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Parte 1
A Hermilo Borba Filho, José Laurênio de Melo, Gastão
de Holanda, Aloísio Magalhães,
Orlando da Costa Ferreira e Flaminio Boilini
Cerri, com toda a minha amizade.
A.S.
O grande acontecimento do Primeiro Festival de Amadores Nacionais, realizado
em janeiro de 1957, no Rio de Janeiro, por iniciativa da Fundação
Brasileira de Teatro, foi a representação pelo Teatro Adolescente
do Recife, sob a direção de Clênio Wanderlei, do Auto
da Compadecida, de Ariano Suassuna. Se a interpretação era boa,
considerado aquilo que se pode exigir de um grupo amador novo e constituído
de elementos jovens e, portanto, até certo ponto inexperientes, o que,
por outro lado, tinha a vantagem de dar ao espetáculo um tom de simplicidade,
de despojamento, de espontaneidade, que correspondia ao espírito da
peça e se enquadrava, no estilo de apresentação que mais
lhe convinha, a verdade é que foi o texto em si o causador do entusiasmo
despertado.
Suassuna diz que sua obra se baseia nos romances e histórias populares
do Nordeste, os quais, devemos confessar, desconhecemos totalmente. Por nosso
lado, encontramos em “A Compadecida” um parentesco com gêneros
mais antigos, de outras épocas e regiões que, todavia, devem
ter sido de algum modo a origem remota daqueles que a inspiraram. Enquadramo-la,
inicialnente, na tradição das peças da Alta Idade Média,
geralmente designadas como Milagres de Nossa Senhora (do séc. XIV),
em que, numa história mais ou menos – e às vezes muito – profana,
o herói em dificuldades apela 9 para Nossa Senhora que comparece e
o salva tanto no plano espiritual como temporal.
Quanto à forma e ao tratamento, nossa tendência é para
aproximar a obra dos autos de Gil e do teatro espanhol do séc.XVII.
Também lhe encontramos algo em comum com a commedia dell’arte,
tanto no desenvolvimento da ação como ‘na concepção
das personagens, particularmente na figura de João Grilo, que lembra
muito as características do “arlequim”, embora seja um
tipo autenticamente brasileiro e não copiado da tradição
ita liana, mesmo porque é figura lendária da literatura popular
nordestina, tanto que é herói de dois romances intitulados As
Proezas de João Grilo.
Desta vez, porém, a aproximação de um texto brasileiro
com formas e até temas dos grandes gêneros da história
do teatro não é apontada como defeito, pois não houve
cópia, imitação servil ou mera transposição,
mas autêntica recriação em termos brasileiros, tanto pela
ambientação como pela estruturação, sendo uma
obra inédita em suas características, nova e, portanto, absolutamente
original.
O seu encanto está nesse ar de ingenuidade que a caracteriza, na
singeleza dos recursos empregados, ‘no primarismo do argumento, tudo
a nosso ver perfeitamente dentro do espírito popular em que a obra
se inspira e que quer manter.
A linguagem desabrida não deve chocar ninguém. É a
das personagens e do ambiente retratados. Em Gil Vicente encontramos coisas
muito piores. Com expressões por vezes rudes e outras pitorescas, o
autor conseguiu um diálogo eminentemente teatral, vivo e saboroso,
colorido e descritivo, popular sem ser vulgar e paradoxalmente literário,
nada tendo de precioso ou alentejouloso. E essa pseudogrosseria e o jeito
direto de indicar situações ou comenta-las não lhe tiram
o sentido cristão que lhe encontramos. É preciso não
esquecer que se quis evocar uma representação de circo, uma
farsa muito marcada, portanto, em que a caricatura tinha de ser forte. Quanto
à maneira como são apresentados o bispo e o padre, além
do que ficou dito acima, forçoso é reconhecer não ser
absurdo admitir a existência de maus sacerdotes. O próprio autor,
ao agradecer as manifestações que lhe foram feitas no fim da
última representação de sua peça, no Teatro Dulcina,
reafirmou o sentido católico da mesma, lembrando, a propósito
de sua personagem, o famoso bispo Cauchon, que se fez instrumento da política
dos ingleses, queimando na fogueira sua compatriota Joana d’Arc, do
que resultou venerar a igreja uma santa por ela própria martirizada.
E foi, até falando dessa figura, se não nos enganamos, que Georges
Bernanos disse que a Igreja eram os seus santos e não os seus padres…
Além do mais, no julgamento – verdadeira chave para a compreensão
do sentido da peça – Nossa Senhora explica que a visão que dessas
figuras nos é dada é a da língua do mundo, portanto piorada,
do mesmo modo que pela acusação do diabo. E um ponto importante,
nesse particular, é o fato de ao lado dos dois maus padres, ser colocado
um bom, o frade, secretário do bispo, cujo processo de santificação
se anuncia. A apresentação da figura De modo um tanto caricatural
não nos deve fazer incidir em equívoco. O tom é o da
peça e – note-se – dele são excluídos o Cristo e Nossa
Senhora. No mais, o frade sugere, um pouco à maneira como Roberto Rosseilini
concebeu São Francisco e seus companheiros no famoso filme Francisco,
Arauto de Deus, a pureza angelical, a santidade, o desligamento das coisas
do mundo, do modo como é indicado no v. 8 do cap. 18 do Evangelho segundo
São Mateus: tornar-se igual às crianças para poder entrar
no reino do céu.
O sentido moralizante, moralizantes do ponto de vista cristão, da
obra, está, aliás, presente tanto na linha geral, como em inúmeros
de seus pormenores, que não seria possível evocar aqui. É
lógico, porém, que não contém profundas discussões
teológicas, nem faz propriamente apologética, o que seria absurdo,
O seu apostolado é feito através da sugestão de um espírito
cristão, de uma visão cristã da vida, apresentada com
a simplicidade do espírito popular, da fé simples, sem complicações,
do povo, quase sempre a mais autêntica.
Não queremos silenciar sobre uma fala que tem sido muito discutida.
Quando João Grilo se espanta ao ver o Cristo negro, este responde que
veio assim para mostrar que para ele tanto faz ser branco como preto, uma
vez que não é “americano para ter preconceito de cor”.
Ora, em primeiro lugar, durante a guerra houve bases americanas no Nordeste,
cujo ambiente e mentalidade a peça evoca. Possivelmente seus ocupantes,
com a inabilidade característica que manifestam no trato com outros
povos, deram abundantes provas desse seu lamentável 12 sentimento.
Portanto, a repulsa pode ali ser suficientemente forte, para que o autor se
sentisse levado a trazê-la para sua peça. Em segundo lugar, esse
preconceito realmente revolto, como um dos sentimentos mais anticristãos
que possam existir; a sua presença – com a sabida intensidade – num
povo que é ou pelo menos pretende ser um paladino da liberdade e da
democracia é algo que clama ao céus.
Noutro trecho da cena do julgamento, quando João Grilo procura recorrer
a mais uma esperteza, para livrar-se da acusação do diabo, Cristo
o adverte: “Deixe de chicana, João. Você pensa que isto
aqui é o Palácio da Justiça?”.
Tanto pois dessa réplica, como da referente ao preconceito de cor
– das três vezes em que vimos a peça no Dulcina – o povo prorrompia
em aplausos. Era a emoção irresistível de sentir o Cristo
do seu lado, pois a Justiça, infelizmente como é praticada,
sufocada por formalismos e complicações que possibilitam a deturpação
de seus verdadeiros objetivos, é antes uma ameaça que uma garantia
aos olhos do povo.
Acusa ainda o Cristo o diabo de ser “meio espírita” e
conseqüentemente de ter a “mania de ser mágico”. Esses
e outros trechos do Cristo e de Nossa Senhora dão uma concepção
da religião como algo simples, agradável, doce e não
como uma coisa formal, solene, difícil e mesmo penosa. Essa intimidade
com Deus, e a idéia da simplicidade nas relações dele
com os homens, essa compreensão da vida e fé na misericórdia,
nos parecem aspectos primordiais no sentido religioso da obra, sobre o qual
muito haveria que dizer, não nos tivéssemos já alongado
demais. Por isso, limitemo-nos a lembrar a compreensão das faltas humanas,
atribuída a Nossa Senhora, que, como mulher, simples e do povo, as
explica e pede para elas a compaixão divina. Mesmo para aqueles que
“praticaram atos vergonhosos”, pois “é preciso levar
em conta a pobre e triste condição do homem”. “A
carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas”. Levados pelo
medo, “os homens terminam por fazer o que não presta, quase sem
querer”. E como o diabo – por nunca ter sido homem – não entende
o que é o medo, as personagens explicam que é o medo da fome,
do sofrimento, da morte e da solidão. Por medo desta o padeiro tudo
perdoava à mulher. Essa solidão que o próprio Cristo
viveu em Getsêmani e a sensações de abandono que sentiu
na Cruz.
De tudo o que ficou dito, o leitor concluirá que é um programa
da humanidade, com suas misérias, suas fraquezas, mas também
suas razões de consolo e esperança, que “A Compadecida”
evoca. É esse, justamente, o grande mérito do autor e a evidência
da qualidade de sua obra: ter conseguido, a partir de uma situação
local, regional, típica mesmo, compor um quadro de significação
universalmente válida.
HENRIQUE OSCAR.
EPÍGRAFES
O DIABO
Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete!
MARIA
Meu filho perdoe esta alma,
Tenha dela compaixão
Não se perdoando esta alma,
Faz-se é dar mais gosto ao cão:
Por isto absolva ela,
Lançai a vossa bênção.
JESUS
Pois minha mãe leve a alma,
Leve em sua proteção,
Diga às outras que recebam,
Façam com ela união.
Fica feito o seu pedido,
Dou a ela a salvação.
O Castigo da Soberba, auto popular, anônimo, do romanceiro nordestino.
Mandou chamar o vigário:
Pronto! – o vigário chegou.
– Às ordens, Sua Excelência!
O Bispo lhe perguntou:
Então, que cachorro foi que o reverendo enterrou?
– Foi um cachorro importante,
Animal de inteligência:
Ele, antes de morrer,
Deixou a Vossa Excelência
Dois contos de réis em ouro.
Se eu errei, tenha paciência.
– Não errou não, meu vigário,
Você é um bom pastor.
Desculpe eu incomodá-lo,
A culpa é do portador!
Um cachorro como esse,
Se vê que é merecedor!
O Enterro do Cachorro, romance popular anônimo do Nordeste.
Foi na venda e de lá trouxe
Três moedas de cruzado
Sem dizer nada a ninguém
Para não ser censurado:
No fiofó do cavalo
Fez o dinheiro guardado.
Disse o pobre: – “Ele está magro”,
Só tem o osso e o couro,
Porém, tratando-se dele,
Meu cavalo é um tesouro.
Basta dizer que defeca
Níquel, prata, cobre e ouro.
História do Cavalo que Defecava Dinheiro, romance popular anônimo
do Nordeste.
O Auto da Compadecida foi encenado pela primeira vez a 11 de setembro de
1956, no Teatro Santa Isabel, pelo Teatro Adolescente do Recife, sob direção
de Clênio Wanderley, sendo os papéis criados pelos seguintes
atores:
PALHAÇO-José Pinheiro
JOÃO GRILO -Ricardo Gomes
CHICÓ-Clênio Wanderley
PADRE JOÃO- Sandoval Cavalcânti
ANTÔNIO MORAIS-José de Sonsa Pimentel
SACRISTÃO-Alberique Farias
PADEIRO-Luís Mendonça
MULHER DO PADEIRO-Nina Elva
BISPO-Eutrópio Gonçalves
FRADE- Mário Boavista
SEVERINO DO ARACAJU-Otávio Catanho
CANGACEIRO- Artur Rodrigues
DEMÓNIO- Mário Boavista
O ENCOURADO (O DIABO)- José de Sonsa Pimentel
MANUEL (Nosso SENHOR JESUS CRISTO)- José Gonçalves
A COMPADECIDA (NOSSA SENHORA)- Maria do Socorro Raposo Meira.
A 11 de março de 1967, a peça foi encenada em São Paulo
pelo “Studio Teatral”, sob direção de Hermilo Filho,
no Teatro Natal, sendo os papéis representados pelos seguintes atores:
PALHAÇO- José Pinheiro
JOÃO GRILO-Armando Bagos
CHICÓ-Nélson Duarte
PADRE JOÃO-Felipe Cafuné
ANTÔNIO MORAIS-Teotônio Pereira
SÁCRISTÃO-Samuel dos Santos
PADEIRO-Taran Dach
MULHER DO PADEIRO-Cici Pinheiro
BISPO-Thales Maia
FRADE-Ângelo Diaz
SEVERINO DO ARACAJU-Renato Master
CANGACEIRO-Jorge Nader
DEMÓNIO-Mílton Gonçalves
O ENCOURADO (O DIABO)-Dalmo Ferreira
MANUEL (Nosso SENHOR JESUS CRISTO)-Mílton Ribeiro
A COMPADECIDA (NOSSA SENHORA)-Córdula Reis
O Auto da Compadecida foi escrito com base em romances e histórias
populares do Nordeste. Sua encenação deve, portanto, seguir
a maior linha de simplicidade, dentro do espírito em que foi concebido
e realizado. O cenário (usado na encenação como um picadeiro
de circo, numa idéia excelente de Clênio Wanderley, que a peça
sugeria) pode apresentar uma entrada de igreja à direita, com uma pequena
balaustrada ao fundo, uma vez que o centro do palco representa um desses pátios
comuns nas igrejas das vilas do interior.. A saída para a cidade é
à esquerda e pode ser feita através de um arco. Nesse caso,
seria conveniente que a igreja, na cena do julgamento, passasse a ser entrada
do céu e do purgatório. O trono de Manuel, ou seja, Nosso Senhor,
Jesus Cristo, poderia ser colocado na balaustrada, erguida sobre um praticável
servido por escadarias. Mas tudo isso fica a critério do ensaiador
e do cenógrafo, que podem montar a peça com dois cenários,
sendo um para o começo e outro para a cena do julgamento, ou somente
com cortinas, caso em que se imaginará a igreja fora do palco, à
direita, e a saída para a cidade à esquerda, organizando-se
a cena para o julgamento através de simples cadeiras de espaldar alto,
com saída para o inferno à esquerda e saída para o purgatório
e para o céu à direita.
Em todo caso, o autor gostaria de deixar claro que seu teatro é mais
aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular
do que do teatro moderno. Agradece ainda o autor a seus amigos Jean Louis
Marfaing, José Paulo Moreira da Fonseca e Henrique Oscar as críticas
que fizeram ao quadro final da peça e que resultaram em sua modificação
para a forma em que vai finalmente escrita aqui.
Ao abrir o pano, entram todos os atores, com exceção do que
vai representar Manuel, como se tratasse de uma tropa de saltimbancos, correndo,
com gestos largos, exibindo-se ao público. Se houver algum ator que
saiba caminhar sobre as mãos, deverá entrar assim. Outro trará
uma corneta, na qual dará um alegre toque, anunciando a entrada do
grupo. Há de ser uma entrada festiva, na qual as mulheres dão
grandes voltas e os atores agradecerão os aplausos, erguendo os braços,
como no circo. A atriz que for desempenhar o papel de Nossa Senhora deve vir
sem caracterização, para deixar bem claro que, no momento, é
somente atriz. Imediatamente após o toque de clarim, o Palhaço
anuncia o espetáculo.
PALHAÇO, grande voz
Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um
sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade.
Toque de clarim.
PALHAÇO
A intervenção de Nossa Senhora no momento propício,
para triunfo da misericórdia.
Auto da Compadecida!
Toque de clarim
A COMPADECIDA
A mulher que vai desempenhar o papel desta excelsa Senhora, declara-se indigna
de tão alto mister.
Toque de clarim.
PALHAÇO
Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja,
o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe,
mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de
insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse
tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente,
porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito
a certas intimidades.
Toque de clarim.
PALHAÇO
Auto da Compadecida! O ator que vai representar Manuel, isto é, Nosso
Senhor Jesus Cristo, declara-se também indigno de tão alto papel,
mas não vem agora, porque sua aparição constituirá
um grande efeito teatral e o público seria privado desse elemento de
surpresa.
Toque de clarim.
PALHAÇO
Auto da Compadecida! Uma história altamente moral e um apelo à
misericórdia.
JOÃO GRILO
Ele diz “à misericórdia”, porque sabe que,
se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação
seria condenada.
PALHAÇO
Auto da Compadecida! (Cantando.) Tombei, tombei, mandei tombar!
ATORES, respondendo ao canto
Perna fina no meio do mar.
PALHAÇO
0i, eu vou ali e volto já.
ATORES, saindo
Oi, cabeça de bode não tem que chupar.
PALHAÇO
o distinto público imagine à sua direita uma igreja, da qual
o centro do palco será o pátio. A saída para a rua é
à sua esquerda. (Essa fala dará idéia da cena, se adotar
uma encenação mais simplificada e pode ser conservada mesmo
que se monte um cenário mais rico.) O resto é com os atores.
Aqui pode -se tocar uma música alegre e o Palhaço sai dançando.
Uma pequena pausa e entram Chicó e João Grilo.
JOÃO GRILO
E ele vem eu Estou desconfiado,
Chicó. Você é tão sem confiança!
CHICÓ
Eu, sem confiança? Que é isso, João, está me
desconhecendo? Juro como ele vem. Quer benzer o cachorro da mulher para ver
se o bicho não morre. A dificuldade não é ele vir, é
o padre benzer. O bispo está aí e tenho certeza de que o Padre
João não vai querer benzer o cachorro.
JOÃO GRILO
Não vai benzer ? Por quê? Que é que um cachorro tem
de mais?
CHICÓ
Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas, mas
não é nada de mais.
Eu mesmo já tive um cavalo bento.
JOÃO GRILO
Que é isso, Chico? (Passa o dedo na garganta.) Já estou ficando
por aqui com suas histórias. É sempre uma coisa toda esquisita.
Quando se pede uma explicação, vem sempre com “não
sei, só sei que foi assim”.
CHICÓ
Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é que eu vou fazer?
Vou mentir, dizer que não tive?
JOÃO GRILO
Você vem com uma história dessas e depois se queixa porque
o povo diz que você é sem confiança.
CHICÓ
Eu, sem confiança? Antônio Martinho está para dar as
provas do que eu digo.
JOÃO GRILO
Antônio Martinho? Faz três anos que ele morreu.
CHICÓ
Mas era vivo quando eu tive o bicho
JOÃO GRILO
Quando você teve o bicho? E foi você quem pariu o cavalo, Chico?
CHICÓ
Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me admiro
mais de nada. No mês passado uma mulher teve um, na serra do Araripe,
para os lados do Ceará.
JOÃO GRILO
Isso é coisa de seca. Acaba nisso, essa fome: ninguém pode
ter menino e haja cavalo no mundo. A comida é mais barata e é
coisa que se pode vender. Mas seu cavalo, como foi?
CHICÓ
Foi uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas recomendou todo
cuidado, porque o cavalo era bento. E só podia ser mesmo, porque cavalo
bom como aquele eu nunca tinha visto. Uma vez corremos atrás de uma
garrota, das seis da manhã até as seis da tarde, sem parar nem
um momento, eu a cavalo, ele a pé. Fui derrubar a novilha já
de noitinha, mas quando acabei o serviço e enchocalhei ares, olhei
ao redor, e não conhecia o lugar onde estávamos. Tomei uma vereda
que havia assim e aí tangendo o boi…
JOÃO GRILO
O boi? Não era uma garrota?
CHICÓ
Uma garrota e um boi.
JOÃO GRILO
E você corria atrás do dois de uma vez?
CHICÓ, irritado
Corria, é proibido?
JOÃO GRILO
Não, mas eu me admiro é eles correrem tanto tempo juntos,
sem me apertarem. Como foi isso?
CHICÓ
Não sei, só sei que foi assim. Saí tangendo os bois
e de repente avistei uma cidade. É uma história que eu não
goste nem de contar.
JOÃO GRILO
Conte, conte sempre, você está em casa.
CHICÓ
Você sabe que eu comecei a correr da ribeira do Taperoá, na
Paraíba. Pois bem, na entrada da rua perguntei a um homem onde estava
e ele me disse que era Própria, de Sergipe.
JOÃO GRILO
Sergipe, Chicó?
CHICÓ
Sergipe, João. Eu tinha corrido até lá no meu cavalo.
Só sendo bento mesmo.
JOÃO GRILO
Mas Chicó, e o rio São Francisco?
CHICÓ
Lá vem você com sua mania de pergunta, João.
JOÃO GRILO
Claro, tenho que saber. Como foi que você passou?
CHICÓ
Não sei, só sei que foi assim. Só podia estar seco
nesse tempo, porque não me lembro quando passei…E nesse tempo todo
o cavalo ali comigo, sem reclamar nada!
JOÃO GRILO
Eu me admirava era se ele reclamasse.
CHICÓ
É por causa dessas e de outras que eu não me admiro mais de
nada, João. Cachorro bento, cavalo bento, tudo isso eu já vi.
JOÃO GRILO
Quer dizer que você acha que o homem vem?
CHICÓ
Só pode vir. É o único jeito que ele tem a dar. A mulher
disse que o larga se o cachorro morrer. O doutor diz que não sabe o
que é que o bicho tem, o jeito agora é apelar para o padre.
Hora de se chamar padre é a hora da morte, de modo que ele tem de vir.
Padre João! Padre João!
JOÃO GRILO, ajoelhando-se, em tom lamentoso
Lembra-te de Nosso Senhor Jesus Cristo. Chicó. Chicó, Jesus
vai contigo e tu vais com Jesus. Lembra-te de Nosso Senhor Jesus Cristo, Chicó.
CHICÓ
Que latomia é essa para o meu lado? Você quer me agourar?
JOÃO GRILO, erguendo-se
Ah, e você está vivo?
CHICÓ
Estou, que é que você está pensando? Não é
besta não?
JOÃO GRILO
Você disse que hora de chamar padre era a hora da morte, começou
a gritar por Padre João, eu só podia pensar que estava lhe dando
a agonia.
CHICÓ, depois de estender-lhe o punho fechado
Padre João!
JOÃO GRILO
Padre João! Padre João!
PADRE, aparecendo na igreja
Que há? Que gritaria é essa?
Fala afetadamente com aquela pronúncia e aquele estilo que Leon Bloy
chamava “sacerdotais”.
CHICÓ
Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa aqui
trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer.
PADRE
Para eu benzer?
CHICÓ
Sim.
PADRE, com desprezo
Um cachorro?
CHICÓ
Sim.
PADRE
Que maluquice! Que besteira!
JOÃO GRILO
Cansei de dizer a ele que o senhor benzia. Benze porque benze, vim com ele.
PADRE
Não benzo de jeito nenhum.
CHICÓ
Mas padre, não vejo nada de mal em se benzer o bicho.
JOÃO GRILO
No dia em que chegou o motor novo do major Antônio Morais o senhor
não o benzeu?
PADRE
Motor é diferente,é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro
é que eu nunca ouvi falar.
CHICÓ
Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor.
PADRE
É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro.
Benzer motor é fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorro?
JOÃO GRILO
É, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado
é ele e uma coisa é o motor do major Antônio Morais e
outra benzer o cachorro do major Antônio Morais.
PADRE, mão em concha no ouvido
Como?
JOÃO GRILO
Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do major Antônio
Morais.
PADRE
E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio
Morais?
JOÃO GRILO
É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse,
mas o major é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo
de perder meu emprego, fui forçado a obedecer, mas disse a Chicó:
o padre vai se zangar.
PADRE, desfazendo-se em sorrisos
Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus para ter direito
de se zangar? Falei por falar, mas também vocês não tinham
dito de quem era o cachorro!
JOÃO GRILO, cortante
Quer dizer que benze, não é?
PADRE, a Chicó.
Você o que é que acha?
CHICÓ
Eu não acho nada de mais.
PADRE
Nem eu. Não vejo mal nenhum em abençoar as criaturas de Deus.
JOÃO GRILO
Então fica tudo na paz do Senhor, com cachorro benzido e todo mundo
satisfeito.
PADRE
Digam ao major que venha. Eu estou esperando.
Entra na igreja.
CHICÓ
Que invenção foi essa de dizer que o cachorro era do major
Antônio Morais?
JOÃO GRILO
Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza
do major que se péla. Não viu a diferença? Antes era
“Que maluquice, que besteira!”, agora “Não vejo mal
nenhum em se abençoar as criaturas de Deus!”.
CHICÓ
Isso não vai dar certo. Você já começa com suas
coisas, João. E havia necessidade de inventar que era empregado de
Antônio Morais?
JOÃO GRILO
Meu filho, empregado do major e empregado de um amigo do major é
quase a mesma coisa. O padeiro vive dizendo que é amigo do homem, de
modo que a diferença é muito pouca. Além disso, eu podia
perfeitamente ter sido mandado pelo major, porque o filho dele está
doente e pode até precisar do padre.
CHICÓ
João, deixe de agouro com o menino, que isso pode se virar por cima
de você.
JOÃO GRILO
E você deixe de conversa. Nunca vi homem mais mole do que você,
Chicó. O padeiro mandou você arranjar o padre para benzer o cachorro
e eu arranjei sem ter sido mandado. Que é que você quer mais?
CHICÓ
Ih, olha como isso está pegado com o patrão! Faz gosto um
empregado dessa qualidade.
JOÃO GRILO
Muito pelo contrário, ainda hei de me vingar do que ele e a mulher
me fizeram quando estive doente. Três dias passei em cima de uma cama
para morrer e nem um copo dágua me mandaram. Mas fiz esse trabalho
somente porque se trata de enganar o padre. Não vou com aquela cara.
CHICÓ
Com qual? Com a do padre?
JOÃO GRILO
Com as duas. Estou acertando as contas com o padre e a qualquer hora acerto
com o patrão. Eu conheço o ponto fraco do homem, Chicó.
CHICÓ
Qual é? É a besteira?
JOÃO GRILO
Nada disso, se o ponto fraco das pessoas daqui fosse somente a besteira,
ninguém estava livre de mim. Você mesmo é um leso de marca,
Chicó. Só não boto você no bolso por que sou seu
amigo.
CHICÓ
E qual é o ponto fraco do patrão?
Estas duas últimas falas são cortáveis, a critério
do encenador.
JOÃO GRILO
Chicó, deixe de ser hipócrita, que você sabe.
CHICÓ
Juro que não sei, João.
JOÃO GRILO
É a mulher, Chicó, e você sabe muito bem disso. Você
mesmo sabe que a mulher dele…
CHICÓ
João, fale baixo, que o padre pode ouvir. Essas coisas num instante
se espalham.
JOÃO GRILO
Deixe de besteira, Chicó, todo mundo já sabe que a mulher
do padeiro engana o marido.
CHICÓ
João, danado, ou você fala baixo ou eu o esgano já,
já.
JOÃO GRILO
Mas todo mundo não sabe mesmo?
CHICÓ
Sabe, mas não sabe que foi comigo, entendeu? E mesmo ela já
me deixou por outro. Uma vez, João, e não posso me esquecer
dela. Mas não quer mais nada comigo.
JOÃO GRILO
Nem pode querer, Chicó. Você é um miserável que
não tem nada e. a fraqueza dela é dinheiro e bicho.
CHICÓ
Dinheiro e bicho?
JOÃO GRILO
Sim. Tenho certeza de que ela não o teria deixado se você fosse
rico. Nasceu pobre, enriqueceu com o negócio da padaria e agora só
pensa nisso. Mas eu hei de me vingar dela e do marido de uma vez.
CHICÓ
Por que essa raiva dela?
JOÃO GRILO
Ó homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está esquecido
de que ela o deixou?
Está esquecido da exploração que eles fazem conosco
naquela padaria do inferno? Pensam que são o cão só porque
enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é
porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o
prato de comida que ela mandava para o cachorro. Até carne passada
na manteiga tinha. Para mim, nada, João Grilo que se danasse. Um dia
eu me vingo.
CHICÓ
João, deixe de ser vingativo que você se desgraça. Qualquer
dia você inda se mete numa embrulhada séria.
JOÃO GRILO
E o que é que tem isso? Você pensa que eu tenho medo? Só
assim é que posso me divertir. Sou louco por uma embrulhada.
CHICÓ
Permita então que eu lhe dê meus parabéns, João,
porque você acaba de se meter numa danada.
JOÃO GRILO
Eu? Que há?
CHICÓ
O major Antônio Morais vem subindo ladeira. Certamente vem procurar
o padre.
JOÃO GRILO
Ave-Maria! Que é que se faz, Chicó?
CHICÓ
Não sei, não tenho nada a ver com isso. Você, que inventou
a história e que gosta de embrulhada, que resolva.
JOÃO GRILO
Cale a boca, besta. Não diga uma palavra e deixe tudo por minha conta.
(Vendo Antônio Morais no limiar, esquerda.) Ora viva, seu major Antônio
Morais, como vai Vossa Senhoria? Veio procurar o padre? (Antônio Morais,
silencioso e terrível, encaminha-se para a igreja mas João toma-lhe
a frente.) Se Vossa Senhoria quer, eu vou chamá-lo. (Antônio
Morais afasta João do caminho com a bengala, encaminhando-se de novo
para a igreja. João, aflito, dá a volta, tomando-lhe a frente
e fala, como último recurso.) É que eu queria avisar para Vossa
Senhoria não ficar espantado: o padre está meio doido.
ANTÓNIO MORAIS, parando
Está doido? O padre?
JOÃO GRILO, animando-se
Sim, o padre. Está dum jeito que não respeita mais ninguém
e com mania de benzer tudo. Vim dar um recado a ele, mandado por meu patrão,
e ele me recebeu muito mal, apesar de meu patrão ser quem é.
ANTÓNIO MORAIS
E quem é seu patrão?
JOÃO GRILO
O padeiro. Pois ele chamou o patrão de cachorro e disse que apesar
disso ia benzê-lo.
ANTÔNIO MORAIS
Que loucura é essa?
JOÃO GRILO
Não sei, é a mania dele agora. Benze tudo
e chama a gente de cachorro.
ANTÓNIO MORAIS
Isso foi porque era com seu patrão. Comigo é diferente.
JOÃ GRILO
Vossa Senhoria me desculpe, mas eu penso
que não.
ANTÓNIO MORAIS
Você pensa que não?
JOÃO GRILO
Penso, sim. E digo isso porque ouvi o padre dizer: “Aquele cachorro,
só porque é amigo de Antônio Morais, pensa que é
alguma coisa”.
ANTÔNIO MORAIS
Que história é essa? Você tem certeza?
JOÃO GRILO
Certeza plena. Está doidinho, o pobre do padre.
ANTÓNIO MORAIS
Pois vamos esclarecer a história, porque alguém vai pagar
essa brincadeira. Quanto à mania de benzer, não faz mal, ele
me será até útil. Meu filho mais moço está
doente e vai para o Recife, tratar-se. Tem uma verdadeira mania de igreja
e não quer ir sem a bênção do padre. Mas fique
certo de uma coisa: hei de esclarecer tudo e se você está com
brincadeiras para meu lado, há de se arrepender. Padre João!
Padre João!
Sai pela direita. No mesmo instante, CHICÓ tenta fugir, mas João
agarra-o pelo pescoço.
JOÃO GRILO
Não, você fica comigo. Vim encomendar a bênção
do cachorro por sua causa e você tem de ficar. E mesmo, Chicó,
você já está acostumado com essas coisas, já teve
até um cavalo bento!
CHICÓ
É, mas acontece que o major Antônio Morais pode ter alguma
coisa de cavalo, de bento é que ele não tem nada.
JOÃO GRILO
Deixe de ser frouxo e fique aqui.
ANTÔNIO MORAIS, voltando
Ah, padre, estava aí? Procurei-o por toda parte.
PADRE, da igreja.
Ora quanta honra! Uma pessoa como Antônio Morais na igreja! Há
quanto tempo esses pés não cruzam os umbrais da casa de Deus!
ANTÔNIO MORAIS
Seria melhor dizer logo que faz muito tempo que não venho à
missa.
PADRE
Qual o que, eu sei de suas ocupações, de sua saúde…
ANTÔNIO MORAIS
Ocupações? O senhor sabe muito bem que não trabalho
e que minha saúde é perfeita.
PADRE, amarelo
Ah,é?
ANTÔNIO MORAIS
Os donos de terras é que perderam hoje em dia o senso de sua autoridade.
Vêem-se senhores trabalhando em suas terras como qualquer foreiro. Mas
comigo as coisas são como antigamente, a velha ociosidade senhorial.
PADRE
É o que eu vivo dizendo, do jeito que as coisas vão, é
o fim do mundo. Mas que coisa o trouxe aqui? Já sei, não diga,
o bichinho está doente, não é?
ANTÓNIO MORAIS
É, já sabia?
PADRE
Já, aqui tudo se espalha num instante. Já está fedendo?
ANTÓNIO MORAIS
Fedendo? Quem?
PADRE
O bichinho
ANTÓNIO MORAIS
Não. Que é que o senhor quer dizer?
PADRE
Nada, desculpe, é um modo de falar.
ANTÔNIO MORAIS
Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos.
PADRE
Peço que desculpe um pobre padre sem muita instrução.
Qual é a doença? Rabugem?
ANTÔNIO MORAIS
Rabugem?
PADRE
Sim, já vi um morrer disso em poucos dias. Começou pelo rabo
e espalhou-se pelo resto do corpo.
ANTÔNIO MORAIS
Pelo rabo?
PADRE
Desculpe, desculpe, eu devia ter dito “pela cauda”. Deve-se
respeito aos enfermos, mesmo que sejam os de mais baixa qualidade.
ANTÔNIO MORAIS
Baixa qualidade? Padre João, veja com quem está falando. A
igreja é uma coisa respeitável, como garantia da sociedade,
mas tudo tem um limite.
PADRE
Mas o que foi que eu disse?
ANTÓNIO MORAIS
Baixa qualidade! Meu nome todo é Antônio Noronha de Brito Morais
e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos, ouviu? Gen te que veio nas
caravelas, ouviu?
PADRE
Ah bem e na certa os antepassados do bichinho também vieram nas galeras,
não é isso?
ANTÔNIO MORAIS
Claro! Se meus antepassados vieram, é claro que os dele vieram também.
Que é que o senhor quer insinuar? Quer dizer por acaso que a mãe
dele…
PADRE
Mas, uma cachorra!…
ANTÓNIO MORAIS
O quê?
PADRE
Uma cachorra.
ANTÓNIO MORAIS
Repita.
PADRE
Não vejo nada de mal em repetir, não é uma cachorra
mesmo?
ANTÔNIO MORAIS
Padre, não o mato agora mesmo porque o senhor é um padre e
está louco, mas vou me queixar ao bispo. (A João.) Você
tinha razão. Apareça nos Angicos, que não se arrependerá.
Sai.
PADRE, aflitíssimo
Mas me digam pelo amor de Deus o que foi que eu disse.
JOÃO GRILO
Nada, nada, padre. Esse homem só pode estar louco com essa mania
de ser grande. Até ao cachorro ele quer dar carta de nobreza!
PADRE
Faço tudo para agradá-lo e vai-se queixar ao bispo. Ah se
fosse no tempo do outro! Aquele, sim, era um santo, a coisa mais fácil
do mundo era satisfazê-lo. Esse dagora é uma águia, um
verdadeiro administrador. Será que vai me suspender?
JOÃO GRILO
Que nada, padre, antes disso eu vou aos Angicos e arranjo tudo.
PADRE
Arranja mesmo, João? Como?
JOÃO GRILO
Deixe comigo. Antônio Morais começou a ser meu amigo de repente.
Não viu como me convidou para ir aos Angicos? Agora é assim,
João Grilo pra lá, Antônio Morais pra cá… Está
completamente perturbado.
PADRE
Pois arranje as coisas, João, que você não se arrepende.
JOÃO GRILO
Chama-se já está arranjado. Agora, eu queria um favorzinho
do senhor padre.
PADRE
Eu já estava esperando por uma dessas. Nessa minha profissão
a gente se acostuma de tal modo com isso de dar e tomar… O próprio
direito à graça só se consegue cumprindo os mandamentos
JOÃO GRILO
O que eu vou pedir é coisa muito mais fácil do que cumprir
os mandamentos.
PADRE
Diga então o que é!
JOÃO GRILO
O cachorro de meu patrão está muito mal e eu queria que o
senhor benzesse o bichinho.
PADRE
De novo? Mas é possível?
JOÃO GRILO
É mais do que possível. O senhor não ia benzer o do
major Antônio Morais?
PADRE
E de quem é que você está falando?
JOÃO GRILO
De meu patrão.
PADRE
E seu patrão não é Antônio Morais?
JOÃO GRILO
Não.
PADRE
Mas você ainda agora disse isso aqui, João.
JOÃO GRILO
Eu? Quem disse isso foi Chicó.
Chicó dá um grande salto de surpresa.
PADRE
E quem é seu patrão?
JOÃO GRILO
O padeiro.
PADRE
E o cachorro dele também está doente?
JOÃO GRILO
Está.
PADRE
Também, oh terra para ter cachorro doente só é essa!
JOÃO GRILO
E a mania agora é benzer, benzer tudo quanto é de bicho,
Ouvem-se, fora, grandes gritos de mulher.
JOÃO GRILO
É a velha, com o cachorro. Como é, o senhor benze ou não
benze?
PADRE
Pensando bem, acho melhor não benzer. O bispo está aí
e eu só benzo se ele der licença. (À esquerda aparece
a mulher do padeiro e o padre corre para ele.) Pare, pare! (Aparece o padeiro.)
Parem, parem! Um momento. Entre o senhor e entre a senhora: o cachorro fica
lá!
MULHER
Ai, padre, pelo amor de Deus, meu cachorro está morrendo. É
o filho que eu conheço neste mundo, padre. Não deixe o cachorrinho
morrer, padre.
PADRE, comovido
Pobre mulher! Pobre cachorro!
João Grilo estende-lhe um lenço e ele se assoa ruidosamente.
PADEIRO
O senhor benze o cachorro, Padre João?
JOÃO GRILO
Não pode ser, O bispo está aí e o padre só benzia
se fosse o cachorro do major Antônio Morais, gente mais importante,
porque senão o homem pode reclamar.
PADEIRO
Que história é essa? Então Vossa Senhoria pode benzer
o cachorro do major Antônio Morais e o meu não?
PADRE, apaziguador
Que é isso, que é isso?
PADEIRO
Eu é que pergunto: que é isso? Afinal de contas eu sou presidente
da Irmandade das Almas, e isso é alguma coisa.
JOÃO GRILO
É, padre, o homem aí é coisa muita. Presidente da Irmandade
das Almas! Para mim isso, é um caso claro de cachorro bento. Benza
logo o cachorro e tudo fica em paz.
PADRE
Não benzo, não benzo e acabou-se! Não estou pronto
para fazer essas coisas assim de repente. Sem pensar, não.
MULHER, furiosa
Quer dizer, quando era o cachorro do major, já estava tudo pensado,
para benzer o meu é essa complicação! Olhe que meu marido
é presidente e sócio benfeitor da Irmandade Almas! Vou pedir
a demissão dele!
PADEIRO
Vai pedir minha demissão!
MULHER
De hoje em diante não me sai lá de casa nem um pão
para a Irmandade!
PADEIRO
Nem um pão!
MULHER
E olhe que os pães que vêm para aqui são de graça!
PADEIRO
São de graça!
MULHER
E olhe que as obras da igreja é ele quem está custeando!
PADEIRO
Sou eu que estou custeando!
PADRE, apaziguador
Que é isso, que é isso!
MULHER
O que é isso? É a voz da verdade, padre João. O senhor
agora vai ver quem é a mulher do padeiro!
JOÃO GRILO
Ai, ai, ai e a Senhora, o que é que é do padeiro?
MULHER
A vaca…
CHICÓ
A vaca?!
MULHER
A vaca que eu mandei para cá, para fornecer leite ao vigário
tem que ser devolvida hoje mesmo.
PADEIRO
Hoje mesmo!
PADRE
Mas até a vaca? Sacristão, sacristão!
JOÃO GRILO
A vaca também é demais. (Arremedando o padre.) Sacristão,
sacristão! O Sacristão aparece à porta. É um sujeito
magro, pedante, pernóstico, de óculos azuis que ele ajeita com
as duas mãos de vez em quando, com todo cuidado. Pára no limiar
da cena, vindo da igreja, e examina todo o pátio.
JOÃO GRILO
Sacristão, a vaca da mulher do padeiro tem que sair!
SACRISTÃO
Um momento. Um momento. Em primeiro lugar, o cuidado da casa de Deus e de
seus ar redores. Que é isso? Que é isso?
Ele domina toda a cena, inclusive o Padre que tem Uma confiança enorme
na empáfia) segurança e hipocrisia do secretário.
MULHER E PADEIRO, ao mesmo tempo, em resposta pergunta do Sacristão
É o padre…
SACRISTÃO, afastando os dois com a mão e olhando para a direita
Que é aquilo? Que é aquilo?
Sua afetação de espanto é tão grande, que todos
se voltam para direção em que ele olha.
SACRISTÃO
Mas um cachorro morto no pátio da casa de Deus?
PADEIRO
Morto?
MULHER, mais alto
Morto?
SACRISTÃO
Morto, sim. Vou reclamar à Prefeitura.
PADEIRO, correndo e voltando-se do limiar verdade, morreu.
MULHER
Ai, meu Deus, meu cachorrinho morreu.
Correm todos para a direita, menos João Grilo e Chicó.
Este vai para a esquerda, olha a cena que se desenrola lá fora, e
fala com grande gravidade na voz.
CHICÓ
É verdade, o cachorro morreu. Cumpriu sua sentença e encontrou-se
com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de
nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação
que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque
tudo o que é vivo morre.
JOÃO GRILO, suspirando.
Tudo o que é vivo morre. Está aí uma coisa que eu não
sabia! Bonito, Chicó, onde foi que você ouviu isso? De sua cabeça
é que não saiu, que eu sei.
CHICÓ
Saiu mesmo não, João. Isso eu ouvi um padre dizer uma vez.
(Esta cena, a partir daqui, é cortável, a critério do
encenador, até a frase “Mas deixe de agonia, que o povo vem aí”.)
Foi no dia em que meu pirarucu morreu.
JOÃO GRILO
Seu pirarucu?
CHICÓ
Meu, é um modo de dizer, porque, para falar a verdade, acho que eu
é que era dele.
Nunca lhe contei isso não?
JOÃO GRILO
Não, já ouvi falar de homem que tem peixe, mas de peixe que
tem homem, é a primeira vez.
CHICÓ
Foi quando eu estive no Amazonas. Eu tinha amarrado a corda do arpão
em redor do corpo, de modo que estava com os braços sem movimento.
Quando ferrei o bicho, ele deu um puxavante maior e eu caí no rio.
JOÃO GRILO
O bicho pescou você!…
CHICÓ
Exatamente, João, o bicho me pescou. Para encurtar a história,
o pirarucu me arrastou rio acima três dias e três noites.
JOÃO GRILO
Três dias e três noites? E você não sentia fome
não, Chicó?
CHICÓ
Fome não, mas era uma vontade de fumar danada. E o engraçado
foi que ele deixou para morrer bem na entrada de uma vila, de modo que eu
pudesse escapar. O enterro foi no outro dia e nunca mais esqueci o que o padre
disse, na beira da cova.
JOÃO GRILO
E como o avistaram da vila?
CHICÓ
Ah, eu levantei um braço e acenei, acenei, até que uma lavadeira
me avistou e vieram me soltar.
JOÃO GRILO
E você não estava com os braços amarrados, Chicó?
CHICÓ
João, na hora do aperto, dá-se um jeito a tudo.
JOÃO GRILO
Mas que jeito você deu?
CHICÓ
Não sei, só sei que foi assim. Mas deixe de agonia, que o
povo vem aí.
MULHER, entrando.
Ai, ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai,ai,ai!
JOÃO GRILO, mesmo tom
Ai, ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai, ai, ai!
Dá uma cotovelada em CHICÓ.
CHICÓ, obediente
Ai, ai, ai, ai, ai, Ai, ai, ai, ai, ai!
Essa lamentação deve ser um mal entendido a representada de
propósito, ritmada como choro de palhaço de circo.
SACRISTÃO, entrando com o padre e o padeiro
Que é isso, que é isso? Que barulho é esse na porta
da casa de Deus?
PADRE
Todos devem se resignar.
MULHER
Se o senhor tivesse benzido o bichinho, a essas horas ele ainda estava vivo.
PADRE
Qual, qual, quem sou eu!
MULHER
Mas tem uma coisa, agora o senhor enterra o cachorro.
PADRE
Enterro o cachorro?
MULHER
Enterra e tem que ser em latim. De outro jeito não serve, não
é?
PADEIRO
É, em latim não serve.
MULHER
Em latim é que serve!
PADEIRO
É, em latim é que serve!
PADRE
Vocês estão loucos! Não enterro de jeito nenhum.
MULHER
Está cortado o rendimento da irmandade.
PADRE
Não enterro.
PADEIRO
Está cortado o rendimento da irmandade!
PADRE
Não enterro.
MULHER
Meu marido considera-se demitido da presidência.
PADRE
Não enterro.
PADEIRO
Considero-me demitido da presidência!
PADRE
Não enterro.
MULHER
A vaquinha vai sair daqui imediatamente.
PADRE
Oh mulher sem coração!
MULHER
Sem coração, porque não quero ver meu cachorrinho comido
pelos urubus? O senhor enterra!
Padre
Ai meus dias de seminário, minha juventude heróica e firme!
MULHER
Pão para a casa do vigário só vem agora dormido e com
o dinheiro na frente. Enterra ou não enterra?
PADRE
Oh mulher cruel
MULHER
Decida-se, Padre João.
PADRE
Não me decido coisa nenhuma, não tenho mais idade para isso.
Vou é me trancar na igreja e de lá ninguém me tira.
Entra na igreja, correndo.
JOÃO GRILO, chamando o patrão à parte.
Se me dessem carta branca, eu enterrava o cachorro.
PADEIRO
Tem a carta.
JOÃO GRILO
Posso gastar o que quiser?
PADEIRO
Pode.
MULHER
Que é que vocês estão combinando aí?
JOÃO GRILO
Estou aqui dizendo que, se é desse jeito, vai ser difícil
cumprir o testamento do cachorro, na parte do dinheiro que ele deixou para
o padre e para o sacristão.
SACRISTÃO
Que é isso? Que é isso? Cachorro com testamento?
JOÃO GRILO
Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da
igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já
doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo
na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, com a minha
patroa, é claro, que ele queria ser abençoado pelo padre e morrer
como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão
prometesse que vinha encomendar a bênção e que, no caso
de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria
no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para
o sacristão.
SACRISTÃO, enxugando uma lágrima.
Que animal inteligente! Que sentimento nobre! (Calculista.) E o testamento?
Onde está?
JOÃO GRILO
Foi passado em cartório, é coisa garantida. Isto é,
era coisa garantida, porque agora o padre vai deixar os urubus comerem o cachorrinho
e, se o testamento for cumprido nessas condições, nem meu patrão
nem minha patroa estão livres de serem perseguidos pela alma.
CHICÓ, escandalizado
Pela alma?
JOÃO GRILO
Alma não digo, porque acho que não existe alma de cachorro,
mas assombração de cachorro existe e é uma das mais perigosas.
E ninguém quer se arriscar assim a desrespeitar a vontade do morto.
MULHER, duas vezes.
Ai, ai, ai, ai, ai!
JOÃO GRILO E CHICÓ, mesma cena.
SACRISTÃO, cortante
Que é isso, que é isso? Não há motivo para essas
lamentações. Deixem tudo comigo.
Entra apressadamente na igreja.
PADEIRO
Assombração de cachorro? Que história é essa?
JOÃO GRILO
Que história é essa? Que história é essa é
que o cachorro vai se enterrar e é em latim.
PADEIRO
Pode ser que se enterre, mas em assombração de cachorro eu
nunca ouvi falar.
CHICÓ
Mas existe. Eu mesmo já encontrei uma.
PADEIRO, temeroso
Quando? Onde?
CHICÓ
Na passagem do riacho de Cosme Pinto.
PADEIRO
Tinham me dito que o lugar era assombrado, mas nunca pensei que se tratasse
de assombração de cachorro.
CHICÓ
Se o lugar é assombrado, não sei. O que eu sei é que
eu ia atravessando o sangrador do açude e me caiu do bolso nágua
uma prata de dez tostões. Eu ia com meu cachorro e já estava
dando a prata por perdida, quando vi que ele estava assim como quem está
cochichando com outro. De repente o cachorro mergulhou, e trouxe o dinheiro,
mas quando fui verificar só encontrei dois cruzados.
PADEIRO
Oi! E essas almas de lá têm dinheiro trocado?
CHICÓ
Não sei, só sei que foi assim.
O Sacristão e o Padre saem da igreja.
SACRISTÃO
Mas eu não já disse que fica tudo por minha conta?
PADRE
Por sua conta como, se o vigário sou eu?
SACRISTÃO
O vigário é o senhor, mas quem sabe quanto o testamento sou
eu.
PADRE
Hem? O testamento?
SACRISTÃO
Sim o testamento.
PADRE
Mas que testamento é esse?
SACRISTÃO
O testamento do cachorro.
PADRE
E ele deixou testamento?
PADEIRO
Só para o vigário deixou dez contos.
PADRE
Que cachorro inteligente! Que sentimento nobre!
JOÃO GRILO
E um cachorro desse ser comido pelos urubus! É a maior das injustiças.
PADRE
Comido, ele? De jeito nenhum. Um cachorro desse não pode ser comido
pelos urubus.
Todos aplaudem, batendo palmas ritmadas e discretas e o Padre agradece,
fazendo mesuras. Mas de repente lembra-se do Bispo.
PADRE, aflito.
Mas que jeito pode-se dar nisso? Estou com tanto medo do bispo! E tenho
medo de cometer um sacrilégio!
SACRISTÃO
Que é isso, que é isso? Não se trata de nenhum sacrilégio.
Vamos enterrar uma pessoa altamente estimável, nobre e generosa, satisfazendo,
ao mesmo tempo, duas outras pessoas altamente estimáveis (Aqui o padeiro
e a mulher fazem uma curvatura a que o sacristão responde com outra
igual), nobres (Nova curvatura.) e, sobretudo, generosas. (Novas curvaturas.)
Não vejo mal nenhum nisso.
PADRE
É, você não vê mal nenhum, mas quem me garante
que o bispo também não vê?
SACRISTÃO
O bispo?
PADRE
Sim, o bispo. É um grande administrador, uma águia a quem
nada escapa.
JOÃO GRILO
Ah, é um grande administrador? Então pode deixar tudo por
minha conta, que eu garanto.
PADRE
Você garante?
JOÃO GRILO
Garanto. Eu teria medo se fosse o anterior, que era um santo homem. Só
o jeito que ele tinha de olhar para a gente me fazia tirar o chapéu.
Mas com esses grandes administradores eu me entendo que é uma beleza.
SACRISTÃO
E mesmo não será preciso que Vossa Reverendíssima intervenha.
Eu faço tudo.
PADRE
Você faz tudo?
SACRISTÃO
Faço.
MULHER
Em latim?
SACRISTÃO
Em latim.
PADEIRO
E o acompanhamento?
JOÃO GRILO
Vamos eu e Chicó. Com o senhor e sua mulher, acho que já dá
um bom enterro.
PADEIRO
Você acha que está bem assim?
MULHER
Acho.
PADEIRO
Então eu também acho.
SACRISTÃO
Se é assim, vamos ao enterro. (João Grilo estende a mão
a Chicó, que a aperta calorosamente.) Como se chamava o cachorro?
MULHER, chorosa
Xaréu.
SACRISTÃO, enquanto se encaminha para a direita em tom de canto gregoriano.
Absolve, Domine, animas omnium fidelium defunctorum ab omni vinculi delictorum.
TODOS
Amém.
Saem todos em procissão, atrás do sacristão, com exceção
do padre, que fica um momento silencioso, levando depois a mão à
boca, em atitude angustiada, e sai correndo para a igreja.
Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador,
marcando-se o fim do primeiro ato. E pode-se continuá-Lo, com a entrada
do Palhaço.
PALHAÇO
Muito bem, muito bem, muito bem. Assim se conseguem as coisas neste mundo.
E agora, enquanto Xaréu se enterra “em latim”, imaginemos
o que se passa na cidade. Antônio Morais saiu furioso com o padre e
acaba de ter uma longa conferência com o bispo a esse respeito. Este,
que está inspecionando sua diocese, tem que atender a inúmeras
conveniências. Em primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja,
que o padre, afinal de contas, representa na paróquia. Mas tem também
que pensar em certas conjunturas e transigências, pois Antônio
Morais é dono de todas as minas da região e é um homem
poderoso, tendo enriquecido fortemente o patrimônio que herdou, e que
já era grande, durante a guerra, em que o comércio de minérios
esteve no auge. De modo que lá vem o bispo. Peço todo o silêncio
e respeito do auditório, porque a grande figura que se aproxima é,
além de bispo, um grande administrador e político. Sou o primeiro
a me curvar diante deste grande príncipe da Igreja, prestando-lhe minhas
mais carinhosas homenagens.
Curva-se profundamente e o Bispo entra pela direita, acompanhado pelo Frade.
O Bispo é um personagem medíocre, profundamente enfatuado, enquanto
o Frade, a quem todos tratam com desprezo mal disfarçado, é
a alegria e bondade em pessoa. Ante a curvatura do Palhaço, o Bispo
faz um gesto soberano, mandando-o erguer-se. O Frade aponta o Palhaço
e dispara na risada, tapando a boca com a mão, mas o Bispo olha-o severamente
e o Frade baixa a cabeça, intimidado. Nova curvatura do Palhaço,
novo gesto do Bispo.
PALHAÇO, animado pelo acolhimento
Muito bem, olá, como está Vossa Reverendíssima, como
vai essa prosápia, essa bizarria.
Enquanto fala, vai fazendo as graças ingênuas de palhaço,
pendurando o chapéu e o paletó, que caem ao chão, num
cabide imaginário. Já em mangas de camisa, dirige-se ao Bispo
com os braços largamente abertos, como quem vai abraçá-lo,
mas o Bispo ergue a mão num gesto de desprezo e o Palhaço ri
amarelo, parando à espera.
BISPO
Retro. Onde está o padre?
PALHAÇO
Deve estar na igreja.
O Bispo volta-se para o Frade, fazendo-lhe um aceno majestoso e descuidado.
O Frade corre para a igreja.
BISPO
É horrível ter de viver com um débil mental às
costas, mas meu antecessor gostava dele e não quis desprestigiá-lo,
porque afinal de contas ele era meu colega, de modo que conservei essa lesma
no lugar em que a encontrei.
O Palhaço concorda, fazendo uma grande curvatura, e vem falar ao
público.
PALHAÇO
E agora afasto-me prudentemente, porque a vizinhança desses grandes
administradores é sempre uma coisa perigosa e a própria Igreja
ensina que o melhor é evitar as ocasiões. (Ao Bispo.) Peço
licença a Vossa Excelência Reverendíssima, mas tenho que
me retirar.
Curvaturas do Palhaço e do Bispo. O Palhaço sai e, no mesmo
instante, o Frade volta com o Padre.
PADRE, nervoso
Não esperava Vossa Reverendíssima aqui agora, de modo que…
BISPO
Deixemos isso, passons, como dizem os franceses. Mas há coisas que
não posso deixar de lado, com essa facilidade.
PADRE
Não estou entendendo.
BISPO, severo
Pois entenderá já. Quando eu lhe disser que Antônio
Morais falou comigo…
PADRE, sorridente
Antônio Morais falou com o senhor!
Bispo
Falou sim, e foi para reclamar de seu procedimento para com ele.
PADRE
Não entendo o que Vossa Reverendíssima quer dizer.
BISPO
Não vejo dificuldade nenhuma em se entender isso, Padre João.
Antônio Morais veio a mim se queixar de sua brutalidade para com ele.
PADRE
Como é?
BISPO
Vamos deixar de brincadeiras, O senhor sabe perfeitamente a que estou me
referindo. Por que chamou a mulher dele de cachorra?
PADRE
Eu?
Chamei,
BISPO
Sim, o senhor. Quer me levar ao ridículo, é, Padre João?
PADRE
Não, nunca, Deus me livre. Mas juro que não chamei a mulher
dele de cachorra.
BISPO
Chamou, Padre João.
PADRE
Não chamei, Senhor Bispo.
BISPO
Chamou, Padre João.
PADRE
Não chamei, Senhor Bispo.
BISPO, elevando a voz Chamou, Padre João.
PADRE, resignado
Chamei, Senhor Bispo.
BISPO
Afinal, chamou ou não chamou?
PADRE
Não chamei, mas se Vossa Reverendíssima diz que eu chamei
é porque sabe mais do que eu.
BISPO
Então não é verdade que ele veio pedir que o senhor
lhe abençoasse o filho e que você chamou a mulher dele de cachorra?
PADRE
O filho?
BISPO
Sim, o filho dele que está doente!
PADRE
E é o filho dele que está doente?
BISPO
Claro que é, não é o que estou dizendo?
PADRE
O Grilo tinha me dito que era o cachorro!
BISPO
O grilo? Padre João, você quer brincar comigo? Que história
de grilo e cachorro é essa?
PADRE
Vossa Reverendíssima perdoe, agora eu entendo tudo.
BISPO
Mas acontece que agora quem começa a não entender sou eu.
PADRE
A culpa é do Grilo.
BISPO
Do grilo?
PADRE
De João Grilo.
BISPO
Quem é João Grilo?
PADRE
Um canalhinha amarelo que mora aqui e trabalha na padaria. Chegou dizendo
que o cachorro de Antônio Morais estava doente e que ele queria que
eu o benzesse. Quando o homem chegou, a confusão foi a maior do mundo.
Agora eu entendo tudo. Mas ele me paga.
JOÃO GRILO, cantando fora:
Lampião e Maria Bonita.
Pensava que nunca morria:
Morreu à boca da noite,
Maria Bonita ao romper do dia.
Entram João Grilo e Chicó.
JOÃO GRILO
Padre João, querido Padre João, está tudo pronto e
nós muito satisfeitos com o senhor.
PADRE
João Grilo, querido João Grilo, nós também estamos
satisfeitíssimos com o senhor.
JOÃO GRILO
Qual, quem sou eu, um pobre Grilo que não vale nada… É bondade
de Vossa Reverendíssima.
PADRE
É mesmo, é bondade minha, porque você não passa
de um amarelo muito safado!
JOÃO GRILO
Está ouvindo, Chicó? Eita, eu, se fosse você, reagia.
CHICÓ
Eu?
JOÃO GRILO
Sim, eu, se fosse você, reagia. Não admito que ninguém
diga isso de um amigo meu na minha frente.
CHICÓ
Mas o amigo é você!
JOÃO GRILO
E então? Reaja, Chicó, seja homem!
CHICÓ
Eu, não. Reaja você!
JOÃO Grilo
Você não é homem não, Chicó?
CHICÓ
Eu sou homem mas sou frouxo.
JOÃO GRILO
Muito bem, se é assim, eu falo. Por que
Vossa Reverendíssima me chamou de safado?
PADRE
Porque você é um amarelo muito safado.
JOÃO GRILO
Pois se esqueceram de botar isso na minha certidão de idade!
O Padre tenta agredir João mas o Frade o impede.
PADRE
Como é que você veio me dizer que o cachorro de Antônio
Morais estava doente, fazendo-me chamar a mulher dele de cachorra?
Parte 2
JOÃO GRILO
Ah, e a safadeza é essa? Isso é nada, Padre João! Muito
pior é enterrar o cachorro em latim, como se ele fosse cristão,
e nem por isso eu vou chamá-lo de safado.
PADRE, enorme grito
Ai!
BISPO
Que é isso?
PADRE
Uma dor que me deu de repente. Ai!
JOÃO GRILO
Coitado, não tem que ver o grito que minha patroa dava enquanto se
fazia o enterro do cachorro.
PADRE
Ai, João Grilo, meu querido, me acuda que estou morrendo.
JOÃO GRILO
Eu ? Quem sou eu para socorrer padre, eu, um amarelo muito safado!
PADRE
Eu retiro o que disse, João.
JOÃO GRILO
Retirando ou não retirando, o fato é que o cachorro enterrou-se
em latim.
BISPO
Um cachorro? Enterrado em latim?
PADRE
Enterrado latindo, Senhor Bispo. Au, au, au, não sabe?
BISPO
Não sei não senhor, nunca vi cachorro morto latir… Que história
é essa?
PADRE
Ai! Ai! Ai
SACRISTÃO, entrando
Que é isso? Que é isso?
JOÃO GRILO
É o bispo que quer saber que história é essa.
SACRISTÃO, fazendo mesuras
Senhor Bispo, excelente e reverendíssimo Senhor Bispo… Qual história?
JOÃO GRILO
Essa de padre e sacristão se juntarem para enterrar um cachorro em
latim.
SACRISTÃO
Ai!
JOÃO GRILO
Que aperreio é esse? A desgraça agora foi que começou!
BISPO
Então houve isso? Um cachorro enterrado em latim?
JOÃO GRILO
E então? É proibido?
BISPO
Se é proibido? Deve ser, porque é engraçado demais
para não ser. É proibido! É mais do que proibido! Código
Canônico, artigo 1627, parágrafo único, letra k. Padre,
o senhor vai ser suspenso.
PADRE
Ai!
JOÃO GRILO
Vossa Excelência Reverendíssima vai suspender o padre?
BISPO
Vou, por que não? Acha pouco o que ele fez? Uma vergonha! Uma desmoralização!
PADRE
Ai!
BISPO
E o sacristão também vai pular fora de seu emprego!
SACRISTÃO
Ai!
BISPO
Quanto o senhor, Senhor João Grilo, vai ver agora o que é
administrar. O senhor vai-se arrepender de suas brincadeiras, jogando a Igreja
contra Antônio Morais. Uma vergonha, uma desmoralização!
JOÃO GRILO
É mesmo, é uma vergonha. Um cachorro safado daquele se atrever
a deixar três contos para o sacristão, quatro para o padre e
seis para o bispo, é demais.
BISPO, mão em concha no ouvido
Como?
JOÃO GRILO
Ah! E o senhor não sabe da história do testamento ainda não?
Bispo
Do testamento? Que testamento?
CHICÓ
O testamento do cachorro.
BISPO
Testamento do cachorro?
PADRE, animando-se.
Sim, o cachorro tinha um testamento. Maluquice de sua dona. Deixou três
contos de réis para o sacristão; quatro para a paróquia
e seis para a diocese.
BISPO
É por isso que eu vivo dizendo que os animais também são
criaturas de Deus. Que animal interessante! Que sentimento nobre!
PADRE, arriscando
Para atender à vontade da dona, deixei que o sacristão acompanhasse
o…
BISPO, sorridente
O enterro!
PADRE, sorridente
Sim, o enterro.
BISPO
Em latim?
SACRISTÃO
Nada, eu disse aí umas quatro ou cinco coisas que sabia, coisa pouca.
JOÃO GRILO, gregoriano
Não sei quê, não sei quê, defunctorum.
CHICÓ, mesmo tom
Amém.
Bispo
É preciso deliberar. É assunto para se discutir com muito
cuidado. Vamos reunir o concílio.
Encaminha-se para a igreja. O Sacristão quer ir logo depois dele,
mas o Padre o impede e toma para si o lugar de honra. O Frade os segue.
SACRISTÃO, do limiar, antes de entrar na Igreja
Na verdade, vê-se logo que é um grande administrador.
CHICÓ
Você ainda se desgraça numa embrulhada dessas. Eles viram a
bexiga?
JOÃO GRILO, exibindo-a
Que nada, está aqui.
CHICÓ
Se a mulher do padeiro descobrir que você tirou a bexiga do cachorro
antes do enterro…
JOÃO GRILO
Que é que tem isso? Eu estava precisando dela para um negócio
que estou planejando e a necessidade desculpa tudo. O cachorro já estava
morto, não precisava mais dela, eu tirei porque estava precisando!
Ela não tem nada a reclamar.
CHICÓ
É, o cachorro já estava morto, mas você sabe como esse
povo rico é cheio de agonia com os mortos. Eu, às vezes, chego
a pensar que só quem morre completamente é pobre, porque com
os ricos a agonia continua por tanto tempo depois da morte, que chega a parecer
que ou eles não morrem direito ou a morte deles é outra.
JOÃO GRILO
Você ainda não viu nada! Eu ter tirado a bexiga do cachorro
não quer dizer coisa nenhuma. Danado é o gato que tomar o lugar
do morto.
CHICÓ
Do morto? Que morto?
JOÃO GRILO
O cachorro, companheiro. Você vai ver uma coisa.
CHICÓ
Não estou entendendo nada.
JOÃO GRILO
Pois vai entender daqui a pouco. Vou entrar também no testamento
do cachorro.
CHICÓ
Como, João?
JOÃO GRILO
Eu não lhe disse que a fraqueza da mulher do patrão era bicho
e dinheiro?
CHICÓ
Disse.
JOÃO GRILO
Pois vou vender a ela, para tomar o lugar do cachorro, um gato maravilhoso,
que descome dinheiro.
CHICÓ
Descome, João?
JOÃO GRILO
Sim, descome, Chicó. Come, ao contrário.
CHICÓ
Está doido, João! Não existe essa qualidade de gato.
JOÃO GRILO
Muito mais difícil de existir é pirarucu que pesca gente e
você mesmo já foi pescado por um.
CHICÓ
É mesmo, João, do jeito que as coisas vão eu não
me admiro mais de nada.
JOÃO GRILO
Para uma pessoa cuja fraqueza é dinheiro e bicho não vejo
nada melhor do que um bicho que descome dinheiro.
CHICÓ
João, não é duvidando não, mas como é
que esse gato descome dinheiro?
JOÃO GRILO
É isso que é preciso combinar com você. A mulher vem
já para cá, cumprir o testamento. Eu deixei o gato amarrado
ali fora. Você vá lá e enfie essas pratas de dez tostões
no desgraçado do gato, entendeu?
CHICÓ
Entendi.
JOÃO GRILO
Quando eu gritar por você, venha, me entregue o gato e deixe o resto
por minha conta.
CHICÓ, vai sair mas volta
E o que é que eu ganho nisso tudo?
JOÃO GRILO
Uma parte no testamento do cachorro.
CHICÓ, idem
E se o negócio der errado?
JOÃO GRILO
Lá vem você com suas latomias! Quer ou não quer? Se
não quer diga logo, que eu arranjo outro sócio.
CHICÓ
Quero.
JOÃO GRILO
Então vá.
CHICÓ, idem
E a bexiga do cachorro?
JOÃO GRILO
Homem, vá-se embora pelo amor de Deus que a mulher vem por aí!
Espere. A bexiga é que vai nos garantir se o negócio der errado.
Leve-a, encha-a de sangue e bote no peito dentro da camisa. Vá, vá.
Chicó faz uma saudação à mulher, que vem entrando,
com dois pacotinhos de dinheiro, e sai.
JOÃO GRILO
Como vai a senhora? Já está mais consolada?
MULHER
Consolada? Como, se além de perder meu cachorro, ainda tive de gastar
treze contos para ele se enterrar?
JOÃO GRILO
Está aí, o dinheiro?
MULHER
Está. Entregue ao padre e ao sacristão.
JOÃO GRILO
Um momento. O que é que tem escrito aqui?
MULHER
Sacristão.
JOÃO GRILO
E aqui?
MULHER
Padre.
João GRILO
Pois por favor, escreva aqui “bispo e padre”.
MULHER
Bispo e padre? Por quê?
JOÃO GRILO
Porque houve aqui um pequeno arranjo e o bispo também teve que entrar
no testamento.
MULHER, escrevendo
Que complicação! E se ao menos eu lucrasse alguma coisa…
Mas perdi foi meu cachorro.
JOÃO GRILO
Quem não tem cão caça com gato.
MULHER
Hem?
JOÃO GRILO
Quem não tem cão caça com gato e eu arranjei um gato
que é uma beleza para a senhora.
MULHER
Um gato?
JOÃO GRILO
Um gato.
MULHER
E é bonito?
JOÃO GRILO
Uma beleza.
MULHER
Ai, João, tragapara eu ver! Chega a me dar uma agonia. Traga, João,
já estou gostando do bichinho. Gente, não, é povo que
não tolero, mas bicho dá gosto.
JOÃO GRILO
Pois então vou buscá-lo.
MULHER
Espere. Sabe do que mais, João? Não vá buscar o gato
que isso só me traz aborrecimento e despesa. Não viu o que aconteceu
com o cachorro? Terminei tendo que fazer o testamento.
JOÃO GRILO
Ah, mas aquilo é porque foi o cachorro. Com meu gato é diferente…
MULHER
Diferente por quê?
JOÃO GRILO
Porque, em vez de dar despesa, esse gato dá lucro.
MULHER
Fora vaca, cavalo e criação, bicho que dá lucro não
existe.
JOÃO GRILO
Não existe se não… Eu fico meio encabulado de dizer!
MULHER
Que é isso, João, você está em casa! Diga!
JOÃO GRILO
É que o gato que eu lhe trouxe, descome dinheiro.
MULHER
Descome dinheiro?
JOÃO GRILO
Descome, sim.
MULHER
Essa eu só acredito vendo.
JOÃO GRILO
Pois vai ver. Chicó!
MULHER
Ah, e é história de Chicó? Logo vi.
JOÃO GRILO
Nada de história de Chicó, mas foi ele quem guardou o bicho.
Chicó!
CHICÓ, entrando com o gato.
Tome seu gato. Eu não tenho nada com isso.
João dá-lhe uma cotovelada e apresenta o gato à mulher.
JOÃO GRILO
Está aí o gato.
MULHER
E daí?
JOÃO GRILO
É só tirar o dinheiro.
MULHER
Pois tire.
JOÃO GRILO virando o gato para Chicó, com o rabo levantado.
Tire aí, Chicó.
CHICÓ
Eu não, tire você.
JOÃO GRILO
Deixe de luxo, Chicó, em ciência tudo é natural.
CHICÓ
Pois se é natural, tire.
JOÃO GRILO
Então tiro. (Passa a mão no traseiro do gato e tira uma prata
de cinco tostões.) Está aí, cinco tostões que
o gato lhe dá de presente.
MULHER
Muito obrigada, mas se você não se zanga quero ver de novo.
JOÃO GRILO
De novo?
MULHER
Vi você passar a mão e sair com o dinheiro mas agora quero
ver é o parto.
JOÃO GRILO
O parto?
MULHER
Sim, quero ver o dinheiro sair do gato.
JOÃO GRILO
Pois então veja
MULHER, depois da nova retirada.
Nossa Senhora, é mesmo. João, me arranje esse gato pelo amor
de Deus.
JOÃO GRILO
Arranjar é fácil, agora, pelo amor de Deus é que não
pode ser, porque sai muito barato. Amor de Deus é coisa que eu tenho,
dê ou não lhe dê o gato.
MULHER
Quer dizer que não tem jeito de eu arranjar esse gato?
JOÃO GRILO
De modo nenhum, há um jeito e é até fácil.
MULHER
Pois diga qual é, João.
JOÃO GRILO
Deixe eu entrar no testamento do cachorro.
MULHER
Pois você entra. Por quanto vende o gato?
JOÃO GRILO
Um conto, está bom?
MULHER
Esta não, está caro.
JOÃO GRILO
Mas por um gato que descome dinheiro!
MULHER
Já fiz a conta, vou levar dois mil dias só para tirar o preço.
JOÃO GRILO
Mas ele descome mais de uma vez por dia, a senhora não viu?
MULHER
Mas ele pode morrer. Só dou quinhentos e se você não
aceitar será demitido da padaria.
JOÃO GRILO
Está certo, fica pelos quinhentos.
MULHER
Tome lá. Passe o gato, Chicó. Meu Deus, que gatinho lindo!
Agora a coisa é outra, tenho um filho de novo e vou tirar o prejuízo.
Sai contentíssima.
CHICÓ
João,adeus. Eu vou-me embora.
JOÃO GRILO
Nada disso, tome lá a metade do dinheiro e deixe de ser mole.
CHICÓ
Homem, eu não tenho coragem de continuar sempre, é melhor
fugir logo, enquanto tudo está em paz.
JOÃO GRILO
Não adianta, Chicó, você já entrou na história
e agora é tarde porque a mulher descobre já. Quantas pratas
você conseguiu meter?
CHICÓ
Três!
JOÃO GRILO
Então o negócio estoura já.
CHICÓ
Meu Deus, se eu sair com vida dessa história, subo a serra do Pico
de joelhos.
JOÃO GRILO
Deixe de moleza, Chicó; Você encheu a bexiga de sangue?
CHICÓ, apontando a barriga
Enchi, está aqui.
JOÃO GRILO
Então está tudo garantido.
Entram o Bispo, o Padre, o Frade e o Sacristão.
BISPO
Não resta nenhuma dúvida, foi tudo legal, certo e permitido.
Código Canônico, artigo 368, parágrafo terceiro, letra
b.
SACRISTÃO
Quer dizer que não agi mal?
BISPO
Muito pelo contrário, você agiu muito bem.
JOÃO GRILO
E aqui está a prova de que você agiu muito bem. (Entregando
os pacotes.) “Bispo e padre” e “sacristão”.
SACRISTÃO, falsamente admirado Que é isso? Que é isso?
JOÃO GRILO
O testamento do cachorro, a prova de que você agiu bem, de acordo
com o Código Canônico, artigo não sei quanto, parágrafo
sete, letra b.
PADRE
Ah, você sabe ler, João?
JOÃO GRILO
Não, conheci pelo peso.
PADRE, dividindo o pacote
Senhor Bispo…
Bispo
Não há pressa, não há pressa…
Mesmo assim, recebe o dinheiro, conta-o e embolsa-o, rapidamente.
JOÃO GRILO
E fica mais uma vez tudo em paz, na santa paz do Senhor, com o cachorro
enterrado em latim e todo mundo satisfeito.
CHICÓ
Isso é o que você diz, João, mas acho que a opinião
do padeiro é outra muito diferente.
JOÃO GRILO
E quem está pedindo a opinião do padeiro?
CHICÓ
Ninguém, mas mesmo sem ninguém pedir, ele vem ali doido para
dar.
PADEIRO
Ah, você está aí? (Pega João pela camisa.) O
gato não descome dinheiro coisa nenhuma, descome o que todo gato descome.
Mas você me paga!
JOÃO GRILO
Que é isso? Que é isso? O senhor não tem vergonha de
dizer essas coisas diante do bispo? Descome, não descome! Que conversa
mais imoral! Que chamego é esse?
PADEIRO, furioso
Imoral é você, vendendo aquele gato!
JOÃO GRILO
E eu tenho culpa de sua mulher só gostar de bicho?
PADEIRO
Só gostar de bicho não, que ela casou comigo.
JOÃO GRILO
Sua diferença para bicho é muito pouca, padeiro.
PADEIRO
O quê? É assim que você me trata agora? Olhe que eu boto
você para fora da padaria!
JOÃO GRILO
Você não bota coisa nenhuma, porque eu já estou fora
dela. Faz exatamente dez minutos que eu me considero demitido daquela porcaria.
Um sujeito como eu não trabalha para uma mulher que compra gato.
PADEIRO
Ladrão! Ladrão!
JOÃO GRILO
Ladrão é Você, presidente da irmandade. Três dias
passei em cima de uma cama, tremendo de febre. Mandava pedir socorro a ela
e a você e nada. Até o padre que mandei pedir para me confessar
não mandaram. E isso depois de passar seis anos trabalhando naquela
desgraça!
PADEIRO
Ingrato, eu que nunca o despedi, apesar de todas as suas trapaças!
JOÃO GRILO
Nunca me despediu porque eu trabalhava barato e bem. Está aí
o Padre João que o diga: qual era o melhor pão da rua, Padre
João?
PADRE
O pão de João Grilo.
JOÃO GRILO
Está vendo? Ladrão é você, ladrão de farinha.
Eu o que faço é me defender como posso.
BISPO
Afinal que barulhada é essa?
PADEIRO
Foi esse ladrão que vendeu um gato à minha mulher, dizendo
que ele botava dinheiro, Senhor Bispo.
FRADE
Ra, ra! Essa foi boa!
PADEIRO
Boa? E é um frade que vem me dizer isso? É o fim do mundo.
BISPO
Não se incomode, trata-se de um débil mental.
PADEIRO
Faço minha queixa ao Senhor Bispo, na qualidade de presidente da
Irmandade das Almas.
BISPO
Está recebida a queixa e vai ser apurado o fato, para denúncia
à autoridade secular.
JOÃO GRILO
Não vai ser apurada coisa nenhuma, por que agora eu vou-me embora
daqui. E sabem do que mais? Vão-se danar todos, sacristão, padeiro,
padre, bispo, porque eu já estou cheio, sabem?
SACRISTÃO
João Grilo!
PADRE
João Grilo!
BISPO
Senhor João Grilo!
JOÃO GRILO
É isso mesmo e façam o favor de não me irritar se não
eu dou um tiro na cabeça de Chicó!
CHICÓ
Na minha? Dê na da sua mãe, que pelo menos nasceu você.
Fora, som de tiros e gritos de socorro.
PADRE
Meu Deus, que terá sido isso?
BISPO
O barulho era de tiro.
MULHER, entrando, assombrada.
Valha-me Deus! Ai, meu marido de minha alma, vai morrer todo mundo agora.
Socorro, Senhor Bispo.
BISPO
Que há? Que é isso? Que barulho!
MULHER
É Severino do Aracaju, que entrou na cidade com um cabra e vem para
cá roubar a igreja.
PADRE
Ave-Maria! Valha-me Nossa Senhora!
BISPO
Quem é Severino do Aracaju?
SACRISTÃO
Um cangaceiro, um homem horrível.
BISPO, à mulher.
Chame a polícia.
MULHER
A polícia correu.
BISPO
Correu?
MULHER
E então? Informaram-se por onde ele vinha e saíram exatamente
pelo outro lado.
BISPO
Ave-Maria! Valha-me Nossa Senhora!
MULHER
Ai! meu Deus!
PADEIRO
Ai! meu Deus!
PADRE
E será verdade mesmo? Onde está Severino?
SEVERINO, aparecendo
Aqui.
BISPO, desmaiando
Ai!
JOÃO GRILO
Que grande administrador!
SEVERINO
Um momento, ninguém corra. O primeiro que tentar fugir, morre. O
que é isso que está aí deitado, é algum cônego?
BISPO, abrindo os olhos, cioso do posto
Bispo.
SEVERINO
Ótimo. Nunca tinha matado um bispo, o senhor vai ser o primeiro.
BISPO, desmaiando
Ai!
SEVERINO, dando-lhe um pontapé
Levante-se e deixe de chamego. Xilique comigo não pega. (O Bispo
levanta-se vagarosamente.) Vossa Reverendíssima vai-me desculpar, mas
deixe ver os bolsos.
BISPO
Não tenho nada, o capitão compreende…
SEVERINO, cortante
Mesmo assim eu quero ver. E deixe de me chamar de capitão, que eu
não gosto.
BISPO
E como hei de chamá-lo então?
SEVERINO
Severino, que é meu nome de batismo.
PADRE
É que nós não temos coragem de chamar uma pessoa tão
importante de Severino.
SEVERINO
Isso tudo é porque quem está com o rifle sou eu. Se fosse
qualquer um de vocês, eu era chamado era de Biu. Deixem de conversa,
que isso comigo não vai. Mostre os bolsos. (Tirando o dinheiro.) Seis
contos! Mas é possível? Já vi que o negócio de
reza está prosperando por aqui.
JOÃO GRILO
Depois que se começou a enterrar cachorro então, faz gosto!
SEVERINO
E tudo isto foi para se enterrar um cachorro?
JOÃO GRILO
Foi.
SEVERINO
Nesse caso o padre deve ter também alguma coisa para seu amigo Severino.
PADRE
Tenho, não vou negar. Aqui estão dois contos, Senhor Severino.
É o que posso lhe dar, no momento.
SEVERINO, irônico
É mesmo, padre? Não é possível! Numa terra em
que o bispo tem seis contos, o padre deve ter no mínimo uns três.
(Severo.) Deixe ver os bolsos. Olhe lá, eu não disse? Fazendo
jogo sujo, hem, padre? Quem diria, um ministro de Deus! Enfim, isso é
um fim de mundo. E o sacristão, que é que me diz disso tudo?
SACRISTÃO
Só tenho a lamentar minha pobreza, não me permite ajudar os
amigos.
SEVERINO
Mais pobre do que Vossa Senhoria é Severino do Aracaju, que não
tem ninguém por ele, a não ser seu velho e pobre papo-amarelo.
Mas mesmo assim eu quero ajudá-lo, porque Vossa Senhoria é meu
amigo. (Tirando o dinheiro.) Três contos! Estou quase pensando em deixar
o cangaço. Eu deixava vocês viverem, o bispo demitia o sacristão
e me nomeava no lugar dele. Com mais uns cinqüenta cachorros que se enterrassem,
eu me aposentava. (Sonhador.) Podia comprar uma terrinha e ia criar meus bodes.
Umas quatro ou cinco cabeças de gado e podia-se viver em paz e morrer
em paz, sem nunca mais ouvir falar no velho papo-amarelo.
BISPO
Mas é uma grande idéia, Severino.
SEVERINO
É uma grande idéia agora, porque a polícia fugiu. Mas
ela volta com mais gente e eu não dava três dias para o senhor
bispo fazer o enterro do novo sacristão.
MULHER sedutora
Então venha trabalhar comigo na padaria.
Garanto que não se arrepende
SEVERINO, severo
Mostre a mão esquerda.
MULHER, cariciosa
Pois não, com muito gosto.
SEVERINO
É uma aliança?
MULHER
É, sou casada com essa desgraça aí, mas estou tão
arrependida! Só gosto de homens valentes e esse é uma vergonha.
SEVERINO
Vergonha é uma mulher casada na igreja se oferecer desse jeito. Aliás,
já tinha ouvido falar que a senhora enganava seu marido com todo mundo.
PADEIRO
O quê? É possível?
JOÃO GRILO
Está aí Chicó que o diga.
CHICÓ
Eu?
SEVERINO
A coisa de que eu tenho mais raiva no mundo é de mulher assim. Sabe
o que é que eu faço com as que encontro com esse costume?
MULHER
Não.
SEVERINO
Ferro na tábua do queixo.
MULHER
Ai!
PADEIRO
Não ligue ao que ela diz, mas o senhor podia vir mesmo trabalhar
comigo na padaria. Não se ganha muito, mas dá para viver.
SEVERINO
Então ganha-se pouco na padaria?
PADEIRO
Muito pouco, eu mesmo não tenho aqui, veja.
SEVERINO
Não preciso, eu acredito.O que você tinha deixou no cofre e
eu tirei tudo, de passagem por lá.
PADEIRO
Ai!
SEVERINO
Não vejo motivo para essas agonias. Estou no meu direito, porque
a polícia fugiu e eu tomei a cidade.
JOÃO GRILO
Dou toda a razão a você, Severino, mas está ficando
tarde e eu tenho o que fazer. Vamos embora, Chicó. Vocês, até
logo e muito boa viagem para todos.
SEVERINO
Um momento, amarelinho, quero falar com o senhor você (A Chicó.)
Você também não se apresse.
JOÃO GRILO
Homem, eu já sei qual é a conversa que você quer ter
comigo. Tome logo meus duzentos e cinqüenta mil-réis e deixe eu
ir-me embora. Dê os seus também, Chicó, e vamos sair daqui
que o calor está aumentando.
SEVERINO
Nada disso. Você agora fica e vai morrer com os outros. Está-me
chamando de ladrão? Severino do Aracaju pode ser assassino, mas não
mata ninguém sem motivo. Até hoje só matei para roubar.
É assim que garanto meu sustento. Mas você me chamou de ladrão
e vai se arrepender.
BISPO
Quer dizer que o senhor vai nos matar a todos?
SEVERINO
Vou, por que não?
BISPO
Mas você não disse que só mata para garantir seu sustento?
SEVERINO
E não é o que estou fazendo?
BISPO
É um louco. Socorro! Socorro!
SEVERINO
Pode gritar à vontade, garanto que não vem ninguém.
Mas somente por causa desse grito, Vossa Excelência vai ser o primeiro.
Tenha a bondade de passar para ali, porque Severino do Aracaju não
mata ninguém de fronte da igreja.
FRADE
Severino!
SEVERINO
Senhor!
FRADE
Deixe eu confessar esse povo.
SEVERINO
O senhor frade vai me perdoar, mas não tenho tempo. A polícia
pode voltar e tenho que matar vocês de um por um.
FRADE
Então vou absolver todos condicionalmente, e peço ao padre
que faça o mesmo comigo.
BISPO
Débil mental! (A Severino.) Cavalheiro…
SEVERINO, fazendo uma vênia.
Senhor Bispo… Não adianta olhar para os lados, porque, se não
sair, morre aqui mesmo. Seja homem, dê um exemplo a seus dois secretários
que estão em tempo de se acabar de medo.
O Padre e o Sacristão começam a rezar. O Bispo ergue a cabeça
e quer sair com dignidade, mas as pernas lhe tremem de tal modo que ele vai
tropeçando.
SEVERINO
Sustente as pernas, Senhor Bispo! Que vergonha, chega dá desgosto
se matar um homem desse! Vá, vá logo!!
O Bispo sai pela esquerda. Severino faz um aceno para o Cangaceiro. Este
sai, atrás do Bispo. Um tiro. Severino baixa a cabeça afirmativamente,
sorrindo com a eficiência da execução.O Cangaceiro reaparece,
fazendo um gesto horizontal e cortante com a mão.
SEVERINO
Senhor Padre, pela ordem, é a sua vez.
PADRE, descobrindo o rosto.
Pode cuidar logo do sacristão.
SACRISTÃO
Nada disso, a vez é do Senhor.
SEVERINO
Para não haver discussão, vão os dois de uma vez.
PADRE, a João Grilo.
Tudo isso por sua culpa, com suas histórias de cachorro bento e cachorro
enterrado!
JOÃO GRILO
Cachorro bento é você. Eu não digo que sou sem sorte
mesmo? Aqui desgraçado, aperreado, me preparando para morrer, ainda
aparece Padre João para me chamar de cachorro! Cachorro é você!
Com a raiva, Padre João se esquece do medo e sai rapidamente, mas
o Sacristão fica.
SEVERINO
Que é isso, quer deixar o padre sem poder rezar o ofício?
SACRISTÃO
O ofício? Que ofício, o dos mortos?
SEVERINO
Nada, o do casamento. Vou casar vocês dois com a morte. Ra, ra, essa
foi boa!
SACRISTÃO, sem gosto.
Foi ótima!
SEVERINO
Vá atrás de seu patrão e nunca mais se esqueça
aqui do padre que os casou.
CANGACEIRO
E nem do sacristão.
O Sacristão sai. Dois tiros, mesma cena entre Severino e o Cangaceiro.
FRADE
Agora, eu?
SEVERINO
Não, não gosto de matar frade que dá azar. Vá
embora. (O Frade sai.) E chega agora a vez do excelentíssimo senhor
padeiro desta cidade de Taperoá, que terá a subida satisfação
de morrer ao lado de sua excelentíssima mulher safada.
PADEIRO
Antes de morrer, tenho um pedido a fazer.
SEVERINO
Ai, ai, ai! O que é?
PADEIRO
Quero que ela morra primeiro, para eu ver.
SEVERINO
Concedido. Mate a mulher primeiro.
MULHER
Ah desgraçado!
PADEIRO
Desgraçada é você que me desgraçava a testa sem
eu saber. E se ao menos fosse com uma pessoa de respeito! Mas até Chicó.
CHICÓ
Até Chicó o quê? Eu fui que corri o perigo de ficar
falado, andando com essa mulher pra cima e pra baixo.
PADEIRO
Eu não digo! Você me desgraçou. Caminhe na frente! Faço
questão de ver essa desgraça morrer!
MULHER
E então? Pensa que vou fazer cara feia? Está muito enganado,
tenho mais coragem do que muito homem safado. Você, sim, está
aí em tempo de se acabar. Pensa que não vi as pernas de sua
calça tremendo, desde que ele entrou? Frouxo safado, não lhe
dou o gosto de me queixar de jeito nenhum. (Ao Cangaceiro.) Está pronto?
CANGACEIRO
Estou.
MULHER
Pois vamos. (Sai firmemente, acompanhada pelo marido, que cambaleia.) Eu
não disse? Segure aqui, que eu ajudo.
O padeiro se apóia na mulher e saem os dois abraçados.
JOÃO GRILO
E é assim que serão dois numa só carne.
CHICÓ
Não mangue não, João. Mulher valente! Safada mas valente.
JOÃO GRILO
Você que diz isso é porque sabe.
Um só tiro. Ficam todos em expectativa e o Cangaceiro volta.
SEVERINO
Que foi isso? Só matou um?
CANGACEIRO
Não, os dois.
SEVERINO
Só ouvi um tiro.
CANGACEIRO
Ia matar a mulher primeiro, como o senhor mandou, mas no momento em que
ia puxar o gatilho, o homem correu, abraçou-se com a mulher e morreram
juntos.
SEVERINO
Muito bem. Como é o nome de Vossa Senhoria?
JOÃO GRILO
Minha Senhoria não tem nome nenhum, porque não existe. Pobre
tem lá senhoria, só tem desgraça.
SEVERINO
Diga então o nome de Vossa Desgracência.
JOÃO GRILO
João Grilo.
SEVERINO
Chega então agora a vez de Sua Desgracência, o Senhor João
Grilo, o amarelo mais amarelo que já tive a honra de matar. Pode ir,
a casa é sua.
JOÃO GRILO
Um momento. Antes de morrer, quero lhe fazer um grande favor.
SEVERINO
Qual é?
JOÃO GRILO
Dar-lhe esta gaita de presente.
SEVERINO
Uma gaita? Para que eu quero uma gaita?
JOÃO GRILO
Para nunca mais morrer dos ferimentos que a polícia lhe fizer.
SEVERINO
Que conversa é essa? Já ouvi falar de chocalho bento que cura
mordida de cobra, mas de gaita que cura ferimento de rifle, é a primeira
vez.
JOÃO GRILO
Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de
morrer.
SEVERINO
Eu só acredito vendo.
JOÃO GRILO
Pois não. Queira Vossa Excelência me ceder seu punhal.
SEVERINO
Olhe lá!
JOÃO GRILO
Não tenha cuidado. Pode apontar o rifle e se eu tentar alguma coisa
para seu lado, queime.
SEVERINO, ao Cangaceiro.
Aponte o rifle para esse amarelo, que é desse povo que eu tenho medo.
(Entrega o punhal a João sob a mira do Cangaceiro.) E agora?
JOÃO GRILO
Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chicó.
CHICÓ
Na minha, não.
JOÃO GRILO
Deixe de moleza, Chicó. Depois eu toco na gaita e você fica
vivo de novo! (Murmurando, a Chicó.) A bexiga, a bexiga!
Acena para Chicó, mostrando a barriga e lembrando a bexiga, mas Chicó
não entende.
CHICÓ
Muito obrigado, mas eu não quero não, João.
JOÃO GRILO, novos acenos
Mas eu não já disse que toco na gaita?
CHICÓ
Então vamos fazer o seguinte: você leva a punhalada e quem
toca na gaita sou eu.
JOÃO GRILO
Homem sabe do que mais? Vamos deixar de conversa. Tome lá! Morra,
desgraçado!
Dá uma punhalada na bexiga. Com a sugestão, Chicó cai
ao solo, apalpa-se, vê a bexiga e só então entende. Ele
fecha os olhos e finge que morreu.
JOÃO GRILO
Está vendo o sangue?
SEVERINO
Estou. Vi você dar a facada, disso nunca duvidei. Agora, quero ver
é você curar o homem.
JOÃO GRILO
É já.
Começa a tocar na gaita e Chicó começa a se mover no
ritmo da música, primeiro uma mão, depois as duas, os braços,
até que se levanta como se estivesse com dança de São
Guido.
SEVERINO
Nossa Senhora! Só tendo sido abençoada por Meu Padrinho Padre
Cícero. Você não está sentindo nada?
CHICÓ
Nadinha.
SEVERINO
E antes?
CHICÓ
Antes como?
SEVERINO
Antes de João tocar na gaita.
CHICÓ
Ah, eu estava morto.
SEVERINO
Morto?
CHICÓ
Completamente morto. Vi Nossa Senhora e Padre Cícero no céu.
SEVERINO
Mas em tão pouco tempo? Como foi isso?
CHICÓ
Não sei, só sei que foi assim.
SEVERINO
E que foi que Padre Cícero lhe disse?
CHICÓ
Disse: “Essa é a gaitinha que eu abençoei antes de morrer.
Vocês devem dá-la a Severino, que precisa dela mais do que vocês”.
SEVERINO
Ah meu Deus, só podia ser Meu Padrinho Padre Cícero mesmo.
João me dê essa gaitinha!
JOÃO GRILO
Então me solte e solte Chicó.
SEVERINO
Não pode ser, João. Eu matei o bispo, o padre, o sacristão,
o padeiro e a mulher e eles morreram esperando por você. Se eu não
o matar, vêm-me perseguir de noite, porque será uma injustiça
com eles.
JOÃO GRILO
Mas mesmo eu lhe dando essa gaita? Você repare que eu podia ter morrido
sem nada lhe dizer e você nunca saberia de nada, porque ninguém
ia dar importância a uma gaita.
SEVERINO
É verdade.
JOÃO GRILO
Eu lhe dei uma oportunidade de conhecer Meu Padrinho Padre Cícero
e você me paga desse modo!
SEVERINO
De conhecer Meu Padrinho? Nunca tive essa sorte. Fui uma vez ao Juazeiro
só para conhecê-lo, mas pensaram que eu ia atacar a cidade e
fui recebido a bala.
JOÃO GRILO
Mas pode conhecê-lo agora.
SEVERINO
Como?
JOÃO GRILO
Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo.
Então eu toco na gaita e você volta.
SEVERINO
E se você não tocar?
JOÃO GRILO
Não está vendo que eu não faço uma miséria
dessa? Garanto que toco.
SEVERINO
Sua idéia é boa, mas por segurança entregue logo a
gaita a meu cabra. (João entrega a gaita.) Agora eu levo um tiro e
vejo Meu Padrinho?
JOÃO GRILO
Vê, não vê, Chicó?
CHICÓ
Vê demais. Está lá, vestido de azul, com uma porção
de anjinhos em redor. Ele até estava dizendo: “Diga a Severino
que eu quero vê-lo”.
SEVERINO
Ai, eu vou. Atire, atire!
CANGACEIRO
Capitão!
SEVERINO
Atira, cabra frouxo, eu não estou mandando?
CANGACEIRO
Capitão!
SEVERINO
Atire!
JOÃO GRILO
Homem atire logo pelo amor de Deus!
O Cangaceiro ergue o rifle.
SEVERINO
Espere. (João, extremamente nervoso, ergue os braços para
o céu.) Não se esqueça de tocar na gaita.
CANGACEIRO
Não tenha cuidado, Capitão.
SEVERINO
Então atire.
O Cangaceiro ergue o rifle de novo e atira. Severino cai e o Cangaceiro
pega a gaita.
JOÃO GRILO, impedindo-o
Não, deixe para tocar depois! Deixe pobre Severino conversar mais
um pedaço com Padre Cícero! Essas ocasiões são
poucas, é preciso aproveitar.
CANGACEIRO
Não, já deu tempo de ele ver o padre. (Toca na gaita e nada.)
Capitão! (Toca na gaita.) Capitão! Capitão! (Empurra
Severino com o pé.) Está morto!
JOÃO GRILO
Toque na gaita.
CANGACEIRO, depois de tocar
Capitão! Ah Grilo amaldiçoado, você matou o capitão.
JOÃO GRILO
Em cima dele, Chicó.
Atacam o Cangaceiro. Sem que ninguém veja a facada, João Grilo
dá uns meneios e saltos de gato na frente do Cangaceiro, que puxa um
revólver. Chicó imobiliza os braços do Cangaceiro, segurando-o
por trás. Com uma das mãos força-o a apontar o revólver
para o chão.
JOÃO GRILO
Solte o homem, Chicó!
CHICÓ
Mas, João, soltar o homem com um revólver na mão?
JOÃO GRILO
Solte o homem, Chicó!
CHICÓ
João, se eu soltar o homem, ele mete-lhe revólver na cara!
JOÃO GRILO
Solte o homem, Chicó!
CHICÓ
João, você está doido? Não está vendo
que o homem passa-lhe fogo?!
JOÃO GRILO
Solte o homem, Chicó
CHICÓ
Pois então tome!
Solta o Cangaceiro, que cai ao chão.
JOÃO GRILO
Eu não lhe disse que soltasse, homem? Na primeira visagem que eu
fiz na frente dele, meti-lhe a faca na barriga.
CHICÓ
João, meu filho, você é grande! Vamos embora!
JOÃO GRILO
Nada disso, só saio daqui com o testamento do cachorro.
Vai ao lugar onde está o corpo de Severino e tira o dinheiro.
CHICÓ
João, de tudo isso eu só não entendo uma coisa.
JOÃO GRILO
O que é?
CHICÓ
Como foi que você adivinhou que Severino vinha e preparou a história
da bexiga?
JOÃO GRILO
Eu não adivinhei coisa nenhuma, a bexiga estava preparada para a
mulher do padeiro, quando ela viesse reclamar o preço do gato. Eu ia
ver se convencia o marido dela a dar-lhe uma facada, para experimentar a gaita
e me vingar do que ela me fez. Severino meteu-se no meio porque quis e de
enxerido que era.
CHICÓ
Vamos embora, João.
Parte 3
JOÃO GRILO
Mas Chicó, tenha vergonha, você ainda está com medo?
CHICÓ
Estou, João, com um pressentimento ruim danado!
JOÃO GRILO
Então vamos embora, mas deixe de agouro.
Chicó sai para cidade, mas João pára no limiar, erguendo
teatralmente os braços.
JOÃO GRILO
E agora a vida boa e a independência para João Grilo e para
Chicó, graças à minha altíssima sabedoria e ao
testamento do cachorro.
CHICÓ, de fora
João, venha embora pelo amor de Deus!
JOÃO GRILO
Já vou, Chicó, João Grilo já vai.
O Cangaceiro reergue dificilmente a cabeça, pega o rifle, atira em
João e morre. João entra em cena segurando o espinhaço
e senta-se no chão. Chicó volta correndo.
CHICÓ
Que foi isso, João?
JOÃO GRILO
O cabra estava vivo ainda e atirou em mim.
CHICÓ
Ai, minha Nossa Senhora, será que você vai morrer, João?
JOÃO GRILO
Acho que vou, Chicó, estou ficando com a vista escura.
CHICÓ
Ai, meu Deus, pobre de João Grilo vai morrer!
JOÃO GRILO
Deixe de latomia, Chicó, parece que nunca viu um homem morrer! Nisso
tudo eu só lamento é perder o testamento do cachorro.
Morre.
CHICÓ
João! João! Morreu! Ai meu Deus, morreu pobre de João
Grilo! Tão amarelo, tão safado e morrer assim! Que é
que eu faço no mundo sem João? João! João! Não
tem mais jeito, João Grilo morreu. Acabou-se o Grilo mais inteligente
do mundo. Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal
irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino
sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o
que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é
vivo morre. Que posso fazer agora? Somente seu enterro e rezar por sua alma.
Entra na igreja, limpando as lágrimas e aqui pode-se novamente interromper
o espetáculo. Se se montar a peça com dois cenários,
organiza-se então a cena para o julgamento que se segue. Mas pode-se
continuá-lo com o mesmo cenário, usando-se somente pequenas
modificações, já sugeridas no início e que o próprio
texto a seguir esclarece.
PALHAÇO, entrando
Peço desculpas ao distinto público que teve de assistir a
essa pequena carnificina, mas ela era necessária ao desenrolar da história.
Agora a cena vai mudar um pouco. João, levante-se e ajude a mudar o
cenário. Chicó! Chame os outros.
CHICÓ
Os defuntos também?
PALHAÇO
Também.
CHICÓ
Senhor Bispo, Senhor Padre, Senhor Padeiro!
Aparecem todos.
PALHAÇO
É preciso mudar o cenário, para a cena do julgamento de vocês.
Tragam o trono de Nosso Senhor! Agora a igreja vai servir de entrada para
o céu e para o purgatório. O distinto público não
se espante ao ver, nas cenas seguintes, dois demônios vestidos de vaqueiro,
pois isso decorre de uma crença comum no sertão do Nordeste.
É claro que essas falas serão cortadas ou adaptadas pelo encenador,
de acordo com a montagem que se fizer.
PALHAÇO
Agora os mortos. Quem estava morto?
BISPO
Eu.
PALHAÇO
Deite-se ali.
PADRE
Eu também.
PALHAÇO
Deite-se junto dele. Quem mais?
JOÃO GRILO
Eu, o padeiro, a mulher, o sacristão, Severino e o cabra.
PALHAÇO
Deitem-se todos e morram.
JOÃO GRILO
Um momento.
PALHAÇO
Homem, morra, que o espetáculo precisa continuar!
JOÃO GRILO
Espere, quer mandar no meu morredor?
PALHAÇO
O que é que você quer?
JOÃO GRILO
Já que tenho de ficar aqui morto, quero pelo menos ficar longe do
sacristão.
PALHAÇO
Pois fique. Deite-se ali. E você, Chicó?
CHICÓ
Eu escapei. Estava na igreja, rezando pela alma de João Grilo.
PALHAÇO
Que bem precisada anda disso. Saia e vá rezar lá fora. Muito
bem, com toda essa gente morta, o espetáculo continua e terão
oportunidade de assistir seu julgamento. Espero que todos os presentes aproveitem
os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenha
certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos,
praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem
mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem
avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios,
castos e pacientes. E basta, se bem que seja pouco. Música.
Música de circo. O Palhaço sai dançando. Se se montar
a peça em três atos ou houver mudança de cenário,
começará aqui a cena do julgamento, com o pano abrindo e os
mortos despertando.
JOÃO GRILO, para o Cangaceiro.
Mas me diga uma coisa, havia necessidade de você me matar?
CANGACEIRO
E você me matou?
JOÃO GRILO
Pois é por isso mesmo que eu reclamei.
Você já estava desgraçado, podia ter-me deixado em paz.
SEVERINO
Eu, por mim, agora que já morri, estou achando até bom. Pelo
menos estou descansando daquelas correrias. Quem deve estar achando ruim é
o bispo.
BISPO
Eu? Por quê? Estou até me dando bem!
JOÃO GRILO
É, estão todos muito calmos porque ainda não repararam
naquele freguês que está ali, na sombra, esperando que nós
acordemos.
PADRE
Quem é?
JOÃO GRILO
Você ainda pergunta? Desde que cheguei que comecei a sentir um cheiro
ruim danado. Essa peste deve ser um diabo.
DEMÔNIO, saindo da sombra, severo.
Calem-se todos. Chegou a hora da verdade.
SEVERINO
Da verdade?
BISPO
Da verdade?
PADRE
Da verdade?
DEMÔNIO
Da verdade, sim.
JOÃO GRILO
Então já sei que estou desgraçado, porque comigo era
na mentira.
DEMÔNIO
Vocês agora vão pagar tudo o que fizeram.
PADRE
Mas o que foi que eu…
DEMÓNIO
Silêncio! Chegou a hora do silêncio para vocês e do comando
para mim. E calem-se todos. Vem chegando agora quem pode mais do que eu e
do que vocês. Deitem-se! Deitem-se! Ouçam o que estou dizendo,
senão será pior!
Desde que ele começou a falar, soam ritmadamente duas pancadas, fortes
e secas, de tambor e uma de prato, com uma pausa mais ou menos Longa entre
elas, ruído que deve se repetir até a aparição
do Encourado. Este é O diabo, que, segundo uma crença do ser
tão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste como
um vaqueiro. Esta cena deve se revestir de um caráter meio grotesco,
pois a ordem que o Demônio dá, mandando que os personagens se
deitem, já insinua o fato de que o maior desejo do diabo é imitar
Deus, resultado de seu orgulho grotesco. E tanto é assim, que ele tenta
conseguir aí pela intimidação o tributo que Jesus terá
depois, espontaneamente, quando de sua entrada. O Bispo é o único
a esboçar um movimento de obediência, mas, antes que ele se deite,
o Encourado entra, dando pancadas de rebenque na perna e ajustando suas luvas
de couro. Os mortos começam a tremer exageradamente e o Demônio
acorre para junto dele, servil e pressuroso.
DEMÔNIO
Desculpe, fiz tudo para que eles se deitassem, mas não houve jeito.
ENCOURADO, ríspido
Cale-se. Você nunca passará de um imbecil. Como se eu vivesse
fazendo questão de ser recebido dessa ou daquela maneira!
DEMÔNIO
Peço-lhe desculpas, não foi isso que eu quis dizer.
ENCOURADO
Foi exatamente isso que você quis dizer.
É terrível ter-se um sonho como o que eu tive e ver que ele
vai ancorar nesse embrutecimento da inteligência e da dignidade!
DEMÔNIO
Isso pode acontecer comigo. Eu posso me sentir assim, mas o senhor…
ENCOURADO
Cale-se, já disse! Que me importa o que você faz ou sente?
O que me desgosta é ver minha imagem refletida em você, uma imagem
profundamente repugnante. Mas vamos aos fatos. Que vergonha! Todos tremendo!
Tão corajosos antes, tão covardes agora! O Senhor Bispo, tão
cheio de dignidade, o padre, o valente Severino… E você, o Grilo que
enganava todo o mundo, tremendo como qualquer safado!
JOÃO GRILO
Que é que posso fazer? Já disse mais de cem vezes a mim que
não tremesse e tremo. Desde que ouvi aquelas pancadas que comecei a
sentir um calafrio danado.
ENCOURADO
E tem razão, porque o que vai lhe acontecer é coisa muito
séria. (Sorrindo.) É engraçado como vocês empregam
às vezes a palavra exata, sem terem consciência perfeita do fato.
O que você sentiu foi exatamente um arrepio de danado. (Severo, ao Demônio.)
Leve a todos para dentro.
SEVERINO
Ai meu Deus, vou pagar minhas mortes no inferno!
BISPO
Senhor demônio tenha compaixão de um pobre Bispo.
ENCOURADO
Ah, compaixão… Como pilhéria é boa! Vamos, todos
para dentro. Para dentro, já disse. Todos para o fogo eterno, para
padecer comigo.
O Demônio começa a perseguir os mortos e o alarido deles é
terrível. Ele vai agarrando um por um e os mortos vão se desvencilhando,
aos gritos.
BISPO
Ai! Leve o Padre!
PADRE
Ai! Leve o sacristão!
SACRISTÃO
Ai! Leve o Severino!
SEVERINO
Ai! Leve o cabra!
JOÃO GRILO
Parem, parem! Acabem com essa molecagem!
Seu grito é tão grande que todos param e o silêncio
se faz.
JOÃO GRILO
Acabem com essa molecagem. Diabo dum barulho danado! É assim, é?
É assim, é? ENCOURADO
Assim como?
JOÃO GRILO
É assim de vez? É só dizer “pra dentro”
e vai tudo? Que diabo de tribunal é esse que não tem apelação?
ENCOURADO
É assim mesmo e não tem para onde fugir!
JOÃO GRILO
Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma
pessoa ela tem de ser ouvida!
BISPO
Eu também. Boa, João Grilo!
PADRE
Boa, João Grilo!
MULHER
Boa, João Grilo!
PADEIRO
Você achou boa?
MULHER
Achei.
PADEIRO
Então eu também achei. Boa, João Grilo!
SEVERINO
É isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo, que
é quem pode saber.
ENCOURADO
Besteira, maluquice!
PADRE
Besteira ou maluquice, eu também apelo. Senhor Jesus, certo ou errado,
eu sou um padre e tenho meus direitos. Quero ser julgado, antes de ser entregue
ao diabo.
Aqui começam a soar pancadas de sino, no mesmo ritmo das de tambor
anteriores. O Encourado começa a ficar agitado.
JOÃO GRILO
Ah! pancadinhas benditas! Oi, está tremendo? Que vergonha, tão
corajoso antes, tão covarde agora! Que agitação é
essa?
ENCOURADO
Quem está agitado? É somente uma questão de inimizade.
Tenho o direito de me sentir mal com aquilo que me desagrada.
JOÃO GRILO
Eu, pelo contrário, estou me sentindo muito bem. Sinto-me como se
minha alma quisesse cantar.
BISPO, estranhamente emocionado.
Eu também. É estranho, nunca tinha experimentado um sentimento
como esse. Mas é uma vontade esquisita, pois não sei bem se
ela é de cantar ou de chorar.
Esconde o rosto entre as mãos. As pancadas do sino continuam e toca
uma música de aleluia. De repente, João ajoelha-se, como que
levado por uma força irresistível e fica com os olhos fixos
fora. Todos vão-se ajoelhando vagarosamente. O Encourado volta rapidamente
as costas, para não ver o Cristo que vem entrando. É um preto
retinto, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. A cena ganha
uma intensa suavidade de Iluminura. Todos estão de joelhos, com o rosto
entre as mãos.
ENCOURADO, de costas, grande grito, com o braço ocultando os olhos
Quem é? É Manuel?
MANUEL
Sim, é Manuel, o Leão de Judá, o Filho de Davi. Levantem-se
todos, pois vão ser julgados.
JOÃO GRILO
Apesar de ser um sertanejo pobre e amarelo, sinto perfeitamente que estou
diante de uma grande figura. Não quero faltar com o respeito a uma
pessoa tão importante, mas se não me engano aquele sujeito acaba
de chamar o senhor de Manuel.
MANUEL
Foi isso mesmo, João. Esse é um de meus nomes, mas você
pode me chamar também de Jesus, de Senhor, de Deus… Ele gosta de
me chamar Manuel ou Emanuel, porque pensa que assim pode se persuadir de que
sou somente homem. Mas você, se quiser, pode me chamar de Jesus.
JOÃO GRILO
Jesus?
MANUEL
Sim.
JOÃO GRILO
Mas, espere, o senhor é que é Jesus?
MANUEL
Sou.
JOÃO GRILO
Aquele Jesus a quem chamavam Cristo?
JESUS
A quem chamavam, não, que era Cristo. Sou, por quê?
JOÃO GRILO
Porque… não é lhe faltando com o respeito não, mas
eu pensava que o senhor era muito menos queimado.
BISPO
Cale-se, atrevido.
MANUEL
Cale-se você. Com que autoridade está repreendendo os outros?
Você foi um bispo indigno de minha Igreja, mundano, autoritário,
soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exercer sua
autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação
era ser humilde porque quanto mais alta é a função, mais
generosidade e virtude requer. Que direito tem você de repreender João
porque falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em vida
e provou sua sinceridade exibindo seu pensamento. Você estava mais espantado
do que ele e escondeu essa admiração por prudência mundana.
O tempo da mentira já passou.
JOÃO GRILO
Muito bem. Falou pouco mas falou bonito. A cor pode não ser das melhores,
mas o senhor fala bem que faz gosto.
MANUEL
Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é
cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito,
porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus,
nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim,
tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para
ter preconceito de raça?
PADRE
Eu, por mim, nunca soube o que era preconceito de raça.
ENCOURADO, sempre de costas para Manuel
É mentira. Só batizava os meninos pretos depois dos brancos.
PADRE
Mentira! Eu muitas vezes batizei os pretos na frente.
ENCOURADO
Muitas vezes, não, poucas vezes, e mesmo essas poucas quando os pretos
eram ricos.
PADRE
Prova de que eu não me importava com cor, de que o que me interessava…
MANUEL
Era a posição social e o dinheiro, não é, Padre
João? Mas deixemos isso, sua vez há de chegar. Pela ordem, cabe
a vez ao bispo. (Ao Encourado.) Deixe de preconceitos e fique de frente.
ENCOURADO, sombrio
Aqui estou bem.
MANUEL
Como queira. Faça seu relatório
JOÃO GRILO
Foi gente que eu nunca suportei: promotor, sacristão, cachorro e
soldado de polícia. Esse aí é uma mistura disso tudo.
MANUEL
Silêncio, João, não perturbe. (Ao Encourado.) Faça
a acusação do bispo. (Aqui, por sugestão de Clênio
Wanderley, o Demônio traz um grande livro que o Encourado vai lendo.)
ENCOURADO
Simonia: negociou com o cargo, aprovando o enterro de um cachorro em latim,
porque o dono lhe deu seis contos.
BISPO
E é proibido?
ENCOURADO
Homem, se é proibido eu não sei. O que eu sei é que
você achava que era e depois, de repente, passou a achar que não
era. E o trecho que foi cantado no enterro é uma oração
da missa dos defuntos.
BISPO
Isso é aí com meu amigo sacristão. Quem escolheu o
pedaço foi ele.
ENCOURADO
Falso testemunho: citou levianamente o Código Canônico, primeiro
para condenar o ato do padre e contentar o ricaço Antônio Morais,
depois para justificar o enterro. Velhacaria: esse bispo tinha fama de grande
administrador, mas não passava de um político, apodrecido de
sabedoria mundana.
BISPO
Quem fala! Um desgraçado que se perdeu por causa disso…
MANUEL
Não interrompa, não é esse o momento de discutir isso.
Pode continuar.
ENCOURADO
Arrogância e falta de humildade no desempenho de suas funções:
esse bispo, falando com um pequeno, tinha uma soberba só comparável
à subserviência que usava para tratar com os grandes. Isto sem
se falar no fato de que vivia com um santo homem, tratando-o sempre com o
maior desprezo.
BISPO
Com um santo homem, eu?
ENCOURADO
Sim, o frade.
BISPO
Só aquele imbecil mesmo pode ser chamado de santo homem!
ENCOURADO
O processo de santificação dele está encaminhado por
aí; Ele acaba de pedir para ser missionário entre os índios
e vai ser martirizado. Eu não, para mim isso não passa de uma
tolice, mas aí para Manuel você está-se desgraçando.
Bispo
Mas é possível que aquele frade…
MANUEL
É perfeitamente possível e não diga mais nada. Mais
alguma coisa?
ENCOURADO
Não, estou satisfeito.
MANUEL
Então, acuse o padre.
PADRE
De mim ele não tem nada o que dizer.
ENCOURADO
É o que você pensa, minha safra hoje está garantida.
Tudo o que eu disse do bispo pode se aplicar ao padre. Simonia, no enterro
do cachorro, velhacaria, política mundana, arrogância com os
pequenos, subserviência com os grandes.
PADRE
Mas não citei o Código Canônico em falso.
ENCOURADO
Em compensação, acaba de incorrer em falta de coleguismo com
o bispo.
PADRE
E o que eu fizer aqui ainda voga?
MANUEL
Não, isso é confusão do demônio.
ENCOURADO
E ele tinha ainda outro defeito que o bispo nunca teve.
PADRE
Qual era?
ENCOURADO
A preguiça. Deixava tudo nas costas do sacristão e a paróquia
ficava completamente entregue a esse patife, por sua culpa.
SACRISTÃO
Patife é você.
JOÃO GRILO, ao sacristão
Homem, que esse sujeito aí deve ser pior do que você, deve,
mas você tinha uma ruindade bem apurada!
MANUEL
Silêncio, João, já lhe disse que não interrompesse.
JOÃO GRILO
O senhor me desculpe, mas a língua fica balançando na boca
que chega a me dar uma agonia. Eu posso ouvir um safado desses dizendo que
prestava e ficar calado?
MANUEL
Deixe a acusação para o colega dele.
SACRISTÃO
Colega?
MANUEL
É brincadeira minha, mas, depois que João chamou minha atenção,
notei que o diabo tem mesmo um jeito assim de sacristão.
ENCOURADO
Protesto contra essas brincadeiras. Isso aqui é um lugar sério.
MANUEL
Calma, rapaz, você não está no inferno. Lá, sim,
é um lugar sério. Aqui pode-se brincar. Faça a acusação
do sacristão.
ENCOURADO
Esse sujeito foi quem tramou a história do enterro. Foi ele quem
saiu cantando o trecho da missa atrás do cachorro, com olho nos três
contos. Em latim, na língua que você escolheu. Hipocrisia e auto-suficiência
chegaram e aí ficaram. E, além de tudo, roubava a igreja.
PADRE
Ah patife
MANUEL
Ah patife não, Padre João, o senhor devia dizer “Ah
patifes”, porque faz tempo que eu não vejo tanta coisa ruim junta.
E o padeiro?
ENCOURADO
Ele e a mulher foram os piores patrões que Taperoá já
viu.
MULHER
É mentira!
JOÃO GRILO
É não, é verdade. Três dias passei…
MANUEL
Em cima de uma cama, com febre, e nem um copo dágua lhe mandaram.
Já sei, João, todo mundo já sabe dessa história,
de tanto ouvir você contar.
JOÃO GRILO
Mas eu posso? Me diga mesmo se eu posso! Bife passado na manteiga para o
cachorro e fome para João Grilo. É demais!
ENCOURADO
Avareza do marido, adultério da mulher. Bem medido e bem pesado,
cada um era pior do que o outro.
JOÃO GRILO
Está aí Chicó que o diga.
MANUEL
Chicó?
JOÃO GRILO
Ah, é verdade, Chicó ficou. Já estava tão acostumado
a aperrear pobre de Chicó que me esqueci de que ele tinha ficado. É
um amigo meu.
MANUEL
Eu o conheço, estou até de olho nele por causa das histórias
que vive contando.
JOÃO GRILO
Aquilo é o sol. Não vá ligar isso não. O sol
do sertão é quente e Chicó começa a ver demais.
É o sol.
MANUEL, ao Encourado.
Anote aí negação do livre arbítrio contra João.
ENCOURADO
Está anotado.
MANUEL
Pois desanote. Não está vendo que é brincadeira? João
sabe lá o que é livre arbítrio, homem?
JOÃO GRILO
É isso mesmo, desanote e não tem nada de fazer cara feia que
não adianta. Eu não sei o que é isso mesmo não,
mas sei que você quer é me desgraçar.
MANUEL
Acuse Severino e o cabra dele.
ENCOURADO
E precisa? São dois cangaceiros conhecidos. Mataram mais de trinta.
MANUEL
É verdade?
SEVERINO
É. Matei, não vou negar.
ENCOURADO
Acho que basta. Inferno nele.
MANUEL
Espere, isso também não é assim de repente não!
Davi fez coisa muito pior, traindo o amigo com a mulher e mandando ainda por
cima o pobre morrer na guerra e, no entanto, era meu avô e grande amigo
meu, um santo de quem você não tem coragem nem de pronunciar
o nome.
JOÃO GRILO
Tenho visto poucos sujeitos levar carão e ficar com cara lisa como
esse.
ENCOURADO
É, você está muito engraçado agora, mas Manuel
é justo e quando ele me entregar vocês, há de ver que
com o diabo não se brinca.
JOÃO GRILO
E quem disse que ele vai nos entregar?
ENCOURADO
Você acha pouco? Eu não estou vendo os olhos dele, porque estou
de costas, mas pressinto essas coisas. A situação está
favorável para mim e preta para vocês.
Começa a rir e todos começam a tremer.
MULHER
É verdade, senhor?
MANUEL
É verdade, a situação está ruim para vocês,
porque as acusações são graves.
BISPO
Ai meu Deus! Valha-me Deus! Valha-me Deus nessa hora de angústia.
ENCOURADO
Agora é tarde, você devia ter-se lembrado disso antes.
PADRE
São João, meu padroeiro, não me deixe ir para o inferno,
pelo amor de Deus.
ENCOURADO
Está aí quem é maior do que esse não sei o quê
e vai me entregar você.
MULHER, ao padeiro
Homem, tenha coragem pelo menos agora e dê uma palavra em nosso favor.
PADEIRO
Estou vendo se acho algum santo padeiro, para me pegar com ele.
ENCOURADO
O que me diverte nisso tudo é ver esse amarelo tremendo de medo.
Coragem, João Grilo, uma pessoa como você tremendo?
JOÃO GRILO
Não sou eu, é meu corpo, mas a cabeça está trabalhando.
MANUEL
Está mesmo, João?
JOÃO GRILO
Está, Nosso Senhor, e se a tremedeira parasse eu era capaz de me
defender.
MANUEL
Pois pode parar.
JOÃO GRILO, parando e respirando
Que alívio, já estava ficando cansado, O que é isso?
MANUEL
É besteira do demônio. Esse sujeito é meio espírita
e tem mania de fazer mágica.
JOÃO GRILO
Eu logo vi que isso só podia ser confusão desse catimbozeiro.
MANUEL
E agora? Que é que você diz em sua defesa? Sei que você
é astuto, mas não pode negar o fato de que foi acusado.
JOÃO GRILO
O senhor vai-me desculpar, mas eu não fui acusado de coisa nenhuma.
MANUEL
Não?
ENCOURADO
Foi mesmo não. Começou com uma confusão tão
grande que eu me esqueci de acusá-lo. Vou começar.
JOÃO GRILO
Você não vai começar coisa nenhuma, por que a hora de
acusar já passou.
MANUEL
Deixe de chicana, João, você pensa que isso aqui é o
palácio da justiça? Pode acusar.
ENCOURADO
Agora você me paga, amarelo. O sacristão, o padre e o bispo
fizeram o enterro do cachorro, mas a história foi toda tramada por
ele. E vendeu um gato à mulher do padeiro dizendo que ele botava dinheiro.
JOÃO GRILO
Mentira, Nosso Senhor.
MANUEL
Verdade, João Grilo.
JOÃO GRILO
É, é verdade, mas do jeito que eles me pagavam, o jeito era
eu me virar. Além disso eu estava com pena do gato, tão abandonado,
e queria que ele passasse bem.
MULHER
É, e nessa pena levou meus quinhentos mil-réis.
ENCOURADO
Depois, foi ele quem matou Severino e o cabra dele, com uma história
de gaita, Padre Cícero e não sei que mais.
JOÃO GRILO
Legítima defesa, Nosso Senhor!
ENCOURADO
Mentira, Manuel!
MANUEL
Verdade, demônio!
ENCOURADO
Mas não se esqueça de que a história estava preparada
para a mulher do padeiro.
MANUEL
É verdade, aí você passou da conta, João. E tudo
por causa do bife passado na manteiga!
ENCOURADO
De modo que o caso dele é sem jeito. É o primeiro que vou
levar. Essa é boa, João Grilo, o amarelo, que enganava todo
mundo, vai levar na cabeça!
JOÃO GRILO
Ah e você pensa que eu me entreguei? Pode ser que eu vá, mas
não é assim não!
BISPO
Mas é caso sem jeito, João. Ai meu Deus!
PADRE
Ai meu Deus!
SACRISTÃO
Ai meu Deus!
JOÃO GRILO para Manuel
Olhe a besteira deles: Deus aqui e eles gritando por Deus!
MANUEL
E por quem eles iriam gritar?
JOÃO GRILO
Por alguém que está mais perto de nós, por gente que
é gente mesmo.
MANUEL
E eu não sou gente, João? Sou homem, judeu, nascido em Belém,
criado em Nazaré, fui ajudante de carpinteiro… Tudo isso vale alguma
coisa.
JOÃO GRILO
O senhor quer saber de uma coisa? Eu vou lhe ser franco: o senhor é
gente, mas não muito não. É gente e ao mesmo tempo é
Deus, é uma misturada muito grande. Meu negócio é com
outro.
BISPO
Agora a gente está desgraçado de vez. João, isso é
coisa que se diga?
MANUEL
Mas o que foi que João disse demais? Tudo isso é verdade,
porque eu sou homem e sou Deus!
ENCOURADO
Homem, dê-se a respeito!
MANUEL
Esse respeito de que você fala, foi coisa que eu nunca soube impor,
graças a Deus.
JOÃO GRILO
Eu, se fosse o senhor, nunca diria “Graças a Deus!”!
MANUEL
Por quê? É uma coisa que todo mundo diz.
JOÃO GRILO
O senhor não é Deus?
MANUEL
Sou.
JOÃO GRILO
Pois eu, se fosse Deus, só diria “Graças a mim”
MANUEL
Para que, João?
JOÃO GRILO
Pra fazer inveja ao diabo.
ENCOURADO
A confusão já começa. Apelo para a justiça.
JOÃO GRILO
E eu para a misericórdia.
PADRE’
Acho que nosso caso é sem jeito, João. Uma vez estudei uma
lição sobre isso e sei que em Deus não existe contradição
entre a justiça e a misericórdia. Já fomos julgados pela
justiça, a misericórdia dirá a mesma coisa.
JOÃO GRILO
E quem foi que disse que nós já fomos julgados pela justiça?
PADRE
Você mesmo ouviu Nosso Senhor dizer que a situação era
difícil.
JOÃO GRILO
E difícil quer dizer sem jeito? Sem jeito! Sem jeito por quê?
Vocês são uns pamonhas, qualquer coisinha estão arriando.
Não vê que tiveram tudo na terra? Se tivessem tido que agüentar
o rojão de João Grilo, passando fome e comendo macambira na
seca, garanto que tinham mais coragem. Quer ver eu dar um jeito nisso, Padre
João?
PADRE
Quero, Joca.
JOÃO GRILO
Agora é Joca, hem? E você, Senhor Bispo?
BISPO
Eu também, João.
JOÃO GRILO
Padeiro?
PADEIRO
Veja o que pode fazer, João.
JOÃO GRILO
Severino? Mulher e cabra?
MULHER
Nós também. Nossa esperança é você.
JOÃO GRILO
Tudo precisando de João Grilo! Pois vou dar um jeito.
ENCOURADO
É isso que eu quero ver.
MANUEL
Com quem você vai se pegar, João? Com algum santo?
JOÃO GRILO
O senhor não repare não, mas de besta eu só tenho a
cara. Meu trunfo é maior do que qualquer santo.
MANUEL
Quem é?
JOÃO GRILO
A mãe da justiça.
ENCOURADO, rindo
Ah, a mãe da justiça! Quem é essa?
MANUEL
Não ria, porque ela existe.
BISPO
E quem é?
MANUEL
A misericórdia.
SEVERINO
Foi coisa que nunca conheci. Onde mora?E como chamá-la?
JOÃO GRILO
Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto
que ela vem, querem ver? (Recitando).
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
ENCOURADO
Vá vendo a falta de respeito, viu?
JOÃO GRILO
Falta de respeito nada, rapaz! Isso é o versinho de Canário
Pardo que minha mãe cantava para eu dormir. Isso tem nada de falta
de respeito!
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré.
Cena igual à da aparição de Nosso Senhor, e Nossa Senhora,
A Compadecida, entra.
ENCOURADO, com raiva surda
Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete!
JOÃO GRILO
Falta de respeito foi isso agora, viu? A senhora se zangou com o verso que
eu recitei?
A COMPADECIDA
Não, João, por que eu iria me zangar? Aquele é o versinho
que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não
deixa de ser uma oração, uma invocação. Tem umas
graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre
gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo.
JOÃO GRILO
É porque esse camarada aí, tudo o que se diz ele enrasca a
gente, dizendo que é falta de respeito.
A COMPADECIDA
É máscara dele, João. Como todo fariseu, o diabo é
muito apegado às formas exteriores. É um fariseu consumado.
ENCOURADO
Protesto.
MANUEL
Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que fazer,
meu velho. Discordar de minha mãe é que não vou.
ENCOURADO
Grande coisa esse chamego que ela faz para salvar todo mundo!
Termina desmoralizando tudo.
SEVERINO
Você só fala assim porque nunca teve mãe.
JOÃO GRILO
É mesmo, um sujeito ruim desse, só sendo filho de chocadeira!
A COMPADECIDA
E para que foi que você me chamou, João?
JOÃO GRILO
É que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno.
Eu só podia me pegar com a senhora mesmo.
ENCOURADO
As acusações são graves. Seu filho mesmo disse que
há tempo não via tanta coisa ruim junta.
A COMPADECIDA
Ouvi as acusações.
ENCOURADO
E então?
JOÃO GRILO
E então? Você ainda pergunta? Maria vai-nos defender. Padre
João, puxe aí uma Ave-Maria!
PADRE, ajoelhando-se
Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois
vós entre as mulheres, bendito é o fruto de vosso ventre, Jesus.
JOÃO GRILO
Um momento, um momento. Antes de respondermos, lembrem-se de dizer, em vez
de “agora e na hora de nossa morte”, “agora na hora de nossa
morte”, porque do jeito que nós estamos, está tudo misturado.
TODOS
Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora na
hora de nossa morte. Amém.
A COMPADECIDA
Não precisava fazer a modificação, João. Eu
entenderia.
JOÃO GRILO
É, a senhora eu acredito que entendesse, mas aquele sujeito ali,
com muito menos do que isso, faz uma confusão.
A COMPADECIDA
Está bem, vou ver o que posso fazer.
JOÃO GRILO, ao Encourado
Está vendo? Isso aí é gente e gente boa, não
é filha de chocadeira não! Gente como eu, pobre, filha de Joaquim
e de Ana, casada com um carpinteiro, tudo gente boa.
MANUEL
E eu, João? Estou esquecido nesse meio?
JOÃO GRILO
Não é o que eu digo, Senhor? A distância entre nós
e o Senhor é muito grande. Não é por nada não,
mas sua mãe é gente como eu, só que gente muito boa,
enquanto que eu não valho nada. (Ocorrendo-lhe a brincadeira.) Mas
com toda desgraça, acho que sou menos ruim do que o sacristão.
A COMPADECIDA
Intercedo por esses pobres que não têm ninguém por eles,
meu filho. Não os condene.
MANUEL
Que é que eu posso fazer? Esse aí era um bispo avarento, simoníaco,
político…
A COMPADECIDA
Mas isso é a única coisa que se pode dizer contra ele. E era
trabalhador, cumpria suas obrigações nessa parte. Era de nosso
lado e quem não é contra nós é por nós.
MANUEL
O padre e o sacristão…
Gesto de desânimo.
A COMPADECIDA
É verdade que não eram dos melhores, mas você precisa
levar em conta a língua do mundo e o modo de acusar do diabo. O bispo
trabalhava e por isso era chamado de político e de mero administrador.
Já com esses dois a acusação é pelo outro lado.
É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas é preciso
levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne implica
todas essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era por
medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam
com medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem
querer. É medo.
ENCOURADO
Medo? Medo de quê?
BISPO
Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da morte…
PADRE
Medo do sofrimento…
SACRISTÃO
Medo da fome…
PADEIRO
Medo da solidão. Perdoei minha mulher na hora da morte, porque a
amava e porque sempre tive um medo terrível da solidão.
MANUEL
E é a mim que vocês vêm dizer isso, a mim que morri abandonado
até por meu pai!
A COMPADECIDA
Era preciso e eu estava a seu lado. Mas não se esqueça da
noite no jardim, do medo por que você teve de passar, pobre homem, feito
de carne e de sangue, como qualquer outro e, como qualquer outro também,
abandonado diante da morte e do sofrimento.
JOÃO GRILO
Ouvi dizer que até suar sangue o senhor suou.
MANUEL
É verdade, João, mas você não sabe do que está
falando. Só eu sei o que passei naquela noite.
A COMPADECIDA
Seja então compassivo com quem é fraco.
MANUEL
Mas esses dois? Você mesma via daqui e comentava o que eles faziam
com João Grilo e os outros empregados na padaria!
JOÃO GRILO
Se é por mim, não há dificuldade, porque eu sou tão
sem-vergonha, que já me esqueci de tudinho.
MANUEL
Devia ter esquecido lá, João. Pode alegar alguma coisa em
favor deles?
A COMPADECIDA
O perdão que o marido deu à mulher na hora da morte, abraçando-se
com ela para morrerem juntos.
MANUEL
Isso pode se dizer em favor dele. Mas ela?
ENCOURADO
Enganava o marido com todo mundo.
MULHER
Porque era maltratada por ele. Logo no começo de nosso casamento,
começou a me enganar. A senhora não sabe o que eu passei, porque
nunca foi moça pobre casada com homem rico, como eu. Amor com amor
se paga.
A COMPADECIDA
Eu entendo tudo isso mais do que você pensa. Sei o que as mulheres
passam no mundo, se bem que não tenha do que me queixar, porque meu
marido era o que se pode chamar um santo.
JOÃO GRILO
Grande novidade!
A COMPADECIDA
O que, João?
JOÃO GRILO
Falei não.
ENCOURADO
Falou, sim. Ele disse: “Grande novidade.”
A COMPADECIDA
Na verdade, João tem toda razão. Falei assim por falar, mas
que São José era um santo, não é nenhuma novidade.
ENCOURADO
A senhora está falando muito e vê-se perfeitamente sua proteção
com esses nojentos, mas nada pôde dizer ainda em favor da mulher do
padeiro.
A COMPADECIDA
Já aleguei sua condição de mulher, escravizada pelo
marido e sem grande possibilidade de se libertar. Que posso alegar ainda em
seu favor?
PADEIRO
A prece que fiz por ela antes de morrer. O mais ofendido pelos atos que
ela praticava era eu e, no entanto, rezei por ela. Isso deve ter algum valor.
A COMPADECIDA
E tem. Alego isso em favor dos dois.
MANUEL
Está recebida a alegação.
A COMPADECIDA
Quanto a Severino e ao cabra dele…
MANUEL
Quanto a esses, deixe comigo. Estão ambos salvos.
ENCOURADO
É um absurdo contra o qual…
MANUEL
Contra o qual já sei que você protesta, mas não recebo
seu protesto. Você não entende nada dos planos de Deus. Severino
e o cangaceiro dele foram meros instrumentos de sua cólera. Enlouqueceram
ambos, depois que a polícia matou a família deles e não
eram responsáveis por seus atos. Podem ir para ali.
Severino e o Cangaceiro abraçam os companheiros e saem para o céu.
BISPO
E nós?
SACRISTÃO
Decida-se logo, por favor, porque essa ansiedade é pior do que qualquer
outra coisa.
MANUEL
Não diga isso, você não sabe o que se passa lá.
Qualquer ansiedade é melhor do que aquilo.
ENCOURADO
É, mas não posso ficar eternamente à espera. Qual é
a sentença?
A COMPADECIDA
Um momento, meu filho. Antes de dizer qualquer coisa, não se esqueça
de que o frade absolveu a todos condicionalmente e rezou por eles.
MANUEL
Pois não. Vou então proferir a sentença.
JOÃO GRILO
Um momento, senhor. Posso dar uma palavra?
MANUEL
Você o que é que acha, minha mãe?
A COMPADECIDA
Deixe João falar.
MANUEL
Fale, João.
JOÃO GRILO
Os cinco últimos lugares do purgatório estão desocupados?
MANUEL
Estão.
JOÃO GRILO
Pegue esses cinco camaradas e bote lá.
A COMPADECIDA
É uma boa solução, meu filho. Dá para eles pagarem
o muito que fizeram e assegura a sua salvação.
JOÃO GRILO
E tem a vantagem de descontentar aquele camarada ali que é pior do
que carne de cobra.
Não está vendo ele ali, de costas?
MANUEL
Estou.
JOÃO GRILO
Isso é de ruim.
MANUEL
Minha mãe o que é que acha?
A COMPADECIDA
Eu ficaria muito satisfeita.
MANUEL
Então está concedido.
ENCOURADO
Não tem jeito não. Homem que mulher governa…
MANUEL
Podem ir, vocês cinco.
Os cinco se despedem comovidamente de João Grilo.
JOÃO GRILO
Muito bem. Desmanchem essa cara de enterro e boa viagem para todos.
Saem todos.
MANUEL
E agora, nós, João Grilo. Por que sugeriu o negócio
para os outros e ficou de fora?
JOÃO GRILO
Porque, modéstia à parte, acho que meu caso é de salvação
direta.
ENCOURADO
Era o que faltava! E a história que estava preparada para a mulher
do padeiro?
MANUEL
É, João, aquilo foi grave.
JOÃO GRILO
E o senhor vai dar uma satisfação a esse sujeito, me desgraçando
para o resto da vida? Valha-me Nossa Senhora, mãe de Deus de Nazaré,
já fui menino, fui homem…
A COMPADECIDA, sorrindo
Só lhe falta ser mulher, João, já sei. Vou ver o que
posso fazer. (A Manuel.) Lembre-se de que João estava se preparando
para morrer quando o padre o interrompeu.
ENCOURADO
É, e apesar de todo o aperreio, ele ainda chamou o padre de cachorro
bento.
A COMPADECIDA
João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as
maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene,
deixe João ir para o purgatório.
JOÃO GRILO
Para o purgatório? Não, não faça isso assim
não. (Chamando a Compadecida à parte.) Não repare eu
dizer isso mas é que o diabo é muito negociante e com esse povo
a gente pede o mais para impressionar. A senhora pede o céu, porque
aí o acordo fica mais fácil a respeito do purgatório.
A COMPADECIDA
Isso dá certo lá no sertão, João! Aqui se passa
tudo de outro jeito! Que é isso? Não confia mais na sua advogada?
JOÃO GRILO
Confio, Nossa Senhora, mas esse camarada enrolando nós dois.
A COMPADECIDA
Deixe comigo. (A Manuel.) Peço-lhe então, muito simplesmente,
que não condene João.
MANUEL
O caso é duro. Compreendo as circunstâncias em que João
viveu, mas isso também tem um limite. Afinal de contas, o mandamento
existe e foi transgredido. Acho que não posso salvá-lo.
A COMPADECIDA
Dê-lhe então outra oportunidade.
MANUEL
Como?
A COMPADECIDA
Deixe João voltar.
MANUEL
Você se dá por satisfeito?
JOÃO GRILO
Demais. Para mim é até melhor, porque daqui para lá
eu tomo cuidado para a hora de morrer e não passo nem pelo purgatório,
para não dar gosto ao cão.
A COMPADECIDA
Então fica satisfeito?
JOÃO GRILO
Eu fico. Quem deve estar danado é o filho de chocadeira.
O Encourado, furioso, volta-se para João, mas nesse momento, ou dá
um grande grito e corre para o inferno, ou deita-se no chão e rasteja
até onde está a Virgem para que ela lhe ponha o pé sobre
a nuca (cf. Gênesis, 3, 15), saindo após.
JOÃO GRILO
Que foi que ele teve, meu Deus?
A COMPADECIDA
Na raiva, virou-se para você e me viu.
JOÃO GRILO
Quer dizer que estou despachado, não é?
MANUEL
Não. Vou deixar que você volte, porque minha mãe me
pediu, mas só deixo com uma condição.
JOÃO GRILO
Qual é
MANUEL
Você me fazer uma pergunta a que eu não possa responder. Pode
ser?
JOÃO GRILO
Está difícil.
MANUEL
É possível, você que é tão esperto?
JOÃO GRILO
Mais esperto do que eu é o senhor que me criou. Mas vou tentar sempre.
A COMPADECIDA
Isto, João. Tenha coragem, não desanime, que eu estou aqui,
torcendo por você.
JOÃO GRILO
Então estou garantido. Eu me lembro de que uma vez, quando Padre
João estava me ensinando catecismo, leu um pedaço do Evangelho.
Lá se dizia que ninguém sabe o dia e a hora em que o dia do
Juízo será, nem homem, nem os anjos que estão no céu,
nem o Filho. Somente o Pai é que sabe. Está escrito lá
assim mesmo?
MANUEL
Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo
treze, versículo trinta e dois.
JOÃO GRILO
Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante?
MANUEL
Sou não, João, sou católico.
JOÃO GRILO
Pois na minha terra, quando a gente vê uma pessoa boa e que entende
de Bíblia, vai ver é protestante. Bom, se o senhor não
faz objeção, minha pergunta é esta. Em que dia vai acontecer
sua segunda ida ao mundo?
MANUEL
João, isso é um grande mistério. É claro que
eu sei, mas ninguém entenderia nada, se eu explicasse. Nem posso explicar
nada agora, porque você vai voltar e isso faz parte de minha vida íntima
com meu Pai.
JOÃO GRILO
Então deixe eu ir-me embora. Acredito que o senhor saiba, isso faz
parte de sua vida íntima com o senhor seu Pai, mas o que o senhor disse
foi que eu podia voltar se lhe fizesse uma pergunta a que o Senhor não
pudesse responder.
A COMPADECIDA
É verdade, meu filho.
MANUEL
Eu sei, mas para que você não fique cheio de si, vou lhe confessar
que já sabia que você ia-se sair bem. Minha mãe já
tinha combinado tudo comigo, mas você estava precisado de levar uns
apertos. Estava ficando muito saído.
JOÃO GRILO
Quer dizer que posso voltar?
MANUEL
Pode, João, vá com Deus.
JOÃO GRILO
Com Deus e com Nossa Senhora, que foi quem me valeu. (Ajoelhando-se diante
de Nossa Senhora e beijando-lhe a mão.) Até à vista,
grande advogada. Não me deixe de mão não, estou decidido
a tomar jeito, mas a senhora sabe que a carne é fraca.
A COMPADECIDA
Até à vista, João.
JOÃO GRILO, beijando a mão de Cristo
Muito obrigado senhor. Até à vista.
MANUEL
Até à vista, João.
João bota o chapéu de palha velho e esburacado na cabeça
e vai saindo.
MANUEL
João!
JOÃO GRILO
Senhor?
MANUEL
Veja como se porta.
JOÃO GRILO
Sim senhor
Sai de chapéu na mão, sério curvando-se.
MANUEL
Se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai
terminar como disse Murilo: feito repartição pública,
que existe mas não funciona.
PALHAÇO, entrando
Aqui, sinto interromper a conversa de dois atores tão importantes,
mas é preciso arrumar novamente a cena para o enterro de João.
Estamos novamente na terra. Levem seus tronos, por favor, enquanto se ajeita
o resto do cenário e o espetáculo continua. (Depois da saída
dos dois atores.) Chicó arranjou uma rede e colocou nela o corpo do
amigo. Vamos enterrá-lo, ele e eu. Vai começar o ato final da
peça.
Essa é uma das falas que podem ser suprimidas ou adaptadas de acordo
com a encenação adotada. O Palhaço sai e volta logo,
segurando um dos punhos da rede, em que João vai se enterrar. Segurando
o outro punho, entra Chicó.
CHICÓ
Ai, ai, nunca pensei que João fosse tão pesado!
PALHAÇO
Vamos descansar um pouco, que o cemitério é longe.
Deitam o corpo, dentro da rede, no chão e sentam-se um pouco, enxugando
o suor.
CHICÓ
Quando eu penso que pobre de João não tem nem direito a um
enterro em latim! Coitado, está mais abandonado do que o cachorro do
padeiro. Pobre de João!
JOÃO GRILO, erguendo a cabeça para fora da rede
É, pobre de João agora, mas nesse instante vinha reclamando
meu peso.
CHICÓ
Você ouviu alguma coisa?
PALHAÇO
Eu não.
CHICÓ
Pois eu ouvi direitinho a fala de João.
PALHAÇO
Ai, ai, ai, você já começa com suas histórias!
JOÃO GRILO, com voz de alma
Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria para essa alma que aqui pena!
CHICÓ
Ai!
PALHAÇO
Ai! Chicó, me acuda que é a alma de João!
CHICÓ
Valha-me Nossa Senhora! João, pelo amor de Deus, se lembre de que
fui seu amigo!
JOÃO GRILO, saltando fora da rede
Estou aqui, Chicó!
CHICÓ
Ai!
PALHAÇO
Ai! Corre Chicó!
CHICÓ
E eu posso? Acho que minhas pernas caíram!
PALHAÇO
Então vá-se danar, porque eu vou!
Sai correndo. Chicó ajoelha-se.
JOÃO GRILO, cruzando os braços
Tenha vergonha, Chicó! Um homem desse tamanho com medo de alma! Nem
coragem para correr teve!
Ai meu Deus, é João! João, dizei-me o que quereis e
se estais no céu, no inferno ou no purgatório!
JOÃO GRILO
Olhe a besteira dele! Fica logo com fala de alma: “João, dizei-me
se estais não sei o quê!” Tenha vergonha, Chicó,
estou vivo!
CHICÓ
É alma e da ruim, daquela que diz que está viva. Ai, minha
Nossa Senhora!
JOÃO GRILO, dando-lhe uma tapa
Levante, Chicó. Não está vendo que sou eu? Estou vivo,
rapaz!
CHICÓ
É possível?
JOÃO GRILO
Tanto é possível que estou aqui.
CHICÓ
Eu só acredito vendo.
JOÃO GRILO, aproximando-se
Pois então veja.
CHICÓ
Ai!
JOÃO GRILO
Que é isso, homem? Você não disse que acreditava vendo?
CHICÓ
Disse, mas não lhe pedi que mostrasse não.
JOÃO GRILO
E como é que vai ser agora, Chicó?
CHICÓ
Assim mesmo, eu sem acreditar e você sem mostrar.
JOÃO GRILO
E nossa sociedade, nossa velha amizade, vão se acabar?
CHICÓ
Já estão acabadas. É contra meus princípios
fazer sociedade com defunto.
JOÃO GRILO
Mas eu estou vivo, rapaz. Veja, pegue aqui no meu braço.
CHICÓ
Ai!
JOÃO GRILO
Tenha coragem, homem, pegue!
Com a maior cautela Chicó toca-lhe o braço e enfim se convence.
CHICÓ
Meu Deus, é mesmo! João! (Abraça-o.) Como foi isso,
João?
JOÃO GRILO
Sei não, Chicó, acho que a bala pegou de raspão. Fiquei
com a vista escura e quando acordei estava na rede e vocês iam me enterrar.
Mas tenho uma notícia horrível para você.
CHICÓ
João, você tendo escapado, é o que basta. O que é
que há?
JOÃO GRILO
Perdi o dinheiro.
CHICÓ
Que dinheiro, rapaz?
JOÃO GRILO
O testamento do cachorro. Quando acordei, meti a mão no bolso e não
achei nada.
CHICÓ
Pode ficar descansado, João, o dinheiro da sociedade está
aqui. Eu tirei de seu bolso, antes de você se enterrar.
JOÃO GRILO
Ah, cabra safado, com pena de mim, mas não se esqueceu do dinheiro,
hem!
CHICÓ
Homem, quer saber de uma coisa? Foi. Você já estava morto,
esse dinheiro não ia mais lhe servir, achei que era mais seguro eu
ficar com ele.
JOÃO GRILO
Fez bem, eu teria feito o mesmo. Quer dizer que estamos ricos?
CHICÓ
Estamos. Além do dinheiro do enterro, o que Severino tirou da padaria.
Estamos ricos,
João. Que acha de ficarmos com a padaria?
JOÃO GRILO
Grande idéia. (Como quem vê a tabuleta.) Padaria Miramar, João
Grilo, Chicó & Cia.
Que acha?
CHICÓ
Lindo. Mas João… Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora! Meu Deus,
meu Deus! Meu Deus, meu Deus! Burro, burro!
JOÃO GRILO
Que é isso? Burro o quê? Burro é você!
CHICÓ
Sou eu mesmo, João, sou o maior burro que já apareceu por
aqui. Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora!
JOÃO GRILO
O que é que há, rapaz?
CHICÓ
Coitado de mim, coitado de pobre de João! Era rico nesse instante
e agora é pobre de novo!
JOÃO GRILO
Não me diga que perdeu o dinheiro!
CHICÓ
Perdi nada, está aqui! Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora!
JOÃO GRILO
E por que essa gritaria, homem de Deus?
CHICÓ
Eu pensei que você tinha morrido, João!
JOÃO GRILO
E o que é que tem isso, homem?
CHICÓ
Tem que eu, pensando que não tinha mais jeito, fiz uma promessa a
Nossa Senhora para dar todo o dinheiro a ela, se você escapasse!
JOÃO GRILO
Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora!
CHICÓ
Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora!
JOÃO GRILO
Mas Chicó, como é que se faz uma promessa dessas?
CHICÓ
E eu sabia lá que você ia escapar, desgraça? Oh homem
duro de morrer, meu Deus!
JOÃO GRILO
Ah promessa desgraçada, ah promessa sem jeito, Chicó!
CHICÓ
Agora é tarde para me dizer isso.
JOÃO GRILO
Não terá sido a metade que você prometeu?
CHICÓ
Não, João, foi tudo.
JOÃO GRILO
Ah promessa desgraçada, ah promessa sem jeito, Chicó!
CHICÓ
É, só reclama de mim! E você, por que achou de escapar?
JOÃO GRILO
Acho que foi de tanta vontade que eu estava de enriquecer. Não terá
sido engano seu Chicó?
CHICÓ
Não, João, tenho certeza absoluta: entrei na igreja, me ajoelhei
e prometi.
JOÃO GRILO
Tudo?
CHICÓ
Tudo.
JOÃO GRILO
Ah promessa desgraçada, ah promessa sem jeito, Chicó.
CHICÓ
Mas já foi feita e o jeito é pagar.
JOÃO GRILO
Pagar?
CHICÓ
Sim.
JOÃO GRILO
Tudo?
CHICÓ
Tudo.
JOÃO GRILO
Ah promessa desgraçada, ah promessa sem jeito, Chicó!
CHICÓ
Está certo, homem, estou tão desgostoso quanto você!
Diabo de uma reclamação em cima da gente de minuto em minuto!
É melhor deixar de conversa: vamos pagar o que se deve!
JOÃO GRILO
Vamos, não; vá você! Eu não prometi nada e metade
do dinheiro é meu!
CHICÓ
É, mas acontece que quando eu prometi ele era todo meu, porque eu
me considerava seu herdeiro.
JOÃO GRILO
Eu não tenho nada com isso, não prometi nada.
CHICÓ
Então fique com sua parte e assuma a responsabilidade. Eu vou entregar
a minha.
JOÃO GRILO
Chicó!
CHICÓ
Que é?
JOÃO GRILO
Espere por mim que eu também vou.
CHICÓ
Vai?
JOÃO GRILO
Vou.
CHICÓ
Pois eu já estava convencido de que você estava certo.
JOÃO GRILO
É, mas faltou quem me convencesse. Se fosse a outro santo, ainda
ia ver se dava um jeito, mas você achou de prometer logo a Nossa Senhora!
Quem sabe se eu não escapei por causa disso? O dinheiro fica como se
fossem os honorários da advogada. Nunca pensei que essa também
aceitasse pagamento!
CHICÓ
João, veja como fala!
JOÃO GRILO
Que é isso, Chicó, está se mascarando? Com Deus, não,
mas com Nossa Senhora eu tenho coragem de tirar brincadeira!
CHICÓ
Quer dizer que entrega?
JOÃO GRILO
Entrego. Palavra é palavra e depois estive pensando: quem sabe se
a gente, depois de ficar rico, não ia terminar como o padeiro? Assim
é melhor cumprir a promessa: com desgraça a gente já
está acostumado e assim pelo menos não se fica com aquela cara.
CHICÓ
É mesmo.
JOÃO GRILO
Pois vamos. Mas de outra vez, veja o que promete, infeliz, porque essa,
ah. Promessa desgraçada, ah promessa sem jeito!
Saem. Entra o Palhaço.
PALHAÇO
A história da Compadecida termina aqui. Para encerrá-la, nada
melhor do que o verso com que acaba um dos romances populares em que ela se
baseou:
“Meu verso acabou-se agora,
Minha história verdadeira.
Toda vez que eu canto ele,
Vêm dez mil-réis pra a algibeira.
Hoje estou dando por cinco,
Talvez não ache quem queira.”
E se não há quem queira pagar, peço pelo menos uma
recompensa que não custa nada e é sempre eficiente: seu aplauso.
Pano.
Recife, 24 de setembro de 1955.
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