Lima Barreto
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Há alguns anos, mantendo estreitas relações com o proprietário de uma tipografia, na rua da Alfândega, tinha ocasião de passar por ela toda a tarde, demorar-me, a fazer isto ou aquilo, nas mais das vezes conversar unicamente.
Aos poucos fui tomando conhecimento com o pessoal; e, em breve, era de todos camarada. A tipografia do meu amigo tinha a especialidade de imprimir jornais de “bicho” e ele mesmo editava um – O Talismã – que desapareceu.
Era tão rendosa essa parte de sua indústria tipográfica que ele destacava um único tipógrafo para executá-la. O encarregado dessa obra, além de compor os jornais, redigia-os também, com o cuidado indispensável em tais jornais-oráculos de por, sob este ou aquele disfarce de seções, de chapinhas, de palpite deste ou daquela, todos vinte e cinco animais da rifa do Barão.
Conversando mais detalhadamente com o tipógrafo dos jornalecos de bicho, ele me deu inúmeras informações sobre os seus periódicos “zoológicos”. O Bicho, o mais famoso e conhecido, dava de lucro, na média, 50 mil-réis por dia, quase o subsídio diário de um deputado naquele tempo; A Mascote e O Talismã, se não forneciam um lucro tão avultado, rendiam mais, por mês, que os vencimentos de um chefe de seção de secretaria, naqueles anos, a regular por aí assim, em setecentos e poucos mil-réis.
Solicitado pelas informações do jornalista “animaleiro”, pus-me a observar, nas vendas da minha vizinhança que, pela manhã, o tipo de compras era este: um tostão de café, um ou dois de açúcar e um Bicho ou Mascote.
O tipógrafo tinha razão e ele mesmo se encarregava de fortificar a minha convicção do império excepcional que o “Jogo do Jardim” exercia sobre a população carioca.
Mostrou-me pacotes de cartas de toda a sorte de gente, o que se via pela redação, de senhoras de todas as condições, de homens em todas as posições.
Li algumas. Todas ressumavam esperança na sua clarividência transcendente para dizer o bicho, a dezena e a centena que dariam à tarde deste ou qualquer dia; algumas eram agradecidas e se alongavam em palavras efusivas, em oferecimentos, por terem os missivistas acertado com o auxílio dos “palpites” do Dr. Bico-Doce. Lembro-me de uma assinada por certa adjunta de um colégio municipal, no Engenho de Dentro, que convidava o pobre tipógrafo, já meio tuberculoso, a ir almoçar ou jantar com ela e a família. Recordo-me ainda do nome da moça, mas não o ponho aqui, por motivos fáceis de adivinhar.
O prestígio da letra de forma, do jornal, e o mistério de que se cercava o “palpitador”, operavam sobre as imaginações de uma forma verdadeiramente inacreditável. Julgavam-no capaz de adivinhar de fato o número a ser premiado na “Loteria”, ou, no mínimo, apalavrado com os homens dela, podendo, portanto, saber de antemão os algarismos da felicidade.
Apesar da relutância do redator-tipógrafo de tão curiosos exemplares da nossa imprensa cotidiana, eu pude conseguir algumas cartas, das quais uma, por me parecer a mais típica e mostrar de que maneira a situação desesperada de um pobre homem, pode reforçar a fé no “Jogo do Bicho”, como salvação, e a ingênua crença de que o redator do jornaleco de palpites seria capaz de indicar o número a ser premiado, eu a transcrevo aqui, tal e qual, só omitindo a assinatura e o número da residência do signatário. É um documento humano de impressionar e de comover, por todos os aspectos. Ei-lo: (cliché de um envelope selado e subscritado: “Ilmo. Dig.mo Snr. Bico-Doce Muito Dig.mo Redator-Chefe do Jornal O “Talismã” Rua da Alfândega n.0 182 Sobrado”).
“Ilmo. Sr. Dr. Bico-Doce. – Rio de Janeiro, 20-12-911. – Em primeiro que tudo muito estimarei que esta inesperada Carta vos encontrem Com perfeita Saúde Conjuntamente a toda vossa família, e possa fruir os mais esplendorosos gozos.
“Enquanto eu minha família, vamos passando uma vida penosa. Senhor, vós que Sois um bondoso, vós que Sois tão caridoso, vós que Deus dotou Com tanta doçura, e que Sois uma alma bem formada!… tenha Compaixão deste pobre Sofredor que a 2 anos está desempregado, e que neste longo período, posso vos dizer que tenho passado os dias bem acerbos, e estou tão oberado, Com o Quitandeiro, Padeiro, Peixeiro, etc., etc e só neste ou deve 200$; o meu senhorio já está Com a cara ruvinhaso comigo, peço dinheiro emprestado, e Compro todos os dias: “Mascote”, “Bicho” e o “Talismã” e nunca Sou capaz de acertar em um Bicho ou numa Dezena que me liberte deste jugo que tanto tem me morteficado o espírito e já me acho desanimado da Sorte que me tem Sido tão tirana.
“Pois bem, em nome de Deus vos peço Dê-me uma Dezena ou Centena num destes dias em que a Natureza lhe der inspiração, porque aos Espíritos bem formados ele proteje a fim de poderem espalhar com aqueles menos favorecidos as Sorte, pode Ser que Se vós Condoer-se das minhas misérias em breve me libertarei desta vergonha que estou passando, pois um pobre que deve 1:OOO$600, e sem poder pagar, é muito triste vergonhoso.
“E Se vós me libertar deste jugo pode Contar que eu saberei reconhecer o meu bemfeitor, terá vós um Criado para qualquer Serviço que estiver em minhas fracas força e me apresentarei diante da vossa nobre pessoa, e poder utilizar-se em qualquer mister que vos aprouver.
“Deus que lhe queira ajudar, Deus lhe dê Saúde e felicidade pra Si e toda vossa família, e lhe dê boa inspiração e força para minorar as aflições dos pobres. – F…, Vosso humilde Criado e Obrigado, Rua Senador Pompeu…
“Aqui aguardo a vossa proteção. – O vosso Abedê…” .
Não era só em cartas que se revelava total e poderosa fé de pessoas de todas as condições nos poderes divinatórios do Dr. Bico-Doce, redator-tipógrafo de O Talismã. Nas visitas, também. Ele as recebia a toda a hora do dia e de pessoas de todos os sexos e idade.
Havia uma senhora de Paquetá, bem trajada, jóias, plumas, etc, que não vinha ao Rio que não fosse ao Dr. Bico-Doce para obter de viva voz, um palpite, na centena. Se ganhava, era certo, além do fervoroso agradecimento, uma gratificação qualquer.
A mais curiosa e assustadora visita que ele recebeu, foi a de um capoeira da Saúde, um valentão, de chapéu de abas largas, calças bombachas, e navalha a adivinhar-se nas algibeiras ou em qualquer dobra das roupas. O valente falou ao Dr. Bico-Doce meio amigável e meio ameaçador. É fácil de supor a atrapalhação do “profeta-bicheiro”. Para sair-se da entalação, indicou uma centena qualquer e safou-se logo, temendo não acertar e levar uns pescoções.
O bicho deu e a centena também. O destemido não teve o prazer de dar-lhe a propina em mão, mas a deixou com um colega do Dr. Bico-Doce que lha entregou no dia seguinte.
— Felizmente, dizia-me o pobre jornalista do Talismã, o homem não quis voltar mais.
Plutarco, ou outro qualquer, conta que Alexandre, nas vésperas de morrer, distribuiu o seu império entre os seus generais. Um deles lhe perguntou: Que te fica, general? O macedônio logo respondeu: A esperança. Ai de nós se não fosse assim, mesmo quando a Esperança é representada pelo jogo do bicho e o palpite de um humilde tipógrafo como o Dr. Bico-Doce, que, normalmente, mal ganha para a sua vida! A Esperança… O povo afirma que quem espera sempre alcança. Será verdade? Parece que aí a voz do povo não é a voz de Deus…
Livros novos, n.0 2, abril 1919
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