito disposto a crer nos magistrados: quando
seus magistrados não lhe propõem senão uma crença
razoável, aceita-a de boa vontade; essa idéia é muito
natural para ser combatida. Não é necessário dizer precisamente
como é que Deus punirá e recompensará; basta que se creia
em sua justiça. Asseguro vos que vi cidades inteiras que não
tinham outro dogma, e são também aquelas onde mais encontrei
a virtude.
Bambabefe
Tomai tento; encontrareis nessas cidades filósofos que vos negarão
tanto as penas como as recompenses.
Uang
Deveríeis dizer que tais filósofos negariam ainda com maior
vigor vossas invenções; assim nada lucrais nesse ponto. Quando
mesmo existissem filósofos que não estivessem em acordo com
meus princípios, não deixariam de ser pessoas de bem; não
deixariam de cultivar a virtude, que deverá ser abraçada por
amor, e não por medo. Mas afirmo-vos que filósofo algum jamais
estará plenamente certo de que a Providência não reserve
castigos aos maus e recompensas aos bons; porque se eles me perguntarem quem
me disse que Deus pune, eu lhes perguntarei quem lhes disse que Deus não
pune. Enfim, asseguro-vos que os filósofos me auxiliarão, longe
de me contradizerem. Quereis ser filósofo?
Bambabefe
Com todo gesto; não o digais porém aos faquires.
FRONTEIRAS DO ESPÍRITO HUMANO
Estão em toda parte, meu pobre doutor. Queres saber por que teus
pés obedecem a tua vontade e teu fígado não? Desejas
saber como se forma o pensamento em teu miserável entendimento e esta
criança no útero desta mulher? Dou-te tempo para me responderes.
Que é a matéria? Dez mil tratados escreveram teus colegas em
torno do assunto. Encontraram algumas qualidades dessa substância: as
crianças conhecem-nas tanto como tu. Mas afinal que é essa substância?
E que vem a ser isso que batizaste de espírito, do vocábulo
latino que quer dizer sopro, não lhe dando nome melhor por não
teres a menor idéia do que seja?
Olha este grão de trigo que lanço à terra e dize-me
como cresce para produzir uma haste apendoada de uma espiga. Explica-me como
a mesma terra produz uma maçã no alto daquela arvore e naqueloutra
uma castanha. Poderia desfiar-te um infólio de
perguntas a que não deverias responder senão por estas palavras:
Nada sei. No entanto tu colaste grau, arreias chapéu alto e envergas
nasóculos, e te chamam mestre.
E aquele outro impertinente, por ter comprado um cargo, presume haver comprado
o direito de julgar e condenar o que não entendei A divisa de Montaigne
era: Que sei eu? A tua é: Que não sei eu?
GLÓRIA
Ben al Betif, digno chefe dos dervís, disse-lhes um dia: “Meus
irmãos, muito conveniente é que useis com toda freqüência
esta fórmula sagrada do nosso Alcorão: Em nome de Deus mui misericordioso,
pois Deus usa de misericórdia e vós aprendereis a praticá-la
com repetir freqüentemente os termos que recomendam uma virtude sem a
qual poucos homens restariam sobre a terra. Mas, meus irmãos, abstende-vos
de imitar esses temerários que a todo transe se jactam de trabalhar
pela glória de Deus. Se um jovem imbecil sustenta uma tese sobre as
categorias, tese presidida por um ignorante encasacado, não deixa de
escrever em grossos caracteres no cabeçalho de sua tese: Ek Allah abron
doxa: ad majorem Dei gloriam. Um bom muçulmano fez pintar o seu salão
gravando em sua porta essa tolice; um saca carrega água para maior
glória de Deus. É um costume ímpio, piedosamente posto
em uso. Que diríeis de um pequeno tchauch que ao limpar a privada do
nosso ilustre sultão gritasse: “Para maior glória do nosso
invencível monarca”? Há certamente maior distância
do sultão a Deus que do sultão ao pequeno tchauch.
“Que tendes de comum, vermes miseráveis da terra chamados homens,
com a glória do Ser Infinito? Pode ele amar a glória? Pode recebê-la
de vós? Pode saboreá-la? Até quando, bípedes implumes,
fareis Deus. à vossa imagem? Como!. Por serdes vãos, porque
amais a glória, pretendeis que Deus a ame também Se existissem
vários deuses, cada um deles, é possível, poderia desejar
obter o sufrágio dos seus semelhantes. Seria essa a glória de
Deus. Se se pudesse comparar a grandeza infinita com a extrema baixeza, esse
Deus seria como o rei Alexandre ou Scander, que não desejava entrar
em lide senão com reis. Mas vós, pobres diabos, que glória
poderíeis dar a Deus? Cessai de profanar o seu nome sagrado. Um imperador
chamado Otávio Augusto proibiu que o louvassem nas escolas de Roma
por temer que seu nome fosse envilecido. Mas vós não podeis
nem envilecer o ente supremo nem honrá-lo. Humilhai-vos, adorai e calai-vos”.
Assim falou Ben al Betif; e os dervis exclamaram: “Glória a
Deus! Ben al Betif bem falou”.
GRAÇA
Consultores sagrados da Roma moderna, ilustres e infalíveis teólogos,
ninguém mais do que eu respeita vossas divinas decisões; mas
se Paulo Emílio, Cípião, Catão, Cícero,
César, Tito, Trajano, Marco Aurélio tornassem a essa Roma a
que dedicavam outrora certo crédito, havíeis de dizer-me que
ficariam um tanto admirados de vossas decisões sobre as graças.
Que diriam eles se ouvissem falar da graça de saúde segundo
Sto. Tomás e da graça medicinal segundo Cajetan; da graça
exterior e interior, da graça gratuita, da santificante, da atual,
da habitual, da cooperante; da eficaz, que algumas vezes não surte
efeito; da suficiente, que às vezes não basta; da versátil
e da côngrua? Em boa fé, compreenderiam eles mais do que eu e
vós?
Que necessidade teriam esses pobres homens de vossas instruções
sublimes? Parece-me ouvi-los dizer:
Meus reverendos padres, sois uns gênios terríveis; pensávamos
tolamente que o Ser Eterno não se guia jamais pelas leis particulares
como os vís humanos, mas sim por suas leis gerais, eternas como eles.
Nenhum de nós jamais imaginou que Deus se assemelhasse a um suserano
insensato que concede um pecúlio a um escravo e recusa alimentação
a outro; que ordena ao maneta amassar-lhe a farinha, a um mudo que lhe leia
o jornal, a um perneta que lhe sirva de mensageiro.
Tudo é graça da parte de Deus. Fez, ao globo que habitamos,
a graça de formá-lo; às árvores, a graça
de fazê-las crescer; aos animais a de os nutrir. Mas, – dir-se-á
– no caso de um lobo encontrar no seu caminho um cordeiro para seu almoço,
enquanto outro lobo morre de fome, terá feito Deus a esse primeiro
lobo uma graça particular? Ter-se-á ocupado, por uma graça
obsequiosa, em fazer nascer um carvalho de preferência a outro carvalho
ao qual faltou seiva? Se em toda a natureza todos os seres estão sujeitos
às leis gerais, por que motivo uma única espécie constituiria
exceção? Por que deveria o senhor absoluto de tudo ocupar-se
mais em dirigir o interior de um único homem do que conduzir o resto
da natureza inteira? Por que extravagância mudaria ele alguma coisa
no coração de um curlandês ou biscainho, enquanto nada
modifica das leis que impôs a todos os astros?
Que miséria o supor que ele faz, desfaz, refaz continuamente nossos
sentimentos! E que audácia o nos julgarmos à parte de todos
os seres! Ainda não é senão para aqueles que confessam
serem todas essas mudanças imaginadas. Um savoiano, um bergamásio,
terá na segunda feira a graça de mandar dizer uma missa por
doze soldos; na terça irá à tasca, e a graça lhe
faltará; na quarta terá uma graça cooperante que o conduzirá
à confissão, mas não terá a graça eficaz
da contrição perfeita; na quinta feira haverá uma graça
suficiente que não lhe bastará, como já dissemos. Deus
trabalhará continuamente no cérebro desse bergamásio,
ora com energia, ora debilmente, e o resto da terra nada será para
ele! Não se dignará imiscuir-se no interior dos hindus e dos
chineses! Se ainda vos sobrar uma partícula de razão, meus reverendos
padres, não achais esse sistema prodigiosamente ridículo?
Desgraçados, vede esse carvalho que alevanta a fronde às nuvens
e esse caniço que rasteja a seus pés! Não direis que
a graça eficaz foi dada ao carvalho e faltou ao caniço. Elevai
os olhos ao céu, vede o eterno demiurgo criando milhões de mundos
que gravitam todos entre si mercê de leis gerais e eternas. Vede a mesma
luz refletir-se do Sol a Saturno e de Saturno a nós; e, nesse acordo
de tantos astros arrastados por uma rápida corrente, nessa obediência
geral de toda a natureza, ousai crer, se o puderdes, que Deus se ocupa em
conceder uma graça versátil a sóror Teresa e uma graça
concomitante a sóror Inês.
Átomo, a quem um tolo átomo disse que o Eterno tem leis particulares
para alguns átomos de tua vizinhança; que ele concede sua graça
àquele e nega-a a este; que aquele que não possuía graça
ontem te-la-á amanhã, – não repitas essa tolice.
Deus fez o universo e não criará ventos novos para remover alguns
gravetos de palha num canto desse universo. Os teólogos são
como os combatentes de Homero, que acreditavam que seus deuses ora se armavam
contra eles, ora a seu favor. Se Homero não fosse considerado como
poeta, se-lo-ia como blasfemador.
É Marco Aurélio quem fala e não eu: porque Deus, que
vos inspira, me concede a graça de acreditar em tudo o que dizeis,
tudo o que tendes dito, tudo o que disserdes.
GUERRA
A miséria, a peste e a guerra são os três ingredientes
mais famosos deste mundo vil. Podem-se colocar na classe da miséria
todas as más alimentações a que a penúria nos
força a recorrer para abreviar nossa vida na esperança de a
suster.
Compreendem-se na peste todas as doenças contagiosas, que são
em número de, dois ou três mil. Esses dois presentes nos vêm
da Providência, A guerra, porém, que reúne todos esses
dons, nos vem da imaginação de trezentas ou quatrocentas pessoas
disseminadas pela superfície do globo sob o nome de príncipes
ou ministros; é provavelmente por essa razão que em várias
dedicatórias se chamam imagens vivas da Divindade (31).
O mais determinado adulador convirá sem esforço em que a guerra
acarreta sempre a peste e a miséria, por pouco que tenha visto os hospitais
dos exércitos da Alemanha (32), ou que tenha passado em aldeias onde
se fez algum grande movimento militar.
É sem dúvida uma bela arte a de desolar os campos, destruir
as casas e fazer morrer, anualmente, quarenta mil homens sobre cem mil. A
principio essa invenção foi cultivada por nações
reunidas para o bem comum; por exemplo, a dieta dos gregos declarou à
dieta da Frígia e dos povos vizinhos que ia partir num milheiro de
barcos de pesca a fim de os exterminar, se o pudesse.
O povo romano reunido julgou ser de seu interesse ir combater antes da colheita
contra o povo dos véios ou contra os volscos. E, alguns anos antes,
todos os romanos, estando encolerizados contra todos os cartagineses, bateram-se
longo tempo em mar e em terra. Não sucede o mesmo hoje em dia.
Um genealogista prova a um príncipe que este descende em linha reta
de um conde cujos pais tinham feito um pacto de família, há
trezentos ou quatrocentos anos, com uma casa de que nem sequer existe memória.
Essa casa tinha vastas pretensões sobre uma província cujo último
possessor morreu de apoplexia: o príncipe e seu conselho concluem sem
dificuldade que essa província lhe pertence por direito divino. Essa
província, que está situada a algumas centenas de léguas,
perde seu tempo em protestar que não o conhece, que não tem
nenhum desejo de vir a ser governada por ele; que, para dar leis à
gente, é preciso ao menos ter o seu consentimento: tais discursos chegam
aos ouvidos do príncipe, cujo direito é incontestável.
Este encontra imediatamente um grande número de homens que nada têm
que fazer nem que perder; veste-os com um grosso pano azul a cento e dez soldos
cada um, borda seus chapéus com fio branco ordinário, fá-los
manobrar um pouco e marcha para a glória.
Os outros príncipes que ouvem falar desse exército tomam parte
nele, cada um segundo seu poder, e cobrem uma pequena planície do país
de tantos matadores mercenário como Gengis Cã, Tamerlão,
Bajazés jamais tiveram em seu séquito.
Povos bastante afastados ouvem dizer que vai haver guerra e que há
cinco ou seis soldos diários a ganhar se quiserem participar da coisa:
dividem-se dentro em pouco em dois bandos, como ceifeiros, e vão vender
seus serviços a quem os queira empregar.
Então essas multidões se atiram umas contra outras, não
só sem ter interesse algum no processo, mas sem mesmo saber do que
se trata. São seis potências beligerantes ao mesmo tempo, ora
três contra três, ora duas contra quatro, ora uma contra cinco,
detestando-se todas igualmente entre si, unindo-se e atacando turno a turno;
todas de acordo num único ponto, o de fazer todo o mal possível.
O maravilhoso dessa empresa infernal é que cada chefe dos matadores
faz benzer suas bandeiras e invoca solenemente a Deus antes de ir exterminar
o próximo.
Se um chefe não teve a felicidade de fazer degolar senão dois
ou três mil homens, não agradece a Deus; mas assim alcance um
ativo de uns dez mil exterminados pelo fogo e pelo ferro, e por cúmulo
de graça alguma cidade seja totalmente destruída, então
canta-se aos quatro ventos uma longa canção, composta numa língua
desconhecida de todos os que combateram e repleta de barbarismos. A mesma
canção serve tanto para os casamentos ou nascimentos como para
as mortes: o que é imperdoável, sobretudo na nação
mais famosa por suas novas canções.
Paga-se por toda parte um certo número de arengadores a fim de celebrar
essas jornadas mortíferas; uns vestem-se com longos gibões pretos,
encimados por uma capa curta; outros usam uma camisa por cima da roupa; outros
levam um tirante matizado por cima da camisa. Todos falam muito; citam o que
se fez outrora na Palestina, a propósito de um combate em Veterávia.
O resto do ano esses indivíduos declamam contra os vícios.
Provam em três pontos e por antíteses que as damas que espalham
ligeiramente um pouco de carmim nas bochechas serão objeto de eternas
vinganças do Eterno; que Polieuto e Atália são obras
demoníacas; que um homem que manda pôr sobre sua mesa duzentos
escudos de peixe fresco num dia de quaresma beneficia sua saúde, e
que um pobre homem que come dois soldos de carneiro irá para sempre
a todos os diabos.
De cinco ou seis mil declamações dessa espécie, apenas
existem três ou quatro, compostas por um gaulês chamado Massilão,
que um homem honesto pode ler sem desgosto; mas em todos esses discursos não
há um só orador que ouse insurgir-se contra esse flagelo e esse
crime da guerra, que contém todos os flagelos e todos os crimes. Os
desgraçados arengadores falam sem cessar contra o amor, que é
a única consolação do gênero humano e a única
maneira de o reparar; nada dizem dos esforços abomináveis que
fazemos para destruí-lo.
Fizestes um péssimo sermão sobre a impureza, ó Bourdaloue!
mas nenhum sobre essas mortes variadas em tantos lugares, sobre essas rapinas,
sobre esses banditismos, sobre essa raiva universal que desola o mundo. Todos
os vícios reunidos de todas as idades e de todos os lugares jamais
igualarão os males produzidos por uma única campanha.
Miserável módico de almas, gritais durante cinco quartos de
hora por causa de algumas picadas de espinho e nada dizeis sobre a enfermidade
que nos estraçalha em mil pedaços! Filósofos moralistas,
queimai todos os vossos livros, Enquanto o capricho de alguns homens fizer
lealmente degolar milhares de nossos confrades, a parte do gênero humano
consagrada ao heroísmo será o que de mais afrontoso existe em
toda a natureza.
Que são, que me importam a humanidade, a beneficência, a modéstia,
a temperança, a doçura, a sabedoria, a piedade, quando meia
libra de chumbo atirada de seiscentos passos me inutiliza o corpo e morro
aos vinte anos entre padecimentos inexprimíveis, no meio de cinco ou
seis mil agonizantes, enquanto meus olhos que se abrem pela última
vez vêem a cidade em que nasci destruída pelo fogo e pelas chamas,
e os derradeiros sons que meu ouvido percebe são gritos de mulheres
e de crianças que expiram sob as ruínas, tudo pelos pretensos
interesses de um homem que não conhecemos?
E o que é pior, a guerra é um flagelo inevitável, Se
observarmos bem, todos os homens adoraram o deus Marte. Sabaote, entre os
judeus, significa o deus das armas; mas Minerva, em Homero, considera Marte
um deus furioso, insensato e infernal.
HISTÓRIA DOS REIS JUDEUS E PARALIPÔMENOS
Todos os povos escreveram sua história, desde que o puderam fazer.
Os judeus também escreveram a sua. Antes que tivessem reis viviam sob
o regime teocrítico; eram julgados e governados pelo próprio
Deus.
Quando os judeus desejaram um rei como os povos seus vizinhos, o profeta
Samuel declarou-lhes da parte de Deus que eles rejeitavam o próprio
Deus: assim findou a teocracia entre os judeus quando teve princípio
a monarquia.
Poder-se-ia, pois, dizer sem blasfemar que a história dos reis judeus
foi escrita como a dos outros povos, e que Deus não se deu ao trabalho
de contar, ele mesmo, a história de um povo que já não
governava.
É com extrema desconfiança que se aventa essa opinião.
O que a poderia confirmar é que os Paralipômenos contradizem
freqüentemente o Livro dos Reis na cronologia e nos fatos, assim como
os nossos historiadores profanos se contradizem algumas vezes. Demais, se
Deus sempre escreveu a história dos judeus, será preciso crer,
portanto, que continua a escrevê-la, porque os judeus continuam a ser
o seu povo querido. Eles dever-se-ão converter um dia e parece que
então estarão também no direito de considerar a história
de sua dispersão como sagrada, assim como têm direito de dizer
que Deus escreveu a história dos seus reis.
Pode-se ainda fazer uma reflexão: é que, tendo sido Deus o
seu úico rei durante longo tempo e em seguida seu historiador, deveremos
ter para com todos os judeus o mais profundo respeito. Não há
algibebe judeu que não esteja infinitamente acima de César e
Alexandre. Como evitar prosternar-se diante de um adelo que vos prova que
sua história foi escrita peia própria Divindade, enquanto as
histórias gregas e romanas não nos foram transmitidas senão
por profanos?
Se o estilo da História dos Reis e dos Paralipômenos é
divino, as ações relatadas nessas histórias nada têm
de divino. Davi assassina Urias; Isbosete e Mifibosete são assassinados;
Absalão assassina Amão; Joabe assassina Absalão; Salomão
assassina Adonias, seu irmão; Baasa assassina Nadabe; Zambri assassina
Ela; Amri assassina Zambri; Acabe assassina Nabote; Jeú assassina Acabe
e Jorâm; os habitantes de Jerusalém assassinam Amazias, filho
de Joas; Selum, filho de Jabes, assassina Zacarias, filho de Jeroboão;
Manaêm assassina Selum, filho de Jabes; Faceu, filho de Romélio,
assassina Facéia, filho de Manaêm; Ozeu, filho de Ela, assassina
Faceu, filho de Romélio. Silenciamos outros cardápios de assassínios.
É preciso compreender que se o Espírito Santo escreveu essa
história, não escolheu um assunto muito edificante.
ÍDOLO, IDÓLATRA, IDOLATRIA
Idolo vem do grego [grego], figura; [grego], representação
de uma figura; [grego], servir, reverenciar, adorar, O termo adorar é
latino, existindo várias acepções diferentes: significa
levar a mão à boca falando com respeito, curvar-se, ajoelhar-se,
saudar e, enfim, comumente, render um culto supremo.
É útil assinalar aqui que o Dictionnaire de Trévoux
começa esse artigo por dizer que todos os pagãos eram idólatras
e que os hindus ainda o são. Primeiramente, não se chamava pagão
a ninguém antes de Teodósio o Jovem; esse nome foi dado então
aos habitantes dos burgos da Itália, pagorum incolae, pagani, que conservavam
sua antiga religião. Em segundo lugar, o Indostão é maometano
e os maometanos são inimigos implacáveis das imagens e da idolatria.
Terceiro, não se deve chamar idólatras a muitos povos da Índia
que pertencem à antiga religião dos parsis, nem a certas castas
que não adoram ídolos.
Exame
Se houve alguma vez um governo idólatra
Parece não ter existido jamais nenhum povo sobre a terra que tenha
tomado esse nome de idólatra. Esse termo é uma injúria,
uma palavra ultrajante, tal como a de gavachos (33), que os espanhóis
davam outrora aos franceses, e o de maranes (34) que os franceses davam aos
espanhóis. Se se tivesse perguntado ao senado de Roma, ao Areópago
de Atenas, à corte dos reis da Pérsia: “Sois idólatras!”
– mal entenderiam a pergunta. Ninguém teria respondido: “Adoramos
imagens e ídolos”. Não se encontra o termo idólatra,
idolatria nem em Homero, nem em Esíodo, nem em Heródoto, nem
em qualquer outro autor da religião dos gentios. Jamais existiu édito,
lei alguma que ordenasse a adoração de ídolos, que fossem
usados como deuses, que se considerassem como deuses.
Quando os capitães romanos e cartagineses concluíam um tratado,
invocavam todos os seus deuses. “É na sua presença”
– diziam eles – “que juramos a paz”. Ora, as estátuas
de todos esses deuses, cuja enumeração seria muito longa, não
participavam da tenda dos generais. Consideravam os deuses como presentes
às ações dos homens, como testemunhas, como juizes e
com certeza não era o simulacro que constituía a divindade.
Com que olhos viam, pois, as estátuas das suas falsas divindades
nos templos? Com os mesmos olhos, se se permitir esta expressão, com
que vemos as imagens dos objetos de nossa veneração. O erro
não era adorar pedaços de mármore ou de madeira, mas
adorar uma falsa divindade, representada por essa madeira e por esse mármore.
A diferença entre eles e nós não é que eles tivessem
imagens e nós não. A diferença é que suas imagens
representavam seres fantásticos de uma religião falsa e as nossas
representam seres reais duma religião verdadeira. Os gregos tinham
a estátua de Hércules e nós a de S. Cristóvão;
tinham Esculápio e sua cabra e nós S. Roque e seu cão;
tinham Júpiter armado com um feixe de raios e nós Sto. Antônio
de Pádua e São Jaques de Compostela.
Quando o cônsul Plínio endereça suas preces aos deuses
imortais, no exórdio do Panegírico de Trajano, não é
às imagens que se dirige. Essas imagens não eram imortais.
Nem os últimos tempos do paganismo nem os mais remotos oferecem um
único fato que possa fazer concluir que se adorassem ídolos.
Homero fala apenas de deuses que habitavam o alto Olimpo. O palladium, ainda
que caído do céu, era apenas um penhor sagrado da proteção
de Palas; era a ela que se venerava no palladium.
Porém os romanos e os gregos ajoelhavam-se diante das estátuas,
davam-lhes coroas, incenso, flores, conduziam-nas em triunfo nas praças
públicas. Nós santificamos esses costumes, e não somos
idólatras.
As mulheres, em tempos de seca, carregavam as estátuas dos deuses
depois de haver jejuado. Caminhavam descalças, descabeladas, e em breve
chovia a cântaros, como dizia Petrônio, et estatim urceatim pluebat(35).
Não consagramos esse uso, ilegítimo entre os gentios e legítimo
sem dúvida alguma entre nós? Em quantas cidades não se
levam a pés nus os altares dos santos para obter as bênçãos
do céu por seu intermédio? Se um turco, um letrado chinês
presenciasse essas cerimônias, poderia, por ignorância, acusar-nos
desde logo de pôr nossa confiança em imagens que assim transportamos
em procissão; bastaria, porém, uma palavra para os desmentir.
Surpreendemo-nos do número prodigioso de declamações
debitadas em todos os tempos contra a idolatria dos romanos e dos gregos;
e mais ainda, nos surpreendemos ao saber que não foram idólatras.
Existiam templos mais privilegiados que outros. A grande Diana de Éfeso
tinha mais reputação do que uma Diana de aldeia. Operavam-se
mais milagres no templo de Esculápio em Epidauro que em outro qualquer
dos seus templos. A estátua de Júpiter Olímpico atraía
mais oferendas que a de Júpiter Paflagônio. Mas, desde que é
preciso sempre opor aos costumes de uma religião verdadeira os de uma
religião falsa, não tivemos nós, durante vários
séculos, mais devoção a certos altares do que a outros?
Não levamos mais ofertórios a Nossa Senhora de Loreto que a
Nossa Senhora das Neves? É a nós que compete saber se esse pretexto
serve para nos acusar de idolatria.
Não se imaginara senão uma só Diana, um só Apolo,
um único Esculápio, e não tantos Apolos, Dianas e Esculápios,
com seus respectivos templos e estátuas. Está pois provado,
tanto quanto o pode ser um ponto histórico, que os antigos não
criam em que uma estátua fosse uma divindade, que o culto não
podia ser relacionado a essa estátua, a esse ídolo e que, consequentemente,
os antigos nada tinham de idólatras.
Um populacho grosseiro, supersticioso, que não raciocinava, que não
sabia duvidar nem negar nem crer, que acorria aos templos por ociosidade e
porque aí os pequenos são iguais aos grandes, que levava sua
oferenda por costume, que falava continuamente de milagres sem nunca haver
examinado um deles, e que não estava acima das vítimas que causava;
esse populacho, digo, bem podia, à vista da grande Diana e de Júpiter
Tonante, ser ferido de um terror religioso e adorar, sem o saber, a própria
estátua. É o que em nossos templos aconteceu algumas vezes a
nossos grosseiros concidadãos. Entretanto, não cessamos de lhes
dizer que é aos bem-aventurados, aos imortais, recebidos no céu,
que eles devem solicitar, e não a figuras de madeira e de pedra, e
que apenas devem adorar a Deus.
Os gregos e romanos aumentaram por apoteoses o número de seus deuses.
Os gregos divinizavam os conquistadores, como Baco, Hércules e Perseu.
Roma erigiu altares aos seus imperadores. Nossas apoteoses são de gênero
diferente; temos santos em substituição a seus semideuses, seus
deuses secundários; mas não os consideramos mercê de seus
postos ou conquistas. Elevamos templos a homens simplesmente virtuosos que
seriam, na maioria, completamente ignorados sobre a terra se não tivessem
sido colocados no céu. As apoteoses dos antigos inspiravam-se na lisonja,
as nossas no respeito à virtude, mas essas antigas apoteoses constituem
ainda uma prova convincente de que os gregos e romanos nada tinham propriamente
de idólatras. Está claro que não admitiam mais uma virtude
divina na estátua de Augusto e Cláudio do que em suas medalhas.
Cícero, em suas obras filosóficas, não deixa sequer
supor que nos possamos enganar quanto às estátuas dos deuses,
confundindo-as com os próprios deuses. Seus interlocutores fulminavam
a religião estabelecida; mas nenhum deles sonha em acusar os romanos
de empregar o mármore e o bronze para as estátuas de suas divindades.
Lucrécio não reprova essa tolice a ninguém, ele que tudo
reprova aos supersticiosos. Portanto, ainda uma vez, essa opinião não
existia, não se fazia dela idéia alguma; não existiam
idólatras.
Horácio faz falar a uma estátua de Príapo, fazendo-lhe
dizer: “Eu fui outrora um tronco de figueira; um carpinteiro, não
sabendo se faria de mim um Deus ou um banco, determinou enfim tornar-me um
deus, etc.” (36). Que concluir desse gracejo? Príapo era dessas
pequenas divindades subalternas abandonadas ao gracejo; esse próprio
gracejo é a prova mais evidente de que essa figura de Príapo,
que se colocava nas hortas para espantar os pássaros, não era
muito venerada.
Dacier, entregando-se ao espírito comentador, não deixou de
observar que Baruch predissera essa aventura dizendo: “Eles serão
apenas o que quiserem os artífices”; porém ele deveria
observar também que se pode dizer outro tanto de todas as divindades.
Pode-se, de um bloco de mármore, fazer tão bem um fogão
como uma figura de Alexandre ou de Júpiter, ou qualquer outra coisa
mais respeitável. A matéria de que eram formados os querubins
do Santo dos Santos teria podido servir igualmente às funções
mais vis. Um trono, um altar, são menos venerados porque um operário
poderia ter feito com seu material uma mesa de cozinha?
Dacier, em lugar de concluir que os romanos adoravam a estátua de
Príapo e que Baruch o predissera, deveria pois concluir que os romanos
se riam dela. Consultai todos os autores que falam das estátuas dos
seus deuses e não encontrareis nenhum que fale em idolatria: eles dizem
expressamente o contrário. Vedes em Marcial:
Qui finxit sacros auro vel marmore vultus non facit ille deos…. (37).
Em Ovídio:
Colitur pro Jove forma Jovis (38).
Em Estácio:
Nulla autem effigies, nulli commissa metallo forma Dei; mentes habitare et
pectora gaudet (39).
Em Lucano:
Estne Dei sedes, nisi terra et pontus et aer? (40).
Far-se-ia um volume de todos os passos que afirmam que as imagens são
somente imagens.
Apenas o caso em que as estátuas concediam oráculos pode fazer
pensar que essas estátuas tinham alguma coisa de divino. Mas certamente
a opinião reinante era a de que os deuses tinham escolhido determinados
altares, determinadas imagens, para aí descerem algumas vezes, para
aí dar audiências aos homens, para lhes responder. Não
vemos em Homero e nos coros das tragédias gregas senão preces
a Apolo, que dava seus oráculos nas montanhas, em tal templo, em tal
cidade; não há, sem dúvida, em toda a antigüidade,
o menor vestígio de preces dirigidas a uma estátua.
Os que professavam a magia, os que a julgavam uma ciência ou que fingiam
crê-lo, pretendiam ter o segredo de fazer os deuses descerem às
estátuas; não os grandes deuses, mas os deuses secundários,
os gênios. É o que Mercúrio Trismegista chamava fazer
deuses; é isso que Sto. Agostinho refuta em sua Cidade de Deus. Porém
mesmo isso mostra evidentemente que as imagens nada tinham de divino, porquanto
era preciso que um mago as animasse. Parece-me que era muito raro um mago
ter habilidade suficiente para dar alma a uma estátua, para fazê-la
falar.
Numa palavra: as imagens dos deuses não eram deuses. Júpiter
e não sua imagem lançava o trovão; e não era a
estátua de Netuno que agitava os mares nem a de Apolo que fazia a luz.
Os gregos e os romanos eram gentios, politeístas e não idólatras.
Se os persas, os sabaenses, os egípcios, os tártaros, Os turcos
foram idólatras e de que antigüidade é a origem das imagens
chamadas “ídolos”. História do seu culto.
É um grande erro chamar idólatras aos povos que renderam culto
ao Sol e às estrelas. Essas nações não tiveram
por muito tempo nem imagens nem templos. Se se enganaram, foi em atribuir
aos astros o que deviam ao criador dos astros. O dogma de Zoroastro ou Zerdusto,
recolhido no Sadder, apresenta também um ente supremo, vingador e remunerador;
e isto está bem longe de ser idolatria. O governo da China não
teve jamais nenhum ídolo;, conservou sempre o culto simples do Senhor
dos Céus, King-tien. Gengis Cã, entre os tártaros, não
era idólatra nem possuía imagem alguma. Os muçulmanos,
que inçaram a Grécia, Ásia Menor, Síria, Pérsia,
Índia e África, chamam aos cristãos idólatras,
infiéis, pois acreditam que eles rendem culto às imagens. Quebraram
várias estátuas que encontraram em Constantinopla, em Santa
Sofia, na igreja dos Santos Apóstolos e em muitas outras que converteram
em mesquitas. A aparência os enganou como sempre engana os homens e
lhes fez crer que templos dedicados aos santos que tinham sido homens outrora,
imagens desses santos veneradas de joelhos, milagres operados nesses templos
eram provas irretorquíveis da mais consumada idolatria. Contudo, não
há nada disso. Os cristãos não adoram, na verdade, senão
um Deus único e não veneram nos seus bem-aventurados senão
a própria virtude de Deus que age em seus santos. Os iconoclastas e
os protestantes lançaram a mesma tacha de idolatria à igreja
e a mesma resposta lhes foi dada.
Como muito raramente tiveram os homens idéias precisas e menos ainda
exprimiram suas idéias por termos precisos e inequívocos, apelidamos
idólatras os gentios e sobretudo os politeístas. Escreveram-se
volumes imensos, debitaram-se sentimentos diversos sobre a origem desse culto
rendido a Deus ou a vários deuses sob figuras sensíveis: esta
multitude de livros e de opiniões não atesta senão ignorância.
Não se sabe quem inventou as vestes e os calçados e quer-se
saber quem primeiro inventou os ídolos? Que importa um trecho de Sanconiáton,
que viveu antes da guerra de Tróia? Que nos ensina ele quando diz que
o caos, o espírito, isto é, o sopro, enamorado de seus princípios,
lançou-lhes os alicerces, que tornou o ar luminoso, que o vento Colpo
e sua mulher Bau geraram Éon, que Éon gerou Genos, que Cronos,
seu descendente, tinha dois olhos atrás como na frente, que se tornou
Deus e que presenteou o Egito a seu filho Tot? Aí tendes um dos mais
respeitáveis monumentos da antigüidade.
Orfeu, anterior a Sanconiáton, nada nos poderá dizer de novo
em sua Teogonia, que Damácio nos transmitiu. Apresenta o princípio
do mundo sob a figura de um dragão de duas cabeças, uma de touro,
outra de leão, um rosto à metade, a que chama rosto-deus, e
asas douradas nas costas.
Podeis, porém, dessas estranhas idéias, tirar duas grandes
verdades: uma, que as imagens sensíveis e os hieróglifos são
da mais alta antigüidade; outra, que todos os filósofos antigos
reconheceram um primeiro princípio.
Quanto ao politeísmo, o bom senso vos dirá que, desde que
existiram homens, isto é, frágeis animais capazes de razão
e de loucura, sujeitos a todos os acidentes, à doença e à
morte, esses homens sentiram sua fraqueza e sua dependência; reconheceram
facilmente a existência de alguma coisa mais poderosa que eles; sentiram
uma força na terra que fornece seus alimentos, uma no ar que os destrói
com freqüência, uma no fogo que consome e na água que submerge.
Que mais natural, em homens ignorantes, que o imaginar seres que presidissem
a esses elementos? Que mais natural que venerar a força invisível
que fazia luzir diante dos olhos o Sol e as estrelas? E, desde que se desejou
formar uma idéia dessas forças superiores ao homem, que mais
natural ainda que o figurá-las de uma maneira sensível? Poderia
ser de outra forma? A religião judaica, que precedeu à nossa
e que foi dada por Deus, estava repleta dessas imagens sob as quais se representa
Deus. Ele se digna falar num espinheiro a linguagem humana; aparece sobre
uma montanha; os espíritos celestes que envia vêem todos sob
forma humana; enfim o santuário está repleto de querubins, que
são corpos de homens com asas e cabeças de animais. É
o que deu lugar ao erro de Plutarco, Tácito e tantos outros que reprovaram
aos judeus o adorar uma cabeça de asno. Deus, apesar de sua proibição
de se pintarem e esculpir figuras, dignou-se pois proporcionar-se à
fraqueza humana, que solicitava que se lhe falasse aos sentidos por meio de
imagens.
Isaías, no cap. 6, vê o Senhor sentado sobre um tronco e a
cauda de seu vestido que enchia o templo. O Senhor estende sua mão
e toca a boca de Jeremias, no capítulo 1 desse profeta. Ezequiel, no
capítulo 3, vê um trono de safira, e Deus lhe aparece como um
homem sentado em seu trono. Essas imagens não alteram em nada a pureza
da religião, que jamais empregou quadros, estátuas, ídolos,
para representar Deus aos olhos do povo.
Os letrados chineses, os parsis, os antigos egípcios não tiveram
ídolos; mas em breve Isis e Osiris foram figurados; em breve Bel, em
Babilônia, foi um grande colosso; Brama foi um estranho monstro na península
da Índia. Os gregos principalmente multiplicaram os nomes dos deuses,
as estátuas e os templos, mas sempre atribuindo a suprema potência
a seu deus Zeus, chamado pelos latinos Júpiter, senhor dos deuses e
dos homens. Os romanos imitaram os gregos. Esses povos colocaram sempre todos
os deuses no céu, sem saber que é que entendiam pelo céu
e pelo seu Olimpo; não havia o mínimo indício de que
esses deuses habitassem nas nuvens, que apenas são água. Colocaram-se,
primeiro, sete deuses em sete planetas; porém ao depois a morada de
todos os deuses foi a amplidão celeste.
Os romanos tiveram seus doze grandes deuses, seis varões e seis fêmeas,
a que chamaram Dii majorum gentium: Júpiter, Netuno, Apolo, Vulcano,
Marte, Mercúrio; Juno, Vesta, Minerva, Ceres, Vênus, Diana. Plutão
foi então esquecido; Vesta tomou seu lugar.
Em seguida vinham os deuses minorum gentium, os deuses indígetes,
os heróicos, como Baco, Hércules, Esculápio; os deuses
infernais, Plutão, Prosérpina; os do mar, como Tetis, Anfitrite,
as Nereidas, Glauco; depois as Dríadas, as Náiadas; os deuses
dos jardins, dos pastores. Havia-os para cada profissão, para cada
ação da vida, para as crianças, para as jovens casadouras,
para as casadas, para as amantes; houve o deus Pete. Divinizaram-se por fim
os imperadores. Nem esses imperadores, nem o deus Pete, nem a deusa Pertunda,
nem Príapo, nem Rumília, a deusa das tetas, nem Estercútio,
o deus do guarda-roupa, foram na verdade considerados como senhores do céu
e da terra. Os imperadores tiveram templos algumas vezes, os pequenos deuses
domésticos não os tiveram; mas todos tiveram sua figura, seu
ídolo.
Tratava-se de pequenos bonecos com os quais se ornavam os gabinetes; brinquedos
para velhas e crianças, que não estavam autorizados por nenhum
culto público. Deixava-se que cada particular tivesse as superstições
que melhor lhe agradassem. Encontram-se ainda esses pequenos ídolos
nas ruínas das cidades antigas.
Se ninguém sabe quando os ídolos começaram a ser fabricados,
sabe-se em compensação que remontam à mais alta antigüidade.
Tareu, pai de Abraão, construiu Ur, na Caldéia. Raquel roubou
e carregou os ídolos de seu avô Labão. Não é
possível ir mais longe.
Mas que noção precisa tinham as nações antigas
a respeito desses simulacros? Que virtude, que potência lhes atribulam?
Julgava-se que os deuses desciam do céu para se meterem nessas estátuas,
ou que lhes comunicavam uma parte do espírito divino, ou que não
lhes comunicavam coisa alguma? É este também um assunto sobre
o qual se tem escrito inutilmente; é claro que cada homem julgava segundo
a sua parcela de razão, ou de credulidade, ou de fanatismo. É
evidente que os padres ligaram as divindades o mais que puderam às
suas estátuas, a fim de conseguirem maior número de oferendas.
Sabe-se que os filósofos reprovavam essas superstições,
que os guerreiros as escarneciam, que os magistrados as toleravam e que o
povo, sempre absurdo, não sabia que fazer com elas. É esta em
poucas palavras a história de todas as nações a quem
Deus não se fez conhecer.
Pode-se fazer a mesma idéia do culto que todo o Egito rendia a um
boi e que várias cidades renderam a um cão, a um símio,
a um gato, a cebolas. Há muita aparência de que de começo
tenham servido como emblemas. Em seguida um certo boi Apis, um certo cão
chamado Anubis, foram adorados; comia-se diariamente carne de boi e cebolas;
é porém muito difícil saber que pensavam as velhas do
Egito a respeito dos bois e das cebolas sagradas.
Os ídolos falavam com freqüência. Comemoravam-se em Roma,
no dia da festa de Cibele, belas palavras que a estátua pronunciara
ao ser transladada do palácio do rei Atálio.
Ipsa peti volui; ne sit mora, mitte volentem:
dignus Roma locus quo deus omnis eat (41).
Eu quis que me levassem, levai-me depressa; Roma é digna de que todos
os deuses se estabeleçam nela.
A estátua da Fortuna falara: os Cipiões, os Cíceros;
os Césares, na: verdade, não acreditavam; mas a velha a quem
Encolpo deu um escudo a fim de que comprasse gansos e deuses bem poderia acreditá-lo.
Os ídolos também concediam oráculos, e os sacerdotes
metidos no oco das estátuas falavam em nome da Divindade.
Como, no meio de tantos deuses e de tantas teogonias diferentes e de cultos
particulares, jamais houve guerras de religião entre os povos chamados
idólatras? Essa paz foi um bem que nasceu de um mal, do erro mesmo:
porque, reconhecendo cada nação vários deuses inferiores,
achou bom que os seus vizinhos tivessem também os seus. Se excetuardes
Cambises, a quem se reprova o haver matado o boi Apis, não encontramos
na história profana nenhum conquistador que tenha maltratado os deuses
de um povo conhecido. Os gentios não tinham nenhuma religião
exclusiva, e os sacerdotes pensavam apenas em multiplicar as oferendas e os
sacrifícios.
As primeiras oferendas foram frutos. Em breve foram necessários animais
para a mesa dos sacerdotes; eles próprios os degolavam; tornaram-se
carniceiros, e cruéis; enfim introduziram o costume horrível
de sacrificar vitimas humanas e sobretudo crianças e mocinhas. Jamais
os chineses nem os parsis nem os hindus foram culpados de tais abominações;
mas em Hierópolis, no Egito, Segundo Porfírio, se imolaram homens.
Na Táurida sacrificavam-se os estrangeiros; felizmente os sacerdotes
da Táurida não deviam ter muitas práticas. Os primeiros
gregos, os cipriotas, os fenícios, os tirenses, os cartagineses tiveram
essa superstição abominável. Os próprios romanos
incorreram nesse crime de religião, e informa Plutarco que eles imolaram
dois gregos e dois gauleses para expiar os deslizes de três vestais.
Procópio, contemporâneo do rei dos francos Teodoberto, diz que
estes imolaram homens quando entraram na Itália com esse príncipe.
Os gauleses, os germanos, praticavam comumente esses sacrifícios afrontosos.
Não se pode ler a história sem conceber grande horror ao gênero
humano.
É verdade que, entre os judeus, Jefté sacrificou sua filha
e Saul esteve prestes a imolar seu filho; e é verdade que aqueles que
estivessem votados ao Senhor por anátema não poderiam ser resgatados
como se resgatavam os animais, sendo mister que perecessem. Samuel, sacerdote
de Deus, cortou em pedaços com o auxílio de um santo cutelo
o rei Agague, prisioneiro de guerra a quem Saul perdoara, e Saul foi reprovado
por ter observado o direito das gentes com esse rei. Mas Deus, senhor dos
homens, pode tirar-lhes a vida quando quiser, como quiser e para o que quiser;
e não compete aos homens colocar-se no posto de senhor da vida e da
morte e usurpar os direitos do Ente Supremo.
A fim de consolar o gênero humano do quadro horrível desses
piedosos sacrilégios, é importante saber que, em quase todas
as nações chamadas idólatras, existia a teologia sagrada
e o erro popular, o culto secreto e as cerimônias públicas, a
religião dos sábios e a do vulgo. Não se ensinava senão
um Deus aos iniciados nos mistérios; basta um relance de olhos sobre
o hino atribuído ao velho Orfeu, que se cantava nos mistérios
de Ceres Eleusina, tão célebre na Europa e na Ásia: “Contempla
a natureza divina, ilumina teu espírito, governa teu coração,
trilha o caminho da justiça; que o Deus do céu e da terra esteja
sempre presente aos teus olhos: ele é único, existe por si mesmo;
todos os seres devem-lhe a sua existência; ele os sustenta a todos;
ele jamais foi visto pelos mortais e vê todas as coisas.”
Que se leia ainda este passo do filósofo Máximo de Madauro,
em sua Carta a Santo Agostinho: “Qual o homem suficientemente grosseiro
e estúpido para duvidar haver um Deus supremo, eterno, infinito, que
nada engendrou de semelhante a si próprio e que é o pai comum
de todas as coisas?”.
Há milhares de provas de que os sábios abominavam não
só a idolatria mas também o politeísmo.
Epicteto, esse modelo de resignação e paciência, esse
homem tão grande de uma condição tão baixa, não
fala senão de um único Deus. Eis uma de suas máximas:
“Deus me criou, Deus está ao redor de mim; levo-o comigo por
toda parte. Poderia eu maculá-lo com pensamentos obscenos, com ações
injustas, com desejos infames? Meu dever é agradecer a Deus por tudo,
louvá-lo por tudo e não cessar de o bendizer senão quando
cessar de viver”. Todas as idéias de Epicteto giram sobre esse
princípio.
Marco Aurélio, tão grande, quiçá, sobre o trono
do império romano, como Epicteto na escravidão, fala com freqüência,
realmente, dos deuses, seja para se conformar à linguagem corrente,
seja para exprimir seres intermediários entre o Ser Supremo e os homens;
mas em quantos pontos não faz ele transparecer que apenas reconhece
um Deus eterno, infinito! “Nossa alma” – diz – “é
apenas uma emanação da Divindade. Meus filhos, meu corpo, meus
espíritos, vêm-me de Deus.”
Os estóicos, os platônicos, admitiam uma natureza divina e
universal; os epicuristas negavam-na. Os pontífices não citavam
senão um único Deus nos seus mistérios. Onde, pois, os
idólatras?
Aliás, é um dos grandes erros do Dictionnaire de Moréri
o dizer que no tempo de Teodósio o Jovem já não existiam
idólatras senão nos remotos países da Ásia e da
África. Havia na Itália muitos povos gentios ainda, mesmo no
sétimo século. O norte da Alemanha, desde o Weser, não
era cristão ao tempo de Carlos Magno. A Polônia e todo o setentrião
ficaram longo tempo depois dele no que chamamos idolatria. A metade da África,
todos os remos de além Ganges, o Japão, o populacho da China,
cem hordas de tártaros conservaram seu antigo culto. Apenas há
na Europa alguns lapões, alguns samoiedas, alguns tártaros que
perseveraram na religião de seus avitos.
Terminemos por fazer notar que, nos tempos que chamamos entre nós
idade média, chamávamos ao país dos mafomistas Pagânia;
tratávamos de idólatras, adoradores de imagens, um povo que
as abomina. Confessemos ainda uma vez que os turcos são mais escusáveis
de nos julgar idólatras quando vêem nossos altares carregados
de imagens e de estátuas.
IGUALDADE
Que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum
animal depende de seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio
da Divindade que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo
em quase toda a terra.
Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte
os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado
a sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro.
Cobrisse-se o globo de frutos salutares. Não fosse veículo de
doenças e morte o ar que contribui para a existência humana.
Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos
e capros monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões
vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante
virtuosos para auxiliá-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis,
tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera,
absurdo em que ninguém pensaria: para que servidores se não
tivésseis necessidade de nenhum serviço?
Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes
tirânicos e braços impacientes por submeter seu vizinho menos
forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse
tomado suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distância.
Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem precisões.
A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao
homem – O verdadeiro mal não é a desigualdade: é
a dependência. Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro
Sua Santidade. Duro porém é servir um ao outro.
Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias
vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir
ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes
vai oferecer seus braços à rica para ter pão. A outra
vai atacá-la e é derrotada. A família servente é
fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte
de escravos.
Impossível, neste mundo miserável, que a sociedade humana
não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimidos.
Essas duas classes se subdividem em mil outras, essas outras em sem conto
de cambiantes diferentes.
Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior
parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir
toda a miséria da própria situação. Quando a sentem,
porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido
do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França.
Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras desfecham com a submissão
do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no
estado. Digo no estado, porque o mesmo não se dá de nação
para nação. A nação que melhor se servir do ferro
sempre subjugará a que, embora mais rica, tiver menos coragem.
Todo homem nasce com forte inclinação para o domínio,
a riqueza, os prazeres e sobretudo para a indolência. Todo homem portanto
quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros,
ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer
ou pelo menos só fazer coisas muito agradáveis. Vedes que com
estas excelentes disposições é tão difícil
aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia
não se invejarem.
Tal como é, impossível o gênero humano subsistir, a
menos que haja infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque,
claro é que um homem satisfeito não deixará sua terra
para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não
será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é
pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.
Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageraram essa desigualdade.
Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar
em que a ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente:
Este pais é tão mau e tão mal governado que vedamos a
todo indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor:
infundi em todos os vossos súditos o desejo de permanecer em vosso
estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir.
Nos íntimos refolhos do coração todo homem tem direito
de crer-se de todo ponto igual aos outros homens. Daí não segue
dever o cozinheiro de um cardeal ordenar a seu senhor que lhe faça
o jantar; pode todavia dizer: “Sou tão homem como meu amo; nasci
como ele chorando; como eu ele morrerá nas mesmas angústias
e com as mesmas cerimônias. Temos ambos as mesmas funções
animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e eu virar cardeal e meu senhor
cozinheiro, tomá-lo-ei a meu serviço”. Tudo isso é
razoável e justo. Mas, enquanto o grão turco não se assenhorear
de Roma, o cozinheiro precisa cumprir suas obrigações, ou toda
a humanidade se perverteria.
Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo
no estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em
toda parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem
que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem
mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar
em suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte.
INFERNO
Desde que os homens começaram a viver em sociedade devem ter percebido
que não poucos criminosos escapavam á severidade das leis. Puniam-se
os crimes públicos: restava estabelecer um freio para os crimes secretos.
Só a religião poderia ser esse freio. Persas, caldeus, egípcios,
gregos, imaginaram castigos depois da morte. De todos os povos antigos que
conhecemos foram os judeus os únicos que não admitiam senão
castigos temporais. Ridículo é crer ou fingir crer, baseando-se
em passos obscuríssimos, que as antigas leis judaicas aceitavam a existência
do inferno, no Levítico como no Decálogo, quando o autor de
tais leis não diz uma única palavra que possa ter a menor relação
com os castigos da vida futura. Ter-se-ia direito de dizer ao redator do Pentateuco:
“Sois um homem inconseqüente, sem probidade e falto de senso, inteiramente
indigno do nome de legislador que vos arrogais. Como conheceis um dogma tão
altamente refreador, tão necessário ao povo como é o
do inferno, e não o anunciastes expressamente? Enquanto o admitem todas
as nações que vos cercam, contentai-vos em deixar adivinhar
este dogma por comentaristas que virão quatro mil anos depois de vós
e que torcerão vossas palavras para encontrar o que não dissestes?
Se, conhecendo esse dogma, dele não fizestes a base da vossa religião,
ou sois um ignorante que não sabia ser essa crença universal
no Egito, Caldéia e Pérsia, ou sois um homem pessimamente avisado”.
Quando muito podiam ou autores das leis judaicas responder: “De fato
somos muito ignorantes. De fato aprendemos a escrever demasiadamente tarde.
De fato nosso povo era uma horda selvagem e bárbara que, confessamos,
errou perto de meio século por ínvios desertos. De fato usurpamos
um diminuto país pelas mais odiosas rapinas e as mais nefandas crueldades
que regista a história. Não tínhamos o menor comércio
com as nações policiadas: como queríeis que inventássemos
– nós, os mais terrestres dos homens – um sistema totalmente
espiritual?.
“Não nos servíamos da palavra correspondente a alma
senão para exprimir a vida. Não conhecemos nosso Deus e seus
ministros, seus anjos, senão como entes corporais: a distinção
de alma e corpo, a idéia de uma vida após a morte só
podem ser fruto de longa meditação e filosofia muito fina. Perguntai
aos hotentotes e aos negros, que habitam um país cem vezes maior que
o nosso, se conhecem a vida futura. Cremos haver feito muito persuadindo nosso
povo de que Deus punia os malfeitores até a quarta geração
fosse pela lepra; fosse por mortes súbitas, fosse pela perda do pouco
que possuíssem”.
Replicar-se-ia a essa apologia: “Vós inventastes um sistema
cujo ridículo entra pelos olhos: o malfeitor bem aboletado na vida
e com a família a prosperar devia naturalmente rir-se de vós”.
Responderia o apologista da lei judaica: “Enganai-vos: para um criminoso
que raciocinasse bem haveria cem que nem raciocinariam. Aquele que, cometido
um crime, não se sentisse punido na própria pessoa nem na do
filho, temeria pelo neto. Demais, se não tivesse hoje alguma úlcera
asquerosa, a que freqüentemente estamos sujeitos, tê-la-ia ao cabo
de alguns anos. Em toda família sobrevêm desgraças e fácil
nos era fazê-las crer enviadas pela mão divina, vingadora das
faltas secretas”.
Seria fácil retrucar a essa resposta, dizendo: “Vossa escusa
é inconsistente, pois diariamente pessoas honestas perdem a saúde
e os bens. E se não há família a que não aconteçam
infortúnios, e se tais infortúnios são castigos de Deus,
então todas as vossas famílias eram famílias de estafadores”.
O padre judeu ainda poderia retorquir. Diria existirem males próprios
da natureza humana e males expressamente enviados por Deus. Mas far-se-ia
ver a esse raciocinador o quanto é ridículo pensar ser a febre
e o granizo ora punição divina, ora efeito natural.
Enfim, fariseus e essênios, entre os judeus, admitiram a crença
de um inferno a sua moda. Esse dogma já passara de gregos a romanos,
e foi perfilhado pelos cristãos.
Muitos santos da igreja não acreditaram nas penas eternas. Parecia-lhes
absurdo torrar eternamente um pobre diabo só por haver roubado uma
cabra. Em vão clama Virgílio no sexto canto da Eneida:
… Sedet aeternunque sedebit
infelix Theseus (42).
Em vão pretende achar-se Teseu para todo o sempre sentado numa cadeira,
sendo tal postura o seu suplício. Criam outros ser Teseu um herói
que não se acha no inferno, mas nos Campos Elíseos.
Não há muito um piedoso e honrado huguenote(43) pregou e escreveu
que um dia os precitos teriam sua mercê, que cumpria haver proporção
entre pecado e suplício e que a falta de um momento não podia
merecer um castigo infinito. Os padres seus confrades depuseram esse juiz
indulgente. Disse-lhe um deles: “Meu caro, não creio no inferno
mais que você. Mas é bom que o creiam a sua criada, o seu alfaiate
e também o seu procurador”.
INUNDAÇÃO
Terá existido um tempo em que o globo foi inteiramente inundado?
Isso é fisicamente impossível.
Pode ser que, sucessivamente, o mar tenha coberto todas as terras, umas
após outras; e isto não pode ter acontecido senão gradativa
e lentamente, numa prodigiosa série de séculos. O mar, em quinhentos
anos, retirou-se de Águas Mortas, de Frejus, de Ravena, que eram grandes
portos, e deixou cerca de duas léguas de terreno em seco. Mediante
essa progressão é evidente que lhe teriam sido necessários
dois milhões e duzentos e cinqüenta mil anos para dar volta ao
nosso planeta. Fato bem notável é que esse período se
aproxima muito do que seria preciso ao eixo da terra para se levantar e coincidir
com o equador: movimento muito verossímil que há cinqüenta
anos começou a ventilar-se, e que requer para a sua efetuação
um espaço de mais de dois milhões e trezentos mil anos.
Os leitos, as camadas de conchas descobertas por todas as costas a sessenta,
a oitenta, a cem léguas mesmo do mar, constituem prova incontestável
de que ele depositou pouco a pouco seus produtos marinhos sobre terrenos que
eram outrora as margens do oceano; porém que a água tenha coberto
inteiramente todo o globo de uma vez, é na física uma quimera
absurda demonstrada como impossível pelas leis da gravidade, pelas
leis dos fluidos, pela insuficiência da quantidade de água. Não
que se pretenda atacar de forma alguma a grande verdade do dilúvio
universal, relatada no Pentateuco: ao contrário, é um milagre,
portanto é preciso crê-lo; é um milagre, portanto não
pôde ter sido executado por leis físicas.
Tudo é milagre na história do dilúvio: milagre que
quarenta dias de chuva tenham inundado as quatro partes do mundo e que a água
tenha se elevado quinze côvados a cima de todas as mais altas montanhas;
milagre que tenham existido cataratas, portas, aberturas no céu; milagre
que todos os animais se tenham dirigido para a Arca, vindos de todas as partes
do mundo; milagre que Noé tenha encontrado com que alimentá-los
durante seis meses; milagre que todos os animais tenham cabido na Arca, com
todas suas provisões; milagre que a maioria não tenha morrido;
milagre que tenham encontrado com que se nutrir ao sair da Arca; milagre,
ainda, mas de outra espécie, que um tal Le Pelletier (44) tenha julgado
explicar como todos os animais puderam caber e nutrir-se naturalmente na Arca
de Noé.
Ora, sendo a história do dilúvio a coisa mais miraculosa de
que jamais se falou, insensato seria o explicá-la: trata-se de mistérios
que se acreditam pela fé; e a fé consiste em crer no que a razão
absolutamente não crê, o que constitui, ainda, outro milagre.
Assim a história do dilúvio universal é como a da torre
de Babel, da burra de Balaão, da queda de Jericó ao som das
trombetas, das águas transformadas em sangue, da passagem do Mar Vermelho
e de todos os prodígios que Deus se dignou fazer em favor dos eleitos
de seu povo; trata-se de profundezas que o espírito humano não
pode sondar.
IRRACIONAIS
Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os irracionais
são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem
sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! (45)
Então aquela ave que faz seu ninho em semicírculo quando o
encaixa numa parede, em quarto de círculo quando o engasta num ângulo
e em círculo quando o pendura numa árvore, procede aquela ave
sempre da mesma maneira? Esse cão de caça que disciplinaste
não sabe mais agora do que antes de tuas lições? O canário
a que ensinas uma ária, repete-a ele no mesmo instante? Não
levas um tempo considerável em ensiná-lo? Não vês
como ele erra e se corrige?
Será porque falo que julgas que tenho sentimento, memória,
idéias? Pois bem, calo-me. Vês-me entrar em casa aflito, procurar
um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembra tê-lo
guardado, encontrá-lo, lê-lo com alegria. Percebes que experimentei
os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória
e conhecimento.
Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o
por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce
e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado,
a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias.
Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente
vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo
para mostrar-te suas veias mesaraicas. Descobres nele todos os mesmos órgãos
de sentimento de que te gabas. Responde-me, maquinista, teria a natureza entrosado
nesse animal todos os elatérios do sentimento sem objetivo algum? Terá
nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão
impertinente contradição.
Perguntam os mestres da escola o que é então a alma dos irracionais.
Não entendo a pergunta. A árvore tem a faculdade de receber
em suas fibras a seiva que circula, de desenvolver os botões das folhas
e dos frutos: perguntar-me-eis o que é a alma da árvore? Ela
recebeu estes dons. O animal foi contemplado com os dons do sentimento, da
memória, de certo número de idéias. Quem criou esses
dons? Quem lhes outorgou essas faculdades? Aquele que faz crescer a erva dos
campos e gravitar a Terra em torno do Sol.
As almas dos brutos são formas substanciosas, disse Aristóteles
e depois de Aristóteles a escola árabe, depois da escola árabe
a escola angélica, depois da escola angélica a Sorbonne e depois
da Sorbonne ninguém.
As almas dos brutos são materiais, proclamam outros filósofos,
nem mais nem menos felizes que os primeiros. Em vão perguntou-se-lhes
o que é alma material: precisam convir em que é a matéria
que sente. Mas quem deu sensibilidade à matéria? Alma material…
Quer dizer que é a matéria que dá sensibilidade à
matéria. E não saem desse círculo.
Ouvi outra sorte de irracionais racionando sobre os irracionais: A alma
dos brutos é um ser espiritual que morre com o corpo. Que prova tendes
disso? Que idéia concebeis desse ser espiritual que em verdade tem
sentimento, memória e sua medida de idéias e associações,
mas que jamais poderá saber o que sabe uma criança de dez anos?
Os maiores irracionais são os que aventaram não ser essa alma
nem corpo nem espírito. Aí está um curioso sistema. Não
podemos entender por espírito senão algo desconhecido e incorporal:
a isto pois reduz-se o sistema desses senhores a alma dos seres brutos é
uma substância nem corporal nem incorporal.
A que atribuir tantos e tão contraditórios erros? Ao vezo
que sempre tiveram os homens de querer saber o que seja uma coisa antes de
saber se existe. Dizemos a lingüeta, o batoque do fole, a alma do fole.
Que é essa alma? Um nome que dei à válvula que, quando
toco o fole, baixa e sobe para dar entrada e saída ao ar.
O fole não tem alma de espécie alguma. É simplesmente
uma máquina. Quem toca, porém, o fole dos animais? Já
o disse: aquele que move os astros. Tinha razão o filósofo que
disse: Deus est anima brutorum. Mas devia ter ido mais longe.
JEFTÉ
Ou dos sacrifícios de sangue humano
Evidencia-se do texto do livro dos Juizes que Jefté prometeu sacrificar
a primeira pessoa que saísse de sua casa para vir felicitá-lo
pela sua vitória sobre os amonitas. Sua filha única se lhe apresentou;
então ele lhe rasgou a roupa, imolando-a após ter-lhe permitido
ir prantear nas montanhas a desdita de morrer virgem. Durante muito tempo
as filhas judias celebraram essa aventura, chorando a filha de Jefté
por quatro dias(46).
Em que tempo essa história foi escrita, que seja uma imitação
da história grega de Agamenon e Idomenéia ou tenha sido imitada,
que lhe seja anterior ou posterior, não é isso o que examino;
atenho-me ao texto: Jefté votou sua filha em holocausto e cumpriu o
seu voto.
Ordenava expressamente a lei judaica que se imolassem os homens votados
ao Senhor. “Nenhum homem votado obterá resgate mas receberá
morte sem remissão”. A Vulgata traduz: Non redimetur, sed morte
morietur (47).
Foi em virtude dessa lei que Samuel cortou em pedaços o rei Agague,
a quem Saul perdoara; e justamente por haver poupado Agague Saul foi admoestado
pelo Senhor e perdeu o seu reino.
Eis, pois, sacrifícios de sangue humano claramente estabelecidos;
não há ponto histórico melhor averiguado. Não
se pode julgar de uma nação a não ser por seus arquivos
e pelo que ela refere de si própria.
JOSÉ
A história de José, considerada apenas como objeto de curiosidade
e literatura, é um dos monumentos mais preciosos da antigüidade
que até nós chegaram. Parece ser o modelo de todos os escritores
orientais; é mais tocante do que a Odisséia de Homero, pois
um herói que perdoa é mais comovedor do que aquele que se vinga.
Consideramos os árabes como os primeiros autores dessas ficções
engenhosas que foram traduzidas para todas as línguas; não vejo,
porém, neles, aventura alguma comparável à de José.
Porque ela é maravilhosa em sua quase totalidade e o fim pode fazer
verter lágrimas de enternecimento. É um jovem de dezesseis anos
invejado por seus irmãos; é vendido por eles a uma caravana
de mercadores israelitas, conduzido ao Egito e comprado por um eunuco do rei.
Esse eunuco tinha uma mulher, o que não é de admirar: o Quizlar
Aga, eunuco perfeito, a quem arrancaram todo o aparelho genital, tem um serralho
em Constantinopla; deixaram-lhe os olhos e as mãos e a natureza não
perdeu seus direitos no seu coração. Os outros eunucos, aos
quais apenas cortaram os testículos, empregam ainda, muitas vezes,
o órgão principal; e Putifar, a quem José foi vendido,
bem poderia pertencer ao número desses eunucos.
A mulher de Putifar apaixona-se pelo jovem José que, fiel ao seu
sino e benfeitor, rejeita as carícias dessa mulher. Ela irrita-se e
acusa José de pretender seduzi-la. É a história de Hipólito
e Fedro, de Belerofonte e Estenobéia, de Hebro e Damasipe, de Tanis
e Peribéia, de Mirtila e Hipodâmio, de Peléia e Demeneto.
Difícil é conhecer a origem de todas essas histórias,
mas nos antigos autores árabes há um passo concernente à
aventura de José e da mulher de Putifar que é bastante engenhoso.
O autor supõe que Putifar, duvidoso entre sua mulher e José,
não olhou para a túnica de José, que sua mulher rasgara,
como uma prova do atentado do jovem.
Havia um menino no berço, no aposento da mulher; José disse
que ela lhe rasgara e tirara a túnica na presença da criança.
Putifar consultou o menino, cujo espírito era bem desenvolvido para
sua idade; a criança falou a Putifar: “Verificai se a túnica
está rasgada na frente ou atrás: se o estiver na frente é
prova de que José quis tomar vossa mulher a força; se, pelo
contrário, estiver rasgada por detrás, é prova de que
vossa mulher correu em sua perseguição”. Putifar, graças
ao gênio desse menino, reconheceu a inocência do seu escravo.
É assim que essa aventura foi relatada no Alcorão pelo antigo
autor árabe. Ele se esquece de nos dizer a quem pertencia a criança
que julgou com tanto espírito; se existisse um filho da Putifar, José
não teria sido o primeiro homem desejado por essa mulher.
Seja como for, José, segundo o Gênesis, é posto na prisão
e ali se encontra em companhia do copeiro e do padeiro do rei do Egito. Esses
dois prisioneiros sonham à noite: José explica os seus sonhos;
prediz-lhes que no lapso de três dias o copeiro será agraciado
e o padeiro enforcado, o que não deixou de suceder.
Dois anos após o rei do Egito sonha também; seu copeiro revela-lhe
a existência de um jovem judeu, na prisão, que é o primeiro
homem do mundo em compreender os sonhos; o rei faz vir à sua presença
o jovem, que lhe prediz sete anos de abundância e sete de esterilidade.
Interrompamos um pouco o fio da história para verificar de que prodigiosa
antigüidade é a interpretação dos sonhos. Jacó
viu em sonho a escada misteriosa no alto da qual estava Deus em pessoa; aprendeu
em sonho o método de multiplicar os rebanhos, método que jamais
deu resultado senão para ele próprio. O próprio José
soubera por um sonho que um dia haveria de dominar seus irmãos. Abimeleque,
muito antes, fora advertido em sonho de que Sara era mulher de Abraão.
Voltemos a José. Logo que explicou o sonho do faraó, foi nomeado
primeiro ministro. É de se duvidar que exista hoje um rei, mesmo na
Ásia, capaz de conceder tão elevado cargo pela simples explicação
de um sonho. O faraó deu por esposa a José uma filha de Putifar.
Sabe-se que esse Putifar era sumo sacerdote de Heliópolis: não
foi pois o eunuco, seu primeiro senhor; ou se o fosse, teria naturalmente
outro título que não o de sumo sacerdote, e sua mulher teria
sido mãe mais de uma vez.
Entretanto a miséria chegou, como o havia predito José, e
este, a fim de merecer as boas graças do seu rei, obrigou todo o povo
a vender suas terras ao faraó; e toda a nação se tornou
escrava para conseguir trigo: reside nesse fato, aparentemente, a origem do
poder despótico. É preciso notar que jamais um rei fez melhor
negócio; mas também o povo não tinha motivos para bem
dizer o primeiro ministro.
Enfim, o pai e os irmãos de José tiveram também necessidade
de pão, pois a miséria assolava naquele tempo a terra inteira.
Não vale a pena relatar aqui a forma por que José recebeu seus
irmãos, como os perdoou e enriqueceu. Encontramos nessa história
tudo que constitui um interessante poema épico. Exposição,
articulação, reconhecimento, peripécia e maravilhoso.
Nada mais característico do gênio oriental.
O que o bom Jacó, pai de José, respondeu ao faraó,
deve bem comover os que sabem ler. “Qual é vossa idade?”
– perguntou-lhe o rei. – “Tenho cento e trinta anos”,
– respondeu o velho, – “e ainda não encontrei um
dia feliz nesse curto peregrinar”.
LEIS (DAS)
Nos tempos de Vespasiano e Tito, em que os romanos se dedicavam a abrir
o ventre dos judeus, um israelita riquíssimo, que não tinha
o mínimo desejo de sofrer idêntica operação, fugiu
com todo o ouro que ganhara em seu ofício de usurário, conduzindo
para Eziongaber toda a sua família, que consistia em sua velha mulher,
um filho e uma filha. Levava também consigo dois eunucos, um dos quais
lhe servia de cozinheiro, outro de lavrador e vinhateiro. Um bom essênio
que conhecia o Pentateuco de cor servia-lhe de capelão. Embarcaram-se
no porto de Eziongaber, atravessaram o mar a que chamamos Vermelho e que de
vermelho nada tem, e entraram no golfo Pérsico, a fim de procurar a
terra de Ofir, sem saber onde ficava. Podeis crer como verdade absoluta ter
sobrevindo uma terrível tempestade que atirou a família hebraica
às costas das Índias; o navio naufragou numa das ilhas Maldivas,
chamada hoje em dia Padrabranca, que era então deserta.
O velho ricaço e a velha se afogaram; o filho, a filha, os dois eunucos
e o capelão salvaram-se; tiraram da melhor forma algumas provisões
do navio, construíram umas pequenas cabanas na ilha e aí puseram-se
a viver comodamente. Sabei que a ilha de Padrabranca está situada a
cinco graus da linha, e que aí se encontram os maiores cocos e os melhores
ananases do mundo. Era pois muito agradável viver ali enquanto noutros
lugares se degolavam os restos da nação querida; mas o essênio
lamentava-se considerando que talvez não houvesse mais judeus sobre
a terra e que a semente de Abraão iria terminar.
“A vós somente compete ressuscitá-la – disse o
jovem judeu: desposai minha irmã. – Bem o desejaria, –
disse o capelão, – porém a lei se opõe. Eu sou
essênio fiz voto de jamais me casar; a lei manda que cada um cumpra
o seu voto: acabe-se a raça judaica se assim se quer, mas certamente
eu jamais casarei com vossa irmã, por bonita que for.
— Meus dois eunucos não lhe podem fazer filhos, – retornou
o judeu; – fa-los-ei portanto eu, com vosso beneplácito e vossa
bênção.
— Antes queria eu ser mil vezes degolado pelos soldados romanos, –
respondeu o capelão, – do que me acumpliciar num incesto; se
ela fosse vossa irmã paterna, ainda era possível, a lei o permite;
mas não, ela é vossa irmã materna; isso é abominável.
— Compreendo – disse o jovem – que seria um crime em Jerusalém,
onde outras filhas judias estariam à minha disposição;
mas na ilha de Padrabranca, onde apenas vejo cocos, ananases e ovos, creio
ser coisa bem permissível”.
O judeu casou, pois, com sua irmã, e teve uma filha, apesar dos protestos
do essênio: foi o único fruto de um casamento que um julgava
legítimo e outro abominável. Ao cabo de catorze anos a mãe
morreu; disse o pai ao capelão: “Desfizestes-vos finalmente de
vossos preconceitos? Quereis desposar minha filha? – Deus me preserve
disso! – retrucou o essênio. – Pois bem! então eu
casarei com ela, disse o pai; seja o que for; mas não quero que a semente
de Abraão seja reduzida a nada”. O essênio, espantado com
tão horrível propósito, não quis saber de continuar
a viver com um homem que desrespeitava a lei e fugiu. O recém casado
perdeu seu tempo em gritar-lhe: “Ficai comigo, meu amigo; eu observei
a lei natural, eu sirvo à pátria, não abandoneis os vossos
amigos”. O outro deixou-o gritar, metida que tinha, sempre, a lei na
cabeça, e fugiu a nado para a ilha próxima.
Era a grande ilha de Atola, muito povoada e civilizada; apenas chegou fizeram-no
escravo. Aprendeu a balbuciar a língua de Atola; queixou-se amargamente
pelo modo inhospitaleiro por que fora recebido: disseram-lhe que era a lei,
e que desde que a ilha estivera a ponto de ser atacada de surpresa pelos habitantes
da de Ada, estabelecera-se sabiamente que todos os estrangeiros que ali fossem
ter seriam submetidos como escravos. “Isso não pode ser uma lei”,
– disse o essênio, – “pois não está
escrito no Pentateuco. Responderam-lhe que em compensação estava
escrito no digesto do país, e ele permaneceu escravo: tinha, aliás,
um ótimo senhor que o tratava muito bem e ao qual se prendeu pelos
mais fortes laços de amizade.
Alguns assassinos vieram um dia para matar o dono e roubar-lhe seus tesouros;
perguntaram aos escravos se estava em casa e se tinha muito dinheiro. “Juramo-vos
– responderam os escravos – que ele não tem dinheiro algum
e que não está em casa”. Disse porém o essênio:
“A lei não me permite mentir; juro-vos que está em casa
e que tem muito dinheiro”. Assim o dono foi roubado e morto. Os escravos
acusaram o essênio perante os juizes de haver traído seu patrão;
o essênio alegou que não quisera mentir, nem mentiria por nada
no mundo; e foi enforcado.
Essa historieta e muitas outras parecidas foram-me contadas na última
viagem que fiz às Índias. Quando cheguei, fui a Versalhes para
alguns negócios; vi passar uma bela mulher seguida de grande número
de outras também belíssimas. “Quem é essa mulher?”
perguntei ao meu advogado no parlamento, que viera comigo: pois tinha um processo
no parlamento de Paris, em virtude dos hábitos que adquiri nas Índias,
e desejava ter constantemente meu advogado comigo. “É a filha
do rei, – disse ele: – é encantadora e caridosa; é
uma grande pena que, em caso algum, jamais possa ser rainha de França.
— Como, – disse-lhe eu – se tivéssemos a desgraça
de perder todos os seus parentes e príncipes de sangue (o que Deus
não permita!) ela não poderia herdar o reino de seu pai? –
Não, – disse o advogado – a lei sálica se opõe
formalmente a isso – E quem fez essa lei? – perguntei ao advogado.
– Nada sei a esse respeito, – disse ele; – mas costuma-se
dizer que um antiquíssimo povo chamado sálicos, que não
sabiam ler nem escrever, tiveram um tempo uma lei escrita a qual dizia que
em terra sálica nenhuma filha podia herdar; e essa lei foi adotada
em terras não sálicas. – Pois eu – respondi –
casso-a por minha conta; afirmastes-me que essa princesa é encantadora
e caridosa; portanto ela teria um direito incontestável à coroa
se a infelicidade a tornasse única remanescente do sangue real: minha
mãe herdou de seu pai e eu quero que a princesa herde do seu”.
No dia seguinte o meu processo foi julgado numa das câmaras do parlamento:
perdi por unanimidade; explicou-me o meu advogado que eu teria ganho também
por unanimidade numa outra câmara. “Eis uma coisa bem cômica
– disse-lhe eu; – de modo que, cada câmara, cada lei. –
Sim, – disse ele – há vinte e cinco comentários
sobre a lei municipal de Paris; isto é, provou-se vinte e cinco vezes
que a lei municipal de Paris está errada; e se houvesse vinte e cinco
câmaras de juizes haveria também vinte e cinco jurisprudências
diferentes. Temos, – continuou ele – a quinze léguas de
Paris uma província chamada Normandia, onde seríeis julgado
de forma muito diferente daqui”.
Isto deu-me vontade de ver a Normandia. Para lá me dirigi com um
de meus irmãos. Encontramos no primeiro hotel um jovem que se lamentava,
desesperado; perguntando-lhe em qual a causa de sua desgraça, respondeu-me
que era ter um irmão mais velho.
— Em que consiste pois a grande desgraça de ter um irmão
mais velho? – perguntei-lhe; – meu irmão é mais
velho do que eu e no entanto vivemos muito bem juntos.
— Ah! senhor, – disse-me ele, – a lei aqui tudo concede
aos primogênitos sem nada deixar aos caçulas.
— Tendes razão – disse-lhe eu – de estar zangado;
em nossa cidade repartimos igualmente, e nem sempre os irmãos se estimam
melhor por isso.”
Essas pequenas aventuras proporcionaram-me belas e profundas reflexões
sobre as leis, e verifiquei serem elas como nossos trajes: em Constantinopla
fui obrigado a usar um dólman, em Paris um gibão.
Se todas as leis humanas são apenas convenções, disse
eu, o que vale é fazer-se um bom contrato. Os burgueses de Deli e Agra
dizem ter feito um péssimo contrato com Tamerlão; os burgueses
de Londres felicitam-se pelo ótimo ajuste que fizeram com o rei Guilherme
de Orange.
Um cidadão de Londres dizia-me certo dia: “É a necessidade
que faz as leis, e a força as faz observar”. Perguntei-lhe se
a força não fazia também leis em algumas ocasiões,
e se Guilherme, o Bastardo e o Conquistador, não lhes havia dado ordens
sem estabelecer contrato algum. “Sim”, – disse ele –
“nesse tempo éramos uns bois; Guilherme nos colocou uma canga
e nos fez caminhar a golpes de aguilhão; depois nos transformamos em
homens, porém os cornos nos ficaram e com eles maltratamos todos os
que pretendem que trabalhemos para eles e não para nós mesmos”.
Tomado de todas estas reflexões comprazia-me em pensar que existe
uma lei natural, independente de todas as convenções humanas:
o fruto de meu trabalho deveria ser meu; devia honrar meu pai e minha mãe;
não tenho direito algum sobre a vida do meu próximo e meu próximo
não o tem sobre a minha, etc. Mas, quando pensei que, de Codorlaomor
até Mentzel (48), coronel dos hussardos, cada um mata lealmente e saqueia
o próximo com uma ordem de autorização no bolso do colete,
fiquei bem aflito.
Contaram-me que entre os ladrões havia leis, e que as havia também
na guerra. Perguntei quais eram essas leis da guerra. “A lei”,
me dizem, “de enforcar um bravo oficial que tenha resistido numa péssima
posição, sem canhão, a um exército real; a lei
de enforcar um prisioneiro porque o adversário enforcou um dos vossos;
a lei de pôr a fogo e sangue as aldeias que não tiverem enviado
sua contribuição no dia designado, segundo as ordens do gracioso
soberano das vizinhanças”. – “Muito bem, disse eu,
eis o Espírito das leis”.
Depois de bem informado, descobri que existem sábias leis mediante
as quais um pastor é condenado a nove anos de cárcere por ter
dado um pouco de sal estrangeiro a seus carneiros. Meu vizinho foi arruinado
por um processo: mandou cortar dois troncos que lhe pertenciam, em seu bosque;
foi punido portanto por não ter podido observar uma formalidade que
não pôde conhecer; sua mulher morreu na miséria e seu
filho arrasta a vida mais infeliz. Confesso que essas leis são justíssimas,
não obstante a sua execução ser um bocado dura; dão-me
porém calafrios as leis que autorizam cem mil homens a degolar lealmente
cem mil vizinhos. Pareceu-me que a maioria dos homens receberam da natureza
um senso comum suficiente para fazer leis, mas nem todo mundo tem justiça
suficiente para fazer boas leis.
Reuni os agricultores simples e tranqüilos de um lado a outro da terra;
todos eles convirão em que deve ser permitido vender aos vizinhos o
excedente do seu trigo e que a lei contrária é inumana e absurda;
que as moedas representativas dos gêneros deverão ser tão
puras como os frutos da terra; que um pai de família deverá
ser dono de sua casa; que a religião deve reunir os homens a fim de
os unir e não para fazer deles fanáticos e perseguidores; que
os que trabalham não devem ser privados dos frutos de seu trabalho
com o fim de alimentar a superstição e a ociosidade: eles farão
numa hora trinta leis desta espécie, todas úteis ao gênero
humano.
Chegue porém Tamerlão e subjugue a Índia; então
não vereis senão leis arbitrárias. Uma asfixiará
uma província para enriquecer um rendeiro de Tamerlão; outra
transformará num crime de lesa majestade o ter falado mal da mulher
do primeiro camarista de um raja; terceira apoderar-se-á da metade
da colheita do agricultor, contestando-lhe o resto; enfim existirão
leis mediante as quais um bedel tártaro virá arrancar vossos
filhos do berço, fará do mais robusto um soldado e do mais fraco
um eunuco, deixando o pai e a mãe sem consolo.
Ora, que vale melhor ser: o cão de Tamerlão ou seu súdito?
É claro que a regalia do seu cão é muito superior.
LEIS CIVIS E ECLESIÁSTICAS
Foram encontradas nos papéis dos jurisconsultos estas notas, que
talvez mereçam um pouco de exame.
Que jamais lei eclesiástica alguma seja válida senão
mediante sanção expressa do governo. Foi desse modo que Atenas
e Roma nunca tiveram querelas religiosas. Tais litígios são
patrimônio das nações bárbaras ou transformadas
em bárbaras.
Que apenas o magistrado possa permitir ou proibir o trabalho nos dias de
festa, pois não cabe aos padres proibir aos indivíduos o cultivo
de seus campos.
Que tudo o que concerne aos casamentos dependa exclusivamente do magistrado,
e que os padres se atenham à augusta função de os abençoar.
Que o padre interessado seja puramente um objeto da lei civil, porquanto
apenas ela preside, ao comércio.
Que todos os eclesiásticos sejam submetidos em todos os casos ao
governo, porquanto são súdito do estado.
Que em tempo algum se cometa o ato ridículo e indecoroso de pagar
a um padre estrangeiro a primeira anualidade da renda de uma terra que cidadãos
deram a um padre concidadão.
Que padre algum jamais possa subtrair a um cidadão a mínima
prerrogativa, sob pretexto de que tal cidadão seja um pecador, pois
o padre pecador deve rezar pelos pecadores e não julgá-los.
Que os magistrados, os lavradores e os padres paguem igualmente os impostos
do estado, pois todos pertencem igualmente ao estado.
Que não haja senão um peso, uma medida, um costume.
Que os suplícios dos criminosos sejam úteis, um homem enforcado
não serve para nada, e um homem condenado aos trabalhos públicos
ainda serve à pátria, constituindo uma lição viva.
Que toda lei seja clara, uniforme, precisa: interpretá-la é
quase sempre corrompê-la.
Que nada, a não ser o vício, seja infame.
Que os impostos sejam sempre proporcionais.
Que a lei jamais esteja em contradição com o uso: porque se
o uso é bom, a lei nada vale.
LIBERDADE (DA)
A
Eis uma bateria de canhões que atira junto aos nossos ouvidos; tendes
a liberdade de ouvi-la e de a não ouvir?
B
É claro que não posso evitar ouvi-la.
A
Desejaríeis que esse canhão decepasse vossa cabeça
e as de vossa mulher e vossa filha que estivessem convosco?
B
Que espécie de proposição me fazeis? Eu jamais poderia,
em meu são juízo, desejar semelhante coisa. Isso me é
impossível.
A
Muito bem; ouvis necessariamente esse canhão e, também necessariamente,
não quereis morrer, vós e vossa família, de um tiro de
canhão; não tendes nem o poder de não ouvi-lo nem o poder
de querer permanecer aqui.
B
Isso é evidente.
A
Em conseqüência, destes uma trintena de passos a fim de vos colocardes
ao abrigo do canhão: tivestes o poder de caminhar comigo estes poucos
passos?
B
Nada mais verdadeiro.
A
E se fôsseis paralítico? Não teríeis podido evitar
ficar exposto a essa bateria; não teríeis o poder de estar onde
agora estais: teríeis então necessariamente ouvido e recebido
um tiro de canhão e necessariamente estaríeis morto?
B
Nada mais claro.
A
Em que consiste, pois, vossa liberdade, senão está no poder
exercido pelo vosso indivíduo de fazer o que a vossa vontade exigia
com absoluta necessidade?
B
Embaraçais-me; então a liberdade é apenas o poder de
fazer o que bem entendo?
A
Refleti um pouco. Vede se a liberdade pode ser outra coisa.
B
Neste caso o meu cão de caça é tão livre como
eu; ele tem necessariamente a vontade de correr quando vê uma lebre
e o poder de correr se não estiver doente das pernas. Eu nada tenho,
pois, mais do que meu cão: reduzis-me ao estado das bestas.
A
Eis uma série de pobres sofismas dos pobres sofistas que vos instruíram.
Eis que estais despeitado por não serdes livre como vosso cão.
Ora, não vos pareceis com ele em mil coisas? A fome, a sede, o velar,
o dormir, os cinco sentidos, não são em vós como nele?
Pretenderíeis cheirar com outro qualquer órgão além
do nariz? Por que quereis uma liberdade diferente da que ele tem?
B
Porém eu tenho uma alma que raciocina muito bem, e o meu cão
não pensa coisa alguma. Ele apenas tem idéias simples, enquanto
eu tenho mil idéias metafísicas.
A
Pois muito bem! Sois mil vezes mais livre do que ele, isto é, tendes
mil vezes mais poder de pensar do que ele; porém vossa liberdade é
perfeitamente igual à dele.
B
Como? Eu não tenho a liberdade de querer o que desejo?
A
Que entendeis com isso?
B
O que toda gente entende. Não se diz diariamente: “As vontades
são livres”?
A
Um provérbio não é uma razão; explicai-vos melhor.
B
Penso que sou livre de querer como melhor me agradar.
A
Com vossa licença, isso não tem o mínimo sentido; não
percebeis que é ridículo dizer: “Eu quero querer”?
Necessariamente, vós desejais em conseqüência das idéias
que se vos apresentam. Quereis casar, sim ou não?
B
Mas e se eu vos disser que não quero nem uma nem outra coisa?
A
Responderíeis como aquele que disse: “Uns pensam que o cardeal
Mazarino está morto; outros, que está vivo; eu não creio
nem numa coisa nem noutra”.
B
Pois bem, quero casar-me.
A
Isto é responder! Por que quereis casar?
B
Porque estou apaixonado por uma bela rapariga, bem educada, muito rica,
que canta muito bem, filha de pais honestos e que me ama, assim como sua família.
A
Eis uma razão. Vedes, pois, que não podeis querer sem razão.
Declaro-vos que tendes a liberdade de vos casar: isto é, que tendes
o poder de assinar o contrato.
B
Como! Eu não posso querer sem motivo? Que sucede então a este
outro provérbio: Sit pro ratione voluntas: minha vontade é minha
razão, eu quero porque quero?
A
Isso é absurdo, meu caro amigo, pois haveria em vós um efeito
sem causa.
B
Que? Quando jogo par ou ímpar tenho então um motivo para escolher
par em vez de ímpar?
A
Sim, sem nenhuma dúvida.
B
E qual é essa razão, por obséquio?
A
É que a idéia de par se apresentou ao vosso espírito
mais do que a idéia oposta. Seria muito cômico que nalguns casos
desejásseis por existir uma razão para o vosso desejo e que
noutros desejásseis sem motivo. Quando vos quereis casar, sentis a
razão dominante, evidentemente; não a sentis quando jogais par
ou ímpar, e contudo é mister que exista uma.
B
Mas, uma vez ainda: sou ou não sou livre?
A
Vossa vontade não é livre mas vossas ações o
são. Tendes a liberdade de fazer quando tendes o poder de fazer.
B
Mas, todos os livros que li sobre a liberdade de indiferença…
A
São tolices: não existe liberdade de indiferença; é
um termo destituído de senso, inventado por pessoas que o não
possuem.
LOUCURA
Não se trata de reeditar o livro de Erasmo, que na atualidade não
seria mais do que um lugar comum bastante insípido.
Chamamos loucura a essa doença dos órgãos do cérebro
que impede um homem de pensar e de agir como os outros. Não podendo
gerir seus bens, é interdito; não podendo ter idéias
de acordo com a sociedade, é excluído; se for nocivo, é
enclausurado; se for furioso, trancafiam-no.
É importante observar que esse homem, entretanto, não carece
de idéias; ele as tem como todos os outros enquanto acordado e, freqüentemente,
enquanto dorme. Poder-se-á perguntar como sua alma espiritual, imortal,
alojada em seu cérebro, recebendo todas as idéias por meio dos
sentidos coordenados e divididos, não possa concluir um julgamento
são. Ela vê os objetos como os viam a alma de Aristóteles
e de Platão, de Locke e de Newton; ouve os mesmos sons, tem o mesmo
sentido do tacto: por que motivo, pois, recebendo percepções
que os mais sábios experimentam, compõe um conjunto inevitavelmente
extravagante?
Se essa substância simples e eterna possui para as suas ações
os mesmos instrumentos das almas dos cérebros mais sábios, deve
raciocinar como eles. Que o impediria? Claro que se um maluco vê vermelho
e os sábios azul; se quando os sábios ouvem uma música
o louco ouve o zurrar de um asno; se quando eles estão no sermão
o louco julga estar na comédia; se quando eles ouvem sim, ele entende
não, então sua alma deve pensar ao contrário das outras.
Mas o louco tem as mesmas percepções que eles; não há
nenhuma razão aparente pela qual sua alma, tendo recebido mediante
os sentidos todos os seus utensílios, não os possa usar. Ela
é pura, dizemos; não está sujeita por si própria
a nenhuma enfermidade; ei-la provida de todos os recursos necessários;
passe o que se passar em seu corpo, nada poderá mudar a sua essência;
contudo, ei-la encerrada num manicômio.
Essa reflexão pode fazer supor que a faculdade de pensar, doada por
Deus ao homem, esteja sujeita a desarranjos como os outros sentidos. Um louco
é um doente cujo cérebro sofre, como o gotoso é um doente
que sofre dos pés e das mãos; ele pensa com o cérebro,
assim como anda com os pés, sem nada conhecer nem do seu poder incompreensível
de andar, nem do seu não menos incompreensível poder de pensar.
Sofre-se a gota no cérebro como nos pés. Enfim, após
mil reflexões, é preciso convir em que somente a fé,
talvez, possa convencer-nos de que uma substância simples e imaterial
seja passível de doença.
Os doutos ou os doutores dirão ao louco: “Meu amigo, não
obstante teres perdido o senso comum, tua alma é tão espiritual,
tão pura, tão imortal como a nossa; porém nossa alma
está bem alojada e a tua o está mal; as janelas da casa estão
fechadas para ela; falta-lhe ar, ela sufoca”. O maluco, em seus bons
momentos, lhes responderia: Meus amigos, pensais à vossa moda, o que
é discutível. Minhas janelas estão tão abertas
como as vossas, porquanto eu vejo os mesmos objetos e ouço as mesmas
palavras: é pois necessário que, ou minha alma empregue mal
os seus sentidos, ou seja ela própria um sentido viciado, uma qualidade
depravada. Numa palavra, ou minha alma é louca por sua própria
conta ou eu não tenho alma”.
Um dos doutores poderá responder: “Meu irmão, Deus criou,
é possível, almas loucas, assim como criou almas sábias.”
O louco replicará: “Se eu fosse acreditar no que me dizeis, seria
ainda mais louco do que já sou. Por obséquio, vós que
sabeis tanto, dizei-me, por que sou louco?”
Se os doutores tiverem ainda um pouco de bom senso lhe responderão:
“Ignoro-o absolutamente.” Eles não compreenderão
por que um cérebro tem idéias incoerentes; não compreenderão
melhor por que outro cérebro tem idéias regulares e coerentes.
Julgar-se-ão sábios, e serão tão loucos como ele.
LUXO
Há dois mil anos que se declama contra o luxo, em verso e em prosa,
porém amando-o sempre.
Que não se disse dos primeiros romanos? Quando esses salteadores
devastaram e pilharam as colheitas dos seus vizinhos, quando, para aumentar
sua pobre aldeia, destruíram as pobres aldeias dos volscos e dos sanitas,
eram homens desinteressados e virtuosos: ainda não tinham podido roubar
ouro, nem prata, nem pedrarias, porque não havia nos burgos o que saquear.
Nem seus bosques nem seus hortos tinham perdizes ou faisões e louva-se
a sua temperança.
Quando, pouco a pouco, eles pilharam tudo, roubaram tudo, desde os confins
do Adriático ao Eufrates, quando tiveram bastante espírito para
gozar o fruto de suas rapinas durante setecentos ou oitocentos anos; quando
cultivaram todas as artes, apreciaram os prazeres e até os fizeram
gozar aos vencidos, então cessaram, diz-se, de ser sábios e
honestos. Todas essas declamações servem para provar que um
ladrão jamais deverá comer o jantar que tomou de um terceiro
nem vestir o traje que roubou, nem enfeitar-se com o anel, produto de seu
saque. É preciso, dizes, atirar tudo isso ao rio a fim de viver como
gente honrada; digam antes que não se deveria roubar. Condenai os salteadores
quando saqueiam, não os trateis porém como insensatos quando
desfrutam de boa fé o produto de seus roubos. Quando um elevado número
de marinheiros ingleses se enriqueceu na tomada de Pondichéry e de
Havana, não teriam eles o direito de gozar em Londres como paga do
trabalho que tiveram nos confins da Ásia e da América?
Desejariam os declamadores ver enterradas zelosamente as riquezas adquiridas
na guerra, pela agricultura, pelo comércio e pela indústria?
Eles citam os lacedemônios. Por que não citam também a
república de São Marinho? Que benefícios fez Esparta
à Grécia? Teve ela alguma vez homens como Demóstenes,
Sófocles, Apeles, Fídias? O luxo de Atenas criou grandes homens
em todo gênero; Esparta teve alguns capitães e ainda em número
menor do que as outras cidades. Vão é que uma república
tão pequena como a dos lacedemônios conserve a sua pobreza. Chega-se
à morte tanto na miséria como gozando daquilo que nos pode tornar
a vida agradável. O selvagem do Canadá subsiste e atinge a velhice
como o cidadão inglês que tem cinqüenta mil guinéus
de renda. Mas quem irá comparar, jamais, o país dos iroqueses
à Inglaterra?
Que a república de Ragusa e o cantão de Zug façam leis
suntuárias: eles têm razão, é preciso que o pobre
não gaste além de suas posses; mas li nalgum lugar(49):
“Sabei que se o luxo enriquece um grande estado põe a perder
um pequeno”.
Se por luxo entenderdes o excesso, sabemos muito bem que em tudo o excesso
é pernicioso: na abstinência como no epicurismo, na economia
como na liberalidade. Não sei como pode acontecer que, nas minhas aldeias,
onde a terra é ingrata, os impostos pesados, a proibição
de exportar o trigo que foi semeado, intolerável, não existe
contudo um colono que não tenha uma boa roupa de banho e não
seja bem calçado e bem nutrido. Se esse colono trabalha com a sua bela
roupa, com linho branco, os cabelos frisados, polvinhados, eis certamente
um grande luxo e uma impertinência; mas o fato de um burguês de
Paris ou Londres comparecer ao espetáculo vestido como esse camponês
seria interpretado como a sordidez mais grosseira e ridícula.
Est modus in rebus, sunt certi denique fines,
quos ultra citraque nequit consistere rectum
Quando se inventaram as tesouras, que não pertencem sem dúvida
à mais remota antigüidade, o que não se disse contra os
primeiros que cortaram as unhas e apararam uma parte dos cabelos que lhes
caiam sobre o nariz? Foram tratados como pequenos burgueses e pródigos
os que compravam mui caro o instrumento da vaidade a fim de falsificar a obra
do Criador. Que enorme pecado encurtar os cornos que Deus fez nascer nas extremidades
de nossos dedos Era um ultraje à Divindade. Ainda foi pior quando se
inventaram as camisas e as chinelas. Sabe-se com que furor os velhos conselheiros,
que jamais as tinham usado, gritaram contra os jovens magistrados que se deram
a esse honesto luxo.
MATÉRIA
Os sábios a quem se pergunta o que é a alma, respondem que
nada sabem a esse respeito. Se se lhes pergunta o que é a matéria,
dão a mesma resposta. É verdade que alguns professores e principalmente
alguns escolares conhecem perfeitamente tudo isso: e quando repetem que a
matéria é extensa e divisível, julgam haver dito tudo;
mas quando são solicitados a responder o que significa essa coisa extensa,
ficam embaraçados. “Isso é composto de partes, dizem”.
E essas partes de que são compostas? São os elementos dessas
partes divisíveis? Então eles emudecem ou falam muito, o que
é igualmente suspeito. Esse ente quase desconhecido a que chamamos
matéria é eterno? Todos os antigos assim o julgaram. Terá
ele, de per si, a força ativa? Vários filósofos o imaginaram.
Os que o negam, têm o direito de negá-lo? Não concebeis
que a matéria possa ser alguma coisa por si própria. Mas como
podeis afirmar que ela não tenha por si mesma as propriedades que lhe
são necessárias? Ignorais qual é a sua natureza e lhe
recusais formas que estão nessa mesma natureza: porque, afinal, desde
que ela é, faz-se absolutamente necessário que tenha uma forma,
que seja figurada; e, desde que é necessariamente figurada, será
impossível a existência de outras formas ligadas à sua
configuração? A matéria existe, não a conheceis
senão mediante vossas sensações. Ah! de que servem todas
as susceptibilidades do espírito desde que raciocinamos? A geometria
nos ensinou grande número de verdades, a metafísica bem poucas.
Pesamos a matéria, medimo-la, decompomo-la; e, além dessas operações
rudimentares, se quisermos dar um passo sentimos em nós a impotência
e adiante de nós um abismo.
Perdoai, por mercê, ao universo inteiro, que se enganou ao julgar
que a matéria existisse por si própria. Poderia proceder de
forma diversa? Como imaginar que o que é sem sucessão não
o foi sempre? Se não fosse necessária a existência da
matéria, por que existe ela? E se era preciso que ela fosse, por que
não teria sido sempre? Nenhum axioma foi tão universalmente
aceito como este: Nada se faz de nada. Com efeito, o contrário é
incompreensível. O caos precedeu em todos os povos a disposição
que uma mão divina fez no mundo inteiro. A eternidade da matéria
jamais ofendeu em povo algum o culto da Divindade. A própria religião
jamais procurou impedir que um Deus eterno fosse reconhecido como o senhor
de uma matéria eterna. Somos muito felizes, hoje, ao ser informados
pela fé que Deus tirou a matéria do nada. Porém, nação
alguma foi instruída a respeito desse dogma; os próprios judeus
ignoraram-no. O primeiro versículo do Gênesis diz que os deuses
Eloim (não Eloi) fizeram o céu e a terra; não dizem que
o céu e a terra foram criados do nada.
Fílon, do único tempo em que os judeus tiveram alguma erudição,
diz em seu capítulo da criação: “Deus, sendo bom
por sua natureza, não insuflou a inveja na substância, na matéria,
que por si mesma nada tinha de bom, que não tem de sua natureza senão
a inércia, a confusão, a desordem. Dignou-se torná-la
boa, de má que era”.
A idéia do caos desemaranhado por um deus encontra-se em todas as
teogonias antigas. Hesíodo repetiu o pensamento do Oriente quando disse
em sua Teogonia: “O caos foi o primeiro a existir” – Ovídio
foi o intérprete de todo o império romano quando disse:
Sic ubi dispositam, quiscuis fuit ille deorum,
congeriem secuit… (50).
A matéria é, pois, nas mãos de Deus, como a argila
nas do oleiro, se se nos permite o uso dessas débeis imagens para exprimir
o poder divino.
A matéria, sendo eterna, devia ter propriedades eternas, como a configuração,
a força de inércia, o movimento e a divisibilidade. Mas essa
divisibilidade não é senão a resulta do movimento: pois
sem movimento nada se divide, nem se separa ou coordena. O caos teria sido
um movimento confuso, e a coordenação do universo um movimento
regular imprimido a todos os corpos pelo senhor do mundo. Mas como poderia
a matéria ter movimento próprio? Da mesma forma que tem, consoante
todos os antigos, estensão e impenetrabilidade.
Mas não podemos concebê-la sem extensão, e podemos concebê-la
sem movimento. A isto se responde: “É impossível que a
matéria não seja permeável; ora, sendo permeável,
é preciso que alguma coisa passe continuamente por seus poros; para
que passagens, se nelas nada passasse?”
De réplica em réplica, não acabaríamos mais;
o sistema da matéria eterna apresenta grandes dificuldades, como todos
os sistemas. O da matéria formada do nada não é menos
incompreensível. Deve-se admiti-lo sem pretender dar-lhe razão;
nem tudo explica a filosofia. Quantas coisas incompreensíveis somos
forçados a admitir, mesmo na geometria? Podemos conceber que duas linhas
andem paralelamente sem nunca se encontrarem? Responder-nos-ão naturalmente
os geômetras: “As propriedades das assintotas vos foram demonstradas;
não podeis deixar de admiti-las; mas a criação, não:
por que a admitia? Que dificuldade achais em crer, como todos os antigos,
na matéria eterna?” Por outro lado dir-vos-á o teólogo:
“Se acreditardes que a matéria é eterna, reconhecereis
portanto dois princípios, Deus e a matéria; caís agora
no erro de Zoroastro e Manés”.
Nada responderemos aos geômetras, porque aquela gente nada conhece
além de suas linhas, suas superfícies e seus sólidos.
Mas podemos dizer aos teólogos: “Em que sou maniqueu? Eis aqui
pedras que um arquiteto não fabricou; ele ergueu uma construção
imensa; não admito dois arquitetos; as pedras brutas obedeceram ao
poder e ao gênio”.
Felizmente, seja qual for o sistema que abracemos, nenhum prejudica a moral:
porque, que importa que a matéria tenha sido feita ou ordenada? Deus
é igualmente nosso senhor absoluto. Devemos ser igualmente virtuosos
em um caos desemaranhado ou em um caos criado do nada; quase nenhuma dessas
questões metafísicas influi na conduta da vida: tais disputas
são como as alegres periquitices que temos à mesa: depois de
comer cada um esquece o que disse e vai para onde o chamam seu interesse e
seu gosto.
MAU
Vivem a gritar-nos que a natureza humana é essencialmente perversa,
que o homem nasceu mau e filho do diabo. Nada menos ponderado: porque, meu
amigo, tu que me dizes que toda gente nasceu perversa, tu me advertes pois
de que nasceste tal, que é preciso que eu desconfie de ti como de uma
raposa ou de um crocodilo. – Oh! nada disso! – dizes, –
eu me regenerei, não sou nem herege nem infiel, podeis fiar-vos em
mim. – Mas o resto do gênero humano, que é ou herege ou
o que chamas infiel, não será pois um conjunto de monstros?
E todas as vezes que falares a um luterano ou a um turco deverás estar
certo de que te roubarão ou assassinarão: pois são filhos
do diabo; nasceram ruins; um nada tem de regenerado e o outro é degenerado.
Seria muito mais razoável, muito mais belo, dizer aos homens: Nascestes
bons; vede quão afrontoso seria corromper a pureza do vosso ser. Seria
de mister proceder com o gênero humano como procedemos com os homens
em particular. Se um cônego leva uma vida escandalosa, nós lhe
dizemos: “É possível que desonreis a dignidade de cônego?”
Faz-se lembrar a um magistrado que ele tem a honra de ser conselheiro do rei
e que deve dar o exemplo. Diz-se a um soldado a fim de encorajá-lo:
“Recorda que pertences ao regimento de Champagne” Dever-se-ia
dizer a todo indivíduo: “Lembra-te de tua dignidade de homem”.
E, com efeito, não obstante a possuirmos, temos sempre necessidade
dela: pois que quer dizer esta frase freqüentemente empregada em todos
os povos, concentrai-vos em vós mesmo? Se houvésseis nascido
filho do diabo, se vossa origem fosse criminosa, se vosso sangue fosse composto
de um licor infernal, esta expressão concentrai-vos em vós mesmo
significaria: consultai, segui vossa natureza diabólica, sede impostor,
assassino, é a lei de vosso pai.
O homem não é ruim de nascimento; torna-se depois, assim como
adoece. Alguns médicos se lhe apresentam e dizem: “Nascestes
já doente.” Pile está perfeitamente certo de que esses
médicos, por mais que façam, não o curarão se
sua doença é inerente a sua natureza; esses próprios
argumentadores são bem doentes.
Reuni todas as crianças do universo, e não vereis nelas senão
inocência, doçura e timidez; se houvessem nascido más,
malfeitoras, cruéis, mostrariam algum sinal, tal como as serpentezinhas
procuram morder e os tigrinhos arranhar.
Mas a natureza não concedeu ao homem mais armas ofensivas do que
aos coelhos e aos pássaros, não lhes pode dar um instinto que
os conduza à destruição.
Portanto o homem não é mau de nascimento. Por que então
existe tão grande número de infetados por essa peste da ruindade?
É que aqueles que os dirigem, sendo colhidos pela doença, comunicam-na
ao resto dos homens, como uma mulher atacada do mal que Cristóvão
Colombo trouxe da América espalha esse veneno de extremo a outro da
Europa. O primeiro ambicioso corrompeu a terra.
Ides dizer-me que esse primeiro monstro desenvolveu o germe do orgulho,
da rapina, da fraude, da crueldade, que existe em todos os homens. Sei muito
bem que em geral a maioria de nossos irmãos pode adquirir esses defeitos;
estará porém toda gente contaminada pela febre pútrida,
pelos cálculos renais, apenas por que todos estão expostos?
Existem nações inteiras completamente boas: os filadélfios,
os banianos nunca mataram pessoa alguma; os chineses, os povos de Tonquim,
de Lao, de Siam, do próprio Japão, durante várias centenas
de anos não conheceram a guerra. Apenas de dez em dez anos é
possível ver um desses crimes que comovem a natureza humana nas cidades
de Roma, Veneza, Paris, Londres, Amsterdã, cidades onde, de feito,
a cupidez, mãe de todos os crimes, é extensa.
Se os homens fossem essencialmente maus, se nascessem completamente submetidos
a um ser tão malfeitor como infeliz, que para se vingar de seus suplícios
lhes inspirasse todos os seus furores, ver-se-iam todas as manhãs maridos
assassinados por suas mulheres e pais por seus filhos, como podemos contemplar
no alvorecer do dia frangos estrangulados por uma doninha que lhes sugou o
sangue.
Se houver um bilhão de homens sobre a terra será muito; isto
dá aproximadamente quinhentos milhões de mulheres que costuram,
que cozinham, que alimentam seus filhos, que tomam conta da casa ou cabana
própria, e que falam um certo mal de suas vizinhas. Não vejo
que grande mal essas pobres inocentes fazem sobre a terra. Sobre esse número
de habitantes do globo há duzentos milhões de crianças
no mínimo, que com toda certeza não saqueiam nem matam, e cerca
de outro tanto de velhos e doentes que o não podem fazer. Restarão
quando muito cem milhões de jovens robustos e capazes de praticar o
crime. Desses cem milhões noventa estão continuamente ocupados
em forçar a terra, mercê de um trabalho prodigioso, a fim de
que esta lhes dê alimentos e roupas; esses não têm igualmente
tempo para fazer o mal.
Nos dez milhões restantes estão compreendidos os ociosos que
prezam a boa companhia das mesas, que desejam viver doce e tranqüilamente,
os homens de talento ocupados com suas profissões, os magistrados,
os padres, visivelmente interessados em levar uma vida pura, ao menos na aparência.
Como verdadeiros maus, portanto, apenas restarão alguns políticos,
amadores ou profissionais, e alguns milhares de vagabundos que lhes alugam
os seus serviços. Ora, impossível seria atuar um milhão
de bestas ferozes ao mesmo tempo; e nesse número estão incluídos
os assaltantes das estradas reais. Tendes, pois, quando muito, sobre a terra,
nos tempos mais borrascosos, um homem sobre mil a quem se pode chamar mau.
Há pois infinitamente menos mal sobre a terra do que se diz e pensa.
E é ainda muito, sem dúvida: assistimos a desgraças e
crimes horríveis; porém o prazer de se lamentar e exagerar é
tão grande que à mínima arranhadela seríeis capaz
de bradar que a terra regurgita de sangue. Fostes enganado, todos os homens
são perjuros. Um espírito melancólico que sofreu uma
injustiça vê o universo coberto de danados, como um jovem voluptuoso
ceando com sua dama, ao sair da Ópera, não acredita na existência
de infelizes.
MESSIAS
Messiah ou Meshiah em hebreu; Christos ou Eleimmenos em grego; Unctus em
latim; Ungido.
Vemos no Velho Testamento que o nome de Messias foi dado a príncipes
idólatras ou infiéis. Está dito(51) que Deus enviou um
profeta para ungir Jeú, rei de Israel. Anunciou ele a unção
sagrada a Hazael, rei de Damasco e Síria, pois esses dois príncipes
eram os Messias do Altíssimo para punir a casa de Acabe.
No 45o. de Isaías o nome de Messias é expressamente dado a
Ciro. “Assim disse o Eterno a Ciro, seu ungido, seu Messias, de quem
tomei a mão direita, a fim de que eu submeta as nações
diante dele, etc.”.
Ezequiel, no capítulo 28 de suas revelações, dá
o nome de Messias ao rei de Tiro, a quem também chamava Querubim. “Filho
do homem, – disse o Eterno ao profeta, – pronuncia em altas vozes
uma queixa ao rei de Tiro, e diz-lhe:
“Assim disse o Senhor, o Eterno. Eras o sinete da semelhança
de Deus, repleto de sabedoria e perfeito em beleza; foste o jardim do Éden
do Senhor, (ou, segundo outras versões) eras todas as delícias
do Senhor. Tuas vestes eram de sardônica, de topázio, de jaspe,
de crisólita, de ônix, de berilo, de safira, de escarbúnculo,
de esmeralda e ouro. O que sabiam fazer teus tambores e tuas flautas esteve
contigo; eles foram aprontados no dia de tua criação; foste
um Querubim, um Messias”.
Esse nome de Messiah, Christ, era dado aos reis, aos profetas e aos grandes
sacerdotes dos hebreus. Lemos no 1o. dos Reis, XII, 5: “O Senhor e seu
Messias são testemunhas”, isto é: “O Senhor e o
rei que estabeleceu”. E alhures: “Não toqueis em meus ungidos
nem façais mal algum a meus profetas”. Davi, animado do espírito
de Deus, deu em várias ocasiões a Saul, seu sogro renegado,
que o perseguia, o nome e a qualidade de ungido, de Messias do Senhor. “Deus
me guarde” – diz freqüentemente – “de levantar
a mão sobre o ungido do Senhor, sobre o Messias de Deus!”
Se o nome de Messias, ungido do Senhor, foi dado a reis idólatras,
a renegados, foi também mui freqüentemente empregado em nossos
antigos oráculos para designar o verdadeiro ungido do Senhor, esse
Messias por excelência, o Cristo, filho de Deus, enfim o próprio
Deus.
Se compararmos todos os diversos oráculos que se aplicam de ordinário
ao Messias, não pode haver ao que parece dificuldade alguma capaz de
favorecer os judeus, no sentido de justificar, se o pudessem, sua obstinação.
Vários grandes teólogos concordam que, no estado de opressão
sob o qual gemia o povo judeu, e depois de todas as promessas que o Eterno
lhe fez com tanta freqüência, podia suspirar pela vinda de um Messias
vencedor e libertador, e que assim se torna de certa forma escusável
o não haver a princípio reconhecido esse libertador na pessoa
de Jesus.
Pertencia ao plano da sabedoria eterna que as idéias espirituais
do verdadeiro Messias permanecessem desconhecidas pelas multidões cegas;
foram-no ao ponto de os doutores judeus tomarem o cuidado de não negar
senão os trechos que alegamos deverem ser entendidos como referentes
ao Messias. Dizem vários que o Messias já veio na pessoa de
Ezequias; é também o pensamento do famoso Hilel. Outros, em
grande número, pretendem que a crença da vinda de um Messias
não é absolutamente um artigo fundamental de fé, e que
esse dogma, não assomando nem no Decálogo nem no Levítico,
não passa de uma esperança consoladora.
Vários rabinos dizem não duvidar que, segundo os antigos oráculos,
o Messias não tenha vindo nos tempos determinados; mas que ele não
envelhece, que ficará sobre esta terra e esperará, para se manifestar,
que Israel tenha celebrado como é de mister o sabate.
O famoso rabino Salomão Jarquí ou Rasquí, que viveu
no princípio do duodécimo século, diz em suas Talmúdicas
que os antigos hebreus acreditaram que o Messias nascera no dia da última
destruição de Jerusalém pelos exércitos romanos;
é, como se costuma dizer, chamar o médico depois da morte.
O rabino Quinquí, que também viveu no duodécimo século,
anunciou que o Messias, cuja vinda julgava muito próxima, expulsaria
da Judéia os cristãos que a possuíam até aquele
momento; é verdade que os cristãos perderam a Terra Santa; mas
foi Saladino quem os venceu; por pouco que esse conquistador tenha protegido
os judeus declarando-se a seu favor, parece que em seu entusiasmo eles o transformaram
em seu Messias.
Os autores sacros, e o próprio Nosso Senhor Jesus, comparam freqüentemente
o reino do Messias e a eterna beatitude a dias de esponsais, a festins; porém
os talmudistas abusaram estranhamente dessas parábolas; segundo eles,
o Messias dará a seu povo, reunido na terra de Canaã, uma refeição
cujo vinho será o mesmo feito por Adão no Paraíso terrestre,
e que se conserva em vastas adegas, guardadas pelos anjos no centro da terra.
Servir-se-á de início o famoso peixe chamado o grande Leviatã,
que engole de um só trago um peixe maior do que ele, o qual não
deixa de ter trezentas léguas de comprimento; toda a maça das
águas está apoiada sobre Leviatã. Deus, a princípio,
criou um macho e uma fêmea; mas temendo que eles revolvessem a terra
e enchessem o universo de seus semelhantes, Deus matou a fêmea, salgando-a
para o festim do Messias.
Os rabinos acrescentam que se matará para esse festim o touro de
Beemote, que é tão grande que come diariamente o feno de mil
montanhas; a fêmea desse touro foi morta no princípio do mundo,
para que uma espécie tão prodigiosa não se multiplicasse,
o que apenas poderia ser prejudicial às outras criaturas; asseguram
porém que o Eterno não a salgou, pois a vaca salgada não
é tão boa como o Leviatã. Os judeus acrescentaram ainda
tanta fé a todas essas fantasias rabínicas que é freqüente
jurarem sobre a parte do boi de Beemote que lhes cabe.
Depois de idéias tão grosseiras sobre a vinda do Messias e
sobre o seu reino, será para admirar que os judeus, tanto antigos como
modernos, e vários mesmo dos primeiros cristãos, desgraçadamente
imbuídos de todas essas loucuras, não tenham podido elevar-se
à idéia da natureza divina do ungido do Senhor, nem atribuíram
as qualidades de Deus ao Messias? Vede como os judeus se exprimem lá
das alturas em sua obra intitulada Juaei Lusitani Quaestiones ad Christianos.
“Reconhecer” – dizem – “um homem-Deus é
forjar um monstro, um centauro, o composto estranho de duas naturezas que
não se poderiam aliar”. Acrescentam que os profetas não
ensinam absolutamente que o Messias deve ser homem-Deus, que fazem distinções
expressas entre Deus e Davi, que consideram o primeiro, senhor, o segundo,
servidor, etc.
Sabe-se muito bem que os judeus, escravos da letra, jamais penetraram como
nós o sentido das Escrituras.
Quando o Salvador apareceu, os preconceitos judeus se ergueram contra ele.
O próprio Jesus Cristo, para não revoltar seus espíritos
cegos, parece extremamente reservado sobre o artigo de sua divindade: “Ele
queria” – diz São Crisóstomo – “acostumar
insensivelmente seus auditores a crer num mistério grandemente elevado
acima da razão”. Se toma a autoridade de um Deus perdoando os
pecados, isto revolta todos os que o testemunham; seus milagres mais evidentes
não podem convencer de sua divindade aqueles mesmos em favor dos quais
opera. Quando perante o tribunal do soberano sacrificador ele admite com modéstia
ser filho de Deus, o sumo sacerdote rasga-lhe a roupa, rompendo em blasfêmias.
Antes do enviado do Espírito Santo os apóstolos nem sequer suspeitavam
a divindade de seu mestre; ele os interroga sobre o que pensa o povo a seu
respeito: respondem-lhe que uns o tomam por Elias, outros por Jeremias ou
qualquer outro profeta. São Pedro precisa de uma revelação
particular para conhecer que Jesus é o Cristo, o filho de Deus vivente.
Os judeus, revoltados contra a divindade de Jesus Cristo, recorreram a toda
sorte de meios para destruir esse grande mistério; deturpam o sentido
dos seus próprios oráculos, ou não os aplicam ao Messias;
pretendem que o nome de Deus, Elói, não é particular
à divindade, sendo até concedido pelos autores sagrados aos
juizes, aos magistrados, em geral aos elevados em autoridade; citam, com efeito,
grande número de passos das Santas Escrituras que justificam esta observação,
mas que não concedem a mínima atenção aos termos
expressos dos antigos oráculos que falam do Messias.
Enfim, pretendem que se o Salvador, e depois dele os evangelistas, os apóstolos
e os primeiros cristãos chamam Jesus o filho de Deus, esse termo augusto
não significava nos tempos evangélicos senão o oposto
dos filhos de Belial, isto é, homem de bem, servidor de Deus, em oposição
a um malvado, um homem que não teme a Deus.
Se os judeus contestaram a Jesus Cristo a qualidade de Messias e sua divindade,
nada esqueceram para torná-lo desprezível, para atirar sobre
o seu nascimento, sua vida e sua morte, todo o ridículo e todo o opróbrio
imaginado pela sua obstinação criminosa.
De todas as obras produzidas pela cegueira dos judeus, nada há de
mais odioso e extravagante do que o antigo livro intitulado: Sepher Toldos
Jeschut, extraído da poeira dos arquivos pelo sr. Wagenseil, no segundo
tomo de sua obra intitulada: Tela ignea, etc.
É nesse Sepher Toldos Jeschut que se lê uma história
monstruosa da vida do nosso Salvador, forjada com toda paixão e má
fé possíveis. Assim, por exemplo, ousaram escrever que um tal
Panter ou Pandera, habitante de Betlêm, se apaixonara por uma mulher
casada com Jocanã. Teve desse comércio impuro um filho que foi
chamado Jesuá ou Jesú. O pai desse menino foi obrigado a fugir,
retirando-se para Babilônia. Quanto ao jovem Jesú, foi enviado
à escola; mas, – acrescenta o autor – teve a insolência
de levantar a cabeça e de se descobrir diante dos sacrificadores, em
lugar de se apresentar à sua frente com a cabeça baixa e o rosto
coberto, como era costume: ousadia que foi vivamente punida; o que deu lugar
ao exame de seu nascimento, que se revelou impuro e em breve o expôs
à ignomínia.
Esse detestável livro Sepher Toldos Jeschut era conhecido desde o
segundo século; é citado por Celso com confiança e Orígenes
refuta-o no nono capítulo.
Existe outro livro também intitulado Toldos Jeschut, publicado no
ano de 1705 pelo Sr. Huldrich, que segue mais de perto o Evangelho da infância
mas que comete, a todo momento, os anacronismos e faltas mais grosseiros.
Faz nascer e morrer Jesus Cristo no reinado de Herodes, o Grande; pretende
terem sido dirigidas a esse príncipe as queixas sobre o adultério
de Panter e de Maria, mãe de Jesus.
O autor, que toma o nome de Jonatã, que se diz contemporâneo
de Jesus Cristo e morador em Jerusalém, adianta que Herodes consultou
os senadores de uma cidade da terra de Cesárea sobre o caso de Jesus
Cristo. Não seguiremos um autor tão absurdo em todas as suas
contradições.
No entanto é a favor de todas essas calúnias que os judeus
se entretêm em seu ódio implacável contra os cristãos
e contra o Evangelho; nada esqueceram eles para alterar a cronologia do Velho
Testamento e para espalhar dúvidas e dificuldades sobre o tempo da
vinda do nosso Salvador. Ahmed-ben-Cassum-al-Andacusi, mouro de Granada que
viveu nos fins do século XVI, cita o antigo manuscrito árabe
que foi encontrado junto a seis lâminas de chumbo, gravado em caracteres
árabes, numa gruta perto de Granada. D. Pedro y Quinones, arcebispo
de Granada, prestou ele próprio testemunho. Essas lâminas de
chumbo que chamamos de Granada foram depois transladadas para Roma, onde,
após um exame de vários anos, foram finalmente condenadas como
apócrifas, sob o pontificado de Alexandre VII; não continham
senão histórias fabulosas concernentes à vida de Maná
e seu filho.
O nome de Messias, acompanhado do epíteto falso, ainda se dá
a esses impostores que, em épocas diversas, procuraram mistificar a
nação judaica. Houve desses falsos Messias antes mesmo da vinda
do verdadeiro ungido de Deus. O sábio Gamaliel fala (52) de um certo
Teodas cuja história se lê nas Antigüidades Judaicas de
José; livro 20, capítulo 2. Jactava-se de haver passado o Jordão
a pé seco; conseguiu grande número de adeptos que o seguiam;
mas os romanos, caindo sobre sua tropa, dizimaram-na, cortaram a cabeça
do desgraçado chefe e a expuseram em Jerusalém.
Gamaliel fala também de Judas, o Galileu, que é sem dúvida
o mesmo mencionado por José, no capítulo 12 do segundo livro
da Guerra das Judeus. Diz que esse falso profeta reunira quase trinta mil
adeptos; porém a hipérbole é o característico
do historiador judeu.
Desde os tempos dos apóstolos viu-se Simão, cognominado o
Mágico (53), seduzir os habitantes de Samaria a ponto de o considerarem
como a virtude de Deus.
No século seguinte, no ano 178 e 179 da era cristã, sob o
império de Adriano, apareceu o falso Messias Barco Queba, à
testa de um exército. O imperador enviou contra ele Júlio Severo,
que depois de vários encontros encerrou os revoltosos na cidade de
Biter; manteve um assedio obstinado e foi violentíssimo em suas represálias;
Barco Queba foi preso e condenado à morte. Adriano julgou não
poder prevenir as revoltas contínuas dos judeus, senão proibindo-os
por édito de irem a Jerusalém; estabeleceu, mesmo, postos de
vigilância nas portas dessa cidade, para proibir a entrada ao resto
do povo de Israel.
Lemos em Sócrates, historiador eclesiástico(54), que no ano
434 apareceu na ilha de Cândia um falso Messias chamado Moisés.
Dizia-se o antigo libertador dos hebreus, ressuscitado para os libertar de
novo. Um século depois, em 530, houve na Palestina um falso Messias
chamado Julião; anunciou-se como um grande conquistador que, à
frente de sua nação, destruiria pelas armas todo o povo cristão;
seduzidos por suas promessas, os judeus, armados, massacraram muitos cristãos.
O imperador Justiniano enviou tropas contra ele. Travou-se batalha contra
o falso Cristo: foi preso e condenado ao suplício extremo.
No princípio do século VIII Sereno, judeu espanhol, apresentou-se
como Messias, pregou, teve discípulos e morreu como eles na miséria.
Vários falsos Messias surgiram no século XII. Apareceu um
na França, sob o reinado de Luís, o Jovem; foi enforcado, ele
e seus correligionários, sem que jamais se conhecessem os nomes nem
do mestre nem dos discípulos.
O século XIII foi fertilíssimo de falsos Messias; contam-se
sete ou oito, aparecidos na Arábia, na Pérsia, na Espanha e
na Morávia. Um deles, que se fazia chamar David el Re, passou por ter
sido um grande mártir, seduziu os judeus, vendo-se à testa de
um partido considerável; mas esse Messias foi assassinado.
Jacques Zieglerne, da Morávia, que viveu em meados do século
XVI, anunciou a próxima manifestação do Messias, nascido,
segundo afirmava, havia catorze anos. Ele o tinha visto, dizia, em Estrasburgo,
e guardava com cuidado uma espada e um cetro para lhos entregar quando ele
estivesse em idade de ensinar.
No ano de 1624 outro Zieglerne confirmou a predição do primeiro.
Em 1666 Sabatê Seví, nascido em Alepo, se apresentou como o
Messias predito pelos Zieglerne. Principiou por pregar nas estradas reais
e no meio dos campos; os turcos riram-se dele, apesar da grande admiração
dos seus discípulos. Parece que não agradou à maioria
da nação hebraica, pois os chefes da sinagoga de Smirna lavraram
contra ele uma sentença de morte; mas livrou-se da pena, sofrendo somente
o medo e o exílio
Contratou três casamentos que não chegou a realizar, segundo
se diz. Associou-se a um certo Natã Leví: este fez o papel do
profeta Elias, que devia preceder o Messias. Dirigiram-se a Jerusalém
e Natã anunciou Sabatê Seví como o libertador das nações.
A população judaica declarou-se a seu favor; mas os que tinham
alguma coisa a perder o anatematizaram.
Seví, para fugir à borrasca, retirou-se para Constantinopla,
e de lá para Smirna. Natã Leví enviou-lhe quatro embaixadores
que o reconheceram e saudaram publicamente na qualidade de Messias; essa embaixada
teve certa influência no povo e mesmo em alguns doutores, que declararam
Sabat Seví Messias e rei dos hebreus. Mas a sinagoga de Smirna condenou
seu rei a ser empalado.
Sabatê pôs-se sob a proteção do cadi de Smirna,
e teve em breve ao seu favor todo o povo judeu. Fez erguer dois tronos, um
para ele e outro para sua esposa favorita; tomou o nome de rei dos reis e
deu a José Seví, seu irmão, o de rei de Judá.
Prometeu aos judeus assegurar a conquista do império otomano. Chegou
mesmo à insolência de fazer riscar da liturgia judaica o nome
do imperador, substituindo-o pelo seu. Foi remetido à prisão
dos Dardanelos. Os judeus tornaram público que: só se poupara
a sua vida por que os turcos sabiam muito bem que ele era imortal. O governador
dos Dardanelos enriqueceu-se à custa dos presentes que os hebreus lhe
prodigalizaram para visitar o seu rei, o seu Messias, prisioneiro que, entre
grades, conservava toda a sua dignidade, deixando que lhe beijassem os pés.
Entretanto o sultão, que tinha a sua corte em Andrinopla, resolveu
acabar com essa comédia; mandou chamar Seví e disse-lhe que
se ele fosse Messias deveria ser invulnerável; Seví concordou.
O grão senhor mandou que o colocassem como alvo das flechas de seus
pagens; o Messias compreendeu logo nada ter de invulnerável e pretextou
que Deus apenas o enviara para render testemunho à santa religião
muçulmana. Fustigado pelos ministros da lei, tornou-se mafomista e
morreu desprezado igualmente por judeus e muçulmanos: o que desacreditou
de tal forma a profissão de falso Messias que Seví foi o último
deles. (55).
METAMORFOSE, METEMPSICOSE
Não é muito natural que todas as metamorfoses de que a terra
está repleta tenham feito imaginar, no Oriente, onde tudo foi imaginado,
que nossas almas passam de um corpo a outro? Um ponto quase imperceptível
torna-se um verme, esse verme se transforma em borboleta; uma bolota se transforma
num tronco, um ovo num pássaro; a água torna-se nuvem e trovão;
a madeira troca-se em fogo e cinza; tudo enfim, na natureza, parece metamorfose.
Não tardamos em atribuir às almas, que olhamos como tênues
figuras, o que vemos sensivelmente nos corpos mais grosseiros. A idéia
da metempsicose é talvez o mais antigo dogma do universo conhecido,
e reina ainda em grande parte da Índia e da China.
É ainda bastante natural que todas as metamorfoses de que somos testemunhas
hajam produzido essas antigas fábulas que Ovídio recolheu em
sua obra admirável. Os próprios judeus tiveram também
suas metamorfoses. Se Níobe foi transformada em mármore, Edite,
mulher de Ló, foi transmutada numa estátua de sal. Se Eurídice
ficou nos infernos por ter olhado para trás, é também
pela mesma indiscrição que essa mulher de Ló foi privada
da natureza humana. O burgo habitado por Baucis e Filêmon, na Frigia,
transformou-se em um lago; a mesma coisa sucedeu a Sodoma. As filhas de Anjo
transformavam a água em óleo; temos nas Escrituras uma metamorfose
mais ou menos parecida, porém mais verdadeira e mais sagrada. Cadmo
foi transformado em serpente; a virgem de Aarão tornou-se serpente
também.
Os deuses também mudam-se muitas vezes em homens; os judeus jamais
viram anjos senão sob a forma humana: os anjos comeram na casa de Abraão.
Paulo, em sua Epístola aos Coríntios, diz que o anjo de Satã
lhe deu bofetadas: Angelos Satana me colaphisei.
MILAGRES
Segundo a energia do termo, um milagre é uma coisa admirável.
Nesse caso, tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação
de cem milhões de globos ao redor de um milhão de sóis,
a atividade da luz, a vida dos animais, constituem perpétuos milagres.
Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à violação
dessas leis divinas e eternas. Assim, quando houver um eclipse do Sol durante
a Lua cheia, quando um morto fizer a pé duas léguas de caminho
levando a cabeça de baixo do braço, isto quer dizer que sucedeu
um milagre.
Vários físicos afirmam que, nesse sentido, não existe
milagre algum, e eis aqui seus argumentos.
Um milagre é a violação das leis matemáticas,
divinas, imutáveis, eternas. Mediante essa única exposição,
um milagre é uma contradição nos termos. Uma lei não
pode ser mutável a violada. Mas uma lei, diz-se-lhes, sendo estabelecida
por Deus mesmo, não poderá ser suspensa pelo seu autor? Têm
a ousadia de responder que não e que é impossível que
o Ser infinitamente sábio tenha estabelecido leis para as violar. Um
homem, dizem eles, não desmonta sua máquina senão para
fazê-la melhor; ora, é claro que, sendo Deus, ele fez essa imensa
máquina o melhor que pode: se viu que haveria alguma imperfeição,
resultante da natureza da matéria, ele a preveniu desde o começo;
assim jamais há de mudar nada.
Demais, Deus nada pode fazer sem razão; ora, que razão poderia
levá-lo a desfigurar por algum tempo a sua própria obra? É
em favor dos homens, diz-se-lhes. Será, pois, ao menos em favor de
todos os homens respondem eles: pois é impossível conceber que
a natureza divina trabalhe para alguns homens em particular e não para
todo o gênero humano; mesmo o gênero humano é pouca coisa:
é muito menos do que um pequeno formigueiro em comparação
com todos os entes que preenchem a imensidão. Ora, não é
a mais absurda das loucuras imaginar que o Ser Infinito invertesse em favor
de três ou quatro centenas de formigas nesse pequeno pedaço de
lodo, o movimento eterno dessas molas imensas que fazem mover o inteiro universo?
Mas suponhamos que Deus desejou distinguir um pequeno número de homens
com favores particulares: seria preciso que mudasse tudo o que estabeleceu
para todos os tempos e todos os lugares. Ele não tem, por certo, necessidade
alguma dessa mudança, dessa inconstância, para favorecer suas
criaturas: seus favores estão encerrados em suas próprias leis.
Ele tudo preveniu, tudo ordenou para elas; todas obedecem irrevogavelmente
à forca que imprimiu para todo o sempre na natureza.
Por que faria Deus um milagre? Para realizar um plano qualquer concernente
a alguns seres vivos! Portanto: não pude, com os meus decretos divinos,
com minhas leis eternas, preencher um certo plano; vou mudar minhas idéias
eternas, minhas leis imutáveis, e tratar de executar o que não
consegui fazer por elas. Tal fato seria um sinal de sua fraqueza, e não
de sua potência. Seria, parece, nele, a mais inconceptível contradição.
Portanto, ousar supor que Deus realiza milagres é realmente insultá-lo
(se é que os homens podem insultar Deus); é dizer-lhe: “Sois
um ente frágil e inconseqüente”. Portanto, é absurdo
crer em milagres, é desonrar de certo modo a Divindade.
Insiste-se com esses filósofos, dizendo-lhes: “É inútil
exaltardes a imutabilidade do Ente Supremo, a eternidade de suas leis, a regularidade
de seus mundos infinitos; nosso pequeno pedaço de lodo está
repleno de milagres; as histórias estão tão repletas
de prodígios que estes se tornam acontecimentos naturais. As filhas
do sumo sacerdote Agno trocavam tudo o que bem entendiam em trigo, em vinho
ou óleo; Atálida, filha de Mercúrio, ressuscitou várias
vezes; Esculápio ressuscitou Hipólito; Hércules arrancou
Alceste dos braços da Morte; Éros voltou ao mundo após
ter passado quinze dias nos infernos; Rômulo e Remo nasceram de um deus
e uma vestal. O Paládio tombou dos céus na cidade de Tróia;
a cabeça de Orfeu concedia oráculos depois de sua morte; as
muralhas de Tebas se construíram por si próprias ao som das
flautas dos gregos; as curas realizadas no templo de Esculápio eram
numerosas, e temos ainda monumentos repletos de nomes de testemunhas oculares
dos milagres de Esculápio.
“Citai-me um único povo no qual não se tenham operado
prodígios incríveis, principalmente nos tempos em que mal se
sabia ler e escrever”.
Os filósofos não respondem a essas objeções
senão rindo e dando de ombros; mas os filósofos cristãos
dizem: “Cremos perfeitamente nos milagres operados em nossa santa religião;
cremo-los mediante nossa fé, e não pela nossa razão,
que nos guardamos bem de ouvir: porque, quando fala a fé, sabemos que
a razão não deve dizer palavra. Temos uma crença firme
e integral nos milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos, mas permiti-nos
duvidar um pouco de vários outros; permiti, por exemplo, que suspendamos
nosso julgamento sobre o que concerne a um homem simples ao qual se deu o
nome de grande. Ele afirma que um pequeno monge estava tão acostumado
a realizar milagres que o prior lhe proibira exercer seu talento. O pequeno
monge obedeceu; mas tendo visto um pobre telhador cair do alto de um telhado,
ficou indeciso entre salvar-lhe a vida e manter a santa obediência.
Ordenou apenas que o telhador permanecesse suspenso a meio caminho do solo,
até nova ordem, e correu de pressa a contar ao seu prior o estado das
coisas. O prior absolveu-o do pecado que cometera iniciando um milagre sem
licença e permitiu que o terminasse, contanto que nunca mais o repetisse.
Concede-se aos filósofos desconfiar um pouco dessa história”.
Mas como ousaríeis negar, diz-se-lhes, que S. Gervásio e S.
Protásio tenham aparecido em sonho a Santo Ambrósio, que lhe
tenham ensinado o lugar onde estavam escondidas as suas relíquias,
que Sto. Ambrósio as tenha desenterrado e que elas curaram um cego?
Sto. Agostinho estava nessa época em Milão; é ele quem
nos conta o milagre: Immenso populo teste, diz em sua Cidade de Deus, livro
22. Eis um milagre dos melhor averiguados. Os filósofos dizem que não
acreditam em nada disso; que Gervásio e Protásio não
apareceram a pessoa alguma; que pouco importa ao gênero humano saber
onde estão os restos de suas carcassas; que não concedem maior
crédito a esse cego que ao de Vespasiano; que é um milagre inutilíssimo;
que Deus nada faz de inútil; e se mantêm firmes em seus princípios.
Meu respeito a S. Gervásio e S. Protásio não me permite
ser do pensar desses filósofos: apenas registo sua incredulidade. Fazem
grande caso da passagem de Luciano que se encontra na Morte de Peregrino.
“Quando um trapaceiro chega a se transformar em cristão, é
porque tem certeza de ficar rico”. Mas como Luciano é um autor
profano, não deve ter nenhuma autoridade entre nós.
Esses filósofos não podem se resolver a crer nos milagres
operados no segundo século. Perdem tempo as testemunhas oculares em
escrever que o bispo de Smirna, S. Policarpo, tendo sido condenado a ser queimado,
e sendo atirado às chamas, ouviram uma voz do céu gritar: “Coragem,
Policarpo! Sê forte, mostra que és homem!”; que então
as chamas da fogueira se separaram de seu corpo, formando um pavilhão
de fogo ao redor de sua cabeça, e que do meio da fogueira saiu uma
pombinha; enfim, foi necessário decepar a cabeça de Policarpo.
“Que vale um milagre desses?” – dizem os incrédulos:
– “por que motivo as chamas perderam sua natureza e por que o
machado do carrasco não perdeu a sua? Como se explica que tão
elevado número de mártires tenham saído sãos e
salvos do óleo fervente, e não puderam resistir ao gume do facão?
Responde-se que é a vontade de Deus. Mas os filósofos desejariam
ter visto todas essas coisas com os seus próprios olhos antes de acreditar.
Os que fortificam seus raciocínios pela ciência vos responderão
que os padres da igreja perceberam várias vezes por si próprios
já não se realizarem, os milagres de seus tempos. S. Crisóstomo
diz expressamente: “Os dons extraordinários do espírito
eram dados mesmo aos indignos, porque então a igreja necessitava de
milagres; hoje, porém, eles não são concedidos nem mesmo
aos dignos, pois a igreja já não os necessita”. Em seguida
ele concorda em que não há mais pessoas capazes de ressuscitar
mortos, nem mesmo que curem os doentes.
O próprio Sto. Agostinho, apesar do milagre de Gervásio e
de Protásio, diz em sua Cidade de Deus: “Por que não se
repetem hoje os milagres de outrora?” E ele mesmo explica as razões:
“Cur, inquiunt, nunc illa miracula quae praedicatis facta esse none
fiunt? Possem quidem, dicere necessaria prius fuisse quam crederet mundus,
ad hoc ut crederet mundus”
Objeta-se aos filósofos que Sto. Agostinho, não, obstante
tal confissão, fala no entanto de um velho remendão Hipônio
que, tendo perdido sua casaca, foi pregar na capela dos vinte mártires;
que ao regressar encontrou um peixe em cujo corpo. estava um anel da ouro,
e que o cozinheiro que fritou o peixe disse ao remendão:, “Eis
o que os vinte mártires vos dão”
A isso respondem os filósofos que nada existe nessa história
que contradiga as leis da natureza, que a física não chega a
ser abalada pelo fato de um peixe encerrar um anel de ouro e que um cozinheiro
tenha dado esse anel a um remendão; que não há nisso
nenhum milagre.
Se se lembrar a esses filósofos que segundo S. Jerônimo, em
sua Vida do Eremita Paulo, esse eremita teve várias conversações
com os sátiros e faunos, que um corvo lhe levava todos os dias, durante
trinta anos, a metade de um pão para o seu jantar e um pão inteiro
no dia em que Sto. Antônio foi visitá-lo, eles poderão
responder ainda que esse grande fato não se choca com a física,
que sátiros a faunos podem ter existido e que, em todo caso, se essa
história é uma puerilidade, nada tem de comum com os verdadeiros
milagres do Salvador e seus apóstolos. Vários bons cristãos
combateram a história de S. Sim&atildatilde;o Estilita, escrita por Teodoreto.
Muitos milagres que passam por autênticos na igreja grega foram postos
em dúvida por muitos latinos, da mesma forma que vários milagres
latinos foram desacreditados pela igreja grega; vieram em seguida os protestantes,
que maltrataram os milagres tanto de uma como de outra igreja.
Um sábio jesuíta (56) que pregou durante muito tempo nas Índias
lamenta-se de que nem ele nem seus confrades jamais puderam fazer um milagre.
Xavier lamenta-se em muitas de suas cartas de não possuir o dom linguístico;
diz que entre os japoneses ele é como uma estátua muda. Entretanto,
os jesuítas escreveram que ele ressuscitou oito mortos; é muito;
mas é também preciso considerar que ele os ressuscitou há
cem mil léguas daqui. Ao depois houve gente que pretendeu ser a abolição
dos jesuítas na França um milagre muito maior do que os de Xavier
e Inácio.
Seja como for, todos os cristãos convêm em que os milagres
de Jesus Cristo e dos apóstolos são de uma verdade incontestável,
mas que se pode duvidar de todo ponto de alguns milagres feitos nos últimos
tempos e que não têm uma autenticidade positiva.
Desejar-se-ia, por exemplo, para que um milagre fosse bem constatado, que
se realizasse na presença da Academia das Ciências de Paris,
ou da Sociedade Real de Londres, e da Faculdade de Medicina, assistido por
um destacamento do regimento de guardas a fim de conter a multidão,
que poderia, com uma indiscrição, impedir a prática do
milagre.
Perguntou-se um dia a um filósofo o que diria se visse o Sol deter
sua marcha, isto é, se o movimento da Terra ao redor desse astro cessasse,
se todos os mortos ressuscitassem e se todas as montanhas se precipitassem
ao mar, tudo para provar alguma importante verdade, como por exemplo a graça
versátil. “Que diria?” – respondeu o filósofo:
– “Tornar-me-ia um maniqueu, diria que existe um princípio
que desfaz o que o outro fez”.
MOISÉS
Vários sábios julgaram que o Pentateuco não pode ter
sido escrito por Moisés. Dizem que da própria Escritura se evidencia
que o primeiro exemplar conhecido foi encontrado no tempo do rei Josias, e
que esse único exemplar foi apresentado ao rei pelo secretário
Safã. Ora, entre Moisés e essa aventura do secretário
Safã existem mil cento e sessenta e sete anos pelo cômputo hebraico.
Porquanto Deus apareceu a Moisés no espinheiro ardente no ano do mundo
dois mil duzentos e treze, e o secretário Safã publicou o Livro
da Lei no ano do mundo três mil trezentos e oitenta. Esse livro encontrado
sob o reinado de Josias foi desconhecido até o retorno da sujeição
a Babilônia; e diz que foi Esdras, inspirado de Deus, que deu à
luz todas as Santas Escrituras.
Ora, seja Esdras ou outro quem escreveu esse livro, isso é absolutamente
indiferente desde que o livro foi inspirado. Não está dito no
Pentateuco que Moisés tenha sido seu autor; é pois permitido
atribuí-lo a outro homem qualquer, a quem o espírito divino
o terá ditado.
Alguns contraditores acrescentam que nenhum profeta citou os livros do Pentateuco,
que não é referido nem nos Salmos nem nos livros atribuídos
a Salomão, nem em Jeremias nem em Isaías nem, enfim, em livro
canônico algum. Os termos que respondem aos de Gênesis, Êxodo,
Números, Levítico, Deuteronômio, não são
encontrados em nenhum escrito, quer seja do Novo ou do Velho Testamento
Outros mais ousados formularam as seguintes questões:
1a. – Em que língua Moisés teria escrito, estando num
deserto selvagem? Não poderia ter sido senão em egípcio:
porque, por esse próprio livro, vê-se que Moisés e todo
o seu povo nasceram no Egito. É provável que não falassem
outra língua. Os egípcios não se serviam ainda do papiro,
os hieróglifos eram gravados sobre mármore ou madeira. Diz-se
até que as tábuas dos mandamentos foram gravadas sobre pedra.
Portanto teria sido necessário gravar cinco volumes sobre pedras polidas,
o que requereria esforços e tempo prodigiosos.
2a. – É possível que num deserto onde o povo judeu não
tinha nem sapateiros nem alfaiates, e onde o Deus dos universos foi obrigado
a realizar um milagre contínuo para conservar as velhas roupas e sapatos
dos judeus, se tenham encontrado homens suficientemente hábeis para
gravar os cinco livros do Pentateuco sobre mármore ou madeira? Responder-se-á
que, entretanto, foram encontrados operários capazes de fazer um bezerro
de ouro, e que em seguida reduziram o ouro em pá; que construíram
um tabernáculo; que o adornaram com trinta e quatro colunas de bronze
com capitéis de prata; que urdiram e recamaram véus de linho,
de jacinto, de púrpura e escarlate; porém esses próprios
fatos fortificam a opinião dos contraditores. Respondem não
ser possível que, num deserto onde tudo faltava, se houvessem feito
obras tão requintadas; que teria sido preciso começar por fazer
sapatos e túnicas; que os que carecem do necessário não
se podem entregar ao luxo, e que é evidente contradição
afirmar a existência de fundidores, gravadores, escultores, tintureiros,
recamadores, quando não se tinham nem roupas, nem sandálias,
nem pão.
3a. – Se Moisés houvesse escrito o primeiro capítulo
do Gênesis, ter-se-ia proibido a todos os jovens a leitura desse primeiro
capítulo? Ter-se-ia respeitado tão pouco o legislador? Se fosse
Moisés quem disse que Deus pune a iniqüidade dos pais até
a quarta geração, teria Ezequiel dito o contrário? 4a
– Se Moisés houvesse escrito o Levítico, poderia ter-se
contradito no Deuteronômio? O Levítico proíbe casar com
as cunhadas, o Deuteronômio o ordena.
5a. – Teria Moisés falado em seu livro a respeito de cidades
que ainda não existiam no seu tempo? Teria dito que as cidades que
para ele estavam ao oriente do Jordão, ficavam ao ocidente?
6a. – Teria ele registado quarenta e oito cidades levíticas
num país onde jamais houve dez cidades, e num deserto por onde errou
sempre sem ter uma casa?
7a.- Teria prescrito regras para os reis de Deus quando não só
não existiam reis entre esse povo como, pelo contrário, estava
ele em estado de completa ruína, sendo provável que nunca os
possuísse? Como! Teria Moisés ditado preceitos para a conduta
de reis que não vieram senão quinhentos anos depois dele, sem
nada deixar dito aos juizes e pontífices que o sucederam? Esta reflexão
não induz a crer que o Pentateuco foi composto nos tempos dos reis
e que as cerimônias instituídas por Moisés apenas foram
uma tradição?
8a. – Como pode ter ele dito aos judeus: “Eu vos fiz sair em
número de 600 mil combatentes da terra do Egito, sob a proteção
de vosso Deus?” Não lhe teriam os judeus respondido: “É
preciso que tenhais sido bem tímido para não nos atirar contra
o faraó do Egito; ele não nos poderia opor um exército
de duzentos mil homens. Jamais o Egito teve tal número de soldados
em pé de guerra; nós os teríamos vencido facilmente,
seríamos os donos do seu país. Como o Deus que vos fala assassinou
para nos agradar todos os primogênitos do Egito, e, se houver nesse
país trezentas mil famílias, isto faz trezentos mil homens mortos
numa noite, a fim de nos vingar; e vós não imitastes o vosso
Deus! E vós não nos destes esse país fértil que
ninguém poderia defender! Vós nos fizestes sair do Egito de
mãos a abanar, para fazer que morrêssemos nos desertos, entre
os precipícios e as montanhas! Teríeis podido, ao menos, conduzir-nos
diretamente a essa terra de Canaã sobre a qual não temos direito
algum, mas que nos prometestes e na qual ainda não pudemos entrar.
“Era natural que da terra de Gessen marchássemos para Tiro
e Sidon, ao longo do Mediterrâneo; mas vós nos fizestes passar
quase todo o istmo de Suez; vós nos fizestes penetrar no Egito, quase
passar Menfis, e nós nos encontramos em Beel Sefon, nas margens do
Mar Vermelho, voltando as costas à terra de Canaã, tendo caminhado
80 léguas nesse Egito que desejávamos evitar, e enfim prestes
a perecer entre o mar e o exército do faraó! “Se houvésseis
desejado livrar-nos dos nossos inimigos não teríeis tomado outra
rota e outras medidas? Deus nos salvou com um milagre: o mar foi aberto para
que passássemos; mas, após um tal favor, seria preciso deixar-nos
morrer à fome e à fadiga nos horríveis desertos de Etam,
de Gades Barne, de Mara, de Elim, de Orebe e de Sinai? Todos os nossos pais
pereceram nessas solidões atrozes, e vós vindes dizer, depois
de quarenta anos, que Deus teve um cuidado particular com nossos pais!”?
Eis o que esses judeus murmuradores, esses filhos injustos dos judeus vagabundos
mortos nos desertos poderiam ter dito a Moisés se ele lhes houvesse
lido o Êxodo e o Gênesis. E o que não deveriam eles dizer
e fazer a respeito do bezerro de ouro! “Como! Ousais dizer-nos que vosso
irmão fez um bezerro de ouro para nossos pais quando estáveis
com Deus na montanha, vós que ora nos dizeis ter falado com Deus face
a face e ora que apenas o vistes pelas costas! Mas, enfim, vós estivestes
com esse Deus e vosso irmão funde num só dia um bezerro de ouro
e no-lo dá para que o adoremos; e, em lugar de punir o vosso indigno
irmão, fazeis dele nosso pontífice e ordenais a vossos levitas
degolar vinte mil homens do vosso povo! Te-lo-iam sofrido nossos pais? Dizeis-nos
que, não contente com essa carnificina incrível, fizestes ainda
massacrar vinte e quatro mil dos vossos pobres acompanhantes porque um deles
se deitara com uma madianita, quando vós mesmo desposastes uma madianita;
e acrescentais que sois o mais doce de todos os homens! Ainda algumas ações
dessa doçura e ninguém restaria para contar a história.
“Não, se fôsseis capaz de uma tal crueldade, se a tivésseis
podido exercer, seríeis o mais bárbaro de todos os homens, e
todos os suplícios seriam insuficientes para expiar um tão estranho
crime.”
São essas, pouco mais ou menos, as objeções feitas
pelos sábios àqueles que julgam Moisés autor do Pentateuco.
Mas responde-se-lhes que os caminhos de Deus não são os dos
homens; quer Deus experimentou, conduziu e abandonou o seu povo por uma sabedoria
que nos é desconhecida; que os próprios judeus durante dois
mil anos julgaram haver sido Moisés o autor desses livros; que a igreja,
que sucedeu à sinagoga e que é infalível como ela, decidiu
esse ponto de controvérsia, e que os sábios devem calar-se quando
a igreja fala.
PÁTRIA
Pátria é um conjunto de várias famílias; e,
como se sustenta comumente a própria família por amor próprio,
quando não se tem um interesse contrário pelo mesmo amor próprio
se sustenta sua cidade ou sua aldeia que se chama sua pátria.
Quanto mais essa pátria se torna grande menos é amada, porque
o amor repartido se debilita e é impossível amar enternecidamente
uma família muito numerosa, que apenas se conhece. Aquele que se queima
na ambição de ser edil, tribuno, pretor, cônsul, ditador,
grita que ama a sua pátria, e não ama senão a si próprio.
Cada qual deseja estar seguro de poder deitar-se, de ter sua cama própria,
sem que outro homem se arrogue o poder de o mandar deitar-se alhures; cada
um deseja estar seguro de sua fortuna e de sua vida. Todos formam assim os
mesmos desejos, e então o interesse particular se transforma em interesse
geral: não se vota senão por si próprio quando se vota
pela república.
É impossível existir sobre a terra um estado que não
seja governado a princípio como república: é a marcha
natural da natureza humana. Algumas famílias se reúnem, de início,
contra os ursos e contra os lobos; a que tem sementes de trigo fornece-as,
em troca, àquela que apenas tem lenha.
Quando descobrimos a América encontramos todas as tribos divididas
em repúblicas; apenas existiam dois remos em toda essa parte do mundo.
De milhares de nações somente duas encontramos subjugadas.
Foi assim, também, no Velho Mundo; tudo era república na Europa
antes dos régulos de Etrúria e Roma. Encontramos ainda hoje
repúblicas na África, – Trípoli, Tunis, Argélia,
na nossa parte setentrional, são repúblicas de bandidos. Os
hotentotes do meio dia vivem ainda como se diz que viveram nos primeiros anos
do mundo, livres, iguais entre eles, sem senhores, sem submissões,
sem dinheiro e quase sem necessidades.
A carne de seus carneiros nutre-os, sua pele os veste, choças de
madeira e de pedra são seus refúgios; são os mais grosseiros
de todos os homens, mas não o sentem, vivem e morrem mais docemente
do que nós.
Restam na nossa Europa oito repúblicas sem monarcas: Veneza, Holanda,
Suíça, Genebra, Lucas, Ragusa, Gênova e São Marinho(57).
Pode-se considerar a Polônia, a Suécia, a Inglaterra como repúblicas
sob um rei; mas a Polônia é a única que usa o seu nome.
Pois bem, o que será melhor – que vossa pátria seja
um estado monárquico ou um estado republicano? Há quatro mil
anos se discute essa questão. Perguntai a solução aos
ricos, eles preferem a aristocracia; interrogai o povo, ele quer a democracia:
apenas os reis preferem a realeza. Como, portanto, é possível
que quase toda a terra seja governada por monarcas? Perguntai-o aos ratos
que propuseram pendurar uma campainha no pescoço do gato (58). Mas,
na verdade, a verdadeira razão é, como se disse, que os homens
são mui raramente dignos de se governar por si próprios.
É deplorável que quase sempre para ser bom patriota deva-se
ser inimigo do resto dos homens. O velho Catão, esse ótimo cidadão,
dizia sempre no senado: “Tal é minha opinião, e que se
arruine Cartago”. Ser bom patriota é desejar que sua cidade se
enriqueça pelo comércio e seja poderosa pelas armas. É
claro que um país não pode ganhar sem que outro perca e que
não pode vencer sem fazer desgraçados.
Tal é, pois, a condição humana, que desejar a grandeza
do seu país é desejar mal aos seus vizinhos. Aquele que pretendesse
que a sua pátria não fosse jamais nem menor nem maior, nem mais
rica nem mais pobre, seria o cidadão do universo.
PEDRO
Em italiano Piero ou Pietro; em espanhol Pedro; em latim Petrus; em grego
Petros; em hebraico Cepha. Por que os sucessores de Pedro tiveram tantos poderes
no Ocidente e nenhum no Oriente? É o mesmo que perguntar por que os
bispos de Wurtzburg e de Salzburg se atribuíram direitos regalianos
nos tempos da anarquia, de passo que os bispos gregos sempre foram súditos.
O tempo, a ocasião, a ambição de uns e a fraqueza de
outros tudo fizeram e farão neste mundo.
A essa anarquia ajuntou-se a opinião e a opinião é
a rainha dos homens. Não que na realidade tenham uma opinião
bem determinada, mas palavras fazem-lhe as vezes.
Conta-se no Evangelho que Jesus disse a Pedro: “Dar-te-ei as chaves
do reino dos céus.” Os partidários do bispo de Roma sustentaram,
pelo século XI, que quem dá o mais dá o menos; que os
céus rodeiam a terra e que Pedro, tendo as chaves do continente, tinha
também as chaves do conteúdo. Se se entender por céus
todas as estrelas e todos os planetas, é evidente que, segundo Tomásio,
as chaves dadas a Simão Barjone, cognominado Pedro, eram um passaporte.
Se se entender por céus as nuvens, a atmosfera, o éter, o espaço
em que rolam os planetas, não existem serralheiros, segundo Meúrsio,
capazes de fazer uma chave para essas portas.
As chaves na Palestina eram uma cavilha de madeira que se ligava a uma correia.
Jesus disse a Barjone: – “O que ligares na terra será ligado
nos céus” – Os teólogos do papa concluíram
que os papas tinham recebido o direito de ligar e desligar os povos do juramento
de fidelidade feito aos seus reis e de dispor ao seu bel prazer de todos os
reinos. É concluir magnificamente. As comunas, nos estados gerais da
França, em 1302 dizem em seu requerimento ao rei que “Bonifácio
VIII era um b… que pensava que Deus prendia e ligava ao céu o que
Bonifácio ligava na terra”. Um famoso luterano da Alemanha (segundo
penso, Melanchton) custava um pouco a digerir que Jesus houvesse dito a Simão
Barjone, Cefa ou Cefas: “Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei
o meu templo, minha igreja”. Não podia conceber que Deus tivesse
empregado semelhante jogo de palavras, uma agudeza tão extraordinária,
e que a potência do papa fosse baseada num trocadilho.
Pedro passou por ter sido bispo de Roma; sabe-se porém que nesse
tempo e muito depois não houve bispo algum particular. A sociedade
cristã só tomou forma em fins do segundo século.
Pode ser que Pedro tenha feito a viagem a Roma; pode ser, também,
que tenha sido posto na cruz, com a cabeça para baixo, não obstante
não ser esse o costume; não há, porém, prova alguma
de tudo isso. Temos uma carta firmada por ele, na qual diz estar em Babilônia:
alguns canonistas judiciosos pretenderam que por Babilônia se deveria
entender Roma. Assim, supondo-se que ele a tenha datado de Roma, poder-se-ia
concluir que a carta foi escrita em Babilônia. Durante muito tempo tiraram-se
conclusões iguais e é assim que o mundo foi governado.
Em Roma pagou-se regiamente a um santo homem por uma simônia; perguntaram-lhe
se acreditava em que Simão Pedro estivera no país; respondeu:
“Não vejo que Pedro aí tenha estado, mas Simão,
tenho a certeza” (59).
Quanto à pessoa de Pedro, é preciso levar em consideração
que Paulo não é o único que se escandalizou pela sua
conduta; foi contestado face a face, ele e seus sucessores. Esse Paulo reprovava-lhe
acremente o comer carnes. proibidas, isto é, porco, presunto, lebre,
enguia, ixião e Pedro defendeu-se dizendo que vira o céu abrir-se
na sexta hora proximamente, e uma grande toalha que descia dos quatro cantos
do céu, a qual estava repleta de enguias, de quadrúpedes e pássaros,
e que a voz de um anjo gritara: “Matai e comei”. É, segundo
as aparências, essa mesma voz que gritou a tantos pontífices:
“Matai tudo e comei a substância do povo”, diz Wollaston.
Casaubon não podia aprovar a maneira por que Pedro tratou o bom Ananias
e Safira, sua mulher. Com que direito, diz Casaubon, um judeu escravo dos
romanos pende ordenar ou admitir que todos os que acreditassem em Jesus deveriam
vender suas herdades e trazer o resultado de sua venda a seus pés?
Se algum anabatista, em Londres ordenasse a mesma coisa a seus irmãos,
não seria preso como sedutor sedicioso, como ladrão que não
se deixaria de enviar a Tyburn? Não é horrível fazer
Ananias morrer porque, tendo vendido seus fundos e dado o dinheiro a Pedro,
reteve para si e sua mulher alguns escudos a fim de não morrer de fome?
Apenas Ananias foi morto, sua mulher chegou. Pedro, em vez de adverti-la caridosamente
de que acabava de matar seu marido de apoplexia por haver guardado alguns
óbulos e de lha recomendar que tomasse cuidado consigo própria,.
deixa-a cair numa armadilha. Pergunta-lhe se seu marido deu todo seu dinheiro
aos santos. A boa mulher responde que sim e recebe morte instantânea.
Isso é duro.
Conríngio pergunta por que Pedro, que matou assim esses que lhe deram
todos os seus bens, não mandou antes matar todos os doutores que fizeram
Jesus Cristo morrer e que o fustigaram a ele próprio mais de uma vez?
Ó Pedro! fazeis morrer dois cristãos que vos deram sua esmola
e deixais viver aqueles que crucificaram vosso Deus!
Por muito que pareça que Conríngio não estava em país
de inquisição ao fazer esses quesitos ousados, Erasmo, a propósito
de Pedro, acentuou uma coisa bem singular: que o chefe da religião
cristã começou seu apostolado por renegar Jesus Cristo, e que
o primeiro pontífice dos judeus começara seu ministério
por construir um bezerro de ouro e adorá-lo.
Seja como for, Pedro nos é descrito como um pobre que catequizava
pobres. Ele se parece com esses fundadores de ordens que viviam na indigência
e cujos sucessores se tornaram grandes senhores.
O papa, sucessor de Pedro, ora ganhou, ora perdeu; mas ainda lhe restam
cinqüenta milhões de homens mais ou menos sobre a terra, submissos
em muitos pontos às suas leis, além de seus súdito imediatos.
Ter um senhor a trezentas ou quatrocentas léguas da própria
casa; esperar para pensar que esse homem tenha parecido pensar; não
ousar julgar em último recurso um processo entre alguns de seus concidadãos
atendendo às comissários nomeados por esse estrangeiro; não
ousar tomar posse dos campos e das vinhas que se obtiveram do próprio
rei sem pagar uma soma considerável a esse senhor estrangeiro; violar
as leis de seu país que proíbem desposar uma sobrinha, e casar
com ela legitimamente pagando a esse senhor estrangeiro uma soma ainda mais
considerável; não ousar cultivar seu campo no dia em que esse
estrangeiro quer que se celebre a memória de um desconhecido que ele
instalou no céu por sua própria conta; é isso mais ou
menos o que significa admitir um papa; são essas as liberdades da igreja
galicana.
Há alguns outros povos que levam ainda mais longe sua submissão.
Vimos em nossos dias um soberano (60) solicitar ao papa a permissão
de fazer julgar pelo seu real tribunal alguns monges acusados de parricídio,
não obter tal permissão e não ousar cumprir o julgamento.
Sabe-se perfeitamente que outrora os direitos dos papas iam mais longe; estavam
colocados muito acima dos deuses da antigüidade; pois esses deuses passavam
por dispor dos impérios, e os papas dispunham deles de fato.
Disse Esturbino que se pode perdoar àqueles que duvidam da divindade
e da infalibilidade do papa quando se reflete:
Que quarenta cismas profanaram o púlpito de S. Pedro e vinte e sete
o ensangüentaram;
Que Estevão VII, filho de um padre, desenterrou o corpo de Formoso,
seu predecessor, e fez cortar a cabeça do cadáver;
Que Sérgio III, réu convicto de assassinato, teve um filho
de Marózia, o qual herdou do papado;
Que João X, amante de Teodora, foi estrangulado em seu leito;
Que João XI, filho de Sérgio III, foi célebre pela
sua devassidão;
Que João XII foi assassinado em casa da amante;
Que Benedito IX, comprou e revendeu o pontificado;
Que Gregório VII foi o autor de quinhentos anos de guerras civis
sustentadas por seus sucessores;
Que enfim, entre tantos papas ambiciosos, sanguinários e devassos,
houve um, Alexandre VI, cujo nome é pronunciado com o mesmo horror
que os de Nero e Calígula.
É uma prova, diz-se, da divindade de seus caracteres, o terem subsistido
a tantos crimes; mas se os califas tivessem tido uma conduta ainda mais afrontosa,
teriam então sido ainda mais divinos. É assim que arrazoa Dérmio;
porém os jesuítas lhe responderam.
PRECONCEITOS
O preconceito é uma opinião sem julgamento. Assim em toda
a terra inspiram-se às crianças todas as opiniões que
se desejam antes que elas as possam julgar.
Existem preconceitos universais, necessários, e que representam a
própria virtude. Por toda parte ensina-se às crianças
reconhecer um Deus remunerador e vingador; a respeitar, a amar seu pai e sua
mãe; a considerar o roubo como um crime, a mentira interessada como
um vício, antes que elas possam adivinhar o que vem a ser um vício
e uma virtude.
Há pois ótimos preconceitos: são os que o julgamento
ratifica quando se raciocina.
Sentimento não é mero preconceito, é alguma coisa muito
mais forte. Uma mãe não ama a seu filho porque se lhe disse
que o deve amar; ela o quer extremosamente mesmo contra sua vontade. Não
é absolutamente por preconceito que correis em socorro de uma criança
desconhecida prestes a cair num precipício ou a ser devorada por uma
fera.
É porém por preconceito que respeitareis um homem revestido
de certos hábitos, andando gravemente, falando da mesma forma. Vossos
pais vos disseram que devíeis inclinar-vos diante desse homem: vós
o respeitais antes de saber se merece vossos respeitos; cresceis em idade
e conhecimentos – percebeis que esse homem é um charlatão
empedernido de orgulho, de interesse e artifício; desprezais o que
reverenciáveis, e o preconceito cede lugar ao julgamento. Acreditastes
por preconceito nas fábulas com que embalaram vossa infância;
disseram-vos que os titãs moveram guerra aos deuses e que Vênus
foi amante de Adónis; aos doze anos tomastes tais fábulas por
verdades, agora, aos vinte anos, como alegorias engenhosas.
Examinemos em poucas palavras as diferentes espécies de preconceitos,
a fim de pôr nossos negócios em ordem. Seremos, talvez, como
aqueles que, no tempo do sistema de Law, perceberam que tinham calculado riquezas
imaginárias.
Preconceitos dos sentidos
Não é curioso que nossos olhos nos enganem sempre, mesmo quando
temos a melhor vista do mundo, e que ao contrário nossos ouvidos não
nos enganem nunca? Se vosso ouvido bem conformado ouvir: – “Sois
bela, eu vos amo,” estais bem certa de que não vos disseram –
“Odeio-vos, sois feia”. Mas vedes um espelho liso: está
demonstrado que vos enganais, é uma superfície muito desigual.
Vedes o Sol com mais ou menos dois pés de diâmetro: está
demonstrado que ele é um milhão de vezes maior do que a Terra.
Parece que Deus tenha posto a verdade em vossos ouvidos e o erro em vossos
olhos; estudai porém a ótica, vereis que Deus não vos
enganou de forma alguma, e que é impossível que os objetos vos
pareçam diferentes do que os podeis ver no estado presente das coisas.
Preconceitos físicos
O Sol se ergue, a Lua também, a Terra está imóvel:
– eis aí preconceitos físicos naturais. Mas que as lagostas
sejam boas para o sangue, pois estando cozidas são vermelhas como ele;
que as enguias curem a paralisia, pois se agitam; que a Lua influa nas nossas
doenças, pois um dia observou-se que um doente teve um aumento de febre
durante o curso da Lua: essas idéias, e milhares de outras, são
erros de velhos charlatães, que julgaram sem raciocinar e que, enganando-se,
enganaram os outros.
Preconceitos históricos
A maioria das histórias foram cridas sem exame, e essa crença
é um preconceito. Fábio Pictor relata que, muitos séculos
antes dele, uma vestal da cidade de Alba, indo buscar água com o seu
cântaro, foi violada e deu à luz a Rômulo e Remo, que eles
foram nutridos por uma loba, etc. O povo romano acreditou nessa fábula;
não perdeu tempo em examinar se naqueles tempos existiam vestais no
Lácio, se era possível que a filha de um rei saísse de
seu convento com seu cântaro, se era provável que uma loba amamentasse
dois meninos em vez de os comer como fazem todos os lobos. Estabelece-se então
o preconceito.
Um monge escreveu que Clovis, estando num grande perigo na batalha de Tolbiac,
fez voto de se tornar cristão se conseguisse escapar; é porém
natural que uma pessoa se dirija a um deus estrangeiro em tal ocasião?
Não é precisamente num momento desses que a religião
na qual se nasceu age mais fortemente? Qual é o cristão que,
numa batalha contra os turcos, não se dirigirá antes à
Santa Virgem que a Mafoma? Acrescenta-se que um pássaro levou a santa
ampola em seu bico a fim de ungir Clovis e que um anjo trouxe a auriflâmula
para o conduzir. O preconceito crê em todas as historietas desse gênero.
Os que conhecem a natureza humana sabem que o usurpador Clovis e o usurpador
Rolão ou Rol se tornaram cristãos para governar mais seguramente
a cristãos, como os usurpadores turcos se tornaram muçulmanos
para governar mais seguramente os muçulmanos.
Preconceitos religiosos
Se vossa sina vos contou que Ceres preside ao trigo ou que Vichnú
e Xaca se transformaram em homens várias vezes, ou que Samonocodom
veio destruir uma floresta, ou que Odin vos espera em sua sala lá na
Jutlândia, ou que Mafoma ou outro qualquer fez uma viagem ao céu;
enfim se vosso preceptor vem em seguida refundar em vosso cérebro o
que vossa ama aí gravou, tendes com que vos divertir para o resto da
vida. Vosso julgamento quer elevar-se contra tais preconceitos; vossos vizinhos,
e sobretudo vossas vizinhas, berram contra a impiedade, e vos assustam; vosso
dervís, temendo ver diminuídas as suas rendas, denuncia-vos
ao cadi, e esse cadi vos manda empalar se o puder, porquanto o seu desejo
é mandar sobre idiotas, e crê que os idiotas obedecem melhor
do que os outros. E esse estado de coisas durará até que vossos
vizinhos e o dervís e o cadi comecem a compreender que a cretinice
não serve para coisa alguma e que a perseguição é
abominável.
RELIGIÃO
Primeira questão
O bispo de Glocester, Warburton, autor de uma das mais sábias obras
que já se escreveram, assim se exprime, página 8, tomo 1o.:
“Uma religião, uma sociedade que não está fundada
sobre a crença numa outra vida deve ser sustida por uma providência
extraordinária. O judaísmo não está fundado sobre
a crença numa outra vida; portanto o judaísmo foi sustido por
uma providência extraordinária”.
Vários teólogos se ergueram contra ele; e como se retorquem
todos os argumentos, retorquiram o seu; disseram-lhe:
“Toda religião que não estiver baseada sobre o dogma
da imortalidade da alma e sobre as penas e recompensas eternas é necessariamente
falsa; ora, o judaísmo não conheceu esses dogmas; portanto o
judaísmo, longe de ser sustido pela Providência, era, segundo
vossos princípios, uma religião falsa e bárbara que atacava
a Providência”.
Esse bispo teve alguns adversários que lhe afirmaram que a imortalidade
da alma era conhecida entre os judeus, nos próprios tempos de Moisés;
ele lhes provou porém mui evidentemente que nem o Decálogo,
nem o Levítico, nem o Deuteronômio tinham uma única palavra
a respeito dessa crença, e que é ridículo pretender turvar
e corromper algumas passagens dos outros livros para concluir daí uma
verdade que não está absolutamente anunciada no livro da lei.
O senhor bispo, tendo escrito quatro volumes para demonstrar que a lei judaica
não propunha nem penas nem recompensas depois da morte, jamais pôde
responder a seus adversários de maneira satisfatória. Estes
lhe diziam: “Ou Moisés conhecia esse dogma e então enganou
os judeus não o manifestando; ou ignorava-o, e nesse caso não
tinha conhecimentos suficientes para formar uma boa religião. Com efeito,
se a religião fosse boa, por que teria sido abolida? Uma religião
verdadeira deve ser para todos os tempos e todos os lugares; ela deverá
ser como a luz do Sol que ilumina todos os povos e todas as gerações”.
Esse prelado, por esclarecido que fosse, teve muito trabalho em se livrar
de todas essas difíceis proposições; porém qual
o sistema isento de dificuldades!
Segunda questão
Outro sábio muito mais filosófico, que é um dos mais
profundos de nossos dias, apresenta fortes razões para provar que o
politeísmo foi a primeira religião dos homens, e que se começou
por crer em vários deuses antes que a razão fosse suficientemente
esclarecida para não reconhecer senão um Ente Supremo.
Ouso crer, ao contrário, que se principiou por reconhecer um único
Deus, e que em seguida a fraqueza humana adotou vários deles; e eis
como concebo a coisa:
É indubitável haverem existido burgos antes que se construíssem
grandes cidades, e que todos os homens foram divididos em repúblicas
antes de ser reunidos em grandes impérios.
É bem natural que um burgo atemorizado pelo trovão, afligido
pela perda de suas colheitas, maltratado pelo burgo vizinho, sentindo todos
os dias a própria fraqueza, pressentindo por toda parte um poder invisível,
tenha terminado por dizer: “Existe algum ser acima de nós que
nos causa bens e males”.
Parece-me impossível que tenha dito: “Há dois poderes”.
Por que vários? Principia-se sempre pelo simples, em seguida vem o
composto e amiúde, enfim, volta-se ao simples mercê de luzes
superiores. Tal é a marcha do espírito humano.
Qual é esse ente que se teria invocado a princípio? Seria
o Sol? Seria a Lua? Não creio. Examinemos o que se passa entre as crianças;
representam mais ou menos o que são os homens ignorantes. Não
percebem a beleza nem a utilidade do astro que anima a natureza, nem os socorros
que a Lua nos presta, nem as variações regulares do seu curso;
não o pensam, estão muito acostumadas a todas essas coisas.
Não se adora, não se crê senão aquilo que se teme;
todas as crianças olham para o céu com indiferença; mas
estruja o trovão e elas tremerão, irão se esconder.
Sem dúvida, os primeiros homens agiram de forma idêntica. Apenas
umas espécies de filósofos que assinalaram o curso dos astros
ensinaram também a admiração e adoração;
os cultivadores simples e sem luz alguma não conheciam o bastante para
perfilhar tão nobre erro.
Portanto, uma aldeia ter-se-á limitado a dizer: “Há
uma potência que troveja, que atira neve sobre nós, que faz morrer
nossos filhos: acalmemo-la; mas como? Vemos que acalmamos com pequenos presentes
a cólera das pessoas irritadas: façamos pois pequenos presentes
a essa potência. É também preciso dar-lhe um nome. O primeiro
que se oferece é o de Chefe, Dono, Senhor; essa potência é
pois chamada Senhor. É provavelmente a razão pela qual os primeiros
egípcios chamaram ao seu deus Knef; os sírios, Adonai; os povos
vizinhos, Baal ou Bel, ou Melch, ou Moloch; os citas, Papeu: palavras que
significam Senhor, Mestre.
Foi assim que se encontrou quase toda a América dividida numa multidão
de pequenas populações, tendo todas seu deus protetor. Os próprios
mexicanos, os peruvianos, que eram grandes nações, tinham apenas
um deus: uns adoravam Manco Capaque, outros o deus da guerra. Os mexicanos
davam ao seu deus guerreiro o nome de Vitzlipufzli, assim como os hebreus
haviam cognominado o seu senhor de Sabaoth.
Não é por uma razão superior e cultivada que todos
os povos começaram a reconhecer uma única divindade. Se tivessem
sido filósofos, teriam adorado o deus de toda a natureza, e não
o deus de uma aldeia; teriam examinado essas relações infinitas
de todos os seres, que provam um ente criador e conservador; porém
eles não examinaram nada, eles sentiram. Aí está o progresso
de nosso frágil entendimento; cada burgo sentiu sua fraqueza e a necessidade
de um forte protetor. Imaginou esse ser tutelar e terrível residindo
na floresta vizinha, ou na montanha, ou numa nuvem. Apenas imaginou um só
deus, pois o burgo não tinha senão um chefe na guerra. Imaginou-o
corporal, porque era impossível figurá-lo de outra forma. Não
podia crer que o burgo vizinho não tivesse também o seu deus.
Eis por que Jefté disse aos habitantes de Moabe: “Possuís
legitimamente o que vosso deus Camos vos fez conquistar; deveis deixar-nos
gozar dos bens que nosso deus nos concedeu por suas vitórias”
(61).
Tais palavras ditas por um estrangeiro a outros estrangeiros são
notáveis. Os judeus e os moabitas tinham desapossado os naturais do
país; uns e outros apenas tinham o direito da força, e uns disseram
aos outros: – “Vosso Deus vos protegeu em vossa usurpação,
tolerai agora que nosso Deus nos proteja na nossa”.
Jeremias e Amos perguntaram um ao outro “que razão teve o deus
Melcom para se apoderar do país de Gade”. Parece evidente, por
essas passagens, que a antiguidade atribuía a cada país um Deus
protetor. Encontram-se ainda hoje vestígios dessa teologia em Homero.
É bem natural que havendo-se aquecido a imaginação
dos homens e tendo seu espírito adquirido conhecimentos confusos, tenham
eles multiplicado seus deuses, e estipulado protetores para os elementos,
mares, florestas, fontes, campos. Quanto mais examinaram os astros, mais foram
feridos pela admiração. Poder-se-á não adorar
o Sol, quando se adora a divindade de um ribeiro? Desde que o primeiro passo
foi dado, a terra em breve foi coberta de deuses; e enfim desce-se dos astros
aos gatos e às cebolas.
Entretanto é preciso que a razão se aperfeiçoe; o tempo
forma, enfim, os filósofos que percebem que nem as cebolas, nem os
gatos, nem mesmo os astros concertaram a ordem da natureza. Todos esses filósofos
babilônicos, persas, egípcios, citas, gregos e romanos admitem
um Deus supremo remunerador e vingador.
Eles não o dizem a princípio ao povo: pois quem falasse mal
das cebolas e dos gatos diante das velhas e dos padres teria sido lapidado;
quem quer que reprochasse aos egípcios o fato de comerem os seus deuses,
acabaria sendo ele próprio devorado, como, de feito, Juvenal nos relata
que um egípcio foi morto e comido completamente cru numa disputa de
controvérsia (62).
Mas que se fez? Orfeu e outros estabeleceram mistérios, que os iniciados
prometeram mediante juramentos execráveis nunca revelar, e o principal
desses mistérios é a adoração de um único
Deus. Essa grande verdade penetra metade da terra; o número dos iniciados
torna-se imenso. É verdade que a antiga religião sempre subsistiu;
mas, como não é contrária ao dogma da unidade de Deus,
deixa-se que subsista. E por que aboli-la? Os romanos reconhecem o Deus optimus
maximus; os gregos têm o seu Zeus, seu Deus supremo. Todas as outras
divindades são apenas intermediárias: imperadores e reis são
instalados no posto de deuses, isto é, de bem-aventurados; é
porém certo que Cláudio, Otávio, Tibério e Calígula
não são considerados como criadores do céu e da terra.
Numa palavra, parece provado que, no tempo de Augusto, todos os que tivessem
uma religião reconheciam um Deus superior, eterno, e várias
ordens de deuses secundários, cujo culto foi chamado mais tarde idolatria.
Os judeus jamais foram idólatras: porque, não obstante terem
admitido alguns malakhim, anjos, seres celestes de uma categoria inferior,
sua lei não ordenava de forma alguma que tais divindades secundárias
tivessem culto entre eles. Adoravam os anjos, é verdade, isto é,
prostravam-se diante deles quando bem entendiam; mas, como isto não
sucedia com freqüência, não havia cerimonial nem culto estabelecido
para eles. Os querubins da arca não recebiam homenagem alguma. Era
costume adorarem os judeus abertamente um único Deus, assim como a
multidão inumerável dos iniciados o adoravam secretamente em
seus mistérios.
Terceira questão
Foi ao tempo em que o culto de um Deus supremo estava universalmente estabelecido
na opinião de todos os sábios, na Ásia, na Europa e na
África, que a religião cristã nasceu e se desenvolveu.
O platonismo auxiliou bastante a compreensão de tais dogmas. O Logos,
que para Platão significava a sapiência, a razão do Ser
Supremo, tornou-se em nossos tempos o Verbo e uma segunda pessoa de Deus.
Uma metafísica profunda e acima da inteligência humana foi um
santuário inacessível no qual se desenvolveu a religião.
Não procuremos repetir aqui como Maria foi declarada mãe de
Deus, como se estabeleceu a consubstancialidade do Pai e do Verbo e a processão
do Pneuma, órgão divino do divino Logos, duas naturezas e duas
vontades resultantes da hipóstase, e enfim a manducação
superior, a alma nutrida tal como o corpo dos membros e do sangue do Homem-Deus
adorado e comido sob a forma do pão, presente aos olhos, sensível
ao paladar, e contudo anulado. Todos os mistérios foram sublimes.
Começou-se, desde o segundo século, por esconjurar os demônios
em nome de Jesus; depois se expulsavam em nome de Jeová ou Ihaho: pois
conta S. Mateus que tendo os inimigos de Jesus dito que ele esconjurava os
demônios em nome do príncipe dos demônios, ele lhes respondeu:
“Se é por Belzebú que eu esconjuro os demônios,
em nome de quem o fazem vossos filhos?”
Não se sabe em que tempo os judeus reconheceram por príncipe
dos demônios a Belzebú, que era um Deus estrangeiro; sabe-se
porém (e é José quem no-lo diz) que havia em Jerusalém
exorcistas especiais para esconjurar os demônios dos corpos dos possessos,
isto é, dos homens atacados de doenças singulares, as quais
se atribuíam então em grande parte da terra a gênios malfeitores.
Exconjuravam-se pois os demônios com a verdadeira pronunciação
de Jeová hoje perdida, e com outras cerimônias esquecidas hoje
em dia.
Esse exorcismo por Jeová ou outros nomes de Deus estava ainda em
uso nos primeiros séculos da igreja. Orígenes, disputando contra
Celso, diz-lhe, no. 262: “Se, invocando Deus ou jurando em seu nome,
chamam-no o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, alguma coisa
há de haver nesses nomes, cuja natureza e força são tais
que os demônios se submetem a quem os pronuncia; mas se o chamamos com
outro qualquer nome, como Deus do mar ardente, suplantador, esses nomes não
terão virtude. O nome de Israel traduzido em grego nada operará;
pronunciai-o porém em hebreu, com os outros termos necessários,
e imediatamente operareis a conjuração”.
O próprio Orígenes, no número 19, diz estas palavras
notáveis: “Há nomes que têm uma virtude natural,
como os que empregam os sábios entre os egípcios, os magos da
Pérsia, os brâmanes da Índia. O que chamamos magia não
é uma arte vã e quimérica, tal como o pretendem os estóicos
e os epicuristas: nem o nome de Sabaote nem o de Adonai foram feitos para
seres criados; mas pertencem a uma teologia misteriosa que se liga ao Criador;
de lá vem a virtude desses nomes quando coordenados e pronunciados
segundo as regras, etc.”.
Assim falando Orígenes não apresenta seu sentimento particular:
exprime a opinião universal. Todas as religiões então
conhecidas admitiam uma espécie de magia; distinguia-se a magia celeste
e a magia infernal, a necromancia e a teurgia: tudo aí era prodígio,
adivinhação, oráculo. Os persas não negavam os
milagres dos egípcios, nem os egípcios os dos persas; Deus permitiu
que os primeiros cristãos fossem persuadidos dos oráculos atribuídos
às sibilas, e lhes deixou ainda alguns erros pouco importantes, que
não corrompiam o fundamento da religião.
Coisa grandemente notável é que os cristãos dos dois
primeiros séculos votavam o maior horror aos templos, aos altares e
às imagens. É o que diz Orígenes, no. 374. Tudo mudou
depois com a disciplina, quando a igreja recebeu uma forma constante.
Quarta questão
Desde que uma religião é legalmente estabelecida num estado,
todos os tribunais se ocupam imediatamente de impedir que se modifiquem a
maioria dos atos praticados nessa religião antes de ter sido publicamente
acatada. Os fundadores reuniam-se secretamente apesar dos magistrados; hoje
não se permitem as assembléias públicas senão
sob os olhos da lei, e todas as associações que se afastarem
dela são proibidas. A antiga máxima era que é melhor
obedecer a Deus do que seguir as leis do estado. Apenas se ouvia falar em
obsessões e possessões, o diabo andava à solta na terra:
já hoje o diabo não sai de sua morada. Os prodígios,
as profecias, eram necessárias então: já não se
admitem. Um homem que profetizasse calamidades nas praças públicas
seria metido num manicômio. Os fundadores recebiam secretamente dinheiro
dos fiéis; um homem que recolhesse hoje dinheiro para dele dispor sem
ser autorizado pela lei teria que responder perante a justiça. Assim,
estão completamente fora de uso todos os caibros que serviram para
construir o edifício.
Quinta questão
Depois da nossa santa religião, que sem dúvida alguma é
a única boa, qual será a menos má?
Não seria a mais simples? Não seria aquela que ensinasse muita
moral e pouquíssimos dogmas? a que tendesse a tornar os homens justos
sem os tornar absurdos? a que não ordenasse absolutamente crer em coisas
impossíveis, contraditórias, injuriosas à Deidade e perniciosas
ao gênero humano, e que não ousasse ameaçar com as penas
eternas os que tivessem o senso comum? Não seria aquela que não
sustentasse sua crença por intermédio de tribunais nem inundasse
a terra de sangue por causa de sofismas ininteligíveis? aquela que
de um equívoco, um jogo de palavras e duas ou três cartas sobrepostas
não fizesse um soberano, e um Deus de um padre freqüentemente
incestuoso, homicida e envenenador? a que não submetesse os reis a
esse padre? a que não ensinasse senão a adoração
de um Deus, a justiça, a tolerância e a humanidade?
Sexta questão
Diz-se que a religião dos gentios era absurda em muitos pontos, contraditória,
perniciosa; mas não se lhe teriam imputado maiores males do que na
realidade praticou, e mais tolices do que pregou?
“Pois em ver Júpiter mudado em touro, – serpente, mono
ou outra coisa qualquer, – nada de belo encontro – nem me admirará
se suceder”. (Prólogo de Anfítrion).
Sem dúvida isto é muito impertinente; mostrem-me, porém,
em toda a antigüidade um templo dedicado a Leda deitando com um mono
ou com um touro. Houve em Atenas ou Roma algum sermão para encorajar
as moças a fazer crianças com os macacos do seu pátio?
As fábulas recolhidas e ornadas por Ovídio constituem a religião?
Não se parecem elas à nossa Lenda Dourada, à nossa Flor
dos Santos? Se algum brâmane ou dervis nos viesse objetar a história
de Santa Maria egipciana, a qual, não tendo com que pagar aos marinheiros
que a conduziram ao Egito, deu a cada um deles o que chamamos favores, à
guisa de dinheiro, diríamos ao brâmane: “Meu reverendo
padre, estais enganado, nossa religião não é a Lenda
Dourada”.
Reprovamos aos antigos seus oráculos, seus prodígios: se eles
voltassem ao mundo e pudéssemos contar os milagres de Nossa Senhora
de Loreto e os de Nossa Senhora de Éfeso, para que lado penderia a
balança?
Os sacrifícios humanos foram estabelecidos em quase todos os povos,
mas muito raramente postos em uso. Apenas temos a filha de Jefté e
o rei Agague imolados entre os judeus, porque Isaque e Jônatas jamais
o foram. A história de Ifigênia não é muito acreditada
entre os gregos; os sacrifícios humanos são muito raros entre
os antigos romanos. Numa palavra, a religião pagã fez derramar
pouquíssimo sangue, enquanto a nossa alagou a terra. A nossa é
sem dúvida a única boa, a única verdadeira; mas fizemos
tanto mal por seu intermédio que quando falamos das outras devemos
ser modestos.
Sétima questão
Se um homem quiser persuadir de sua religião a estrangeiros ou compatriotas
não deverá empregar a doçura mais insinuante e a mais
acareante moderação? Se começar por dizer que o que ele
anuncia está demonstrado, encontrará uma multidão de
incrédulos; se ousar dizer-lhes que eles não rejeitam a sua
doutrina senão porque ela condena as suas paixões, que o seu
coração corrompeu o seu espírito, que eles apenas têm
uma razão falsa e orgulhosa, ele os revolta, anima-os contra si, arruina
ele próprio o que quer edificar.
Se a religião que anuncia é verdadeira, torná-la-ão
a insolência e o arrebatamento mais verdadeira? Ficais encolerizados
quando dizeis que é preciso ser dócil, paciente, benfeitor,
justo, preencher todos os deveres da sociedade? Não, porque todo mundo
é do vosso parecer. Por que, pois, dizeis injúrias ao vosso
irmão quando lhe pregais uma metafísica misteriosa? É
que o seu bom senso irrita o vosso amor próprio. Tendes o orgulho de
exigir que vosso irmão submeta a sua inteligência à vossa;
o orgulho humilhado conduz à cólera, nem é outra a sua
origem. O homem ferido por vinte balas numa batalha não fica encolerizado;
mas um doutor ferido pela recusa de um sufrágio torna-se furioso e
implacável.
RESSURREIÇÃO
Conta-se que os egípcios não construíram as suas pirâmides
senão para fazer túmulos e que os seus corpos embalsamados por
dentro e por fora esperavam que suas almas viessem reanimá-los ao fim
de mil anos. Mas se os seus corpos deviam ressuscitar, por que a primeira
operação dos perfumistas era perfurar-lhes o crânio e
tirar-lhes o cérebro? A idéia de ressuscitar sem cérebro
faz supor (se se permitir a expressão) que os egípcios não
o tinham muito vivo; é preciso, porém, considerar que a maioria
dos antigos julgava que a alma estivesse no peito. E por que deveria estar
no peito mais do que em qualquer outra parte? É que, com efeito, em
todos os nossos sentimentos um pouco violentos experimentamos perto do coração
um confrangimento ou uma dilatação, que fez pensar ser ali o
alojamento da alma. Essa alma era qualquer coisa de abstrato, de aéreo;
era uma figura leve que vagava pelo espaço até encontrar de
novo seu corpo.
A crença da ressurreição é muito mais antiga do
que os tempos históricos. Atálida, filha de Mercúrio,
podia morrer e ressuscitar ao seu bel prazer: Esculápio restituiu a
vida a Hipólito; Hércules a Alceste; Pélopes, tendo sido
cortado em pedaços pelo pai, foi ressuscitado pelos deuses. Conta Platão
que Eros ressuscitou por quinze dias somente.
Os fariseus, entre os judeus, só adotaram o dogma da ressurreição
muito tempo depois de Platão.
Há nos Atos dos Apóstolos um fato bem singular e digno de atenção
Jacó e vários dos seus companheiros aconselharam S. Paulo a
ir ao templo de Jerusalém observar todas as cerimônias da antiga
lei, por cristão que ele fosse, “a fim de que todos saibam”,
dizem-lhe, “que tudo o que se diz de vós é falso e que
continuais a guardar a lei de Moisés”.
Então S. Paulo foi durante sete dias ao Templo, mas no sétimo
foi reconhecido. Acusaram-no de lá ter ido com estrangeiros e de o
ter profanado. Eis como ele se livrou da entaladura:
“Ora, sabendo Paulo que uma parte dos que lá estavam eram saduceus
e outra fariseus, gritou na assembléia: “Meus irmãos,
eu sou fariseu e filho de fariseu; é por causa da esperança
duma outra vida e da ressurreição dos mortos que me querem condenar”
(63). Não houvera nenhuma questão da ressurreição
dos mortos em todo esse negócio; Paulo dizia-o apenas para atirar os
fariseus e saduceus uns contra os outros.
V. 7. “Paulo, tendo assim falado, motivou uma dissensão entre
os fariseus e saduceus, e a assembléia foi dividida.
V. 8. “Porque os saduceus dizem que não há ressurreição,
nem anjo, nem espírito, enquanto os fariseus reconhecem um e outro,
etc.”.
Pretendeu-se que Jó, que é muito antigo, conhecesse o dogma
da ressurreição. Citam-se as suas palavras: “Sei que o
meu redentor está vivo e que um dia a sua redenção se
erguerá sobre mim, ou que eu me erguerei do pé, que minha pele
voltará e que ainda verei Deus em minha carne”.(64)
Mas vários comentadores entendem por essas palavras que Jó espera
que há de melhorar em breve de sua doença, e que não
permanecerá sempre deitado na terra como estava. Há provas de
que essa explicação seja verdadeira, porque ele gritou aos seus
falsos e empedernidos amigos: “Por que então dizeis: persigamo-lo?”
ou então: “Porque direis: porque nós o perseguimos”.
Isso evidentemente não quer dizer: “Arrepender-vos-eis de me
haver ofendido quando me virdes no meu primeiro estado de saúde e opulência?”
Um doente que diz: “Eu me levantarei”, não diz: “Eu
ressuscitarei”. Dar sentidos forçados a passagens claras é
o meio seguro de jamais se entender.
S. Jerônimo coloca o nascimento da seita dos fariseus muito pouco tempo
antes de Jesus Cristo. O rabino Hilel passa por ser o fundador da seita farisaica,
e esse Hilel foi contemporâneo de Gamaliel, o mestre de São Paulo.
Vários desses fariseus acreditavam que somente os judeus ressuscitariam
e que o resto dos homens não valiam a pena. Outros sustiveram que não
se ressuscitaria senão na Palestina, e que os corpos daqueles que forem
enterrados alhures serão secretamente transportados para Jerusalém,
a fim de se juntarem à sua alma. Mas São Paulo, escrevendo aos
habitantes de Tessalônica, diz-lhes que “O segundo advento de
Jesus Cristo é para eles e para ele, que eles serão testemunhas”.
V. 16. “Porque logo que o sinal for dado pelo arcanjo e pelo som da
trombeta de Deus o próprio Senhor descerá do céu, e os
que estiverem mortos em Jesus Cristo ressuscitarão por primeiros”.
V. 17. “Depois nós que somos vivos e que tenhamos sobrevivido
até então seremos elevados com eles às nuvens para irmos
perante o Senhor, no meio do ar, e assim viveremos para sempre com o Senhor”
(65).
Essa importante passagem não prova evidentemente que os primeiros cristãos
esperavam ver o fim do mundo, como de feito se prediz em S. Lucas, no tempo
mesmo em que viveu S. Lucas?
Acreditava Sto. Agostinho que as crianças, e mesmo as crianças
natimortas, ressuscitariam na idade madura. Os Orígenes, os Jerônimos,
os Atanásios, os Basílios não creram que as mulheres
pudessem ressuscitar com o seu sexo.
Enfim, sempre disputamos sobre o que fomos, sobre o que somos e sobre o que
seremos.
SALOMÃO
Teria sido Salomão rico como se disse? Afiançam os Paralipômenos
que o “melk” Davi, seu pai, deixou-lhe cerca de vinte milhões
de nossa moeda corrente, segundo o cálculo mais modesto. Não
há tal soma de dinheiro corrente em toda a terra e é muito difícil
que Daví tivesse podido amealhar tamanho tesouro no pequeno país
da Palestina.
Salomão, segundo o terceiro livro dos Reis, tinha quarenta mil coudelarias
para os cavalos de suas carruagens. Quando mesmo cada coudelaria não
contivesse mais que dez cavalos, isso somaria apenas o número de quatrocentos
mil que, juntos a seus doze mil cavalos de sela, teria feito quatrocentos
e doze mil cavalos de batalha. É muito para um “melk” judeu
que jamais praticou a guerra. Essa magnificência não tem exemplo
num país que apenas produzia asnos e onde hoje não existe outra
montaria. Mas parece que os tempos mudaram. É verdade que um príncipe
tão sábio, que tinha mil mulheres, podia ter também quatrocentos
e doze mil cavalos, quando mais não fosse para levá-las a passeio
ou ao longo do lago de Genezaré ou de Sodoma, ou à torrente
de Cedrão, que é um dos sítios mais deliciosos da terra,
embora, na verdade, essa torrente esteja seca durante nove meses do ano e
o terreno seja um tanto rochoso.
Mas teria esse sábio Salomão realmente escrito as obras que
lhe atribuem? É verossímil, por exemplo, que seja o autor da
égloga intitulada Cântico dos Cânticos?
Pode ser que um monarca que possuía mil mulheres dissesse a uma delas:
“Que ela me beije com um beijo de sua boca, pois seus seios são
melhores do que o vinho”. Um rei e um pastor, quando se trata de beijar
na boca, podem se exprimir da mesma maneira. É verdade que é
muito estranho haver-se pretendido que foi a moça quem assim falou
elogiando os seios do amante.
Não negarei que um rei galante tenha podido fazer que sua amante
dissesse: – “Meu bem amado é como um ramilhete de mirra,
ele morará em meus seios”. Não entendo muito bem o que
significa esse ramilhete de mirra; mas enfim, quando a bem amada diz ao bem
amado que lhe passe a mão direita sobre o pescoço e a abrace
com a direita, entendo muito bem.
Poder-se-ia pedir algumas informações ao autor do Cântico
quando diz: “Vosso umbigo é como uma taça na qual há
sempre algo que beber; vosso ventre é como um alqueire de trigo; vossos
seios são como duas crias de cervo e vosso nariz é como a torre
do monte Líbano”.
Confesso que as églogas de Virgílio são de outro estilo;
mas cada um tem o seu, e um judeu não é obrigado a escrever
como Virgílio.
É aparentemente um belo efeito de eloquência oriental dizer:
“Nossa irmã é ainda pequena, ela não tem seios.
Que faremos de nossa irmã? Se é um muro, construamos sobre ele;
se é uma porta, fechemo-la”.
Belas coisas, belas anedotas para Salomão, o mais sábio dos
homens… Era, dizem, seu epitálamo para o seu casamento com a filha
do faraó; é porém natural que o genro do faraó
deixe sua bem amada durante a noite para ir passear em seu jardim das nogueiras,
que a rainha corra sozinha, descalça, atrás dele, que seja espancada
pelos guardas da cidade e que estes lhe tirem a roupa?
Poderia a filha de um rei ter dito: “Eu sou morena, mas sou bela como
as peliças de Salomão”? Tais expressões poder-se-iam
atribuir a um pastor, porquanto ao cabo de contas não há grande
relação entre peliças e a beleza de uma moça.
Mas, enfim, as peliças de Salomão poderiam ter sido admiradas
em seu tempo, e um judeu do povo, que fazia versos à amante, poderia
ter dito, em seu linguajar judeu, que jamais rei algum tivera roupas de pele
tão bonitas como as dela; quanto ao rei Salomão, deveria estar
muito entusiasmado com suas peliças para compará-las à
amante: se um rei de nossos dias compusesse um tal epitálamo para o
seu casamento com a filha de um rei vizinho não passaria, com toda
certeza, pelo melhor poeta de seu reino.
Vários rabinos sustiveram que não só essa pequena égloga
voluptuosa não era do Salomão, mas que também não
era autêntica. Teodoro de Mopsueste tinha idêntica opinião,
e o célebre Grótio chama ao Cântico dos Cânticos
obra libertina, flagitiosus; contudo ela está consagrada, e é
considerada como uma perpétua alegoria dos esponsais de Jesus Cristo
com sua igreja. É preciso não esquecer que a alegoria é
um pouco forte, nem se sabe que poderia a igreja deduzir do ponto em que o
autor diz que sua irmã não tem seios, e que, se é um
muro, é preciso construir sobre ela.
O livro da Sabedoria tem um tom mais sério; porém não
pertence mais a Salomão do que o Cântico dos Cânticos.
Atribui-se comumente a Jesus, filho de Siraque, outros a Fílon de Biblos;
mas, seja quem for o autor, parece que no seu tempo ainda não existia
o Pentateuco, porque ele diz no capítulo 10 que Abraão quis
imolar Isaque no tempo do dilúvio, e, por outro lado, fala do patriarca
José como de um rei do Egito.
Os Provérbios foram atribuídos a Isaías, a Elzias,
a Sobna, a Eliacin, a Joaquê e a vários outros. Mas, quem quer
que seja que compilou essa coletânea, de sentenças orientais,
não há o menor viso de verdade em que tenha sido um rei quem
se deu a tal trabalho. Teria ele dito que “O terror do rei é
como o rugido de um Leão?” É assim que fala um súdito
ou um escravo, que a cólera do seu senhor faz tremer. Teria Salomão
falado tanto da mulher impudica? Teria dito: “Não olheis o vinho
quando se afigura claro e sua cor brilha através do copo”?
Ponho francamente em dúvida a existência de copos no tempo
de Salomão: é uma invenção muito recente; toda
a antigüidade bebia em taças de madeira ou de metal; e essa única
passagem indica que essa obra foi elaborada por um judeu de Alexandria muito
tempo depois de Alexandre.
Resta o Eclesiastes, que Grótio pretende ter sido escrito sob o reinado
de Zorobabel. Sabe-se perfeitamente com que liberdade o autor do Eclesiastes
se exprime; sabe-se que ele disse que: “Os homens nada têm mais
do que as bestas; que mais vale nunca ter nascido, do que existir; que não
existe nenhuma outra vida; que a única coisa boa em tudo isso é
podermos diverti-nos com aquela a quem amamos”.
Pode ser que Salomão tenha feito tais discursos a algumas de suas
mulheres; pretende-se tratar-se de objeções; porém essas
máximas, de ar um tanto libertino, nem de leve se parecem a objeções,
e entender num autor o contrário do que ele diz é zombar da
humanidade. Aliás, vários padres pretenderam que Salomão
tenha feito penitência; assim, pode-se perdoá-lo.
Porém, que esses livros tenham ou não sido escritos por um
judeu, que nos importa? Nossa religião cristã alicerceia-se
sobre a judaica, mas não sobre todos os livros que os judeus escreveram.
Por que será o Cântico dos Cânticos mais sagrado para nós
do que as fábulas do Talmude? Porque, diz-se, nós o incluímos
no cânon dos hebreus. E que é esse cânon? Uma coletânea
de obras autênticas. Essa é boa! Uma obra, por ser autêntica,
é divina? Uma história dos reis de Judá e de Siquêm,
por exemplo, será algo mais que uma história? Eis um estranho
preconceito. Nós abominamos os judeus, e queremos que tudo o que por
eles foi escrito e por nós recolhido traga o sinete da Divindade. Jamais
se viu contradição tão palpável.
SENSAÇÃO
As ostras têm, diz-se, dois sentidos; as toupeiras, quatro; os outros
animais, como os homens, cinco. Algumas pessoas admitem um sexto, mas é
evidente que a sensação voluptuosa de que pretendem falar reduz-se
ao sentimento do tato e que cinco sentidos constituem o nosso quinhão.
É nos impossível imaginar ou desejar mais que isso.
Pode ser que em outros planetas existam sentidos de que não fazemos
a mínima idéia; pode ser que o número de sentidos aumente
de planeta em planeta e que o ser que tem sentidos inúmeros e perfeitos
seja o termo de todos os seres. Mas, nós outros com os nossos cinco
órgãos, qual é o nosso poder? Sentimos sempre contra
nossa vontade, e jamais por que o desejemos; é-nos impossível
deixar de ter a sensação que a nossa natureza nos destina quando
o objeto nos fere. O sentimento está em nós mas não depende
de nós. Nós o recebemos; e como o recebemos? Sabe-se perfeitamente
que não há nenhuma relação entre o ar agitado
e as palavras que me cantam e a impressão que essas palavras gravam
no meu cérebro.
Admiramo-nos do pensamento; mas o sentimento é igualmente maravilhoso.
Um poder divino lampeja na sensação do último dos insetos
como no cérebro de Newton. Contudo, que milhares de animais morram
à vossa vista, não vos inquietareis pelo que possa vir a ser
a sua faculdade de sentir, embora tal faculdade seja obra do Ser dos seres;
vós os olhais como máquinas da natureza, nascidas para morrer
e dar lugar a outras.
Como e por que a sua sensação deveria subsistir quando eles
já não existem? Que necessidade teria o autor de tudo o que
existe de conservar as propriedades cujo sujeito está destruído?
Equivaleria a dizer que o poder da planta chamada sensitiva de retrair suas
folhas subsiste mesmo quando a planta deixa de existir. Perguntareis sem dúvida
como, se a sensação dos animais morre com eles, o pensamento
do homem jamais perecerá. Não posso responder a essa questão,
não sei o bastante para resolvê-la. Só o autor eterno
da sensação e do pensamento sabe como a concede e como a conserva.
Toda a antigüidade afirmou que nada existe em nosso entendimento que
não tenha passado por nossos sentidos. Descartes, nos seus romances,
pretendia que tivéssemos idéias metafísicas antes de
conhecer os seios de nossa ama; uma faculdade de teologia proscreveu esse
dogma, não porque fosse um erro, mas porque era uma novidade; em seguida
adotou esse erro, porque fora destruído por Locke, filósofo
inglês, e era necessário que o inglês errasse. Enfim, depois
de haver mudado tantas vezes de princípios, ela tornou a proscrever
essa antiga verdade, que os sentidos são as portas do entendimento.
Fez como esses governos sobrecarregados de dívidas que ora dão
livre curso a certas cédulas e ora as interdizem; mas desde muito tempo
que ninguém quer saber das cédulas dessa faculdade.
Todas as faculdades do mundo jamais impedirão os filósofos
de ver que nós começamos por sentir e que nossa memória
não é senão uma sensação contínua.
Um homem que nascesse privado dos seus cinco sentidos seria privado de toda
idéia, se pudesse viver. As noções metafísicas
não nos chegam senão pelos sentidos: pois como medir um círculo
ou um triângulo se não se viu ou tocou um círculo e um
triângulo? Como conceber uma idéia mesmo imperfeita do infinito
sem estabelecer limites? E como estabelecer limites sem os ter visto ou sentido?
A sensação envolve todas as nossas faculdades, disse um grande
filósofo (66). Que concluir de tudo isso? Vós que ledes, que
pensais, concluí.
SONHOS
Somnia, quae mentes ludunt volitantibus umbris,
non delubra deum nec ab oethere nurnina mittunt,
sed sibi quisque facit (67).
Mas como, estando todos os sentidos mortos no sono, existe um sentido que
vive? Como, nossos olhos não vendo mais, vossos ouvidos nada entendendo,
vedes, contudo, e ouvis em vossos sonhos? O cão está na caça,
em sonho; late, segue a presa. O poeta faz versos dormindo; o matemático
vê figuras; o metafísico raciocina bem ou mal: temos exemplos
contundentes.
Serão esses os únicos órgãos da máquina
que funcionam? É a alma pura que, subtraída ao império
dos sentidos, usufrui dos seus direitos em liberdade? Se os órgãos,
por si sós, produzem os sonhos à noite, por que não produzirão
também, sós, as idéias de dia? Se a alma pura, tranqüila,
no repouso dos sentidos, agindo por si própria é a causa única,
o sujeito único de todas as idéias que tendes dormindo, por
que serão essas idéias quase sempre irregulares, desarrazoadas,
incoerentes? Como! É no momento em que essa alma está menos
turbada que ela tem mais perturbações em todas as suas imaginações!
Ela está livre e é louca! Se houvesse nascido com idéias
metafísicas como o dizem tantos escritores que sonham de olhos abertos,
suas idéias puras e luminosas do Ser, do infinito, de todos os primeiros
princípios deveriam despertar em si com a maior energia quando o corpo
está adormecido: nunca se seria bom filósofo senão em
sonho.
Seja qual for o sistema que abraceis, sejam quais forem os esforços
vãos que façais para provar a vós mesmos que a memória
agita o vosso cérebro, que vosso cérebro agita vossa alma, é
mister convirdes em que todas as vossas idéias vos acodem durante o
sono, sem vós e apesar de vós: vossa vontade não intervêm
aí. É portanto certo que podeis pensar sete ou oito horas seguidas
sem ter a mínima vontade de pensar, sem mesmo estar seguro de que pensais.
Ponderai isto tudo: procurai adivinhar o que vem a ser o complexo do animal.
Os sonhos foram sempre um grande objeto de superstição; nada
mais natural. Um homem vivamente comovido pela doença de sua amante
sonha que a vê morrer; ela morre no. dia seguinte: portanto, os deuses
predisseram-lhe a sua morte.
Um general do exército sonha que vence uma batalha; ganha-a, com
efeito: os deuses o advertiram de que seria vencedor. Não se levam
em consideração senão os sonhos que foram confirmados;
esquecem-se os outros. Os sonhos participam grandemente da história
antiga, tal como os oráculos. Assim traduz a Vulgata o fim do versículo
26 do cap. 19 do Levítico: “Não observareis os sonhos”.
Mas o termo sonho não existe no hebraico e seria muito estranho que
se reprovasse a observação dos sonhos no próprio livro
em que se diz que José se tornou o benfeitor do Egito e de sua família
mediante a explicação de três sonhos.
A explicação dos sonhos era uma coisa tão comum que
a gente não se limitava a essa prática: era preciso ainda adivinhar
algumas vezes o que outro homem sonhara. Nabucodonosor, tendo olvidado um
sonho que tivera, ordenou aos seus magos a sua adivinhação,
e os ameaçou de morte caso não chegassem a bom fim; mas o judeu
Daniel, que era da escola dos magos, salvou-lhes a vida adivinhando o sonho
do rei, com a respectiva interpretação. Essa história
e muitas outras poderiam servir para provar que a lei dos judeus não
proibia a oneiromancia, isto é, a ciência dos sonhos.
SUPERSTIÇÃO
(Capítulo extraído de Cícero, Sêneca e Plutarco)
Quase tudo o que vai além da adoração de um Ser Supremo
e da submissão do coração às suas ordens eternas
é superstição. O perdão aos crimes acompanhado
de certas cerimônias é uma das mais perigosas.
Et nigras mactant pecudes, et manibu divis inferias mittunt (68).
Ah! nimium faciles qui tristia crimina coedis fluminea tolli posse putatis
aqua! (69).
Pensais que Deus olvidará vosso homicídio se vos banhardes
num rio, se imolardes um cordeiro preto e se se pronunciarem sobre vós
algumas palavras. Um segundo homicídio vos será pois perdoado
ao mesmo preço, e assim um terceiro, e cem mortes não vos custarão
mais do que cem cordeiros negros e cem abluções! Fazei melhor,
miseráveis humanos: nada de mortes e nada de cordeiros negros.
Que infame idéia imaginar que um sacerdote de Isis e de Cíbele,
tocando címbalos e castanholas, vos reconciliará com a Divindade!
E quem é pois esse sacerdote de Cibele, esse eunuco errante que vive
de vossas fraquezas, para se arvorar intermediário entre o Céu
e vós outros? Que espécie de patentes recebeu ele de Deus? Recebe
de vós algum dinheiro para balbuciar algumas palavras, e credes que
o Ser dos seres ratificará as palavras desse charlatão?
Há superstições inocentes: dançais nos dias de
festa em honra de Diana ou de Pomona, ou de qualquer desses deuses secundários
de que está repleto o vosso calendário: pois podeis continuar.
A dança é muito agradável, é útil ao corpo,
alegra a alma, não faz mal a ninguém; não acrediteis
porém que Pomona e Virtuna se comovam por haverdes saltado em sua honra
e que vos puniriam se o não houvésseis feito. Não existem
outra Pomona nem outra Virtuna que a enxada e a pá do jardineiro. Não
sejais tão imbecil a ponto de acreditar que vosso jardim se queimará
por haverdes deixado de dançar a pírrica ou a cordácia.
Existe provavelmente uma superstição perdoável e mesmo
reconfortante para a virtude: é a de colocar entre os deuses os grandes
homens que foram benfeitores do gênero humano. Melhor sem dúvida
seria olhá-los simplesmente como homens veneráveis e sobretudo
procurar imitá-los. Venerai sem culto um Sólon, um Tales, um
Pitágoras; não adoreis porém um Hércules por ter
limpado as estrebarias de Augias e por ter-se deitado com cinqüenta mulheres
numa noite.
Guardai-vos de instituir um culto para certos patifes que não têm
outro mérito que a ignorância, a vivacidade e a sordidez; que
fizeram um dever e uma gloria do ócio e da glotonaria: esses que quando
muito foram completamente inúteis durante sua vida, merecerão
por acaso a apoteose depois da morte?
Lembrai-vos de que os tempos mais supersticiosos foram sempre os dos crimes
mais horríveis.
TIRANIA
Chamamos tirano ao soberano que não conhece por leis senão
o próprio capricho, que se apodera dos bens de seus súditos
e que em seguida os arrola para ir tomar os dos vizinhos. Não existe
tal espécie de tiranos na Europa.
Distingue-se a tirania de um só e a de vários. Essa tirania
de vários seria a de um corpo que invadisse os direitos dos outros
corpos e exercesse o despotismo a favor das leis por ele corrompidas. Tão
pouco existe essa espécie de tiranos na Europa.
Sob qual tirania gostaríeis de viver? Sob nenhuma; mas se fosse preciso
escolher, eu detestaria menos a tirania de um só do que a de vários.
Um déspota tem sempre alguns bons momentos; uma assembléia de
déspotas jamais. Se um tirano me faz uma injustiça, poderei
desarmá-lo por intermédio de sua amante, por seu confessor ou
por seu pagem; mas uma companhia de graves tiranos é inacessível
a todas as seduções. Quando não é injusta é
no mínimo impiedosa, e jamais concede favores.
Se tenho apenas um déspota, salvo-me com o simples colar-me a um
muro à sua passagem; ou por me prosternar, ou por bater a fronte no
solo, segundo o costume do país; mas se houver uma companhia de cem
déspotas, estarei exposto a repetir essa cerimônia cem vezes
por dia, o que é exaustivo, quando não se tem os fundilhos reforçados.
Se eu tiver uma pequena herdade nas vizinhanças de um de nossos senhores,
serei esmagado; se reclamar contra um parente dos parentes de nossos senhores,
estarei arruinado. Que fazer? Temo que neste mundo estejamos reduzidos a um
triste dilema: ser bigorna ou martelo. Feliz de quem escapar a essa alternativa!
TOLERÂNCIA
Que é a tolerância?
É o apanágio da humanidade. Estamos todos empedernidos de
debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é
a primeira lei da natureza.
Que na bolsa de Amsterdã, de Londres, de Surata ou de Bassorá,
os guebros, os banianos, os judeus, os mafomistas, os deícolas chins,
os brâmanes, os cristãos gregos, os cristãos romanos,
os cristãos protestantes, os cristãos quakers façam suas
traficâncias juntos: eles não brigarão de punhal. Por
que motivo, pois, nos esganamos quase sem interrupção desde
o primeiro concílio de Nicéia?
Constantino começou por baixar um édito que permitia todas
as religiões; terminou por perseguir. Antes dele os cristãos
apenas eram perseguidos quando começavam a ter alguma força
dentro do estado. Os romanos permitiam todos os cultos, até o dos judeus,
até o dos egípcios, pelos quais tinham tanto desprezo. Por que
tolerava Roma esses cultos? É que nem os egípcios nem mesmo
os judeus procuravam exterminar a antiga religião do império,
não perdendo tempo em revolver terras e mares para angariar prosélitos:
o que queriam era ganhar dinheiro; é porém incontestável
que os cristãos desejavam que sua religião fosse a dominante.
Os judeus não queriam que a estátua de Júpiter estivesse
em Jerusalém; mas os cristãos não admitiam que estivesse
no Capitólio. Sto. Tomás tem a boa fé de convir em que,
se os cristãos não destronavam os imperadores, é que
o não podiam fazer. Sua opinião era que toda a terra devia ser
cristã. Eram portanto inimigos de toda a terra, até que esta
se convertesse.
Havia entre eles inimigos uns dos outros em todos os pontos de sua controvérsia.
Antes de mais nada é preciso considerar Jesus Cristo como Deus, os
que o negam são anatematizados sob o nome de ebionitas, que anatematizam
os adoradores de Jesus.
Alguns deles desejam que todos os bens sejam comuns, como pretendem que
o tenham sido no tempo dos apóstolos: seus adversários os chamam
nicolaitas, acusando-os dos crimes mais infames. Outros, tendentes a uma devoção
mística, são chamados gnósticos e perseguidos com furor.
Marcião é tratado de idólatra por disputar sobre a Trindade.
Tertuliano, Praxedes, Orígenes, Novato, Novaciano, Sabélio,
Donato, são todos perseguidos por seus irmãos antes de Constantino;
e apenas Constantino fez reinar a religião cristã; os atanasianos
e eusebianos se separaram; e desde então a igreja cristã foi
inundada de sangue até hoje.
O povo judeu era, reconheço, um povo bastante bárbaro. Degolavam
sem piedade todos os habitantes de um desgraçado e pequeno país
sobre o qual não tinham mais direito do que sobre Paris e Londres.
Entretanto, quando Naamã é curado de sua lepra por se haver
banhado sete vezes no Jordão; quando, para testemunhar sua gratidão
a Eliseu, que lhe ensinou esse segredo, conta-lhe que adorava o Deus dos judeus
por reconhecimento, reserva-se a liberdade de adorar também o Deus
de seu rei; pede licença a Eliseu, e o profeta não hesita em
conceder-lha. Os judeus adoravam o seu Deus; mas nunca se admiraram de que
cada povo tivesse o seu. Achavam muito natural que Camoes concedesse um certo
distrito aos moabitas, contanto que o seu Deus também lhes desse um.
Jacó não hesitou em desposar as filhas de um idólatra.
Labão tinha seu Deus assim como Jacó tinha o seu. Eis belos
exemplos de tolerância entre o povo mais intolerante e cruel de toda
a antigüidade: nós o imitamos em seus furores absurdos, e não
em sua indulgência.
É claro que todo indivíduo que persegue um homem, seu irmão,
porque não é da sua mesma opinião, é um monstro.
Isto está fora de dúvidas. Mas o governo, mas os magistrados,
mas os príncipes, como deverão proceder para com indivíduos
que têm um culto diferente do seu? Se forem estrangeiros poderosos,
é claro que um príncipe fará aliança com eles.
Francisco I., muito cristão, unir-se-á aos muçulmanos
contra Carlos V, muito cristão. Francisco I dará dinheiro aos
luteranos da Alemanha para sustentá-los em sua revolta contra o imperador;
mas principiará, segundo o costume, por fazer queimar alguns luteranos
em sua própria casa. Paga-os em Saxe por política; por política
queima-os em Paris. Mas que acontecerá? As perseguições
criam prosélitos; em breve a França estará repleta de
novos protestantes. A princípio deixar-se-ão enforcar, em seguida
começarão também a enforcar. Haverá guerras civis,
em seguida o S. Bartolomeu e esse recanto do mundo será pior que tudo
o que antigos e modernos já disseram do inferno.
Insensatos, que jamais soubestes render um culto puro ao Deus que vos criou!
Desgraçados, que o exemplo dos noaquidas, dos letrados chineses, dos
parsis e de todos os sábios jamais pode edificar! Monstros, que necessitais
de superstições corno o urubu de carniça! Já se
vos disse, e não temos outra coisa que dizer-vos: se tiverdes duas
religiões, elas se trucidarão; se tiverdes trinta, viverão
em paz. Vede ó grão-turco: governa guebros, banianos, cristãos
gregos, nestorianos, romanos. O primeiro que experimentar provocar um tumulto
é empalado, e todos permanecem em santíssima paz.
VIRTUDE
Que é virtude? Beneficência para com o próximo. Poderei
chamar virtude a outra coisa senão ao bem que me fazem? Eu sou indigente,
tu és liberal; eu estou em perigo, tu vens em meu socorro; enganam-me,
tu me dizes a verdade; esquecem-me, tu me consolas; eu sou ignorante, tu me
instruis: chamar-te-ei sem dificuldade virtuoso. Mas que acontecerá
com as virtudes cardinais e teologais? Algumas delas ficarão nas escolas.
Que me importa que sejas temperante? É um preceito de saúde
que observas; beneficiar-te-ás com isso e eu te felicito. Tens fé
e esperança, redobro-te minhas felicitações: elas te
concederão a vida eterna. Tuas virtudes teologais são dons celestes:
tuas virtudes cardinais são excelentes qualidades que servem para te
conduzir ao bom caminho; mas não são virtudes que se relacionem
com o teu próximo. O prudente faz o bem a si, o virtuoso fá-lo
aos homens. S. Paulo teve razão ao dizer que a caridade implica a fé
e a esperança.
Mas como! admitiremos apenas as virtudes que são úteis ao
próximo? Então! como poderei admitir outras? Vivemos em sociedade;
nada existe de verdadeiramente bom para nós senão o que beneficia
a sociedade. Um solitário será sóbrio, piedoso; revestir-se-á
de um cilício: pois bem, será santo; porém não
o chamarei virtuoso senão quando praticar algum ato de virtude em proveito
dos homens. Enquanto for só, não será nem malfeitor nem
benfeitor; nada é para nós. Se S. Bruno pacificou as famílias,
se socorreu a indigência, foi virtuoso; se jejuou, rezou na solidão,
foi um santo. A virtude entre os homens é um comércio de benefícios;
o que não participa desse comércio não deve ser considerado.
Se esse santo estivesse no mundo, sem dúvida praticaria o bem; mas
enquanto não o estiver o mundo terá razão em não
lhe conceder o nome de virtuoso: será bom para consigo próprio,
e não para nós.
Mas, dizeis-me, um solitário glutão, bêbedo, entregue
à devassidão secreta consigo mesmo, é um vicioso: será
portanto virtuoso se tiver qualidades contrárias É no que não
posso convir: será um homem muito vil se tiver de fato os defeitos
que dizeis; mas não pode ser um vicioso, mau, susceptível de
punição, no que diz respeito à sua relação
com a sociedade, a quem suas infâmias não fazem mal algum. É
de presumir que se entrar na sociedade praticará o mal, será
um grande criminoso; é até muito mais provável que venha
a ser um homem mau do que incerto é que outro solitário, casto,
temperante, venha a ser um homem de bem: pois na sociedade os defeitos aumentam
e as boas qualidades diminuem.
Faz-se uma objeção mais forte; Nero, o papa Alexandre VI.
e outros monstros dessa espécie fizeram benefícios; ouso responder
que foram virtuosos nesse dia.
Dizem alguns teólogos que o divino imperador Antonino não era
virtuoso; que era um estóico tençoeiro que, não contente
de governar os homens, ainda queria ser estimado por eles; que fazia reverterem
a si próprio os benefícios que fazia ao gênero humano;
que foi toda a sua vida justo, trabalhador, benfeitor por simples vaidade,
e que apenas enganou os homens com a sua virtude; neste caso exclamarei: “Meu
Deus, dai-nos a basto velhacos desta laia!”
NOTAS
(1) – Esta inscrição acha-se gravada na fachada do templo
de Delfos.
(2) – Virgílio, Geórgicas, III, 244.
(3) – Ovídio, Metáforas, X, 84-5.
(4) – Isaías, XIV, 8 e 12.
(5) – Justino o Mártir, nascido por volta do ano 114, foi condenado
à morte por Rústico, prefeito de Roma, em 168.
(6) – Livro V, capítulo XXXIII.
(7) – História da Igreja, livro VII, capítulo XXV.
(8) – Comparação entre Aristófanes e Menandro.
(9) – J. Fr. Arpe, autor da Apologia pro Julio Caesare Vanino.
(10) – Horácio, Epigr., II, ii, Sat., II, i.
(11) – Em seus Ensaios de Teodicéia sobre a Bondade de Deus,
etc., Amsterdã, 1710, in-8.
(12) – Li – medida itinerária chinesa equivalente a. 576
metros.
(13) – Sinus denominação dada pelos chineses aos judeus
das dez tribos que, em sua dispersão, penetraram até a China.
(14) – Os cinco livros sagrados chineses, que contêm a doutrina
de Confúcio.
(15) – Salmos, LXVII, 16-17.
(16) – Anagrama do abade Castel do Saint-Pierre
(17) – Anagrama de Lelièvre.
(18) – Anagrama de Arnoult.
(19) – Anagramas do príncipe de Condé e do duque de Brunswick.
(20) – Neste diálogo o japonês figura um inglês;
os cozinheiros designam os padres; o grande lama, o paga; o imperador mencionado,
o rei Henrique VIII; paiscopie, anagrama de episcopais, são os bispos;
breuseh, hebreus; pispatas, papistas; Teluro, Lutero; Vicalno, Calvino; quekars,
batistanaos, diestas, etc., respectivamente, quakers, anabatistas, deistas,
etc. (Nota de Avenel).
(21) – Canusi – antigos sacerdotes japoneses.
(22) – Anagrama de Horácio Flaco.
(23) – Anagrama de Racine. Trata-se de Louis Racine, filho do grande
Racine.
(24) – Trata-se de Abraham Chaumeix, crucificado a 2 de março
de 1749, na rua Saint-Denis. Foi quem denunciou a Encyclopédie ao parlamento.
(25) – Jerusalém Libertada, canto IV, 3.
(26) – Ilíada, livro XXII.
(27) – O Testament Politique de Charles V, due de Lorraine et de Bar,
en faveur du roi de Hongrie, Leipzig, Weitman (Paris), 1696, in-12, foi editado
pelo abade de Chevremont; tem por autor Henri de Straatman, membro do conse1ho
áulico do imperador.
(28) – Testament Politique de M. de Vauban, etc., dans lequel ce seigneur
donne les moyens d’augmenter considérablement les revenus de
la Couronne par l’établissement d’une dime royale, etc.,
1707 ou 1708, 2 vol. in-i12. A obra aparecera em 1695 sob o título
Le Détail de la France sons le règne de Louis XIV.
(29) – Sát., I, ii, 127.
(30) – Les Femmes Savantes, III, ii.
(31) – Foi em virtude deste passo que Larcher chamou Voltaire “besta
fera de que se tem tudo a temer”.
(32) – Veja-se, nos Romans, Le Monde comme il va.
(33) – Gavacho em espanhol quer dizer canalha.
(34) – Denominação dada pelos espanhóis aos árabes
e que, segundo Littré, se tornou uma injúria significando traidor,
pérfido, tratante. Do espanhol marrano – porco e também
maldito.
(35) – Satyricon, capítulo XLIV.
(36) – Sat., I, VIII.
(37) – Livro VIII, epigr., XXIV.
(38) – De Ponto, II, VIII.
(39) – Teb., XII.
(40) – Livro IX, 578.
(41) – Ovídio, Fastos, IV.
(42) – 617-618.
(43) – Sua obra intitula-se Apologie de M. Petit-Pierre sur son Système
de non Éternité des Peines à Venir, 1761, in-12.
(44) – Jean Le Pelletier é autor de uma Dissertation sur l’Arche
de Noé, Ruão, 1704, in-12.
(45) – Opinião de Descartes professada nas escolas ao tempo
de Voltaire.
(46) – Veja-se capítulo XI dos Juizes.
(47) – Levítico, capítulo XXVII, 29.
(48) – Codorlaomor – rei dos elamitas contemporâneos. de
Abraão. Mentzel – chefe da ala austríaca na guerra de
1741. Tomou Munich a 15 de feverero de 1742.
(49) – Na Défense du Mondain, do próprio Voltaire.
(50) – Ovídio, Met., I, 32.
(51) – III dos Reis, capítulo XIX, 15 e 16.
(52) – Atos dos Apóstolos, capítulo V, 34, 35 e 36.
(53) – Atos dos Apóstolos, capítulo VIII, 9.
(54) – Sócrates, História Eclesiástica, livro
II, capítulo XXXVIII.
(55) – Cf. Ensaio sobre os costumes, capitulo CXCI.
(56) – Ospiniam, p. 230.
(57) – Isto foi escrito em 1764.
(58) – La Fontaine, livro II, fábula II.
(59) – Cf. Owen, livro V, epigr. VIII.
(60) – O rei de Portugal José II.
(61) – Juizes, XI, 81-83.
(62) – Sátira XV, 81-83.
(63) – Atos dos Apóstolos, capítulo XXIII, 6.
(64) – Jó, XIV, 26.
(65) – Epístola aos Tessálios, cap. IV.
(66) – Condillac, Traité des Sensations, t. II, p. 128.
(67) – Petrônio, CIV 1-3.
(68) – Lucrécio, III, 52-3.
(69) – Ovidio, Fastos, II, 45-6.
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