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Capítulo I – Encontro com os Meus Camaradas
É bem estranho que nesta minha idade, aos cinqüenta e seis anos
feitos, esteja eu aqui, de pena na mão, preparando-me a redigir uma
história! Nunca imaginei que tão prodigiosa ocorrência
se pudesse dar na minha vida – vida que me parece bem cheia, e vida que me
parece bem longa… Sem dúvida, por a ter começado tão
cedo! Com efeito, na idade em que os outros rapazes ainda soletram nos bancos
da escola, já eu andava agenciando o meu pão por esta velha
colônia do Cabo. E por aqui fiquei desde então, metido em negócios,
em serviços, em travessias, em guerras, em trabalhos – e nessa dura
profissão, que é a minha, a caça ao elefante e ao marfim.
Pois, com toda esta diligência, só ultimamente, há oito
meses, arredondei o meu saco. É um bom saco. É um saco graúdo,
louvado Deus. Creio mesmo que é um tremendo saco! E apesar disso, juro
que para o sentir assim, redondo e soante entre as mãos, não
me arriscava a passar outra vez os transes deste terrível ano que lá
vai. Não! Nem tendo a certeza de chegar ao fim com a pele intacta e
com o saco cheio. Mas eu no fundo sou um tímido, detesto violências,
e ando farto, refarto de aventuras! Como dizia, pois, é cousa estranhíssima
que assim me lance a escrever um livro. Não está nada no meu
feitio ser homem de prosa e de letras – ainda que, como outro qualquer, aprecio
as belezas da Santa Bíblia e gozo com a História do Rei Artur
e da sua Távola Redonda. No entanto, tenho razões, e razões
consideráveis, para tomar a pena com esta mão inábil
que há quase cinqüenta anos maneja a carabina. Em primeiro lugar,
É bem estranho que nesta minha idade, aos cinqüenta e seis anos
feitos, esteja eu aqui, de pena na mão, preparando-me a redigir uma
história! Nunca imaginei que tão prodigiosa ocorrência
se pudesse dar na minha vida – vida que me parece bem cheia, e vida que me
parece bem longa… Sem dúvida, por a ter começado tão
cedo! Com efeito, na idade em que os outros rapazes ainda soletram nos bancos
da escola, já eu andava agenciando o meu pão por esta velha
colônia do Cabo. E por aqui fiquei desde então, metido em negócios,
em serviços, em travessias, em guerras, em trabalhos – e nessa dura
profissão, que é a minha, a caça ao elefante e ao marfim.
Pois, com toda esta diligência, só ultimamente, há oito
meses, arredondei o meu saco. É um bom saco. É um saco graúdo,
louvado Deus. Creio mesmo que é um tremendo saco! E apesar disso, juro
que para o sentir assim, redondo e soante entre as mãos, não
me arriscava a passar outra vez os transes deste terrível ano que lá
vai. Não! Nem tendo a certeza de chegar ao fim com a pele intacta e
com o saco cheio. Mas eu no fundo sou um tímido, detesto violências,
e ando farto, refarto de aventuras! Como dizia, pois, é cousa estranhíssima
que assim me lance a escrever um livro. Não está nada no meu
feitio ser homem de prosa e de letras – ainda que, como outro qualquer, aprecio
as belezas da Santa Bíblia e gozo com a História do Rei Artur
e da sua Távola Redonda. No entanto, tenho razões, e razões
consideráveis, para tomar a pena com esta mão inábil
que há quase cinqüenta anos maneja a carabina. Em primeiro lugar,
– 1 os meus companheiros, o Barão Cúrtis e o digno capitão
da Armada Real, John Good (a quem chamo, por hábito, “o Capitão
John”) pediram-me para relatar e publicar a nossa jornada ao reino dos
cacuanas. Em segundo lugar, estou aqui em Durban, estirado numa cadeira, inutilizado
para umas semanas, com os meus achaques na perna.
(Desde que aquele infernal leão me traçou a coxa de lado a
lado, fiquei sujeito a estas crises, todos os anos, ordinariamente pelos fins
do outono. Foi em fins de outono que apanhei a trincadela. É duro que
depois de um homem matar, no decurso da sua honrada carreira, quarenta e cinco
leões, seja justamente o último, o quadragésimo sexto
que o file e use dele como de tabaco que se masca. É duro! Quebra a
rotina, a estimável rotina – e para mim, pessoa de ordem, qualquer
surpresa me sabe pior do que fel).
Em terceiro lugar, além de encher os meus ócios, componho
esta história para meu filho Henrique, que está em Londres,
interno no Hospital de S. Bartolomeu, estudando Medicina. É uma maneira
de lhe mandar uma longuíssima carta que o entretenha e que o prenda.
Serviço de doentes, numa enfermaria abafada e lôbrega, deve pesar
intoleravelmente. Mesmo o retalhar cadáveres termina por ser uma rotina,
rica em monotonia e tédio; e assim esta história, onde tudo
há menos tédio, vai, por uns dias, levar ao meu rapaz uma saudável
e alegre sensação de aventuras, de viagens, de força
e de vida livre. E enfim, como última razão, escrevo esta crônica,
por ser, sem dúvida, a mais extraordinária que conheço
– na realidade ou na fábula. Digo “extraordinária”
mesmo para os leitores profissionais de romances – apesar de nela não
haver mulheres, além da pobre Fulata. Há Gagula, sim. Mas esse
monstro tinha cem anos, pouca forma humana, e não sensibiliza. Em todas
estas duzentas páginas, realmente, não passa uma saia. E todavia,
assim escasso como é nas graças do feminino, não creio
que exista um caso mais raro e mais cativante.
A única vez que tive de fazer publicamente uma narração
foi diante dos magistrados, no Natal, quando depus como testemunha sobre a
morte dos nossos serviçais Quiva e Venvogel.
Por essa ocasião comecei assim, muito dignamente, com aprovação
de todos, com louvores do periódico de Durban: – “Eu, Alão
Quartelmar, residente em Durban, no Natal, gentleman, declaro e juro que…”
– Não me parece, porém, que seja esta a adequada maneira de
principiar um livro. Além disso, posso eu afirmar, em tipo de imprensa,
que “sou um gentleman? O que é um gentleman? O que é ser
gentleman? Conheço aqui cafres* us que o são; e conheço
cavalheiros chegados de Inglaterra, com grandiosas malas e anéis de
armas nos dedos, que o não são. Eu, pelo menos, nasci gentleman
– apesar de me ter volvido depois num pobre e simples caçador de elefantes.
Ora, se nessa carreira e nos acasos que ela me trouxe, permaneci sempre gentleman,
não me compete a mim avaliar. Deus sabe que, com valente esforço,
procurei conservar-me gentleman – como nascera.
Nota:(*) Cafre = Antigo nome dado à parte da África habitada
por não muçulmanos, a Cafraria; sinônimo de indivíduo
rude, bárbaro e ignorante. (A.H.S.) – 2 Tenho morto, é certo,
muito homem; mas estas duas mãos, bem haja a minha fortuna, estão
puras de sangue inútil. Matei para que me não matassem. O Senhor
deu-nos as nossas vidas, como sagrados depósitos que lhe pertencem
e que devemos defender. Guiei-me sempre por este princípio; e conto
que o bom Deus, um dia, me dirá lá em cima – “Fizeste
bem, Quartelmar!” Este mundo, meus amigos, é áspero de
atravessar; e os destinos violentos impõem-se por vezes com uma lógica
inexorável. Aqui estou eu, homem ordeiro, tímido, bonacheirão,
que, constantemente, desde criança, me acho envolvido em carnificinas!
Felizmente nunca roubei. Uma ocasião, é verdade, abalei com
quatro vacas que pertenciam a um cafre. Mas o cafre tinha-me rapinado sordidamente
– e desde então essas quatro vacas trago-as sempre na consciência.
Só quatro vacas. Pois têm-me pesado mais que uma manada de gado!
Foi há dezoito meses, pouco mais ou menos, que encontrei os dois homens
que deviam ser meus companheiros nesta aventura singular à terra dos
cacuanas. Nesse outono, eu andara numa grande batida aos elefantes, para lá
do distrito de Bamanguato. Tudo nessa expedição me correu mal,
e por fim apanhei as febres. Mal me pude ter nas pernas; larguei para as minas
de diamantes (as Diamanteiras), vendi o marfim que trazia, passei o carrão
e o gado, debandei os caçadores, e tomei a diligência para o
Cabo. Ao fim de uma semana, no Cabo, descobri que o hotel me roubava infamemente;
além disso já vira todas as curiosidades, desde o novo Jardim
Botânico que há de certamente conferir grandes benefícios
à cidade, até ao novo Palácio do Parlamento que, tenho
a certeza, não há de conferir benefícios nenhuns; de
sorte que decidi voltar para o Natal pelo Dunkeld, pequeno vapor costeiro
que estava nas docas à espera do paquete de Inglaterra, o Edimburgh
Castle. Tomei passagem, e fui para bordo. Nessa tarde chegou o Edimburgh Castle;
os passageiros que trazia para o Natal transbordaram para o Dunkeld, e levantamos
ferro ao pôr do sol.
Entre os passageiros de Inglaterra, que mudaram para o Dunkeld, havia dois
que me despertaram logo certo interesse. Um deles, um homenzarrão de
perto de trinta e cinco anos, tinha os ombros mais cheios e os braços
mais musculosos que eu até aí encontrara, mesmo em estátuas.
Além disso, cabelos ondeados e cor de ouro; barbas ondeadas e cor de
ouro; feições aquilinas e de corte altivo; olhos pardos, cheios
de firmeza e de honestidade. Varão esplêndido que me fez pensar
nos antigos dinamarqueses. Para dizer a verdade, dinamarqueses só conheci
um, moderno, horrivelmente moderno, que me estafou dez libras; mas lembro-me
de ter admirado um quadro, os Antigos Dinamarqueses, em que havia homens assim,
de grandes barbas amarelas e olhos claros, bebendo num bosque de carvalhos
por grandes cornos que empinavam à boca. Este cavalheiro (vim a saber
depois) era um inglês, um fidalgo, um baronet. Chamava-se Cúrtis
– o Barão Cúrtis. E o que me feriu mais foi ele parecer-se
extremamente com alguém, que eu encontrara no interior, para além
de Bamanguato. Quem?… Não me podia lembrar.
O sujeito que vinha com ele pertencia a um tipo absolutamente diferente,
baixo, reforçado, trigueiro, e todo rapado. Calculei logo pelas suas
maneiras que tínhamos ali um oficial de marinha; e verifiquei depois,
com efeito, que era um primeiro tenente da Armada Real, reformado em capitão-tenente,
e por nome John Good. Este impressionou-me pelo apuro. Nunca conheci ninguém
mais escarolado, mais escanhoado, mais engomado, mais envernizado! Usava no
olho direito um – 3 vidro, sem aro, sem cordel, e tão fixo que parecia
natural como a pálpebra. Nem um só momento o surpreendi sem
aquele vidro, e cheguei mesmo a pensar que dormia com ele cravado na órbita.
Só muito tarde descobri que à noite o metia no bolso das calças
– no mesmo bolso em que guardava a dentadura postiça, a mais bela,
a mais perfeita dentadura que me recordo de ter contemplado, mesmo em anúncios
de dentistas. E o capitão, destas, possuía duas! Apenas nos
fizemos ao largo, começou o mau tempo. Brisa forte, névoa úmida
e fria. Depois cada solavanco (o Dunkeld, barco de fundo chato, não
levava carga) que não se podia arriscar uma passada confortável
na tolda. De sorte que me recolhi para junto da máquina, onde fazia
um calorzinho sereno, e ali fiquei olhando para o pêndulo, que marcava,
com desvios largos, o ângulo de balanço do Dunkeld.
– Pêndulo errado – rosnou de repente uma voz ao meu lado, na sombra
da noite que caía.
Olhei. Era o oficial de marinha.
– Errado, hem?… Acha? – perguntei.
– Acho o quê?… Se o vapor se inclinasse quanto marca o pêndulo,
não se tornava mais a levantar… Aqui está o que eu acho. Mas
é sempre assim, com estes capitães de marinha mercante…
Felizmente, nesse instante, tocou a sineta do jantar, com imenso alivio
meu – porque se há, sob a cúpula dos céus, uma cousa
temerosa, é a loquacidade de um oficial da marinha de guerra, desabafando
sobre a inépcia dos oficiais da marinha mercante. Pior do que essa
cousa temerosa – só a cousa inversa! O Capitão John e eu descemos
juntos para o salão. O Barão Cúrtis já lá
estava, no topo da mesa, à direita do comandante do Dunkeld. John acomodou-se
ao lado do seu companheiro; eu defronte, onde havia dois talheres desocupados.
Logo depois da sopa o comandante, com a lamentável mania dos homens
de mar, começou a falar de caça. Primeiramente de caça
miúda, de condores e de abutres. Depois passou a elefantes.
– Ah! comandante (exclamou ao lado um patrício meu, de Durban), para
elefantes temos presente uma grande autoridade… Se há homem em África
que entenda de elefantes, é aqui o nosso companheiro e amigo Alão
Quartelmar.
Por acaso, nesse momento, eu pousara os olhos no Barão Cúrtis;
e notei que o meu nome, assim pregoado com a minha profissão, lhe causara
emoção e surpresa. John cravou também em mim o seu vidro,
com uma curiosidade que faiscava. Por fim o barão inclinou-se, através
da mesa, e numa voz grave e funda, bem própria do robusto peito de
onde saía: – Peço perdão – disse – mas é porventura
ao Senhor Alão Quartelmar que me estou agora dirigindo? – A ele próprio.
O homenzarrão passou a mão pelas barbas, – e distintamente,
muito distintamente, o ouvi murmurar: “Ainda bem!” Não
se passou mais nada até ao doce. Mas fiquei ruminando aquele espanto
e aquele “ainda bem!” Depois do café, enchia o meu cachimbo
para subir à tolda, quando o barão, com os seus modos sérios
e lentos, se adiantou para mim, e me convidou “a passar ao seu beliche,
tomar um grogue, e conversar…” Aceitei. O barão ocupava um
camarote – 4 de tolda, o melhor do Dunkeld, espaçoso, arejado, com
um sofá, espelhos, e duas largas cadeiras de verga. O Capitão
John viera também. Todos três nos sentamos, acendendo os cachimbos,
enquanto o moço corria pelos grogues.
Houve primeiramente um silêncio. Outro criado entrou, a acender o
candeeiro. Por fim, apareceram os grogues.
O Barão Cúrtis, então, passou a mão pelas barbas,
nesse jeito que lhe era costumado, e voltando-se bruscamente: – Diga-me uma
cousa, Senhor Quartelmar… Aqui há dois anos, por este tempo, esteve
num sítio chamado Bamanguato, ao norte do Transval. Não é
verdade? – Perfeitamente – respondi eu, pasmado de que aquele cavalheiro se
achasse, no seu condado, em Inglaterra, tão bem informado das jornadas
que eu fazia no sul da África! – A negócio, hem? – acudiu o
Capitão John.
– Sim, senhor, a negócio. Levei uma carregação de fazendas,
acampei fora da feitoria, e lá fiquei até liquidar.
O barão conservou, durante um momento, pregados em mim os seus olhos
cinzentos e largos. Pareceu-me que havia neles ansiedade e temor.
– E diga-me, encontrou aí, em Bamanguato, um homem chamado Neville?
– Encontrei. Esteve acampado ao meu lado durante uns quinze dias, a descansar
o gado antes de meter para o norte. Aqui há meses recebi eu uma carta
de um procurador, perguntando-me se sabia o que era feito desse sujeito…
Respondi como pude…
– Bem sei! – atalhou o barão. – Li a sua resposta. Dizia o Senhor
Quartelmar que esse sujeito Neville partira de Bamanguato, no princípio
de maio, num carrão, com um serviçal e um caçador cafre
chamado Jim, tencionando puxar até Iniati, última estação
na terra dos matabeles, para de lá seguir a pé, depois de vender
o carrão. O Senhor Quartelmar acrescentava que o carrão decerto
o vendera ele, porque seis meses depois vira-o em poder de um português.
Esse português não se lembrava bem do nome do homem a quem o
comprara. Sabia só que era um branco, e que se metera para o mato com
um cafre…
– É verdade – murmurei eu.
Houve outro silêncio, que eu enchi com um sorvo ao grogue. Por fim
o barão prosseguiu, com os olhos sempre cravados em mim, insistentes
e ansiosos: – O Senhor Quartelmar não sabe quais fossem as razões
que levavam assim esse sujeito Neville para o norte?… Não sabe qual
era o fim da jornada? – Ouvi alguma cousa a esse respeito – murmurei.
E calei-me prudentemente, porque nos íamos avizinhando de um ponto
em que, por motivos antigos e graves, eu não desejava bulir.
O barão voltou-se para o seu companheiro, como para o consultar.
O outro, por entre a fumaraça do cachimbo, baixou a cabeça num
sim mudo. Então o meu homenzarrão, decidido, abriu os braços,
desabafou: – Senhor Quartelmar, vou-lhe fazer uma confidência! Vou-lhe
mesmo pedir o seu conselho, e talvez o seu auxílio… O agente que
me remeteu a sua carta afiançou-me que eu podia confiar absolutamente
no Senhor Quartelmar, que é um homem de bem, discreto como poucos,
e respeitado como nenhum em toda a colônia do Natal.
– 5 Dei um sorvo tremendo ao conhaque, para esconder o meu embaraço
– porque sou extremamente modesto.
– Senhor Quartelmar – concluiu o barão – esse sujeito chamado Neville
era meu irmão.
– Ah! – exclamei.
Com efeito! Agora, agora recordava eu bem com quem o barão se parecia!
Era com esse Neville. Somente o outro tinha menos corpo, e a barba escura.
Mas nos olhos havia a mesma franqueza, e havia a mesma decisão.
– Era meu irmão – continuou o barão. – Meu irmão mais
novo, e único. Até aqui há cinco anos, vivemos sempre
juntos. Depois um dia, desgraçadamente, tivemos uma questão,
uma terrível questão. E para lhe dizer a verdade toda, Senhor
Quartelmar, eu comportei-me para com meu irmão da maneira mais injusta!
Foi sob o impulso do despeito, da cólera, é certo…Mas, em
suma, comportei-me injustamente.
– Cruelmente – murmurou do lado o Capitão John, que fumava com os
olhos cerrados.
– Cruelmente, com efeito. Como o Senhor Quartelmar sabe, em Inglaterra,
quando um homem morre sem testamento e não tem senão bens de
raiz, tudo passa para o filho mais velho. Ora sucedeu que meu pai morreu exatamente
quando meu irmão Jorge e eu estávamos assim de mal. Herdei tudo;
e meu irmão, que não tinha profissão, nem habilitações,
ficou sem real. O meu dever, está claro, era criar-lhe uma situação
independente. É o que todos os dias se faz em Inglaterra, nesses casos.
Mas por esse tempo a nossa questão estava em carne viva. Eu não
lhe ofereci nada. Ele também, orgulhoso, sobretudo brioso, nada pediu.
Assim ficamos, de longe; eu rico e ele pobre… Peço perdão
de o fatigar com estes detalhes, Senhor Quartelmar, mas preciso pôr
as cousas bem claras… Não é verdade, John? – Escrupulosamente
claras! – acudiu o outro. – De resto o nosso amigo Quartelmar guarda para
si esta história…
– Pudera! – exclamei.
– Pois bem – continuou o barão – meu irmão possuía
de seu, nessa época, umas duzentas ou trezentas libras. Um belo dia,
agarra nesta miséria, toma o nome de Neville, e abala para África
a tentar fortuna! Eu só o soube mais tarde, meses depois dele ter embarcado.
Passaram três anos. Notícias dele, nenhumas. Comecei a andar
inquieto. Escrevi-lhe. Naturalmente as minhas cartas não lhe chegaram.
E eu cada dia mais aflito! Para o Senhor Quartelmar compreender tudo bem,
deve saber que, desde pequeno, desde o berço meu irmão foi a
forte e grande afeição da minha vida. E, por outro lado, a nossa
questão, assim amarga e áspera por sermos ambos muito novos
e muito exaltados, nasceu de quê? De uma mulher cujo nome já
quase me esqueceu. E meu pobre irmão, coitado, se ainda é vivo,
não se lembrará mais do que eu. Ora aqui tem! E já por
isto o Senhor Quartelmar compreende…
– Perfeitamente, perfeitamente…
– Pois bem, descobrir meu irmão passou a ser a minha idéia
constante, dia e noite. Mandei fazer aqui, no Cabo, toda a sorte de pesquisas.
Um dos resultados, o mais importante, foi a sua carta, Senhor Quartelmar.
Importante porque me dava a certeza que, meses antes, meu irmão estava
na África, e vivo. Desde esse momento decidi vir eu mesmo, pessoalmente,
continuar as pesquisas. Agentes, por mais dedicados, mais bem pagos, não
têm o interesse de coração; é com o coração
justamente que eu conto, com a perspicácia, a inspiração
especial que ele às vezes possui. De resto sempre tencionei visitar
as nossas colônias da África… E aqui tem o Senhor Quartelmar
a minha história. O mais extraordinário, é que o tivéssemos
encontrado logo, a si, a pessoa justamente que viu meu irmão vivo,
a pessoa justamente a quem eu me ia dirigir apenas chegasse ao Natal. Quer
que lhe diga? Acho bom agouro. Em todo o caso, aqui estou, pronto para tudo,
com o meu velho amigo, o Capitão John, companheiro fiel de muitos anos,
que teve a dedicação de me acompanhar.
O outro encolheu os ombros, sorrindo, com a sua esplêndida dentadura.
– Não havia neste momento nada interessante a fazer na velha Europa!…
Gasta, insipidíssima, a velha Europa! Depois, reenchendo o cachimbo,
acrescentou muito sério: – E agora que o nosso amigo Quartelmar conhece
os motivos que nos trazem à África, e o interesse que nos prende
a esse homem chamado Neville, espero da sua lealdade que não terá
dúvida em nos dizer tudo o que sabe, ou tudo o que ouviu, a respeito
dele. Hem? Impressionado, respondi: – Não tenho dúvida, por
ser questão de sentimento.
Capítulo II – Primeira Notícia das Minas de Salomão
Sacudi a cinza do cachimbo na palma da mão, e comecei, muito devagar,
para tudo pôr bem claro e bem exato: – Aqui está o que ouvi a
respeito desse cavalheiro Neville.
E isto, que me lembre, nunca, até ao dia de hoje, o disse a ninguém.
Ouvi que esse cavalheiro fora para o interior à busca das minas de
Salomão.
Os dois homens olharam para mim, com assombro: – As minas de Salomão‘?
Que minas?… Onde são? – Onde são, não sei. Sei apenas
onde dizem que estão.
Aqui há anos vi de longe os dois picos dos montes que, segundo corre,
lhes servem de muralha. Mas entre mim e os montes, meus senhores, havia duzentas
milhas de deserto. E esse deserto, meus senhores, nunca houve ninguém
(quero dizer, homem branco) que o atravessasse, a não ser um, noutras
eras. Porque toda esta história vem muito de trás, de há
séculos! Eu não tenho dúvida em a contar, mas com uma
condição: é que os cavalheiros não a hão
de transmitir sem minha autorização. Tenho para isso razões,
e fortes. Estão os cavalheiros de acordo? – Com certeza! Narrei então,
longamente, tudo o que sabia, história ou fábula, sobre as minas
de Salomão. Foi há trinta anos que pela primeira vez ouvi falar
destas minas a um caçador de elefantes, um homem muito sério,
muito indagador, que recolhera assim, nas suas jornadas através da
África, tradições e lendas singularmente curiosas. Tinha-me
eu encontrado com ele na terra dos matabeles, numa das minhas primeiras expedições
ao interior, à busca do elefante e do marfim. Chamava-se Evans. Era
um dos melhores caçadores da África. Foi estupidamente morto
por um búfalo, e está enterrado junto às quedas do Zambeze.
Pois uma noite, sentados à fogueira, no mato, sucedeu mencionar eu
a esse Evans umas construções extraordinárias com que
casualmente dera, andando à caça do koodoo por aquela região
que forma hoje o distrito de Lidenburgo no Transval. Essas obras foram depois
encontradas, e aproveitadas até, pela gente que veio trabalhar as minas
de ouro. Mas e ninguém (quero dizer, nenhum branco) as tinha visto
antes de mim. Era uma estrada enorme, magnífica, cortada na rocha viva,
levando a uma galeria sem fim, metida pela terra dentro, toda de tijolo, e
com grandes pedregulhos de minério de ouro empilhados à entrada.
Obra extraordinária! E a raça que a fizera – desaparecera, sem
deixar um nome, nem outro vestígio de si, além daquela galeria,
que revelavam um grande saber, uma grande indústria e uma grande força!
– Curioso! – murmurou Evans. – Mas conheço melhor! E contou-me então
que no interior, muito no interior, descobrira ele uma cidade antiquíssima,
toda em ruínas, que tinha a certeza de ser Ofir, a famosa Ofir da Bíblia.
Lembro-me bem a impressão e o assombro com que eu escutei a história
dessa cidade fenícia perdida no sertão da África, com
os seus restos de palácios, de piscinas, de templos, de colunas derrocadas!…
Mas depois Evans ficara calado, cismando. De repente diz: – Tu já ouviste
falar das serras de Suliman, umas grandes serras que ficam para além
do território de Machuculumbe, a noroeste? – Não, nunca ouvi.
– Pois, meu rapaz, aí é que Salomão verdadeiramente
tinha as suas minas, as suas minas de diamantes! – Como se sabe? – Como se
sabe!? Tem graça! Sabe-se perfeitamente. O que é Suliman senão
uma corrupção de Salomão? O nome das serras, realmente,
sempre foi serras de Salomão. Além disso, uma feiticeira do
distrito de Manica, uma velha de mais de cem anos, contou-me tudo… Isto
é, contou-me que para lá das serras vive um povo que é
da raça dos zulus, e fala um dialeto zulu; mas como força e
corpulência, e coragem, vale mais que os zulus. Pois nesse povo há
videntes, grandes feiticeiros, que de geração em geração,
têm trazido o segredo de uma mina prodigiosa, que foi de um rei branco,
muito antigo, e que ainda hoje está cheia de pedras brancas que reluzem…
De sorte que não há dúvida nenhuma.
Para mim havia toda a dúvida. As ruínas de Ofir interessavam-me,
como da nossa crença e da Bíblia; mas das minas de pedras brancas
que reluzem, conhecidas em segredo por feiticeiros zulus, teria certamente
rido se não fora o respeito devido a um caçador tão digno
como Evans. De madrugada Evans partiu a acabar tristemente nas pontas de um
búfalo. E não pensei mais em Salomão, nem nas suas minas
de diamantes.
Aqui há vinte anos porém, num encontro muito singular que
tive no distrito de Manica, de novo ouvi falar das minas de Salomão,
e de um modo que para sempre me devia impressionar. Era num sítio chamado
a “aringa de Sitanda”.
Não há pior em toda a África. Fruta nenhuma, caça
nenhuma, tudo seco, tudo triste – e os pretos vendem os ossos de um frango
por fazenda que vale uma vaca.
Apanhei lá um ataque de febre, e estava fraquíssimo, enfastiadíssimo,
quando me apareceu um dia um português de Lourenço Marques, acompanhado
por um serviçal mestiço. Entre os portugueses de Lourenço
Marques – há sofrível e há péssimo. Mas este era
dos melhores que eu vira – um homem muito alto e muito magro, de belos olhos
negros, os bigodes já grisalhos todos retorcidos, e umas maneiras graves
que me fizeram pensar nos velhos fidalgos portugueses que aqui vieram há
séculos e de que tanto se lê nas histórias.
Conversamos bastante nessa noite, porque ele falava um bocado de mau inglês,
eu um bocado de mau português; e soube que se chamava José Silveira,
e que possuía uma fazenda ao pé da cidade, em Lourenço
Marques.
Na manhã seguinte, cedo, antes de partir com o mestiço, acordou-me
para se despedir, de chapéu na mão, cortês e grave, como
os antigos, os que tinham Dom.
– Até mais ver, camarada! – Boa viagem! Até mais ver! O homem
conservava, pregados em mim, os grandes olhos negros que rebrilhavam. Depois
acrescentou muito sério: – Se nos tornarmos outra vez a encontrar,
hei de ser a pessoa mais rica deste mundo! E pode contar, camarada, que não
me hei de esquecer de si! Nem ri. Estava debilitado para rir. Fiquei estirado
na manta olhando para o estranho homem que, a grandes passadas, com a cabeça
alta e cheia de esperança, se metia pelo mato dentro.
Passou uma semana, e melhorei da febre. Uma tarde achava-me sentado no chão
defronte da barraca, rilhando a última perna de um desses frangos que
os pretos me vendiam por chita do valor de uma vaca, e pasmando para o enorme
disco do sol que descia ao fundo do deserto – quando de repente avistei, escura
sobre a vermelhidão do poente, numa elevação do terreno,
a figura de um homem que era certamente europeu porque trazia um casacão
comprido. No momento mesmo em que eu dera com os olhos nele, o homem oscila,
cai de bruços e começa a arrastar-se pelo chão, lentamente!
Com um esforço desesperado, ainda se ergueu, e tentou pelo cômoro
abaixo alguns passos que cambaleavam. Por fim tombou de novo, e ficou estirado,
como morto, contra um tufo de tojo alto. Gritei a um dos meus caçadores
que acudisse. E quando ele voltou, amparando o homem nos braços – quem
hei de eu ver? O José Silveira! José Silveira – eu vira antes
o seu miserável esqueleto, com todos os ossos rompendo para fora da
pele, mais seca que pergaminho e amarela como gema de ovos. Os olhos saltavam-lhe
da cara, à maneira de dois bugalhos de sangue. E o cabelo que eu lhe
vira grisalho, vinha branco, todo branco como uma bela estriga de linho.
– Água! – gemeu ele. – Água, pelas cinco chagas de Cristo!
O infeliz tinha os beiços horrivelmente estalados, e entre eles a língua
pendia-lhe, toda inchada e toda negra! Dei-lhe água com leite, de que
bebeu talvez dois quartilhos, a grandes sorvos, e sem parar. Foi necessário
arrancar-lhe a vasilha. Depois caiu de costas, rompeu a delirar. Ora gemia,
ora gritava. E era sempre sobre as serras de Suliman, os diamantes e o deserto!
Levei-o para dentro da tenda; e, com o pouco que tinha, fiz o pouco que podia.
O homem estava perdido. Rente da meia noite sossegou. Eu, esfalfado, adormeci.
Acordei de madrugada; e, ao primeiro alvor da luz, dou com ele (forma sinistra!)
de joelhos, à porta da barraca, de olhos cravados para o longe, para
o deserto! Nesse instante, um raio de sol que nascia frechou através
do vasto descampado, e foi bater ao fundo, a cem milhas de nós, o pico
mais alto das serras de Suliman. O homem soltou um grito, atirou desesperadamente
para diante dos dois braços de esqueleto: – Lá estão
elas, Santo Deus, lá estão elas!… E dizer que não pude
lá chegar! Parecem tão perto! Logo ali, uns passos mais… E
agora acabou-se, estou perdido, ninguém mais pode lá ir! De
repente, emudeceu. Depois virou para mim, muito devagar, face lívida
e como esgazeada por uma idéia brusca.
– Ó camarada, onde está você?… Já o não
distingo, vai-me a fugir a vista! – Estou aqui; sossegue, homem.
– Tenho tempo para sossegar, tenho toda a eternidade! Escute. Eu estou a
morrer. Você tem sido bom comigo, camarada… E para que havia eu de
levar o segredo para debaixo da terra? Ao menos alguém se aproveita!
Talvez você lá possa chegar, se conseguir atravessar esse deserto
que matou o meu pobre criado, que me está a matar a mim…Começou
então a procurar tremulamente dentro do peito da camisa. Tirou por
fim uma espécie de bolsa de tabaco, já velha, apertada com uma
correia. Estava tão fraco que as suas pobres mãos nem puderam
desfazer o nó. Fez-me um gesto, um gesto exausto, para que eu o desatasse.
Dentro havia um farrapo de linho amarelado, com linhas escritas, num tom antiquíssimo,
de cor de ferrugem. E dentro do farrapo estava um papel dobrado.
– O papel – murmurou ele numa voz que se extinguia – é a cópia
do que está escrito no trapo. Levou-me anos a decifrar, a entender…
Foi um antepassado meu, um dos primeiros portugueses que vieram a Lourenço
Marques, que escreveu isso, quando estava para morrer acolá naquelas
serras. Chamava-se D. José da Silveira, e já lá vão
trezentos anos…
Um escravo que ia com ele, e que ficara a esperar, do lado de cá
do monte, vendo que o amo não voltava, procurou-o; foi dar com ele
morto, e trouxe para Lourenço Marques o bocado de linho que tinha letras.
Desde então ficou guardado na nossa família. Há trezentos
anos! E ninguém pensou em o decifrar até que eu me meti nisso…
Custou-me a vida. Mas talvez outro consiga. Talvez outro chegue lá,
às malditas serras! Será então o homem mais rico deste
mundo! O mais rico, o mais rico! Tente você, camarada… Não
dê o papel a ninguém! Vá você! As últimas
palavras saíram como um débil sopro. Caiu de costas, recomeçou
a delirar. Daí a uma hora tudo acabou. Deus tenha a sua alma em descanso!
Morreu serenamente, sem esforço e sem dor. Por minhas mãos o
enterrei, bem fundo na terra, com fortes pedregulhos por cima do peito. Ao
menos assim não darão com ele os chacais. Foi ao pé da
cova, onde o desgraçado jazia, que examinei o documento. Era, como
disse, um farrapo de linho, rasgado de uma fralda de camisa e do tamanho de
um palmo. No topo tinha os traços de um mapa, ou de um roteiro, rapidamente
e toscamente lançados.
Era pouco mais ou menos isto: Por baixo vinham linhas escritas, numa letra
muito antiga e cor de ferrugem. Para mim eram ininteligíveis. Mas o
papel continha a decifração, e dizia assim: “Estou morrendo
de fome, numa cova da banda norte de um destes montes a que dei o nome de
“Seios de Sabá”, no que fica mais a sul. Sou D. José
da Silveira, e escrevo isto no ano de 1590, com um pedaço de osso,
num farrapo da camisa, tendo por tinta o meu sangue. Se o meu escravo aqui
voltar, reparar neste escrito, e o levar para Lourenço Marques, que
o meu amigo (aqui um nome ilegível), logo pela primeira nau que passar
para o Reino, mande estas cousas ao conhecimento de El-Rei, para que Ele remeta
uma armada a Lourenço Marques, com um troço de gente, que se
conseguir atravessar o deserto, vencer os cacuanas que são valentes,
e desfazer os seus feitiços (devem vir muitos missionários)
tornarão Sua Alteza o mais rico Rei da Cristandade. Com meus próprios
olhos vi os diamantes sem conta amontoados num subterrâneo que era o
depósito dos tesouros de Salomão, e que fica por trás
de uma figura da Morte. Mas por traição de Gagula, a feiticeira
dos cacuanas, nada pude trazer, apenas a vida! Quem vier, siga o mapa que
tracei, e trepe pelas neves que cobrem o Seio de Sabá, o esquerdo,
até chegar ao cimo, de onde verá logo, para o lado norte, a
grande calçada feita por Salomão. Daí siga sempre, e
em três dias de marcha encontrará a aringa do rei. Quem quer
que venha que mate Gagula. Rezem pelo descanso da minha alma. Que El-Rei Nosso
Senhor seja logo avisado. Adeus a todos nesta vida!” Tal era o extraordinário
documento que textualmente li ao Barão Cúrtis e ao capitão,
porque trazia sempre comigo (e ainda trago) uma tradução dele,
em inglês, na carteira.
Quando acabei, os dois amigos olhavam para mim, mudos de espanto. Por fim
o capitão, com o leve suspiro de quem repousa de uma prolongada emoção,
bebeu um trago de grogue – e mais sereno: – O nosso amigo, o Senhor Quartelmar,
não nos tem estado a intrujar? Meti com força o papel na algibeira,
e, erguendo-me, repliquei secamente: – Se os cavalheiros assim pensam, não
me resta mais nada senão desejar-lhes muito boas noites! O barão
acudiu, pousando-me no ombro a sua larga mão: – Pelo amor de Deus,
Senhor Quartelmar! Nem John nem eu duvidamos da sua veracidade. Mas, enfim,
tenho ouvido dizer que aqui na colônia é cousa corrente e bem
aceita troçar um pouco os que chegam, os novatos da África…
E depois essa história é tão extraordinária! Insisti,
ainda ofendido: – O original escrito pelo velho fidalgo no farrapo de camisa,
tenho-o em Durban! Será a primeira cousa que lhes hei de mostrar em
chegando!… Não há uma palavra…
O barão atalhou, gravemente! – Toda a palavra do Senhor Quartelmar
é cousa séria, e como tal a tomamos.
Durante um momento ficamos calados. Eu serenei. Por fim o barão,
que dera sobre o tapete do beliche alguns passos pensativos, parou diante
de mim: – E meu irmão? Confio soube o Senhor Quartelmar que meu irmão
tentou também essa jornada às minas? Narrei então o que
me sucedera com esse sujeito Neville, quando estávamos acampando, lado
a lado, em Bamanguato. Eu não o conhecia; nem então começamos
relações, apesar de termos o gado junto. Mas conhecia perfeitamente
o serviçal que o acompanhava, um chamado Jim. Era um bechuana, excelente
caçador – e, para bechuana, esperto, consideravelmente esperto! Na
manhã em que Neville devia meter-se para o sertão, vi Jim, ao
pé do meu carrão, cortando folhas de tabaco.
– Para onde é essa jornada, Jim? – perguntei eu, sem curiosidade,
só para mostrar interesse ao rapaz. – Ides a elefantes? Jim mostrou
os dentes todos, num riso vivo: – Não, patrão. Vamos a cousa
melhor que marfim.
– Melhor que marfim!? Ouro? – Melhor que ouro! – murmurou ele, arreganhando
mais a dentuça.
Calei-me, porque não convinha à minha dignidade de patrão
e de branco revelar curiosidade diante de um bechuana.
Confesso, porém, que fiquei intrigado. Daí a pouco Jim acabou
de cortar o tabaco. Mas por ali se quedou, rondando, coçando devagar
os cotovelos, à espera, com os olhos em mim. Não dei atenção.
– Ó patrão! – murmurou ele, numa ânsia de desabafar.
Permaneci indiferente, por dignidade. Ele tornou: – Ó patrão!
– Que é, homem? – Vamos à procura de diamantes, patrão!
– atirou-me ele ao ouvido.
– Diamantes!? Boa! Então ides para o lado oposto. Devíeis
meter direito ao sul, para as Diamanteiras. O bechuana baixou mais a voz:
– Ó patrão! Já ouviu falar das serras de Suliman? Pois
lá é que estão os diamantes. O patrão nunca ouviu?
– Tenho ouvido muita tolice na minha vida, Jim.
– Não é tolice, patrão. Eu conheci uma mulher que veio
de lá, com um filho, e que vivia no Natal. Morreu há anos, o
filho por lá anda. E foi ela que me disse tudo. Há lá
diamantes! – Olha, Jim, o que te digo é que teu amo vai dar de comer
aos abutres, que andam por lá esfomeados. E tu, essa pouca carne que
tens nos ossos, também vai daqui direitinha aos abutres! O homem teve
outro riso fino: – A gente tem de morrer, e eu não desgosto de experimentar
terras novas. O elefante por aqui já não rende. O bechuana cá
vai para os diamantes, e o bechuana vai cantando! – Pois quando a morte te
agarrar pelas goelas, veremos então se ainda canta o bechuana! Jim
abalou. Daí a meia hora o carrão do Senhor Neville posse em
marcha para o norte. Mas não rodara ainda dez jardas, quando Jim voltou
para trás, a correr.
– Adeus, patrão! – exclamou. – Não me quis ir de todo sem
lhe dizer adeus, porque me parece que o patrão tem razão, e
que nunca mais cá voltamos! – Ouve cá, Jim, teu amo vai com
efeito às serras de Suliman, ou tudo isso é patranha? O bechuana
jurou que não contava patranhas. O amo ia realmente em demanda das
serras e das minas que estavam para além. Ainda na véspera o
amo dissera que, para tentar fortuna na África, tanto montava ir em
cata de diamantes, como de ouro ou de ferro. Tudo dependia da sorte, porque
no torrão tudo havia. Assim ele ia aos diamantes, que era o mais rápido
para enriquecer – ou para morrer.
Refleti um momento.
– Escuta, Jim. Vou escrever umas palavras a teu amo. Mas hás de prometer
que não lhas entregas senão em chegando a Iniati! Iniati ficava
daí a umas quarentas léguas. O bechuana prometeu.
Rasguei um bocado de papel da carteira, escrevi a lápis estas linhas:
“Quem vier… trepe pelas neves que cobrem o Seio de Sabá, o
esquerdo, até chegar ao cimo, de onde verá logo, para o lado
norte, a grande calçada feita por Salomão”.
– Bem! Ora, agora, Jim, quando deres este papel a teu amo, dize-lhe que
lho manda quem sabe, e que siga bem a indicação! Mas ouviste?
Só lho dás quando chegares a Iniati; que eu não quero
que ele me volte para trás e me venha fazer perguntas! Entendeste?
Então abala, madraço, que o carrão come caminho! Jim
agarrou o bilhete e largou a correr. Daí a pouco o carrão sumiu-se
por trás das colinas. E isto, em verdade, era tudo o que eu sabia a
respeito desse sujeito Neville.
Mal eu acabara, o barão, sem hesitar, e com perfeita simplicidade,
disse: – Senhor Quartelmar, vim à África procurar meu irmão.
Desde que alguém o viu, pondo-se em marcha para as serras de Suliman,
o que devo a mim mesmo é marchar também para esse lado. Pode
ser que o encontre; ou que venha a saber que morreu; ou que volte sem nada
saber, na antiga incerteza; ou que não volte, como o velho fidalgo.
Em todo o caso o meu dever, desde que me impus esta tarefa, é tomar
o caminho que meu irmão tomou. E agora pergunto eu: quer o Senhor Quartelmar
vir comigo? Também não hesitei. Foi logo, de golpe: – Muitíssimo
obrigado, senhor barão! Se tentássemos atravessar as cordilheiras
de Suliman, ficávamos lá como os dois Silveiras. Eis a minha
cândida convicção. Ora há em Londres um pobre rapaz
que anda nos seus estudos, que é meu filho, e que me não tem
senão a mim neste mundo. E por ele, se não já por mim,
não me convém por ora morrer. Em todo o caso agradeço
a sua lembrança. É de amigo! O barão voltou-se para o
seu companheiro, com um ar profundamente desconsolado, e que quase comovia
naquele homem tão robusto e tão nobre. O outro murmurou: – “É
pena, grande pena!” – Senhor Quartelmar! – exclamou então o barão.
– Quando me meto numa empresa, tudo sacrifico para a levar a cabo. Eu tenho
fortuna, uma grande fortuna, e necessito do seu auxílio.
O Senhor Quartelmar pode, portanto, pedir-me o que quiser pelos seus serviços,
já não digo dentro do razoável, mas dentro do possível.
Além disso, apenas chegarmos a Durban, vamos a um tabelião,
e eu obrigo-me, por uma escritura, a continuar a educação de
seu filho, no caso de lhe acontecer a si um desastre, ou a deixar-lhe uma
independência, no caso de eu estourar também. Vê que estou
pronto a tudo. Ainda mais. Se, por acaso, descobríssemos os diamantes,
metade deles ficariam pertencendo ao Senhor Quartelmar, outra metade ao Capitão
John. É verdade que nenhum de nós acredita nos diamantes, e,
portanto, esta vantagem conta como zero. Mas podemos aplicar a mesma regra
a ouro ou marfim, qualquer fazenda que encontrarmos. Finalmente, escuso de
dizer que todas as despesas da expedição correm por minha conta.
Creio que não posso fazer mais.
Eu olhava para ele, deslumbrado: – Barão, essa proposta é
a mais generosa que tenho recebido na minha vida! Mas também, que diabo,
a empresa seria a mais arriscada em que me tenho metido… Preciso pensar.
E antes de chegar a Durban eu lhe darei a resposta. Por hoje ficamos aqui.
– Ficamos aqui por hoje! – acudiu o capitão, erguendo-se, e respirando
com alivio.
Com efeito era tarde. Dei as boas noites aos dois cavalheiros; e no meu
beliche, até a madrugada, sonhei com o antigo D. José da Silveira,
com El-Rei Salomão, e com montões de pedras que reluziam no
fundo de uma caverna.
Capítulo III – O Homem Chamado Umbopa
Durante o resto da jornada, pensei constantemente na proposta do barão.
Mas nem eu nem ele voltamos a falar de Neville ou da travessia para as minas.
Na tolda e no beliche as nossas conversas rolavam todas sobre caça,
sobre aventuras de caça na África. Os dois, homens de grande
sport, não se fartavam de escutar. E eu, velho palrador, cheio de memórias
e já anedótico, não me fartava de contar.
Finalmente, numa esplêndida tarde de janeiro (que é aqui o
mês mais quente do ano) avistamos a costa de Natal – com a esperança
de dobrar a ponta de Durban ao sol posto. Toda esta costa é adorável,
com as suas longas dunas avermelhadas, os ricos tapetes de verdura clara,
as alegres arrogas dos cafres espalhadas aqui e além, e a orla espumosa
e alva do mar que rebenta nas rochas. Mas, justamente perto de Durban, a região
toma incomparável riqueza de tons. Nas ravinas, cavadas pelas enxurradas
de séculos, faíscam riachos inumeráveis; o verde do mato
é mais intenso; os outros verdes de jardins entremeiam-se com as plantações
de açúcar; e a espaços uma casa muito branca, sorrindo
para a azul placidez do mar, põe uma linda nota, humana e doméstica,
na vastidão da paisagem.
Como disse, contávamos dobrar, antes do sol posto, a ponta de Durban.
Mas quando deitamos âncora já era crepúsculo cerrado,
tarde demais para entrar a barra. Tínhamos ainda essa noite a bordo;
e descemos ao salão, para um jantar quieto em águas serenas,
depois de ver o salva-vidas remar para terra com as malas do correio.
Quando voltamos à tolda, a lua ia alta, e tão brilhante sobre
mar e praia, que quase ofuscava os lampejos largos do farol. De terra vinham,
através do ar calmo, aqueles picantes e doces aromas de especiarias,
que, não sei por que, me fazem sempre lembrar hinos de igreja e missionários.
O bairro de Bereia parecia em festa,
com todas as varandas alumiadas. Num grande brigue, ancorado ao lado, os marinheiros
estavam cantando, ao som do banjo. Era uma noite de encanto, como só
as há neste abençoado sul da África, que lançava
sobre a alma uma infinita paz, infinita e suave como a luz que derramava a
lua cheia. Até o bull-dog de um passageiro irlandês, que não
cessara de rosnar ferozmente durante toda a jornada, cedera enfim às
pacificadoras influências do sul, e dormia, estirado no convés,
com um ar de trégua e de perdão aos homens.
O barão, o Capitão John e eu, estávamos sentados junto
à roda do leme, olhando e fumando em silêncio.
– Então, Senhor Quartelmar? – exclamou de repente o barão,
sorrindo. – Aqui estamos em Durban… Pensou nas nossas propostas? – Vamos
ou não vamos de companhia à busca do Senhor Neville? – ecoou
do lado o amigo John.
Não tugi. Mas ergui-me, e fui, devagar, sacudir para fora da amurada
a cinza do meu cachimbo. A verdade é que, depois de muito matutar,
eu ainda não tomara uma resolução, – ou antes a minha
resolução permanecia vaga, informe, mal assente, necessitando
um pequeno impulso exterior que a definisse e a fixasse. E foi justamente
aquela exclamação risonha dos dois, o movimento de me erguer
e de me abeirar da amurada, que tudo fixou e definiu no meu ânimo. Ainda
a cinza não caíra na água e já eu estava resolvido
a partir.
– Pensei e vou! – declarei, voltando a sentar-me. – E se os cavalheiros
me dão licença, direi as razões por que, e as condições
com quê.
Expus logo as condições, muito claramente: O barão,
em primeiro lugar, corria com todas as despesas; e qualquer achado de valor,
diamantes, ouro ou marfim, feito durante a expedição, seria
irmãmente dividido entre mim e o Capitão John. Em segundo lugar,
o barão pagar-me-ia em dinheiro de contado, antes de partirmos, quinhentas
libras, comprometendo-me eu a acompanhá-lo e fielmente servi-lo até
que a jornada terminasse ou por um triunfo, ou por um desastre, ou simplesmente
por se reconhecer a sua inutilidade. Em terceiro lugar, o barão obrigar-se-ia,
por uma escritura, a dar anualmente a meu filho, em quanto durassem os seus
estudos, uma pensão de duzentas libras, no caso de eu morrer ou ficar
inutilizado…
Ainda eu não findara, já o barão aceitara tudo, largamente,
alegremente! “O que eu quero, seja por que preço for (dizia ele),
é a sua companhia, Senhor Quartelmar, é o socorro da sua experiência!”
– Muito bem. Pois agora, depois de dizer as condições em que
vou, quero dizer as razões por que vou. É porque se nós
tentarmos atravessar as serras de Suliman, não voltamos de lá
vivos! O que sucedeu ao velho Silveira, ao que tinha Dom, há trezentos
anos; o que sucedeu ao outro, ao que não tinha Dom, aqui há
vinte; o que sucedeu naturalmente ao Senhor Neville, é o que nos vai
suceder a nós! Não saímos de lá vivos. Olhei atentamente
para os dois homens. O amigo John arrepiou um bocado a face. O barão
ficou impassível, murmurando apenas: – “Corremos-lhe o risco!”
Eu prossegui: – Agora dirão os cavalheiros: “Se julgas que não
sais de lá vivo, para que vais lá?” Em primeiro lugar,
porque sou fatalista. Se Deus já decidiu que eu hei de morrer
nas montanhas de Suliman, nas montanhas de Suliman hei de morrer ainda que
lá não vá. E se Deus decidiu já o contrário,
posso lá ir impunemente e de cara alegre. Isto é claro. Em segundo
lugar, estou velho, e já vivi três vezes mais do que costuma
viver na África um caçador de elefantes. De sorte que, continuando
nesta carreira, e, desgraçadamente, não tenho outra, que posso
eu durar ainda? Uns anos. Ora se morresse agora, com as dívidas que
me pesam em cima, o meu pobre rapaz ficava numa situação má,
coitado dele! Em quanto que assim, com quinhentas libras soantes, saldo as
dívidas; e se estourar, o meu rapaz tem diante de si duzentas libras
por ano para acabar o curso e para se estabelecer. Ora aqui têm os cavalheiros
a cousa em duas palavras.
O barão ergueu-se, excelente homem! E apertou-me as mãos com
efusão. – Essas razões, a última sobretudo, fazem-lhe
imensa honra, Senhor Quartelmar. Imensa honra! Em quanto a sairmos vivos ou
não da aventura, o tempo dirá. Eu, por mim, estou decidido a
ir até ao cabo, seja qual for, triunfo ou morte! Em todo o caso, se
temos assim de morrer tão cedo, não me parecia mau que antes
disso, pelo caminho, arranjássemos uma batida aos elefantes. Sempre
desejei caçar o elefante, e com a perspectiva de deixar assim os ossos
nas serras de Suliman, é prudente que me apresse… Não é
verdade, John? – Com certeza!… De resto, todos nós vimos já
muitas vezes a morte diante dos olhos. É um detalhe; para que se há
de insistir nele? Viemos à África com certo fim. Há perigos?
Acabou-se. Deus é grande.
– Está tudo, portanto, decidido – concluí eu – e parece-me
que chegou a ocasião de um grogue.
Fomos ao grogue.
No dia seguinte desembarcamos. Alojei os meus amigos numa “barraca”
que possuo na Bereia, e a que chamo, em dias de orgulho, “a minha casa”.
É construída de tijolo, com um telhado de zinco que abriga três
quartos e uma cozinha. Em redor, porém, está plantado um bom
jardim, com esplêndidas árvores e flores, que um dos meus caçadores,
chamado Jack, traz lindamente tratadas. É um pobre homem a quem um
búfalo esmigalhou a perna na terra dos sicucunes. Já não
pode seguir a caça; mas, na sua qualidade de Griqua, jardina bem –
cousa que um zulu nunca faria decentemente. O zulu tem horror às artes
da paz.
O barão e o seu amigo dormiram numa tenda que lhes armei no jardim
(dentro de casa não havia espaço), no meio do laranjal. Aqui,
em Durban, as laranjeiras têm ao mesmo tempo a flor e o fruto; de sorte
que, com o perfume todo em torno, e o’ brilho das laranjas cor de ouro,
e o murmúrio de águas correntes, o sítio era aprazível
e grato. Há pior na Europa. Logo no dia seguinte, sem mais tardança,
começamos os preparativos. Antes de tudo fomos ao tabelião lavrar
a escritura, em que o barão se obrigava a pensionar o meu rapaz; houve
dificuldade, por jazerem em Inglaterra as propriedades do barão: mas
arranjou-se uma “tangente”, e, segura, graças às
artes de um advogado que, pelos seus serviços, apresentou a conta infame
de vinte libras! Depois recebi o meu cheque de quinhentas libras. Satisfeita
assim a prudência, passamos a comprar o carrão e as juntas de
bois. Descobrimos um carrão excelente, com eixo de ferro, sólido
e leve, que já fizera uma excursão a Lourenço Marques
– o
que garantia a firmeza e resistência das madeiras. Era um carrão
dos que chamamos de meia-tenda – isto é, toldado somente até
ao meio, e aberto em frente para as bagagens. Sob o toldo tinha almofadões
onde podiam dormir bem duas pessoas; além disso suspensões para
as espingardas e bolsos de guardar roupa. Custou-nos cento e vinte e cinco
libras, e saiu barato. As juntas de bois eram dez, magníficas. Ordinariamente
para uma jornada atrelam-se oito juntas; mas para uma aventura destas, vinte
bois não vão demais. Todos eram de raça zulu; a mais
pequena da África, mas a melhor; e todos eles salgados. Chamamos aqui
salgados aos bois já muito jornadeados pelo sul da África, e
à prova, portanto, da “água vermelha” – que destrói
às vezes todas as juntas de um carrão. Além disso, todos
tinham sido vacinados contra a maleita de pulmões, forma horrível
de pneumonia, que é nestas terras um flagelo para o gado.
Em seguida organizamos provisões e remédios. Este detalhe
demandava ciência e cuidado, porque convinha, numa empresa tão
acidentada, que nem faltasse o necessário, nem o carrão partisse
abarrotado e carregado em demasia. Para os remédios foi-nos de grande
utilidade o Capitão John, que em tempos estudara para médico
da Armada, e que (além de possuir, muito a propósito para nós,
um estojo de cirurgia e uma farmácia de viagem), conservara conhecimentos
genéricos e uma tolerável prática. Durante a nossa estada
em Durban cortou ele o dedo polegar a um cafre com uma maestria – que fazia
apetite ver! O que o perturbou foi o cafre (que observara a operação
em perfeita impassibilidade) pedir-lhe depois para lhe pôr outro dedo
novo.
Restava, enfim, a importante questão de criados e armas. Armas tínhamos
por onde as escolher – entre as que eu possuía e a coleção
esplêndida que o barão trouxera de Inglaterra. Sete espingardas
de dois canos para diferentes caças, três carabinas Winchester,
três revólveres Colts – assim ficou constituído
o nosso armamento. Em quanto a criados, depois de muita consulta e reflexão,
decidimos limitar o número a cinco – um guia, um boieiro, e três
serviçais. Boieiro e guia achamos nós facilmente em dois zulus,
que se chamavam – um Gôza e outro Tom. Mas os serviçais eram
de mais difícil e delicada escolha. Da paciência, da fidelidade,
da coragem dos serviçais poderiam muitas vezes depender as nossas pobres
vidas nesta aventura igual.
Finalmente, arranjei dois: um hotentote* chamado Venvogel, e um rapazito
zulu, de nome Quiva, que tinha o mérito (considerável para os
meus companheiros) de falar inglês com fluência. O hotentote já
eu conhecia. Era um dos melhores “farejadores de caça”
de toda a África. Ninguém mais rijo nem mais resistente. O seu
defeito sério consistia na bebida. Mas como íamos para região
onde não há “águas ardentes” nem quase águas
correntes, pouco importava esta fragilidade do digno Venvogel.
(*) Hotentote = de ou pertencente ou relativo a Hotentótia, sul da
África; de língua e pronuncia confusa. (A.H.S.) Tínhamos,
pois, dois serviçais. O terceiro parecia impossível descortinar.
Tentei, tentei – até que resolvemos partir sem ele, esperando encontrar,
antes de metermos para o deserto, algum homem aproveitável entre Iniati
e Zucanga. Na véspera, porém, da nossa partida estávamos
jantando, quando Quiva, o rapaz zulu,
veio anunciar que um homem se viera sentar no meu portal, à minha espera.
Mandei entrar. Apareceu um rapagão muito esbelto, robusto, magnífico,
aparentando trinta anos, e claro de mais para zulu. Floreou no ar o cajado
à maneira de saudação, encruzou-se sobre o soalho, a
um canto, e ficou calado com singular dignidade. Não lhe dei atenção.
Assim se deve proceder com os zulus. Se o branco lhes fala com prontidão
e agrado, o zulu conclui imediatamente que está tratando com pessoa
de pouco comando. Observei, no entanto, que este homem era um hesita um homem-de-anel
– isto é, que trazia na cabeça aquela espécie de rodilha,
feita de goma, e toda lustrosa de sebo, que eles entremeiam na grenha e usam,
quando chegam a uma idade de respeito, ou atingem nas suas aringas uma posição
superior. Também me pareceu reconhecer aquela cara – realmente bela.
– Bem – disse por fim – como te chamas? – Umbopa – respondeu o homem numa
voz lenta e grave.
– Estou a pensar que já te vi algures.
– Já, Macumazã! Macumazã é o meu nome cafre
– e significa aquele que se levanta pelo meio da noite para vigiar; ou antes,
aquele que conserva sempre os olhos bem abertos.
– Macumazã – continuou o zulu – viu-me em Izand-luana, na véspera
da batalha…
Lembrei-me então completamente. Eu fui um dos guias de Lorde Chelmsford,
na desgraçada guerra com os zulus. Por acaso, na véspera da
Batalha de Izand-luana, que consumou o desastre das tropas inglesas, fui mandado
levar para fora do acampamento uns poucos de carrões de bagagens. Quando
se estava atrelando o gado, este homem (que comandava um troço de cafres,
dos indígenas auxiliares) veio para mim, dizendo que o acampamento
não estava seguro, que era certa uma surpresa, e que o vento trazia
cheiro de inimigo. Respondi-lhe que “dobrasse a língua”,
e deixasse a segurança do acampamento a melhores cabeças que
a dele. Pois grande razão tinha o zulu! Logo nessa noite o acampamento
foi terrivelmente assaltado…
Tudo isso, porém, vem na história.
– Que queres tu? – perguntei. – Lembro-me perfeitamente de ti.
Dize o que queres.
– Quero isto. Correu aqui voz que Macumazã vai para o norte, numa
grande expedição, com os chefes brancos que vieram de além-mar.
É verdadeira a voz? – Verdadeira.
– Correu aqui também voz que Macumazã e os chefes iam para
o lado do Rio Lucanga, que fica a um bom quarto de lua de jornada do distrito
de Manica. É verdade? Franzi o sobrolho, descontente de ver assim tão
conhecido o roteiro da nossa expedição.
– Para que queres tu saber? Que tens com isso? – Tenho isto, oh brancos!
Que se ides assim para tão longe, eu quereria ir convosco.
Havia uma altivez nas maneiras deste homem, e especialmente no seu emprego
da expressão “oh brancos” em lugar de “oh inkosis”
(chefes), que me surpreendeu grandemente.
– Estás esquecendo a quem falas! – repliquei. – As palavras saem-te
demasiadas e imprudentes. Como é o teu nome? Onde é a tua aringa?
É necessário saber quem temos diante de nós! – O meu
nome é Umbopa. Sou da raça dos zulus, mas não sou zulu.
O sítio da minha tribo é muito longe, para o norte; os meus
ficaram lá quando os zulus desceram para aqui, há muito, há
mais de mil anos, antes de Chaca ser rei. Não tenho, aringa. Muitos
anos vão que ando errante. Quando vim do norte era criança.
Depois fui dos homens de Cetevaio no regimento de Nomabacosi. Por fim fugi
dos zulus e vim para o Natal para ver as artes dos brancos. Foi então
que servi na guerra contra Cetevaio, e que te encontrei, Macumazã!
Agora tenho trabalho no Natal. Mas estou farto, quero ir para o norte. O meu
lugar não é aqui. Não peço soldada, mas sou valente,
e valho bem o pão que comer. Eis as palavras que tinha a dizer.
Este homem e a sua grande maneira de falar – intrigavam-me singularmente.
Era certo para mim que só dirá a verdade; mas na cor, nos modos,
diferia muito o zulu ordinário; e a sua oferta de vir conosco sem soldada,
extraordinária num africano, enchia-me de desconfiança. Na dúvida,
traduzi as estranhas falas aos meus amigos, solicitei-lhes conselho. O barão
pediu-me que mandasse pôr o homem de pé. Umbopa ergueu-se, deixando
escorregar ao mesmo tempo o vasto casacão militar que o envolvia, e
ficou diante de nós, mudo, erecto, soberbo, todo nu, com um simples
pedaço de pano em torno dos rins e um fio de garras de leão
enrolado ao pescoço. Era, realmente, um esplêndido homem! Tinha
mais de dois metros de altura, e largo em proporção, ágil
admirável de formas. Na luz da sala em que estávamos, a pele
parecia apenas muito trigueira, como a de um árabe.
Aqui e além, pelo corpo, conservava cicatrizes terríveis de
antigos golpes de azagaia.
O barão foi direito a ele, e cravou-lhe os olhos nos olhos, que se
não baixaram, e que rebrilharam: – Gosto de ti Umbopa – disse em inglês
– e tomo-te ao meu serviço. Umbopa evidentemente compreendeu, porque
murmurou em zulu: – Está bem.
– Depois, atirando um olhar para a grande estatura e força do branco,
acrescentou: – Somos dois homens, tu e eu!
Capítulo IV – Os Elefantes
Saímos de Durban no fim de janeiro, e andadas quase as trezentas léguas
que vão daqui ao sítio em que se juntam os rios Lucanga e Calucue,
chegamos, pelos meados de maio, a Iniati, não longe da aringa de Sitanda,
onde acampamos.
Durante a jornada tivemos aventuras várias, mas daquelas que são
usuais em todas as travessias da África e já muito contadas
nos livros. Em Iniati, última estação mercante da terra
dos matabeles, onde Lobengula (esse atroz velhaco!) é rei, separamo-nos,
com fundas saudades, do nosso confortável carrão. Dos vinte
bois que trouxéramos de Durban, só doze restavam. Um morrera
da mordedura da cobra, três
da falta de água; um perdeu-se; os outros três comeram uma erva
venenosa, chamada tulipa. Os restantes deixamo-los com o vagão ao cuidado
de Gôza e de Tom (o boieiro e o guia), pedindo a um digno missionário
escocês que habita aquele desterro, que caridosamente nos vigiasse o
carrão, o gado e os homens. E no dia seguinte, acompanhados por Umbopa,
Quiva, Venvogel, e meia dúzia de carregadores que arranjamos em Iniati,
largamos para o deserto, a pé, em seguimento da nossa temerária
aventura.
Era de madrugada; e lembrei-me que no momento de nos pormos em marcha estávamos
todos três bem comovidos! Cada um perguntava a si mesmo, decerto, se
jamais tornaria a ver o carrão, os bois e o missionário. Eu,
por mim, levava a certeza que não. Os primeiros passos foram lentos,
dados em grave silêncio. Mas, de repente, Umbopa, que marchava na frente,
rompeu num grande canto – uma canção zulu, dizendo de uns homens
que, cansados da vida e da monotonia das cousas, se tinham metido ao deserto,
para achar ocupação ou morrer, e que, para além dos sertões,
subitamente, encontravam um paraíso cheio de raparigas moças,
de gado, de caça, e de inimigos para matar! Esta canção
pareceu-nos de boa promessa.
A quinze dias de marcha de Iniati começamos a atravessar uma região
arborizada e farta em águas. As colinas estavam espessamente cobertas
de mato que os indígenas chamam irado; e por toda a parte se estendiam
bosques de machabelas, árvores que dão um fruto amarelo, enorme,
quase todo caroço, mas deliciosamente fresco e doce. As folhas e frutos
destas árvores são o alimento querido dos elefantes; e decerto
os imensos animais andavam perto, porque a cada passo topávamos arbustos
quebrados e desarraigados. O elefante por onde vai comendo, vai assolando.
Uma tarde, depois de uma caminhada fatigante, chegamos a um sítio
particularmente pitoresco e de amável repouso. Era junto de um outeiro
todo vestido de arvoredo. Ao pé serpeava o leito seco de um rio, conservando
ainda aqui e além poças de água cristalina e fria, espezinhadas
em redor pelas largas pegadas de feras. Em frente verdejava um belo parque
de mimosas, machabelas e outras árvores ainda, raras e cheias de flor:
e em torno era o mato, o mato silencioso, denso, impenetrável.
Decidimos ficar ali e construir um scherm, a pouca distância de uma
das poças de água. O scherm é uma espécie de acampamento
entrincheirado, que se faz cortando grande quantidade de mato espinhoso e
armando-o circularmente numa vasta e rude sebe que forma defesa. Todo o espaço
interior se aplaina como uma arena; ao centro amontoa-se erva seca, um capim
chamado tambouki, que serve de divã e de cama; aqui e além,
em volta, acendem-se alegres fogueiras.
Quando acabamos de arranjar o scherm – vinha nascendo a lua. O jantar estava
pronto. Bem parco era ele, composto dos tutanos e lombos de uma girafa, que
nessa tarde, ao fim da sesta, fora morta pelo Capitão John com um tiro
providencial. Mas depois de coração de elefante (a mais fina
delicia que se pode ter), tutano e lombo de girafa são os petiscos
superiores da África, e grandemente os saboreamos sob o esplendor da
lua cheia, que ia alta nos céus. Depois acendemos os cachimbos, e conversamos
no vasto silêncio em roda do lume. Os meus companheiros não se
fartavam de contemplar aquela cena de sertão, familiar para mim, com
os meus quarenta anos de África, mas que a eles só oferecia
estranhezas – até na maneira por que as claridades alumiam, até
na maneira por que a noite é silenciosa. Eu por mim,
confesso, admirava sobretudo o nosso excelente Capitão John. Ali estava
ele, no interior da terra negra, em pleno deserto, estirado em cima de um
saco de couro, – tão apurado, tão correto, tão bem pregado,
como se viesse de passear num parque luxuoso de castelo inglês, em dia
de caça ao faisão. Tinha um fato completo de cheviote castanho,
com chapéu da mesma fazenda, polainas irrepreensíveis, luvas
amarelas de pele de cão, a face escanhoada, monóculo no olho,
os dentes postiços rebrilhando em glória! Nunca o sertão
africano vira decerto um homem mais catita. Até trazia colarinhos altos
(colarinhos de guta-percha), de que emalara na mochila uma escandalosa porção
– “por serem leves (dizia ele), fáceis de lavar, e dar logo à
gente um ar de asseio e distinção”.
Pois assim estivemos muito tempo, sob o magnífico luar, conversando
e observando os cafres, que chupavam a doca nos seus longos cachimbos feitos
de cornos de élan, e que, um por um, se iam enrolando nas mantas e
estirando à beira do lume. Só Umbopa por fim ficou acordado,
longe dos cafres (a quem geralmente não admitia familiaridades), com
o queixo encostado ao punho, os olhos perdidos na lua, numa daquelas abstrações
em que por vezes eu o surpreendera desde o começo da nossa jornada.
De repente, da profundidade do mato, por trás de nós, subiu
no ar um longo e rouco rugido. “É um leão!” exclamei.
Todos nos erguemos, a escutar. Quase imediatamente, junto à poça
de água pura, vizinha do nosso scherm, ressoou, como em resposta, a
estridente tromba de um elefante. “Uncungunlovo! Uncungunlovo!”,
Elefante! Elefante! murmuraram à uma os cafres, levantando as cabeças
das mantas; e momentos depois avistamos uma fila de enormes e escuras formas,
movendo-se devagar da beira da água para o mato. O capitão,
com um salto, agarrara a espingarda. Tive de o segurar pelo braço:
– É inútil, não se faz nada. Nada de barulho. Deixá-los
ir.
– Em todo o caso – disse o barão excitado – este sítio para
um caçador é um verdadeiro paraíso! Se aqui ficássemos
um dia ou dois?…
Estranhei; porque até aí o barão, impaciente, viera-nos
sempre apressando para diante – sobretudo desde que soubera em Iniati, pelo
missionário, que dois anos antes um inglês, chamado Neville vendera
ali o carrão em que viera de Bamanguato e se internara no sertão
com um cafre por serviçal. Mas ouvira o leão, ouvira o elefante
– e os seus instintos de caçador dominavam, irresistivelmente.
– Pois muito bem, filhos meus – disse eu – uma vez que se quer um bocado
de divertimento, ter-se-á; mas amanhã. Por agora é tratar
de dormir, e erguer com o primeiro luzir do dia, para apanhar esse rico gado
antes que ele vá aos seus negócios.
Toca pois a acomodar.
O Capitão John (extraordinário homem!) tirou o fato, sacudiu-o,
meteu o monóculo e os dentes postiços dentro do bolso das calças,
dobrou tudo cuidadosamente, guardou tudo ao abrigo do orvalho debaixo do seu
makintosh, alisou o cabelo, tomou um bochecho de água, e estirou-se
de lado para dormir com correção e conforto. O barão
e eu, depois de contemplar, rindo, estes requintes, embrulhamo-nos simplesmente
num cobertor; e daí a pouco envolvia-nos aquele sono profundo, absoluto,
sem sonhos, sem movimentos, que é a recompensa e a consolação
de quem moureja por estas terras negras.
Com o primeiro alvor da madrugada estávamos a pé, preparando
para a ação. Tomamos as carabinas, munições abundantes,
cantis cheios de chá frio (que é a melhor bebida, a única,
quando se caça), e partimos, depois de engolir de pé um almoço
breve, acompanhados de Umbopa, de Quiva e de Venvogel.
Não tivemos dificuldade em achar o carreiro aberto e pisado pelos
elefantes, que, segundo Venvogel declarou, deviam ser uns vinte ou trinta,
a maior parte machos e todos crescidos. Mas o bando afastara-se durante a
noite; e eram quase nove horas, já o calor ardia em céu e terra,
quando pelos arbustos quebrados, pelas cascas e folhas de árvores esmagadas,
e pelos montes de bosta fumegaste, percebemos que os bichos andavam cerca
– e seguros. Daí a instantes, efetivamente, avistamos o rebanho todo,
uns vinte a trinta elefantes (como Venvogel calculara), parados numa cova
de terreno, quietos, tendo decerto acabado o primeiro repasto, e sacudindo
com lentidão e majestade as suas imensas orelhas. Era uma vista soberba!
Só as há assim na África! Estávamos separados
deles por umas cem jardas. Agarrei um punhado de capim e atirei-o ao ar para
tomar a direção do vento; porque se um elefante nos farejasse,
bem sabia eu que, antes de podermos pôr as carabinas à cara,
o rebanho inteiro abalava. A aragem, se alguma corria, soprava para nós
do lado dos bichos; de sorte que rastejamos cuidadosamente através
do mato, mudos, sem respirar, até nos aproximarmos umas quarenta jardas
mal medidas. Justamente diante de nós, e de ilharga para nós,
estacionavam três magníficos elefantes machos, um deles com enormes
dentes e o ar supremo de um patriarca. Avisei, baixinho, os companheiros,
que me encarregava do animal do meio; o barão apontou ao mais pequeno,
ao da esquerda; o capitão ao “patriarca”.
– Agora! – murmurei.
Bum! Bum! Bum! O elefante do barão tombou redondo, varado no coração.
O meu caiu pesadamente sobre os joelhos; mas quando pensei que ia desabar
para o lado, morto, vejo a enorme massa que se ergue e larga galopando por
diante de mim. Meti-lhe segunda bala na ilharga, que o abateu. À pressa,
com dois cartuchos mais na carabina, corri para ele e findei-lhe misericordiosamente
a agonia. Voltei-me então para ver o que se passara com o elefante
do capitão, o “patriarca”, que eu ouvira por trás
de mim bramando de dor e fúria. Encontrei John excitadíssimo.
Ao que parece, o elefante, apenas ferido, rompera contra ele (que meramente
teve tempo de se desviar com um salto), e seguira, furioso e sem ver, para
a banda do nosso acampamento. O resto do rebanho no entanto, espavorido, rompera
para o outro lado, através da espessura.
Durante um momento ficamos indecisos entre seguir o “patriarca”
ferido ou o resto da manada. Por fim resolvemos bater atrás do bando.
Segui-los era fácil, porque tinham aberto um caminho, mais largo e
liso que uma estrada real, esmagando o mato espesso como se fosse relva de
primavera. Achá-los, porém, era mais complicado; e tivemos,
durante duas infindáveis horas, de marchar sob um sol faiscante, antes
de os avistarmos. Lá estavam todos outra vez muito juntos (exceto um
dos machos); e pela inquietação com que se mexiam, pelo constante
erguer das trombas desconfiadas, farejando o ar – era claro que esperavam,
temiam outro ataque. Um dos machos afastado, à laia de sentinela, vigiava
para o nosso lado, de tromba ameaçadora e alta.
Entre ele e nós mediavam umas sessenta jardas. Se este “cavalheiro”
nos pressentisse, dava sinal e o rebanho abalava, tanto mais facilmente quanto
nos achávamos, bichos e homens, em terreno descoberto. De sorte que
todos três lhe apontamos, todos três lhe atiramos. Bum! Bum! Bum!
Morto! Mas os outros partiram, numa desfilada, como colinas rolando. Infelizmente
para eles, logo adiante havia um nullah, isto é, uma ribeira seca,
com as bordas abarrancadas do nosso lado e quase a pique do lado fronteiro
(sítio parecido àquele em que o Príncipe Imperial foi
morto na Zululândia). Para aí justamente se atiraram os elefantes
em tropel. Quando chegamos à borda, demos com eles em medonha confusão,
esforçando-se por trepar a outra ribanceira (escarpada e hirta), empurrando-se
uns aos outros, num furor e egoísmo verdadeiramente humanos, e atroando
os ares de bramidos. A nossa oportunidade era escandalosamente brilhante.
Sem outra demora, disparando tão depressa como carregávamos,
demos cabo de cinco elefantes; e teríamos dizimado o rebanho inteiro
se eles de repente, abandonando a teima estúpida de galgar a ribanceira,
não largassem a fugir ao comprido do leito seco que se perdia ao longe
na espessura. Estávamos cansados demais para os perseguir, enjoados
também dessa vasta mortandade. Oito elefantes numa manhã, antes
do lunch, é decente.
De sorte que, depois de descansarmos e vermos os cafres cortar os corações
a dois dos elefantes para servir à ceia, voltamos vagarosamente os
passos para o acampamento, devagar, satisfeitos com a proeza, e calculando
o valor do marfim, que no dia seguinte, cedo, os carregadores viriam serrar.
Ao passar no sítio em que o capitão tinha ferido o “patriarca”,
encontramos um rebanho de elands. Não lhe atiramos, porque não
há nada no eland que valha dinheiro, e mantimentos já trazíamos,
deliciosos e abundantes. O bando passou ao nosso – lado, ligeiro e trotando;
depois, adiante, onde se erguia um tufo de arbustos em flor, parou; e todos
a um tempo se voltaram, a olhar para nós, espantados.
O capitão nunca vira um eland. Quis aproveitar a ocasião;
deu a carabina a Umbopa, e seguido de Quiva adiantou-se, de monóculo
fito, para o tufo de arbustos em flor. O barão e eu sentamo-nos à
espera, numa pedra.
O sol ia justamente descendo, num grande esplendor de vermelho e ouro. O
barão e eu contemplávamos, calados, aquela beleza de céu
e luz, quando, de repente, ouvimos o bramido de um elefante e vimos, escura
sobre a vermelhidão do poente, uma vasta forma avançando a galope,
de tromba erguida e cauda espetada. Logo imediatamente vimos outra cousa horrível:
o capitão, e Quiva, o serviçal zulu, fugindo para nós
numa carreira perdida, perseguidos pelo elefante! Era o grande bicho ferido,
o “patriarca”, que ali ficara errando.
Agarramos num ímpeto as carabinas. Mas quê! Fera e homens,
correndo para nós, vinham juntos! Se disparássemos, a bala podia
varar John ou Quiva… E assim ficamos nesta indecisão, com o coração
a tremer, quando o pobre capitão escorrega naqueles infames botins
de bezerro com que teimava em trilhar o sertão – e cai, estatelado,
de face na terra, diante mesmo do enorme elefante que chegava bramindo! Fugiu-nos
a respiração! O pobre camarada estava perdido! Largamos ainda
a correr para ele, desesperadamente. E o desastre veio, com efeito – mas de
um modo bem diferente. Quiva, o zulu (valente, heróico rapaz que era!),
vendo o amo por terra,
volta-se, e arremessa a azagaia a toda a for&ccediccedil;a contra a tromba do elefante.
A fera lança um uivo de dor, arrebata o desgraçado zulu, bate
com ele no chão, põe-lhe uma imensa pata sobre as pernas, e
enrodilhando-lhe a tromba no peito, rasga-o literalmente, o rasga em dois.
Corremos, cheios de horror, fizemos fogo uma vez, outra vez, furiosamente
– até que o elefante se abateu como um monte sobre os pedaços
sangrentos do zulu.
Foi um instante de indizível consternação. Apesar de
endurecido por quarenta anos de caça e carnificinas, eu próprio
sentia um “nó na garganta”, e creio que me fiz pálido.
O barão tremia todo. E o pobre capitão torcia as mãos,
na dor de ver assim despedaçado o servo valente que dera a vida por
ele.
Só Umbopa teve a palavra serena que convinha à disciplina.
Veio, com os seus passos altivos e leves, contemplar os restos de Quiva, numa
poça de sangue, junto à massa enorme do elefante; moveu a mão
no ar e disse: – Morreu. Bem dele, que morreu como um homem!
Capítulo V – A Nossa Entrada no Deserto
Tínhamos morto nove elefantes. Dois longos dias levamos a serrar-lhes
os dentes e a enterrá-los com cuidado debaixo de uma árvore
enorme, que destacava isoladamente na vasta planície, e formava um
“sinal” inesquecível. Era um esplêndido lote de marfim!
Só os dentes do “patriarca” pesavam (tanto quanto pude
avaliar) uns cento e setenta arráteis! O pobre Quiva, esse, sepultamo-lo
ao pé da colina, com uma azagaia ao lado, para se defender dos espíritos
malignos na sua difícil jornada para o paraíso zulu. Ao romper
do terceiro dia levantamos o acampamento – todos nós fazendo votos,
no silêncio da nossa alma, para que nos fosse dado voltar um dia! Eu,
mentalmente, acrescentava: – “voltar e desenterrar este rico marfim!”
Depois de uma fatigante marcha, cortada desses episódios africanos
que todos os africanistas experimentam, chegamos enfim à arroga de
Sitanda, ao pé do Rio Lucanga. Aí era verdadeiramente o nosso
“ponto de partida”. Aí começariam as nossas misérias.
Perfeitamente me lembro do sítio, e da nossa chegada. Para a direita
descia, trans-malhada, uma pequena povoação de negros, com currais
de gado murados de pedra solta, e leiras de terra cultivada ao comprido da
água clara. Por trás da aldeia ondulavam grandes pradarias de
erva alta, onde a caça abundante esvoaçava. E para a esquerda
era o escuro, silencioso, infindável deserto.
O nosso acampamento ficou junto desse riacho alegre, que corria entre arbustos
em flor. Defronte, erguia-se um outeiro pedregoso. Apenas erguemos as tendas,
subi lá com o barão. Era aquele o sítio, aquele o outeiro
onde eu vira, havia vinte anos, numa tarde como esta, a figura do pobre Silveira,
com o seu grande casacão comprido, aparecer cambaleando, toda escura
na vermelhidão do poente. Como então, o globo do sol, afogueado,
descia já rente da terra – e os seus raios flexavam, obliquamente,
aquele deserto coberto de tojo baixo, sombrio, sem água, sem vida,
terrivelmente mudo, que matara o pobre português, que nos ia talvez
matar a nós.
Ficamos olhando para ele em silêncio. O ar era de uma admirável
finura e transparência; e longe, muito ao longe, podíamos distinguir,
recortada no horizonte, palidamente azulada e com laivos brancos de neve,
a cordilheira de Suliman. Mostrei-a ao meu companheiro: – A entrada das minas
de Salomão lá está… Chegaremos nós lá?
Nesse instante, senti alguém por trás de nós respirando:
era Umbopa, que trepara também ao cômoro, e considerava o deserto
com pensativa gravidade. Vendo que eu reparara nele, deu um passo lento, depois
outro mais lento. E dirigindo-se ao barão (a quem parecia ter-se afeiçoado),
apontando com a sua grande azagaia para o lado dos montes: – É para
aquela terra além que tu vais, Incubu? Incubu é uma palavra
do dialeto zulu, que significa “elefante”, e que servia, entre
os cafres, para designar o nosso chefe. Estranhei a audácia de Umbopa,
e perguntei-lhe asperamente que tosca maneira era essa de falar a seu amo…
Que o negro dê uma alcunha negra ao patrão, por lhe ser mais
facilmente pronunciável que o nome – vá! Que a um como eu, pobre
caçador que ganha o seu pão, o negro se dirija sempre pela alcunha
negra – vá ainda! Mas que a atire à face de um senhor, de um
fidalgo – isso não! – Fala assim aos teus iguais – gritei eu. – Fala
assim aos que contigo comem da mesma gamela! O zulu teve uma risadinha doce
que me enfureceu.
– Que sabes tu – acrescentou ele – se eu não sou igual ao amo que
sirvo? Ele pertence a uma grande casta; pelo olhar se vê logo; mas talvez
eu pertença a uma casta maior! Pelo menos sou tão forte como
ele, e posso com ele repartir o que tenho no coração. Sê
pois a minha boca, oh Macumazã! Dize as minhas palavras ao Incubu meu
amo! E atende-as tu também, porque em mim só há verdade!
Fiquei perfeitamente indignado. Nunca um cafre me falara naquele tremendo
tom! Mas, não sei por que, o maldito zulu tinha a arte de me impressionar.
Além disso, sentia uma viva curiosidade… De sorte que lhe traduzi
as palavras, – acrescentando que a criatura me parecia imprudente e ousada.
O barão, porém, homem de excelente paciência, voltou-se
sorrindo para o zulu: – É para as montanhas que vou com efeito, Umbopa!
Vou em procura de um homem da minha raça, de um irmão meu, que
atravessou este deserto, e que eu suponho estar além! O zulu moveu
lentamente a cabeça: – Assim é, assim é… Encontrei
um homem no caminho que me disse: Há dois anos que um branco se meteu
também ao deserto como nós, levando um só serviçal…
Nunca mais voltaram…
– Quem te disse? – perguntei, vivamente. – Por que te saem só agora
essas palavras? Onde te disseram? Antes de Iniati, um homem que ele encontrara
no caminho. Contara-lhe que o branco se parecia com o chefe Incubu, mas tinha
a barba escura; e que ia seguido por um caçador bechuana chamado Jim.
– São eles! – exclamei. – Não há dúvida! São
eles! Jim conhecia eu bem…
O barão ficou pensativo.
– Se meu irmão tinha decidido atravessar o deserto – murmurou por fim
– ou o atravessou, ou morreu. Recuar ou mudar de fito não era da têmpera
dele. Ou não vive, ou está para lá das serras.
O zulu, que lhe seguira as palavras com os grandes olhos brilhantes, tornou
muito gravemente.
– É uma longa jornada, Incubu.
– Quartelmar, diga-lhe que não há jornada que o homem não
possa empreender – replicou o barão (que evidentemente estimava e considerava
aquele singular zulu). Nada há que o homem não possa fazer;
nem desertos que não possa atravessar, nem montanhas que não
possa subir, se puser nisso alma e vontade. O essencial é contarmos
a vida por cousa nenhuma, alegremente prontos a conservá-la ou a perdê-la,
segundo Deus ordenar.
Quando o zulu compreendeu, toda a face se lhe iluminou: – Grandes palavras,
meu pai Incubu! Grandes, soberbas palavras que enchem bem a boca de um forte!
Que é a vida, na verdade? É a semente da erva que o vento sopra
aqui e além. Às vezes cai em boa terra e frutifica; outras vezes,
na rocha dura e definha… O homem nasce para morrer. Mais tarde ou mais cedo,
que importa? É sempre a morte. Eu por mim irei contigo, Incubu! Irei
por montanha e deserto, e ser-te-ei sempre fiel…
Parou. E subitamente rompeu numa dessas rajadas de poesia, freqüentes
nos zulus, que tanto surpreendem os que pela primeira vez as testemunham,
e que, apesar de nevoentas, redundantes, e decoradas de geração
em geração, mostram que se a raça não é
inteligente, é pelo menos imaginativa.
– Que é a vida (exclamava Umbopa, abrindo os braços, naquele
tom cantado que os zulus tomam nesses momentos de exaltação).
Que é a vida? Dizei-me, oh brancos, vós que sabeis os segredos
deste mundo, e do mundo das estrelas que brilha por cima, e do outro mundo
que está para além das estrelas! Dizei-me, oh brancos, dizei-me
o segredo da vida! De onde vem ela; para onde vai?… Não podeis, não
sabeis! Escutai então! Nós saímos da treva, e para a
treva marchamos. Como um pássaro acossado pela tormenta, nós
saímos do fundo da escuridão; durante um momento passamos, e
as asas brilham-nos à luz das fogueiras; depois, de novo e para sempre,
mergulhamos na treva! A vida é o pirilampo que fulgura de noite e de
dia é negro! É o hálito dos rebanhos no ar de inverno!
É a sombra que corre sobre a relva, e que desaparece ao poente!…
Calara-se, com os braços ainda abertos, o olhar perdido nas alturas.
– És um homem bem singular, Umbopa! – exclamou o barão, que
o escutara assombrado.
O outro pareceu acordar, sorriu: – Creio que nos assemelhamos, Incubu. Talvez
eu também vá procurando um irmão entre as gentes que
estão para lá das montanhas.
Olhei para Umbopa, com o sobrolho franzido.
– Que gentes? Que sabes tu das gentes que vivem para lá das montanhas?
– Pouco, Macumazã, muito pouco. Há para além uma terra
de feitiços, de jardins, de gente valente… Há também
uma grande estrada branca, toda de pedra. Assim ouvi. Mas de que vale dizer?
Quem lá chegar, lá verá!
Aquele homem, evidentemente, sabia alguma cousa que não queria revelar.
Ele decerto percebeu a minha desconfiança – porque acudiu, espalmando
as mãos: – Não te arreceies, Macumazã! Não te
arreceies! Não abro covas, para que tu caias dentro. Se chegarmos a
atravessar o deserto, eu te contarei o que sei. Mas a Morte está lá
com uma lança, à nossa espera. Melhor te fora, Macumazã,
voltar aos teus elefantes… Falei o que tinha a falar.
E meneando a azagaia à maneira de saudação, desceu
o cômoro, recolheu ao acampamento – onde daí a instantes o encontramos
limpando uma carabina, atento, calado, como qualquer servo cafre vazio de
pensamento e vontade. – Homem extraordinário! – murmurou o barão.
– Extraordinário demais! Não gosto nada daqueles mistérios…
Mas, enfim, nós estamos metidos numa aventura fantástica, e
um zulu misterioso, demais ou de menos – não tira nem põe.
Na manhã seguinte começamos os preparativos para a marcha.
Era impossível naturalmente levar conosco, através do deserto,
todo o pesado armamento, e as cantinas. Fomos portanto forçados (depois
de debandar os carregadores) a confiar tudo a um velho cafre, um atroz sacripanta,
que possuía ali uma aringa considerável. Bem penoso me era abandonar
as nossas magníficas armas à mercê daquele velho malandro
– cujos olhos se fixavam já nos nossos bens com um fulgor de cobiça
e rapina. Tomei por isso as minhas precauções. Comecei por carregar
as espingardas. Depois declarei ao bandido, num tom cavo, que aqueles canos
estavam enfeitiçados – e que se ele lhes tocasse “ali”
(mostrei o gatilho), os demônios fugiriam de dentro despedindo um raio!
Imediatamente (como eu calculara), o cafre puxou o gatilho a uma carabina
Express. E o raio partiu. Partiu, com tanta felicidade, que matou uma vaca
que pastava pacificamente a distância, à beira da água
– e atirou o velho de pernas ao ar, com a inesperada força do recuo.
O pavor do malandro foi indizível. Tremia todo, dava pulos em volta
da vaca morta (que depois, mais tranqüilo e com toda a impudência,
queria que eu lhe pagasse), olhava para o céu, olhava para o chão…
Por fim rompeu aos berros: – Tirem esses demônios que estouram! Ponham-nos
lá em cima, sobre o colmo!… Ai, que não fica vivo um de nós!
Apenas ele serenou, continuei a minha prédica. Afirmei-lhe, com olhares
esgazeados, que se ao voltarmos, uma só arma daquelas faltasse, eu,
que possuía as artes dos brancos, o mataria a ele e a toda a sua gente
por meio de bruxarias sangrentas; e que se nós morrêssemos e
ele tentasse apoderar-se do que era nosso, eu voltaria em espírito
persegui-lo, puxar-lhe de noite pelos pés, tornar-lhe o gado bravo,
dessorar-lhe o leite fresco, secar-lhe a semente da terra, – e fazer a vida
na aringa tão dura e terrível que seus próprios filhos
o amaldiçoariam… Enfim, dei-lhe uma idéia razoável
do inferno, com horrores inéditos. O velho malandro, espavorido, jurou
que olharia pelas nossas armas como se fossem os ossos de seu pai! Era um
patife infinitamente supersticioso.
Em seguida combinamos o que nós cinco – o barão, o Capitão
John, eu, Umbopa e Venvogel – devíamos levar conosco através
do deserto. Muito calculamos, muito experimentamos. Não logramos chegar
a um peso menor de quarenta arráteis por homem. E havia escassamente
o necessário! Eis aqui o que conduzíamos: Cinco espingardas
– com a competente munição (quatrocentas cargas);
Três revólveres; Cinco cantis de água, de cinco quartilhos
cada um; Cinco mantas. Vinte e cinco arráteis de biltong – que é
uma espécie de carne-seca; Dez arráteis de contas de vidro para
presentes aos indígenas; Navalhas, fósforos, um compasso, um
filtro de algibeira, uma enxó, uma garrafa de conhaque, tabaco – e
os fatos que tínhamos no corpo.
Era tudo; e era pouco, como necessidade e conforto, numa semelhante empresa!
Ainda assim peso considerável para cinco homens acarretarem, por um
sol terrível, através de um deserto estéril! Depois,
com imensas dificuldades, persuadimos três negros da aldeola a acompanharem-nos
durante vinte milhas, levando cada um às costas uma larga cabaça
de água fresca. O meu fim era podermos encher de novo os cantis, depois
da primeira noite de marcha (porque decidíramos partir na frescura
da noite). Os negros, a quem eu contara que íamos caçar o avestruz,
não acreditaram; tinham por certo que morreríamos de sede e
de fome no grande sertão; eles próprios temiam a morte e os
demônios que vagam no deserto; e só consentiram em nos seguir,
a troco de três facas de mato e de uma manta vermelha.
Durante todo esse dia descansamos e dormimos. Ao pôr do sol celebramos
um grandioso jantar, de caça, de carne fresca e de chá – “o
último chá, observou John com melancolia, que naturalmente beberíamos
por longos e longos meses”.
Depois, apetrechadas as mochilas, esperamos que nascesse a lua. Perto das
nove horas subiu ela, em toda a sua serena e pensativa glória, inundando
de luz branca e vaga todo o imenso deserto, que parecia tão mudo, solene,
impenetrável e virgem de pegadas humanas como o claro firmamento que
por cima resplandecia. Com a lua que se erguia nos erguemos nós também.
Tudo estava pronto, os negros de cajado na mão; e todavia hesitávamos
ainda, como o fraco homem hesita sempre perante o irrevogável. Lembro-me
bem. Adiante de nós alguns passos, Umbopa, de azagaia na mão,
com a carabina a tiracolo, olhava fixamente para o deserto; atrás de
nós, num grupo, Venvogel, com os três negros que levavam as cabaças
de água, esperavam, direitos e mudos; e nós três, os homens
brancos, muito juntos, sentíamos bater forte o coração.
De repente, o barão tirou devagar o chapéu. E com profunda
emoção: – Amigos, vamos começar uma das mais estranhas
jornadas que homens têm ousado tentar. O que será de nós,
não sei; mas, para bem ou para mal, juntos estamos, juntos nos encontraremos
sempre! E agora, antes de partir, ergamos o pensamento para Aquele que tudo
pode! Escondeu a face entre as mãos, ficou imóvel. O Capitão
John e eu baixamos também a cabeça, com reverência, com
humildade. Eu por mim, confesso, nunca fui homem de orações.
Caçadores de elefantes, na dura vida da África, raro se lembram
de falar a Deus. Em todo o caso, naquele momento, rezei. Rezei com fervor;
e senti-me depois mais alegre e mais leve. Creio que o capitão (religioso
no fundo, apesar de praguejar medonhamente) também rezou. O barão,
esse, era homem de piedade e crença… Quando destapou o rosto, olhou
em redor, ergueu o braço, e com um belo ar de resolução
e de esperança:
– Pronto?… Larga! Os bordões ressoaram na terra dura, – e largamos.
Para nos guiar no deserto tínhamos apenas as distantes montanhas
de Suliman, e o roteiro que o velho D. José da Silveira traçara
no pedaço de camisa. Cada um de nós trazia na algibeira uma
cópia desse mapa rude. Mas, considerando que essas linhas tinham sido
riscadas por um homem meio morto, há trezentos anos – era bem certa
a sua utilidade? A nossa salvação, naquela jornada, seria encontrar
a lagoa, ou poça de água salobra que o velho fidalgo português
marcara a meio caminho entre a aldeia de onde partíramos e as serras
de Suliman. Se a não achássemos, tínhamos certa a morte,
uma morte terrível, a morte pela sede. E, para mim, a probabilidade
de descobrir uma lagoa de três ou quatro metros naquela vastidão
de areia e tojo, parecia-me mínima, infinitésima. Mesmo supondo
que o português a marcara com exatidão – quem nos afiançava
que, nesses trezentos anos, ela não secara ou não fora coberta
pelas areias movediças? Era nisto que eu pensava – enquanto silenciosamente,
como sombras, íamos marchando sob o luar silencioso. O caminho não
era fácil; o tojo denso e espinhoso retardava-nos o passo; a areia
metia-se nos sapatos, e cada meia hora devíamos parar para os esvaziar;
e, apesar da noite não estar quente, havia no ar alguma cousa de pesado
e de espesso, que amolentava. Mas o que sobretudo nos oprimia era a solidão,
o silêncio – o infinito, terrível silêncio. John ainda
tentou assobiar uma cantiga galante de bordo. Mas a toada jovial, o estribilho
de Teus Doces Olhos, parecia lúgubre naquela severa imensidade. O engraçado
homem emudeceu. E seguimos numa fila muda através do mato mudo.
Perto da meia-noite, sobreveio uma aventura que nos assustou – e depois
nos divertiu imensamente. John, como marinheiro, levava a bússola,
e marchava adiante, guiando. De repente ouvimos um berro – John desaparece!
Ao mesmo tempo rompia, em torno de nós, uma balbúrdia medonha
de roncos, bufos, grunhidos, sons de patas fugindo – e vemos formas, como
garupas, galopando através do tojo, entre rolos de areia. Os negros
atiraram-se ao chão, gritando que eram “demônios acordados”!
Eu próprio e o barão ficamos surpresos; e o nosso assombro cresceu
quando avistamos John, aparentemente montado num potro, fugindo aos galões
para o lado dos montes, e ganindo como um desesperado. Um momento mais – e
vemo-lo sacudir os braços no ar, e de novo desaparecer, no mato baixo,
com um baque tremendo. Corremos para ele e percebemos o caso estranho: tínhamos
ido cair no meio de um rebanho de zebras adormecidas; John estatelara-se exatamente
sobre as costas de uma enorme; e o bicho, pulando espavorido, balara com o
nosso amigo nas ancas. Felizmente não se magoara no tombo final; fomos
dar com ele sentado na areia, de monóculo firmemente cravado no olho,
aturdido, indignado – mas intacto de pele e de osso.
Depois disto marchamos sossegadamente até perto das duas horas da
noite. Fizemos então uma paragem, bebemos uns goles de água
(não muitos, nem largos, porque a água passava a ser preciosa),
e ao fim de trinta minutos de descanso recomeçamos a caminhar para
diante, para diante sempre, até que o nascente se tingiu de laivos
de rosa. Vimos as estrelas desmaiar, vivas barras alaranjadas alongarem-se
ao rés do horizonte, a lua declinar mais lívida que um círio,
longos raios de luz varar
e colorir de fogos os nevoeiros, todo o deserto cobrir-se de uma trêmula
refração de ouro – e ser dia! Não paramos, apesar de
já cansados – pela certeza de que bem cedo o sol, nado e alto, nos
impediria de dar um passo único, sob o seu tórrido esplendor.
Com efeito, às seis horas já ardia! Por felicidade avistamos
então na planície um montão de rochas. Para lá
nos arrastamos, exaustos. E por felicidade maior, uma enorme lasca de pedra,
pousada sobre grossos blocos, fazia como um telheiro, cuja sombra caía
sobre um pedaço de areia fina. Abrigo providencial! Ali nos aninhamos;
e, depois de beber alguns goles de água bem contados e de comer uma
lasca de biltong, adormecemos deliciosamente.
Às três horas acordamos. Os carregadores, que tinham trazido
as cabaças, já se preparavam para voltar à sua arroga.
De sorte que absorvemos uma farta tarraçada de água, enchemos
de novo os cantis, e distribuímos pelos homens as facas de mato prometidas.
Daí a instantes vimo-los (não sem uma vaga melancolia) voltar
costas ao deserto e romper a marcha para o lado da sua aldeia, para o lado
da frescura e da água! Às quatro e meia metemos de novo a caminho.
A cada passo, tudo de redor se parecia alargar em silêncio e desolação.
Ao princípio ainda avistávamos, aqui e além, entre o
mato, um avestruz. Depois, nem mesmo reptis topávamos na planície
arenosa. A nossa única companhia era a mosca, a mosca ordinária
e caseira… Digno e venerável animal! Em qualquer lugar em que o homem
penetre, deserto, montanha, caverna – a mosca lá está. Foi este
decerto o primeiro dos seres vivos que surgiu sobre a terra. Já havia
moscas para pousar no nariz de Adão. O derradeiro homem há de
morrer com uma mosca a zumbir-lhe em torno à face. E talvez haja moscas
no Paraíso.
Ao sol posto paramos, esperando que nascesse a lua. Mais bela e serena que
nunca surgiu ela às dez horas – e toda a noite, sob o seu calmo e pensativo
brilho, na mudez da vastidão, caminhamos, caminhamos… O sol nado
pôs um termo à valente marcha. Sorvemos por conta uns goles de
água dos cantis, atiramo-nos para cima da areia, e ali nos tomou o
sono a todos quatro simultaneamente. Não havia necessidade que um velasse.
Nada tínhamos a recear, nem de homem nem de fera, naquela imensidade
despovoada. Desta vez, porém, nenhuma rocha nos abrigava – e às
sete horas acordamos sob o sol faiscante, com a sensação que
deve experimentar um bife de lombo, achatado sobre a grelha. Estávamos
sendo fritos! O sol por cima, a areia por baixo, secavam-nos o sangue nas
veias. Todos nos erguemos, de salto, quase sem respiração.
– Santo Deus! – murmurou o barão, sacudindo os enxames de moscas.
– Pode-se chamar a isto calor! – gemeu do lado o capitão, que arquejava.
Podia-se chamar, na verdade. E eram apenas sete horas! Em toda a vasta extensão
nem um abrigo! Só mato rasteiro – e por cima uma vibração
radiante, tão viva e intensa, que víamos tremer o ar.
– Que se há de fazer? – exclamou o barão. – É impossível
agüentar isto! Olhamos uns para os outros, estupidamente.
– Se abríssemos uma cova? – lembrou John. – Podíamos
meter-nos dentro e cobrir-nos com tojo…É uma idéia. Não
brilhante! Mas era a única; de modo que, já
com a enxó, já com as mãos, passamos a abrir uma cova
do tamanho aproximado de uma larga cama. Cortamos uma porção
de mato; e ali nos sepultamos, colados como sardinhas numa caixa todos quatro,
o barão, John; eu e Umbopa, – porque Venvogel, como hotentote, não
sentia os ardores do sol. Foi ele que nos cobriu de mato. Realmente, assim,
estávamos ao abrigo dos raios perpendiculares do sol; mas que pavorosa
ardência a daquela fossa, em que cada torrão, junto do corpo,
era como uma brasa viva! Não compreendo como nos desenterramos vivos.
Dormir, impossível! Jazíamos estendidos, hirtos, sem ter já
que suar, quase curtidos, arquejando ansiosamente. Só possuíamos
o consolo de umedecer, de vez em quando, os beiços com uma gota de
água muito medida! Esta avara medição da água
era o tormento maior. A cada instante necessitávamos recalcar a furiosa
tentação de sorver de um só trago os quatro cantis. Mas
quê! Se a água faltasse – breve viria a morte! Tudo tem um fim
neste mundo, diz a sabedoria oriental, contanto que se possa esperar. Esperamos;
a horrível, interminável manhã passou; e pelas três
horas preferimos encontrar a morte, andando (se a morte tinha de vir) a ser
por ela lentamente envolvidos naquele infame buraco.
Reconfortamo-nos com um curto sorvo à nossa água, – que diminuía
terrivelmente, e subira já à temperatura do sangue. E com um
esforço rompemos de novo através da planície flamejante.
Tínhamos transposto umas dezessete léguas de ermo. Ora, no
roteiro do velho D. José da Silveira, a total extensão do deserto
estava fixada em quarenta léguas; e a famosa poça de água
salobra vinha marcada a meio do deserto. A esse tempo, portanto, devíamos
estar a umas três léguas da água – se a água existia!
Em toda a tarde, porém, fizemos pouco mais de uma milha por hora. Ao
pôr do sol paramos à espera da lua. Deixei-me cair para o chão,
como um morto; cerrei os olhos. Mas daí a um instante Umbopa fez-me
erguer e notar, à distancia de oito ou nove milhas, uma espécie
de outeiro redondo e liso que se erguia, abruptamente, na planície
rasa.
Não parecia uma elevação natural de terreno, na sua
semelhança estranha com uma metade de laranja. Quando me tornei a deitar
adormeci logo, murmurando: “Que será?…” Ao romper da
lua de novo partimos, já alquebrados de cansaço e de sede. O
andar franco e firme acabara para nós. Era agora um arrastar de passos
quase cambaleantes, com paragens bruscas de meia em meia hora, em que caíamos
para cima da areia, sem força, de coração desmaiado.
Nem ânimo nos restava para conversar. Até aí ainda gracejávamos,
heroicamente. John sobretudo – jovial camarada! Mas agora! Nem voz tínhamos
para gemer! Finalmente, perto das duas horas, vencidos de corpo e de alma,
chegamos ao pé do cômoro estranho. Era uma espécie de
duna de areia, escura, lisa, atarracada, da altura de uns trinta metros, e
cobrindo na base duas leiras de terreno. Paramos. E desesperados com a sede,
sorvemos o resto da água. Tínhamos meio quartilho por boca!
Podíamos ter emborcado um almude! Cada um em silêncio se estendeu
para dormir. Eu fechava os olhos, resvalava já docemente no esquecimento
e no sonho, quando ouvi Umbopa ao meu lado murmurar para si próprio
em zulu: – O que é a vida! Se amanhã não achamos água,
a lua, ao nascer, encontra aqui quatro mortos… Vida, sombra que passa! Vida,
murmúrio que finda!
Apesar do calor senti um arrepio. Pois tanta era a fadiga, que confortado
por esta probabilidade (uma agonia de sede num deserto de areia!), adormeci
profundamente.
Eram quatro da manhã quando acordei. E, bruscamente, entrou comigo
a tortura da sede.
Estivera todo o tempo sonhando que passeava à beira de um regato
de água, muito puro e muito frio, bordado de relvas e de grandes árvores
de frutas… Quando me ergui, esfreguei a face com ambas as mãos; mãos
e face pareceram-me mais secas e duras do que couro; e as pálpebras
e os beiços estavam tão pegados, tão colados, que tive
de os descerrar à força com os dedos, como se os unisse uma
cola forte. A madrugada ainda vinha longe; mas não reinava no ar a
natural frescura matutina, antes uma espessura mole e morna intoleravelmente
pesada. Os outros dormiam… Fiquei calado, olhando em redor a desolada solidão.
E pouco a pouco comecei a sentir de novo, junto de mim, o murmúrio
fresco do regato que corria, o ramalhar da verdura, pios de aves, e toda uma
sensação de paz, de sombra, de abundância, que me fazia
sorrir sozinho num imenso contentamento… Ao mesmo tempo tinha a certeza
do deserto e da aridez que me envolvia. Creio na verdade que delirei! Voltei
a mim, quando os outros em redor se começaram a mexer, erguendo-se
devagar sobre o cotovelo, esfregando como eu as faces ressequidas, separando
à força, como eu, os lábios sem saliva e mirrados. Já
rompia a claridade. Apenas acordados todos, e conscientes, começamos
a falar da nossa situação – que era sombriamente desesperada.
Não nos restava uma gota de água! Voltamos os cantis para baixo,
chupamos-lhes os gargalos. Mais secos que ossos! O Capitão John, que
guardara a garrafa de conhaque, sacou-a da mochila, consultou-nos com um sedento
olhar. – Mas o barão arrancou-lha das mãos. Beber álcool,
naquele estado?… Era a morte.
– Mortos estamos nós – murmurou o capitão encolhendo os ombros
– se daqui à noite não achamos água! – Se o roteiro do
português estivesse exato – disse eu suspirando – a poça de água
devia aparecer por aqui algures… Foi nesta altura exatamente que ele a achou…Os
outros nem responderam. Realmente, nenhum de nós tinha já confiança
no roteiro do velho fidalgo. Mesmo que a poça existisse – como encontrar
nessa imensidão o sítio exato e preciso onde ela estaria, mais
pequena e perdida do que uma moeda de prata numa praia de areia? Só
por um “bambúrrio”! Ou só se ela jazesse junto de
acidente do terreno, que pela sua especial saliência, na vasta planície,
inevitavelmente atraísse os olhares e os passos.
A claridade ia crescendo; e quando assim estávamos, lançando
conjeturas, nesta terrível ansiedade – reparei que o nosso hotentote
Venvogel andava a distância, com os olhos no chão, lentamente,
como quem procura um rasto… De repente parou, soltou um grito, com o braço
espetado para a terra. – Que é? – exclamamos todos.
E corremos alvoroçadamente.
– Pegadas de corço! – bradou ele em triunfo, apontando para o chão.
– E então? – Corços nunca andam longe da água!
– É verdade! – gritei eu. – E louvado por isso seja Deus! Foi como
se renascêssemos à vida. Não era ainda a água –
mas a esperança dela, para breve! E numa crise aflitiva como a nossa,
uma esperança, por mais vaga e tênue, vale sobretudo pela coragem
de que enche logo a alma. Venvogel, no entanto, começara a andar em
redor, com o nariz erguido (o seu largo nariz mais chato que o de um bull-dog),
sorvendo o ar quente, farejando.
– Cheiro água! – dizia ele – cheiro água! E nós todos
atrás dele, farejando também, quase já víamos
a água – sabendo bem que estes hotentotes, como todos os selvagens,
possuem um faro maravilhoso. Mas nesse instante, os grandes raios do sol que
nascia, bateram-nos o rosto. E olhando, descobrimos uma tão grandiosa
paisagem, que por um momento esquecemos a água e os tormentos da sede!
Diante de nós, a umas dez ou doze léguas, rebrilhando como prata
nos primeiros raios do dia, erguiam-se os dois enormes montes que o português
chamara os “Seios de Sabá”; e de cada lado deles, estendendo-se
sem fim, durante centenas de milhas, a vasta cordilheira de Suliman! Não
é possível transmitir, no verbo humano, a incomparável
grandeza e beleza daquele quadro de montanha! Ali estavam as duas enormes
serras que não têm iguais na África, nem creio que no
resto do mundo, medindo pelo menos mais de quinze mil pés de altura,
emergindo da cordilheira infinita – brancas, mudas, de portentosa solenidade,
enchendo o céu até acima das nuvens. E o que esmagava a alma,
era a assombrosa estrutura. A cordilheira estendia-se como um muro disforme
de granito, da altura de mil pés; as duas serras formavam como os dois
torreões de uma porta, perdidos nas profundidades; a parte da serra
que separava os dois montes, sendo talhada a pique, lisa e rigorosamente horizontal
no alto, reproduzia a configuração de uma porta prodigiosa;
e o aspecto todo era como o de uma muralha cercando uma cidade fabulosa de
sonho ou de lenda! Bem justamente chamara o velho fidalgo português
aos dois montes “Seios de Sabá”! Tinham, com efeito, a
forma perfeita de dois peitos de mulher; as suas vastas faldas iam subindo
da planície, numa curva doce e túmida, parecendo àquela
distância formosamente redondas e lisas; e no cimo de cada uma, um imenso
outeiro sobreposto, todo coberto de neve, semelhava exatissimamente a ponta,
o bico de um peito. Prodigiosa estrutura! Se a Terra, como pretendia a antiga
mitologia, é uma mulher, a enorme Cibele – aí estavam decerto
os seus peitos ubérrimos! Mas à minha imaginação
(nunca muito inventiva, mas perturbada e excitada nesse momento pela fraqueza),
aquilo tudo se afigurava uma muralha estupenda, cercando e defendendo uma
região de infinito mistério; e a cada instante me parecia que
a porta de granito ia rolar, abrir-se com fragor, e desvendar algum segredo
secular – o segredo talvez da terra da África! E o mais extraordinário
foi que, enquanto assim contemplávamos assombrados, começaram
a subir, a aglomerar-se em torno aos dois montes, lentas e estranhas névoas
e nuvens, como para esconder aos nossos olhos mortais a majestade daquele
ádito, que uma vontade divina nos deixara por um momento entrever.
Daí a pouco os “Seios de Sabá” estavam envolvidos
de todo, resguardados sob o místico véu – através do
qual só podíamos distinguir agora as suas linhas, formidavelmente
espectrais!… Depois, mais tarde, descobrimos que esses montes, em tudo singulares,
estavam ordinariamente velados por esta curiosa névoa, como por uma
cortina de sacrário. Só a certas horas, ao
romper do sol, a cortina se descerrava, como numa celebração,
desvendando aos homens a maravilha sem-par.
Passada a violenta surpresa, de novo nos consideramos, com a mesma ansiosa
interrogação – “que fazer?” Venvogel insistia, convencido,
que lhe cheirava a água; mas debalde buscávamos, trilhávamos
o terreno em redor, esquadrinhávamos através do mato. Nada!
Só a areia ondulando, com manchas de matagal. Demos a volta toda ao
singular outeiro, onde paráramos de noite. Avançamos para os
lados, em todas as direções do vento, com atentos e lentos passos,
e olhos sôfregos que furavam a terra. Nada! Nenhum vestígio de
uma nascente, de uma poça, de um charco. Só areia, árido
tojo.
– Idiota! – gritei eu desesperado com o hotentote. – Não há;
nunca houve aqui água! Naquela áspera, árida imensidade
não parecia, com efeito, haver possibilidade, nem sequer verossimilhança
de água… E quanto tempo de resto poderia durar ali uma “poça
salobra”, como a que encontrara o velho fidalgo, sem ser chupada pelo
sol ardente ou atulhada pelas areias movediças? No entanto Venvogel,
o hotentote, continuava a farejar, com as ventas erguidas e abertas: – Eu
sinto o cheiro de água, patrão. Sinto-a no ar! – No ar não
duvido. Há água que farte nas nuvens! Também não
duvido que venha a cair. Mas há de ser para nos lavar os esqueletos!
O barão, no entanto, cofiava a barba pensativamente: – E todavia –
murmurava ele – por aqui a encontrou o velho português! O sítio
é este. Foi aqui, em volta. A meio caminho exato, na linha direita
de norte a sul, da arroga de Sitanda às serras. É aqui. Aqui
esteve água! Sim, mas há trezentos anos! Em três séculos
muita água brota e seca! Quem nos afiançava de resto a exatidão
do português, esvaído de fome, meio delirado, no começo
da sua agonia! Já não era pequena estranheza que ele a tivesse
encontrado nesta deserta imensidade, justamente quando dela lhe dependia a
vida!… A não ser que para ela fosse atraído insensivelmente
e naturalmente por algum acidente de terreno, muito saliente e muito visível
de longe – como um bosque, uma colina… Uma colina! E quando eu assim pensava,
eis que o barão grita, como ecoando o meu pensamento: – No alto da
colina! Talvez a água esteja no alto da colina! – Tolice! – acudiu
o capitão encolhendo os ombros. – Água no topo de uma colina!
Onde se viu isso? – Procuremos! – disse eu, com um bater de coração
que era todo de esperança.
Trepamos ansiosamente pelo outeiro. Umbopa corria adiante. De repente estaca,
com os braços no ar: – Nanzie manzie! (água aqui!) Pulamos para
junto dele; e com efeito, mesmo no topo da colina, numa cova redonda como
uma taça, lá estava água, água escura, água
lôbrega – mas água! Água! Água!
Gritávamos de puro gozo. E num momento, estirados de barriga no chão,
com as faces na poça, sorvíamos deliciosamente, a grandes e
rápidos sorvos, aquele líquido desapetitoso, que tão
bem imitava água. Céus! O que bebemos! E mal findamos de beber,
arrancamos o fato, saltamos para o charco, e, sentados nele, ficamos horas
a embeber-nos de frescura através da pele – da nossa pobre pele mais
dura e mais seca que um pergaminho secular. Quando nos erguemos, refrigerados
e saciados, caímos sobre a carne-seca. Comemos a fartar. Uma longa
cachimbada por cima completou aquela hora de consolação. E o
sono que nos tomou até ao meio-dia, deitados junto da poça e
da sua umidade, foi profundo e bendito! Todo aquele dia tardamos junto da
água bebendo dela, mergulhando nela, olhando para ela – e dando louvores
sem conta ao velho fidalgo, que tão exatamente a marcara no mapa. Por
fim, tendo enchido de água os estômagos e os cantis, continuamos
a marcha, mais animados e ágeis, ao erguer da lua cheia. Fizemos vinte
e cinco milhas nessa noite. Não tornamos a encontrar água. Mas
seguíamos confiados, com a certeza de a achar, abundante e fresca,
nas faldas das serras. Quando o sol se ergueu e desfez as névoas, avistamos
de novo a cordilheira e os dois “Seios de Sabá” (agora
afastados de nós apenas vinte milhas), tomando o céu com a sua
majestade sublime. Essas vinte milhas cobrimo-las durante a noite. E ao outro
alvorecer pisamos enfim as primeiras ladeiras do seio esquerdo de Sabá!
Com amargo espanto não encontramos água, e a nossa já
ia findando! Não havia agora esperança de topar nascentes antes
de chegarmos à linha de neve, que branquejava lá longe, no alto
da serra; e já a sede nos começava outra vez a torturar. Desconsoladamente,
fomos arrastando os passos por sobre o tórrido chão de lava
que formava a base do monte. Caminhada atroz! Pelas onze horas da manhã,
apesar de curtos repousos, estávamos exaustos – por causa sobretudo
dos ladrilhos de lava, ásperos e rugosos, que nos magoavam horrivelmente
os pés. De sorte que, descobrindo a umas trezentas jardas acima, grossos
pedregulhos de lava, decidimos descansar umas fartas horas à sua sombra
providencial. Para lá nos empurramos; por lá nos abrigamos.
E não foi pequena surpresa (se ainda nos restava a faculdade de experimentar
surpresas!) avistar a pequena distância, num planalto formando terraço
sobre um barranco, uma extensa e fresca tira de verduras. Evidentemente a
lava, decompondo-se, formara ali um chão de terra, onde as sementes
trazidas por pássaros tinham alastrado e verdejado… Demos, porém,
pouca atenção a essas ervagens, porque não havia lá
nem fruto nem água – e de relva só Nabucodonosor se conseguiu
alimentar. Ali ficamos, pois, estirados à sombra dos pedregulhos, sem
força no corpo e sem esperança na alma, pensando que nunca homens
de senso se tinham arriscado a mais estéril, mais absurda aventura!
Umbopa, no entanto, depois de considerar algum tempo em silêncio a leira
de verduras, caminhara para lá lentamente. E qual não é
o meu assombro ao ver aquele indivíduo, ordinariamente tão composto
e grave, romper em pulos frenéticos, brandindo na mão o quer
que fosse de verde! Arremetemos para ele, na esperança ansiosa de água
descoberta.
– É água Umbopa? – gritava eu pulando por sobre a lava.
– Água e sustento, Macumazã! – exclamava ele agitando no ar
a cousa verde, com efusivo triunfo.
Percebi enfim o que era. Era um melão! Tínhamos dado num meloal,
um enorme meloal bravo, com milhares de melões, a cair de maduros!
– Melões! – uivei eu para os companheiros que corriam atrás.
– Melões! Melões! – foi o berro vitorioso que ressoou nas
quebradas.
Num momento, cada um de nós tinha os dentes cravados num melão,
sofregamente. Comemos ali, entre todos, uns trinta melões; e apesar
de medíocres, creio que nunca nada na vida me soube tão deliciosamente.
Mas o melão não alimenta – e refrescada a sede não
tardou a fome, mais intensa e aguda. Conservávamos ainda o biltong,
a carne-seca; mas já nos enjoava atrozmente; e além disso devíamos
poupá-la com avaro cuidado, pela incerteza de encontrar outras provisões
na longa ascensão da serra.
Nesse dia, porém, estávamos “em sorte, decididamente”,
como disse John. Lançando os olhos para o deserto, enquanto conversávamos
sobre esta terrível evidência, a fome – vi de repente uns oito
ou dez grandes pássaros voando em direção a nós,
lentamente.
– Atire, patrão, atire! – exclamou baixo o nosso servo hotentote,
acaçapando-se imediatamente no chão.
Os outros agacharam-se também, para que, confundidos com a cor da
lava, não fôssemos avistados pelos pássaros. Era um bando
de enormes betardas, que, no seu vôo direito e alto, deviam passar a
umas cinqüenta jardas por cima das nossas cabeças. Tomei uma carabina
Winchester, e esperei acocorado. Quando o bando vinha perto, ergui-me, com
um grito e um salto. Assustados, os pássaros juntaram-se todos precipitadamente
em montão; e atirando à massa escura, pude facilmente abater
um soberbo bicho, que pesava pelo menos vinte arráteis. Dentro de meia
hora ardia uma fogueira de talos secos de melão; e o bicho alourava
em cima. Foi um banquete! Comemos aquela betarda toda, fora carcaça
e bico!
Nessa noite continuamos a ascensão do monte, à luz da lua,
carregados de melões para a sede. À maneira que subíamos,
o ar esfriava consoladoramente. Ao clarear do dia estávamos a umas
doze milhas da linha de neve. Encontramos mais melões; e a água
enfim, louvado Deus, já não nos inquietava, porque bem cedo
penetraríamos nas regiões do gelo. No entanto, era imenso o
nosso pasmo de não encontrar nascentes, quedas de água, um riacho
corrente; porque decerto no verão as neves, derretendo, deviam encher
de água aquelas encostas. Por onde corria a água, pois? Para
onde se sumia a água? Só mais tarde descobrimos que por uma
causa ainda hoje para mim incompreensível, toda a água, em riacho
ou em queda, descia pela vertente norte da serra. A subida cada vez se tornava
mais áspera e custosa. Apenas fazíamos uma milha por hora. A
carne-seca acabara. Melões, nenhuns mais encontramos. O frio aumentava
quase a cada passada, o que nos permitia certamente caminhar de dia, mas nos
regelava de noite, terrivelmente! Havia agora muitas horas que não
comíamos. A serra subia, subia diante de nós, cada vez mais
desolada, mais nua de verdura ou vida. Os nossos momentos de repouso passavam
num silêncio sombrio e cheio de desesperança. Eu, por mim, ia
já tão debilitado e confuso, que, desses três dias que
nos levou a ascensão da serra, não me recordo com bastante nitidez
– e só poderia reconstruí-los pelos apontamentos do meu Diário.
Na nota, com data de 22 de maio, encontro isto: – “Partimos ao nascer
do sol. Vamos meio
desmaiados de fraqueza. Só quatro milhas andadas. Comemos os pedaços
de neve que começamos a encontrar. Frio intenso. Cada um de nós
bebe uma gota de conhaque. Para dormir, amontoamo-nos uns sobre os outros;
nem assim conservamos calor. Estamos verdadeiramente sofrendo de fome. Julguei
que Venvogel, o nosso hotentote, ia morrer esta noite”. – Tudo isto
é já terrível. Mas o seguinte apontamento, datado de
23 de maio, recorda sofrimentos mais vivos. – “Estamos numa situação
medonha. A não ser que encontremos que comer hoje, o nosso fim está
próximo. O conhaque acabou. Venvogel que, como todos os hotentotes,
não pode agüentar frio, parece perdido. As ânsias agudas
da fome passaram. O que eu sinto (e os outros dizem que sentem o mesmo) é
uma espécie de adormecimento, de torpor no estômago. Estamos
ao nível da grande escarpa, que eu chamo a porta, o colossal muro de
terra, lava e rocha, que liga os dois seios de Sabá. Para trás
de nós estende-se o deserto que atravessamos… Para que o atravessamos
nós?” Logo abaixo destas linhas há outra, escrita decerto
num dos momentos em que parávamos: – “Deus se amerceie de nós,
que chegou o nosso fim!”.
Esta linha não tem data, mas sem dúvida foi traçada
no dia 24. Depois, os apontamentos falham; mas eu muito bem me recordo dos
sucessos nesse estranho dia. Íamos então caminhando através
da neve, com paragens incessantes, impostas pela incomparável fadiga.
Tudo em redor era radiantemente, indescritivelmente branco. E esta absoluta
brancura, sob o absoluto silêncio, tornava-se tanto mais desoladora,
quanto evidenciava a ausência de vida – e a impossibilidade de achar
que comer, fosse animal ou planta. Quase ao pôr do sol chegamos junto
da “ponta do seio”, dessa enorme colina de neve dura, que, pousada
no topo da montanha (da montanha que reproduzia a forma perfeita de um seio),
parecia ela própria o bico desse peito descomunal. Apesar de exaustos,
prendemo-nos um instante na admiração daquele esplêndido
cume de monte – mais esplêndido ainda pela luz vermelha e cor-de-rosa
em que os raios do sol poente o envolviam, dando-lhe um tom de carne, de uma
carne sobrenatural que de si irradiasse luz. Mas a admiração
não podia durar em homens colocados, como nós, a tão
extrema vizinhança da morte. O nosso mal era sobretudo o frio. Bem
comidos, estimulados por um vinho generoso, ainda poderíamos agüentar
a pavorosa temperatura daquelas neves eternas. Mas assim, moribundos de fome,
– como resistir à noite que vinha caindo? Quando o sol nos faltasse,
como viveríamos, a menos de encontrar um abrigo? Abrigo!… Onde estava
ele, nessa branca e lisa vastidão de neve? – A cova de que fala o português,
no papel, deve ser por aqui – murmurou o Capitão John.
Pobre John! Tinha os olhos (como os outros, como eu decerto) encovados,
esgazeados, rebrilhantes de febre, sobre a lividez da face hirsuta. Considerei
um momento o pobre amigo, encolhendo os ombros: – Cova! Se tal cova existe…
Na cova estamos nós, ou à beira dela.
O barão, porém, agora acreditava firmemente na escrupulosa
exatidão do velho D. José da Silveira. “Se ele a achou
(argumentava o barão, e com razão) é que essa cova está
situada de tal sorte, tão saliente e tão visível, que
não pode deixar de atrair os olhos, e logo os passos de quem for trepando
a serra”.
– Ainda a encontramos, e antes do sol posto! – afirmou ele, com um grande
gesto de esperança.
– Se a não encontramos (foi a minha consoladora réplica) e
a noite vier sobre nós, assim desabrigados, é o fim da nossa
aventura. Em todo o caso, real ou metaforicamente, é a cova! Durante
dez ou doze minutos arrastamos os passos num silêncio mortal. Umbopa
ia adiante, com os ombros abafados na manta curta, e um cinto de couro muito
apertado, arrochado em volta da cinta “para encolher a fome”.
Eu seguia atrás, quase vergado em dois. De repente tropecei nele, que
parara, e que me agarrou pelo braço: – Macumazã, acolá!
– exclamou surdamente, apontando com o cajado.
O que ele apontava era a linha abrupta onde começava, subindo, a
primeira encosta do “bico do peito”. E aí, na brancura
da neve, destacava uma mancha preta.
– É a caverna! – exclamou Umbopa.
Talvez fosse! Parecia, com efeito, a abertura negra de um buraco. Para lá
endireitamos os passos. E na realidade encontramos uma gruta, de entrada baixa
e lôbrega, que bem podia ser a que o velho D. José da Silveira
marcara no seu roteiro. Em todo o caso ali estava um abrigo. E bendito era
o seu encontro – porque (como sucede nestas latitudes) o sol sumiu-se subitamente,
e logo atrás dele, de golpe, sem crepúsculo, sem gradação,
a noite caiu, gelada e negra. Enfiamos bem depressa para dentro da caverna,
como animais acossados: Aconchegamo-nos uns contra os outros, sentados no
chão, costas com costas. E ali ficamos na treva, mudos, tiritando e
procurando esquecer no sono a nossa extrema miséria. Mas o frio, intenso
demais, não nos consentia dormir. Estou convencido que, naquela altura,
o termômetro marcaria regularmente quatorze ou quinze graus abaixo de
zero! E era esta temperatura que tínhamos de afrontar, de todo alquebrados
de fadiga, meio inanimados de fome! Pois ali estivemos em montão, encolhidos
uns nos outros, durante a infindável noite, sentindo a cada instante,
através do corpo, começos de congelação ora num
pé, ora nos dedos, ora na orelha. Debalde nos apertávamos! Para
quê! Nenhum tinha em si calor bastante para comunicar à carcaça
alheia. Às vezes um conseguia dormitar durante momento, mas para acordar
logo em sobressalto, recomeçar a tremer. De resto, naquelas condições,
o sono que se prolongasse – decerto se tornaria eterno. Foi uma noite angustiosa!
Eu, por mim, creio que me conservei vivo por um violentíssimo e teimosíssimo
esforço da vontade.
Um pouco antes da madrugada, Venvogel, o nosso pobre hotentote, cujos dentes
toda a noite tinham batido como castanholas, chamou baixo por mim, deu um
pequeno suspiro, e ficou profundamente sossegado, como se tivesse adormecido.
As costas dele pousavam contra as minhas costas. Pareceu-me que as sentia
pouco a pouco arrefecer. Por fim tornaram-se, positivamente, como uma grande
pedra de gelo que me regelava. Duas vezes as repeli. Duas vezes a pedra se
abateu sobre mim, mais fria. O ar, no entanto, clareava. A entrada da cova
foi aparecendo como uma névoa luminosa, feita da refração
do sol sobre a neve. Uma luz mais viva e fixa estendeu para dentro a sua brancura
– e olhando então para trás, descobri que o pobre hotentote
estava morto! Decerto morrera quando o ouvi suspirar. Pobre Venvogel! Não
admirava que lhe tivesse sentido as costas cada vez mais frias, mais frias…
A sua miséria findara. Ali estava agora, na mesma postura, com as mãos
apertadas em torno
dos joelhos, a cabeça caída para baixo, gelado. Todos nos erguemos
de salto, com horror. Já a esse tempo o dia penetrara na caverna, numa
luz mortiça e vaga. – De repente, ao meu lado, ressoou um grito. Volto
a cabeça, vivamente. E vejo – vejo ao fundo da gruta, que não
tinha mais de quatro metros, uma forma, uma figura humana, sentada numa pedra,
com a cabeça toda descaída sobre o peito, os braços hirtos
e pendentes para o chão! Aproximei-me mais, aterrado. E percebi que
era também um morto. Pior ainda, percebi que era um branco! Os nossos
nervos, desorganizados já, não puderam com esta nova e brusca
emoção. Tropeçando uns nos outros, largamos desesperadamente
a fugir para fora da caverna.
Mas depois, fora, na plena luz, olhamos uns para os outros – envergonhados.
– Vou ver outra vez – exclamou o barão terrivelmente pálido.
– Talvez a figura que vimos seja de meu irmão.
Era possível. E um por um, num silêncio apavorado, atrás
do barão, tornamos a penetrar na gruta. Ao princípio, deslumbrados
pela grande luz exterior e pela alvura da neve, nada distinguíamos
na penumbra côncava. Por fim a estranha, horrível figura destacou,
surgiu na sombra. Avançamos para ela. O barão ajoelhou, espreitou
a face morta, teve um suspiro de alivio: – Não, graças a Deus,
não é ele! Fui também olhar. Não, nem remotamente
se parecia com esse sujeito chamado Neville, que eu encontrara em Bamanguato.
O cadáver era o de um homem alto, de meia idade, com feições
aquilinas, cabelo já grisalho, e longos bigodes negros. A pele, perfeitamente
amarela, estava toda esticada sobre os ossos. Não tinha fato, a não
ser uns restos de meias altas, de lã, até aos joelhos. Do pescoço,
preso por uma correntezinha, pendia-lhe um crucifixo de marfim. Todos os membros
hirtos se lhe tinham petrificado.
– Quem poderá ser? – murmurei, assombrado.
O Capitão John contemplava a figura, pensativamente.
– Tenho uma idéia… Não pode ser senão ele! É
o velho fidalgo! É D. José da Silveira! Eu e o barão
soltamos o mesmo grito de incredulidade: – Impossível! Há trezentos
anos! Mas o capitão tinha as suas razões, e decisivas. Numa
temperatura como a da cova, que é a de uma geleira, um corpo morto
pode perfeitamente conservar-se trezentos anos – e mesmo três mil…
Essa temperatura, de quinze a dezessete graus abaixo de zero, nunca ali mudava;
nenhum raio de sol entrara jamais naquela cova voltada para noroeste; não
havia animais que ali penetrassem e que destruíssem o corpo. Que importavam
três séculos? A carne de açougue, que vem da Nova-Zelândia
para Londres dentro das geleiras artificiais, está fresca ao fim de
trinta dias; e conservada em iguais condições, não se
deterioraria ao fim de trinta séculos.
Naturalmente o escravo (de quem ele fala no papel), quando o encontrou morto,
tirou-lhe o fato, não se deu ao trabalho de o enterrar, e abalou…
– E olhai! – acrescentou o capitão apanhando uma espécie de
osso da forma de um lápis, e aguçado, que jazia no chão,
ao lado. – Aqui está com que ele desenhou o mapa! Tirou sangue do braço,
escreveu com esta ponta de osso! Passamos o osso de
mão em mão, em silêncio, esquecendo as nossas próprias
misérias no espanto daquele encontro. Já não podia haver
dúvida. Ali estava ele, pois, sentado numa pedra, frio e duro como
ela, o homem cujo derradeiro escrito, traçado havia mais de trezentos
anos, nos trouxera ao lugar mesmo onde ele o escrevera – para o encontrar
a ele próprio, na mesma atitude em que, com seu sangue, riscava o roteiro
que além-túmulo nos guiava! Incomparável maravilha! Ali
tinha eu na mão a rude pena com que ele traçara essas linhas!
E parecia que ante mim, pouco a pouco, ressurgiam visíveis, redivivos,
os momentos passados há três séculos: o heróico
fidalgo, morto de frio e de fome, procurando revelar ao seu rei o segredo
imenso que descobrira; a camisa rasgada, a veia aberta; as linhas trêmulas
ansiosamente lançadas; a pena informe, escorregando-lhe da mão;
a treva da noite enchendo a cova; o derradeiro beijo pousado no crucifixo;
um pensamento dado ainda aos seus, à terra de onde partira num galeão,
ao rei que servia com indomada fé; por fim a morte, o lento e sereno
resvalar para a morte, naquele imenso silêncio e na imensa solidão!
Por vezes mesmo, olhando para ele, parecia-me reconhecer as aquilinas e enérgicas
feições do seu descendente, o pobre Silveira, que me morrera
nos braços. Talvez a imaginação. Em todo o caso ele ali
estava, o primeiro, o antepassado, esse de quem o seu remoto neto me falara,
estendendo os olhos já embaciados para os distantes seios de Sabá.
Ali estava; e provavelmente lá está ainda, lá estará,
através dos séculos que hão de vir, para espantar outros
aventurosos homens como nós, se jamais houver outros que cheguem a
penetrar na sua espantosa e solitária tumba! – Vamos embora! – exclamou
o barão, muito pálido. Mas parou. E apontando para o corpo de
Venvogel, que ficara na mesma postura, com os joelhos à boca, os braços
apertados em volta dos joelhos: – Demos uma companhia ao pobre morto, para
dormir neste esquecimento.
Erguemos então o cadáver de Venvogel e colocamo-lo sentado
na pedra, junto do velho fidalgo português. Depois o barão quebrou
a corrente que pendia do pescoço de D. José da Silveira, e guardou
o crucifixo no seio. Eu próprio tomei o osso em forma de lápis.
Aqui o tenho ao meu lado, enquanto estas linhas escrevo. Às vezes assino
com ele o meu nome. Finalmente, tendo-os deixado lado a lado, o altivo fidalgo
de outras eras e o pobre servo hotentote, a passar a sua eterna vigília
entre essas eternas neves, saímos da caverna para a luz – esplêndida
– e retomamos em fila o nosso triste caminho, pensando que bem cedo estaríamos
como eles, gelados e hirtos, num barranco da serra.
Andada uma milha, que nos levou muito tempo, chegamos enfim à extremidade
do planalto do monte, sobre o qual assentava o “bico do peito”.
E foi uma grande emoção. Por baixo de nós, adiante de
nós, estava (devia estar) enfim essa região misteriosa para
além das serras, que nós vínhamos demandando; mas toda
ela se ocultava sob um denso nevoeiro. Ali ficamos pois repousando, esperando.
Pouco a pouco, as camadas mais altas da névoa foram-se desfazendo.
Avistamos então um pendor da serra, muito doce e todo coberto de neve.
Depois outras camadas de nevoeiro mais abaixo clarearam; e apareceu aos nossos
olhos famintos uma campina de erva verde, um regato correndo através,
e à beira da água, deitados ou pastando, uns dez ou doze animais
que nos pareceram antílopes.
A nossa alegria – foi como a de uma ressurreição. Caça!
Ali estava caça para comer, e deliciosa! Era a salvação,
era a vida! A dificuldade era caçar – essa caça!… Lembro-me
que, no nosso imenso alvoroço, tivemos uma rápida e atarantada
discussão, em voz baixa e trêmula – se devíamos aproximarmos
da caça ou fazer fogo dali; se devíamos usar as carabinas Winchester
ou a Express! Indecisão terrível – porque de acertar ou falhar
dependiam as nossas vidas. Fui eu por fim que me decidi. Se tentássemos
atravessar o pendor da neve, podíamos espantar o rebanho. E a carabina
Express, apesar de um alcance inferior, era preferível – porque
as balas explosivas mais facilmente apanhariam algum dos antílopes.
Enfim, fizemos fogo, todos a um tempo, com um estampido que rolou tremendamente
nas quebradas dos montes. O fumo clareou. E eis que, alegria sem-par! – vemos
um dos animais por terra esperneando furiosamente. Berramos de puro gozo.
Estávamos salvos! Salvos! De fome já não morríamos!
Corremos aos trambolhões pela neve abaixo; e em poucos momentos tínhamos
nas mãos os fígados e o coração do animal, quentes
e fumegando! Mas surgia uma dificuldade. Sem lenha, sem lume, como assar a
caça? – Gente faminta não tem exigências! – gritou excitadamente
o Capitão John. – A ela, e crua! Não restava outra solução
– e não nos pareceu repugnante. Arrefecemos as vísceras na neve,
lavamo-las na água corrente – e devoramo-las com voracidade! Parece
horrível; mas confesso que aquela carne crua me soube divinamente!
Daí a um quarto de hora, que mudança! Voltara-nos a vida, o
vigor! O pulso batia outra vez, forte e regular. Eu, por mim, sentia positivamente
o sangue degelar-se, correr-me dentro das veias! O barão apertou as
mãos, e disse simplesmente: – Louvado seja Deus por isto! Ficamos olhando
uns para os outros, muito tempo, sem fala, num sorriso mudo. E não
havia em nós outra sensação – senão a de estarmos
salvos, de estarmos vivos! Por fim adormecemos, envoltos docemente no sol,
que subia macio e tépido. Quando acordamos, e esfregamos os olhos,
o nevoeiro desaparecera. Toda a vasta região, embaixo nos apareceu
num relance. Demos um grande ah, lento e maravilhado! Nunca eu vira (nem outra
vez verei!) terra mais deslumbrante! Mudo ainda, tonto da fadiga e da fome
passada, parecia-me que morrera, que chegara ao Paraíso, e que o Senhor
nos ia aparecer! Estávamos no planalto de um dos “Seios de Sabá”,
com um dos “bicos do peito”, erguendo-se por trás de nós
até às nuvens, sublime e brilhante de neve. Logo por baixo desciam
os vastos pendores da serra, numa profundidade de cinco mil pés; e
para além das derradeiras faldas, a perder de vista, eram léguas
e léguas de uma terra esplendidamente fértil, de adorável
beleza. Vimo-la desdobrada ante nós, como um imenso mapa em relevo;
e os seus encantos diferentes, assim abrangidos num relance, davam a impressão
de um paraíso resumido, onde Deus prodigamente tivesse reunido as suas
obras melhores. Escassamente se pode detalhar uma paisagem tão formosa
e vária. Aqui alastrava-se uma vasta mancha de floresta; além
um rio ondulava com vivos brilhos de aço novo; para diante longas pradarias
tapetavam o solo de verde tenro e claro; mais longe era um lago que brilhava,
grandes rebanhos
que pastavam, ou uma colina onde a água viva borbulhava e faiscava
entre as rochas. As culturas abundavam, ricamente coloridas. A cada instante
entre pomares e regatos avistávamos aldeias graciosas, com as cabanas
coroadas por um teto de colmo agudo. De tudo se elevava uma sensação
prodigiosa de vida, de fartura, de paz. No horizonte surgiam picos de serras
remotas, cobertas de neves. E um sol radiante derramava ilimitadamente a alegria
do seu fulgor de ouro.
Duas cousas nos impressionaram. Primeiramente, que aquela região
tão rica estivesse pelo menos cinco mil pés acima do nível
do deserto. E depois que toda a água da serra corresse de sul para
norte, do lado oposto ao sertão, indo unir-se ao magnífico rio
que se perdia no horizonte azulado. Nenhum de nós falava, arroubados
na contemplação daquela incomparável natureza. Por fim
o barão estendeu o braço: – Há uma estrada marcada no
mapa, com o nome de estrada de Salomão, não é verdade?
Pois lá está, além, para a direita…
E com efeito, para a direita, nos primeiros declives da serra, abaixo dos
nossos pés, branquejava uma grande estrada! Unhamos já perdido
toda a faculdade de admirar. E a nenhum de nós pareceu estranho, que,
no topo de uma montanha, no centro da África, a centos de léguas
de toda a ciência e civilização, houve uma estrada, com
as proporções e grandeza de uma velha via romana, branca como
neve, talhada sobre os abismos.
– O melhor é descermos – disse simplesmente o Capitão John.
A estrada ficava (como disse) à nossa direita, surgindo por trás
de grossas penedias que se amontoavam no primeiro pendor da serra. Cortamos
para lá, devagar, ora através de grandes espaços de neve,
ora por sobre montes de lava. Quando dobramos por fim as penedias, avistamo-la
de repente, embaixo, a algumas jardas. Era magnífica, toda cortada
na rocha viva, e admiravelmente conservada! Mas, cousa extraordinária,
parecia começar ali, ao meio da serra, bruscamente. Continuamos a descida
alvoroçados, pusemos enfim os pés sobre as suas fortes lajes.
Olhamos, exploramos em redor. A estranha via findava com efeito ali, na serra,
entre umas rochas de lava entremeadas de neve! – Extraordinário! –
exclamou o barão. – Por que começa esta estrada assim, ou por
que acaba assim, de repente, no meio da serra? Abanei a cabeça, em
perfeita ignorância.
– Parece-me que percebo – disse o capitão coçando o queixo.
– Esta estrada é simplesmente maravilhosa! Não acaba aqui.
Antigamente galgava a cordilheira e seguia pelo deserto. Mas a parte que
galgava a serra para além, foi coberta por montões de lava,
nalguma erupção; e a parte que cortava o deserto foi invadida
pelas areias movediças. Não pode ser senão isto.
Talvez fosse. Em todo o caso largamos os passos por sobre essa surpreendente
estrada, que tinha o nome de Salomão.
Esta suave descida por uma magnífica calçada, com as forças
restauradas, e a abundância a esperar-nos embaixo, nos férteis
campos cheios de gado, – era bem diferente da subida pela neve acima, extenuados
de fome e de fadiga, e com aflitiva incerteza do que estaria para além.
Na verdade, se não fosse a triste lembrança do pobre Venvogel
e da sinistra cova, onde ele espectralmente ficara ao lado do velho fidalgo
de outras eras, poderíamos cantar de pura alegria. A cada milha que
andávamos, o ar cada vez se tornava mais macio e tépido; e a
região em torno parecia crescer para nós, a transbordar de abundância
e beleza. A estrada, essa, era positivamente portentosa. Afirmava o barão
que tinha semelhanças com a estrada do Saint-Gothard sobre os Alpes.
Eu, por mim, não vira maravilha maior! Num certo sítio abria-se
uma ravina medonha, de uns trezentos pés de largura, de uma profundidade
de mais de cem pés; pois este abismo estava vadeado por um colossal
aqueduto, com arcos para a passagem das torrentes, sobre o qual a estrada
seguia com soberba segurança. Noutros sítios cortada em ziguezagues
na rocha, contornava pavorosos precipícios, com parapeitos que a defendiam
e formavam balcões sobre o abismo. Mais adiante, perfurava um monte
de rocha, com um túnel de trinta jardas.
Nas paredes deste túnel corriam singulares relevos, representando
guerreiros com cotas de malha, que retesavam arcos, guiavam carros de combate.
Havia mesmo uma grande cena de batalha, com lanças em confusão,
e cativos acorrentados.
– Tudo isto é obra egípcia – dizia o barão parando
a cada instante. – Tudo isto eu vi nos templos do alto Egito. O nome da estrada
viera de Salomão. Mas estas esculturas são das mãos de
egípcios.
Pela uma hora da tarde tínhamos descido a montanha até as
faldas baixas onde começava o arvoredo. Ao princípio eram apenas
raros arbustos silvestres. Depois a estrada penetrava num bosque de olmos,
uns olmos com as folhas que brilham como prata, e que eu supunha só
existirem no Cabo.
– Estamos ao menos em terra de lenha! – exclamou entusiasmado o Capitão
John. – Vamos parar, e cozinhar um jantar. Eu, por mim, já digeri aquela
carne crua… Reentremos solenemente na civilização! Todos,
com efeito, tínhamos fome; e deixando a estrada, fomos em direção
a um regato que brilhava a distância entre árvores e relvas.
Bem depressa fizemos um fogo de ramos secos; e, cortando suculentos bifes
do lombo do antílope que trouxéramos conosco, assamo-los na
ponta de espetos de pau, à velha maneira dos cafres. Ao fim do delicioso
repasto acendemos os cachimbos – e estirados à sombra das frescas árvores,
gozamos enfim, depois de tão longos e duros dias, um repouso perfeito.
O lugar era adorável. O regato, muito frio e muito puro, cantava
sobre seixos que reluziam. As margens verdejavam, cobertas de fetos esplêndidos,
entremeados com plumas de espargos silvestres. Aqui e além cresciam
tufos de flores. Uma brisa, tépida e macia como veludo, sussurrava
nas folhas dos olmos. Bandos de rolas arrulhavam meigamente. E, de ramo em
ramo, faiscavam as asas de pássaros mais brilhantes que jóias.
Nenhum falava, no enlevo daquela paz e daquela doçura. E por muito
tempo nenhum de nós se moveu – até que o Capitão John,
surgindo de repente nu do leito espesso de fetos onde se enterrara, correu
para o riacho, e mergulhou num longo e ruidoso banho. Deitado de costas, num
bem-estar indizível, ocupei-me então a observar aquele homem
admirável, que, apenas se achava numa região de ordem, retomava
os seus complicados hábitos de asseio e de elegância. Depois
do banho, o nosso excelente amigo revestiu a camisa de flanela; e sentando-se
à beira do regato, rompeu a lavar os seus colarinhos de guta-percha.
Finda esta barrela sacudiu, escovou, esticou as calças, o colete, o
jaquetão, dobrou tudo cuidadosamente, e pôs-
lhe por cima pedras para acamar e desfazer os vincos. Em seguida, profundamente
concentrado, passou às botas, que esfregou com uma mão cheia
de feto, e depois besuntou com gordura de antílope (que pusera de lado)
até lhes dar uma aparência comparativamente lustrosa e decente.
Tendo-as examinado com cuidado, de monóculo fixo e cabeça à
banda, encetou outras e mais delicadas operações. De um pequeno
saco que trazia na mochila, tirou um espelhinho e examinou cuidadosamente
dentes, olhos, cabelos, barba – a barba já grossa de oito dias. Este
exame parecia humilhá-lo, porque abanava a cabeça com desconsolação
e tédio. Começou então pelas unhas que aparou e poliu;
depois seguiu ao cabelo que acamou e apartou… Mas de repente, com uma idéia,
calçou as botas que pusera ao lado; e assim, de botas, com as pernas
nuas, e em camisa de flanela, ergueu-se para ir pendurar o espelhinho num
ramo de árvore. O arranjo não provou satisfatoriamente, porque
voltou para a beira do regato, e com custo e arte equilibrou o espelho numa
folha grossa de feto. Tornou logo a meter a mão no saco e tirou uma
navalha de barba… “Santo Deus! pensei eu erguendo-me no cotovelo,
o homem irá fazer a barba?” Ia. Tomando outra vez o pedaço
de gordura de antílope com que ensebara as botas, lavou-a escrupulosamente
no regato, esfregou com ela desesperadamente a face e o queixo, e principiou
a rapar o pêlo áspero de dez dias. Era porém uma operação
difícil, porque cada movimento da navalha vinha acompanhado de um angustioso
gemido. Por fim conseguiu escanhoar a face esquerda e metade do queixo. Grande
suspiro de alívio! E ia atacar a outra face – quando, de repente, vi
uma cousa passar e lampejar por cima da cabeça.
John deu um pulo, com uma praga. Ergui-me também de salto – e na
mesma margem do regato, à distância de uns trinta passos, dei
com os olhos num bando de homens. Era uma gente de grande estatura, imensamente
robusta, e cor de cobre.
Alguns deles traziam aos ombros peles de leopardo, e na cabeça umas
coroas de altas penas, negras, direitas, que ondulavam na brisa. Em frente
do bando, um rapaz de uns dezessete anos conservava ainda o braço erguido
e o corpo inclinado, na atitude graciosa de uma estátua que eu vira
no Cabo, um efebo grego que lança um dardo. Evidentemente a cousa que
passara e brilhara era um dardo – e fora o moço airoso que o arremessara.
Quase imediatamente, um velho, de ar marcial, saiu dentre o grupo, e, agarrando
o braço do rapaz, falou-lhe baixo como se o avisasse. Em seguida todos
avançaram para nós.
O barão, John e Umbopa, tinham logo agarrado e apontado as carabinas.
Os homens todavia continuavam avançando, devagar, em grupo. Percebi
logo que nunca tinham visto espingardas, pelo modo como afrontavam assim tranqüilamente
os três canos erguidos.
– Baixem as armas! – gritei aos outros.
Tinha compreendido também que a nossa segurança entre essa
gente selvagem dependia toda de conciliação e de ardil. Apenas
pois os companheiros baixaram as armas, caminhei lentamente para o velho.
– Bem-vindo! – exclamei em zulu, ao acaso, sem saber que idioma entenderiam
aqueles homens.
Com surpresa minha, o velho compreendeu. E respondeu logo, não em zulu,
mas num outro dialeto, tão parecido com o zulu, que Umbopa e eu o percebemos
perfeitamente: – Bem-vindo! Como viemos a saber depois, a língua deste
povo era uma forma antiquada da língua zulu – e estando para o zulu
do sul como o inglês do tempo dos Tudores está para o inglês
polido do século XIX. No entanto, o velho avançara outro passo,
erguendo a mão.
– De onde vindes? – continuou ele. – Quem sois? Por que tendes três
de vós as faces brancas, e o outro a pele como nós e como os
filhos de nossas mães? E apontava para Umbopa – que na realidade, pela
figura, pela cor, pelas feições, era muito semelhante àqueles
homens formidáveis. Eu então repeti a saudação
ao velho. E, muito espaçadamente, para que ele apanhasse bem o meu
zulu: – Somos gente de outros sítios; vimos em boa paz, e este homem
é nosso servo.
O velho abanou lentamente a cabeça, ornada de imensas plumas negras
que ondulavam.
– Mentes! A gente de outros sítios não pode atravessar as
montanhas, nem o deserto sem água onde toda vida acaba. Mas não
importa que mintas… Se sois estranhos e vindes de outros sítios,
tendes de morrer, porque não é permitido a ninguém entrar
na terra dos cacuanas. É a vontade do nosso rei. Preparai-vos pois
para morrer, oh gentes! Fiquei um pouco perturbado – tanto mais que vi alguns
selvagens levarem logo a mão ao cinto de onde lhes pendiam umas armas
em forma de pesadas navalhas.
– Que diz esse malandro? – perguntou o capitão, percebendo o meu
embaraço.
– Diz simplesmente que nos vai retalhar à faca.
– Santo Deus! – murmurou o nosso amigo.
E, como era seu costume, em frente de um perigo ou de uma crise, passou
nervosamente a mão pelo queixo e pelos beiços. Alguma cousa
decerto lhe sucedeu então à dentadura postiça (que momentos
antes tirara para lavar e que tornara a pôr), porque num relance lhe
vi os dentes todos de fora, e logo sumidos para dentro! Não percebi
bem o caso. Mas qual é o meu espanto quando os cacuanas soltam um grito
de terror, e recuam para trás, em tropel! – Que foi? – exclamei.
– Foram os dentes! – acudiu o barão, excitadamente. – Os selvagens
viram-lhe os dentes a mover-se… Tira-os de todo, John, tira-os de todo.
Talvez os assustes.
O capitão prontamente compreendeu, passou a mão devagar por
sobre a boca, e escamoteou a dentadura. Os cacuanas, no entanto, numa ânsia
de curiosidade, avançavam de novo, com os olhos arregalados para John.
E foi o velho (evidentemente um chefe) que ergueu a voz e a mão, com
solenidade: – Quem é este homem, oh gentes, que tem o corpo coberto,
as pernas nuas, cabelos só em metade da cara, e um grande olho que
reluz? Quem é ele e que faz mexer assim à vontade os dentes
para dentro e para fora da boca? – Abra a boca, John! – murmurei eu baixo
para o capitão. John arreganhou os beiços, e exibiu duas gengivas
muito vermelhas, desdentadas como as de um recém-nascido. Entre os
selvagens passou um sussurro de espanto.
– Onde estão os dentes? Ainda agora tinha dentes! – exclamavam eles,
entre si, com gestos apavorados. Então John deu um movimento vagaroso
à cabeça, passou a mão pela boca com soberana indiferença,
e desfranzindo de novo os beiços – mostrou duas esplêndidas filas
de dentes, muito fortes, muito sãos, que rebrilhavam.
No mesmo instante o rapaz que despedira o dardo arremessou-se para o chão,
com gritos espavoridos. Todo o bando tapava as faces com as mãos, num
terror. E o velho, que parecia o mais resoluto, tremia tanto, e tão
encolhido, que lhe batiam os joelhos um contra o outro.
Só quem conhece selvagens e a mobilidade daquelas imaginações
infantis, pode compreender como subitamente, em cada um deles, ao desejo de
nos matar ia já sucedendo o impulso de nos adorar… Quando o velho
tornou a levantar a voz, foi muito humildemente e numa postura de súplica:
– Vós sois espíritos! Bem vejo que sois espíritos, oh
gentes! Nunca houve homem nascido de mulher que tivesse só cabelo num
lado da cara, e um olho redondo e transparente, e dentes que se derretem e
de repente crescem outra vez… Vós sois espíritos. Perdoai-nos,
senhores, perdoai-nos! Aproveitei logo esta esplêndida ocasião.
E estendendo o braço, com soberba magnanimidade: – Estais perdoados.
Era porém necessário, para nossa salvação, que
deslumbrássemos e inteiramente nos apoderássemos daquelas almas
ferozes e simples. E para isso, na África (como noutras partes) o mais
pronto instrumento é o sobrenatural. Não hesitei portanto (com
vergonha o confesso) em me atribuir, a mim e aos meus companheiros, uma origem
divina! De resto, com o negro da África Central, que pela primeira
vez vê o branco, e assiste a alguns dos milagres que o branco pode realizar
com os pequenos recursos da sua pequena civilização, este procedimento
é o mais seguro e o mais humano. O selvagem fica desde logo (pelo menos
por algum tempo) contido dentro do respeito, absolutamente razoável
e tratável; e assim, poupando ao negro as traições, os
brancos poupam a si próprios as represálias.
Ergui pois a mão, e disse, com vagar e majestade: – Já que
vos perdoei, porque sois ignorantes, condescendo também em vos dizer
quem somos. Somos espíritos! Vivemos além, por cima das nuvens,
numa daquelas estrelas que vós vedes de noite brilhar. E viemos visitar
esta terra, mas em paz e para alegria de todos! Entre os indígenas
correram grandes ah! ah! lentos e maravilhados.
Eu prossegui, mais grave: – Nós conhecemos todos os reis e todas
as gentes. E eu, que sou a voz dos outros, conheço todas as línguas.
– A nossa bem mal! – arriscou com timidez o velho guerreiro. Dardejei-lhe
um olhar chamejante que o estarreceu. E gritei logo, para fazer uma diversão
brusca àquela observação tão justa e perigosa:
– Viemos em paz, é certo! Mas fomos recebidos em guerra. E talvez devêssemos
castigar já o ultraje feito por esse moço, que sem provocação
atirou uma faca ao espírito divino, cujos dentes de repente nascem
e caem.
– Oh não! Meu senhor! – gritou numa ansiosa súplica o velho
guerreiro. – Poupai-o! Poupai-o, que é o filho do nosso rei! Eu sou
seu tio, que o ajudei a criar. Só
eu respondo por cada gota do sangue que lhe gira nas veias!… Oh meu senhor,
a clemência vai bem aos espíritos! Afetei não compreender
a angustiosa prece, – e tornei, com superior indiferença: – As nossas
maneiras de castigar são simples e terríveis. Num instante ides
ver… Tu, escravo que nos segues (e aqui encarei para Umbopa), dá-me
a arma de feitiços que troveja. Umbopa, que assistira absolutamente
impassível e sério a todas as minhas afirmações
de divindade, e que (zulu inteligente, afeito aos branco e às suas
manhas) lhe percebera o alcance – estendeu-me uma carabina Winchester, com
humilíssima reverência.
Justamente nesse instante avistei, para além do riacho, a umas setenta
jardas de distância, um pequeno antílope, imóvel sobre
um montão de rochas.
– Vedes aquele gamo? – exclamei eu para os selvagens.
– Julgais possível que um simples homem, nascido do ventre da mulher,
o mate daqui de onde estou, só com fazer estalar um pequeno trovão?
– Não é possível! – murmurou recuando o velho guerreiro.
– Não é possível para homem nascido do ventre da
mulher! – Ides ver.
Apontei. Bum! E subitamente o gamo, dando um pulo furioso no ar, tombou
morto, imóvel, estatelado nas pedras. Um fundo murmúrio de assombro,
de terror, passou entre os cacuanas… Eu acrescentei simplesmente: – Aí
está. E se tendes fome, podeis ir buscar aquele gamo! O velho fez um
sinal. Dois homens, correndo, trouxeram a caça. E amontoados em volta
dela, todos em silêncio (num silêncio que era religioso pelo pavor
que continha), ficaram contemplando boquiabertos o buraco da bala que lhe
acertara entre os ombros.
– Se não estais satisfeitos – volvi eu ainda – se em vez de um gamo
me quereis ver matar um homem, que um de vós se coloque além
sobre as pedras ou mais longe, e o raio irá ter com ele.
Houve um movimento geral dos cacuanas, recuando e protestando.
– Não! Não! – gritaram alguns. – Acreditamos, acreditamos…
Não vale a pena gastar feitiços com nós outros, que acreditamos
e que somos amigos! O velho guerreiro interveio, com alacridade: – Assim é!
Nós somos amigos. E para que nos conheçais bem, oh almas das
estrelas, que trovejais e matais tão de longe, sabei que eu sou Infandós,
filho de Cafa, antigo rei dos cacuanas. Este moço é Escraga,
filho de Tuala, nosso rei! Tuala, o homem de mil mulheres, senhor dos cacuanas,
terror dos seus inimigos, sentinela da Grande-Estrada, sabedor das artes negras,
chefe de cem mil guerreiros, Tuala o supremo, Tuala o de um só olho…
– Basta – interrompi sobranceiramente. – Leva-nos então ao Rei Tuala.
Porque, nas nossas jornadas pelo mundo, nós só falamos a reis!
– Certamente, meu senhor, certamente… Mas nós andávamos caçando
nestes sítios, e estamos a três dias de jornada da aringa do
rei. São três dias que tendes de caminhar.
– Caminharemos. Escuta tu, porém, Infandós, e tu, Escraga,
filho de Tuala! Se por acaso tentardes no caminho armar-nos uma traição,
ou se essa idéia vos
atravessar sequer a cabeça, nós, que tudo adivinhamos, tomaremos
de vós tal vingança, que fará ainda estremecer os filhos
de vossos filhos. Aquele cujo olho reluz, e cujos dentes vão e vêm,
incendiará todas as vossas searas com a chama do seu olho, e despedaçará
todas as vossas carnes com as pontas das suas presas! E nós faremos
ressoar os canos que trovejam de uma maneira que será pavorosa! Toda
a água secará. Todo o gado morrerá. E os espíritos
maus virão, à nossa voz, dispersar os vossos ossos… E agora
a caminho.
Esta tremenda fala era quase supérflua – porque os nossos novos amigos
acreditavam, superabundantemente, nos nossos poderes sobrenaturais. Ainda
assim o velho Infandós saudou-nos com uma reverência mais funda
e mais servil, repetindo três vezes estas palavras: Krum! Krum! Krum!
Como depois soubemos, é esta a maneira cacuana de saudar o rei. Corresponde
ao Baiete! dos zulus.
Depois o velho atirou um gesto aos seus, que imediatamente carregaram às
costas as nossas mochilas, cantinas, mantas e outras miudezas – exceto as
espingardas, de que eles se afastavam em grandes voltas e com olhares de terror.
Um deles lançou mão ao fato do Capitão John, ainda
cuidadosamente dobrado à beira da água. O excelente John deu
logo um pulo para as calças. E rompeu então uma imensa altercação.
– Não, meu senhor – gritava Infandós – não consentirei
que o meu senhor carregue com essas cousas! – Mas é que eu quero pôr
as calças! – berrava John.
– Todos somos aqui seus escravos para servir e carregar…
– Mas as calças…
– Meu senhor!…
– Larga as calças, malandro! Tive de intervir, sufocado de riso.
– Escute, John. O caso é mais sério do que parece. Um dos
motivos do terror que estamos inspirando é a sua luneta, a sua cara
meia barbada e meia rapada, os seus dentes postiços, e essas pernas
brancas à mostra… Tudo isso espanta as imaginações
de selvagens. E se o amigo quer que não nos percam o medo, é
necessário continuar a aparecer-lhes nessa figura. Se o amigo lhes
surgir amanhã de outro modo, tomam-nos por impostores, e a nossa vida
não vale mais um pataco. Assim o viram nesta terra, assim nela tem
de ficar.
John, inquieto, hesitante, voltou os olhos para o barão: – O amigo
Quartelmar tem razão – afirmou o barão. – E dá graças
a Deus que já estavas de botas, e que a temperatura é tão
doce.
John teve um suspiro de furiosa resignação. E, durante a nossa
estada na terra dos cacuanas, foi assim que John se mostrou sempre e praticou
notáveis feitos – de botas, de pernas nuas, com uma metade de cara
rapada, outra coberta de barba, e a fralda voando ao vento!
Capítulo VI – Penetramos no Reino dos Cacuanas
Toda essa tarde trilhamos a larga, magnífica estrada que seguia infindavelmente
para o lado de noroeste. Alguns dos negros marchavam adiante (uns cem passos),
como vedetas. Outros seguiam levando as nossas bagagens. Nós íamos
no meio, entre Infandós e Escraga.
Pouco a pouco, Infandós e eu descaímos numa palestra familiar
e amigável. O velho era esperto e loquaz.
– Quem fez esta estrada, Infandós? – Foi feita há muito tempo,
meu senhor. Ninguém sabe quando; nem mesmo uma mulher que tudo sabe,
Gagula, que tem vivido através de gerações… Já
ninguém pode fazer estradas assim… Mas o rei não consente
que se desmanche, nem que lhe cresça a erva por cima.
– E há quanto tempo vivem aqui os cacuanas, Infandós? – A
nossa gente, meu senhor, veio para aqui de grandes terras que estão
para além (indicava o Norte) há mais de dez mil milhares de
luxa. Para baixo não puderam seguir, segundo diziam nossos avós,
que o disseram a nossos pais, e segundo conta Gagula, a mulher que tudo sabe.
Não puderam por causa das altas montanhas que estão em redor,
e do deserto onde tudo morre. De modo que, como a terra era fértil,
aqui assentaram; e tantos e tão fortes se tornaram que, agora, quando
Tuala, nosso rei, chama os seus regimentos, o chão treme todo com o
seu peso, e até onde a vista alcança só se vêem
plumas de guerreiros e lanças.
– Mas se a terra está murada de montanhas e se não tendes
vizinhos, para que são tantos soldados? – A terra está aberta
para além (e indicava o Norte). E às vezes descem de lá
multidões que não sabemos quem são, e que nós
destruímos. Já correu a terça parte de uma vida de homem
desde a última guerra. Depois houve outra guerra, mas foi entre nós,
irmão contra irmão.
– Como foi isso, Infandós? Infandós começou então
uma dessas histórias de pretendentes e de guerras dinásticas,
que abundam em todos os continentes. O pai dele, Capa, que era o rei dos cacuanas,
tivera por primeiros filhos, da primeira mulher (ele, Infandós, era
filho de uma concubina) dois gêmeos. Ora a lei dos cacuanas manda que,
de dois gêmeos reais, o mais fraco seja sempre destruído. Mas
a mãe, por piedade e amor, escondeu o gêmeo mais fraco, que se
chamava Tuala, e, ajudada por Gagula, educou-o em segredo numa caverna. Quando
Capa morreu, o gêmeo mais velho, que se chamava Imotu, foi portanto
rei; e logo depois teve da sua mulher favorita um filho por nome Ignosi. Ora
por esse tempo passara a guerra com os povos do Norte; os campos não
tinham sido semeados; veio uma fome; e havia grande miséria e dor entre
o povo, que, como uma fera esfaimada, rosnava, procurando com os olhos sangrentos
alguma cousa em redor para despedaçar. Foi então que Gagula,
a mulher que tudo sabe e que não morre, rompeu a dizer que os males
todos provinham de que Imotu reinava sem ser rei. Imotu, a esse tempo, estava
doente na sua cubata, com uma ferida.
Começou a correr um clamor entre o povo. Por fim Gagula, um dia,
reúne os soldados, vai buscar Tuala, o gêmeo mais novo que ela
e a mãe tinham escondido nas cavernas, apresenta-o ao povo, descobre-lhe
a cinta, e mostra a marca real com que entre os cacuanas os reis são
marcados ao nascer – uma tatuagem representando uma
cobra, que se enrosca em torno do ventre real, e vem reunir, sobre o umbigo
real, a cabeça e o rabo. E ao mesmo tempo, Gagula gritava: “Eis
o vosso verdadeiro rei, que eu salvei e que escondi, para ele vos vir salvar
agora!” O povo, tonto de fome, ignorando a verdade, espantado com a
evidência da marca real, largou a bradar: “Este é o rei!
Este é o rei!” Alguns sabiam bem que não – e que
neste só havia impostura. Mas nesse momento, ouvindo os alaridos, o
Rei Imotu sai doente e trôpego da sua cubata, com a mulher e com o filho
que tinha três anos, a saber por que vinham tantos brados e por que
pediam eles “o rei!” Imediatamente Tuala, o irmão, corre
para ele e crava-lhe uma faca no coração! E o povo, que as ações
decididas e bruscas sempre fascinam, gritou logo: “Tuala é rei!
Tuala provou que é rei!” Diante disto a pobre mulher de Imotu
agarrou o filho, o seu Ignosi, e fugiu. Ainda apareceu, passados dias, numa
arroga, pedindo de comer. Depois viram-na seguir para os lados dos montes
e nunca mais voltou.
– De modo – observei eu interessado por esta página de história
negra – que Tuala não é o verdadeiro rei.
O velho respondeu com prudência: – Tuala, o grande, é rei.
Mas se Ignosi vivesse ainda, só esse tinha o legítimo direito
de reinar sobre os cacuanas. A cobra sagrada foi-lhe marcada em torno da cinta.
O rei é ele. Somente decerto há muito que Ignosi morreu…
Casualmente, nesse instante, voltando-me para falar aos camaradas que marchavam
atrás – esbarrei com Umbopa, que quase me pisava os calcanhares, absorto
naquela história de Imotu e de Ignosi, com uma curiosidade, um interesse
que lhe punham nos olhos um brilhar desusado, lhe davam a expressão
de quem de repente lembra cousas vagas, remotas, semi-esquecidas, perturbadoras.
Nessa ocasião permaneci indiferente. Mas, depois, através da
jornada, muitas vezes pensei naquela ansiosa, esgazeada curiosidade do zulu.
No entanto já trilháramos algumas fortes milhas de estrada.
As montanhas de Sabá ficavam para trás, envoltas nos seus místicos
véus de névoa. E o país cada vez se oferecia mais formoso
e mais rico.
Ao começo da tarde avistamos enfim uma grande povoação,
– que, segundo Infandós nos declarou, pertencia ao seu comando militar
e continha uma vasta guarnição. O velho guerreiro mandara mensageiros
adiante, correndo, num passo de gazela, a anunciar a nossa vinda. E quando
nos aproximamos da aldeia, descobrimos, com efeito, saindo das portas e marchando
ao nosso encontro, densas companhias de soldados.
O barão tocou-me no braço, com um receio que “as cousas
se apresentassem desagradavelmente”. Infandós decerto compreendeu,
pelo tom, pelo franzir de sobrancelhas do barão, o sobressalto que
o tomara (e a mim), porque acudiu ansiosamente, com redobrada reverência:
– Que os meus senhores não suspeitem de mim! Aquele é um dos
regimentos que eu comando! Mandei-o sair e desfilar, para prestar as honras
aos que vêm do mundo das estrelas…
Esbocei um gesto e um sorriso de soberana indiferença. Realmente
estava bem inquieto!
A povoação ficava à direita da estrada, separada dela
por um declive de terreno areado e bem pisado, onde o regimento se formara
em parada. Havia ali talvez uns três mil homens. E quando nos acercamos,
pudemos ver, com admiração e assombro, de que esplêndida,
de que formidável raça eram estes guerreiros cacuanas! Nenhum
media menos de seis pés de altura; e todos veteranos de quarenta anos,
ágeis, experientes, prodigiosamente robustos, endurecidos por exercícios
perpétuos. Sobre a cabeça todos traziam a coroa de altas e pesadas
plumas negras, sempre tremendo ao vento. Em volta da cinta pendia-lhes um
saião feito de rabos de boi, muito juntos uns aos outros e brancos;
e no braço esquerdo sustentavam escudos redondos de ferro, recobertos
de couro pintado de branco. Por armas tinham uma azagaia semelhante à
dos zulus – e três facas (uma no cinto, duas em presilhas no escudo),
facas enormes que eles chamam tolas e que arremessam a distâncias de
cinqüenta jardas e mais, com uma certeza terrível.
As companhias conservavam-se mais imóveis que estátuas de
bronze. Mas, à medida que íamos passando em frente delas, cada
oficial (que se distinguia por uma capa de pele de leopardo) dava um sinal;
e os homens, brandindo a azagaia no ar, soltavam a saudação
real, a grande voz: Krum! Krum! Krum! Assim penetramos na povoação
ao rumor de aclamações. A aldeia devia ter uma milha de circunferência;
e era defendida por um largo fosso e por uma alta estacada feita de troncos
de árvores. Na porta central, do lado da estrada, havia uma ponte levadiça.
Parecia uma aldeia admiravelmente bem ordenada. Ao centro, entre árvores,
corria uma ampla, extensa rua, cortada em ângulos retos por outras mais
estreitas, formando séries de quarteirões, cada um dos quais
alojava uma companhia. As cubatas, redondas, feitas de uma grossa verga entrelaçada,
findavam, à maneira das dos zulus, por tetos de colmo em forma de zimbório
agudo; mas, diferentes nisto das dos zulus, tinham uma porta larga e fácil,
e eram cercadas por uma varanda, cujo chão de cal dura rebrilhava ao
sol. Os dois lados da grande rua apinhavam-se de mulheres, que tinham corrido
de todas as cubatas para nos admirar. Era uma bela raça de mulheres
– altas, airosas, esplendidamente feitas, com o cabelo mais ondeado que encarapinhado,
as feições por vezes aquilinas, e os beiços sempre finos.
Mas o que mais nos impressionou foi o seu ar grave e sério. Nem pasmo
selvagem, nem risos, nem injúrias, ao verem-nos desfilar, tão
estranhos e diferentes de todos os homens que até aí tinham
encontrado. Nem mesmo a singular figura de John lhes arrancou uma exclamação;
apenas os largos olhos negros se lhes arregalavam para as pernas níveas
do pobre amigo que, roído de vergonha, praguejava baixo.
Quando chegamos ao centro da aldeia, Infandós parou em frente de
uma espaçosa e rica cubata, cercada de dependências menores,
entre arvoredo. E com palavras grandiosas, à maneira dos zulus, ofereceu-nos
a hospitalidade: – Aqui habitareis, meus senhores. E não tereis de
apertar o ventre com fome! Em breve vos traremos mel, leite, uma ou duas vacas,
alguns carneiros. Não é muito, oh Espíritos! Mas é
dado por corações, que se regozijam de vos ver.
– Bem, bem, Infandós – murmurei eu. – O que precisamos, sobretudo,
é descansar, fatigados da nossa descida através dos espaços
e dos reinos do ar.
A cubata era muito confortável, com erva aromática espalhada
no chão, grandes peles servindo de leitos, e vistosos cântaros
para a água. Daí a pouco, entre cantos e risos, apareceu à
porta um bando de raparigas trazendo leite, mel em covilhetes, frutas em cestos;
e atrás dois rapazes seguiam, arrastando um vitelo pelos cornos. Um
dos rapazes, tirando a faca do cinto, matou o vitelo de um golpe; e logo o
outro, ágil e destramente, o esfolou e retalhou.
Ajudado por uma das raparigas (que era extremamente bonita), Umbopa passou
a cozer a carne numa panela de barro, sobre uma alegre fogueira acesa à
porta da cubata; e nós mandamos convidar Infandós e Escraga
para partilharem do nosso repasto. Quando entraram, notei que, para comer,
se não encruzavam no chão à maneira dos zulus – mas se
sentavam em pequenos bancos, que abundavam na cubata encostados às
paredes. O jantar foi longo e afável. O velho guerreiro todo ele exibia
doçura e respeito. Mas o rapaz Escraga parecia olhar para nós,
e para cada um dos nossos gestos, com singular desconfiança. Talvez,
ao ver que nós comíamos, bebíamos, e tínhamos
as necessidades de qualquer cacuana, começava a suspeitar da nossa
origem divina. Não me agradou este sentimento, tão real e lógico.
Que nos poderia assegurar as vidas, perdidos entre aquelas turbas negras,
senão o terror supersticioso? Depois de jantar acendemos os cachimbos
– o que encheu os nossos amigos de espanto. Na terra dos cacuanas, como na
dos zulus, a planta do tabaco cresce em abundância – mas eles
só a sabem usar torrada e seca, pulverizada. Só conhecem o rapé.
No entanto conversamos a respeito da nossa jornada. Infandós já
tudo organizara para que ela continuasse na madrugada seguinte, mandando adiante
emissários a prevenir Tuala da nossa chegada ao seu reino. Tuala estava
então na sua grande cidade de Lu, preparando-se para a revista de tropas,
a dança das flores e caça aos feiticeiros, que constituem a
maior solenidade religiosa e militar dos cacuanas, na primeira semana de junho.
E segundo afirmava Infandós, nós devíamos (a não
ser que nos detivessem os rios transbordados) entrar as portas de Lu ao fim
de dois dias de marcha.
Depois, como começavam a luzir as estrelas e a aldeia ia caindo em
silêncio, os nossos amigos deixaram a cubata. E três de nós
atiraram-se logo para cima dos leitos de peles, enquanto outro, com as carabinas
carregadas, velava, no seu turno de sentinela, para prevenir as traições.
Mas essa primeira noite na terra dos cacuanas foi muito calma e segura.
Capítulo VII – O Rei Tuala
Não me dilatarei nos incidentes da nossa jornada até Lu –
que nem foram consideráveis nem pitorescos. Durante dois longos dias
trilhamos a estrada de Salomão, por entre ricas terras cultivadas,
e alegres povoações que nos encantavam pelo seu ar florescente
e calmo. A cada instante passavam por nós troços de gente armada,
regimentos emplumados marchando também para a cidade, para o grande
festival sagrado. No segundo dia, ao pôr do sol, paramos numa colina,
que a estrada
galgava por entre dois renques de árvores em flor; e embaixo, numa
planície deliciosamente fértil, avistamos enfim Lu, a capital
dos cacuanas.
Para cidade da África era enorme, – com seis milhas talvez de circunferência,
toda ela defendida por estacadas, e rodeada de pomares e de vastas aringas,
onde se aquartelavam tropas. Pelo centro corria um largo e claro rio, vadeado
por pontes. Para o norte, a duas milhas, erguia-se uma colina, que oferecia
a forma singular de uma ferradura; e, mais longe a umas sessenta milhas, surgiam
bruscamente da planície, em triângulo, três serras isoladas,
escarpadas, todas cobertas de neve.
– A estrada – explicou Infandós, vendo que contemplávamos
com estranheza os três montes – acaba além nessas serras, que
se chamam as Três Feiticeiras.
– E por que acaba além, Infandós? – Quem sabe! – murmurou
o velho encolhendo os ombros. – As três montanhas estão
todas furadas por cavernas. Há no meio delas uma cova imensa. É
lá que se sepultam agora os nossos reis. E era ali que os homens antigos,
que sabiam tudo, vinham buscar certas cousas…
– Que cousas, Infandós? – exclamei eu, cravando nele um olhar que
o sondava.
O velho sorriu, com uma grossa malícia de negro: – Os espíritos
que vêm das estrelas sabem decerto mais do que um cacuana…
– Com efeito! – acudi eu, num tom ciente e profundo. – E por isso te posso
dizer, Infandós, que esses homens antigamente vinham procurar um ferro
amarelo que rebrilha, e umas pedras brancas que faíscam.
– Talvez fosse, talvez fosse! – balbuciou Infandós, embaraçado,
afastando-se bruscamente para lançar uma ordem aos carregadores da
bagagem.
– Acolá – disse eu aos companheiros mostrando as Três Feiticeiras
– estão as minas de Salomão! Todos três, comovidos, ficamos
a olhar aqueles montes tão próximos, onde jaziam ainda talvez
(se o velho D. José da Silveira contara a verdade) os mais ricos tesouros
da terra… A que prodigioso momento chegara a nossa aventura! De repente,
quando assim pasmávamos, o sol desapareceu – e a noite caiu, sem transição,
visivelmente, como uma cousa tangível. Naquelas latitudes não
há crepúsculo. A luz acaba como a chama de um bico de gás
que se fecha; e, num instante, a terra toda fica envolta numa cortina de treva.
Nessa ocasião, porém, durou pouco a escuridão, porque
bem cedo a mais larga e esplêndida lua, que me lembro de ter visto,
subiu majestosamente ao céu, derramando uma tão sublime refulgência,
tão divinamente serena, que, sem saber por que, cada um de nós
tirou o chapéu, como num templo, ante uma imagem sagrada.
Infandós, porém, quebrou a nossa contemplação,
dando o sinal de descer para a cidade, que, agora, batida de luar, cheia de
lumes, parecia infindável através da planície. E daí
a uma hora, tendo passado a ponte levadiça, entre piquetes de sentinelas
a quem Infandós deu baixo o santo-e-senha, seguíamos calados
pela rua central de Lu, toda ladeada de sombras de árvores e de senzalas
onde se cozinhava. Levou uma hora antes de chegarmos à grade de um
pátio redondo, com o chão muito batido e duro, todo caiado de
branco. Em volta erguiam-se cubatas espaçosas, cobertas de colmo. Eram
ali (segundo declarou Infandós) os nossos “humildes pousos”.
Cada um de nós tinha, só para si, uma cubata. Havia dentro um
grande asseio. Os leitos eram feitos com peles estendidas sobre enxergões
de erva aromática. Uma esteira tapetava o solo. Tripeças pintadas
alternavam com frescas vasilhas de água. Não podíamos
esperar mais cuidadosa hospedagem! E apenas nos lavamos, sacudimos o pó,
apareceu logo um bando de raparigas, das mais belas que até aí
encontráramos no país, trazendo leite, carnes assadas e bolos
de milho, em vistosos pratos de madeira.
Depois da ceia fizemos reunir todas as quatro camas na maior das cubatas
(precaução que encheu de riso as raparigas), – e não
tardamos em adormecer com grata tranqüilidade. Acordamos quando o sol
ia nado – e a primeira e aprazível impressão que recebemos foi
a do bando das raparigas, acocoradas no chão, a um canto, à
espera que despertássemos “para nos ajudar a lavar e a vestir”.
Quando uma delas, a mais alta (e que figura! que braços!) fez esta
amável oferta, o Capitão John teve uma exclamação,
um gesto de atroz desespero: – Vestir! É bom de dizer! Quando uma pessoa
não tem senão uma camisa e um par de botas!… E com estas raparigas
todas, bonitas raparigas, aí por essa cidade… Não! Isto não
pode continuar! Eu não arredo pé daqui da cubata, senão
de calças! Quero as calças! Vi o meu amigo tão decidido,
que reclamei as calças. Mas uma das raparigas voltou daí a momentos,
declarando que essas sagradas e maravilhosas relíquias, tinham sido
já mandadas ao rei! O furor do nosso John foi imenso. Teve de se contentar
em barbear a face direita; porque na esquerda não consentimos nós
que ele eliminasse um só pêlo, à farta suíça
que já lhe crescera. Aquela cara espantosa, rapada de um lado, barbuda
do outro, era uma das evidências da nossa raça sobrenatural.
Todos nós, de resto, tínhamos aspectos estranhos. Os cabelos
do barão, amarelos e sempre longos, desciam-lhe agora até aos
ombros, numa juba rude, que lhe dava o ar de um bárbaro dos tempos
do Rei Olof.
O almoço já esperava, fora, no terreiro, em caçoulas
que fumegavam. Mas, primeiramente, quisemos tomar o nosso tub, atirar pelas
costas alguns frios baldes de água. E o assombro, a desconsolação
das raparigas foi considerável, quando lhe pedimos pudicamente que
se retirassem, cerrando a porta de vime…
Logo depois do almoço, Infandós apareceu anunciando que El-Rei
Tuala nos mandava muito saudar, e esperava a nossa comparência em palácio.
Declarei imediatamente, com indiferença e altivez, que ainda nos achávamos
cansados, tínhamos ainda um cachimbo a fumar, etc., etc.
Convém sempre, tratando com potentados negros, não mostrar
pressa nem respeito. Tomam invariavelmente a polidez por pavor. De sorte que,
apesar da nossa ansiedade em ver o terrível Tuala, retardamos nas cubatas
uma farta hora, preparando, ao mesmo tempo, os escassos presentes que destinávamos
ao rei e à corte: a espingarda do pobre Venvogel, um bocado de seda,
alguns fios de contas de vidro. Afinal partimos, guiados por Infandós
– e seguidos por Umbopa, que levava as dádivas.
Ao fim de um curto quilômetro, chegamos a um imenso terreiro, com
o chão duro e caiado de branco como o das nossas moradas, e cercado
por uma estacada
baixa. Em redor, fora da estacada, corria uma fileira de cubatas, que (segundo
nos informou Infandós) pertenciam às mulheres do rei; e ao fundo,
fronteira à porta por onde entráramos, estendia-se uma construção,
uma cubata enorme, com varas e plumas espetadas no teto de colmo, que era
o palácio real. No recinto não crescia uma árvore; e
todo ele estava nesse dia cheio de regimentos em forma, perfilados, imóveis,
verdadeiramente magníficos, com os seus altos penachos, os escudos
brancos, as lanças a rebrilhar.
Em frente à cubata real ficava um espaço vazio, com uns poucos
de escabelos de madeira. A convite do bom Infandós, ocupamos três
desses assentos privilegiados, tendo Umbopa por trás, de pé;
e assim ficamos à espera, no meio de um silêncio absoluto, sentindo
cravados sobre nós oito mil pares de olhos sôfregos. Finalmente,
a porta da cubata rangeu – e surgiu dela uma figura gigantesca, com
um esplêndido manto de peles de tigre lançado sobre o ombro,
e uma azagaia na mão. Atrás dele vinha Escraga e uma outra criatura
estranha, equívoca, que nos pareceu uma macaca – uma macaca velhíssima
e friorenta, toda embrulhada em peles. A figura gigantesca abateu-se pesadamente
sobre uma das tripeças de pau. Escraga permaneceu de pé, por
trás, apoiado à lança. A velha macaca arrastou-se para
a sombra que lançava a cubata real, e ali se acocorou lentamente.
O mesmo silêncio continuava no entanto opressivo, aflitivo. Então
a figura gigantesca arrojou o manto que a envolvia, e ergueu-se, oferecendo
às vistas a sua real pessoa, verdadeiramente terrífica! Nunca
em minha longa vida encarei um homem mais repulsivo. E ainda às vezes
revejo, ante mim, aquela face horrível com os beiços muito grossos,
ressudando sensualidade, as ventas enormes e chatas de fera, e o olho único
(porque o outro era apenas um buraco negro) atrozmente brilhante, de um brilho
frio e cruel. Uma cota de malha reluzente cobria-lhe o corpo formidável.
Da cinta pendia-lhe o saião do uniforme, feito de rabos brancos de
boi. Ao pescoço trazia uma gargalheira de ouro; e da testa, onde luzia
um menor diamante bruto, subia-lhe, ondeando no ar, um tufo esplêndido
de plumas de avestruz.
O silêncio ainda pesou, mais profundo, diante daquela presença
assustadora! Mas de repente o monstro (que logo compreendemos ser Tuala, o
rei) levantou a lança no ar. Oito mil lanças faiscaram ao sol.
E de oito mil peitos rompeu, atroando o céu, a grande aclamação
real: Krum! Krum! Krum! Depois, no silêncio que recaía, vibrou
uma voz, agudíssima, estrídula, horripilante, e que parecia
vir da macaca agachada à sombra: – Treme e adora, oh povo! É
o rei! E oito mil peitos de novo atroaram o céu, bradando: – É
o rei! É o rei! Treme e adora, oh povo! E tudo de novo emudeceu. Mas
quase imediatamente, ao nosso lado, houve um ruído de ferro batendo
sobre pedra.
Era um soldado que deixara cair o escudo.
Tuala dardejou logo o olho cruel para o sítio onde o som retinira:
– Avança tu! – berrou, num tom trovejante.
Um soberbo rapagão saiu da fileira, ficou perfilado.
– Cão infernal! – rugiu o rei. – Foste tu que deixaste cair o escudo?
Queres que eu, teu chefe, seja escarnecido pelas gentes que vêm das
estrelas?
– Foi sem querer, oh mestre das artes negras! – acudiu o rapaz, cuja pele
fusca parecia empalidecer.
– Pois, também sem querer, vais morrer! O soldado baixou a cabeça
e murmurou simplesmente: – Eu sou a rés do rei! – Escraga! – bramiu
Tuala. – Mostra como sabes usar bem a lança. Vara-me aquele cão!
O odioso Escraga deu um passo para diante, com um sorrisinho feroz, e levantou
o dardo. O desgraçado tapou a face, e esperou, imóvel. Nós
nem respirávamos, petrificados. “Um, dois, três!”
Escraga soltou a lança. O soldado atirou os braços ao ar, caiu
morto.
Dentre os regimentos saiu então um longo murmúrio que rolou,
ondulou, se esvaiu por fim no silêncio.
O barão, lívido de indignação, agarrara a espingarda
das mãos de Umbopa. E eu, aflito, tive de o agarrar a ele, lembrar
que as nossas vidas estavam à mercê do rei, e que éramos
quatro contra todo um reino.
Tuala, no entanto, sorria sinistramente: – O golpe foi bom. Arrastem para
fora o cão morto.
Quatro homens saíram da fileira, levaram o corpo.
E então a mesma voz esganiçada, sibilante, horrível
(que evidentemente era da macaca) cortou o ar: – A palavra do rei foi dita!
A vontade do rei foi feita! Treme e adora, oh povo! E cobri bem depressa as
manchas de sangue. A palavra foi dita, a vontade foi feita! Uma rapariga saiu
de trás da cubata real com um vaso de louça, e, atirando dele
cal às mãos cheias, escondeu as nódoas horríveis.
Tuala permanecia imóvel, como um ídolo.
Por fim, lentamente, voltou para nós a face medonha.
– Gente branca! – disse ele. – Gente branca, que vindes não sei de
onde, nem sei a quê, sede bem-vinda! – Bem estejas, rei dos cacuanas!
– respondi eu, com dignidade.
Houve um silêncio, através do qual ficamos imóveis,
sentados, com os olhos cravados no monstro.
– Gente branca – volveu ele – que vindes vós procurar aqui? – Vimos
do mundo das estrelas, oh rei! Não indagues como, nem para quê.
São cousas muito altas para ti, Tuala.
O rei franziu a face, de um modo inquietador: – Altas me parecem as vossas
palavras, gentes das estrelas!..’. Não esqueçais que as
estrelas estão longe e a minha vontade está perto… Pode bem
ser que saiais daqui como aquele que agora levaram.
Era necessário ostentar um soberbo desdém da ameaça.
Comecei por lançar uma risada, muito cantada (e na verdade muito forçada):
– Oh rei, tem cautela! Não caminhes sobre brasas, que podes escaldar
os pés! Toca num só dos nossos cabelos e a tua destruição
está certa. Não te disseram estes (e apontei para Infandós
e Escraga), que espécie de homens nós somos, e que grandes artes
temos? Viste tu alguém como nós, entre os filhos dos homens?
– Nunca vi – murmurou ele.
– Não te contaram esses como nós damos a morte de longe, através
de um trovão? – Não creio! – exclamou Tuala, batendo fortemente
o joelho. – Mostrai-me primeiro, vós mesmos, a vossa arte. Matai um
desses homens que estão além (apontava uma companhia de soldados
magníficos, junto à porta da aringa) e eu prometo acreditar!
Repliquei que não derramávamos nunca sangue de homem, senão
em justo castigo. Mas que o rei soltasse um boi para dentro do pátio,
através dos soldados, e antes dele correr vinte passos, cairia morto,
de chofre. O rei rompeu a rir.
– Um boi! Um boi!… Não, matai um homem para eu acreditar! – Perfeitamente!
– exclamei eu, com tranqüilidade. – Ergue-te tu, oh rei, caminha através
do pátio, e antes de chegares ao portal da aringa rolarás morto
no chão. Ou, se não queres ir tu mesmo, manda teu filho Escraga.
A isto, Escraga deu um grito, lançou um pulo, e fugiu para dentro
da aringa real.
Perante a estranha audácia com que lhe propúnhamos, para mostrar
as nossas artes mágicas, matar um príncipe ou um boi, à
sua escolha – Tuala ficou esgazeadamente perplexo. O seu olho coruscante ora
se pousava em nós, ora no chão.
Depois, num tom surdo: – Bem, que enxotem uma vaca para dentro do pátio!
Dois homens, imediatamente, largaram correndo.
– Barão – disse eu ao nosso amigo – chegou a sua vez. Mate a vaca.
Não quero que imaginem que só eu sei fazer as maravilhas.
O barão tomou a carabina Express, e esperou, no fundo silêncio
que se alargara. Por fim, à porta da aringa, houve um ruído;
e vimos entrar por ela, correndo, enxotada, uma grande vaca ruça. Ao
avistar a multidão, o animal estacou, olhou estupidamente, deu uma
volta lenta, e mugiu.
– Agora! – gritei ao barão, vendo a vaca de lado e em bom alvo.
Bum! O tiro partiu, a vaca tombou, varada no coração. De toda
a enorme soldadesca se exalou um murmúrio de admiração
e terror.
– Então menti, Rei Tuala? – exclamei eu, fitando o monstro com altivez.
– Não, é verdade – rosnou ele.
Baixara o olho cruel; parecia atemorizado. Eu continuei, com soberana confiança:
– Escuta, Tuala! Na arte mágica de destruir, ninguém nos vence.
Destruímos de longe a vida dos homens, e a vida dos animais… E as
próprias armas, os ferros mais duros, reduzimo-los de longe a estilhaços.
Escuta! Manda cravar além no chão, com a ponta do ferro voltada
para cima, essa lança que tens na mão, a tua própria
lança, que nunca foi vencida, oh Tuala! Manda, e eu te mostrarei! Espantado,
o rei cedeu. Um soldado cravou no chão, ao fundo da aringa, a lança
real, com a ponta faiscando no ar, sob um raio de sol.
– Bem – disse eu. – Agora, vê em que estilhas vai ficar a tua lança
invencível.
Apontei, disparei; a bala bateu na folha da lança e separou-a em
bocados. Um sussurro maior, de assombro, rolou através do terreiro.
Dei então um passo para o rei, com a carabina na mão.
– Tuala, este tubo mágico que troveja e destrói, é
um presente que te fazemos. Se te mostrares leal conosco, ensinar-te-emos
o segredo de o usar e de vencer com ele. Mas se descobrirmos traição
em ti, esse próprio tubo se voltará contra o teu peito, e serás
como a vaca morta ou como a lança partida. Aqui tens.
E estendi-lhe a arma. Ele tomou-a com desconfiança, com uma seca
antipatia, e pô-la no chão, aos pés, devagar. Nesse instante,
aquela figura estranha que o acompanhara, e que me parecera uma velha macaca,
deu um guincho e surgiu da sombra da cubata real, onde permanecera agachada.
Muito devagar, muito devagar, vinha caminhando nas quatro patas; mas quando
chegou defronte do rei, ergueu-se subitamente, arrojou de si a longa cobertura
de peles que a envolvia, e mostrou, aos nossos olhos atônitos, um vulto
extraordinariamente sinistro e quase fantástico. Era uma mulher, evidentemente,
uma mulher velhíssima, tendo passado todos os limites conhecidos da
vida humana. A face que voltou para nós estava reduzida ao tamanho
de uma facezinha de criança, de uma criança de um ano, toda
em rugas profundas, ressequidas, duras e amarelas, como se fossem entalhadas
em marfim. A boca já se não via, de sumida, entre o queixo saído
para fora e extremamente agudo – e a testa proeminente, lívida, com
duas sobrancelhas ainda espessas e todas brancas. A cabeça, de fato,
pareceria a de um cadáver curtido ao sol, se os olhos grandes não
refulgissem com intenso fogo e vida. Mas a hediondez principal daquele semblante
estava no crânio, todo nu, pelado, liso como uma bola, e a que ela fazia
mover e enrugar a pele, como as cobras contraem e movem o capelo.
Não se podia contemplar aquela criatura sem um arrepio de horror.
Durante um momento, o estranho monstro permaneceu imóvel – depois estendeu
lentamente um braço descarnado, a mão seca de Parca, verdadeira
garra armada de unhas longas e recurvas, e começou, numa voz silvante
que regelava: – Rei Tuala, escuta! Povo, escuta! Montes, rios, céus,
cousas vivas e cousas mortas, escutai! Escutai, escutai, que o espírito
desceu dentro de mim e eu vou profetizar! As sílabas findaram num uivo
longo e triste. Toda a multidão, que enchia a aringa, parecia gelada
de terror. E eu mesmo, que vira tantas vezes na África os esgares e
as declamações das feiticeiras, senti não sei que peso
no coração. A velha era decerto terrífica.
– Som de passos, som de passos que vem! – prosseguiu ela, com a garra trêmula
no ar. – São os passos da gente branca que vem de longe! É a
terra que treme sob os passos dos brancos. Cheiro a sangue, cheiro a sangue!
São rios de sangue que vão correr. Eu já os vejo, já
os sinto. Toda a terra está vermelha, todo o céu fica vermelho!
Os leões lambem sangue por toda a parte! Os abutres batem as asas de
alegria! Parou um momento. Os olhos rebrilhavam-lhe como lumes. Depois soltou
um grito longo, como uma ululação sepulcral.
– Sou velha! Velha! Velha! Tenho visto correr muito sangue. E hei de ver
correr muito ainda, e dançar de gozo! Que idade pensais vós
que eu tenho? Os vossos pais já me conheceram;
e os pais dos vossos pais; e os outros pais que geraram a esses. Tenho visto
muitas cousas, aprendi muitas cousas. Já vi o branco, e sei o desejo
que ele tem no coração.
Quem fez a grande estrada, que desce dos montes? Quem gravou as figuras
nas rochas? Não sabeis. Mas eu sei! Foi um povo branco, que estava
aqui antes de vós virdes, que voltará e vos destruirá,
e ficará aqui quando vós fordes como a nuvem de pó que
passou! E de repente, deu um passo, com os dois braços, as duas garras
recurvas estendidas para nós: – Que vindes aqui fazer, gente branca?
Vindes das estrelas? Das estrelas! Ah, ah! Vindes procurar um como vós?
Não está aqui. E o que veio, há muito, há muito,
veio só para morrer. São as pedras que brilham que vós
procurais? Eu conheço o vil desejo do coração do branco.
Procurai, procurai! Talvez as acheis quando o sangue secar. Mas voltareis
vós às estrelas ou ficareis aqui comigo? Depois, com arremesso
terrível, voltando-se para Umbopa, que as suas garras estendidas pareciam
querer despedaçar: – E tu, tu que tens a pele escura, quem és,
que procuras aqui? Não as pedras que brilham, nem o metal que reluz!
Ah, parece-me bem que te conheço! Oh céus! Oh montes! Serás
tu?… Eu conheço, eu conheço pelo cheiro o sangue que tens
nas veias! Desaperta essa cintura…
Um momento, ficou como esgazeada em face de Umbopa. E subitamente, batendo
os braços no ar, caiu no chão, como morta.
Um bando de raparigas surgiu da cubata, levou nos braços a feiticeira.
Tuala erguera-se sombriamente. Todo ele tremia. Lançou um gesto; e
uns após outros os regimentos começaram a desfilar, até
que todo o pátio ficou vazio e rebrilhando ao sol.
Então Tuala voltou-se para nós, com a face pavorosamente franzida:
– Gente branca! Gagula anunciou males estranhos! Está-me a parecer
que vos devo matar.
Eu sorri, com superioridade.
– Oh rei, tu viste a vaca. Queres tu ser como a vaca? – Oh gentes, vós
ameaçais o rei! – volveu ele, cerrando os punhos.
– Não ameaço. Digo só que tão fácil é
às nossas artes matar uma vaca, como matar um rei. Pensa e treme, Tuala!
O enorme bruto levou os dedos à testa, refletindo. – Ide em paz! –
disse por fim. – Esta noite é a Grande Dança. Vireis e vereis.
Não tenhais medo que eu vos arme ciladas. E amanhã decidirei.
– Está bem, Tuala – gritei eu, com um grande gesto. E acompanhados
por Infandós, recolhemos à nossa aringa. Quando chegamos às
cubatas, depus num escabelo o revólver, e voltando-me para Infandós,
que entrara conosco: – O teu rei Tuala é um monstro, Infandós!
O velho guerreiro teve um suspiro.
– Ai de mim! Toda a nação geme com as suas crueldades, meu
senhor! Vereis esta noite. É a grande caça aos feitiços;
vêm Gagula e as suas farejadoras farejar, adivinhar quem são,
dentre os guerreiros e o povo, os que meditam ou já cometeram feitiços
e malefícios. Se o rei apetece o gado de um vizinho, ou o detesta,
ou teme que ele se lhe torne infiel, Gagula ou uma das farejadoras aponta
para esse homem, e
o homem é logo morto… Quem sabe? Talvez hoje mesmo me chegue a minha
vez. Até aqui Tuala tem-me poupado em respeito à minha experiência
das armas, e porque os soldados me amam. Mas quem sabe? Tuala é cruel,
a terra toda sofre e está cansada dele! – Mas, pela luz das estrelas,
por que não depondes vós ou matais essa fera? Infandós
encolheu os ombros: – É o rei!… E o filho que lhe sucederia, Escraga,
tem ainda o coração mais negro; pesaria sobre nós com
mais furor. Se Imotu não tivesse sido morto, e se Ignosi, o filhinho
dele, não tivesse acabado também no deserto com a mãe,
então havia uma esperança no reino! Mas assim…
De repente (e ainda me parece incrível que eu tivesse assistido a
lance tão romanesco, tão semelhante aos que se lêem nos
contos de grande enredo) – de repente ergueu-se uma voz da sombra da cubata:
– E quem te diz a ti que Ignosi morreu? Todos nos voltamos, espantados. Era
Umbopa.
– Que queres tu dizer? Que tens tu a falar, rapaz? – gritou Infandós
que, como velho chefe de sangue real, detestava familiaridades.
Umbopa deu para nós um passo lento: – Escuta, Infandós. Não
é verdade que o Rei Imotu foi morto, e que a mulher e o filho desapareceram?
Não é verdade que correu então voz de ambos se terem
perdido e morrido nas montanhas? Com um gesto, Infandós concordou.
– Escuta! Nem a mãe nem o filho morreram. Galgaram as montanhas,
atravessaram as grandes areias guiados por uma turba errante, entraram de
novo em terras de relva e água, viajaram durante muitas luas, e foram
ter a um povo dos amazulus que é da raça dos cacuanas. Escuta
ainda! O filho cresceu, a mãe morreu. O filho cresceu, e serviu nas
guerras dos amazulus. Depois foi ao país dos brancos e aprendeu as
artes dos brancos; trabalhou com as suas mãos, meditou dentro do seu
coração; e sabendo que homens fortes vinham para o norte, tomou
serviço com eles, atravessou outra vez as grandes areias, galgou de
novo as serras de neve, pisou terra dos cacuanas – e está na tua presença,
Infandós! E subitamente, arrancando a tanga que o cobria, ficou nu
diante de nós, com os braços abertos, gritando: – Sou Ignosi,
legítimo rei dos cacuanas! Infandós precipitara-se sobre ele,
com os olhos fora das órbitas, a examinar-lhe o ventre onde corria,
numa tatuagem azul, o desenho de uma cobra que lhe dava volta à cinta
e juntava a boca com o rabo, logo abaixo do umbigo. Esta tatuagem é
a marca, o emblema real, que se grava a tinta azul, logo ao nascer, no legítimo
herdeiro do reino. E a evidência lá estava, certamente irrecusável,
porque Infandós caiu sobre os joelhos, bradando: – Krum! Krum! É
o filho de Imotu! É o rei! É o rei! Umbopa acudiu: – Ergue-te,
meu tio Infandós, que ainda não sou rei! Mas com a tua ajuda,
e a destes homens fortes com quem vim, posso ser rei! Dize, pois. Queres pôr
a tua mão na minha e ser o meu homem? Queres correr comigo os perigos
que haja a correr
para derrubar Tuala o usurpador, o coração de fera? Dize. O
velho Infandós pousou dois dedos na testa e pensou. Depois tornou a
ajoelhar diante de Ignosi, pôs a sua larga mão na mão
dele, e murmurou, lentamente, como na fórmula de um cerimonial: – Ignosi,
legítimo rei dos cacuanas, ponho a minha mão na tua mão,
e até morrer sou teu homem! Nós, de pé, em redor, ficáramos
verdadeiramente atônitos! O barão e o Capitão John só
muito vagamente compreendiam o maravilhoso lance. Tive de lhes traduzir, desenrolar
os detalhes. E ambos exalavam o seu assombro em exclamações,
contemplando Umbopa – quando ele nos interpelou, com um gesto que começava
a ser régio: – E vós, homens brancos de quem comi o pão?
Quereis vós ajudar-me também? Nada tenho que vos oferecer em
troco do vosso braço forte. Mas essas pedras brancas que reluzem, e
que vós amais, se, como rei eu as vier a possuir, podereis levá-las
tantas quantas quiserdes… Basta isto? Traduzi de novo aos meus amigos esta
deslumbrante oferta. O barão franziu o sobrolho: – Quartelmar, diga-lhe
que um inglês não se vende por diamantes. Mas de graça,
porque sempre o achei leal, porque gosto dele, e porque me apetece derrubar
esse monstro de Tuala, estou pronto a ajudar Umbopa com o pouco que posso,
que é o meu braço. E tu, John? O capitão encolheu os
ombros: – Que lhe havemos nós de fazer? Além disso, homem que
não briga enferruja. Em todo o caso ponho uma condição:
quero as calças.
Comuniquei estas adesões a Umbopa – que apertou ardentemente as mãos
dos meus dois amigos.
– E tu, Macumazã, mestre da caça, olho vigilante, mais fino
que o búfalo, estarás tu também por mim? Cocei a cabeça,
pensativamente: – Eu te digo, Umbopa, ou Ignosi, ou o que és; eu não
gosto de revoluções… Sou um homem de ordem e demais a mais
um covarde. Escusas de te rir; sei perfeitamente o que digo; sou um covarde.
Por outro lado, tenho por costume ser fiel a quem me foi fiel; e tu, nesta
jornada, andaste sempre como um servo dedicado e bravo. Portanto, às
ordens! Mas há uma cousa. Eu sou um pobre caçador de elefantes
e tenho de ganhar a minha vida. Tu falaste aí nos diamantes. Eu aceito
os diamantes. Se lhe pudermos lançar mão, aceito-os, e quantos
mais e mais graúdos melhor! Não é que eu acredite muito
neles. Mas, se aparecerem, desde já te prometo que, com licença
tua, hei de abarrotar as algibeiras…
– Tantos quantos puderes levar! – exclamou Umbopa radiante. E já
se voltava para Infandós, naquele triunfal entusiasmo de pretendente
a quem as adesões afluem – quando eu o interrompi vivamente: – Alto!
Temos ainda outra, Ignosi. Nós viemos, como tu sabes perfeitamente,
à procura do irmão do Incubu (era a alcunha do barão,
em zulu). Quero que me prometas que hás de fazer tudo o que puderes,
como rei, para nos ajudar a encontrá-lo… Começa por te informar
agora com teu tio Infandós.
Ignosi pousou os olhos em Infandós, com singular majestade:
– Meu tio Infandós, em nome do emblema sagrado que me envolve a cinta,
e como teu rei legítimo, intimo-te a que me digas a verdade. Houve
já algum homem branco que, antes destes, tivesse vindo à terra
dos cacuanas? – Nunca, meu senhor! – E poderia algum ter vindo, sem que tu
o soubesses? – Nenhum poderia ter vindo sem que eu o soubesse.
O barão deu um longo suspiro.
– Bem! Bem! – exclamei logo, para lhe não matar de todo a esperança,
e cortar os tristes pensamentos. – Quando Ignosi for rei, teremos então
mais facilidade de procurar o irmão do Incubu, até aos confins
do reino, e nas terras que estão além! Agora vamos ao que urge.
Que plano tens tu, Ignosi, para recuperar a coroa? Porque enfim, meu rapaz,
é bom ser rei de direito divino, mas…
– Não tenho plano. E tu, meu tio, Infandós? Infandós
pensou um instante, com a barba sobre o peito.
– Esta noite – disse ele por fim – é a caça aos feitiços.
Muitos vão morrer, e em muitos outros mais recrescerá o ódio
contra Tuala. Depois da dança, falarei a alguns dos grandes chefes
que podem dispor de regimentos. É necessário que os chefes te
venham ver, Ignosi, se convençam com seus olhos que és rei.
E se eles puserem as mãos nas tuas, amanhã tens vinte mil lanças
para combater por ti. Porque a guerra é certa. Depois da dança,
se eu viver, se todos vivermos, virei aqui, para combinar na escuridão.
Mas a guerra é certa! Neste momento houve fora do terreiro um brado,
anunciando que se avizinhavam mensageiros do rei. E três homens entraram,
cada um deles trazendo erguida nas mãos uma cota de malha, que rebrilhava
como prata, e uma magnífica acha de batalha.
Um arauto que os precedia exclamou, batendo no chão com o conto da
lança: – Presente de Tuala, o rei, aos homens que vêm das estrelas!
– Agradecemos ao rei – volvi eu secamente. – Ide! Apenas os homens partiram,
examinamos as cotas com grande interesse. Eram maravilhosas, de uma malha
tão fina, tão cerrada, tão elástica e macia, que
uma armadura toda podia caber no côncavo das duas mãos. Perguntei
a Infandós se eram fabricadas no país.
– Não, meu senhor, são cousas que existem há muito,
e que herdamos de pais para filhos. Já muito poucas restam. Só
os de sangue real as podem usar. E o rei que as mandou, é que está
muito contente ou que está muito assustado. Em todo o caso não
há ferro que as atravesse, e bom será, meus senhores, que as
useis esta noite na dança.
Quando Infandós saiu, ficamos conversando neste estranho incidente
– que transformava a nossa pacífica jornada numa aventura política.
Como notou o barão, fora este, decerto, desde a nossa partida do Natal,
um dos dias mais ricos de emoções e surpresas.
– Extraordinário – disse o capitão. – Tem de ser registrado
no Livro de Bordo.
Chamava ele Livro de Bordo a um almanaque do ano, com folhas brancas intercaladas,
onde costumava assentar os episódios notáveis da nossa espantosa
empresa.
– Que dia é hoje? – perguntou ele, sentando-se, com o almanaque sobre
o joelho.
– 3 de julho.
O barão e eu voltáramos a examinar as dádivas de Tuala
– quando, daí a instantes, o capitão exclamou com os olhos no
almanaque: – É curioso! Amanhã, 4 de julho, há um eclipse
total, visível em toda a África! Deve começar às
duas e quarenta minutos…
Bom terror vão ter os pretos! Escassamente demos atenção
àquela notícia; e como o capitão findara de escrever,
preparamo-nos para partir para a grande dança, porque o sol já
descia, e já ia fora um rumor de regimentos passando. Pelo prudente
conselho de Infandós envergamos as cotas de malha, – que achamos confortáveis
e leves. A do barão, homem de forte estatura, vestia-o como uma pelica;
a do capitão e a minha dançavam-nos sobre as costelas, com pregas
pouco marciais.
A lua surgia, magnificamente clara, quando Infandós apareceu, com
todas as suas plumagens e armas de gala, acompanhado de vinte guerreiros,
para nos escoltar a palácio. Afivelamos os revólveres à
cinta, empunhamos as achas de guerra, e largamos – consideravelmente comovidos.
No terreiro, onde estivéramos de manhã, encontramos a mesma
formidável parada de regimentos, perfazendo talvez vinte mil homens
– mas formados de modo que entre cada companhia ficava um carreiro aberto
“para as farejadoras de feiticeiros” (como nos foi explicando
Infandós). Não havia outra luz além da lua, cheia e lustrosa,
que punha longas fieiras de faíscas nos ferros altos das lanças.
Daquela escura massa de homens, do luar, do silêncio, saía uma
indefinível impressão de majestade e tristeza.
– Está aqui todo o exército – murmurei eu para Infandós.
– Um terço, não mais, meu senhor. Outro terço ficou
nas guarnições. E o outro está fora, em torno a palácio,
para o caso de sedição, quando começar a matança…
– Escuta, Infandós! Achas que corremos perigo? – Não sei;
espero que não… Mas não mostreis medo! E se escaparmos com
vida esta noite – quem sabe? Talvez amanhã Tuala seja como o raio que
feriu e se apagou.
Íamos no entanto caminhando, através dos regimentos mais imóveis
que bronzes, para o espaço vazio diante da cubata real, onde havia,
como de manhã, uma fila de escabelos de honra. E ao mesmo tempo outro
grupo, com um brilho e ruído de armas, saía da aringa real.
– É Tuala – disse baixo Infandós – e Escraga, e Gagula e os
homens que matam.
Os “homens que matavam” eram uns doze negros gigantescos, de
faces hediondas, com plumagens vermelhas, armados de facalhões e de
azagaias pesadas.
– Bem-vindos, gentes das estrelas! – gritou logo Tuala, abatendo-se pesadamente
sobre um escabelo. – Sentai, sentai! E não percamos o tempo, que a
noite é curta para as grandes cousas que têm de ser feitas. Olhai
em roda, e dizei-me se nas estrelas tivestes jamais tantos valentes juntos…
Mas vede também como eles já tremem, os que abrigam maldade
no seu coração! – Começai! Começai! – ganiu na
sua silvante voz Gagula, que se agachara aos pés do rei. – As hienas
têm fome de ossos, os abutres têm sede de sangue… Começai!
Começai! Houve durante momentos
um silêncio lúgubre, que pesava horrivelmente, como um prenúncio
de matança e de horror. O rei então agitou a lança. Imediatamente
vinte mil pés se ergueram, e três vezes, em cadência, bateram
no chão que tremia. Depois, lá ao fundo, dentre as densas e
escuras filas de homens, subiu ao ar um canto solitário, arrastado,
plangente, infinitamente triste, findando neste estribilho: – Qual é
a sorte, sobre a terra, De quem teve de nascer? E os regimentos todos volviam,
numa única, grande e rolante voz: – Morrer! Mas pouco a pouco, as companhias,
umas após outras, foram entoando uma estrofe da canção,
até que toda a vasta multidão armada formava um coro – coro
bárbaro, rude, informe, onde todavia, por vezes, distinguíamos
como conscientes expressões de sentimentos – notas suaves e lentas
de amor, brados triunfais de guerra, cânticos solenes de oração.
Depois os cantos vários fundiam-se num lamento único, contínuo,
ululado, como de um povo num funeral. De repente tudo estacava. E de novo
o lúgubre estribilho gemia no ar: – Qual é a sorte, sobre a
terra, De quem teve de nascer? E de novo à multidão clamava,
num uníssimo desolado: – Morrer! O canto por fim findou, um sombrio
silêncio caiu, o rei levantou as mãos. Imediatamente, sentimos
como o trote ligeiro de pés de gazelas; e, dentre os profundos renques
dos soldados, apareceram correndo para nós estranhas e medonhas figuras.
Percebi que eram mulheres, quase todas velhas, pelos longos cabelos brancos
e soltos que lhes batiam às costas. Traziam as faces pintadas às
listas brancas e vermelhas; dos ombros pendiam-lhes esvoaçando, e misturadas
às madeixas, longas peles de serpente; em torno à cinta caíam-lhe
como berloques de ossos humanos, que chocalhavam sinistramente; e cada uma
brandia na mão uma curta forquilha.
Ao chegarem em frente a Gagula pararam, ferindo o chão com as forquilhas.
E uma, a mais alta, alargou os braços, gritou: – Mãe, aqui estamos!
– Bem, bem – ganiu o decrépito monstro. – Tendes hoje os olhos bem
claros, Isanusis? – Bem claros, oh mãe! – Tendes hoje os ouvidos bem
abertos, Isanusis? – Bem abertos, oh mãe! – Ide então! Farejai,
farejai! Entre esses todos descobri os que querem mal ao seu vizinho, os que
possuem o gado indevido, os que tramam contra o rei, os que devem morrer por
ordem de “cima”! Farejai! Vede os pensamentos que se não
mostram, ouvi as palavras que se não dizem! Ide, meus lindos abutres!
Os homens das estrelas têm fome e sede de ver a grande Justiça!
Agora! Com uivos horrendos, as sinistras criaturas dispersaram correndo, para
todos os lados, através das fileiras armadas. Não as podíamos
seguir a todas, na sua obra mortal. De sorte que, por mim, cravei a atenção
na que ficou junto de nós, uma velha, esgalgado feixe de ossos, que
deitava lume pelos olhos. Quando esta harpia chegou em frente aos soldados,
parou farejando. Depois rompeu a dançar, girando sobre si mesma, tão
rapidamente, que as longas grenhas soltas pareciam uma estrela feita de estrigas
de linho a redemoinhar
pelo ar. No entanto ia gritando por entre silvos de alegria: – “Já
o farejo, o homem do mal! Ali está ele, o que envenenou a mãe!
Acolá treme o que pensou mal do rei!” E, cada vez mais vertiginosamente,
vinha girando, girando, até que a espuma lhe saía aos flocos
da boca e os ossos lhe rangiam alto! De repente, estacou, hirta, tesa, como
petrificada. Depois, devagar, devagar, como uma fera que rasteja, avançou
de forquilha estendida para a fileira de soldados, que visivelmente se encolhiam
num indominável terror. Parou ainda, outra vez tesa e hirta. Por fim,
com um brado estridente, arremeteu, e bateu com a forquilha no peito de um
rapaz soberbamente forte.
Dois camaradas imediatamente o agarraram pelos braços, o empurraram
para defronte do rei. O desgraçado caminhava sem resistência,
inerte, já morto na alma. O bando dos executores avançara a
passos graves: – Mata! – disse o rei.
– Mata! – ganiu Gagula.
– Mata! – rugiu Escraga.
E antes que as palavras se perdessem no ar, o miserável tombara morto,
com uma azagaia cravada no peito, o crânio aberto por uma pancada de
clava.
– Um – contou Tuala, sorrindo com satisfação.
Mal findara o feito horrível, já outro soldado era arrastado
como uma rês, – um chefe decerto, esse, porque lhe pendia dos ombros
a capa de pele de leopardo. Dois golpes de facalhão, vibrados com destreza,
bastaram para o acabar sem um suspiro.
– Dois ! – contou o rei.
E assim até cem! Até cem! – E nós ali, aterrados, imóveis,
impotentes para suster a carnificina, maldizendo surdamente a nossa impotência!
Eu findara por fechar os olhos. À meia noite, enfim, houve uma suspensão.
As farejadoras, esfalfadas, em grupo defronte do rei, limpavam lentamente
o suor. Respirei, num infinito alivio, supondo que findara todo este incomparável
horror. Mas de repente, com desagradável surpresa, descobrimos Gagula,
erguida, apoiada num cajado, dando alguns passos que tremiam e lhe sacudiam
o crânio calvo de abutre. Cousa pavorosa, ver o velhíssimo monstro,
ordinariamente vergado em dois pela decrepitude, ganhando alento, remoçando
quase, já direito, já vibrante, à medida que se acercava
da fileira dos homens, a recomeçar por gosto próprio a obra
sinistra das “farejadoras”! Mas nela o estilo era diferente. Não
dançava, não uivava. Dando umas corridinhas curtas, aqui e além,
cantava baixinho e tristemente, como para se embalar. Assim trotou, assim
cantarolou, até que, de repente, se precipitou sobre um magnífico
velho, perfilado em frente a um regimento – e tocou-o silenciosamente com
o cajado. Um murmúrio de dor, de contida indignação,
correu entre os soldados que ele evidentemente comandava. Todavia dois deles,
empolgando-lhe os pulsos, arrastaram-no como um boi para o açougue.
Soubemos depois que era um chefe de grande riqueza e de grande influência,
primo do rei. Foi trucidado com azagaia, facalhão e clava – e Tuala
contou cento e um! Quase imediatamente Gagula, depois de alguns sapinhos curtos
de macaca, começou a avançar para nós, num movimento
muito lento de valsa, que era medonho na repulsiva bruxa.
– Justos céus! – murmurou o Capitão John – querem ver que,
agora, é conosco!
– Tolice! – acudiu o barão, pálido todavia.
Eu por mim senti um suor frio na espinha. E Gagula, cada vez mais perto,
– com os olhos a saltar-lhe do crânio, um fio de baba na boca.
Por fim estacou, como um perdigueiro que avista a caça.
– Qual será? – murmurou o barão.
Como se lhe respondesse, a velha deu um pulo, e tocou Umbopa (ou Ignosi)
sobre o ombro: – Morte! – gritava ela. – Morte! Cheiro-lhe o sangue! Está
cheio de malefício e de traição. Mata-o depressa, oh
rei, mata-o depressa antes que por ele gema em desgraça o reino!…
Houve um silêncio, um pasmo. E nem sei como (porque sou realmente um
covarde), achei-me diante de Tuala, falando com soberana firmeza: – Este homem,
oh rei, é o servo dos teus hóspedes, e quem deseja o seu sangue
é como se desejasse o nosso! Pela lei de hospitalidade, que cumpre
aos reis manter, exijo a tua proteção para ele! Tuala franziu
o sobrolho: – Gagula, mãe das Isanusis, sabedora das artes, cheiro-lhe
a traição dentro das veias. O homem tem de morrer, oh brancos!
– Quem lhe tocar – exclamei, batendo furiosamente com o pé no chão
– é que tem de morrer! – Agarrem-no! – bradou Tuala aos carrascos que
esperavam em roda, já todos manchados de sangue.
Dois brutos romperam para nós – mas hesitaram. Ignosi erguera a azagaia,
decidido a morrer combatendo.
– Pra trás, cães! – berrei eu, num tom tremendo. – Tocai num
só cabelo do homem, e vós mesmos, e a vossa feiticeira, e o
vosso rei, não vereis mais a luz do dia! E bruscamente apontei o revólver
a Tuala. O barão tinha já o seu erguido contra um dos carrascos;
e John marchara sobre Gagula.
Houve um instante de indizível assombro.
– Decide depressa, Tuala! – gritei, tocando-lhe quase a testa com o cano
do revólver.
O monstro, visivelmente enfurecido falou: – Tirai para lá os vossos
canos mágicos! Invocastes as leis da hospitalidade, e só por
amor delas, não por medo de vós, poupo a vida a esse cão…
Ide em paz.
– Está bem, Tuala! E lembra-te sempre que contra os homens das estrelas,
nada podem os homens da terra! O rei, ainda trêmulo de furor impotente,
ergueu a lança. Os regimentos começaram logo a desfilar.
Daí a pouco estávamos na nossa aringa – conversando á
luz de uma das curiosas lâmpadas que usam os cacuanas, em que o pavio
é feito de fibra de palmeira, e o azeite de toucinho de hipopótamo.
E o que afirmávamos todos com convicção, com ardor, era
a necessidade e a justiça urgente de ajudar a conspiração
de Umbopa contra um vilão como Tuala!
Capítulo VIII – A Grande Dança
Já muito tarde, quase de madrugada, Infandós apareceu, como
prometera, com os chefes seus amigos, todos homens de porte marcial e decididos.
A conferência foi longa e curiosa. Ignosi, convidado a expor a sua romântica
história e os seus direitos ao reino dos cacuanas, começou por
tirar a tanga em silêncio e mostrar o emblema sagrado, a grande serpente
tatuada na cinta. Cada chefe, um a um, tomava a lâmpada, e, agachado,
examinava o sinal com respeito; depois, em silêncio, passava a lâmpada
a outro.
Em seguida Ignosi, reatando a tanga, contou a sua vida estranha, desde a
fuga com a mãe através do deserto. Os chefes permaneceram calados.
Infandós, por seu turno, recordou os longos crimes de Tuala, retraçou
as matanças dessa noite de festa em que dois guerreiros valentes, de
casas ilustres, tinham sido trucidados, só por possuírem grandes
rebanhos que Escraga apetecia. Por fim, fez um grande apelo à razão
e ao coração dos chefes, que só tinham a escolher entre
o monstro que, por avidez e capricho, lhes arrancava a vida, ou o homem que
lhes garantia a existência feliz nas suas senzalas e a posse tranqüila
dos seus gados. Mas, com espanto nosso, os chefes pareciam hesitantes e desconfiados.
Finalmente, um deles, homenzarrão possante, de carapinha branca,
deu um passo, e declarou que a terra na verdade gemia sob a crueldade de Tuala,
e que seu próprio irmão nessa noite estava sendo pasto das hienas…
– Mas aquele era um singular e confuso caso! E quem lhes afiançava
que eles não ergueriam as suas lanças por um impostor? A guerra
era certa. Muitos ficariam fiéis a Tuala, porque mais se adora o sol
que brilha, que o sol que ainda não nasceu. Necessitavam, pois, uma
evidência. E quem melhor lha poderia dar que os homens das estrelas,
senhores das grandes artes mágicas, que tinham trazido Ignosi ao país,
e sabiam decerto os segredos? – Se ele é o herdeiro legítimo,
os homens que o trouxeram das estrelas, que o provem, fazendo um grande milagre.
Só assim o povo acreditará e tomará armas por ele! –
Mas a cobra, o emblema sagrado! – exclamei eu.
– Não basta. A cobra podia ser pintada no ventre já depois
de ele ser homem… Necessitamos de um milagre! O povo não se move,
nem nós mesmos, sem um milagre! Um milagre! A situação
era terrível e grotesca. Exigir-se um milagre a três honestos
e ingênuos mortais, que nem sequer sabiam, como qualquer prestidigitador
de feira, escamotear uma noz dentro da manga! E terem os honestos mortais
de fazer o milagre – ou de perder a vida!… Voltei-me para os meus companheiros,
a explicar rapidamente o risível e perigoso lance.
– Parece-me que se pode arranjar – disse John, depois de um curto silêncio.
– Peça a estes amigos que nos deixem sós, Quartelmar.
Abri a porta da cubata, os chefes saíram. E apenas os passos morreram
na sombra:
– Temos o eclipse! – exclamou o nosso admirável John. Era o eclipse
que ele descobrira na véspera, folheando o almanaque (o Livro de Bordo),
e que nesse dia, às duas e quarenta minutos, devia ser visível
em toda a África.
– Aí está o milagre! – afirmava John. – É anunciar
aos chefes que, para lhes provar que Ignosi é o rei, e que devem pegar
em armas por ele, nós faremos desaparecer o sol! A idéia era
esplêndida. O único receio é que o almanaque estivesse
errado.
– Não! É um almanaque marítimo; não pode estar
errado. Os eclipses são calculados matematicamente. Não há
nada mais pontual que um eclipse… Durante meia hora, três quartos
de hora talvez, esta região toda ficará em treva.
– Eu, por mim – disse o barão – parece-me que devemos arriscar o
eclipse.
– Vá pelo eclipse! Mandamos Umbopa buscar os chefes. Quando voltaram,
cerrei a porta da cubata com um sombrio aparato de mistério, e comecei
por lhes declarar, majestosamente, que nós, os homens das estrelas,
não gostávamos de alterar o curso natural das cousas e mergulhar
o mundo em terror e confusão… Mas, como se tratava de uma grande
e santa causa, estávamos decididos a fazer um milagre.
– Escutai! Julgais vós que um homem pode soprar sobre o sol, e apagá-lo?
Os chefes olharam para mim, recuando com assombro.
– Não – murmurou um deles – não há homem que o possa
fazer! O sol é mais forte que toda a terra! – Perfeitamente – concluí
eu. – Pois amanhã, depois do meio dia, nós, homens das estrelas,
apagaremos o sol durante uma hora, espalharemos trevas sobre a terra, e será
o sinal de que Ignosi é o verdadeiro rei dos cacuanas e que o povo
deve tomar armas por ele. Será bastante este milagre? O chefe da carapinha
branca abriu os braços para nós, esgazeado: – Ó gentes
das estrelas, senhores das grandes artes, esse milagre será mais que
bastante! – Bem. Tereis o milagre. Agora Infandós, que é experiente,
diga o momento em que mais convém que nós apaguemos o sol.
– Apagar o sol! – murmuravam os chefes entre si. – A grande lâmpada!
O pai de tudo, que brilha eternamente! – Fala, Infandós! – Meu senhor,
é na verdade um milagre espantoso que vós prometeis! Mas enfim…
O melhor momento é o da Dança das Flores, que há de logo
começar ao meio-dia. As mais lindas raparigas de Lu estão lá,
para dançar. E aquela que Tuala achar mais linda de todas é,
segundo o costume, morta por Escraga em sacrifício aos Silenciosos,
as figuras de pedra que estão além na montanha vigiando. Que
os meus senhores nesse momento apaguem o sol, salvem a rapariga, e o povo
acreditará! – O povo na verdade acreditará! – exclamam todos
os chefes.
– A duas milhas de Lu – continuou Infandós – há uma colina
em forma de meia lua, que é realmente uma fortaleza, onde estão
aquartelados o meu regimento e três outros que estes chefes comandam.
Mas podemos arranjar de modo que, ainda esta manhã cedo, marchem para
lá três ou quatro regimentos dos mais fiéis à minha
vontade. E se os meus senhores apagarem com efeito o sol, eu poderei, a favor
da
escuridão, fazê-los sair do terreiro real e da cidade, e levá-los
para essa fortaleza, onde ficarão a salvo e de onde começaremos
a guerra contra o rei.
– Está entendido – resumi eu. – Agora ide, que queremos dormir e
depois combinar com os espíritos! Com longas reverências, Infandós
e os chefes deixaram a nossa aringa. O sol ia nado.
– Oh meus amigos – exclamou Ignosi, apenas eles partiram. – É
certo que podeis fazer esse milagre, ou estáveis vós ganhando
tempo e soltando no ar palavras vãs? – Parece que não nos há
de ser difícil, meu Umbopa, quero dizer, meu Ignosi – declarei eu sorrindo.
– É espantoso! Apagar o sol… E, todavia, sois ingleses e o inglês
tudo pode! Mas ah, se vós fizerdes isso por mim, o que não farei
eu por vós? – Uma cousa já tu nos podes prometer, Ignosi! –
acudiu gravemente o barão. – É, se chegares a ser rei com o
nosso auxílio, acabar com as “farejadeiras de feitiços”,
com matanças como as desta noite, e não consentir que homem
algum seja condenado sem provas de crime, e sem ter sido julgado pelos doze
mais velhos do lugar.
Era o júri, santíssimo Deus! Era a nobre instituição
do júri, que este digno barão queria implantar no centro selvagem
da África! Não há senão um liberal inglês,
para estas esplêndidas imposições de civilização
e de ordem. Com razão hesitou o astuto Ignosi! Com razão conservou
longo tempo dois dedos sobre a testa, calculando. Por fim, num rasgo de generosidade
ou de condescendência: – Os costumes dos pretos não se podem
moldar pelos costumes dos brancos. Contudo, uma cousa te prometo, Incubu!
É que não haverá no meu reino, nem matanças de
festa, nem execuções sem julgamento. Está contente? O
barão apertou-lhe a mão em silêncio.
Daí a pouco estávamos estendidos nos leitos de folhas secas,
e profundamente dormimos, até que Ignosi nos acordou às onze
horas. O nosso primeiro cuidado foi instintivamente correr fora da cubata,
olhar para o sol. Nunca esse divino astro me pareceu tão brilhante
e tão seguro da sua luz. Nem um sinal de eclipse! Uma radiância
firme, absoluta, que nenhum movimento dos corpos celestes parecia poder alterar!
– Pois, meu digno astro – murmurei eu, ousando interpelar diretamente a fonte
de toda a vida – se continuas assim, todo o dia, acabas, sem querer, com três
honrados homens! Depois de almoçar, um sólido e valente almoço
que nos amparasse na crise iminente, revestimos as cotas de malha, afivelamos
os cinturões de cartuchame, e de outros modos nos apetrechamos para
a grande dança. E ao meio-dia para lá voltamos os passos – que
a inquietação interior e a certeza do perigo, não permitiam
que fossem nem bem alegres nem bem ligeiros! O terreiro real oferecia, nessa
manhã, um aspecto bem diverso – e onde na véspera reinara o
horror, transbordava agora a graça. Em lugar de fuscos e duros guerreiros,
todo o espaço estava ocupado por longas filas de raparigas cacuanas,
escuras também, é verdade, mas lindas, pelas formas, a expressão,
a viçosa mocidade. Toilette, não tinham nenhuma – nem mesmo
o pano, a tanga da África civilizada; mas
salvavam esta encantadora deficiência pelo franco luxo das flores. Todas
traziam na cabeça uma coroa de flores; grinaldas de flores, grandes
como festões, envolviam-lhes a cinta; e cada uma segurava nas mãos
uma palma verde e um lírio branco. Nos escabelos de honra já
estava o rei – acompanhado por Infandós, Escraga, guardas emplumados
e a sinistra Gagula. Reconhecemos também, de pé, por trás
dele, alguns dos chefes que nessa noite tinham conosco conspirado.
Tuala acolheu-nos com muita cordialidade ostensiva – dardejando ao mesmo
tempo sobre Umbopa um olhar sangrento e mau.
– Bem-vindos, homens das estrelas, bem-vindos! Vedes hoje aqui cousas diversas;
mas não tão belas, não tão belas! Beijos e festas
de mulheres são doces; mas é mais doce o brilho das lanças
e o cheiro do sangue. Olhai em redor, gentes das estrelas; e se quiserdes
casar nesta terra, escolhei, escolhei… Podeis levar destas raparigas as
melhores, e tantas quantas pedirem os vossos desejos.
O nosso John, extremamente sensível e amoroso como todos os marinheiros,
deu logo um passo, teve um sorriso, como se preparasse a aceitar e a recrutar
ali, para ocupar o seu coração na terra dos cacuanas, um serralhozinho
de donzelas escuras. Mas eu, homem idoso e experiente, receando as complicações
do eterno feminino, apressei-me a recusar: – Não, Tuala, obrigado!
Os homens brancos, que vêm das estrelas, só se ligam às
mulheres brancas que estão nas estrelas…
Tuala riu: – Está bem, está bem… Nós temos um provérbio
cacuana que diz: “Aproveita a que está perto, porque com certeza
a que está longe te engana!” Mas talvez seja doutro modo nas
estrelas… Sede pois bem-vindos, e comece a dança! Um grande tantã
ressoou, acompanhado por finas flautas decana em que três mocinhos sopravam
agachados no chão. As fileiras de raparigas avançaram, cantando
um canto muito lento e doce, – e fazendo ondular nas mãos as palmas
e os lírios. Era um grande bailado bárbaro, infinitamente pitoresco.
As raparigas ora saltavam brandamente sobre as pontas dos pés, numa
graciosa languidez de gestos; ora, enlaçadas aos pares, redemoinhavam
vivamente; ora, fileira contra fileira, simulavam uma batalha, tendo por armas
os ramos de palma; ora, ajoelhando em reverência, ofertavam os lírios
ao rei. Depois eram grandes marchas bem ordenadas em que o canto tomava um
tom triunfal; e logo uma alegre confusão, numa grulhada melodiosa,
com um vivo saltar de corpos ágeis – que espalhava pelo ar as pétalas
das flores desfolhadas. Por fim o bailado parou; e uma esplêndida rapariga,
de olhos radiantes, mais airosa que uma Diana caçadora, avançou
devagar, e rompeu numa dança estranha, cheia de graça e de brilho,
em que os movimentos tudo traduziam, desde os requebros fugidios da noiva
tímida, até os pulos bravos da corça ciosa… Assim dançou
longamente; os seus olhos cada vez mais rebrilhavam; a grinalda que lhe envolvia
a cinta desfizera-se flor a flor; e todo o corpo adorável lhe reluzia
ao sol, como um bronze umedecido. Por fim, cansada, sorrindo, recuou até
ao grupo das bailadeiras onde ficou de olhos baixos, a refrescar-se com o
seu ramo de lírios. Veio então outra, muito alta, dançar;
e outra depois, e muitas ainda, todas belas e hábeis; mas nenhuma como
a Diana caçadora tinha beleza, graça e consumada arte.
O rei ergueu a mão, e o tantã cessou.
– Gentes das estrelas – disse ele – qual delas achais mais linda? – A primeira
– respondi eu irrefletidamente.
E logo me arrependi, lembrando o que anunciara Infandós – que a mais
linda tinha de perecer, sacrificada aos ídolos. Ao mesmo tempo deitei
um olhar ao sol, que continuava a refulgir com uma teima desesperada.
Tuala, no entanto, sorria: – Os vossos olhos, gentes das estrelas, vêem
então como os meus. A primeira é a mais bonita. E mau é
para ela, que tem de morrer! – Tem de morrer! – ecoou Gagula que parecera
dormitar durante a festa, e acordava, já interessada, desde que pressentia
sangue e dor.
– Morrer! – exclamei eu, sorrindo também, como se não acreditasse.
– Por que, oh rei? Ela dançou bem; a todos agradou. Além disso,
é moça e linda. Seria cruel e estranho recompensá-la
com a morte.
A fera afetou uma simpatia, que, nele, arrepiava: – Também o lamento,
mas é o costume do meu reinado. Os Silenciosos, que estão além
na montanha vigiando, precisam receber o seu tributo. Há uma profecia
do nosso povo que diz: “O rei, que no dia da grande dança não
sacrificar aos Silenciosos a mais linda das donzelas, perecerá, e com
ele a sua casa”. Por não ter cumprido a ordem de “cima”
caiu meu irmão e em seu lugar reino eu… Ide (voltando-se para os
guardas), trazei a virgem! E tu, meu Escraga, aguça a lança!
Dois da guarda real marcharam para a pobre e doce rapariga, que desfolhava
nervosamente as pétalas do seu lírio branco. De repente, e só
então, ela pareceu compreender a fatalidade que a perdia, por ser formosa
e pura. Deu um grito, tentou fugir. Duas mãos fortes agarraram-na e
trouxeram-na, toda em lágrimas e debatendo-se, para diante de Tuala.
– Que nome é o teu, linda moça? – ganiu a horrível
Gagula. – Não respondes? Queres que o filho do rei tenha de erguer
a lança, sem saber quem tu sejas? A isto, Escraga deu um salto com
sofreguidão, alçando a sua imensa azagaia. Vendo o ferro luzir,
a pobre rapariga cessou toda a luta entre as mãos fortes dos guardas.
E com grandes lágrimas que lhe caíam, ficou toda, toda a tremer.
O medonho Escraga teve uma risada bestial: – Como ela treme, como ela treme
diante da minha força! – Ah canalha, se te apanho a jeito! – rosnou
o capitão, apertando na mão o revólver. No entanto Gagula,
com atroz zombaria, animava a desgraçada: – Sossega! Dize o teu nome.
Vem, filha! Não temas! – Oh mãe! – balbuciou a pobre criatura
entre soluços, numa voz que desfalecia. – Oh mãe! O meu nome
é Fulata, e sou da casa de Suco. Mas por que hei de eu morrer, eu que
não fiz mal nenhum? – Tens de morrer – prosseguiu a hedionda velha
– para contentar os que vigiam além na montanha. Mais vale dormir
de noite que trabalhar de dia. Mais vale estar quieta e morta, que agitada
e viva. E tu, filha ditosa da casa de Suco, vais morrer às mãos
reais do filho do nosso rei. Olhei ansiosamente para o sol. Nada! Um brilho
impassível, que achei quase cruel! No entanto a pobre Fulata, apertando
desesperadamente as mãos, suplicava, com gritos de angústia:
– Oh mãe, oh rei, não me deixeis morrer!… E eu tão
nova! Pois nunca mais hei de ver a aringa de meu pai? Nem embalar meus irmãos
pequeninos? Nem cuidar dos cordeiros doentes? E por quê? Mandaram-me
aqui para dançar e eu dancei! O meu noivo está lá fora
à minha espera! Minha mãe ficou sentada debaixo das machabeles
até que eu volte para mungir as vacas… E por que herde eu morrer?
Nunca fiz mal nenhum; e no terreiro da nossa casa deixava sempre cair grãos
de aveia, para os pássaros levarem aos ninhos…
Nas próprias faces dos guardas e dos chefes, perfilados junto a Tuala,
se espalhava um ar de piedade. Muitas raparigas soluçavam baixo. E
subitamente, o Capitão John, sem se poder conter mais, arrancou o revólver
da cinta e fez um movimento tão saliente, de tão clara intervenção
– que a rapariga viu; num relance compreendeu… Desprendendo-se dos guardas,
que a seguravam frouxamente, veio arrojar-se aos pés de John, abraçando-lhe
as pernas nuas: – Oh pai branco, que vens das estrelas! – gritava ela. –
Deixa acolher-me à sombra da tua força… Salva-me destes homens,
e de Gagula, a mãe que é tão cruel… Torneia olhar para
o sol… E com um alivio, uma alegria tão intensa que ainda hoje o
recordá-la me aquece o coração, vi uma linha de sombra,
muito fina ainda, surgindo à orla do disco radiante! – O eclipse! –
gritei eu para os outros. – John, conserve aí a rapariga atrás!
E armas na mão, rapazes! Imediatamente, avancei para o rei: – Tuala
– exclamei com firmeza e arrogância. – Nós, gentes das estrelas,
não podemos consentir nesta maldade! Tal não será! Deixa
que a rapariga volte para a sua morada! Tuala ergueu-se com um pulo brusco
de surpresa e de cólera. E dos chefes, das agitadas filas de mulheres,
subiu um murmúrio que era de assombro, e talvez de esperança.
– Não consentis! – bramiu o rei, com o olho sangrento dardejando
lume. – E quem és tu, perro branco, para vir latir contra o leão
na sua caverna? Tal não será! E como o podes tu impedir? Vai
talvez a tua vontade prevalecer contra a minha força? Escraga, mata
a criatura! E vós guardas, olá, agarrai esses homens! Uma multidão
de soldados surgiu, correndo, detrás da aringa real. O barão,
Umbopa e o capitão (com Fulata agarrada a ele) vieram pôr-se
ao meu lado, de carabinas apontadas. Outro olhar meu ao sol! A linha de sombra,
lenta e gradualmente, avançava sobre o globo rutilante. Com esplêndida
confiança, ergui a mão, bradei: – Parai! Nós, os filhos
das estrelas, decidimos que a rapariga não morrerá! E se alguém
ousar ir contra a nossa vontade, ou avançar contra nós um passo,
nós, os mágicos das grandes artes, apagaremos o sol e mergulharemos
o mundo em trevas! O efeito foi tremendo. Os soldados estacaram. E Escraga
ficou diante de nós, com a lança erguida no ar, como uma figura
de pedra. Mas Gagula erguera-se, sacudindo os braços com furor: – Ouvi,
ouvi o grande mentiroso, que diz que apaga o sol como um lume da terra! Pois
que o faça, e a rapariga irá livre para a sua morada! Mas se
o não fizer, oh rei, que ele morra com ela, e com ele morram os cães
malditos que vêm latir contra ti! Sem mais, ergui a mão solenemente
para o sol (movimento que logo imitaram John e o barão) e rompi a bradar.
Não me lembro já das cousas absurdas que
tumultuosamente atirei ao divino astro. Recitei-lhe versos de Shakespeare,
pedaços da Bíblia, provérbios, datas, nomes de firmas
comerciais que me acudiram, as ruas da cidade do Cabo, – que sei eu? Tudo
o que me afluía aos lábios, e que fosse em inglês, na
língua mágica. Ousei mesmo espantosas familiaridades com o respeitável
centro do sistema planetário. Gritava: “Anda-me assim, sozinho
da minha alma! Pra diante, valente! Deixa avançar essa rica sombra!
Ah que estás um catita, meu astro! Mais, mais!…” E o sol obedecia!
A mancha escura, nítida e convexa, avançava, comia a luz imortal.
Um grande sussurro de terror agitava a multidão. Volvi então
a falar cacuana, livremente: – Vê tu, oh rei! Vê tu, Gagula! Vede
vós, oh chefes! Mentem então os homens das estrelas? Quisestes
a treva eterna, ei-la que vos vem tragar!… Oh sol, pai de tudo, reluzente
e triunfante, retira a luz, some-te à nossa ordem, mata o mundo com
a escuridão e frio, e que, sem ti, parem para sempre estes corações
cruéis!… O sol vai morrer! Gritos de terror ressoavam já no
terreiro. As mulheres, caídas de joelhos, choravam, implorando misericórdia.
E o rei, calado, tremia.
Só Gagula resistia ao pavor: – Vai passar, vai passar! – uivava ela.
– Eu já vi o sol assim. Ninguém o pode apagar. Ficai quietos!
Sossegai! A sombra vem e vai… Eu já vi, eu que sou a mais velha,
e conheço os segredos! Eu por mim animava os companheiros: – Vá,
rapazes! Já não sei que hei de dizer ao sol. Veja se se lembra
de alguns versos, barão. Tudo serve, até pragas! E John, admirável
marinheiro, rompeu então a praguejar. Foi sublime. Teve todas as pragas
clássicas, – e teve-as inéditas. Nem eu supunha mesmo que a
Humanidade possuísse, no seu vocabulário, uma tal riqueza de
blasfêmias! O que o Rei do Dia ouviu! No entanto a mancha negra alastrava.
Estranhas, sinistras sombras flutuavam no ar. Uma triste quietação
descia sobre a terra. Todos os pássaros se tinham calado. Ao longe
os cães uivavam.
E a mancha crescia, crescia… A atmosfera tornara-se espessa. Já
mal distinguíamos as faces cruéis da gente real. Esmagadas de
temor, as mulheres nem tugiam. Por fim John parou a torrente de invectivas.
E o que restava do sol parecia uma luz agonizante.
– O sol morreu! – berrou de repente Escraga. – Os bruxos das estrelas mataram
o sol! Tudo vai morrer nas trevas!… E fosse o delírio do medo ou
da raiva, ergueu a azagaia, arremessou-a a toda a força contra o peito
do barão. Mas a cota de malha repeliu o ferro. E antes que ele pudesse
revibrar o golpe, o barão arrancara-lhe a lança das mãos
e passou-lha através do coração. Com um uivo hediondo,
Escraga tombou morto.
Quase nada restava da luz. Era como se tudo acabasse conjuntamente, o sol,
o mundo, e a descendência do rei! Num terror indizível, a multidão
de raparigas largou fugindo, em confusão e gritos, para as portas da
aringa. Foi um pânico estonteado. Os guardas, arrojando as armas, galgavam
as estacadas. Os chefes, aos saltos por cima dos escabelos, desapareciam como
lebres. E por fim, o próprio e ferocíssimo rei, com Gagula atrás,
arremeteram para as cubatas, ganindo num pavor vil. Uma debandada –
que nos deixou sós, eu, os amigos, a pobre Fulata ainda agarrada a
John, Infandós, os chefes que conspiravam, e o cadáver de Escraga.
– Chefes! – gritei eu. – Eis o milagre que tínhamos prometido. Sabei
agora que Ignosi é o rei único e forte. O feitiço está
trabalhando. Corramos para a cidadela que dissestes, enquanto a treva dura!
– Vinde! – exclamou Infandós, segurando-me pela mão. – E vós
todos segui! O dia é nosso! Ao chegarmos à porta da aringa,
a luz findou inteiramente. Agarrados uns aos outros pelas mãos, com
Fulata no meio, fomos tropeçando através da escuridão.
Dentro das senzalas ouvíamos gemidos de terror. E para o aumentar,
lançávamos a espaços, através da treva, um lúgubre
brado de revolta e de guerra: – Morte a Tuala!
Capítulo IX – Antes da batalha
Durante mais de uma hora caminhamos, através da escuridão,
guiados por Infandós e pelos chefes – até que de novo surgiu,
como um fino traço luminoso, a orla do sol. Daí a pouco havia
já luz suficiente; e achamo-nos então longe de Lu, junto de
uma larga colina, de duas fartas milhas de circunferência, em forma
de ferradura, e toda ela inteiramente plana no topo. Desde, tempos imemoriais,
aquele planalto fora (segundo nos disse Infandós) aproveitado como
acampamento permanente, e ordinariamente ocupado por uma guarnição
de três mil homens. Nessa manhã, porém, à maneira
que íamos trepando os flancos da colina, à luz já viva
e quente do sol, descobríamos sucessivos regimentos, formando uma divisão
de dezoito ou vinte mil homens, quase todos veteranos. Estavam ainda sob o
espanto e terror da misteriosa treva, que de repente os envolvera. E foi em
silêncio que passamos através das suas filas cerradas, em direção
a um grupo de cabanas, que se erguia a meio do planalto. Com surpresa e grande
alegria encontramos lá dois servos, à espera, carregados com
todas as nossas bagagens, cantinas, e munições que nessa manhã
deixáramos nas cubatas de Lu. Numa trouxa as calças de John.
Com que sofreguidão ele as envergou, pudico homem! – Fui eu que mandei
vir tudo, à cautela! – explicou o serviçal Infandós.
– Quem sabe quantos dias estaremos neste deserto! Como não havia tempo
a desperdiçar, o velho e ativo guerreiro deu ordem para que se formassem
as tropas imediatamente. Era necessário antes de tudo (disse ele),
aclarar aos regimentos os motivos da revolta já decidida pelos chefes,
e apresentar-lhes Ignosi, o legítimo rei por quem iam combater.
Meia hora depois os regimentos (a flor do exército dos cacuanas)
estavam em formatura nos três lados de um imenso quadrado. Do lado aberto
ficamos nós com Ignosi, o velho Infandós e os chefes conjurados.
Logo que um arauto intimou silêncio – Infandós avançou;
e com um calor, um entusiasmo, irresistivelmente persuasivos, narrou a história
de Ignosi, o seu nascimento real, a serpente tatuada na cinta, a trágica
morte de seu pai à mão de Tuala, a sua fuga através dos
montes, o seu exílio entre estranhos. Depois retraçou o reinado
cruento de Tuala, os seus crimes, as suas
espoliações, as frias e inúteis crueldades. Em seguida
contou como os homens brancos das estrelas, que de lá de cima tudo
vêem, se tinham compadecido da grande aflição que ia no
reino dos cacuanas; como tinham ido então buscar Ignosi, o rei legítimo,
às terras distantes onde ele definhava no exílio, e o haviam
trazido pela mão, através dos areais e dos montes, ao país
de seus pais; como nessa manhã, para mostrar a Tuala e a todos o seu
poder mágico, e provar aos chefes descontentes que Ignosi era rei,
eles com as suas artes tinham apagado, e depois tornado a acender o sol; e
como, enfim, esses mágicos que nenhuma força vencia, estavam
dispostos a derrubar Tuala, o falso rei – e pôr em seu lugar Ignosi,
o rei verdadeiro! Apenas ele findara, entre um longo murmúrio de aprovação,
Ignosi deu dois passos, e, alteando a sua nobre estatura, apelou para as tropas.
-Elas tinham ouvido Infandós, seu tio! Cada palavra dele luzia como
a verdade. Os cacuanas agora só podiam escolher entre Tuala, o monstro
que os roubava, os trucidava, e cobria a terra de horror e desordem, – e ele,
rei legítimo, que não permitiria mais no reino a caça
aos feiticeiros, nem matanças de festa, nem castigos sem julgamento,
nem a opressão dos mais fortes… Pelo contrário, sob ele, só
haveria paz e abundância! A todos os que ali estavam e o ajudassem daria
cubatas, mulheres e gados; e todos, ganha a vitória sobre Tuala, iriam
viver nas suas senzalas bem providas, em descanso e alegria para sempre. De
resto, os homens das estrelas estavam com ele, a seu lado, para manter os
seus direitos. E quem podia ir contra a força das suas artes mágicas?
Não tinham eles visto o sol apagado, depois outra vez brilhante, à
ordem dos espíritos brancos? Um rumor de aquiescência, de adesão,
corria já entre as tropas. Ignosi então recuou um passo, e erguendo
no ar o seu formidável machado de guerra: – Eu sou o rei! Na verdade
vos digo que sou o rei! E se aí há alguém, dentre vós,
que diz que eu não sou o rei, que saia a terreiro, se bata comigo,
e bem cedo o seu sangue, correndo no chão, provará que na verdade
sou rei. Escolhei pois entre mim e Tuala, oh chefes, soldados, vós
todos! Sou eu o rei! – És o rei! – foi a universal, aclamadora resposta,
que atroou toda a colina.
– Bem! Tuala está mandando já emissários a reunir os
seus homens, para nos combater. Os meus olhos estão abertos e verão
aqueles que mais fiéis me são, e que merecerão mais terra,
mais gado, mais riqueza. E agora ide, e preparai-vos para as batalhas, em
defesa do vosso rei! Houve um silêncio. Um dos chefes ergueu a mão;
e os vinte mil homens, ferindo o solo com as azagaias, soltaram a grande saudação
real – Krum! Krum! Krum! Ignosi estava aclamado rei. Os batalhões imediatamente
recolheram aos seus acampamentos. No planalto reinou silêncio e ordem.
Logo depois celebramos um conselho de guerra, com todos os capitães.
Era evidente que em breve seríamos atacados pelas tropas fiéis
a Tuala. Já do alto da nossa colina nós víamos regimentos
marchando, a concentrar-se em Lu – e um incessante movimento de armas por
toda a estrada de Salomão. Do nosso lado contávamos com vinte
mil homens. Tuala, segundo o cálculo dos chefes, poderia ter reunidos,
na manhã seguinte, trinta e cinco a quarenta mil soldados. Mas desses,
muitos eram recrutas; e a forte flor do exército, os veteranos endurecidos,
os capitães de experiência, estavam felizmente conosco, sobre
a colina da Revolta.
O primeiro cuidado era fortificar a nossa posição. Começamos
por obstruir, com grossos rochedos, todos os carreiros que subiam da planície.
Nos pontos mais acessíveis erguemos estacadas e trincheiras. Acumulamos,
à orla do planalto, montes de pedras para arremessar sobre os assaltantes.
Aqui e além cavamos fossos. E, como todo o exército trabalhava,
ao fim da tarde a colina fora convertida em cidadela.
Justamente antes do pôr do sol, vimos um grupo de homens que, de uma
das portas de Lu, avançava para nós, fazendo soar um tantã.
Um deles trazia na mão uma palma verde. Era um arauto.
Ignosi, Infandós, dois ou três chefes, eu e os amigos, descemos
ao seu encontro. Vimos um soberbo homem, ainda moço, com a pele de
leopardo aos ombros.
– Saúde! – gritou ele, parando e agitando a palma. – O rei envia
o seu saudar àqueles que lhe fazem uma guerra infiel. O Leão
envia o seu saudar aos chacais.
– Fala! – bradei.
– Estas são as palavras do rei: “Entregai-vos à minha
mercê, antes que a minha forte mão caia sobre vós!”
– Assim disse o rei. Já foi arrancada ao touro negro a espádua
direita! Já o rei o anda enxotando, ensangüentado, em volta ao
acampamento! (Este cruel costume é comum a muitas tribos da África,
por ocasião de guerra.) – Quais são as condições
de Tuala? – perguntei com curiosidade.
O arauto declarou que as condições eram misericordiosas e
dignas de um grande rei. Muito pouco sangue o contentaria.
De cada dez homens um seria morto, os outros perdoados; mas o branco Incubu
que matara Escraga, o servo Ignosi que pretendia o seu trono, e Infandós
que preparara a rebelião, seriam postos a tormentos, em sacrifício
aos Silenciosos. Tais eram as misericordiosas condições do rei.
Consultei um instante com os chefes, e repliquei, num tom estridente, para
que todos os soldados ouvissem, por sobre a colina: – Volta para Tuala que
te mandou, oh cão, filho de cão! E dize-lhe em nome de Ignosi,
legítimo rei, e de Infandós, seu tio, e dos homens das estrelas
que apagam o sol, e de todos os chefes e soldados aqui juntos, dize a Tuala
– que antes que o sol dê duas voltas, o cadáver de Tuala jazerá
hirto e frio no terreiro de Tuala… Vai e treme, oh cão, filho de
cão! O oficial riu, com arrogância: – Não se assustam
homens com palavras inchadas! Amanhã se verá em que terreiro
e que corpos jazerão hirtos e frios. Adeus, pois, homens das estrelas.
Para meu próprio regalo, espero que tenhais o braço tão
forte, como tendes ousada a língua.
Com este sarcasmo o valente voltou costas. Quase imediatamente a noite desceu.
À luz da lua ainda continuaram os trabalhos da defesa.
Depois, já por noite alta, quando tudo se completara, o barão,
Ignosi e eu, acompanhados por um dos chefes, descemos a colina a visitar os
postos avançados. À maneira que caminhávamos, víamos
de repente surgir dos sítios menos esperados, de uma cova na terra,
de uma moita de arbustos, de um montão de rochas, alguma enorme figura
emplumada, com a ponta da azagaia rebrilhando à lua, que, trocada a
palavra de passe, logo se sumia, como dissolvida na sombra das cousas. A vigilância
era realmente perfeita. Demos assim toda a volta à colina, que tornamos
a subir pela vertente norte, através das companhias de soldados adormecidos.
A lua batia nas lanças ensarilhadas. Aqui e além uma sentinela
destacava imóvel, com as suas altas plumas ondeando à brisa
fria da noite. E os robustos homens escuros, estirados no chão, uns
contra os outros, no confuso abandono da fadiga e do sono, formavam como um
vasto montão de humanidade já prostrada e preparada para a sepultura.
Quantos daqueles estariam ainda vivos, quando na outra noite de novo nascesse
a lua? Estranha fatalidade e tristeza da vida! Muitos desses tinham alegria
e paz nas suas arrogas. Um príncipe ambicioso passava. E eis que milhares,
que ali dormiam um sono tranqüilo, cairiam, varados por lanças,
seriam frios cadáveres, desapareceriam em pó impalpável,
sem de si deixar mais vestígio que folhas de árvores que um
vento leva. E nós mesmos – quem sabe? tornaríamos nós
a ver a lua brilhar naquela colina? – Barão – disse eu de repente,
dando voz a estes pensamentos, – sinto-me num lamentável estado de
atrapalhação e de medo.
– O amigo Quartelmar costuma sempre queixar-se…
– Não, não! Desta vez é sério. Nem sinto as
pernas. Nós amanhã somos atacados com forças colossalmente
superiores e não escapa um de nós. É estúpido!
E para quê? Não temos nada com as questões dinásticas
dos cacuanas! Somos estrangeiros; somos neutros! – É verdade. Mas já
agora, estamos envolvidos na aventura e é necessário levá-la
a cabo airosamente. E depois, que diabo, Quartelmar! Mais vale morrer de repente,
numa batalha, que durante meses na cama!…
Eu pensei comigo (e bem estupidamente) que o melhor era não morrer
nem numa cama, nem numa batalha. E daí a instantes recolhíamos
à nossa estreita senzala, a dormir algumas horas antes da grande ação.
Infandós veio-nos acordar ao romper da alvorada, dizendo que se observavam
já do lado da cidade movimentos de tropas, e que já ligeiras
escaramuças tinham obrigado as nossas sentinelas avançadas a
recolher. Começamos logo, febrilmente, os nossos preparativos. O barão,
pelo princípio de que na “Cacuânia se deve ser cacuano”,
armou-se e enfeitou-se como um guerreiro selvagem – pele de leopardo aos ombros,
enorme pluma de avestruz presa à testa, cintura de rabos de boi, escudo
de ferro coberto de couro branco, machado de combate, facalhões de
arremessar, azagaia, todo o complicado armamento de um chefe negro. E devo
confessar que assim armado e emplumado, era uma esplêndida e formidável
figura! O Capitão John não causava tanta impressão. Em
primeiro lugar insistira em conservar as calças que Infandós
lhe obtivera; e um cavalheiro baixote e gordote, de monóculo, suíça
de um lado e a cara rapada do outro, com uma cota de malha de ferro metida
para dentro das pantalonas, grande lança e chapéu coco, oferece
na realidade um espetáculo mais estranho que imponente. Eu por mim,
ao contrário, tinha tirado as calças para correr mais lesto,
se tivéssemos de retirar; mas a fralda da camisa aparecia-me por baixo
da cota de malha; um facalhão que pendurara à cinta, batia-me
lamentavelmente nas canelas; o escudo enfiado no braço entanguia-me
os movimentos; e sentia em geral que não apresentava para combate uma
figura suficientemente heróica. De sorte que
espetei uma imensa pluma no meu boné de caça – e procurei dar
ao rosto uma expressão de ferocidade. Além do arsenal de armas
selvagens, tínhamos naturalmente as nossas carabinas, que três
soldados atrás conduziam com os sacos de munição. Apenas
armados, engolimos à pressa o almoço, e abalamos. Numa das extremidades
do planalto do monte havia uma espécie de casebre de pedra, que servia
ao mesmo tempo de quartel-general e de torre de vigia. Encontramos aí
Ignosi, magnificamente emplumado e apetrechado. Com ele estava Infandós;
e como guarda real o regimento de Infandós, decerto o mais numeroso
e aguerrido de todo o exército. Este regimento tinha por nome os Pardos,
porque usava plumas pardas na cabeça. Era composto de três mil
praças; e estava colocado de reserva, deitado em ordem e por companhias
sobre o capim que ali crescia. Os chefes, num grupo, junto do casebre, com
as mãos em pala sobre os olhos, observavam o movimento das tropas de
Tuala – que vinham nesse momento saindo de Lu em longas colunas semelhantes
a formigueiros. Cada uma dessas colunas tinha de onze a doze mil homens. Logo
que saíram as portas de Lu e se acharam na planície, pararam;
depois, formadas em batalha, marcharam uma para a direita, outra para a esquerda,
a terceira em direção à nossa colina.
– Bom – murmurou Infandós – vamos ser atacados por três lados!
Capítulo X – O ataque da Colina
Devagar, em perfeita ordem, as três colunas avançaram. A da
direita e a da esquerda, separadas, e obliquando como para envolver e cercar
a nossa posição: a do centro, direita sobre nós, marchando
por aquela língua da planície que entrava pela nossa colina
dentro – colina que, (como disse), tinha a forma de uma meia lua com as duas
pontas voltadas para a cidade de Lu. A umas quinhentas jardas esta coluna
parou – dando tempo a que as outras circundassem a nossa posição.
O plano das gentes de Tuala era evidentemente dar, por cada lado, à
nossa cidadela, um assalto simultâneo e brusco.
– Ah! -suspirou John, olhando aquelas multidões espalhadas embaixo
– quem tivera aqui uma metralhadora! – Nem falemos nessa delicia! – exclamou
o barão com igual pesar. -Em todo o caso, Quartelmar, veja se a sua
carabina chega até àquele maganão, de pele de leopardo,
que parece comandar a força.
Carreguei tranqüilamente a carabina com bala, agachei-me por trás
de uma pedra e apontei. O pobre comandante de pele de leopardo avançava
das fileiras uns trinta passos, seguido por uma ordenança, a examinar
a nossa posição; e erguia justamente o braço, quando
eu lhe mandei uma bala. Tombou sem um movimento mais, com a face no chão.
Os nossos regimentos, espantados, aclamaram este milagre do homem das estrelas;
e eu (tanto a guerra nos endurece o coração) gostei destes aplausos.
Creio mesmo que agradeci, como um ator! No entanto o barão apontara
a um outro oficial, que correra a recolher o cadáver do camarada –
e que, por seu turno, bateu com os braços no ar, caiu morto. A força
inimiga, aterrada, começou logo a recuar. Os nossos uivavam de deleite
e de furor. John juntara-se a nós com a sua
carabina; e antes que a divisão se tivesse retirado para fora do nosso
fogo, abatemos uns dez ou doze homens. Como efeito moral parecia excelente.
De repente, porém, ouvimos um imenso clamor à nossa direita,
e um clamor igual à nossa esquerda. Eram as duas colunas circundantes
que nos atacavam. Imediatamente, a massa de homens em frente de nós,
rompeu avançando por aquela língua de planície que penetrava
em subida suave no interior da nossa meia lua. Vinham num passo vivo, certo,
elástico, que cadenciavam entoando um canto rouco. Começamos
de novo a fazer fogo. Muitos homens caíram. Mas era como se atirássemos
pedras a uma grande vaga de equinócio. A maré humana subia.
Subia com grandes brados, repelindo os nossos postos, colocados entre as rochas,
à base da colina. A sua marcha, porém, diminuía de ímpeto,
à maneira que a subida se convertia em ladeira, depois em íngreme
pendor de monte. Aí onde começava o monte, estacionava a nossa
primeira linha de defesa. Já de lado a lado, entre as forças,
se começavam a atirar as tolas, grandes facas de arremesso que faiscavam
no ar. Os que avançavam vinham bradando: Tuala, Tuala! Chielê,
Chielê! (mata, mata!) Os nossos replicavam: Ignosi, Ignosi! Chielê,
Chielê! As primeiras azagaias entrechocaram-se; e, com o encontro, peito
a peito, das duas massas de homens, na vertente da colina, a batalha começou.
As forças que atacavam eram esmagadoras; e a nossa primeira linha,
onde os homens caíam como folhas no outono, cedeu, e reentrou na segunda
linha de defesa. A luta aqui foi terrível; mas os nossos recuaram,
e a terceira linha entrou em batalha à orla já do planalto.
O barão, cujos olhos se acendiam, não se conteve mais. Brandindo
a sua machada de guerra, arremessou-se para o meio do combate, seguido do
Capitão John. Ao avistar a gigantesca figura do “homem das estrelas”
que vinha em seu socorro, os nossos soldados bradaram com entusiasmo: -Nanziê
Incubu! (Aí vem o elefante!) Chielê, Chielê! E, carregando
com redobrado vigor, em poucos momentos repeliram a divisão de Tuala,
que, já cansada, sem poder romper a sebe viva de lanças que
a continha, voltou a descer a colina em confusão. Nesse instante também
um mensageiro esbaforido veio anunciar a Ignosi (ao lado de quem eu ficara)
que o ataque na esquerda da serra fora rechaçado; e já eu e
Ignosi nos congratulávamos, quando, com grande horror, vimos os nossos,
que estavam defendendo a direita, vir correndo pelo planalto, acossados por
multidões inimigas, que evidentemente naquele ponto tinham rompido
as nossas linhas.
Ignosi bradou uma ordem. Imediatamente o regimento dos Pardos se desdobrou,
para reter a debandada dos nossos, rechaçar a invasão. E, sem
que eu compreendesse bem como, instantes depois achei-me envolvido numa furiosa
carnificina. Tudo o que me lembra é o estridente ruído dos escudos
de ferro entrechocando-se – e logo adiante a aparição de um
enorme bruto furioso, com os olhos sangrentos a saltarem-lhe das órbitas,
que erguia sobre mim uma longa azagaia. O meu revólver findou-lhe os
furores para todo o sempre. Mas, quase em seguida, senti uma pancada na cabeça
– e quando tornei a abrir as pálpebras, estava no casebre do quartel-general,
deitado numa esteira, com o excelente John ao meu lado, velando.
– Então! – exclamou ele ansiosamente, pondo no chão a cabaça
de água com que me borrifava.
Antes de responder, ergui-me muito devagar, apalpei com cuidado o meu precioso
corpo.
– Bem, obrigado. Estou perfeitamente bem! – Graças a Deus! Quando
o vi, trazido numa padiola, deu-me uma volta o coração! – Não,
não foi desta! Levei só uma bordoada, suponho eu. E a batalha?
– Por hoje repelimos a pretalhada do rei. Mas perdemos perto de dois mil homens.
Veja aquele horror, Quartelmar! E o bom John mostrava fora o terreiro, convertido
num hospital de sangue. Para transportar os seus feridos, os cacuanas usam
um longo e esguio tabuleiro com uma argola a cada canto. E destes tabuleiros,
postos no chão, cada um com o seu homem, havia longas filas – por entre
as quais caminhavam, curvados, os cirurgiões cacuanas. O método
destes clínicos é simples e piedoso. Se a ferida se apresenta
curável, o soldado é besuntado com os ungüentos nativos,
e isolado nas senzalas. Se a ferida é incurável ou muito grave,
o cirurgião, com uma lanceta, corta sutilmente uma artéria do
homem, que expira em poucos instantes sem sofrer.
Fugindo a estes espetáculos, John e eu seguimos para o outro lado
do quartel-general, onde encontramos o barão (ainda de machado na mão,
todo tinto de sangue) reunido em conselho com Ignosi, Infandós e dois
chefes idosos.
– Ainda bem que chega, Quartelmar! – gritou o barão. – Eu não
posso compreender o que quer esta gente… Parece que vamos ser cercados!
E assim era, segundo explicou lentamente Infandós. Tuala, repelido,
reunira reforços, e parecia tomar disposições para pôr
sítio à colina, e vencer-nos pela fome e pela sede. Os mantimentos
não durariam mais de dois dias. Mas o pior era que a nascente de água,
sorvida a cada instante por dezesseis mil bocas sedentas, estava prestes a
esgotar-se; e antes da manhã seguinte o exército gemeria de
sede. Nestas conjunturas, Ignosi queria saber o que propunham os homens das
estrelas.
– Dize tu, Macumazã, velha raposa, que tens visto muito, e sabes
todas as artes.
Conversei um momento com os amigos, e declarei em seguida ao conselho, que,
sem pão e sem água, nada nos restava senão fazer imediatamente
uma tremenda sortida, contra Tuala. Todos aprovaram com ardor a minha idéia.
Mas sob que plano se tentaria esse ataque? Cabia a Ignosi, o rei, decidir;
e os olhos de cada um voltaram-se para o nosso antigo servo que, agora, nas
suas armas e plumagens de guerra, tinha um magnífico ar de rei guerreiro.
Depois de pousar dois dedos sobre a testa, à maneira zulu, Ignosi
falou e desenvolveu um plano excelente. Ao começo da tarde (era então
meio-dia) os Pardos, comandados por Infandós e o barão, desceriam
aquela língua da planície que penetrava na meia lua da colina,
e avançariam sobre Tuala, enquanto ele próprio, Ignosi (que
eu devia acompanhar), ficaria de reserva por trás com tropas frescas.
Decerto Tuala, vendo os Pardos romper numa sortida, lançaria sobre
eles toda a sua força para os esmagar. Enquanto na língua de
terra se estivesse dando desse primeiro reencontro, uma terça parte
das nossas forças desceria pela ponta direita da colina, levando consigo
John, o do olho rutilante; outra terça parte iria de manso pela ponta
esquerda; subitamente, ambas cairiam sobre os flancos de Tuala; e nesse instante
ele,
Ignosi, desceria pela frente com as tropas frescas, e se a fortuna estivesse
com ele, cearíamos nessa noite, contentes, na cidade de Lu! O plano
foi acolhido entre aplausos – e imediatamente entrou em preparação,
com uma presteza, um método, que fez honra aos oficiais cacuanas. No
espaço de duas horas foram servidas as rações aos homens,
as três divisões formadas, a ordem de ataque bem explicada aos
chefes, e toda a força (menos uma guarda que se deixou aos feridos)
colocada nos seus postos.
Era, pois, outra imensa carnificina que se preparava e em que me veria envolvido
– eu, homem de ordem, de gostos simples, que tanto detesto violências!
Quando John, ao partir com a ala direita, nos veio dizer adeus, um pouco comovido
– eu, com a voz abalada também, só tive estas palavras: – Se
escapar, amigo John, louve a Deus, e não se meta mais com pretendentes!
Capítulo XI – A Batalha de Lu
Não contarei os pormenores sangrentos deste grande combate, que se
ficou chamando a “Batalha de Lu”. Todos estes medonhos conflitos
de selvagens, mesmo travados com a disciplina dos cacuanas, se assemelham.
É sempre uma vasta confusão de corpos escuros e emplumados,
um estridente ruído de escudos entrechocando-se, azagaias reluzindo
no ar, saltos, guinchos, uivos, clamores imensos, onde destaca uma nota assobiada,
o sgghi! sgghi! que solta o selvagem, quando trespassa com o ferro o inimigo.
O plano de Ignosi, de resto, foi triunfalmente realizado. Os Pardos avançaram
naquela língua de terra que penetrava na nossa meia lua, e com admirável
heroicidade sustentaram os ataques de regimentos após regimentos, arremessados
sobre eles por Tuala.
Quando dos Pardos restava apenas metade, e a atenção de todo
o exército inimigo estava concentrada nesta luta com o heróico
regimento, as duas alas nossas, que tinham caminhado pelos dois cornos da
meia lua, caíram sobre os flancos desprevenidos do inimigo, como um
círculo de cães de fila sobre lobos descuidados. Começou
uma pavorosa matança. Ignosi carregou então de frente com as
reservas frescas – e decidiu a batalha. Eu fiz parte dessa carga; e não
sei como, achei-me ao pé do barão, que parecia o verdadeiro
deus da guerra, com os longos cabelos de ouro a esvoaçar ao vento,
todo ele vermelho de sangue, e soltando a cada grande golpe de machado o velho
grito saxônio de ataque: O-hoy! O-hoy! Também me parece que avistei
Tuala na confusão, coberto com a sua cota de malha, arremessando as
tolas, as facas enormes dos cacuanas, que dois guerreiros atrás dele
traziam em sacos de couro. Lembro-me ainda também de um chefe que,
em vez de escudo, erguia, para se defender, o cadáver de um Pardo,
e que combatia, cantando. De resto, tudo se me confunde na memória
– o sangue correndo, os corpos tombando, um grande estridor de armas, um imenso
esvoaçar de plumas.
Com o embate das duas colunas nossas sobre os flancos do exército
de Tuala, a batalha ficou ganha – e dentro em breve a vasta planície
que se estendia entre a nossa colina e a cidade de Lu, estava cheia de soldados
fugindo em terrível desordem.
O regimento dos Pardos, no entanto (ou o que dele restava), reunira numa pequena
elevação de terreno – onde tristemente verificamos que, dos
três mil valentes que o compunham, ainda de manhã, apenas acudiam
à chamada cento e noventa e cinco homens. Entre eles estava Infandós,
que combatera heroicamente, tendo somente um leve golpe no braço. Ignosi,
com um grupo de chefes, entre os quais vinha John (ferido numa perna e manquejando),
em breve se veio juntar a esta gloriosa falange dos Pardos. E foi seguido
dela, como da sua guarda de honra, que o rei, e nós com ele, marchamos
sobre a cidade de Lu.
Às portas da cidade, ainda fechadas, estavam já postados grossos
destacamentos dos nossos para as atacar. Mas dentro, os soldados de Tuala,
inteiramente desmoralizados pela derrota do seu rei, não pareciam dispostos
à resistência. Com efeito, às primeiras intimações
dos arautos, a ponte levadiça da porta chamada Real foi descida; e,
seguindo Ignosi, penetramos enfim na cidade vencida. Nas ruas, às portas
das arrogas, nos terreiros, por toda a parte se apresentavam soldados, com
a cabeça baixa, os escudos e as lanças pousadas aos pés
em sinal de submissão, que saudavam Ignosi como rei. Assim chegamos
à aringa real. No terreiro silencioso, à porta da sua grande
senzala, solitário, abandonado, sem um soldado, sem um cortesão,
sem uma das suas mil mulheres, estava Tuala, sentado num escabelo, com o rosto
caído sobre o peito, as mãos pousadas sobre os joelhos. Cheguei
a sentir uma vaga piedade pelo pobre rei derrotado! Um único ser lhe
ficara fiel, Gagula – que, agachada aos seus pés, rompeu num fluxo
de injúrias, mal nos viu assomar ao terreiro, seguindo o triunfante
Ignosi.
Tuala, esse, não parecia ver, nem sentir. Só quando Ignosi
parou, e os soldados bateram em cadência com os contos das azagaias
no chão, o velho tirano ergueu a cabeça emplumada. Depois, atirando
sobre nós um olhar mais reluzente que o grande diamante que lhe ornava
a testa: – Salve, rei! – gritou ele a Ignosi, com amargo escárnio.
– Tu que, por feitiços dos homens das estrelas, seduziste os meus regimentos,
dize, que sorte me destinas? – A sorte de meu pai, que tu mataste! – foi a
fria e dura resposta.
– Bem! Saberei morrer, para que te fique como exemplo quando a tua vez chegar.
Mas reclamo um privilégio da família real dos cacuanas. Quero
morrer combatendo.
– Concedo – respondeu Ignosi. – Escolhe o teu homem. Eu não posso,
porque o rei não se bate em combate singular. O sinistro olho de Tuala
percorreu-nos lentamente a todos. E, como durante um momento se fixou em mim,
eu senti ali o mais atroz pavor da minha vida aventurosa! Justos céus!
Se ele se quisesse bater comigo? Também, tomei logo a minha resolu&cccedil;ão
– recusar, fugir, ainda que fosse apupado por toda a nação cacuana!
Felizmente o bruto escolheu: – Incubu! – exclamou, estendendo a mão
para o barão. – Tu que mataste meu filho, quererás tu lutar
comigo, ou ser chamado um covarde? – Não – gritou logo Ignosi, – Incubu
não se baterá contigo! – Decerto não, se tem medo.
Infelizmente o barão compreendera. Todo o sangue lhe subiu às
faces. E avançou logo, de machado erguido.
Acudimos, suplicando-lhe que não arriscasse a vida com aquela fera,
inteiramente desesperada, de antemão condenada à morte. Provas
de heróico valor já ele as dera de sobra! Para que ir-nos despedaçar
o coração, se uma desgraça lhe sucedesse? O barão,
porém, permaneceu inabalável.
– Nenhum homem vivo, civilizado ou selvagem, me chamará nunca covarde.
Quero bater-me com ele! Ignosi, bem a custo, cedeu.
– Seja, pois!… Tuala, o grande Incubu, vai marchar para ti! Tuala riu,
ferozmente; e os dois gigantescos homens ficaram frente a frente. O primeiro
ataque foi o do barão, que lançou sobre Tuala o machado a toda
a força. Com um salto, Tuala esquivou o corte, e arremessou outro,
em resposta, sobre o barão, que o aparou no escudo. E, durante um momento,
houve assim uma viva e faiscante troca de machadadas, que ora bruscos saltos
evitavam, ora os broquéis defendiam. Nós nem respirávamos.
O regimento dos Pardos, esquecida a disciplina, fizera círculo, e soltava
gritos, batia palmas a cada golpe vibrado. John, agarrado ao meu braço,
andava aos saltos sobre a perna sã, animando o barão com berros:
– Bravo! Anda-me aí! Esse foi bom! Atira-lho de ilharga!… Subitamente,
um brado de horror ressoou. De uma pancada, Tuala cortara o cabo do machado
do barão, que ficava assim desarmado – e, erguendo o seu próprio
machado, caía sobre ele com um uivo furioso de triunfo. Tudo acabara;
eu fechei os olhos… Quando os abri, Tuala e o barão, agarrados um
ao outro como dois gatos bravos, estavam rolando no chão – e o barão,
com um desesperado esforço, procurava arrancar de Tuala o machado que
ele tinha preso ao pulso por uma correia de búfalo. Pareceu-me uma
eternidade o tempo que eles assim rolaram um sobre o outro, nesta furiosa
luta pela posse do machado. Finalmente a correia quebrou – e com um último,
monstruoso arranque, o barão, desprendendo-se de Tuala, ergueu-se de
salto, com o machado na mão. Num instante Tuala estava também
de pé – e ambos tinham as faces a escorrer sangue. Foi Tuala, que,
mais rápido, arrancou do cinto o facalhão e o vibrou contra
o peito do barão. O valente homem cambaleou, mas a couraça de
malha repeliu a facada. De novo Tuala arremeteu com a lâmina – e então
o barão, retesando-se todo num esforço, alçou o machado,
no momento mesmo em que Tuala se inclinava, e deixou-lhe cair uma machadada,
com tremenda força, sobre o pescoço.
Houve um grito enorme. – E, cousa pavorosa, vimos a cabeça de Tuala
saltar-lhe dos ombros, dar como uma peleia dois pulos pelo chão, e
rolar até aos pés de Ignosi! Durante um segundo o corpo ficou
erecto, com o sangue saindo em grossos borbotões e a fumegar. De repente
tombou, com um ruído surdo. E do outro lado o barão caiu também,
desmaiado. Erguemo-lo ansiosamente, encharcamos-lhe o rosto em água.
Pouco a pouco, abriu os olhos. Estava salvo! O sol ia justamente descendo.
Eu baixei-me para a cabeça de Tuala que ali ficara numa poça
de sangue, e, desapertando o grande diamante que lhe ornava a testa, entreguei-o
solenemente a Ignosi e bradei: – Salve, rei dos cacuanas! Ele apertou o diamante
sobre a testa. Depois pousou um pé sobre o peito de Tuala morto, e
cercado dos seus guerreiros, entoou um canto de vitória.
Capítulo XII – O Rei Ignosi
Tudo findara gloriosamente. Chegara a hora de repousar – ou, melhor, de convalescer.
O barão e o capitão (cuja perna, de todo inchada, o fazia agora
sofrer muito), foram levados em braços para a arroga palacial de Tuala.
E eu para lá me arrastei exausto de emoções, com a cabeça
consideravelmente dolorida da paulada dessa manhã na defesa do planalto.
O primeiro cuidado foi despir as cotas de malha, tarefa difícil (pelo
nosso combalido estado), em que nos ajudou a linda Fulata, que se constituíra,
desde o começo da revolta, nossa vivandeira, nossa enfermeira, e nosso
anjo da guarda.
Arrancadas as cotas, vimos que os nossos pobres corpos eram uma massa medonha
de pisaduras negras. No tumulto da batalha tínhamos apanhado decerto
muita facada, muita lançada. As pontas dos ferros eram repelidas pela
malha impenetrável; mas nem por isso cada um dos golpes arremessados
deixava de constituir uma terrível pontada, que nos amolgava corpo
e membros. Eu estava positivamente negro de pisaduras. Mas o pior era a ferida
de John na perna, e a do barão, a quem uma das machadadas de Tuala
cortara profundamente a face sobre a maxila. Fulata preparou-nos uns emplastros
de ervas aromáticas, que nos aliviaram as dores. E como o Capitão
John tinha noções e prática de cirurgia (segundo contei),
foi ele que fez o tratamento da ferida do barão e da sua própria,
tão bem quanto lho permitiam os poucos fios, o resto da pomada antisséptica
que encontrou na sua botica portátil, e a escassa luz da lâmpada
cacuana. Depois, Fulata arranjou-nos um caldo muito forte, e estendemo-nos
nas magníficas peles que juncavam o chão da aringa do rei. Mas
não pudemos dormir. De toda a cidade, em torno de nós, subia
a triste e ululada lamentação das mulheres, chorando, à
maneira dos zulus, os valentes mortos na batalha. Mesmo ao nosso lado, as
carpideiras reais estavam carpindo a morte de Tuala, com estridente dor. A
noite ia cheia de prantos – e além disso, a cada instante, sentíamos
os gritos agudos das sentinelas, ou a ruidosa passagem de rondas. Foi só
de madrugada que pude cerrar os olhos – os olhos que, apesar de cerrados,
continuavam a ver os lances da batalha, com tanta realidade que, por vezes,
estremecia em sobressalto e me erguia no cotovelo a procurar as minhas armas,
ou a lançar uma ordem de ataque.
Quando, enfim, acordei, com o sol já alto, soube que os meus dois
amigos também não tinham dormido. De fato, o Capitão
John estava com uma intensa febre e começava a delirar. Além
disso, sintoma assustador, toda a noite cuspira sangue. O barão, esse,
mal podia ainda mexer o corpo; e a ferida da face não lhe permitia
comer, escassamente falar. Eu era, ainda assim, o mais restabelecido. Tomei
o delicioso caldo de Fulata, e saí um instante ao terreiro a respirar.
Encontrei justamente Infandós que chegava, tão fresco e ágil
como se na véspera, em lugar de uma batalha, tivesse celebrado uma
festa. Ficou desolado ao saber da doença de John. Entrou um momento
na cubata para o ver e o barão, que não se podia ainda levantar
e apenas mover os membros sobre o seu fofo leito de peles. Em voz baixa, por
causa de John, Infandós contou-nos que todos os regimentos se tinham
submetido a Ignosi; que das
outras cidades chegavam ferventes adesões, e que o novo reinado se
firmava para longas eras de prosperidade e de paz.
Quando ele se retirava, apareceu Ignosi, seguido de uma guarda real. Não
pude deixar, ao vê-lo, de pensar nas estranhas revoluções
da sorte! Aquele moço, que havia meses, na minha casa em Durban, me
pedia para entrar ao meu serviço – ei-lo agora rei, grande potentado
da África, comandando cinqüenta mil guerreiros, senhor de povos,
de rebanhos e de terras sem conta! – Salve, rei! – exclamei eu, erguendo-me
com respeito.
– Graças a ti, Macumazã, e aos teus amigos! – exclamou ele,
apertando-me as mãos com carinho.
Entrou também, como Infandós, na cubata para ver o barão
e o pobre John, que dormia um sono de febre, horrivelmente agitado, sob os
olhos compassivos e vigilantes da boa Fulata. Depois, quando saímos
de novo ao terreiro, conversando, perguntei-lhe o que contava ele fazer de
Gagula.
Gagula é o gênio mau desta terra – disse ele. – Conto mandá-la
matar para findar com ela, que já é velha demais! – Mas tem
segredos! Mas sabe muito! – repliquei eu.
– Sabe sobretudo o segredo dos Silenciosos – volveu o rei pousando os olhos
em mim com amizade – e o da caverna onde os reis estão enterrados,
e o do lugar dos diamantes. Ora eu não esqueço a promessa que
te fiz, Macumazã. Tu e os teus amigos ireis aos diamantes, guiados
por Gagula; e só por isso a poupo.
– Está bem, Ignosi, registro as tuas palavras. Mas não foi
possível, durante essa semana, pensar nos diamantes, porque através
de toda ela a vida do nosso pobre John esteve em risco e os nossos corações
em ansiedade. Realmente creio que teria morrido, se não fossem os desvelos,
a adorável dedicação de Fulata. Dias amargos esses para
nós! O barão, já então restabelecido, e eu, nada
mais fizemos durante essa crise atroz, do que entrar, sair, rondar em pontas
de pés a senzala onde ele delirava.
Remédios não tínhamos para lhe dar, além de
uma bebida refrescante feita por Fulata com leite e o suco extraído
da raiz de uma espécie de tulipa. Só podíamos contar
com a forte natureza dele e a boa mercê de Deus.
Em toda a aringa real havia um grande silêncio, porque Ignosi, para
manter perfeito sossego em torno ao doente, ordenara que todos os que lá
viviam passassem a outras cubatas remotas. Fulata estava permanentemente ao
lado dele, sentada no chão, dando-lhe a bebida refrescante, arranjando-lhe
as travesseiras feitas das folhas secas de uma planta que faz dormir, enxotando-lhe
as moscas do rosto.
No nono dia da doença, à noite, antes de recolher, o barão
e eu entramos, segundo o costume, na senzala. A lâmpada colocada no
escabelo dava uma luz fúnebre. Não havia um rumor. E o meu pobre
amigo jazia perfeitamente imóvel. Pensei que chegara o seu fim; tive
um soluço que me sufocou. Mas uma voz, na sombra, murmurou chuta! E,
mais de perto, descobrimos que o nosso amigo não estava morto, mas
tranqüilamente adormecido, sob a carícia das mãos de Fulata,
que lhe cobriam a testa, onde um suor fresco começava. Era a crise
do nono dia, o sono reparador. O nosso John estava salvo! Dormiu assim dezoito
horas. E (mal me atrevo a contá-lo, porque não serei acreditado)
Fulata, a admirável, a santa rapariga, dezoito horas se conservou
também assim, com as mãos pousadas sobre a testa dele, sem comer,
sem se erguer, sem se mexer, com o receio de que o menor movimento acordasse
o seu doente. Quando ele afinal despertou – tivemos de a erguer em braços,
porque a heróica enfermeira estava quase desmaiada de debilidade e
fadiga.
A convalescença de John foi rápida. Ao fim de outra semana,
já passeava pelos arredores da cidade, entre os pomares, à beira
do rio, acompanhado por Fulata, que o salvara, e a quem ele votara (segundo
dizia) um “reconhecimento eterno”. Mas eu não agourava bem
daquele “reconhecimento”, daqueles passeios bucólicos…
Nos olhos de Fulata havia muita meiguice, muita languidez. E John, como marinheiro,
era indiscretamente ardente. Depois de uma aventura de guerra, íamos
ter, mais perigosa ainda, alguma aventura de amor! Apenas John se considerou
a si próprio escorreito e “pronto para outra” – Ignosi começou
as festas da sua proclamação.
Todos os indunas (chefes supremos) das províncias do reino, vieram
a Lu prestar vassalagem. Houve revistas de tropas, danças, formidáveis
banquetes. Os homens que restavam do regimento dos Pardos, foram todos doados
com terras e rebanhos, e promovidos a oficiais. Ignosi promulgou na Grande
Assembléia que, de ora em diante, não haveria mais caça
aos feiticeiros, nem morte sem julgamento. Depois ordenou que, enquanto nós
residíssemos no seu reino, gozássemos de honras reais, e recebêssemos
sempre, como ele, a saudação de Krum! No último dia deste
grande festival, eu e os amigos dirigimo-nos ao rei, em grupo, e declaramos-lhe
que o momento chegara, de realizar a sua promessa, e de nos mandar conduzir
ao lugar onde deviam estar as pedras brancas que reluzem.
Ignosi abraçou-nos com grande afeto.
– Não me esqueci, amigos! Já indaguei a verdade, e eis o que
sei. Aquela estrada branca que trilhamos, acaba além junto das montanhas
chamadas as Três Feiticeiras, onde estão as figuras de pedra,
os Silenciosos. Jaz aí uma grande cova, de onde se diz que homens muito
antigos, em outras idades, tiravam as pedras que reluzem. Para além
dessa cova há uma funda caverna na rocha, terrível, maravilhosa,
onde vive a Morte, onde jazem os nossos reis mortos, e para onde Tuala já
foi conduzido. E por trás dessa caverna fica uma câmara secreta,
de que só Gagula conhece o segredo. Corre também a história
de que, há muitas gerações, um branco veio aqui, e foi
conduzido por uma mulher a essa câmara secreta, onde viu riquezas sem
conta, mas dessas que para os cacuanas nada valem; o branco, porém,
não teve tempo de arrecadar essas riquezas, porque a mulher o traiu,
e o rei desses tempos o escorraçou outra vez para além das montanhas…
– A história é verdadeira – acudi eu. – Não te lembras,
Ignosi, que nas montanhas, na caverna de gelo, encontramos nós, petrificado,
esse homem branco? – Muito bem me lembro. Por isso vou mandar chamar Gagula,
e ordenar-lhe, sob pena de morrer, que vos leve à câmara secreta,
meus amigos… e as riquezas que encontrardes, oh meus amigos, são
vossas! Nesse instante dois guardas apareceram, trazendo agarrada pelos braços
a hedionda Gagula, que gania e os amaldiçoava. Mal a largaram, toda
ela se abateu e achatou sobre o chão – como um montão de trapos,
onde dois olhos ferozes viviam e refulgiam.
– Que me queres tu, Ignosi? – uivou ela. – Não me toques, que te destruo.
Treme das minhas artes! O rei encolheu os ombros.
– As tuas artes não salvaram Tuala. Que me importam as tuas artes?
Aqui está o que de ti quero: que mostres aos meus amigos a câmara
secreta onde estão as pedras que reluzem.
– Só eu o sei, e nunca o direi! – bradou ela. – Os brancos malditos
voltarão, levando vazias as mãos malditas! – Bem – volveu tranqüilamente
o rei. – Então, Gagula, vais morrer lentamente.
– Morrer! – gritou ela, cheia de terror e de fúria. – Tu não
te atreverás, Ignosi! Ninguém me pode matar. Que idade pensas
tu que eu tenho? O teu pai conheceu-me; e o pai do teu pai; e o pai que gerou
a esse. Ninguém ousará tocar-me, porque sobre esse cairão
as desgraças sem fim.
Em silêncio, tranqüilamente, Ignosi baixou sobre ela a ponta
da sua azagaia: – Dizes? – Não! Ignosi baixou mais o ferro, picou de
leve o montão de trapos onde reluziam os dois olhos ferozes.
Com um uivo dilacerante, a horrenda bruxa pôs-se em pé, de
salto. Depois tornou a cair, e rolou no chão esperneando.
De novo a lança de Ignosi a procurava: – Dizes? – Digo, digo, oh
rei! – ganiu ela. – Mas deixa-me viver, e sentar-me ao sol, e respirar o ar
doce, e ter um osso para chupar!…
– Bem; amanhã irás com meu tio Infandós e com meus
irmãos brancos a esse lugar, mostrarás a câmara secreta
e o esconderijo das pedras que reluzem. Mas tem cautela! Que se em ti houver
traição, morrerás devagar, e em tormentos.
– Não, Ignosi! Irei com eles, e tudo mostrarei. Mas a desgraça
vem a quem penetra nesse lugar. Outrora veio um homem, encheu um saco dessas
pedras brilhantes, e uma grande desgraça caiu sobre ele! E foi uma
mulher que o levou, e que se chamava Gagula. Talvez fosse eu! Talvez fosse
minha mãe! Ou a mãe de minha mãe! Quem sabe? Será
uma alegre jornada… Eu hei de ir, e hei de rir! Vinde, homens brancos, vinde!
Vereis, ao passar, os que morreram na batalha, com os olhos vazios, as costelas
ocas. A morte vive lá, e está à espera. Será uma
alegre jornada!
Capítulo XIII – A Grande Caverna
Três dias depois, ao escurecer, estávamos acampados num casebre
desmantelado, em frente das Três Feiticeiras, as três montanhas
que tantas vezes de longe avistáramos, desde a nossa chegada a Lu,
e onde deviam jazer, segundo a tradição dos cacuanas e o roteiro
do velho D. José da Silveira, as minas das pedras que reluzem – as
Minas de Salomão! Tínhamos partido de Lu doze dias antes, acompanhados
por Infandós, por Fulata (que não deixara mais o “seu doente”,
o bom John), por Gagula, que vinha numa liteira, e por uma forte escolta de
serviçais e
soldados. E foi só no dia seguinte, ao amanhecer, que examinamos aquele
estranho sítio, tão cheio de terror para os cacuanas e para
nós de maravilhosas promessas.
Nunca eu esquecerei o momento em que, saindo à porta das cubatas,
na primeira e fresca luz da manhã, vimos os três montes isolados,
em triângulo, um à nossa direita, outro à nossa esquerda,
o terceiro ao fundo, em face de nós, erguendo magnificamente ao céu
os seus cimos resplandecentes de neve. Um tojo em flor, de um escarlate ardente,
cobria as poderosas fraldas dos três montes – e seguia ainda, como um
tapete igual e contínuo, pelos grandes descampados que os cercavam.
A fita branca da estrada de Salomão cortava a direito até à
Feiticeira central, a que formava a ponta do triângulo, onde findava
brusca e misteriosamente. Aí, junto desse monte, estavam as fabulosas
minas, que tinham sido o fim de tantos míseros destinos – o do velho
fidalgo português, o do seu descendente, e decerto o daquele que nós
vínhamos procurando desde o sul e por quem corrêramos tanto perigo
e tanta aventura. Todo o que buscar essas minas fabulosas (dizia Gagula),
encontrará desilusão e desastre. Seria essa a nossa sorte? Nós
chegávamos sob a proteção do rei, cercados de serviçais
e de guardas… E apesar disso sentíamos pesar-nos sobre o coração,
tristemente, a profecia da horrenda mulher. No entanto, quando nos pusemos
a caminho, era tão viva a ansiedade de chegar e de ver, que os carregadores
da liteira de Gagula mal podiam acompanhar a nossa carreira. A cada instante
a velha bruxa gritava, estendendo para nós, por entre os panos da liteira,
os braços descarnados, as mãos em garra: – Não vos apresseis,
homens brancos! A morte está à vossa espera e não foge!
Para que vos esfalfar, correndo para ela? Certa e segura a tendes! Dava então
uma risadinha que nos arrepiava. Insensivelmente abrandávamos o passo…
Depois bem cedo o estugávamos de novo, sob o impulso irresistível
da curiosidade e da esperança! Gastáramos assim hora e meia,
trilhando a estrada de Salomão, e tendo já deixado à
nossa direita e à nossa esquerda as duas Feiticeiras que formam a base
do triângulo – quando chegamos junto de uma imensa cova circular, em
funil, oferecendo talvez trezentos pés de profundidade e meia milha
de circunferência. Entre a erva e tojo, que interiormente a forravam,
surgiam grandes pedaços de greda azulada; quase ao fundo corria um
canal para água, talhado na rocha viva; e abaixo do nível dessa
obra estavam alinhadas umas poucas de mesas de pedra, polidas e gastas pelo
tempo. A cova, as mesas, a disposição do canal, a natureza da
greda azulada, tudo era semelhante ao que eu muitas vezes vira no sul, nas
minas de diamantes de Kimberley. Assim o disse aos amigos: – e para mim ficou
certo que ali houvera, em tempos, fossem nos de Salomão, fossem noutros
mais recentes, uma mina de diamantes.
A estrada, ao abeirar-se da cova, dividia-se em dois ramos que a circundavam;
e a espaços, esta via circular era feita de enormes lajes de pedra,
com o fim certamente de solidificar as bordas da mina, e impedir que se esboroassem.
Mas o que mais nos surpreendia era, do outro lado da vasta cova, um grupo
de três objetos, que se destacavam como três pequenas torres ou
três marcos colossais. A curiosidade quase nos fez correr, deixando
atrás Gagula e Infandós; e bem depressa percebemos que o grupo
era formado por três imensas estátuas. Conjeturamos logo que
deviam
ser os Silenciosos, esses ídolos, tão temidos pelos cacuanas,
e a quem ofereciam os sacrifícios sangrentos. Mas só ao chegar
junto deles pudemos apreciar a estranha e terrível majestade dessas
vetustas figuras.
Separadas por uma distância de vinte passos, erguidas sobre imensos
pedestais de pedra negra, onde corriam caracteres desconhecidos, e olhando
a direito puxa a estrada de Salomão, que através de sessenta
milhas de planície seguia até Lu – enchiam um grande espaço
as três gigantescas formas, duas de homem, uma de mulher, todas três
sentadas, medindo talvez cada uma a altura de vinte pés.
A figura de mulher, toda nua, com dois cornos, como os de um crescente de
lua, sobre a testa, era de uma maravilhosa beleza – infelizmente estragada
pelas injúrias do tempo durante longos séculos. As duas figuras
de homem, talvez por estarem vestidas em longas roupagens, pareciam mais bem
conservadas. Um deles tinha uma face medonha, feita para inspirar terror,
como a de um demônio maléfico; mas a do outro parecia talvez
mais assustadora ainda, na sua fria expressão de dura indiferença,
de uma indiferença de rocha, que nenhuma prece pode abrandar, ou nenhum
sofrimento apiedar. Todos três juntos formavam na realidade uma Trindade
pavorosa, assim sentados, imóveis, com os olhos vaga e perpetuamente
estendidos para a planície sem fim. Que imagens seriam estas? Deuses?
Demônios? Reis de povos cujo nome esqueceu? Eu por mim, das minhas reminiscências
da Bíblia, coligia que deviam ser talvez os falsos deuses que adorou
Salomão – “Astarote, deusa dos sidônios, Chemosh, deus dos
moabitas, e Milcom, deus dos filhos de Amom”. Assim diz o Livro Santo.
– Que lhe parece, barão? – Talvez – concordou o nosso amigo que recebera
grau em literaturas clássicas. – A Astarote, de que falam os hebreus,
é a Astarte dos fenícios, os grandes comerciantes do tempo de
Salomão. De Astarte fizeram os gregos a sua Afrodite, que se representava
com o crescente da meia lua na cabeça… Se Salomão tinha aqui
as suas minas, era natural que fossem dirigidas por engenheiros fenícios.
De sorte que provavelmente esses homens ergueram, como padroeira da mina,
a estátua da sua deusa. Quem pode saber? Quando estávamos assim
contemplando estas extraordinárias relíquias de uma remota antiguidade,
Infandós, que caminhara sem se apressar, chegou junto de nós,
e saudou reverentemente com a lança os Silenciosos. Vinha saber se
queríamos penetrar imediatamente na caverna, ou tomar primeiro a refeição
da manhã. Como não eram ainda onze horas, e a nossa curiosidade
flamejava, decidimos desvendar logo os mistérios, levando conosco provisões,
para se lá dentro a fome, excitada pelas emoções, nos
assaltasse. Infandós fez então sinal aos carregadores para que
se acercassem com a liteira de Gagula; e Fulata preparou dentro de um cesto,
para levarmos, uma porção de caça fria e duas cabaças
de água. Nós, entretanto, déramos uma volta em torno
às três figuras de pedras. Por trás delas, a uns cinqüenta
passos, erguia-se aquela das Feiticeiras que formava o bico do triângulo;
na sua base, como incrustada nela, corria uma muralha de pedra; e aí,
ao centro, podíamos distinguir um arco escuro, como a entrada de uma
galeria subterrânea. Esperamos que os carregadores tirassem Gagula da
liteira. Apenas no chão, a horrenda criatura agarrou o cajado, e dobrada
em duas, com passos trêmulos e vivos, largou em silêncio para
o
arco escuro. Nós seguimos, calados, também. À entrada,
o monstro parou, voltado para nós, com um riso lívido na caveira.
– Homens das estrelas, estais decididos? Quereis realmente penetrar na cova
onde as pedras reluzem? – Estamos prontos, Gagula – disse eu, alegremente.
– Bem, bem! Entrai! E pedi força aos corações para
afrontar as cousas que ides ver! E tu, Infandós, que traíste
teu amo, vens tu também? O velho guerreiro franziu terrivelmente o
sobrolho: – Não me compete a mim entrar nos sítios sagrados.
Mas tu, Gagula, tem cautela, e treme! Os homens que vão contigo são
os amigos do rei! Por eles me respondes tu. E se tanto como a perda de um
só cabelo lhes suceder em mal, nem todos os teus feitiços te
livrarão de morrer em tormentos. Compreendeste? – Compreendi, compreendi,
Infandós! – ganiu ela, com um risinho gelado e lento. – Não
receies! Eu vivo só para fazer a vontade do rei. Tenho feito a vontade
de muitos reis, em muitas gerações! E os reis findaram sempre
por cumprir a minha vontade! Todos passaram, todos morreram… E eu aqui estou,
para os ir visitar agora no palácio da morte, e para lhes falar dos
tempos que foram! Vinde, vinde! A lâmpada está acesa! Tinha tirado,
debaixo do manto de peles que a cobria, uma cabaça cheia de óleo
com uma grossa torcida de vime e a luz que ela aproximou do arco negro pareceu
desmaiar e tremer.
– Vens tu também, Fulata? – exclamou John, volvendo os olhos em redor,
inquieto.
– Tenho medo, meu senhor – murmurou a rapariga.
– Bem. Então dá cá o cesto! – Não, meu senhor,
para onde fordes, vou eu também! – Bem! – pensei eu comigo – aí
levamos também o trambolho da rapariga para dentro da mina! No entanto
Gagula mergulhara na galeria, que dava apenas lugar para dois caminharem de
frente. As trevas eram absolutas. Asas de morcegos batiam-nos nas faces. E
seguíamos menos a luz bruxuleante da lâmpada, que a voz de Gagula,
que repetia num tom lúgubre: – Avançai, avançai! A morte
está perto! De repente, distinguimos uma vaga claridade. E, momentos
depois, parávamos no mais maravilhoso sítio que olhos humanos
têm contemplado.
A nada o posso comparar melhor do que ao interior de uma imensa catedral,
uma catedral de sonho ou de lenda, sem janelas, alumiada por uma luz difusa
e misteriosa, que parecia cair das alturas da abóbada. Ao comprido
desta vasta nave, como na nave de um verdadeiro templo, corriam renques de
gigantescas colunas, de uma cor álgida de gelo e de magnífica
beleza. Alguns destes nobres pilares estavam, por assim dizer, interrompidos
no meio – um pedaço erguendo-se do solo, como a coluna quebrada de
uma ruína grega; outro pedaço pendente da remota abóbada.
Ao lado da nave abriam-se, com dimensões diversas, cavernas à
semelhança de capelas, tendo também as suas filas de colunas,
algumas tão pequeninas e finas como feitas para um brinquedo e criança.
Aqui e além havia construções estranhas, da mesma substância
álgida que parecia gelo – uma da forma de uma vasta taça, outra
oferecendo a vaga aparência de um púlpito com lavores pendentes.
Um ar de indescritível frescura circulava dentro da vasta nave; e por
toda a parte sentíamos, na penumbra, o ruído lento de gotas
de água caindo.
Não tardamos em perceber que estávamos simplesmente numa caverna
de estalactites, de inigualável beleza. Cada uma daquelas gotas de
água, que caía, com um som úmido e triste, era mais uma
coluna que se estava formando. Há quantos séculos andava a natureza
trabalhando naquela obra maravilhosa? Sobre uma das colunas incompletas, notei
eu uma rude inscrição entalhada, decerto, por algum obreiro
fenício das minas, que ali escrevera o seu nome, ou talvez alguma facécia
fenícia. Pois, desde esse dia, em três mil anos pelo menos, a
coluna apenas crescera para cima da inscrição uns três
pés e meio. E ainda estava em via de formação, porque
eu distintamente senti, enquanto a examinava, cair sobre ela, das profundidades
da abóbada, uma lenta gota de água! Quantos centos de milhares
de anos levaram pois a crescer, a formar-se, assim largas, maciças,
altas como torres, as colunas inumeráveis que se enfileiravam na nave?
Nunca, como ali, eu compreendi a espantosa velhice da Terra. Gagula, porém,
não nos deixou muito tempo nesta curiosa contemplação.
Inquieta, batendo o chão com o cajado, a lâmpada erguida sobre
a cabeça, a cada instante nos apressava, com ganidos sinistros.
– Vamos, vamos, que a Morte está à nossa espera! O Capitão
John ainda tentava gracejar com a atroz criatura. Mas quando ela nos conduzia
ao fundo da nave, diante de uma pequena porta semelhante às dos templos
egípcios, e nos perguntou se estávamos bem preparados a entrar
a morada da Morte – todos estacamos, inquietos, mudos, sem ousar o primeiro
passo.
– Isto está-se tornando sinistro – murmurou o barão. – Os
mais velhos adiante. Passe lá, Quartelmar! Entrei a porta egípcia
e achei-me num corredor inclinado, todo de abóbada, horrivelmente negro.
A lâmpada de Gagula esmorecia. O bater do seu cajado dava um eco lúgubre.
E a meu pesar parei, dominado por um pressentimento de desastre e de morte.
– Para diante! – murmurou John, que trazia Fulata agarrada pela mão.
Com um esforço desesperado venci o receio, alarguei o passo. E, quase
colados uns aos outros, desembocamos numa sala subterrânea, evidentemente
escavada outrora por poderosos obreiros no interior da montanha.
Esta sala não tinha uma luz tão clara como a catedral de estalactites;
e tudo o que eu pude descobrir, a princípio, foi uma enorme e maciça
mesa de pedra, tendo no topo uma colossal figura, que parecia presidir outras
figuras abancadas em torno. Depois, sobre a mesa, no centro, distingui uma
forma encruzada. E quando enfim, acostumado à penumbra, percebi o que
eram aquelas formas, voltei costas, e largaria a fugir como uma lebre-se o
barão não me agarrasse pelo braço fortemente. Cedi, tremendo
todo. Mas a esse tempo o barão também se habituara à
luz difusa, compreendera também; e largando-me o braço, com
uma exclamação, ficou a meu lado, quedo, arrepiado, limpando
o suor que lhe cobrira a testa. A pobre Fulata, essa, dava gritos, agarrada
ao pescoço de John. E Gagula triunfava, com sinistra zombaria.
O que tínhamos, com efeito, ante os olhos apavorados, era terrível.
Ali, no topo da longa mesa de pedra, estava a Morte – a própria Morte,
um medonho e gigantesco
esqueleto, de pé, todo debruçado para diante, com um dos braços
apoiado ao rebordo da pedra como se acabasse de se erguer do seu assento,
e com o outro levantando no ar uma enorme lança, que parecia arremessar
sobre nós; o crânio da caveira alvejava lugubremente; das covas
das órbitas saía um fulgor negro; e as maxilas estavam entreabertas,
como se fosse falar, e desvendar o seu segredo.
– Santo Deus! – murmurei eu, transido. – Que pode isto ser? – E estas figuras,
em redor? – balbuciava John.
– E além, aquela cousa, no meio? – exclamou o barão, apontando
para a inexplicável figura encruzada sobre a mesa. Então Gagula
pousou a lâmpada e agarrando o braço do barão, com o dedo
estendido para a forma encruzada: – Avança, Incubu, homem forte na
guerra! Avança, e contempla aquele que tu mataste e que está
agora junto aos seus avós! O barão deu um passo, e recuou abafando
um grito. Sobre a mesa, inteiramente nu, com as pernas encruzadas, e a cabeça
que o barão cortara pousada em cima dos joelhos, estava Tuala, último
rei dos cacuanas!… Sim, Tuala, sustentando solenemente sobre os joelhos
a sua hedionda cabeça decepada, e com as vértebras a saírem-lhe
para fora do pescoço encolhido e como ressequido! Sobre todo o corpo
negro tinha já uma espécie de película gelatinosa e vidrada,
que o tornava mais pavoroso, e cuja natureza eu não podia compreender
– até que senti tique, tique, tique, um fio de gotas de água,
que, caindo da abóbada, lhe escorria pelo pescoço, e dali pelo
corpo, para se escoar depois por um buraco cavado na mesa. Então percebi
tudo – o corpo de Tuala estava sendo convertido numa estalactite! E as outras
figuras sentadas em torno da mesa eram igualmente reis dos cacuanas, já
transformados em estalactites! Havia trinta e sete – sendo o último
o pai de Ignosi. É esta, desde tempos imemoráveis, a maneira
por que os cacuanas conservam os seus reis mortos. Petrificam-nos, expondo-os,
durante um longo período de anos, a uma queda de água silenciosa
que, lentamente e gota a gota, os transforma em estátuas geladas. Estávamos
assim diante do mais maravilhoso e exótico panteão real, que
existe decerto na terra. E nada pode igualar à terrífica impressão
que causava aquela série de reis, pertencendo a muitas dinastias, amortalhados
numa camada de gelo que mal lhes deixava já distinguir as feições,
ali sentados, à volta da imensa mesa, em espectral e pavoroso concílio,
presididos pela Morte! E a Morte, o maravilhoso esqueleto, quem o esculpira?
Não decerto os cacuanas. A sua composição, o seu trabalho
revelavam uma arte perfeita. Era obra dos artistas fenícios? Fora colocada
ali em tempo de Salomão, para guardar, pelo terror da sua lança,
a entrada dos tesouros? Não sei. Nem sei mesmo contar, com verdade,
as estranhas sensações por que passei naquela câmara sinistra.
Capítulo XIV – O Tesouro de Salomão
No entanto Gagula (que era por vezes extremamente leve e ágil) trepara
para cima da mesa e acercara-se do cadáver de Tuala, a quem pareceu
falar misteriosamente; depois seguiu por entre as filas dos reis, dirigindo,
ora a um, ora a
outro, como a velhos amigos, palavras lentas e graves que não compreendíamos.
Por fim, tendo chegado em frente da Morte, caiu de bruços, com os braços
estendidos, e ficou mergulhada em oração.
Era um espetáculo tão arrepiador, naquela penumbra de sepulcro,
a hedionda criatura, mais velha que todas as criaturas, fazendo súplicas
ao enorme esqueleto – que eu, já enervado, lhe gritei que viesse, nos
levasse ao lugar dos tesouros.
Imediatamente, a horrível bruxa saltou da mesa, como um gato, e passando
por trás das costas da Morte, ergueu a lâmpada, mostrou a parede
da rocha: – Entrai, homens brancos, entrai, se não tendes medo! Olhamos,
procurando a entrada. Só vimos a rocha sólida e negra.
– Gagula – disse eu com os dentes cerrados – não zombes de nós,
que te mato! – Mas a porta é aqui, homens brancos, a porta é
aqui! – gania ela, com as costas apoiadas à muralha, onde roçava
de leve uma das mãos descarnadas.
E então, à luz bruxuleante da lâmpada, vimos que um
bocado da muralha, do feitio e tamanho de uma porta, se ia erguendo lentamente
do solo, e desaparecendo em cima na rocha, onde devia existir uma cavidade
para a receber. Não pesava menos, aquela massa de pedra, de vinte a
trinta toneladas – e era certamente movida por algum maquinismo, fundado num
equilíbrio de peso, que uma mola, colocada num lugar secreto da muralha,
punha em movimento. Nem nos lembrou, nesse momento, arrancar a Gagula o segredo
da mola, que erguia a pedra! Pasmados, víamos a imensa massa subir,
devagar, muito devagar até que desapareceu, deixando diante de nós
um grande buraco negro.
Estava enfim aberto, para nós nele penetrarmos, o caminho que levava
aos tesouros de Salomão. A emoção foi tão intensa,
que eu, por mim, comecei a tremer. Era pois verdade o que dizia, no seu pedaço
de papel, o velho D. José da Silveira? Estavam pois ao nosso alcance,
destinadas a nós, as maiores riquezas que jamais um rei acumulou na
terra? Poderíamos nós ver, tocar, agarrar e levar em sacos,
o tesouro que fora de Salomão, maravilha dos livros santos? Assim parecia
– e para isso bastava dar um passo.
Dei esse passo – e com explicável sofreguidão. Mas Gagula
defendia ainda com os braços o buraco negro: – Escutai, homens das
estrelas! Escutai o que é necessário saber! As pedras que brilham,
que vós ides ver, foram tiradas da cova circular não sei por
quem, e guardadas aqui não sei por quem. A gente que, de geração
em geração, tem vivido nesta terra, sabia da existência
do tesouro, mas ninguém conhecia o segredo para abrir a porta de pedra!
Por fim aconteceu vir aqui um homem branco, talvez também das estrelas,
que foi bem recebido e bem agasalhado pelo rei de então, que era o
quinto, além, sentado à mesa de pedra. Com ele vinha uma rapariga
cacuana; ambos percorreram estas cavernas; e sucedeu que, por acaso, essa
mulher, que talvez fosse eu ou que talvez fosse outra como eu, descobriu o
segredo da porta. O homem e a mulher entraram, e encheram de pedras um saco
pequeno de couro, onde ela levava de comer. Ao saírem, o homem agarrou
na mão outra pedra, maior que todas…
E aqui a bruxa parou, com os olhos coruscantes cravados em nós.
– Continua! – exclamei eu, que escutara sem respirar. – O homem era D. José
da Silveira. Que se passou mais?…
A velha feiticeira recuou espantada.
– Como lhe sabeis o nome? Ah! sabes-lhe o nome!… Pois bem, ninguém
pode dizer o que sucedeu. Mas o homem teve medo de repente, atirou para o
chão o saco cheio de pedras, e fugiu, levando só agarrada a
pedra maior que tinha na mão. É a que Tuala trazia no diadema.
É a que tu deste a Ignosi! – E ninguém mais entrou aqui? – Ninguém.
Mas os reis ficaram sabendo o segredo da porta… Nenhum, porém, entrou,
porque dizem profecias, já muito antigas, que aquele que aqui entrar
morrerá antes de uma lua nova. Esta é a verdade, homens das
estrelas. Entrai agora! Se eu não menti a respeito do homem que se
chamava Silveira, vós encontrareis no chão, à entrada
da porta, caído, o saco de couro cheio de pedras… E se as profecias
mentem ou não, sobre a morte que espera a quem aqui penetrar, vós
mais tarde o sabereis…
E sem mais, a hedionda criatura mergulhou no corredor tenebroso, erguendo
ao alto a pálida lâmpada. Nós no entanto, olhávamos
uns para os outros com hesitação, quase com medo – bem natural,
de resto, em nervos abalados por tantas emoções estranhas. Foi
John o mais corajoso: – Acabou-se! Cá vou! Era ridículo ficarmos
apavorados com as tonteiras de uma velha macaca! Adiante! E avançou
seguido por Fulata e por nós dois, em silêncio. Mas, dados alguns
passos, ouvimos uma medonha praga. Era John que tropeçara, quase caíra
por sobre um bloco de cantaria atravessado no corredor. Gagula erguera mais
a lâmpada: – Não receeis!… São pedras que a gente outrora
tinha aí acumulado para tapar o corredor para sempre… Mas fugiram,
ao que parece; não tiveram tempo! E, com efeito, havia ali como umas
obras interrompidas – pedras serradas e esquadradas, um monte de cimento,
e uma picareta e uma trolha, semelhantes às que ainda hoje usam os
pedreiros. Contemplei com reverência estas antiquíssimas ferramentas.
No entanto Fulata, que desde a nossa entrada na caverna não cessara
de tremer de medo, sentou-se sobre uma pedra, e declarou que desmaiava; não
podia mais caminhar… Ali a deixamos, com o cesto de provisões ao
lado, até que ela ganhasse alento. E seguimos. Uns quinze passos adiante,
demos de repente com uma porta de pau, curiosamente pintada a cores, e toda
aberta para trás. E no limiar da porta, lá estava, caído
no chão – um pequeno saco de couro que parecia cheio de seixos! – Então,
brancos, que vos disse eu? – ganiu Gagula em triunfo, brandindo a lâmpada.
– Olhai bem! Aí tendes o saco que o homem deixou cair! Aí está
ainda, desde gerações! Que vos disse eu? John ergueu o saco.
Era pesado e tinha: – Santo Deus! Está cheio de brilhantes! – balbuciou
ele quase com medo.
E com efeito, meus amigos! A idéia de um saco de couro repleto de
diamantes – é de causar medo! – Para diante, para diante! – exclamou
o barão, com súbita impaciência. – Dá cá
tu a lâmpada, bruxa! Arrancou a luz das mãos de Gagula. E de
tropel com ele, sem sequer pensar mais no saco que John atirara outra vez
para o chão, transpusemos a porta. Estávamos dentro do tesouro
de Salomão.
Durante um momento, olhamos vagamente em redor, num silêncio apavorado.
À luz débil e mortiça da lâmpada só percebemos,
ao princípio, que o quarto ou câmara era escavado na rocha viva.
Depois, a um dos lados, vimos distintamente alvejar, sobrepostos em camadas
até à abóbada, uma porção imensa de dentes
de elefante, de inigualável riqueza. Haveria talvez uns quinhentos
ou seiscentos dentes. Só aquele marfim nos poderia tornar a todos ricos
para sempre. Era desse espantoso depósito que Salomão fizera
talvez o “grande trono de marfim”, de que falam os livros santos!
Toquei um dente de leve, depois outro, com veneração, como relíquias
sagradas! E o suor caía-me em bagas.
– Ali estão os diamantes – gritou John. – Trazei a luz! Corremos
para o recanto que ele indicava. E a lâmpada que o barão baixara
mostrou umas dez ou doze caixas de madeira, estreitas e muito compridas, pintadas
de escarlate. A tampa de uma, tão antiga que mesmo naquele ar seco
de caverna tinha apodrecido, apresentava vestígios de arrombamento.
Pelo menos, no meio havia um buraco. Enterrei a mão através,
e tirei-a cheia, não de diamantes, mas de moedas de ouro, como nós
nunca víramos, com letras hebraicas (ou que julgamos hebraicas) e palmeiras
e torres em relevo no cunho.
– Justos céus! – murmurei sufocado. – Aqui devem estar milhões!
Isto nem se acredita!… Naturalmente era o dinheiro para pagar as férias
aos mineiros… Estaremos nós a sonhar? – Mas os diamantes – exclamava
John, percorrendo sofregamente o quarto. – Onde estão, por fim, os
diamantes? Só se o português os meteu todos no saco! Gagula,
decerto, compreendeu os nossos olhares, que buscavam avidamente: – Além,
além, onde é mais escuro! Lá estão os três
cofres de pedra; dois selados, um aberto! A sua aguda voz tomara um som cavo
e sinistro. Mas quê! Onde ia agora, diante de tão inverossímeis
riquezas, o medo das profecias mortais? Era além, no recanto escuro?
Para lá corremos, sondando com a lâmpada.
– Aqui, rapazes! – gritou John, na maior excitação. – Aqui.
Oh meu Deus! São três arcas de pedra! E eram! Eram três
arcas de pedra que nos davam pela cintura, ocupando os três lados de
uma espécie de alcova tenebrosa. Duas estavam fechadas com imensas
tampas de pedra. A tampa da terceira estava encostada à muralha. Baixamos
a lâmpada para dentro. Não pudemos distinguir nada ao princípio,
deslumbrados por uma vaga refração prateada que faiscava e tremia.
Quando os olhos se habituaram àquele brilho estranho, vimos que a arca
imensa estava cheia até ao meio de diamantes brutos! Mergulhei as mãos
neles. Com efeito! Eram diamantes. Uma arca cheia de diamantes! Não
havia dúvida! Bem lhes sentia eu entre os dedos aquele macio especial
que em Kimberley, nas minas, chamam sabonáceo! Era uma arca cheia de
diamantes! Ficamos, mudos, olhando uns para os outros. À frouxa luz
da lâmpada eu via as faces dos meus amigos perfeitamente lívidas.
E não havia em nós nenhuma alegria. Era um torpor, como se a
alma nos ficasse bruscamente esmagada, sob a fabulosa infinidade daquela riqueza.
Eu murmurei, com um suspiro de criança:
– Somos os homens mais ricos deste mundo! John passava os dedos pelo queixo,
numa distração quase melancólica: – Eu sei lá!…
Os diamantes agora perdem de valor; ficam como vidro! – E transportá-los?
E transportá-los? – dizia o barão, abanando a cabeça.
De repente sentimos por trás uma risada que nos estarreceu. Era Gagula.
Gagula que ia, vinha, às voltas, na sala escura, como um morcego, de
braço estendido para nós: – Hi! Hi! Hi! Aí está
satisfeito o desejo vil dos vossos corações, homens das estrelas!
Hi! Hi! Hi! Quantas pedras brancas! Milhares delas! E todas vossas! Agarrai
nelas! Rolai por cima delas! Hi! Hi! Hi! Comei as pedras! Hi! Hi! Hi! Bebei
as pedras! Havia alguma cousa de tão grotesco naquela idéia
de beber diamantes e comer diamantes, que larguei a rir estridentemente, descaradamente.
E por contágio, os meus companheiros desataram também a rir,
a rir, às gargalhadas. E ali ficamos todos, de mãos nas ilhargas,
perdidos a rir, a rir, a rir! Ríamos de quê? Nem sei. Ríamos
dos diamantes – daqueles diamantes que, milhares de anos antes, os mineiros
de Salomão tinham escavado para nós; que os agentes de Salomão
tinham armazenado para nós… Pertenciam a Salomão… Mas onde
ia Salomão? Eram nossos, agora, os seus diamantes! Não tinham
sido para Salomão, nem para Davi, seu pai, nem para nenhum rei de Judá!
Não tinham sido para o atrevido e velho fidalgo português, nem
para nenhum dos portugueses que vinham singrando de leste em caravelas armadas!
Tinham sido para nós! Só para nós! Para nós aqueles
milhões e milhões de libras, que, neste século, em que
o dinheiro tudo domina, nos tornavam tão poderosos como outrora Salomão.
De fato éramos Salomões! De repente o acesso de riso findou.
E ficamos a olhar uns para os outros, estupidamente.
– Abri as outras arcas! – gania no entanto Gagula. – Estão também
cheias! Todas as pedras são vossas! Fartai-vos, fartai-vos! Em silêncio,
com uma sofreguidão brutal, arremessamo-nos sobre as outras arcas,
quebrando os selos, empuxando as tampas, num desesperado esforço! Hurra!
Cheias também! Cheias até cima!… Não, a terceira estava
quase vazia. Mas todas as pedras que continha eram escolhidas, de um peso,
de um tamanho inacreditáveis. Havia-as como ovos pequenos. As maiores,
todavia, postas contra a luz, apresentavam um vago tom amarelo. Eram “diamantes
de cor”, como eles dizem em Kimberley, nas minas. Tinha eu um destes
na mão, enorme, quando, de repente, ouvimos gritos aflitos do lado
do corredor. Era a voz de Fulata: – Acudam! Acudam! Que a porta de pedra está
a cair! Uma outra voz, desesperada, a de Gagula, rugia sinistramente: – Larga-me,
rapariga, larga-me! – Acudam! Acudam! Ai Gagula que me matou! Como contar
o brusco, pavoroso lance? Corremos. À luz frouxa da lâmpada vimos
a porta de pedra descendo, e, junto dela, Gagula e Fulata enlaçadas
numa luta furiosa. De repente Fulata cai, coberta de sangue. Gagula atira-se
ao chão, para fugir como uma cobra através da fenda que havia
ainda entre o chão e a porta. Mete a cabeça e o ombros!… Justos
céus! Era tarde. A pedra imensa apanha-a, e a criatura
uiva de agonia! A pedra desce, desce, com as suas trinta toneladas sobre o
corpo já preso. Vêm dele gritos e gritos, como eu jamais ouvira
– até e há um som horrível de cousa esborrachada, e a
porta imensa fica imóvel justamente fechada, quando nós, correndo
sempre, esbarramos de roldão contra ela! Isto durara quatro segundos
– quatro séculos. Voltamos então para Fulata. A pobre rapariga
tinha uma grande facada e estava a morrer.
– Ah Boguã! (era assim que os cacuanas chamavam a John). Ah Boguã!
– exclamou, sufocada, a bela criatura. – Gagula saiu fora. Eu não a
vi, estava meio desmaiada. Então a porta começou a descer…
Ela ainda entrou, foi olhar para vós… Depois tornava a sair, quando
eu a agarrei, e ela me deu uma facada, e agora morro! – Pobre rapariga! Minha
pobre rapariga! – gritava John. E como não podia fazer outra cousa,
começou a dar-lhe beijos, longos beijos.
Ela sorria, arfando, com as pálpebras cerradas. Depois: – Macumazã,
estás aí?… Já mal vejo… Estás aí?…
– Estou, Fulata. Que queres? – Fala por mim, Macumazã. Dize a Boguã
que não me compreende bem. Dize-lhe que o amei sempre, desde o primeiro
dia; que o amo… Mas que morro contente, porque ele não se podia prender
a uma rapariga como eu… O sol não se casa com a noite.
Teve um suspiro. A sua mão errante procurava em redor.
– Macumazã, estás aí? Dize-lhe que me aperte mais contra
o peito, para eu sentir os seus braços. Assim, assim… Dize-lhe que
um dia hei de tornar a vê-lo nas estrelas… Que hei de ir de estrela
em estrela, à procura dele. Macumazã, dize-lhe ainda que o amo,
dize-lhe ainda…Os lábios sorriam, sem falar. Estava morta. As lágrimas
caíam, quatro a quatro, pela face do meu pobre John.
– Morta! – murmurava ele, agarrando ainda as mãos de Fulata. – Já
me não ouve! E não a tornar a ver, não a tornar a ver!
O barão disse então, devagar, e numa estranha voz: – Não
tardará, amigo, que a tornes a ver.
– Como assim? – Oh homens, pois não percebestes ainda que estamos
enterrados vivos? Foi então, só então, que, pela primeira
vez, compreendi o indizível horror do que nos sucedia! Sim, com efeito!
A enorme massa de pedra estava fechada. O único ser que lhe conhecia
o segredo jazia esborrachado por ela, sob ela. Forçá-la, só
se tivéssemos ali massas de dinamite! Estava fechada para sempre! E
nós ali fechados, detrás dela! Durante momentos ficamos mudos,
com os cabelos em pé, junto do cadáver de Fulata. Toda a força
de homens, a coragem de homens, fugia de nós bruscamente. Éramos
seres inertes. E compreendíamos agora todo o plano monstruoso de Gagula
– as suas ameaças, as suas ironias, o seu sinistro convite para bebermos
e comermos diamantes. Sim, era o que tínhamos para beber e comer! Desde
Lu, decerto, ela viera planejando a traição – e só nos
trouxera à caverna, para nos deixar lá dentro, morrendo junto
dos tesouros que apetecêramos!
– É necessário fazer alguma cousa – exclamou o barão,
numa voz rouca. – Ânimo, rapazes! A lâmpada vai findar. Vejamos
se, por um acaso, podemos achar o segredo, a mola que move a rocha.
Recobramos um momento de energia, e, escorregando no sangue da pobre Fulata,
rompemos a apalpar ansiosamente a porta e as paredes do corredor. Não
achamos nada; em mais de uma hora de desesperada busca, que nos esfolou as
mãos.
– A mola, se tal mola há, está do lado de fora – disse eu.
– Foi por isso que Gagula saiu, como disse Fulata. Depois, se voltou, é
porque se queria certificar que estávamos bem entretidos com os diamantes…
Malditos sejam eles, e maldita seja ela! – De resto – lembrou o barão
– se a infame bruxa tentou fugir pela fenda, é que sabia bem que, pelo
lado de dentro, não podia levantar a rocha. Não há nada
a fazer com a porta. Vamos ver outra vez, na câmara.
Levantamos então, com respeito e cuidado, o corpo de Fulata, fomo-lo
colocar dentro, no chão, com os braços em cruz, junto das arcas
de dinheiro. Depois vim buscar o cesto de provisões. E sentados junto
dos cofres de pedra, atulhados de riquezas que nos não podiam salvar,
dividimos as provisões em doze pequenos lotes, que, a dois repastos
por dia, nos poderiam sustentar a vida por dois dias. Além da caça
fria e das carnes-secas, tínhamos duas cabaças de água.
– Bem, jantemos – disse o barão – que é talvez o nosso penúltimo
jantar neste mundo.
Pouco era o apetite, naturalmente. Mas havia horas que estávamos
em jejum, e aquela parca comida, molhada com avaros goles de água,
reconfortou-nos e deu-nos um vago alento de esperança. Começamos
então a examinar sistematicamente as paredes da nossa prisão,
contando com a remota possibilidade de que existisse, além da porta
da rocha, outra saída. Esquadrinhamos todos os recantos, arredamos
todas as arcas, batemos as muralhas, sondamos o solo, exploramos a abóbada.
Ficamos exaustos sem achar nada. A lâmpada espirrava e amortecia. Quase
todo o óleo estava chupado.
– Que horas são, Quartelmar? – perguntou o barão.
Tirei o relógio. Eram seis horas. Tínhamos entrado às
onze na caverna.
– Infandós há de dar pela nossa falta – lembrei eu. – Se nos
não vir voltar esta noite, decerto nos vem procurar…
– E então? – exclamou o barão. – De que serve? Infandós
não conhece o segredo da porta; ninguém o conhecia senão
Gagula. Ainda que conhecesse a porta, não a podia arrombar. Nem todo
o exército dos cacuanas, com as suas azagaias, pode furar cinco pés
de rocha viva. Ninguém nos pode salvar senão Deus! Houve entre
nós um longo, grave silêncio. De repente a luz flamejou, mostrando,
num relevo forte, todo o interior da câmara, o grande monte dos marfins
brancos, as arcas de dinheiro pintadas de vermelho, o corpo da pobre Fulata
estirado diante delas, o saco de couro cheio de diamantes, a vaga refração
que saía dos cofres de pedras abertos, e as lívidas faces de
nós três, ali sentados a um canto, à espera da morte.
Depois a luz bruxuleou e morreu.
Capítulo XV – Nas Entranhas da Terra
Não me é possível descrever, com exatidão, as
agonias daquela noite. E ainda assim a divina misericórdia permitiu
que dormíssemos a espaços. Mas o brusco acordar, a cada instante,
era pungente. Por mim, o que mais me torturava era o silêncio. Um silêncio
tenebroso, tangível, absoluto, – o silêncio de uma sepultura
cavada nas profundidades rochosas do globo, e onde todas as artilharias troando,
e as trovoadas do céu estalando, não poderiam fazer chegar a
menor vibração de som, fosse ele ao menos tão leve como
um leve zumbir de mosca… E então, acordado, a monstruosa ironia da
nossa situação ainda mais me acabrunhava. Em torno de nós
faziam riquezas incontáveis, bastantes para pagar as dívidas
de muitos Estados, construir frotas de couraçados, erguer palácios
todos feitos de ouro, saciar todas as forres, satisfazer todas as imaginações…
E de que nos serviam? Uma pouca de pedra bruta sem valor, mas que nós
não podíamos quebrar com as nossas mãos, tornavam-nas
inúteis, tão sem valor como a própria pedra! Uma arca
inteira de diamantes daríamos nós com infinito prazer por um
pouco de pão, ou por outra cabaça de água. Mais! Daríamos
todas as arcas de diamantes pelo privilégio de morrer de repente, sem
sentir, sem sofrer! Na verdade, o que é a riqueza? Sonho, estúpida
ilusão! – John – disse o barão, do seu canto, num dos momentos
em que eu assim pensava – quantos fósforos te restam? – Oito.
– Acende um, vê as horas.
A chama quase nos deslumbrou depois da intensa treva. Eram cinco horas no
meu relógio. A alvorada estaria agora clareando as alturas da serra!
A brisa espalharia o aroma do rosmaninho em flor! Os soldados de Infandós
começariam agora a mexer-se nas suas mantas, junto das fogueiras apagadas
– e as nascentes de água, junto deles, cantariam de rocha em rocha.
De assim pensar, as lágrimas umedeceram-me os olhos.
– Era melhor comermos alguma cousa – sugeriu o barão.
– Para quê? – exclamou John. – Quanto mais depressa acabarmos com
isto, melhor! – Enquanto Deus permite a vida, é que permite a esperança!
– respondeu o barão gravemente.
Repartimos uma pouca de carne-seca e de água. Enquanto comíamos,
um de nós lembrou que nos avizinhássemos da porta, e gritássemos
com toda a força, porque talvez Infandós, andando já
na caverna à nossa procura, ouvisse o remoto som das nossas vozes.
John, que, como marinheiro, tinha o hábito de gritar, desceu o corredor
às apalpadelas, e começou a berrar furiosamente. Nunca, decerto,
ouvi uivos iguais; mas foram tão ineficazes como um murmúrio
de inseto. O resultado único foi que John voltou com a garganta ressequida,
e teve de chupar um trago da pouca água que restava. Gritar só
nos fazia sede. Desistimos desse esforço inútil.
De sorte que nos agachamos de novo junto dos cofres cheios de diamantes,
naquela horrível inação que era um dos nossos maiores
tormentos. E eu, então, cedi ao desespero. Deixei cair a cabeça
no ombro do barão, e desatei a chorar. Do outro lado o pobre John soluçava
também.
Grande alma, e corajosa, e doce, era a do barão. Se nós fôssemos
duas criancinhas assustadas, e ele a nossa mãe, não nos teria
animado e consolado com maior carinho. Esquecendo a sua própria sorte,
fez tudo para nos serenar, contando casos de homens que se tinham encontrado
em lances terrivelmente iguais, e que milagrosamente tinham escapado. Depois
levava-nos a considerar que, no fim de tudo, nós estávamos simplesmente
chegando àquele fim a que todos têm de chegar; que tudo em breve
acabaria, e que a morte por inanição é suave (o que não
é verdade). E enfim, com um modo diferente, pedia-nos que nos abandonássemos
à misericórdia de Deus, e lhe rogássemos, na nossa miséria,
um olhar dos seus olhos piedosos. Natureza adorável, a deste homem!
Quanta serenidade, e quanta força! Eu, por mim, acolhia-me a ele como
a um grande refúgio. E, por sua exortação, rezei e serenei.
Assim passou o dia (se tal treva se pode chamar dia), até que acendi
outro fósforo, olhei o relógio. Eram sete horas! Pensamos então
em comer.
E quando estávamos dividindo a carne-seca, ocorreu-me, de repente,
uma idéia estranha: – Por que é – disse eu – que o ar aqui se
conserva tão fresco? É um pouco espesso, mas é fresco.
– Santo Deus! – exclamou John erguendo-se com um pulo. – Nunca pensei nisso!
Com efeito, é fresco… Não pode vir de fora pela porta de pedra,
porque reparei perfeitamente que ela gira dentro de quelhas… Tem de vir
de outro sítio. Se não houvesse uma corrente de ar, devíamos
ficar sufocados, quando aqui entramos ontem… Agora mesmo devíamo-nos
sentir abafados. Evidentemente, o ar é renovado. Vamos a ver! Ainda
ele não findara, já nós andávamos de gatas, às
apalpadelas, na escuridão, procurando sofregamente qualquer indicação
de buraco ou fenda, por onde entrasse ar. Houve um momento em que pousei a
mão no quer que fosse de gelado. Era a face da pobre Fulata, já
rígida. Durante uma hora, ou mais, passamos assim apalpando todos os
cantos, até que o barão e eu desistimos, esfalfados, e todos
pisados de ter constantemente batido com a cabeça os muros, nos dentes
de elefante, e nas esquinas das arcas.
Mas John continuou, sem perder a esperança, declarando que “era
melhor aquilo que pensar na morte, de braços cruzados”. De repente,
teve uma exclamação: – Oh rapazes! Aqui! Vinde cá.
Com que precipitação corremos para o canto de onde ele falara!
– Quartelmar, ponha aqui a mão, onde está a minha. Aí.
Que sente? – Parece-me que sinto um fio de ar.
– Agora ouça! Ergueu-se, e bateu com o pé no chão.
Uma imensa esperança relampejou-nos na alma. A laje soava oco. Com
as mãos a tremer acendi um fósforo. Estávamos num recanto
de que ainda não suspeitáramos – e aos nossos pés, na
laje que pisávamos, e como encrustada nela, havia uma grossa argola
de pedra. Não tivemos uma palavra, na imensa excitação
que de nós se apoderou. John tinha uma navalha, com um desses ganchos
que servem para extrair pedras pequenas das ferraduras dos cavalos.
Ajoelhou-se e começou a raspar com o gancho, em torno da argola. Raspou,
raspou – até que conseguiu introduzir a ponta do gancho sob a argola,
levantá-la pouco a pouco, pô-la a prumo. Depois deitou-lhe as
mãos, e puxou desesperadamente. Nada se moveu.
– Deixai-me ver a mim! – exclamei com impaciência.
Agarrei, pondo toda a minha força no puxão contínuo
e intenso. Escalavrei as mãos. A pedra não se moveu. Depois
foi o barão. Sentíamo-lo gemer. A pedra não se moveu.
De novo John se atirou de joelhos, e com o gancho da navalha raspou em redor
da frincha por onde nós sentíamos como um débil hálito
de ar. Em seguida tirou um grosso lenço de seda que lhe envolvia o
pescoço, e passou-o na argola.
– Agora, barão! Mãos ao lenço, e puxar até rebentar!
Quartelmar, agarre o barão pela cinta, e puxem ambos quando eu disser…
Um, dois, vá! Em silêncio, com os dentes rilhados, puxamos, puxamos
– até que eu sentia rangerem os ossos do barão. Era ele que
fazia o esforço maior, com os seus enormes braços de ferro.
E foi ele que sentiu a pedra mexer…
– Agora! Agora! Está cedendo! Mais! Ala, ala! Héh! Um estalo,
uma rajada brusca de ar, e rolamos estatelados no chão, com a pedra
por cima de nós. Fora a imensa força do barão que fizera
o prodígio. Que grande cousa, a força! – Um fósforo,
Quartelmar! – exclamou ele, erguendo-se, ainda arquejante.
Acendi o fósforo. E, louvado Deus! Vimos diante de nós os
primeiros degraus de uma escada de pedra! – E agora? – perguntou John.
– Descer! E confiar em Deus! – Esperai! – gritou o barão. – Quartelmar,
veja se apalpa e acha o resto da comida e da água. Quem sabe onde iremos
parar? Achei logo as provisões, que estavam junto da arca de pedra,
cheia de diamantes. E já enfiara o cesto no braço, quando pensei
nos diamantes… Por que não? Quem sabe? Talvez por mercê divina,
achássemos uma saída! Não fazia mal nenhum, à
cautela, meter um punhado de diamantes na algibeira!… Se chegássemos
a sair daquela horrível cova, não teriam sido ao menos inúteis
todas as nossas angústias. Um punhado de diamantes nada pesava! E,
ao acaso, mergulhei a mão na arca e comecei a encher todos os bolsos
da minha rabona. Depois atulhei as algibeiras das pantalonas. Já abalava,
quando voltei ainda, com uma idéia, à arca onde estavam as pedras
mais graúdas. E encafuei uma enorme mão cheia delas para dentro
da algibeira do peito. O contato vivo daquelas riquezas fez-me pensar nos
outros.
– Oh rapazes! Não quereis levar uns poucos de diamantes? Eu enchi
as algibeiras.
– Diabos levem os diamantes – disse do canto o barão, impaciente.
– Até me faz náuseas a idéia de diamantes! – É
marchar, é marchar! Enquanto ao amigo John, esse nem respondeu. Creio
que estava de joelhos, junto do corpo de Fulata, dando o último adeus
àquela que por ele morrera! Quando nos achamos junto do alçapão,
já o barão descera o primeiro degrau.
– Eu vou adiante; segui devagar.
– Cuidado! – gritei eu. – Pode haver por baixo algum medonho buraco. Vá
tenteando… Mão encostada sempre à parede… O barão
desceu, contando os degraus. Quando chegara a quinze, parou.
– É um corredor – gritou ele de baixo.
– Descei! Quando chegamos ao fundo, acendi um dos dois fósforos que
nos restavam. À luz que ele deu, vimos um pequeno espaço, onde
se encontravam, em ângulo reto, dois túneis muito estreitos.
O fósforo morreu, queimando-me os dedos. E ficamos numa horrível
hesitação! Qual dos túneis seguir? John, então,
lembrou-se que a chama do fósforo se inclinara para a banda do túnel
da esquerda. Portanto o ar vinha pelo túnel da direita. Era por esse
que devíamos caminhar, demandando o lado do ar.
Aceitamos a idéia. E apalpando sempre a parede, não arriscando
um passo sem tentear o solo, seguimos nesta nova e incerta aventura. Ao fim
de um quarto de hora de marcha lenta, esbarramos num muro. Era outro túnel
transversal, por onde continuamos cosidos com o muro. Depois desse topamos
outro, que o cruzava em ângulo agudo. Depois havia outro, mais largo.
E assim durante horas. Estávamos num labirinto de rocha viva. Para
que tivessem servido outrora estas inumeráveis passagens subterrâneas,
não sei dizer – mas tinham a aparência de galerias de mina.
Finalmente paramos, esfalfados, com a esperança meio perdida. Comemos
os restos das provisões, bebemos os derradeiros goles de água.
Tínhamos escapado de morrer nas trevas de uma cova de diamantes – para
vir talvez morrer nas trevas de uma mina vazia…
Quando assim estávamos sentados no chão, encostados ao muro,
num infinito desalento – eu julguei ouvir um som, débil e vago, como
a distância. Avisei os outros; escutamos sem respirar. E todos muito
claramente distinguimos um som. Era muito tênue, muito remoto, – mas
era um som, um som murmurante e contínuo.
– Santo Deus! – exclamou John. – É água a correr! Tenho a
certeza que é água a correr.
Num instante estávamos de pé, caminhando para o som. A cada
passo o sentíamos mais distinto, mais claro, na imensa mudez do túnel.
Sempre para diante, sempre para diante! O som ia crescendo. Por fim era um
ruído forte, o ruído de uma corrente de água. Mas como
podia haver água corrente nestas entranhas da terra?… E todavia,
com certeza, ali perto corria água com força. John, marchando
adiante, jurava que lhe percebia já a umidade e o cheiro.
– Devagar, John, devagar! – gritou o barão. – Devemos estar perto…
De repente um baque na água, um grito de John! Tinha caído.
– John! John! Onde estás? – berramos, perdidos de terror. – Fala!
Fala! Que alivio, quando a voz dele nos veio de longe, sufocada.
– Salvo. Agarrei-me a uma pedra! Acendei um fósforo para eu ver onde
estais! Raspei o meu último fósforo. À sua luz trêmula
vimos aos nossos pés uma imensa massa de água, correndo com
grande força. Que largura tinha não percebemos… Mas, à
distância, distinguimos a forma vaga do nosso companheiro, pendurado
de um penedo agudo.
– Preparai-vos para me agarrar – gritou ele de lá. – Vou nadar para
aí!
Outro baque, uma grande luta de braços batendo a água. Depois,
junto de nós, num resfolegar ansioso. E, por fim, uma exclamação
do barão, que agarrara o nosso amigo pelas mãos, o puxava para
dentro do túnel, a escorrer.
– Irra! – balbuciava John, ofegando. – Estive por um fio. É uma corrente
furiosa e parece-me que não tem fundo. Evidentemente, deste lado nada
conseguíamos. De sorte que, depois de John descansar, de bebermos à
farta daquela água que era deliciosa, e de lavarmos a cara, deixamos
as margens daquele tenebroso rio, e retrocedemos ao comprido do túnel,
com John adiante, tiritando e pingando. Depois de andarmos um quarto de hora
– chegamos a outro túnel que se inclinava para a direita e parecia
mais largo.
– Seguimos este – disse o barão inteiramente desalentado. – Todos
eles são iguais. O melhor é andarmos, andarmos, até cair
aí para um canto, sem poder mais, à espera da morte. Durante
muito, muito tempo, mudos, em fila, arrastamos os passos na treva, atrás
do barão, cifas fortes pernas já frouxeavam.
De repente esbarramos com ele – que estacara, como atônito.
– Quartelmar! – exclamou ele, agarrando-me convulsivamente o braço.
– Eu estou a delirar ou aquilo além é luz? Arregalamos desesperadamente
os olhos. E com efeito, lá ao longe, ao fundo do túnel, vimos
uma pálida, vaga mancha de claridade, pouco maior do que um vidro de
janela! Com outro alento de esperança, estugamos o passo. Momentos
depois toda a dúvida cessara, deliciosamente. Era luz – uma desmaiada
mancha de luz! Tropeçávamos uns contra os outros na nossa ansiedade.
Mais viva, cada vez mais viva a luz! Por fim, um ar fresco bateu-nos a face!…
Mas, de repente, o túnel estreitou. Caminhamos curvados. Depois estreitou
mais. Gatinhamos, de mãos no chão. E estreitou ainda, como uma
toca de raposa. Fomos de rastos. Mas a rocha findara.
Era terra, terra friável, que se esboroava… Um empuxão,
um gemido, e o barão furou, e John furou, e eu furei – e sobre as nossas
cabeças luziam as benditas estrelas, e na nossa face batia uma aragem
doce! De repente faltou-nos o chão, e todos três, à uma,
rolamos, de escantilhão, por um declive abaixo, de terra mole e úmida,
entre capim e tojo… Agarrei uma cousa e parei. Estonteado, coberto de lodo,
berrei pelos outros, desesperadamente. Um brado em resposta veio de baixo,
de uma terra onde o barão fora parar. Resvalei até lá,
e fui encontrar o nosso amigo atordoado, sem fôlego, mas intacto. Gritamos
então por John. E uns olás arquejantes guiaram-nos ao sítio
onde uma raiz de árvore, em que ainda estava acavalado, o detivera
no desesperado tombo.
Sentamo-nos então todos três na relva – e vendo-nos fora da
fúnebre caverna, salvos, sãos, a respirar outra vez o ar da
terra, a emoção foi tão forte que começamos a
chorar de alegria. Seguramente fora Deus misericordioso que nos guiara por
aquele túnel, para aquele buraco, que era a porta da Vida! E agora,
a manhã que julgávamos nunca mais ver, estava roseando o topo
dos montes.
À sua luz bendita vimos, então, que nos achávamos no
fundo, ou quase no fundo, daquela imensa cova circular que fora outrora a
mina de Diamantes. Lá no alto, já podíamos distinguir
as confusas formas dos três colossos. Sem dúvida aqueles corredores
por onde tínhamos vagueado, tão angustiosamente, comunicavam
outrora
com as Diamanteiras. E enquanto ao tenebroso rio… Mas que nos importava
agora o rio? A luz do dia clareava. Estávamos envolvidos na luz do
dia! Só isto era essencial e doce de saber! Não podíamos
deixar, todavia, de pasmar para as nossas figuras. Escaveirados, esgazeados,
rotos, cheios de pisaduras, com camadas de pó e de lama, sangue nas
mãos e sangue nas faces – éramos, na verdade, três espantalhos
medonhos. Mas não havia a pensar em nos sacudirmos ou nos ajeitarmos.
Aquele fundo da cova, úmido e regelado, era perigoso para corpos como
os nossos tão exaustos. De sorte que começamos, com lentos e
custosos passos, a trepar as ladeiras íngremes, através da greda
azulada, agarrando-nos às raízes, e agarrando-nos ao tojo, num
esforço último que nos esvaía. Ao fim de uma hora estava
terminada a façanha -e os nossos pés, trêmulos, pisavam
outra vez a estrada de Salomão. A umas cem jardas adiante brilhava
uma fogueira junto de cabanas, e em volta dela estavam homens. Para lá
caminhamos, amparando-nos uns aos outros, e parando, meio desmaiados, a cada
passo incerto. De repente um dos homens que se aquecia ao lume ergueu-se,
avistou-nos – e atirou-se de bruços ao chão, tremendo, gritando
de medo.
– Infandós, Infandós, somos nós teus amigos! Ele levantou
a cabeça, depois o corpo. Por fim correu para nós, com os olhos
esbugalhados, e ainda tremendo todo: – Oh meus senhores! Sois vós!
Sois vós! Voltais do fundo dos mortos!… Voltais do fundo dos mortos!…
E o velho guerreiro, abraçando-se ao barão pelos joelhos,
rompeu a soluçar de alegria.
Capítulo XVI – A Partida de Lu
Dez dias depois estávamos de novo em Lu – nas nossas confortáveis
cubatas de Lu, à sombra dos machabeles. E poucos vestígios nos
restavam daquela atroz aventura, além dos muitos cabelos brancos que
eu trazia, e da melancolia em que caíra o nosso pobre John, com o coração
ainda cheio de Fulata.
É inútil acrescentar que não tornamos a penetrar no
tesouro de Salomão – apesar de sagazes e metódicas tentativas.
Naquele dia em que Infandós nos acolheu como a ressuscitados, nada
fizemos senão comer, dormir, descansar, gozar o sol. Logo no dia seguinte,
porém, descemos com uma escolta à grande cova, na esperança
de encontrar o buraco por onde tínhamos furado para a luz e para a
vida. Foi debalde. Em primeiro lugar, chovera copiosamente de noite, e todas
as nossas pegadas tinham desaparecido; mas, além disso, os declives
em funil da enorme cova estavam por todos os lados cheios de buracos, uns
naturais, outros feitos por bichos. Qual deles nos salvara, entre tantos milhares?
Impossível descobrir! Depois disso voltamos à caverna de estalactites,
afrontamos outra vez os horrores da câmara dos reis mortos; e durante
muito tempo rondamos diante da muralha de pedra, para além da qual
jaziam, inacessíveis para sempre, os maiores tesouros da terra, para
sempre guardados funebremente pelo esqueleto da pobre Fulata. Mas, apesar
de examinarmos a muralha durante horas, de a apalpar, de martelar, sobre ela,
não nos foi possível achar o segredo da porta, – sob a qual
jaziam . –
pulverizados os fragmentos da hedionda bruxa, que, com a sua traição,
só ganhara a sua perda. Em quanto a forçar aqueles cinco pés
de rocha viva, quem podia pensar em tal feito? Nem todo o exército
dos cacuanas, trabalhando anos, lograria passar através. Só
com dinamite, – ou trazendo pelo deserto poderosas máquinas. E assim,
lá estão ainda, nesse remoto canto de África, os tesouros,
que desde os tempos bíblicos tanto têm fascinado a imaginação
dos homens. Um dia talvez, quando a África toda estiver civilizada,
cortada de estradas, coberta de cidades, alguém mais feliz que nós,
e com os incalculáveis recursos da ciência de então, penetrará
no vedado tesouro, e será rico além de toda a fantasia! Esse,
se jamais existir, encontrará lá, como vestígio da nossa
passagem, as arcas abertas e os ossos da pobre Fulata, e uma lâmpada
apagada. A esse tempo já estará perdida a memória deste
livro, contando a estranha aventura. E esse explorador futuro mal suspeitará
então, ao dar com o pé nesses ossos, ao remexer essas riquezas,
que três homens do século XIX passaram ali um dos mais trágicos
lances que jamais foi dado a homem passar…
Devo, todavia, acrescentar que, materialmente, a nossa estada na caverna
não foi de todo inútil. Como contei, ao abandonarmos o tesouro,
eu tive a esplêndida precaução de atulhar as algibeiras
de diamantes. Muitos destes, e sobretudo os maiores, caíram, ficaram
perdidos, quando eu rolei pelos declives da cova. Mas ainda me restou nos
bolsos uma enorme quantidade. Não lhe posso calcular o valor. Deve
ser imenso! Suponho que trouxemos ainda diamantes bastantes para sermos todos
três milionários, e possuirmos os três mais ricos adereços
de jóias que existam no mundo. Em resumo, no ponto de vista econômico,
a aventura não gorou.
Em Lu, fomos acolhidos pelo Rei Ignosi com grande amizade e regozijo. Apesar
de fundamente absorvido nos cuidados de um reinado que começa (e sobretudo
na reorganização do exército), estivera em grande inquietação
durante a nossa longa demora nas minas. E foi com ardente curiosidade que
escutou a nossa maravilhosa história.
A notícia da morte de Gagula foi para ele um alivio imenso. – Quem
sabe – murmurou ele – se depois de vos deixar morrer no sítio escuro,
não acharia ainda artes de me matar a mim também! Para comemorar
a nossa volta, Ignosi deu um banquete e uma dança. E foi nessa noite,
ao fim da festa, no terreiro real, onde brilhava o luar, que nós anunciamos
ao rei o nosso desejo de deixar enfim o seu reino, e regressar à nossa
pátria. Ignosi, primeiramente, pareceu espantado. Depois cobriu a face
com as mãos: – O que vós anunciais – exclamou ele por fim –
retalha o meu coração! Sempre pensei que de todo ficaríeis
comigo. Para que foi então, oh valentes, que me ajudastes a ser rei?
O que quereis? O que vos falta? Mulheres? Campos? Gados? Toda a terra que
é minha é vossa. Escolhei! É uma casa como as que os
brancos habitam no Natal que vos falta? Os meus homens, ensinados por vós,
edificarão uma entre jardins…
Dizei! E cada um dos vossos desejos tem já a minha promessa de rei.
– Não, Ignosi, não! – acudi eu. – O que nós simplesmente
desejamos é voltar para as nossas terras.
Ele, então, sorriu com amargura. Sim, bem percebia! Nos nossos corações
nunca houvera amor por ele, mas só cobiça das pedras que brilham.
Agora tínhamos as pedras para vender, para recolher dinheiro… Estava
satisfeito o vil desejo do . –
branco. Que importava pois o amigo que ficava chorando? Malditas fossem as
pedras, e idos fôssemos nós bem cedo! Eu pousei-lhe a mão
no braço: – Escuta, Ignosi! As tuas palavras não vêm do
teu coração. Escuta. Quando tu andavas exilado na Zululândia,
e depois entre os homens brancos do Natal, não sentias tu o desejo
da terra de onde vieras, e de que tua mãe te falava? Não se
te voltavam os olhos para o Norte, para onde estavam os campos e as senzalas
onde tu nasceras, onde brincaras com as ovelhas, onde os velhos que passavam
no caminho tinham conhecido teu pai?…
– Assim era, Macumazã, assim era! – exclamou o rei comovido.
– Pois do mesmo modo o nosso coração deseja a terra em que
nascemos.
Ignosi baixou a cabeça.
– As tuas palavras, como sempre, Macumazã, vêm cheias de verdade
e razão. Sim, tendes de partir. E eu ficarei triste, porque não
mais me chegarão notícias vossas, e vós sereis para mim
como mortos! Esteve um momento pensando, com o dedo pousado na testa. Depois
chamou os chefes mais idosos, anunciou a nossa partida, ordenou que fôssemos
acompanhados pelo regimento dos Pardos até às montanhas, e daí
com uma escolta e com guias, levados pelo caminho do Oásis (de que
ele só recentemente tivera notícia), e que nos pouparia todos
os trabalhos da passagem das serras. Em seguida, erguendo a mão, jurou
ante os chefes que não permitiria jamais que nenhum branco entrasse
no seu reino a procurar as pedras que brilham; mas que nós poderíamos
voltar sempre, porque éramos os irmãos do seu coração!
E, por fim, decretou que os nossos nomes fossem considerados sagrados como
os nomes dos reis mortos e que assim se proclamasse por todo o reino, de montanha
em montanha.
– E agora ide! Ide antes que os meus olhos vertam lágrimas como os
de uma mulher. Quando estiverdes longe, nas vossas casas, junto das vossas
lareiras, pensai por vezes em mim…
Adeus! Adeus para sempre, Incubu, Macumazã, Boguã, grandes
homens e meus amigos! Ergueu-se; esteve um momento olhando fixamente para
nós um por um; depois escondeu a cabeça no seu manto de pele
de leopardo, e fugiu para dentro da senzala real. Nós afastamo-nos
em silêncio, e com o coração pesado. Na madrugada seguinte
partimos de Lu, acompanhados por Infandós e pelo regimento dos Pardos.
Apesar de tão cedo, as ruas estavam apinhadas de gente que nos lançava
a saudação Krum, e nos desejava boa jornada! As mulheres atiravam-nos
flores ao passar. Todos os tantãs ressoavam. Era como uma grande cerimônia
real.
Pelo caminho Infandós foi-nos explicando que havia, com efeito, uma
passagem nas montanhas mais fácil do que aquela por onde viéramos
– ou antes, que era possível descer por aquela alta escarpa, que separa
os dois “Seios de Sabá” como um muro separa duas torres.
Havia um ano, um bando de caçadores cacuanas, indo ao deserto, à
procura do avestruz, tinham achado e seguido este caminho. Ao fim dele encontraram
o deserto; e ao fundo, no horizonte, avistaram maciços de árvores.
Levados pela sede caminharam para lá, e acharam um largo e fértil
oásis, cheio de fruta, de caça e de água. E daí,
diziam os caçadores, podiam-se distinguir no . –
horizonte outros lugares férteis, formando como uma continuação
de oásis. Deste modo era talvez possível diminuir os horrores
de uma nova travessia no deserto.
Ao fim de quatro dias de marcha chegamos, com efeito, ao alto da escarpa
– de onde avistávamos, por léguas e léguas, outra vez,
o medonho deserto amarelo em que tanto sofrêramos. Foi de madrugada
que começamos a descida – e foi então que nos separamos do nosso
amigo Infandós.
O excelente homem quase chorou de mágoa.
– Nunca os meus olhos – exclamava ele – verão homens como vós.
Aquele golpe de machado, Incubu! Que beleza! Sois os fortes dos fortes! E
o meu coração fica cheio da vossa lembrança. Adeus! Tivemos
realmente saudade do velho Infandós; e John, como lembrança,
deu-lhe – adivinhem o quê? – um monóculo! Tinha um de sobressalente,
e presenteou com ele o heróico e leal selvagem! Infandós, entusiasmado,
procurou logo entalá-lo no olho, certo de que essa pupila resplandecente
aumentaria o seu prestígio entre as tropas. E foi esta derradeira impressão
que me ficou dos nossos amigos da Cacuânia – um velho guerreiro, nu,
com uma pele de leopardo ao ombro, grandes plumas negras na cabeça,
franzindo a face, de monóculo no olho! Daí a pouco, tendo apertado
afetuosamente a mão a esse honrado Infandós, começávamos
a nossa descida pela escarpa que liga os “Seios de Sabá”,
entre as trovejantes aclamações do regimento dos Pardos.
Fizemos essa descida em doze horas. À noite estávamos acampados
à orla do deserto, conversando em torno das fogueiras acerca desses
dois estranhos meses que passáramos entre os cacuanas!…
– Há sítios piores para se viver – dizia o barão.
– Quase desejava ter lá ficado – acrescentava John, com saudade.
Eu não dizia nada. Tínhamos lá passado temerosos momentos.
Mas, por vezes, a vida fora doce. E no alforje trazíamos um saco de
diamantes! Na madrugada seguinte encetamos a marcha para esse oásis
que os nossos guias conheciam. Trilhamos três dias o deserto – mas sem
desconsolo, graças ao bando de carregadores que nos dera Ignosi, e
que nos permitia levar provisões fartas e água fria. Pelo começo
da tarde do terceiro dia avistamos um bosque – e o nosso jantar já
foi regaladamente servido debaixo de copadas árvores, e junto de frescas
águas correntes.
Capítulo XVII – Enfim!
Agora resta-me contar a maior maravilha desta maravilhosa jornada. Tão
estranha, quase inverossímil é, que, para não lhe aumentar
o ar de romance que ela já de por si tem, preciso narrá-la com
a máxima brevidade e máxima simplicidade.
Foi isto. Na manhã seguinte, no oásis, andava eu passeando
ao comprido de uma fresca ribeira que o banha, quando de repente, num frondoso
outeiro à sombra de figueiras, com a fachada voltada para a corrente
– vejo uma confortável cabana construída à maneira cafre,
mas com uma porta, uma porta de madeira, em vez do costumado buraco redondo.
E quando eu estava pasmado para esta casota humana . –
perdida num oásis do deserto, eis que a porta se abre, e aparece, coxeando,
encostado a um pau, todo vestido de peles e com uma imensa barba até
à cintura, um homem branco! Ficamos a olhar esgazeadamente um para
o outro.
Justamente nesse momento o barão e John apareceram. O homem crava
os olhos em nós, com um ar quase aflito. De repente larga a correr,
como um coxo pode correr, aos tropeções. Esbarra, rola no chão.
O barão acode. Ergue o homem. E grita: – Santo Deus! É meu irmão
Jorge! Quase tenho vergonha de narrar este lance. Parece banalmente inventado
pelos moldes do teatro antigo. Mas foi assim.
E ainda mais! Ao alvoroço do barão, às exclamações
que seguiram, outro homem saiu da cabana, também vestido de peles,
com uma espingarda na mão. Ao dar com os olhos em mim, larga a arma,
leva as mãos à carapinha: – Oh Macumazã! Oh Macumazã!…
Não me conheces? Sou Jim! Sou Jim! Aquele papel que tu me deste para
o patrão, perdi-o… Estamos aqui há dois anos.
E o pobre Jim rojava-se no chão diante de mim, chorando e rindo,
numa alegria furiosa.
Com efeito, havia dois anos que o irmão do barão e o seu servo
Jim viviam naquele oásis. Foi no nosso acampamento, nessa tarde, que
Jorge Cúrtis nos contou, lentamente, toda a sua história. Dois
anos antes partira da aringa de Sitanda, como nós, para atravessar
o deserto, e procurar as minas de diamantes para além das montanhas.
Por informação, porém, que lhe deram uns caçadores
de avestruzes que felizmente encontrara, tomou um caminho diverso, e bem melhor
do que aquele que seguira outrora o velho D. José da Silveira, e que
nós seguiríamos guiados pelo seu roteiro. Esse era caminho através
do deserto, mas entremeado de oásis. Assim tinham chegado a este, o
maior de todos, e estava junto das Montanhas de Salomão, quando lhe
aconteceu uma grande desgraça. No dia mesmo em que aqui parara, estava
sentado junto do rio, por baixo de umas penedias, onde Jim, o servo, andava
procurando o mel de abelhas mansas. De repente, a um esforço qualquer
que Jim fez em cima, um dos penedos rola e vem cair sobre uma perna do pobre
Jorge, esmigalhando-lha horrivelmente! Desde esse dia não pôde
mais andar. E, muito naturalmente, preferiu ficar ali no oásis, onde
tinha água, caça e fruta – do que tentar atravessar de novo
o deserto, onde inevitavelmente morreria.
E ali ficou dois anos, como um Robinson Crusoé. Havia justamente
dias que decidira mandar Jim para trás, à aringa de Sitanda,
a buscar socorro. Mas quase tinha certeza que Jim não voltaria…
– E sois vós agora, que apareceis de repente. Justamente tu, irmão!
E tu, meu bom John!… E o Senhor Quartelmar, muito bem me lembro de o ter
encontrado em Bamanguato! É extraordinário! E foi tudo a misericórdia
de Deus! Nessa noite também lhe contamos as nossas aventuras. Quando
eu lhe mostrei um punhado de diamantes, o homem empalideceu de espanto: –
Santo Deus! Ao menos o que sofrestes não foi em vão! Enquanto
que eu!…
Esta triste exclamação tornou-me pensativo. E desde logo decidi
partilhar com ele um lote daquelas pedras, que a ele tinham trazido uma tão
longa desgraça. E aqui acaba esta história. A nossa travessia
do deserto foi extremamente trabalhosa. Não sofremos tanto da sede,
porque, segundo o novo roteiro indicado pelos caçadores de . –
avestruzes, encontramos a espaços, pequenos e frescos oásis.
Mas o pobre Jorge Cúrtis, que mal podia ainda usar a perna, necessitava
constante amparo – e, por assim dizer, tivemos de o transportar através
do deserto. Enfim, atingimos a arroga de Sitanda, onde o velho sacripante,
a quem deixáramos as nossas armas e bagagens, ficou indignado de nos
ver voltar, vivos e sãos, para as reclamar. E seis meses depois estávamos
jantando confortavelmente aqui, na minha casa em Durban, à sombra das
laranjeiras.
Quando eu acabava justamente de escrever esta última página
das nossas aventuras, vejo um cafre entrar pelo meu jardim, com cartas e jornais
na mão. É o correio da Inglaterra. E eis aqui uma carta do barão,
que eu transcrevo, porque dá exatamente a conclusão da minha
história:
“Solar de Braley – Yorkshire Meu caro Quartelmar.
Só algumas breves linhas para lhe dizer que meu irmão Jorge,
John e eu, chegamos à Inglaterra todos três perfeitamente. Apenas
deixamos o paquete, em South-hampton, partimos logo para Londres pelo primeiro
trem. Não imagina o Quartelmar que elegante nos apareceu logo na manhã
seguinte o nosso John! Mas parece-me que ainda pensa muito, coitado, na pobre
Fulata.
E agora, em quanto a negócios. Levamos os diamantes aos melhores
joalheiros de Londres, aos Streeter. Quase tenho vergonha de dizer em quanto
eles os avaliaram. É uma soma descomunal. Está claro que eles
não podem dizer com exatidão, porque nunca apareceram no mercado
pedras deste tamanho em tal quantidade. Em quanto a comprá-los eles,
está fora de questão. Apesar de ser uma forte casa, não
poderia nunca reunir semelhantes somas. Aconselharam-me que os vendesse em
pequenos lotes, a diferentes joalheiros, e devagar, para não inundar
o mercado. Um desses lotes, o que o Quartelmar tão generosamente reservou
para meu irmão, estão eles todavia resolvidos a comprar por
cento e oitenta mil libras.
O que o Quartelmar deve fazer, agora que está tão rico, é
vir para Inglaterra, e comprar uma propriedade ao pé da minha. O melhor
seria vir imediatamente para passar comigo este Natal. Tenho cá por
essa ocasião o nosso John. A respeito de seu filho Henrique, posso
dizer que está bom. Esteve aqui uns dias comigo a caçar. Gosto
dele. Pregou-me uma carga de chumbo numa perna; extraiu ele próprio
os chumbos, e provou-me depois a vantagem de haver sempre, em todas as partidas
de caça, um estudante de Medicina.
Venha pois, velho amigo, e creia-me sempre seu
HENRIQUE CÚRTIS”.
Hoje é sábado. Há um paquete para Inglaterra além
de amanhã. Creio, na realidade, que vou partir nele… Já tenho
saudades do meu rapaz. E, depois, quero vigiar eu próprio a publicação
destas memórias.
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