Carta Aberta de Carlos Baltazar

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Conterrâneo Sr. Mia Couto:

Tenho seguido a seu trabalho como escritor com o maior interesse e estou muito orgulhoso pelo seu reconhecimento internacional e acredito no seu potencial como tal.

No entanto dirijo-me a si pessoalmente para lhe expressar as minhas dúvidas quanto à sua militância que me parece utópica mas talvez tenha sido conveniente na altura da pré-independência para salvaguardar a sua permanência em Moçambique, coisa que não aconteceu à maioria dos Moçambicanos descendentes de portugueses, os quais continuam a amar a sua terra Natal. Foram para Portugal e para Países mais desenvolvidos.

O que acontece hoje passados estes anos todos é que a maior parte (talvez por andarem já na casa dos 50 anos) embora saudosistas dos tempos que viveram, não
querem regressar, e, vêem a nossa terra como um País para turismo e assim matar saudades. Mas informo-lhe que há outros (e aí incluo-me) que não querem voltar ao
País como turistas, mas querem REGRESSAR. Consideram-se Moçambicanos que foram obrigados a abandonar o País e tornarem-se refugiados.

Digo obrigados contrariando assim a sua teoria de militância exposta por si numa entrevista na qual afirma: “Não é que os portugueses fossem maltratados, mas eles achavam que os moçambicanos não estavam preparados para governar, e fugiram”.(aqui estão incluídos os moçambicanos filhos desses portugueses, apenas por serem brancos).

Pois quem viveu esses anos em Moçambique sabe que após a independência houve pressões de várias ordens, desde adolescentes armados “chamados vigilantes” que insultavam e ameaçavam em jeito de represália, até ás listas negras que foram criadas
por “infiltrados” (mais valia que fossem agitadores porque teriam um trabalho mais digno, não utilizando métodos que faziam lembrar a pide) em que obrigavam à retiradas de emergência para não serem presos ou mortos.

O que me deixa perplexo é a conduta totalitária empreendida pela direcção do partido que não soube esgotar as formas de entendimento numa circunstância crucial que não deveria ser apenas para os militantes do partido fazendo assim uma distinção das raças. Seria pois a consolidação real da democracia que se queria construir neste País, depois de longos anos de repressão generalizada.

Houve também quem abandona-se o barco antes disto tudo e, acumulasse contas bancárias no estrangeiro roubando o meu País, tais como muitos actualmente o fazem sem qualquer vínculo à terra. (realidade que me entristece e considero um neo- colonialismo).

Como tal muitos Moçambicanos que não eram militantes seriam considerados como uma representação minoritária pela cor da pele, o que é um absurdo.

Esse erro é claro noutros Países e todos nós lutamos contra essa descriminação. Sabemos que as representações parlamentares devem ser definidas pelas ideias e não por cores.
Não considero e não concordo com conflitos religiosos mesmo tendo consciência da diferença abismal das populações das cidades em relação às populações rurais.

Portanto os problemas culturais não impedem um desenvolvimento global do País. Pode-se utilizar políticas que ajudem todos para que não seja um País à fome tendo em conta as raízes do povo, que vai tomando consciência que o chiquembo não resolve tudo.

Ao assumir que na maioria (rural) a oralidade é fundamental, devemos ser coerentes a transmitir a verdade e não, como aconteceu, em que os discursos se transformavam em leis imediatas à boa maneira de um ditador (como a ordem de ocupação das casas, chegando mesmo ao ridículo de fazer o povo matar moscas).

No entanto expresso aqui que muitos Moçambicanos que estão fora do País – saíram porque não eram militantes ou porque ainda eram menores e tiveram que acompanhar os pais. Ao contrário do Sr. (Mia Couto) que não nasceu para ser militante, caso que se reflecte hoje com a sua retirada (anunciada por si) por não ter nexo a sua postura nesse campo parecendo-me apenas, como já disse, conveniência para a época.

Não se pode minimizar a presença de outras ideias como a Renamo ou outros que podem surgir porque ainda há tempo para a criação de um novo partido, ou a soma de vários partidos, ou de nenhum outro mais. A mobilização de todas as forças sociais e progressivas, luta abertamente para a evolução de um País, de um povo, e não para a destruição e fome do mesmo. Em qualquer lugar deste planeta, as ditaduras e os
extremos serão sempre o pior que nos pode acontecer. Ideias marxistas e modelos soviéticos só poderiam dar em Moçambique uma criação utópica, tal como a ideia de um Deus-Presidente (comparável à lógica Vaga da inteligência artificial).

O caminho nunca poderia ser esse. Isso leva a um esgotamento moral, a robôs e à falência do sistema de representação cultural e social; a exacerbação das ilusões sensoriais; ignorância e vontade de se apoderar de bens materiais.

Com efeito este novo rumo que os próprios governantes de Moçambique começam a ter consciência (e ainda bem) leva a que lhe possa dizer a si Sr. Mia Couto:
– Está a emergir uma nova mentalidade e uma força de intervenção que abrange muitos Moçambicanos espalhados por esse mundo que não perderam o amor pela pátria e que pensam REGRESSAR em comunhão com os interesses nacionais tendo em conta todos
os aspectos culturais (sem ir aos confins dos séculos ou então teríamos que acabar com as fronteiras) e com o espírito de desenvolvimento e evolução tirando resultados e aproveitamentos dos recursos naturais e humanos fazendo com que Moçambique seja um dos orgulhos de África. Será inconveniente baralhar ou desmistificar palavras ou conceitos porque o importante é a luz que nasce na alma com vontade de realizar a
acção e não ficar pelos conceitos.

Esperamos chegar a Moçambique daqui a poucos anos e, vamos ter muito gosto em não sermos estrangeiros na própria terra natal, voltando a lutar pelo nosso povo que merece viver fora da miséria numa terra com potencial para isso.
A luta continua

Envio também um poema para uma linguagem mais profunda:
Eu sou apenas um rapaz Moçambicano
sem dinheiro no banco
com parentes importantes mas tudo acabou.
Mas trago na cabeça uma canção de rádio
em que um antigo compositor beirense dizia-me:
Tudo é divino! Tudo é maravilhoso!
Tenho ouvido muitos discos,
conversado com pessoas,
caminhado o meu caminho.
Oiço o som dentro da noite
e não tenho um amigo sequer, que ainda acredite nisso, NÃO.
Tudo muda… E com toda razão.
Eu sou apenas um rapaz moçambicano,
sem dinheiro no banco, com parentes importantes mas tudo acabou
Mas sei que tudo é proibido.
Aliás, eu queria dizer que tudo é permitido…
Até beijar no escuro, quando ninguém olhou.
Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve:
correcta, branca, suave, muito limpa, muito leve.
Sons-palavras são catanas.
E eu não posso cantar como convém,
sem querer ferir ninguém.
Mas não se preocupe, meu amigo,
com os horrores que eu lhe digo.
Isto é somente uma canção.
A vida, realmente, é diferente
Quer dizer: ao vivo é uma alucinação.
Eu sou apenas um rapaz moçambicano,
Por favor, não saque a arma com vapor.
Eu sou apenas um cantor.
Mas, se depois de cantar, você ainda quiser atirar,
mate-me logo à tarde, às três,
que à noite eu tenho que cantar
e não posso faltar por causa de vocês.
Nada é secreto, nada.
Nada é misterioso.
Você não sente nem quer ver,
mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo,
que uma nova mudança, em breve, vai acontecer.
O que há algum tempo, era jovem e novo
hoje é antigo.
E precisamos, todos, rejuvenescer.
Nunca mais o meu pai falou:
– She’s leaving home
E vai para a estrada “like rolling stones”.
Nunca mais sai à rua, em grupo reunido,
o dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor…
No presente, a mente – o corpo é diferente,
e o passado é uma roupa que não é de servente.
Como Poeta, poeta louco moçambicano,
eu pergunto ao passarinho:
– Blackbird: respondeu pelos meus pais
Tudo já ficou atrás?
Sem ilusão nem carinho
– O passado não virá nunca mais.

Carlos Baltazar
Janeiro 05, 2003
In. Local de Conversa

Fonte: www.macua.org

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