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Qorpo Santo
Comédia em Quatro Atos
Personagens
Impertinente
Consoladora
Intérpreta
Júlia,
Marca e
Mildona – mulheres da vida
Um indivíduo
Truquetruque
Mariposa
Inesperto, criado
Malherbe
Rapazes
ATO PRIMEIRO
Cena Primeira
IMPERTINENTE – Já estava admirado; e consultando a mim mesmo, já
me parecia grande felicidade para esta freguesia o não dobrarem os
si….. E para eu mesmo não ouvir os tristes sons do fúnebre
bronze! Estava querendo sair a passeio; fazer uma visita; e já que
a minha ingrata e nojenta imaginação tirou-me um jantar, pretendia
ao menos conversar com quem m’o havia oferecido. Entretanto não sei
se o farei! Não sei porém o que me inspirou continuar no mais
improfícuo trabalho! Vou levantar-me; continuá-lo; e talvez
escrever em um morto: talvez nesse por quem agora os ecos que inspiram pranto
e dor despertam nos corações dos que os ouvem, a oração
pela alma desse a cujos dias Deus pôs termo com a sua Onipotente voz
ou vontade! E será esta a comédia em 4 atos, a que denominarei
– As Relações Naturais.
(Levanta-se; aproxima-se de uma mesa; pega uma pena; molha em tinta; e começa
a escrever:)
São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na cidade de Porto Alegre, capital
da Província de S. Pedro do Sul; e para muitos, – Império do
Brasil… Já se vê pois que é isto uma verdadeira comédia!
(Atirando com a pena, grita:) Leve o diabo esta vida de escritor! É
melhor ser comediante! Estou só a escrever, a escrever; e sem nada
ler; sem nada ver (muito zangado). Podendo estar em casa de alguma bela gozando,
estou aqui me incomodando! Levem-me trinta milhões de diabos para o
Céu da pureza, se eu pegar mais em pena antes de ter… Sim! Sim! Antes
de ter numerosas moças com quem passe agradavelmente as horas que eu
quiser. (Mais brabo ainda.) Irra! Irra! Com todos os diabos! Vivo qual burro
de carga a trabalhar! A trabalhar! Sempre a me incomodar! E sem nada gozar!
– Não quero mais! Não quero mais! E não quero mais! Já
disse! Já disse! E hei de cumpri-lo! Cumpri-lo! Sim! Sim! Está
dito! Aqui escrito (pondo a mão na testa); está feito; e dentro
do peito! (Pondo a mão neste.) Vou portanto vestir-me, e sair para
depois rir-me; e concluir este meu útil trabalho! (Caminha de um para
outro lado; coça a cabeça; resmunga; toma tabaco ou rapé;
e sai da sala para um quarto; veste-se; e sai o mais jocosamente que e possível.)
Estava (ao aparecer) eu já ficando ansiado de tanto escrever, e por
não ver a pessoa que ontem me dirigiu as mais afetuosas palavras! (Ao
sair, encontra uma mulher ricamente vestida, chamada Consoladora.)
Cena Segunda
CONSOLADORA – Onde vai, meu caro Sr.? Não lhe preveni eu de que hoje
teria em seu palácio a mais bela das damas de São…
IMPERTINENTE – Ora, ora, Sra. Não vê que eu já estou
aborrecido das mulheres! (À parte:) É preciso dizer-lhe o contrário
do que penso! Como a sra. se abalança ainda a falar em damas na minha
presença!? Só se são damas de folgar… São?
CONSOLADORA (mostrando-se indignada, e batendo um pé no assoalho)
Bárbaro! Cruel! Não vives a pedir uma mulher jovem, formosa,
asseada e bela para tua companhia?! Pensas que ignoro o que pensas; o que
fazes!? Não vês; não sabes; não conheces que sou
mágica!? Atrevido! Não te lembras que ainda ontem ou anteontem
olhaste para mim, e achaste que eu era no Céu o mais lindo, o mais
belo e mais agradável planeta que lá habitava? Não me
pediste que eu guiasse teus passos; tuas ações; tuas palavras,
Audaz! Pensas que eu não sei que ias atrás de mulheres! Para
que queres mulher!? Não vives tão bem, não comes, não
bebes, não dormes tão descansado?!
IMPERTINENTE – (virando-se para o público) Já se viu que sarna
gálica me atormenta! Cruzes! (Benzendo-a.) Cruzes! Eu te desconjuro!
CONSOLADORA – Já disse: o Sr. não sai daqui! (Pega uma cadeira
e põe perto da porta de sair.)
IMPERTINENTE – Senhora, se continua deste modo, fique certa que me mato!
É preciso ter juízo! Ao contrário, nem serei eu, nem
a Sra. minha!
CONSOLADORA – Ah! (levantando-se) Sim: quer ir! Pois vá; mas há
de ir sem casaca! (Avança-se a ele, e tira-lhe a casaca; ficando ele
de sobre-casaca).
IMPERTINENTE – Ah! Ainda deixa-me a sobrecasaca! Pois irei com ela (Faz
uma cortesia a ela e quer sair.)
CONSOLADORA – Sim! Ficou ainda vestido! Pois há de ir sem chapéu.
(Avança-se a ele para o tirar; e depois de alguns saltos, consegue
fazê-lo; fica-lhe um boné de forma piramidal. Olha, e diz:) Este
homem é o diabo! Tiro-lhe as calças… (Vai dirigir-se para
tal fim; ele agarra com uma mão em cada perna; e sai aos pulos dizendo:)
Se és planeta, eu sou cometa!
CONSOLADORA – (muito triste) E não foi o tal cometa brilhar noutro
hemisfério! Nunca mais atendo às petições de amparo,
guia, ou proteção a mais cometa algum.
Cena Terceira
(Entra ele com uma menina de 16 anos a quem conhecemos por Intérpreta
pelo braço.)
IMPERTINENTE – (para ela, ao transpor a porta) Cuidado! Não se pise
nestes tapetes, que já estão um tanto velhos! (Para o público,
andando para a frente:) Já se vê que a escolha que fiz hoje,
e que pretendo fazer de uma em cada mês, é a… (Para ela:) Digo?
Digo?
INTÉRPRETA – Se quiser, pode dizer!
IMPERTINENTE – É uma das melhores que se podia encontrar nos maiores
rebanhos desta…
INTÉRPRETA – Pois chama rebanhos às famílias que habitam
esta cidade!?
IMPERTINENTE – Pois o que é mais triste que um grande rebanho de
ovelhas merinas!?
INTÉRPRETA – Eu sempre considerei de outro modo: sempre entendo que
a mulher como o homem é um ente que deve ser por todos respeitado,
como a segunda primorosa obra do Criador; e que assim não sendo, só
milhares de males e transtornos se observarão na marcha geral da humanidade!
IMPERTINENTE – Há! Há! Há! A menina está no
mundo da lua! Ainda crê nas caraminholas que lhe encaixam na cabeça,
de seu avô torto, visto que segundo as últimas participações
espirituais que tivemos, o direito há muito que é morto!
INTERPRETA – (à parte) Em que caí eu, acompanhando este mono!
Isto, é um monte de carne, sem lei, sem moral, sem religião!
Mas ainda é tempo! Quando menos pensar, desapareço de sua presença,
como a escuridão ao brilhar da lua! Não me logras, velho enjoado!
IMPERTINENTE – (para ela) Minha queridinha! Temos aqui um quarto cheio de
roupa! (Apontando) Ali um outro repleto de comestíveis! Acolá
um guarda-louça; naquele canto a cozinha.
INTERPRETA – (aproximando-se; olha; e nada vê; voltando-se para ele)
Sabes que mais? Eu nunca me sustentei de palavras, e muito menos de mentiras!
(Sai.)
IMPERTINENTE – (querendo pegÁ-la) Meu anjo! Minha deusa! Aonde vai!
Venha cá!
INTERPRETA – Já lhe disse: vou-me embora; e aqui não entro
mais; o Sr. enganou-me: quis enganar-me; mas enganou~e a si próprio!
(Sai)
IMPERTINENTE – (voltando-se) É a trigésima, vigésima
e décima vez que me prega estes carões! Diabo! Diabo! e Diabo!
ATO SEGUNDO
Cena Primeira
TRUQUETRUQUE – (batendo em uma porta) Estará ou não em casa?
A porta está fechada não vejo (vigia no buraco da chave) se
é por dentro se é por fora que está a chave; o caso é
(dando com a cabeça), e verdadeiro, que a Sra. D. Gertrudes Guiomar
da Costa Cabral Mota e MeIo, se está é às escuras! Sem
dúvida a esta hora, noite de teatro, noite de retreta, noite de novena,
não é possível deixar de ter ido a alguns destes divertimentos:
se à Igreja, já se sabe – por devoção! Se ao Templo,
por oração! E finalmente, se… não digo (Caminhando
para o centro). Para que hei de mostrar (abrindo os braços) que sou
um grande dialeta, retórico, filósofo! Etc. Etc. Pode ser que
ficassem depois com inveja; e em vez de alimento para eu continuar a brilhar
com o meu grande talento a todo o momento, darem-me envenenamento! Com o qual
eu, muito contra a minha vontade e vontade santíssima! possa ir fazer
a viagem… eterna ao fundo de algum dos maiores infernos que lá por
baixo da terra devem existir! Ainda se me metessem aqui, e eu saíra
lá no ponto oposto onde habitam os nossos… também não
sei se são nossos, ou se são só meus! (Para o público:)
Como chamam estes cujos pés fazem… quando estão lá
em pé têm as solas dos sapatos, se não andam de botas,
voltadas para a sala dos nossos? Hein? Anfíbios, não! Isto é
cousa que anda no mar, e em terra! Hermafroditos! não; isto também
é outra cousa, é o que é macho e fêmea! Cabrito
não é. Não me posso lembrar. Enfim dizia eu que se lá
fosse habitar quando entre na terra com esses cujos pés estão
virados para os nossos, que teria muito prazer; mas como é de supor
que a minha habitação por envenenamento seja a mais completa
e trivial destruição – declaro que não aceito, que não
quero; que não concordo!
Cena Segunda
Abre-se de repente uma porta; aparecem por ela, e por diversas outras, três
ou quatro mulheres, umas em saias, outras com os cabelos desgrenhados; pés
no chão, etc.
UMA DELAS – (para um indivíduo) – Que quer o Sr. aqui?
OUTRA – (puxando-o por um braço) O que faz?
OUTRA – Quem o mandou cá?
OUTRA – Não sabe que sempre foi um homem honesto quanto a… e que
nós somos todas prostitutas!? É um tolo! Safe-se daqui para
fora, Sr. maroto! Senão, olhe (mostrando-lhe o punho) – havemos de
esmurrá-lo com esta mão de pilão!
ELE – Minhas santinhas; (com muita humildade) minhas santinhas, eu queria
dormir com vocês esta noite.
ELAS – (dando uma grande gargalhada) Ah! ah! ah!
UMA (para outra) Não queres ver, Mana, o desaforo, a petulância
deste estúrdio!? Querer passar conosco a noite, quando nós sabemos
que ele é conde e tem filhos carnais!
OUTRA – Ah! ah! ah! Se fossem só os carnais era nada (batendo no
ombro da que primeiro fala) – os espirituais é que é; que não
têm conta.
OUTRA – Ele já está esquecido que os discípulos o fizeram
padre eterno; e que por isso não deve tocar em carne.
OUTRA – (apontando com o mostrador) Já, seu maroto, rua! senão…
ELE – Isto é o diabo! Estas mulheres chamam-me com o espírito
quando estou em casa; e quando saio à rua, com as palavras, com as
mãos, com os dedos, com a cabeça, com os olhos, e se as encontro
fora, então é até com seus remexidos! Mas se lhes venho
à casa, é isto que se vê! Cruzes! (Cuspindo em todas elas.)
Abrenúncio! Eu as desconjuro para nunca mais as ver! Não olharei
mais para estas tigras! (Sai.)
Cena Terceira
UMA DELAS – (Olhando-se) Ora; ora; ainda agora é que reparo! Estou
quase em fraldas de camisa! Vejam este maluco como me pôs também
maluca!
OUTRA – (alisando os cabelos) E eu com os cabelos todos desgrenhados! Se
ele cair em vir cá outra vez, hei de enforcá-lo com uma destas
tranças, e pendurá-lo no vácuo deste salão.
OUTRA – E que bonito ele há de ficar, mana, se qual lontra aqui o
pusermos! Havemos de enche-lo de livros; será… – um centro! Como
um sol que dardejará seus raios para todos os cantos desta casa, para
todos os cantos do hemisfério que alumia!
OUTRA – Mas isto é dar muita importância a esse Judas, fazê-lo
centro de tudo.
AS PRIMEIRAS – O que tem? Esse diabo já o tem sido de luz espiritual,
agora que o seja também de luz material!
UMA DELAS – Sabem o que mais? – Vamos vestirmo-nos e pôr-mo-nos às
janelas à espera de vermos os nossos namorados!
TODAS – Apoiado! Não percamos nossos costumes por causa de um maluco!
Vamos! Vamos! (Entram todas para os quartos d’onde saíram.)
Cena Quarta
VELHA MARIPOSA – (entrando toda cheia de dengosidade, pegando os vestidos
como quem quer dançar, e comete outros numerosos atos, que indicam
a pregoeira gaiata da presente época) Ainda há cinco minutos,
era esta sala um teatro de moças quase nuas! Acompanhadas de certo
individuo de meia idade, que parece mais um velho bem doente, que um homem
são, valente e cheio de… certa cousa… certa força que eu
não quero dizer, porque não é tão decente como
convém a tão ilustre assembléia! (Olhando para diversos
lados.) Onde estão estas meninas? Júlia! Júlia!
JÚLIA – Sra.? Sra.?
MARIPOSA – Vem cá, menina! Chama as tuas irmãs!
JÚLIA – Ora, Mamãe; eu ainda não estou vestida!
MARIPOSA – Entra, chama uma das tuas Irmãs!
JÚLIA – Está bom, Mamãe; eu já vou.
MARIPOSA – Muito custa a criar filhas! Ainda mais acomodar; muito mais casar;
e ainda pior aturá-las! Pilham-se moças, e o que querem é
namorar!
JÚLIA – (entrando e sacudindo os vestidos) Acabava eu agora mesmo…
MARIPOSA – Já sei; acabas de… Basta; não prossigas! Tu és,
eu sei o quê!
JÚLIA – (pondo as mãos) Por piedade, minha querida Mãe!
Não faça de mim o menor mau juÍzo! Sabe que sempre fui
uma de suas melhores filhas, obediente e respeitosa, e mais que tudo – amorosa!
MARCA – (irmã de Júlia, entrando mui ligeiramente, ou fazendo
alguns passos de dança até chegar perto da Mãe; ao chegar,
ajoelha-se, pega-lhe na mão e beija-a) Minha – mais que todas as mulheres,
Querida Mãe! Eis-me prostrada a seus pés, para pedir-lhe perdão
de quantos pecados hei cometido, ou guisados hei comido! Perdoa, Mamãezinha,
perdoa, sim?
MARIPOSA – Sim; sim. Está perdoada; pode levantar-se. Mas não
torne a cair em outra! Eu conheço seus crimes.
MARCA – (levantando-se) Sim; sim. Quanto sou feliz! A minha querida mãe
quanto é boa! Ainda pela quinta vez quis perdoar à sua mais
desobediente, cruel, ou mesmo – tirana filha!
MARCA – Eu não sei deles. Vossa Mercê bem sabe que moro sozinha
no meu quarto; a mana é que há de saber!
MARIPOSA – Onde estão? Não me diz? Ainda não me vieram
tomar a bênção, sendo entretanto mais de oito horas! (Entram
os outros filhos.)
ELES – (estendendo as mãos) Sua bênção, minha
Mãe.
MARIPOSA – (fazendo sinal com a mão) Deus abençoe a todos,
que eu o faço em particular a cada um. Sim, meninas, são horas
de missa; vamos cobrir nossos véus, e sigamos a orar ao Senhor – por
nós e por nossos avós!
TODOS – Prontos a obedecê-la, a segui-la. (Saem todos).
ATO TERCEIRO
Cena Primeira
INESPERTO – (criado) Por mais que arrume (atirando com uma bota para um lado;
com um livro para outro; com uma bandeja no chão; com um espanador
para um canto; e assim com tudo o mais que se achava arrumado), sempre encontro
esta sala, este quarto, ou como o quiserem chamar… câmara, dormitório,
ou não sei que mais – desarrumado! Nada, nada, isto não pode
continuar assim! Ou hei de deixar de ser criado desta casa, ou as cousas hão
de conservar-se nos lugares em que eu arrumo! São honras que a ninguém
eu cedo… O que porém é mais notável é que além
de me não respeitarem, nem obedecerem – não pagam-me também
nem a quinta parte dos salários comigo contratados! Mas nada me hão
de ficar a dever! Quando retirar-me, hei de levar o dobro do que houver licitamente
ganho, a fim de que paguem-me os prêmios, pois não estou resolvido
a perdê-los!
Cena Segunda
MALHERBE – (amo muito espantado, entrando)
Que é isto, Judas!? Enlouqueceste-o, Inesperto? Onde está tua
Ama?
INESPERTO – Qual enlouqueci… Todos os dias arrumo esta casa; e em todos
os dias nela acho que arrumar; e ainda pergunta-me por minha ama, mulher feia,
velha e má! Se há de ainda ir ver as moças, este tagarela,
é isto todos os dias… Ainda coisa mais mol, mais ruim, que este meu
amo (para o amo, dando com a mão): Vá-se embora daqui para fora,
senão – o matam, seu Judeu Errante!
MALHERBE – Este diabo está hoje com o demo nas tripas!… Ó
Judas, dize-me: o que comeste hoje? Bebeste vinho? champanha, vinagre, água-forte?
Que diabo tens tu hoje? Estás bêbado?
INESPERTO – Qual bêbado, nem meio bêbado: nunca estive eu em
meu tão perfeito estado de juízo ou de mais completa saúde!
MARIPOSA – (entrando) Ih!… que espalhafato fez o Judeu hoje! (Querendo
arrumar tudo; para o marido:) Senhor, tome juízo; despeça esse
maldito, que não faz senão o que está vendo! O Sr. parece-me
cego. Embalde (metendo os dedos nos olhos do marido) tem dois fogões
nesta cara; tu não enxergas.
MALHERBE – Tu, teu criado, e tuas filhas, não são entes da
espécie humana. São malditas feras que aqui habitam para flagelar-me!
(Para ambos:) Fora daqui! Se demoram pego em tudo isto (agarrando as mesas)
e penduro quais rosários nas cabeças de vocês dois!.
MARIPOSA – (para o criado) Sabes o que convém fazer: é safarmo-nos!
O homem hoje está resoluto a matar, ou
mostrar-nos que é Senhor desta casa.
INESPERTO – Diz bem, minh’ama; vamos nós saindo em boa paz! (Enfia
o braço na ama.) É melhor – velha, feia, má, que nenhuma!
(Abanando com a mão.) Adeus, Sr. estúrdio! Adeus, até
mais ver! (Saem.)
Cena Terceira
MALHERBE – (só) ‘Estes diabos têm tentado devorar-me por todos
os modos! Mas eu os hei de pôr no estado o mais deplorável que
se pode imaginar! Deixemos, deixemos; eles para cá hão de vir
(dando alguns passeios, coçando a barba, compondo o cabelo etc.)
MILDONA – (entrando) Que saudades eu tinha de meu querido Pai!
MALHERBE – Ah! és tu, minha querida Mildona? Quanto é doce
vermos feitos de nossos trabalhos de longos anos!? Um abraço, minha
estimadÍssima, minha mesmo queridíssima filha!
MILDONA – O Sr. não reparou bem; eu não sou a sua encantadora
filha; mas a jovem a quem o Sr. em vez de amizade, sempre há confessado
tributar amor!
MALHERBE – Ah! onde estava eu!? Sonhava; pensava em ti; via, e não
te enxergava! Sim, sois minha; és minha; e serás sempre minha
por todos os séculos dos séculos, Amém! (Saem.)
Cena Quarta
O CRIADO – (entrando, pé-ante-pé) Amolei tudo! Não pensem
que farão espadas, facas, punhais, ou lanças! Mas os amáveis
que desprezando todos os direitos dos cidadãos brasileiros, matavam
e roubavam a seu belo prazer! O tal meu amo entendia que cada botina que comprava,
e que calçava, era uma mulher que condenava ao matadouro dos seus desejos!
E a tal minha ama procedia do mesmo modo quanto ao xales que a cobria; dizia
(pegando, e pondo um xale:) isto é masculino, está portanto
relacionado com um homem; é novo; e por isso, assim como eu me cubro
com ele, também há de me cobrir esta noite um bom moço!
E assim é que não havia Pai, nem filho; Mãe ou filha
que pudesse, nem por cinco minutos, ter descanso e tranqÜilidade em suas
habitações!
MALHERBE – (entrando de bengala) Ah! ainda estás aqui! Toma! (Dá-lhe
com a bengala até que sai disparando por uma das portas, gritando:)
Não quero mais servi-lo! Não quero! Não quero! já
disse.
Cena Quinta
(A moça [Mildona] sai do quarto; e entra apressadamente na sala; para
o amigo:)
Que é isto, que é isto, Sr.? Que é isto…! Entrou
aqui algum ladrão! Algum assassino! O Sr., de bengala, gritando e dando
pancada!
MALHERBE (muito terno) Não é cousa alguma, menina; foi apenas
uma lição que quis dar a este mariola, que tem o título
de meu criado: quis fazer-se de amo! Agora porém que já lecionei,
podemos gozar tranqüilos de uma existência feliz! (Dão dois
ou três passeios pela sala, e sentam-se em um sofá; conversam
sobre várias cousas; ouvem bater; levanta-se a moça; vai à
porta, e foge espavorida; entra assim para um dos quartos. Levanta-se ele
cheio de espanto; chega também à porta, dá um grito de
dor, diz:) São eles! São eles! São eles! (Cai desfalecido,
e assim termina o segundo ato. Milhares de luzes descem e ocupam o espaço
do cenário.)
ATO QUARTO
Cena Primeira
Tudo corre; tudo grita (mulher; filhos; marido; criado, que por um dia foi
amo do amo).
Incêndio! Incêndio! Incêndio! Venham bombas! Venha água!
(É um labirinto, que ninguém se entende, mas o fogo, a fumaça
que se observa, não passa, ou o incêndio não real, mas
aparente).
Pegam em barris dágua, em canecas e outros vasos; e todos atiram água
para o ar; chega uma bomba pequena, e com ela também atiram água,
por espaço de alguns minutos; mas o incêndio parece lavrar com
mais força até que se extingue ou desaparece.
MALHERBE – (depois de todos tranqüilos) Sempre a desordem nas casas
sem ordem! Sempre as perdas; os desgostos; os incômodos de todas as
espécies! Santo Deus! por que não crucificais aqueles que desrespeitam
vossos santos preceitos!? Mas, que digo? Se continuo, estas mulheres são
capazes de pendurar-me naquela travessa, e aqui deixarem-me exposto, por não
querer acompanhá-las em seus modos de pensar e de julgar! O melhor
é retirar-me! Vou descansar por alguns minutos. (Sai.)
Cena Segunda
ELAS – (umas para as outras) Preparemo-nos para pregar um susto neste mariola!
Já que ele não quer obedecer aos nossos chamados espirituais,
e aos das outras mulheres; já que é preguiçoso, vaidoso,
ou orgulhoso; ao menos preguemos-lhe um susto!
TODAS – Apoiado! Apoiadíssimo! Ou ele há de ser obediente
às Leis, ou havemos de enforcá-lo, ainda que seja só
por alguns momentos e divertimento! Deixemos ele vir. (Preparam uma corda;
e tudo o mais que as pode auxiliar para tal fim; conversam sobre os resultados
e conseqüências de sua empresa, e o que far&aatilde;o depois; entretanto
entra o criado com ele em figura forte de papelão, abraçado
para poder acompanhá-lo; e é esta a 3.ª Cena.). Cumprimentam-se
todos muito alegremente; e conversam.
UMA DELAS – (para o criado) Ora muito bem! Já se vê quanto
é bom viver conforme as relações naturais. Eu gosto de
mingau de araruta ou de sagu, por exemplo – como; e porque está relacionado
com certo jovem a quem amo; ele aqui me aparece, e eu o gozo! Já se
vê pois que, vivendo conforme elas, é em duplicata!
OUTRA – É verdade, mana; eu, como a comida de que mais gosto é
coco; e porque este se relaciona com certo amigo de meu Pai, ele aqui também
virá, e o meu prazer não será só de paladar, mas
também aquele que provém do amar!
OUTRA – Pois eu, como o que mais aprecio é chocolate, bebê-lo-ei,
bebê-lo-ei; e por idênticas razões gozarei dele e de quem
não quero dizer! Mas o diabo é que assim ficam sem cousa alguma!
MARIPOSA – Pois eu, como gosto muito do meu criado, e ele é mel de
abelha, já se sabe o que eu de hoje em diante hei de sempre comer ou
beber! (Para o marido de papelão:) E o Sr., Sr. Tralhão, que
não quis acompanhar-nos nas relações naturais, importando-se
sempre com direitos; não vendo que o próprio direito autoriza,
dizendo que cada um pode viver como quiser e com quem quiser; há de
ficar aqui pendurado para eterna glória das mulheres, e exemplo final
dos homens malcriados! Contamos (para o criado) com teu auxílio.
INESPERTO – Não precisamos ter trabalho, porque ele está dormindo,
com certa flor que lhe dei a cheirar!
ELAS – Oh! então melhor! Venham as cordas! (Para o criado:) Vê
uma escada; trepa lá; sobe naquela trave; leva esta corda, que nós
cá o amarremos pelo pescoço, e depois tu o sungas.
INESPERTO – Sim; mas como diabo há de ser! Ah! é preciso a
Sra. pegar nele para não cair.
MARIPOSA – Eu seguro!
INESPERTO – (pega a escada, põe em lugar próprio, sobe, levando
a corda, e depois desce.) (À parte:) Estas mulheres não vêem
que não se pode ainda andar com as relações naturais;
que se umas querem, outras não querem; que se umas podem, outras não
podem; que… enfim, são o diabo! Mas elas agora vão conhecer
que eu sou homem, e que por isso mesmo hei de defender e amparar aqueles a
quem elas quiserem crucificar! (Amarra a corda ao pescoço da figura;
e diz:) Está bem atada! Agora vou sungá-lo! (Sobe a escada,
monta na trave, e puxando:) Pesa como o diabo! Não terá dez
arrobas? Mas quinze eu juro que pesa! Irra! (Puxando.) Irra! Arriba! Agora,
agora já está seguro!
ELAS – (umas para as outras) Há de ficar pendurado! Ah! ah! ah! Há
de, há de! (Batem palmas.) Que triunfo! Viva! Viva! Agora, maninha;
já enforcamos este, havemos de enforcar também certo grilo;
e andar com as relações à vontade dos corações!
TODAS – Apoiado! Apoiado! Enforquemos tudo quanto é autoridade que
nos quer estorvar de gozar, como se estivéssemos em um paraíso
terreal!
INESPERTO – (depois de haver prendido o corpo da figura na trave) Pois não!
Não vê que meu amo havia de ser enforcado, para as Sras. fazerem
quando quisessem! Boas! Lá vai bola! Relações, metralha
(Arranca um braço, atira numa delas.)
MARCA – Ah! traidor! (Encolhe-se.)
INESPERTO – Lá vai um estilhaço. Toma relação!
(Atira outro braço noutra).
JÚLIA – Bárbaro! Louco!
INESPERTO – Mais outro! (Arranca a cabeça, ou o chapéu, e
atira em outra, dizendo:) Querem mais!? Se quiserem, venham buscar cá
em cima, que eu vou juntar-me ao meu muito respeitável amo. (Levanta-se
em cima da trave, e sai ou desaparece.)
ELAS – (uma para as outras a enxugarem os olhos:) Que tirano! Que cruel!
Que bárbaro! Que assassino! De modo que assim sendo, se pode ainda
hoje fazer… Cantemos todas;
1.º
– Não nos meteremos
Mais com relações;
Maridos procuremos;
Pois temos corações!
2.º
A nenhum mais tentaremos
Destruir seus sentimentos!
A um só nós serviremos,
P’ra não ter duros tormentos!
3.º
Com nenhum nos contentarmos,
Ou a todos não querermos;
É assim querer matar-nos,
Pondo todos quase enfermos.
4.º
Tenhamos pois juÍzo!
Cada qual com seu esposo!
Se não, não há paraíso!
Tudo inferno! – nenhum gozo!
5.º
Para comermos;
Para bebermos,
Não precisamos
De certos dramas!
6.º
De andar,
Sempre a matar,
Os corações
Com as relações!
7.º
Os que só querem
(Que desesperem!)
Por relações
São veros ladrões!
8.º
Basta o trabalho,
Certo, não falho;
Para vivermos;
E mil gozos termos.
Fim do 4.º ato, e da comédia escrita em 14 de maio de 1866, por
José Joaquim de Campos Leão, Qorpo-Santo, em a cidade de Porto
Alegre, sala n.º 21, no Beco do Rosário.
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