Canto da Solidão – Bernardo Guimarães

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I

II

 

III

 


IV

I

Neste alaúde, que a saudade afina,
Apraz-me às vêzes descantar lembranças
De um tempo mais ditoso;

De um tempo em que entre sonhos de ventura
Minha alma repousava adormecida
Nos braços da esperança.

Eu amo essas lembranças, como o cisne
Ama seu lago azul, ou como a pomba
Do bosque as sombras ama.

Eu amo essas lembranças; deixam n’alma
Um quê de vago e triste, que mitiga
Da vida os amargores.

Assim de um belo dia, que esvaiu-se,
Longo tempo nas margens do ocidente
Repousa a luz saudosa.

Eu amo essas lembranças; são grinaldas
Que o prazer desfolhou, murchas relíquias
De esplêndido festim;

Tristes flores sem viço! – mas um resto
Inda conservam do suave aroma
Que outrora enfeitiçou-nos.

Quando o presente corre árido e triste,
E no céu do porvir pairam sinistras
As nuvens da incerteza,

Só no passado doce abrigo achamos
E nos apraz fitar saudosos olhos
Na senda decorrida;

Assim de novo um pouco se respira
Uma aura das venturas já fruídas,
Assim revive ainda

O coração que angústias já murcharam,
Bem como a flor ceifada em vasos d’água
Revive alguns instantes.

Amor ideal

Há uma estrela no céu
Que ninguém vê, senão eu

(Garrett)

Quem és? – d’onde vens tu?
Sonho do céu, visão misteriosa,
Tu, que assim me rodeias de perfumes
De amor e d’harmonia?

Não és raio d’esp’rança
Enviado por Deus, ditamno puro
Por mãos ocultas de benigno gênio
No peito meu vertido?

Não és anjo celeste,
Que junto a mim, no adejo harmonioso
Passa, deixando-me a alma adormecida
Num êxtase de amor?

Ó tu, quem quer que sejas, anjo ou fada,
Mulher, sonho ou visão,
Inefável beleza, sê bem-vinda
Em minha solidão!

Vem, qual raio de luz dourando as trevas
De um cárcere sombrio,
Verter doce esperança neste peito
Em minha solidão!

Nosso amor é tão puro! – antes parece
A nota aérea e vaga
De ignota melodia, êxtase doce,
Perfume que embriaga!…

Amo-te como se ama o albor da aurora,
O claro azul do céu,
O perfume da flor, a luz da estrela,
Da noite o escuro véu.

Com desvelo alimento a minha chama
Do peito no sacrário,
Como sagrada lâmpada, que brilha
Dentro de um santuário.

Sim; a tua existencia é um mistério
A mim só revelado;
Um segredo de amor, que trarei sempre
Em meu seio guardado!

Ninguém te vê; – dos homens te separa
Um véu misterioso,
Em que modesta e tímida te escondes
Do mundo curioso.

Mas eu, no meu cismar, eu vejo sempre
A tua bela imagem;
Ouço-te a voz trazida entre perfumes
Por suspirosa aragem.

Sinto a fronte incendida bafejar-me
Teu hálito amoroso,
E do cândido seio que me abrasa
O arfar voluptuoso.

Vejo-te as formas do donoso corpo
Em vestes vaporosas,
E o belo riso, e a luz lânguida e meiga
Das pálpebras formosas!

Vejo-te sempre, mas ante mim passas
Qual sombra fugitiva,
Que me sorriu num sonho, e ante meus olhos
Desliza sempre esquiva!

Vejo-te sempre, ó tu, por quem minh’alma
De amores se consome;
Mas quem tu sejas, qual a pátria tua,
Não sei, não sei teu nome!

Ninguém te viu sobre a terra,
És filha dos sonhos meus:
Mas talvez, talvez que um dia
Te eu vá encontrar nos céus.

Tu não és filha dos homens,
Ó minha celeste fada,
D’argila, d’onde nascemos,
Não és decerto gerada.

Tu és da divina essência
Uma pura emanação,
Ou um eflúvio do elísio
Vertido em meu coração.

Tu és dos cantos do empíreo
Uma nota sonorosa,
Que nas fibras de minh’alma
Ecoa melodiosa;

Ou luz de benigna estrela
Que doura-me a triste vida,
Ou sombra de anjo celeste
Em minha alma refletida.

Enquanto vago na terra
Gomo mísero proscrito,
E o espírito não voa
Para as margens do infinito,

Tu apenas me apareces
Como um sonho vaporoso,
Ou qual perfume que inspira
Um cismar vago e saudoso;

Mas quando minh’alma solta
Desta prisão odiosa
Vaguear isenta e livre
Pela esfera luminosa,

Irei voando ansioso
Por esse espaço sem fim,
Até pousar em teus braços,
Meu formoso Querubim.

Hino à aurora

E já no campo azul do firmamento
A noite extingue os círios palejantes,
E em silêncio arrastando a fímbria escura
Do tenebroso manto
Transpõe do ocaso os montes derradeiros.
A terra, de entre as sombras ressurgindo
Do mole sono lânguida desperta,
E qual noiva gentil, que o esposo aguarda,
De galas se adereça.

Rósea filha do sol, eu te saúdo!
Formosa virgem de cabelos d’ouro,
Que prazenteira os passos antecedes
Do rei do firmamento,
Em seus caminhos flores despargindo!
Salve, aurora! – quão donosa surges
Nos azulados topes do oriente
Desfraldando o teu manto aurirrosado!
Qual cândida princesa
Que em desalinho lânguida se erguera
Do brando leito, em que sonhou venturas,
Tu lá no etéreo trono vaporoso
Entre cantos e aromas festejada,
Sorrindo escutas os melífluos quebros
Das mil canções com que saúda a terra
O teu raiar sereno.

Também tu choras, pois em minha fronte
Sinto teu pranto, e o vejo em gotas límpidas
A cintilar na tremula folhagem:
Assim no rosto da formosa virgem
– Efeito às vezes de amoroso enleio –
Brilha através das lágrimas o riso.

Bendiz o viajor extraviado
Tua luz benigna que a vereda aclara,
E mostra ao longe fumegando os tectos
De alvergue hospitaleiro.
Pobre colono alegre te saúda,
Por ver em torno do singelo colmo
Sorrir-se vicejante a natureza,
Manso rebanho retouçar contente,
Crescer a messe, as flores desbrocharem;
E unindo a voz aos cânticos da terra,
Aos céus envia sua humilde prece.
E o desditoso, que entre angústias vela
No inquieto leito sôfrego volvendo-se,
Espia ansioso o teu fulgor primeiro,
Que lhe derrama nas feridas d’alma
Celeste refrigério.

A ave canora para ti reserva
De seu cantar as mais suaves notas;
E a flor, que expande o cálix orvalhado
As estremes primícias te consagra
De seu brando perfume…
Vem, casta virgem, vem com teu sorriso,
Teus perfumes, teu hálito amoroso,
Esta cuidosa fronte bafejar-me;
Orvalho e fresquidão piedosa verte
Nos ardentes delírios de minh’alma,
E desvanece estas visões sombrias,
Funestos sonhos da penada noite!
Vem, ó formosa… Mas que é feito dela?..
O sol já mostra na brilhante esfera
O disco ardente – e a linda moça etérea
Que inda há pouco entre flores reclinada
Sorria-se amorosa no horizonte,
Enquanto a saíldava com meus hinos,
– Imagem do prazer, que breve dura, –
Se esvaeceu nos ares……
Adeus, esquiva ninfa,
Fugitiva ilusão, aérea fada!
Adeus também, canções enamoradas,
Adeus, rosas de amor, adeus, sorrisos…..

Invocação

Ó tu, que ora nos tergos da montanha
Nas asas do Aquilão passas rugindo,
E pelos céus entre bulcõe sombrios
Da tempestade o plúmbeo carro guias,
Ora suspiras na mudez das sombras
Manso agitando as invisíveis plumas,
E ora reclinado em nuvem rósea,
Que a brisa embala no ouro do horizonte,
Expandes no éter vagas harmonias,
Voz do deserto, espírito melódico
Que as cordas vibras dessa lira imensa,
Onde ressoam místicos hosanas,
Que inteira a criação a Deus exalça;
Salve, ó anjo! – minha alma te saúda,
Minha alma que, a teu sopro despertada,
Murmura, qual vergel harmonioso
Pelas brisas celestes embalado…..

Salve, ó gênio dos desertos,
Grande voz da solidão,
Salve, ó tu, que aos céus exalças
O hino da criação!

Sobre nuvem de perfumes
Te deslizas sonoroso,
E o rumor de tuas asas
É hino melodioso.

Que celeste querubim
Te deu essa harpa sublime,
Que em variados acentos
As dúlias dos céus exprime?

Harpa imensa de mil cordas
Donde em caudal, pura enchente,
Estão suaves harmonias
Transbordando eternamente?!

De uma corda a prece humilde
Como um perfume se exala
Entoando o sacro hosana,
Que do Eterno ao trono se ala;

Outra como que pranteia
Com voz fúnebre e dorida
O fatal poder da morte
E as amarguras da vida;

Nesta brando amor suspira,
E lamenta-se a saudade;
Nest’outra ruidosa e férrea
Troa a voz da tempestade.

Carpe as mágoas do infortúnio
De uma a voz triste e chorosa,
E só geme sob o manto
Da noite silenciosa.

Outra o hino dos prazeres
Entoa lêda e sonora,
E com cânticos festivos
Saúda nos céus a aurora.

Salve, ó gênio dos desertos,
Grande voz da solidão,
Salve, ó tu, que aos céus exalças
O hino da criação!

Sem ti o mundo jazera
Inda em lúgubre tristeza,
E o horror do caos reinara
Sobre toda a natureza;

Pela face do universo
Funérea paz se estendera,
E o mundo em mudez perene
Como um túmulo jazera;

Sobre ele então pousaria
Silêncio torvo e sombrio,
Como um sudário cobrindo
Um cadáver quedo e frio.

De que servira essa luz
Que abrilhanta o azul dos céus,
E essas cores tão mimosas
Que tingem da aurora os véus?

Essa risonha verdura,
esses bosques, rios, montes,
Campinas, flores, perfumes,
Sombrias grutas e fontes?

De que servira essa gala,
Que te enfeita, ó natureza,
Se adormecida jazeras
Em estúpida tristeza?

Se não houvesse uma voz,
Que erguesse um hino de amor,
Uma voz que a Deus dissesse
– Eu vos bendigo, ó Senhor!

Do firmamento nos cerúleos páramos
Sobre o dorso das nuvens balouçado,
Os olhos arroubados espraiando
Nos longes vaporosos
Dos bosques, das remotas serranias,
E dos mares na túrbida planície,
Cheio de amor contemplas
De Deus a obra tão formosa e grande,
E em melódico adejo então pairando
À face dos desertos,
De caudal harmonia as fontes abres;
Como na lira que pendente oscila
No ramo do arvoredo,
Roçadas pelas auras do deserto,
As cordas todas sussurrando ecoam,
Assim ao sopro teu, gênio canoro,
De júbilo palpita a natureza,
E as vozes mil desprende
De seus eternos, místicos cantares:
E dos horrendos brados do oceano,
Do rouco ribombar das cachoeiras,
Do rugir das florestas seculares,
Do quérulo murmúrio dos ribeiros,
Do frêmito amoroso da folhagem,
Do canto da ave, do gemer da fonte,
Dos sons, rumores, maviosas queixas,
Que povoam as sombras namoradas,
Um hino teces majestoso, imenso,
Que na amplidão do espaço murmurando
Vai unir-se aos concertos inefáveis
Que na límpida esfera vão guiando
O giro infindo, e místicas coréias
Dos rutilantes orbes;
Flor, que se enlaça na eternal grinalda
Be celeste harmonia, que incessante
Se expande aos pés do Eterno!…

Tu és do mundo
Alma canora,
E a voz sonora,
Da solidão;

Tu harmonizas
O vasto hino
Almo e divino
Da criação;

És o rugido
D’alva cascata
Que se desata
Da serrania;

Que nas quebradas
Espuma e tomba,
E alto ribomba
Na penedia;

És dos tufões
Rouco zunido,
E o bramido
Da tempestade;

Voz da torrente
Que o monte atroa;
Trovão,que ecoa
Na imensidade.

Suspira a noite
Com teus acentos,
Na voz dos ventos
És tu quem gemes;

À luz da lua
Silenciosa,
Na selva umbrosa
Co’a brisa fremes;

E no oriente
Tua voz sonora
Desperta a aurora
No róseo leito;

E toda a terra
Amor respira:
– De tua lira
Mágico efeito!

E quando a tarde
Meiga e amorosa
Com mão saudosa
Desdobra os véus,

Tua harpa aérea
Doce gemendo
Lhe vai dizendo
Um terno adeus!

Sentado às vezes no alcantil dos montes,
Másculos sons das cordas arrancando
A tempestade invocas,
E à tua voz os aquilões revoltos
A desfilada ruem,
E em seu furor uivando encarniçados
Lutam, forcejam, como se tentassem
Arrancar pelas bases a montanha!
Alarido infernal atroa as selvas,
No monte ronca a turva catadupa,
Que por sombrios antros despenhada
Ruge tremendo no profundo abismo;
Ígneo surco em súbitos lampejos
Fende a lúgubre sombra, – estala o raio,
E os ecos pavorosos ribombando
As celestes abóbadas atroam;
E a tempestade as asas rugidoras
De monte a monte estende,

E do trovão, do raio
A voz ameaçadora,
A fúria atroadora
Dos euros turbulentos,

Das selvas o rugido,
Da catarata o ronco,
O baque de alto tronco,
A luta de mil ventos,

Dos vendavais revoltos
Os pávidos bramidos,
Dos combros aluídos
O hórrido fracasso,

E do bulcão, que abre
A rúbida cratera,
A voz, que estruge fera
Nas solidões do espaço,

Do rábico granizo
O estrondo, que sussurra
Nas broncas serranias,
E o ribombar das vagas
Nas ocas penedias,
E todo esse tumulto,
Que em música horrorosa
Troa, abalando os eixos do universo,
São ecos de tua harpa majestosa!!

Porém silêncio, ó gênio, – não mais
vibres
As bronzeas cordas, em que bramam raios,
pregoeiros da cólera celeste:
Mostra-me o céu brilhando azul e calmo
Como a alma do justo, e sobre a terra
Estende o manto amigo do sossego.
Deixa errar tua mão nos áureos fios,
Onde sóis desferir moles cantigas
A cujos sons se embala a natureza
Em êxtase suave adormecida.
E solta a sussurrar por entre as flores
Inquieto bando de lascivos zéfiros:
Que por seu meigo hálito afagada
A selva balanceie harmoniosa
Sua virente cúpula, exalando
Entre perfumes namorados quebros,
E de sinistras névoas destoucando-se
No diáfano azul dos horizontes
Banhados de luz meiga, os montes surdam.
Quando sem nuvens, plácida, festiva,
Tão bela assim, resplende a natureza,
Me parece que Deus do excelso trono
Um sorriso de amor à terra envia,
E corno nesses dias primitivos,
Lá quando ao sopro seu onipotente
Formosa a criação do caos surgia,
Nas obras suas se compraz ainda.

Vem pois, Anjo canoro do deserto,
Desta harpa a Deus fiel roça em teu vôo
As fibras sonorosas,

E delas fuja um hino harmonioso
Digno de unir-se aos místicos concertos,
Que ecoam nas esferas,

Hino banhado nas ardentes ondas
De santo amor, – que com sonoras asas
Em torno a Deus sussurre.

Erga-se a minha voz, inda que débil,
Qual ciciar da cana, que palpita
Ao sopro de uma aragem!…

Queime-se todo o incenso de minh’alma,
E em ondas aromáticas se expanda
Aos pés do Onipotente!…

Primeiro sonho de amor

Que tens, donzela, que tão triste pousas
Na branca mão a fronte pensativa,
E sobre os olhos dos compridos cílios
O negro véu desdobras?

Que sonho merencório hoje flutua
Sobre essa alma serena, que espelhava
A imagem da inocência?

Ainda há pouco eu via-te na vida,
Qual entre flores douda borboleta,
Brincar, sorrir, cantar…

E nos travessos olhos de azeviche,
De vivos raios sempre iluminados,
Sorrir doce alegria!

Branco lírio de amor aberto apenas,
Em cujo puro seio brilha ainda
A lágrima da aurora,

Acaso sentes já nos tenros pétalos
O nímio ardor do sol crestar-te o viço,
Vergar-te o frágil colo?
…………………………………………………….
…………………………………………………….

Agora acordas do encantado sono
Da descuidada prazenteira infância,
E o anjo dos amores
Em torno meneando as plumas d’ouro,
Teu seio virginal com as asas roça;
E qual macia brisa, que esvoaça
Roubando à flor o delicado aroma,
Vem roubar-te o perfume da inocência!..

Com sonhos dourados, que os anjos te inspiram,
Embala, ó donzela, teu vago pensar,
Com sonhos que envolvem-te em doce tristeza
De vago cismar:

São nuvens ligeiras, tingidas de rosa,
Que pairam nos ares, a aurora enfeitando
De gala formosa.

É bela essa nuvem de melancolia
Que em teus lindos olhos desmaia o fulgor,
E as rosas das faces em lírios transforma
De meigo palor.

Oh! que essa tristeza tem doce magia,
Qual luz que esmorece lutando co’as sombras
as vascas do dia.

É belo esse encanto do afeto primeiro,
Que assoma envolvido nos véus do pudor,
E ondeja ansioso no seio da virgem
Que cisma de amor.

Estranho prelúdio de mística lira,
A cujos acentos o peito afanoso
Se agita e suspira.

Com sonhos dourados, que os anjos te inspiram
Embala, ó donzela, teu vago pensar,
São castos mistérios de amor, que no seio
Te vêm murmurar:

Sim, deixa pairarem na mente esses sonhos,
São róseos vapores, que os teus horizontes
Enfeitam risonhos:

São vagos anelos… mas ah! quem te dera
Que nesses teus sonhos de ingênuo cismar
A voz nunca ouvisses, que vem revelar-te
Que é tempo de amar.

Pois sabe, ó donzela, que as nuvens de rosa,
Que pairam nos ares, às vezes encerram
Tormenta horrorosa.

À uma estrela

Poesia oferecida a meu amigo

o Sr. A. G. G. V. C.

Salve, estrela solitária,
Que brilhas sobre esse monte,
Tímida luz maviosa
Derramando no horizonte.

Eu amo teu manso brilho
Quando lânguido se esbate,
Pelos campos cintilando,
De relva em úmido esmalte;

Quando trêmula argenteias
Um lago límpido e quedo,
Quando infiltras meigos raios
Pelas ramas do arvoredo.

Pálida filha da noite,
Sempre és pura e maviosa;
Fulge-te o rosto formoso
Qual branca orvalhada rosa.

Eu amo teu manso brilho,
Que como olhar amoroso,
Vigilante à noite se abre
Sobre o mundo silencioso,

Ou como um beijo de paz,
Que o céu sobre a terra envia,
Na face dela espargindo
Silêncio e melancolia.

Salve, ó flor do etéreo campo,
Astro de meigo palor!
Tu serás, formosa estrela,
O fanal do meu amor.

Neste mundo, que alumias
Com teu pálido clarão,
Existe um anjo adorável
Digno de melhor mansão.

Muitas vezes a verás
Sõzinha e triste a pensar,
E seus lânguidos olhares
Com teus raios se cruzar.

Nas faces a natureza
Lhe esparziu leve rubor,
Mas a fronte lisa e calma
Tem dos lírios o palor.

Mais que o ébano brunido
Lhe fulge a madeixa esparsa,
E cos anéis lhe sombreia
O níveo colo de garça.

Nos lábios de carmim vivo,
Rara vez paira um sorriso;
Não pode sorrir na terra,
Quem pertence ao paraíso.

Seus olhos negros, tão puros
Como o teu puro fulgor,
São fontes, onde minh’alma
Vai abrevar-se de amor.

Se a este mundo odioso,
Onde me langue a existência,
Me fosse dado roubar
Aquele anjo de inocência;

E nesses orbes que giram
Pelo espaço luminoso,
Pra nosso amor escolher
Um asilo mais ditoso…

Se eu pudesse a ti voar,
Astro de meigo palor,
E com ela em ti viver
Eterna vida de amor…

Se eu pudesse… Oh! vão desejo,
Que me embebe em mil delírios,
Quando assim de noite cismo
À luz dos celestes círios!

Porém ao menos um voto
Vou fazer-te, ó bela estrela,
À minha súplica atende,
Não é por mim, é por ela;

Tu, que és o astro mais belo
Que gira no azul do céu,
Sê seu horóscopo amigo,
Preside ao destino seu.

Leva-a sobre o mar da vida
Embalada em sonho ameno,
Como um cisne, que desliza
À flor de um lago sereno.

Se diante dos altares
Curvar os joelhos seus,
Dirige-lhe a prece ardente
Direito ao trono de Deus.

Se solitária cismar,
No mais brando raio teu
Manda-lhe um beijo de amor;
E puros sonhos do céu.

Veja sempre no horizonte
Tua luz serena e mansa,
Como um sorriso do céu,
Como um fanal de esperança.

Porém se o anjo celeste
Sua origem deslembrar,
E no lodo vil do mundo
As níveas asas manchar;

Ai! se louca profanando
De um puro amor a lembrança,
Em suas mãos sem piedade
Esmagar minha esperança,

Então, estrela formosa,
Cubra-te o rosto um bulcão
E sepulta-te para empre
Em perpétua escuridão!

O Ermo

Quæ sint, quæ fuerint, quæ sunt ventura, trahentur.

(Virgílio.)

I

Ao ermo, ó musa: – além daqueles montes,
Que, em vaporoso manta rebuçados,
Avultam Já na extrema do horizonte…
Eia, vamos; – lá onde a natureza
Bela e virgem se mostra aos olhos do homem,
Qual moça indiana, que as ingênuas graças
Em formosa nudez sem arte ostenta!…
Lá onde a solidão ante nós surge,
Majestosa e solene como um templo,
Em que sob as abóbadas sagradas,
Inundadas de luz e de harmonia,
Êxtase santo paira entre perfumes,
E se ouve a voz de Deus. – Ó musa, ao ermo!…

Como é formoso o céu da pátria minha!
Que sol brilhante e vívido resplende
Suspenso nessa cúpula serena!
Terra feliz, tu és da natureza
A filha mais mimosa; – ela sorrindo
Num enlevo de amor te encheu d’encantos,
Das mais donosas galas enfeitou-te;
Beleza e vida te espargiu na face,
E em teu seio entornou fecunda seiva!
Oh! paire sempre sobre os teus desertos
Celeste bênção; bem-fadada sejas
Em teu destino, ó pátria; – em ti recobre
A prole de Eva o Éden que perdera!

II

Olha : – qual vasto manto que flutua
Sobre os ombros da terra, ondeia a selva,
E ora surdo murmúrio ao céu levanta,
Qual prece humilde, que no ar se perde,
Ora açoutada dos tufões revoltos,
Ruge, sibila, sacudindo a grenha
Qual hórrida bacante : – ali despenha-se
Pelo dorso do monte alva cascata,
Que, de alcantis enormes debruçada,
Em argentea espadana ao longe brilha,
Qual longo véu de neve, que esvoaça,
Pendente aos ombros de formosa virgem,
E já, descendo a colear nos vales,
As plagas fertiliza, e as sombras peja
D’almo frescor, e plácidos murmúrios…
Ali campinas, róseos horizontes,
Límpidas veias, onde o sol tremula,
Como em dourada escama refletindo
Flóreas balsas, colinas vicejantes,
Toucadas de palmeiras graciosas,
Que em céu límpido e claro balanceiam
A coma verde-escura. – Além montanhas,
Eternos cofres d’ouro e pedraria,
Coroados de píncaros rugosos,
Que se embebem no azul do firmamento!
Ou se te apraz, desçamos nesse vale,
Manso asilo de sombras e mistério,
Cuja mudez talvez jamais quebrara
Humano passo revolvendo as folhas,
E que nunca escutou mais que os arrulhos
Da casta pomba, e o soluçar da fonte…
Onde se cuida ouvir, entre os suspiros
Da folha que estremece, os ais carpidos
Dos manes do Indiano, que inda chora
O doce Éden que os brancos lhe roubaram!…

Que é feito pois dessas guerreiras tribos,
Que outrora estes desertos animavam?
Onde foi esse povo inquieto e rude,
De bronzea cor, de torva catadura,
Com seus cantos selváticos de guerra
Restrugindo no fundo dos desertos,
A cujos sons medonhos a pantera
Em seu covil de susto estremecia?
Oh! floresta – que é feito de teus filhos?

Dorme em silêncio o eco das montanhas,
Sem que o acorde mais o rude acento
Das guerreiras inúbias : – nem nas sombras
Seminua, do bosque a ingênua filha
Na preguiçosa rede se embalança.
Calaram-se para sempre nessas grutas
Os proféticos cantos do piaga;
Nem mais o vale vê esses caudilhos,
Seus cocar na fronte balançando,
Por entre o fumo espesso das fogueiras,
Com sombrio lentor tecer, cantando,
Essas solenes e sinistras danças,
Que o festim da vingança precediam…..

Por esses ermos não vereis pirâmides
Nem mármores, nem bronzes, que assinalem
Nas eras do porvir feitos de glória;
Da natureza os filhos não sabiam
Aos céus erguer soberbos monumentos,
E nem perpetuar do bardo os cantos,
Que celebram façanhas do guerreiro,
– Esses fanais, que acende a mão do gênio,
E vão no mar infindo das idades
Alumiando as trevas do passado.

Seus insepultos ossos alvejando
Aqui e além nos solitários campos,
Rotos tacapes, ressequidos crânios,
Que estalam sob os pés de errante gado,
As tabas em ruína, e os mal extintos
Vestígios das ocaras, onde o sangue
Do vencido corria em largo jorro
Entre as pocemas de feroz vingança,
Eis as relíquias que recordam feitos
Do forte lidador da rude selva.

De virgem mata a sussurrante cúpula,
Ou gruta escura, disputada às feras,
Ou frágil taba, num momento erguida,
Desfeita no outro dia, eram bastantes
Para abrigar o filho do deserto;
No carcás bem provido repousavam
De todo o seu porvir as esperanças,
Que suas eram da floresta as aves,
E nem lhes nega o córrego do vale,
Límpido jorro que lhe estanque a sede.
No sol, fonte de luz e de beleza,
Viam seu Deus, prostrados o adoravam,
Na terra a mãe, que os nutre com seus frutos,
Sua única lei – na liberdade.

Oh! floresta, que é feito de teus filhos?
Esta mudez profunda dos desertos
Um crime – bem atroz! – nos denuncia.
O extermínio, o cativeiro, a morte
Para sempre varreu de sobre a terra
Essa mísera raça, – nem ficou-lhes
Um canto ao menos, onde em paz morressem!
Como cinza, que os euros arrebatam,
Se esvaeceram, – e do tempo a destra
Seus nomes mergulho no esquecimento.

Mas tu, ó musa, que piedosa choras,
Curvada sobre a urna do passado,
Tu, que jamais negaste ao infortúnio
Um canto expiatório, eia, consola
Do pobre Indiano os erradios manes,
E sobre a inglória cinza dos proscritos
Com teus cantos ao menos uma lágrima
Faze correr de compaixão tardia.

III

Ei-lo, que vem, de ferro e fogo armado,
Da destruição o gênio formidável,
Em sua fatal marcha devastando
O que de mais esplêndido e formoso
Alardeia no ermo a natureza;
Que nem somente o íncola das selvas
De seu furor foi vítima; – após ele
Rui também a cúpula virente,
Único abrigo seu, – sua riqueza.
Esta trêmula abóbada, que ruge
Por seculares troncos sustentada,
Este silêncio místico, estas sombras,
Que agora me derramam sobre a fronte
Suave inspiração, cismar saudoso,
Vão em breve morrer ; – lá vem o escravo,
Brandindo o ferro, que dá morte às selvas,
E – afanoso – põe peito à ímpia obra: –

Já o tronco, que os séculos criaram,
Ao som dos cantos do africano adusto
Geme aos sonoros, compassados golpes,
Que vão nas brenhas ressoando ao longe;
Soa o último golpe, – range o tronco,
O tope excelso trêmulo vacila,
E desabando com gemido horrendo
Restruge qual trovão de monte em monte
Nas solidões profundas reboando.
Assim vão baqueando uma após outra
Da floresta as colunas venerandas;
E todas essas cúpulas imensas,
Que inça há pouco no céu balanceando,
A sanha dos tufões desafiavam,
Aí jazem, como ossadas de gigantes,
Que num dia de cólera prostrara
O raio do Senhor.

Oh! mais terrível
Que o raio, que o dilúvio, o rubro incêndio
Vem consumar essa obra deplorável…..
Qual hidra formidável, no ar exalça
A crista sanguinosa, sacudindo
Com medonho rugido as ígneas asas,
E negros turbilhões de fumo ardente
Das abrasadas fauces vomitando,
Em hórrido negrume os céus sepulta…..
Estala, ruge, silva, devorando
Da floresta os cadáveres gigantes;
Voam sem tino as aves assustadas
No ar soltando pios lamentosos,
E as feras, em tropel tímidas correm,
A se embrenhar no fundo dos desertos,
Onde vão demandar nova guarida…..
Tudo é cinza e ruína: – adeus, ó sombra,
Adeus, murmúrio, que embalou meus sonhos,
Adeus, sonoro frêmito das auras,
Sussurros, queixas, suspirosos ecos,
Da solidão misterioso encanto!
Adeus! – Em vão a pomba esvoaçando
Procura um ramo em que fabrique o ninho;
Em vão suspira o viajor cansado
Por uma sombra, onde repouse os membros
Repassados do ardor do sol a pino!
Tudo é cinza e ruína, – tudo é morto!!

E tu, ó musa, que amas o deserto
E das caladas sombras o mistério,
Que folgas de embalar-te aos sons aéreos
D’almas canções, que a solidão murmura,
Que amas a criação, qual Deus formou-a,
– Sublime e bela – vem sentar-te, ó musa,
Sobre estas ruínas, vem chorar sobre elas.
Chora com a avezinha, a quem roubaram
O ninho seu querido, e com teus cantos
Procura adormecer o férreo braço
Do impróvido colono, que semeia
Somente estragos neste chão fecundo!

IV

Mas, não te queixes, musa; – são decretos
Da eterna providência irrevogáveis!
Deixa passar destruição e morte
Nessas risonhas e fecundas plagas,
Como charrua, que revolve a terra,
Onde terminam do porvir os frutos.
O homem fraco ainda, e que hoje a custo,
Da criação a obra mutilando,
Sem nada produzir destrui apenas,
Amanhã criará; sua mão potente,
Que doma e sobrepuja a natureza,
Há de imprimir um dia forma nova
Na face deste solo imenso e belo:
Tempo virá em que nessa valada
Onde flutua a coma da floresta,
Linda cidade surja, branquejando
Como um bando de garças na planície;
E em lugar desse brando rumorejo
Aí murmurará a voz de um povo;
Essas encostas broncas e sombrias
Serão risonhos parques suntuosos;
E esses rios, que vão por entre sombras
Ondas caudais serenos resvalando,
Em vez do tope escuro das florestas,
Refletirão no límpido regaço
Torres, palácios, coruchéus brilhantes,
Zimbórios majestosos, e castelos
De bastiões sombrios coroados,
Esses bulcões da guerra, que do seio
Com horrendo fragor raios despejam.
Rasgar-se-ão os serros altaneiros,
Encher-se-ão dos vales os abismos:
Mil estradas, qual vasto labirinto,
Cruzar-se-ão por montes e planuras;
Curvar-se-ão os rios sob arcadas
De pontes colossais; – canais imensos
Virão surcar a face das campinas,
E estes montes verão talvez um dia,
Cheios de assombro, junto às abas suas
Velejarem os lenhos do oceano!

Sim, ó virgem dos trópicos formosa,
Nua e singela filha da floresta,
Um dia, em vez da simples arazóia,
Que mal te encobre o gracioso talhe,
Te envolverás em flutuantes sedas,
E abandonando o canitar de plumas,
Que te sombreia o rosto cor de jambo,
Apanharás em tranças perfumadas
A coma escura, e dos donosos ombros
Finos véus penderão. Em vez da rede,
Em que te embalas da palmeira à sombra,
Repousarás sobre coxins de púrpura,
Sob dosséis esplêndidos. – Ó virgem,
Serás então princesa, – forte e grande,
Temida pelos príncipes da terra;
E de brilhante auréola cingida
Sobre o mundo alçarás a fronte altiva!
Mas, quando em tua mente revolveres
As memórias das eras que já foram,
Lá quando dentro d’alma despertares
Do passado lembranças quase extintas,
Dos bosques teus, de tua rude infância
Talvez terás saudade.

O Devanear de um cético

Tout corps som ombre et tout
esprit son doute. (V. Hugo)

Ai da avezinha, que a tormenta um dia
Desgarrara da sombra de seus bosques,
Arrojando-a em desertos desabridos
De brônzeo céu, de férvidas areias;
Adeja, voa, paira…. nem um ramo
Nem uma sombra encontra onde repouse,
E voa, e voa ainda, ate que o alento
De todo lhe falece – colhe as asas,
Cai na areia de fogo, arqueja, e morre….
Tal é, minh’alma, o fado teu na terra;
O tufão da descrença desvairou-te
Por desertos sem fim, onde em vão buscas
Um abrigo onde pouses, uma fonte
Onde apagues a sede que te abrasa!
……………………………………………………….
Ó mortal, por que assim teus olhos cravas
Na abóbada do céu? – Queres ver nela
Decifrado o mistério inescrutável
Do teu ser, e dos seres que te cercam?
Em vão seu pensamento audaz procura
Arrancar-se das trevas que o circundam,
E no ardido vôo abalançar-se
Às regiões da luz e da verdade;
Baldado afã! – no espaço ei-lo perdido,
Como astro desgarrado de sua órbita,
Errando às tontas na amplidão dos vácuo!
Jamais pretendas estender teus vôos
Além do escasso e pálido horizonte
Que mão fatal em torno te há traçado….
Com barreira de ferro o espaço e o tempo
Em acanhado círculo fecharam
Tua pobre razão: – em vão forcejas
Por transpor essa meta inexorável;
Os teus domínios entre a terra e os astros,
Entre o túmulo e o berço estão prescritos:
Além, que enxergas tu? – o vácuo e o nada!…

Oh! feliz quadra aquela, em que eu dormia
Embalado em meu sono descuidoso
No tranqüilo regaço da ignorância;
Em que minh’alma, como fonte límpida
Dos ventos resguardada em quieto abrigo,
Da fé os raios puros refletia!
Mas num dia fatal encosto à boca
A taça da ciência – senti sede
Inextinguível a crestar-me os lábios;
Traguei-a toda inteira -, mas encontro
Por fim travor de fel – era veneno,
Que no fundo continha -, era incerteza!
Oh! desde então o espírito da dúvida,
Como abutre sinistro, de contínuo
Me paira sobre o espírito, e lhe entorna
Das turvas asas a funérea sombra!
De eterna maldição era bem digno
Quem primeiro tocou com mão sacrílega
Da ciência na árvore vedada
E nos legou seus venenosos frutos…

Se o verbo criador pairando um dia
Sobre a face do abismo, a um só aceno
Evocava do nada a natureza,
E do seio do caos surgir fazia
A harmonia, a beleza, a luz, a ordem,
Por que deixou o espírito do homem
Sepulto ainda em tão profundas trevas,
A debater-se neste caos sombrio,
Onde embriões informes tumultuam,
Inda aguardando a voz que à luz os chame?

Quando, espancando as sombras sonolentas,
Surge a aurora no coche radiante,
Inundado de luz o firmamento,
Entre o rumor dos vivos que despertam,
Levanto a minha voz, e ao sol, que surge,
Pergunto: – Onde está Deus? – ante meus olhos
A noite os véus diáfonos desdobra,
Vertendo sobre a terra almo silêncio,
Propício ao cismador – então minha alma
Desprende o vôo nos etéreos páramos,
Além dos sóis, dos mundos, dos cometas,
Varando afouta a profundez do espaço,
Anelando entrever na imensidade
A eterna fonte, donde a luz emana…
Ó pálidos fanais, trêmulos círios,
Que nas esferas guiais da noite o carro,
Planetas, que em cadências harmoniosa
No éter cristalino ides boiando,
Dizei-me – onde está Deus? – sabeis se existe
Um ente, cuja mão eterna e sábia
Vos esparziu pela extensão do vácuo,
Ou do seio do caos desbrochastes
Por insondável lei do cego acaso?
Conheceis esse rei, que rege e guia
No espaço infindo vosso errante curso?
Eia, dizei-me, em que regiões ignotas
Se eleva o trono seu inacessível?

Mas em vão enterrogo os céus e os astros,
Em vão do espaço a imensidão percorro
Do pensamento as asas fatigando!
Em vão – todo o universo imóvel, mudo,
Sorrir parece de meu vão desejo!
Dúvida – eis a palavra que eu encontro
Escrita em toda a parte – ela na terra,
E no livro dos céus vejo gravada,
É ela que a harmonia das esferas
Entoa sem cessar a meus ouvidos!

Vinde, ó sábios, alâmpadas brilhantes,
Que ardestes sobre as aras da ciência,
Agora desdobrai ante meus olhos
Essas páginas, onde meditando
Em profundo cismar cair deixastes
De vosso gênio as vívidas centelhas:
Dai-me o fio subtil, que me conduza
Pelo vosso intricado labirinto:
Rasgai-me a venda, que me enubla os olhos,
Guiai meus passos, que embrenhar-me quero
Do raciocínio das regiões sombrias,
E surpreender no seio de atrás nuvens
O escondido segredo…

Oh! louco intento!…
Em mil vigílias palejou-me a fronte,
E amorteceu-se o lume de seus olhos
A sondar esse abismo tenebroso,
Vasto e profundo, em que as mil hipóteses,
Os erros mil, os engenhosos sonhos,
Os confusos sistemas se debatem,
Se confundem, se roçam, se abalroam,
Em um caos sem fim turbilhonando:
Atento a lhe escrutar o seio lôbrego
Em vão cansei-me; nesse afã penoso
Uma negra vertigem pouco e pouco
Me enubla a mente, e a deixa desvairada
No escuro abismo flutuando incerta!
……………………………………………………….
Filosofia, dom mesquinho e frágil,
Farol enganador de escasso lume,
Tu só geras um pálido crepúsculo,
Onde giram fantasmas nebulosos,
Dúbias visões, que o espírito desvairam
Num caos de intermináveis conjeturas.
Despedaça essas páginas inúteis,
Triste apanágio da fraqueza humana,
Em vez de luz, amontoando sombras
No santuário augusto da verdade.
Um palavra só talvez bastara
Pra saciar de luz meu pensamento;
Essa ninguém a sabe sobre a terra!…

Só tu, meu Deus, só tu dissipar podes
A, que os olhos me cerca, escura treva!
Ó tu, que és pai de amor e de piedade,
Que não negas o orvalho à flor do campo,
Nem o tênue sustento ao vil inseto,
Que de infinda bondade almos tesouros
Com profusão derramas pela terra,
Ó meu Deus, por que negas à minha alma
A luz que é seu alento, e seuu conforto?
Por que exilaste a tua criatura
Longe do sólio teu, cá neste vale
De eterna escuridão? – Acaso o homem,
Que é pura emanação da essência tua,
É que se diz criado à tua imagem,
De adorar-te em ti mesmo não é digno,
De contemplar, gozar tua presença,
De tua glória no esplendor perene?
Oh! meu Deus, por que cinges o teu trono
Da impenetrável sombra do mistério?
Quando da esfera os eixos abalando
Passa no céu entre abrasadas nuvens
Da tempestade o carro fragoroso,
Senhor, é tua cólera tremenda
Que brada no trovão, e chove em raios?
E o íris, essa faixa cambiante,
Que cinge o manto azul do firmamento,
Como um laço que prende aos céus a terra,
É de tua clemência anúncio meigo?
É tua imensa glória que resplende
No disco flamejante, que derrama
Luz e calor por toda a natureza?
Dize, ó Senhor, por que a mão ocultas,
Que a flux esparge tantas maravilhas?
Dize, ó Senhor, que para mim não mudas
As páginas do livro do universo!…
Mas, ai! que o invoco em vão! ele se esconde
Nos abismos de sua eternidade.
………………………………………………………
Um eco só da profundez do vácuo
Pavoroso retumba, e diz – dúvida!….

Virá a morte com as mãos geladas
Quebrar um dia esse terrível selo,
Que a meus olhos esconde tanto arcanos?
………………………………………………………
Ó campa! – atra barreira inexorável
Entre a vida e a morte levantada!
Ó campa, que mistérios insondáveis
Em teu escuro seio muda encerras?
És tu acaso o pórtico do Elísio,
Que nos franqueias as regiões sublimes
Que a luz da verdade eterna brilha?
Ou és do nada a fauce tenebrosa,
Onde a morte pra sempre nos arroja
Em um sono sem fim adormecidos!
Oh! quem pudera levantar afouto
Um canto ao menos desse véu tremendo
Que encobre a enternidade…

Mas debalde
Interrogo o sepulcro – e o debruçado
Sobre a voragem tétrica e profunda,
Onde as extintas gerações baqueiam,
Inclino o ouvido, a ver se um eco ao menos
Das margens do infinito me responde!
Mas o silêncio que nas campas reina,
É como o nada – fúnebre e profundo…
………………………………………………………
Se ao menos eu soubesse que co’a vida
Terminariam tantas incertezas,
Embora os olhos meus além da campa,
Em vez de abrir-se para a luz perene,
Fossem na eterna escuridão do nada
Para sempre apagar-se… – mas quem sabe?
Quem sabe se depois desta existência
Renascerei – pra duvidar ainda?!…

Desalento

Nestes mares sem bonança,
Boiando sem esperança,
Meu baixel em vão se cansa
Por ganhar o amigo porto;
Em sinistro negro véu
Minha estrela se escondeu;
Não vejo luzir no céu
Nenhum lume de conforto.

A tormenta desvairou-me,
Mastro e vela escalavrou-me,
E sem alento deixou-me
Sobre o elemento infiel;
Ouço já o bramir tredo
Das vagas contra o penedo
Onde irá – talvez bem cedo –
Soçobrar o meu batel.

No horizonte não lobrigo
Nem praia, nem lenho amigo,
Que me salve do perigo,
Nem fanal que me esclareça;
Só vejo as vagas rolando,
Pelas rochas soluçando,
E mil coriscos sulcando
A medonha treva espessa.

Voga, baixel sem ventura,
Pela túrbida planura,
Através da sombra escura,
Voga sem leme e sem norte;
Sem velas, fendido o mastro,
Nas vagas lançado o lastro,
E sem ver nos céus um astro,
Ai! que só te resta a morte!

Nada mais ambiciono,
Às vagas eu te abandono,
Como cavalo sem dono
Pelos campos a vagar;
Voga nesse pego insano,
Que nos roncos do oceano
Ouço a voz do desengano
Pavorosa a ribombar!

Voga, baixel foragido,
Voga sem rumo – perdido,
Pelas tormentas batido,
Sobre o elemento infiel;
Para ti não há bonança;
À toa, sem leme avança
Neste mar sem esperança,
Voga, voga, meu baixel!

No meu aniversário

Ao meu amigo o Sr. F.J. de Cerqueira

Hélas! hélas! mes années
Sur ma tête tombent fanées,
Et ne refleuriront jamais.
(Lamartine)

Não vês, amigo? – Lá desponta a aurora
Seus róseos véus nos montes desdobrando;
Traz ao mundo beleza, luz e vida,
Traz sorrisos e amor;
Foi esta qu’outro tempo
Meu berço bafejou, e as tenras pálpebras
Me abriu à luz da vida,
E vem hoje no circulo dos tempos
Marcar sorrindo o giro de meus anos.
Já vai bem longe a quadra da inocência,
Dos brincos e dos risos descuidos os;
Lá s’embrenham nas sombras do passado
Os da infância dourados horizontes.
Oh! feliz quadra! – então eu não sentia
Roçar-me pela fronte
A asa do tempo estragadora e rápida;
E este dia de envolta com os outros
Lá s’escoava desapercebido;
Ia-me a vida em sonhos prazenteiros,
Como ligeira brisa
Entre perfumes leda esvoaçando.
Mas hoje que caiu-me a venda amável!
Que as misérias da vida me ocultava,
Eu vejo com tristeza
O tempo sem piedade ir desfolhando
A flor dos anos meus;
Vai-se esgotando a urna do futuro
Sem do seio sair-lhe os dons sonhados
Na quadra em que a esperança nos embala
Com seu falaz sorriso.
Qual sombra vá, que passa
Sem vestígios deixar em seus caminhos,
Eu vou transpondo a arena da existência,
Vendo irem-se escoando uns após outros
Os meus estéreis dias,
Qual náufrago em rochedo solitário,
Vendo a seus pés quebrar-se uma por uma
As ondas com monótono bramido,
Ah! sem jamais no dorso lhe trazerem
O lenho salvador!
Amigo, o fatal sopro da descrença
Me roça às vezes n’alma, e a deixa nua,
E fria como a laj em do sepulcro;
Sim, tudo vai-se; sonhos de esperança,
Férvidas emoções, anelos puros,
Saudades, ilusões, amor e crenças,
Tudo, tudo me foge, tudo voa
Como nuvem de flores sobre as asas
De rábido tufão.
Onde vou? Para onde me arrebatam
Do tempo as ondas rápidas?
Por que ansioso corro a esse futuro,
Onde reinam as trevas da incerteza?
E se através de escuridão perene
Só temos de sulcar ignotos mares
De escolhos semeados,
Não é melhor abandonar o leme,
Cruzar no peito os braços,
E deixar nosso lenho errar às tontas,
Entregue às ondas da fatalidade?
…………………………………………………….
…………………………………………………….

Ah! tudo é incerteza, tudo sombras,
Tudo um sonhar confuso e nebuloso,
Em que se agita o espírito inquieto,
Até que um dia a plúmbea mão da morte
Nos venha despertar,
E os sombrios mistérios revelar-nos,
Que em seu escuro seio
Com férreo selo guarda a campa avara.

Visita à sepultura de meu irmão

A noite sempiterna

Que tu tão cedo vists,
Cruel, acerba e triste
Sequer da tua idade não te dera
Que lograsses a fresca primavera?
(Camões)

Não vês nessa colina solitária
Aquela ermida, que sozinha alveja
O esguio campanário aos céus erguendo,
Como garça, que em meio das campinas
Alça o colo de neve?
E junto a ela um tésco muro cinge
A pousada dos mortos nua e triste,
Onde, plantada em meio, a cruz se eleva,
A cruz, bússola santa e venerável
Que nas tormentas e vaivéns da vida
O porto indica da celeste pátria….
Nem moimento, nem piedosa letra
Vem aqui iludir a lei do olvido;
Nem árvore funérea aí sussurra,
Prestando pia sombra ao chão dos mortos;
Nada quebra no lúgubre recinto
A paz sinistra que rodeia os túmulos:
Ali reina sozinha
Na hedionda nudez calcando as campas
A implacável rainha dos sepulcros;
E só de quando em quando
Vento da soidão passa gemendo,
E levanta a poeira dos jazigos.

Aqui tristes lembranças dentro d’alma
Eu sinto que se acordam, como cinza,
Que o vento de entre os túmulos revolve;
Meu infeliz irmão, aqui me surges,
Como a imagem de um sonho esvaecido,
E no meu coração sinto ecoando,
Qual débil som de suspirosa aragem,
Tua voz querida a murmurar meu nome.
Pobre amigo! – no albor dos anos tenros,
Quando a esperança com donoso riso
Nos braços te afagava,
E desdobrava com brilhantes cores
O painel do futuro ante os teus olhos,
Eis que sob teus passos se abre súbito
O abismo do sepulcro….

E aquela fronte juvenil e pura,
Tão prenhe de futuro e d’esperança,
Aquela fronte que talvez sonhava
Ir no outro dia, – ó irrisão amarga!
Repousar docemente em niveo seio,
Entre os risos de amor adormecida,
Vergada pela férrea mão da morte,
Caiu lívida e fria
No duro chão, em que repousa agora.
E hoje que venho no aposento lúgubre
Verter piedoso orvalho de saudade
Na planta emurchecida,
Ah! nem ao menos nesse chão funéreo
Os vestígios da morte encontrar posso!
Tudo aqui é silêncio, tudo olvido,
Tudo apagou-se sob os pés do tempo…

Oh! que é consolo ver ondear a coma
Duma árvore funérea sobre a lousa,
Que escondeu para sempre a nossos olhos
D’um ente amado inanimados restos.
Cremos que a anima o espírito do morto;
Nos místicos rumores da folhagem
Cuidamos escutar-lhe a voz dorida
Alta noite gemendo, e em sons confusos
Mistérios murmurando d’além-mundo.
Desgrenhado chorão, cipreste esguio,
Funéreas plantas dos jardins da morte,
Monumentos de dor, em que a saudade
Em nênia perenal vive gemendo,
Parece que com lúgubre sussurro
Ao nosso dó piedosos se associam,
E erguendo ao ar os verde-negros ramos
Apontam para o céu, sagrado asilo,
Refúgio extremo a corações viúvos,
Que colados à pedra funerária,
Tão fria, tão estéril de consolos,
O seu dorido luto em vãos lamentos
Arrastam pelo pó das sepulturas.

Mas – nem um goivo, nem funérea letra,
Amiga mão plantou neste jazigo;
Ah! ninguém disse à árvore dos túmulos
– Aqui sobre esta campa
Cresce, ó cipreste, e geme sobre ela,
Qual minha dor, em murmurio eterno! –
Sob essa grama pálida e enfezada
Entre os outros aqui perdido jazes
Dormindo o teu eterno e fundo sono…
Sim, pobre flor, sem vida aqui ficaste,
Envolta em pó, dos homens esquecida.

"Dá-me tua mão, amigo,
"Marchemos juntos nesta vida estéril,
"Vereda escura que conduz ao túmulo;
"O anjo da amizade desde o berço
"Nossos dias urdiu na mesma teia;
"Ele é quem doura os nossos horizontes,
"E a nossos pés alguma flor esparge….
"Quais dous regatos, que ao cair das urnas
"Se encontram na valada, e num só leito
"Se abraçam, se confundem,
"E quer volvam serenos, refletindo
"O azul do céu e as florejantes ribas,
"Quer furiosos ronquem
"Em boqueirões sombrios despenhados,
"Sempre unidos num só vão serpeando
"Té se perderem na amplidão dos mares,
"Tais volvam nossos dias;
"A mesma taça no festim da vida
"Para ambos sirva, seja fel ou néctar:
"E quando enfim, completo o nosso estádio,
"Formos pedir um leito de repouso
"No asilo dos finados,
"A mesma pedra nossos ossos cubra!"
É assim que tu falavas
Ao amigo, que aos cândidos acentos
De teu falar suave atento ouvido
Inclinava sorrindo:
E hoje o que é feito desse sonho ameno,
Que nos dourava a ardente fantasia?
Dessas palavras de magia cheias,
Que em melíflua torrente deslizavam
De teus lábios sublimes?
São vagos sons, que me murmuram n’alma,
Qual reboa gemendo no alaúde
A corda que estalara.

Ledo arroio que vinhas da montanha
Descendo alvo e sonoro,
O sol abraseado do deserto
Num dia te secou as ondas límpidas,
E eu fiquei só, trilhando a escura senda,
Sem tuas puras águas
Para orvalhar-me os ressequidos lábios,
Sem mais ouvir o trépido murmúrio,
Que em tão plácidos sonhos m’embalava….

Mas – cessem nossas queixas, e curvemo-nos
Aos pés daquela cruz, que ali se exalça,
Símbolo sacrossanto do martírio,
Fanal de redenção,
Que na hora do extremo passamento
Por entre a escura sombra do sepulcro
Mostra ao cristão as portas radiantes
Da celeste Solima, – ei-la que fulge
Como luz de esperança ao caminhante,
Que transviou-se em noite de tormenta;
E alçada sobre as campas
Parece estar dizendo à humanidade:
Não choreis sobre aqueles que aqui dormem;
Não mais turbeis com vossos vãos lamentos
O sono dos finados.
Eles foram gozar bens inefáveis
Na pura esfera, onde d’aurora os raios
Seu brilho perenal jamais extinguem,
Deixando sobre a margem do jazigo
A cruz dos sofrimentos.

Adeus, portanto, fúnebre recinto!
E tu, amigo, que tão cedo vieste
Pedir pousada na mansão dos mortos,
Adeus! – foste feliz, – que a senda é rude,
O céu é tormentoso, e o pouso incerto.

À sepultura de um escravo

Também do escravo a humilde sepultura
Um gemido merece de saudade:
Uma lágrima só corra sobre ela
De compaixão ao menos….
Filho da África, enfim livre dos ferros
Tu dormes sossegado o eterno sono
Debaixo dessa terra que regaste
De prantos e suores.

Certo, mais doce te seria agora
Jazer no meio lá dos teus desertos
À sombra da palmeira, não faltara
Piedoso orvalho de saudosos olhos
Que te regasse a campa;
Lá muita vez, em noites d’alva lua,
Canção chorosa, que ao tanger monótono
De rude lira teus irmãos entoam,
Teus manes acordara:
Mas aqui – tu aí jazes como a folha
Que caiu na poeira do caminho,
Calcada sob os pés indiferentes
Do viajor que passa.

Porém que importa – se repouso achaste,
Que em vão buscavas neste vale escuro,
Fértil de pranto e dores;
Que importa – se não há sobre esta terra
Para o infeliz asilo sossegado?
A terra é só do rico e poderoso,
E desses idolos que a fortuna incensa,
E que, ébrios de orgulho,
Passam, sem ver que co ‘as velozes rodas
Seu carro d’ouro esmaga um mendigante
No lodo do caminho !…
Mas o céu é daquele que na vida
Sob o peso da cruz passa gemendo;
É de quem sobre as chagas do inditoso
Derrama o doce bálsamo das lágrimas;
E do órfão infeliz, do ancião pesado,
Que da indigência no bordão se arrima;
do pobre cativo, que em trabalhos
No rude afã exala o alento extremo;
– O céu é da inocência e da virtude,
O céu é do infortúnio.

Repousa agora em paz, fiel escravo,
Que na campa quebraste os ferros teus,
No seio dessa terra que regaste
De prantos e suores.
E vós, que vindes visitar da morte
O lúgubre aposento,
Deixai cair ao menos uma lágrima
De compaixão sobre essa humilde cova;
Aí repousa a cinza do Africano,
– O símbolo do infortúnio.

O destino do vate

À memória de F’. Dutra e Meio

Entretanto não me alveja a fronte, nem minha cabeça pende

ainda para a terra, e contudo sinto que hei pouco de vida.
(Dutra e Melo)

Em manso adejo o cisne peregrino
Passou roçando as asas pela terra,
E sonorosos quebros gorjeando
Despareceu nas nuvens.
Não quis mesclar do mundo aos vãos rumores
A celeste harmonia de seus carmes;
Passou – foi demandar em outros climas
Pra suas asas mais tranqüilo pouso,
Ares mais puros, onde espalhe o canto;
Onde foi ele – em meio assim deixando
Quebrado o acento da canção sublime,
Que apenas encetara?
Onde foi ele? em que felizes margens
Desprende agora a voz harmoniosa?
Estranho ao mundo, nele definhava
Qual flor, qu’entre fraguedos
Em solo ingrato langue esmorecida:
Uma nuvem perene de tristeza
O rosto lhe ensombrava – parecia
Serafim exilado sobre a terra,
Da harpa divina tenteando as cordas
Pra mitigar do exílio os dissabores.

Triste poeta, que sinistra idéia
Pende-te assim a fronte empalecida?
Que dor fatal ao túmulo te arrasta
Inda no viço de teus belos anos?
Que acento tão magoado,
Que lacera, que dói no seio d’alma,
Exala a tua lira,
Funéreo como um eco dos sepulcros?
Tua viagem começaste apenas,
E eis que já de fadiga extenuado
Co desânimo n’alma te reclinas
À margem do caminho?!

Olha, ó poeta, como a natureza
Em torno te desdobra
Sorrindo o seu painel cheio de encantos:
Eis um vasto horizonte, um céu sereno,
Serras, cascatas, ondeantes selvas,
Rios, colinas, campos de esmeralda,
Aqui vales de amor, vergéis floridos,
De frescas sombras perfumado asilo,
Além erguendo a voz ameaçadora
O mar, como um leão rugindo ao longe,
Ali dos montes as gigantes formas
Com as nuvens do céu a confundir-se,
Desenhando-se em longes vaporosos.
Donoso quadro, que me arrouba os olhos,
N’alma acordando inspirações saudosas!
Tudo é beleza, amor, tudo harmonia,
Tudo a viver convida,
Vive, ó poeta, e canta a natureza.

Nas sendas da existência
As flores do prazer ledas vicejam;
À mesa do festim vem pois sentar-te,
Sob uma coroa de virentes rosas
Vem esconder os prematuros sulcos,
Vestígios tristes de vigílias longas,
De austero meditar, que te ficaram
Na larga fronte impressos.
Dissipe-se aos sorrisos da beleza
Essa tristeza, que te abafa a mente.
Ama, ó poeta, e o mundo que a teus olhos
Um deserto parece árido e feio,
Sorrir-se-á, qual horto de delícias:
Vive e canta os amores.

Mas se a dor é partilha de tua alma,
Se concebeste tédio de teus dias
Volvidos no infortúnio:
Que importa, ó vate; vê pura e donosa
Sorrir-se a tua estrela
No encantado horizonte do futuro.
Vive e sofre, que a dor co’a vida passa,
Enquanto a glória em seu fulgor perene
No limiar do porvir teu nome aguarda
Para enviá-lo às gerações vindouras.
E então mais belos brilharão teus louros
Entrançados co’a palma do martírio;
Vive, ó poeta, e canta para a glória.

Porém – respeito a essa dor sublime –
Selo gravado pela mão divina
Sobre a fronte do gênio,
Não foram para os risos destinados
Esses lábios severos, donde emana
A linguagem dos céus em igneos versos;
Longe dele a vá turba dos prazeres,
Longe os do mundo passageiros gozos,
Breves flores de um dia, que fenecem
Da sorte ao menor sopro.
Não, – não foi das paixões o bafo ardente
Que os ledos risos lhe crestou nos lábio;
A tormenta da vida ao longe passa,
E não ousa turbar com seus rugidos
A paz dessa alma angélica e serena,
Cujos tão castos ideais afetos
Só pelos céus adejam.
Alentado somente da esperança
Contempla resignado
As sombras melancólicas, qu’enlutam
O horizonte da vida; – mas vê nelas
Um crepúsculo breve, que antecede
O formoso clarão da aurora eterna.
Quando vem pois sua hora derradeira,
Saúda sem pavor a muda campa,
E sobre o leito do eternal repouso
Tranqüilo se reclina.
Oh! não turbeis os seus celestes sonhos;
Deixai correr nas sombras do mistério
Seus tristes dias: – triste é seu destino,
Como o luzir de mombunda estrela
Em céu caliginoso.
Tal é seu fado; – o anjo d’harmonia
C’uma das mãos lhe entrega a lira d’ouro,
Noutra lhe estende o cálix da amargura.

Bem como o incenso, que só verte aromas
Quando se queima, e ardendo se evapora,
Assim do vate a mente
Aquecida nas fráguas do infoitúnio,
Na dor bebendo audácia e força nova
Mais pura ao céu se arrouba, e acentos vibra
De insólita harmonia.
Sim – não turbeis os seus celestes sonhos,
Deixai, deixai sua alma isenta alar-se
Sobre as asas do êxtase divino,
Deixai-a, que adejando pelo empíreo
Vá aquecer-se ao seio do infinito,
E ao céu roubar segredos de harmonia,
Que sonorosos troem
D’harpa sublime nas melífluas cordas.

Mas ei-la já quebrada, –
Ei-la sem voz suspensa sobre um túmulo,
Essa harpa misteriosa, qu’inda há pouco
Nos embalava ao som de endeixas tristes
Repassadas de amor e de saudade.
Ninguém lhe ouvirá mais um só arpejo,
Que a férrea mão da morte
Pousou sobre ela, e lhe abafou pra sempre
A voz das áureas cordas.
Porém, ó Dutra, enquanto lá no elísio
Saciando tua alma nas enchentes
Do amor e da beleza, entre os eflúvios
De perenais delícias,
E unido ao coro dos celestes bardos,
O fogo teu derramas
Aos pés de Jeová em gratos hinos,
A glória tua, teus eternos cantos,
Quebrando a mudez fúnebre das campas
E as leis do frio olvido, com teu nome
Através do porvir irão traçando
Um sulco luminoso.

Esperança

Espère, enfant! – demain! – et puis demain encore;
Et puis, toujours demain! (V. Hugo)

Singrando vai por mares não sulcados
Aventureiro nauta, que demanda
Ignotas regiões, sonhados mundos;
Ei-lo que audaz se entranha
Na solidão dos mares – a esperança
Em lisonjeiros sonhos já lhe pinta
Rica e formosa a terra suspirada,
E corre, corre o nauta
Avante pelo páramo das ondas;
Além um ponto surde no horizonte
Confuso – é terra! – e o coração lhe pula
De insólito prazer.
Terra! – terra! – bradou – e era uma nuvem!
E corre, corre o nauta
Avante pelo páramo das ondas;
No profundo horizonte os olhos ávidos
Ansioso embebe; – ai! que só divisa
Ermos céus, ermas ondas.
O desalento já lhe coa n’alma;
Oh! não; eis nos confins lá do oceano
Um monte se desenha;
Não é mais ilusão – já mais distinto
Surge acima das ondas – oh! é terra!
Terra! – terra! – bradou; era um rochedo,
Onde as ondas batendo eternamente
Rugindo se espedaçam.
Eis do nosso passar por sobre a terra
Em breve quadro uma fiel pintura;
É a vida oceano de desejos
Intérmino, sem praias,
Onde a esmo e sem bússola boiamos
Sempre, sempre com os olhos enlevados
Na luz desse fanal misterioso,
Que alma esperança mostra-nos sorrindo
Nas sombras do porvir.

E corre, e corre a existência,
E cada dia que cai
Nos abismos do passado
É um sonho que se esvai,

Um almejo de noss’alma,
Anelo de felicidade
Que em suas mãos espedaça
A cruel realidade;

Mais um riso que nos lábios
Para sempre vai murchar,
Mais uma lágrima ardente
Que as faces nos vem sulcar;

Um reflexo de esperança
No seio d’alma apagado,
Uma fibra que se rompe
No coração ulcerado.

Pouco e pouco as ilusões
Do seio nos vão fugindo,
Como folhas ressequidas,
Que vão d’árvore caindo;

E nua fica nossa alma
Onde a esp’rança se extinguiu,
Como tronco sem folhagem
Que o frio inverno despiu.

Mas como o tronco remoça
E torna ao que d’antes era,
Vestindo folhagem nova
Co volver da primavera,

Assim na mente nos pousa
Novo enxame de ilusões,
De novo o porvir se arreia
De mil douradas visões.

A cismar com o futuro
A alma de sonhar não cansa,
E de sonhos se alimenta,
Bafejada da esperança.

Esperança, que és tu? Ah! que minha harpa
Já não tem para ti sons lisonjeiros;
Sim – nestas cordas já por ti malditas
Acaso tu não ouves
As queixas abafadas que sussurram,
E em voz funérea soluçando vibram
Um cântico de anátema?
Chamem-te embora bálsamo do aflito,
Anjo do céu que nos alenta os passos
Nas sendas da existência;
Nunca mais poderás, fada enganosa,
Com teu canto embalar-me, eu já não creio
Nas tuas vãs promessas;
Não creio mais nessas visões donosas
Fantásticos painéis, com que sorrindo
Matizas o futuro!
Estéreis flores, que um momento brilham
E caem murchas sem deixarem fruto
No tronco desornado.
– Vem após mim – ao desditoso dizes;
Não esmoreças, vem; – é vasto e belo
O campo do futuro; – lá florescem
As mil delicias que sonhou tua alma,
Lá te reserva o céu o doce asilo
A cuja sombra abrigarás teus dias.
Porém – é cedo – espera.
E ei-lo que vai com os olhos enlevados
Nas cores tão formosas
Com que bordas ao longe os horizontes…
E fascinado o mísero não sente
Que mais e mais se embrenha
Pela sombria noite do infortúnio.
E se dos lábios seus queixas exala,
Se o fel do coração enfim transborda
Em maldições, em gritos de agonia,
Em teu regaço, pérfida sereia,
Co’a voz embaidora, inda o acalentas;
– Não esmoreças, não; – é cedo; espera;
Lhe dizes tu sorrindo.
E quando enfim no coração quebrado
De tanta decepção, sofrer tão longo,
Nos vem roçar do desalento o sopro,
Quando enfim no horizonte tenebroso
A estrela derradeira em sombras morre,
Esperança, teu último lampejo,
Qual relâmpago em noite tormentosa,
Abre clarão sinistro, e mostra a campa
Nas trevas alvejando.

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