Rui Barbosa
PUBLICIDADE
Sessão de 5 de agosto de 1905
O Sr. Rui Barbosa – Enfim, Sr. Presidente, bem que convalescente ainda, acudo hoje a remir um compromisso meu com a minha consciência, que já me não seria dado espaçar, talvez, sem detrimento.
Queira o Senado escutar-me, pois, com toda a sua complacência, relevando-me as indecisões, os esmorecimentos, as lacunas da palavra malsegura.
Srs. Senadores, a medida que vos venho propor não se inspira somente nas propensões naturais do meu temperamento e nas antecedências de minha vida, empenhada, como se sabe, em substituir, nos costumes deste regímen, o arbítrio pela justiça, o ódio pela união entre os brasileiros. Essa providência benfazeja consulta, igualmente, as tradições e os sentimentos que têm animado, em geral, os atos desta assembléia: tradições de moderação e eqüidade; sentimentos de governo e de ordem.
A ordem está no equilíbrio da vida exterior com a vida íntima de uma sociedade, na correspondência normal entre as superfícies aparentes da existência humana e as suas profundezas, onde se geram as correntes, as vagas e as tempestades. Não reside nas exposições e nos triunfos da vaidade e da força, no sacrifício da honestidade e do direito à expansão dos melhoramentos materiais em metrópoles de países arrui nados, no cintilar da luz pelas arestas das baionetas vigilantes às portas dos quartéis, no desfilar dos regimentos ao som de fanfarras e tambores pelas ruas das cidades, no sofrer e calar dos povos longamente resignados aos hábitos de servir. No que ela consiste, politicamente, é na conformidade espontânea entre os aparelhos legais de uma nação e os elementos vivos do seu organismo.
Essa conformidade traz a confiança, a confiança a paz, a paz a estabilidade. A insurreição rebenta a cada passo debaixo dos pés dos soldados do Czar, entretanto que a um gesto inerme do polícia inglês obedece, como ao aceno mágico de um talismã, no oceano rumoroso de Londres, a população mais livre do globo. Qual desses dois tipos exprime, realmente, a ordem? Qual a representa legitimamente?
O que se dirige sem armas à consciência de cidadãos? Ou, pelo contrário, o que, para estear a cidadela do governo, tem de calcar com as botas dos seus couraceiros e as patas dos ginetes dos seus esquadrões a consciência humana irritada e flamejante como um vulcão suplantado? Infelizmente não é só às margens do Neva que o poder tende mais para a ordem reacionária do que para a ordem liberal. Ora, a ordem reacionária tem o seu princípio na desconfiança; e, quando a desconfiança embebe o ânimo dos governos, todas as violências da repressão e da prevenção inutilmente se sucedem, se requintam, se exaurem, a vigília incessante os conduz à alucinação habitual; o sistema compressivo degenera em loucura, a administração pública se transmuda em uma forma de monomania de perseguição erigida em regímen político.
(Apoiados.)
Não basta então ao governo guardar-se da sociedade inteira com as armas, guardar-se das armas com a espionagem, guardar-se da publicidade com a venalidade, guardar-se do exército com a polícia, dos recrutas com os veteranos, da tropa com a marinha, da marinha e da tropa com as remoções, com as deslocações, com as interrupções contínuas, inesperadas e súbitas de contacto entre os corpos militares e os centros populosos, guardar-se de tudo, e guardar tudo, menos a honra, menos a verdade, menos as portas do Tesouro. (Muito bem!)
Não; não basta fazer como na Rússia; tem-se de emparelhar com a Turquia, descer na organização da suspeita e da malícia adminis- trativa, ao íntimo do seu objeto ideal, vasculhar, até, nas prateleiras das boticas as drogas suscetíveis de lesa-majestade, ter de olho o espírito revolucionário nos medicamentos de propriedades explosivas, como em Constantinopla, onde o clorato de potássio, o alívio familiar das nossas moléstias de laringe, logra foros de comunhão com o anarquismo e de ameaça à segurança do soberano, de modo que não se lhe faculta o comércio aos droguistas senão em doses graduadas com parcimônia aos usos medicinais, e nos dias, um por ano, em que o chefe dos crentes se mostra ao seu povo, é meticulosamente revistado, arrolhado e selado pela polícia otomana, de farmácia em farmácia e de vidro em vidro.
(Riso.)
Será ridículo o sultão, se quiserem; mas é lógico, no ponto de vista de um governo que se sente aborrecido pela nação.
Assentar, pois, a ordem sobre a confiança da nação era fundar a ordem razoável, a ordem sensata, a genuína ordem. E é para esta que vos venho convidar a dardes um passo, acreditando que nele me acompanharão, com a mesma sinceridade com que eu lho proponho, os amigos discretos da atualidade, os seus bons e desinteressados amigos.
Sobradas provas lhes dei eu de que a servia lealmente. Quase três anos há que a tenho seguido, não sem sacrifícios, com uma constância digna das melhores causas. Contra todos os governos anteriores vivi sempre de tenda armada em campanha. Clamavam então os ortodoxos que eu malfazia à República, que eu a desamava e combalia, embaraçando os vícios de situações que a estragavam. Daí me veio um cheiro de suspeito, que, mais de uma vez, me ia custando a própria vida. Afinal, não porque o temesse (tinha acabado por me habituar à condição de estranho e malvisto no regímen), mas porque me doía a tacha de egoísmo, de cálculo malicioso em evitar as responsabilidades na colaboração republicana, e reservar-me as glórias fáceis da censura, me dispus a tentar a experiência, a sair daquela situação criticada e crítica, embora correndo o risco de me dizerem os meus inimigos que eu saía tarde, por uma porta acanhada, como saem às vezes, já quase ao despedir da esperança, as moças ruins de contentar em matéria de casamento (riso)… essas cujo fastio depois de esfolhar os mais belos anos da vida, recusando todos os partidos, alguns nada enjeitáveis, acabam rendendo-se ao herói do último galanteio, que não costuma ser o mais bonito, nem o melhor. (Riso.)
Aliás esses consórcios não desmerecem, no que respeita à solidez, por se contraírem numa idade mais fria, na idade da estima, quando o coração perdeu o surto das asas travessas, e já não mudará facilmente de ninho. (Riso.) O meu não se evadiu aos incômodos da aliança, não abandonou o governo atual nas horas más de 14 de novembro. E não se dirá que fosse captado pela vitória. A vitória de 14 de novembro passou sem irradiação nem atrativos. Não teve auréola, não podia exercer seduções. Por que não dizê-lo? Foi uma vitória oscilante, desconfiada e triste. Diversidade notável para com a de 5 de novembro, há oito anos! O movimento em 1897 granjeou ao governo de Prudente de Morais uma popularidade grande. Ela orçou pelas raias do entusiasmo e teve momentos de verdadeira consagração. Fui adversário daquele governo e me não arrependo; mas posso dar testemunho de que a nenhum, sob este regímen, se ofereceu ainda ocasião de simpatias tão puras, tão raras, tão gerais.
Dois atentados: ambos por mão militar, ambos com abalo da ordem constitucional, ambos contra o chefe da nação. O primeiro, em 1897, reúne e alvoroça a opinião pública ao derredor do governo. O segundo, em 1904, deixa o sentimento público distanciado e retraído. Não haverá neste contraste indícios inquietadores? A primeira explosão descobre o projeto de um assalto militar, e o país se horroriza. A segunda revela o plano de uma ditadura militar, e o povo não estremece. Alguma transformação profunda, alguma revolução incomensurável se deve estar operando no ânimo nacional, para explicar, a tão breve intervalo, tamanha diferença de impressão em matéria desta gravidade suprema.
(Apoiados.)
Sem embargo, porém, da obscuridade que envolvia a ocasião, o sentimento da ordem não desfaleceu nesta Casa. Os membros mais liberais desta câmara não hesitamos um instante em ir com o estado de sítio ao encontro do governo (apoiados). Eu já o votara naquela outra emergência, há oito anos, quando o Presidente da República no-lo requereu.
Não me saí bem, como se sabe, porque, meses depois, tinha que apelar, com o habeas corpus, para os tribunais, contra os desmandos, a que, na aplicação daquela faculdade extraordinária, se abalançou o Poder Executivo. Tornei, entretanto, a dá-lo o ano passado. Não a darei nunca mais a governo algum…
O Sr. Barata Ribeiro – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – … aqui solenemente o declaro…
O Sr. Barata Ribeiro – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – … a não ser quando veja o solo da pátria estremecer ao peso da invasão estrangeira, ou o país se ache a braços com uma revolução declarada. Dei-a, porém, segunda vez, em 1904, sem me deter com os escrúpulos que a minha experiência me insinuava, nem me importar de que esse voto nos envolvesse nas antipatias então vivamente excitadas contra o governo, porque me persuadira de que as circunstâncias nos impunham esse dever. Nem apoiei o governo tão-somente com o meu sufrágio. Pus ainda ao seu serviço a minha palavra, na tribuna desta Casa. Amparei-o, por ele solicitado, com a minha opinião de jurisconsulto nos tribunais, e, sempre acudindo a empenhos seus, até na imprensa o auxiliei.
Mas eu não tenho jeito de servir a ninguém senão com a minha consciência. Contra a minha consciência, não. A verdade, lisamente dita, é o único processo, que sei, de ser útil aos meus amigos. Hei de desagradar; mas não quero enganar. E aqui está por que, associando-me então ao governo nas medidas repressivas, hoje lhe aconselho as medidas conciliadoras. As primeiras se baldaram desastrosamente: é o caso de buscar nas segundas o remédio ao dano por aquelas ocasionado.
Quando supúnhamos seriamente abalada a ordem pública, não regateamos à administração os meios de defesa. Mas parece que nos iludíamos totalmente. Não se viu um só desses grandes atos prontos, firmes, viris das oportunidades extremas que justificassem a concessão, por nós feita, daquela grave medida excepcional. Desnaturou- se o estado de sítio, reduzindo-se a mero aparelho de verificar responsabilidades criminais, função ordinária da polícia e da justiça. Em face dessa teoria, o estado de sítio ainda agora havia de estar perdurando; visto como, por enquanto, as responsabilidades não se acham apuradas; cometeu-se-lhes a apuração aos tribunais; e nas mãos dos tribunais a tarefa se eterniza.
Eis, agora, a questão da ordem sob a sua outra face. Ordem é clareza. Ordem é harmonia. Ordem é método e celeridade. Ordem é razão e direito. Que afinidade seria lícito, portanto, estabelecer entre a noção, quer moral, quer social, da ordem e o espetáculo inaudito desse processo sonolento e manquejante, com os seus tropeços, os seus desmanchos, os seus atrasos infinitos, a se arrastar aos tombos, trambolhando, como um bruto carroção primitivo de bois escanzelados através de barrancos e pedregais, montanha acima, numa jornada interminável, de sertão a sertão?
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – A repressão perdeu o seu prestígio. A justiça despiu a sua dignidade.
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – Antes de condenar, este processo maltrata duramente os acusados, talvez inocentes, porque ainda não julgados; asperamente os maltrata com a tortura do cansaço, com o indefinido alongamento da prisão, com a reprodução insistente dos vexames. Já lá vão quase nove meses, e não se calcula quantos ainda consumirá, pachorrentamente, no seu rodar aos solavancos, a vergonhosa carrimônia, onde se exibe à curiosidade dos beócios e ao riso dos desabusados essa triste fantasia de justiça.
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – Mais ou menos pela mesma época do nosso, teve a República Argentina o seu pronunciamento militar, teve também o seu: e algumas semanas lhe sobejaram, para verificar as responsabilidades e sentenciar os culpados. Aqui, pelas contas, não nos bastarão doze meses. Onde buscar termo de confronto para desproporção tamanha? Nem nos espécimens extremos, no processo Bazaine, por exemplo, que aliás não tem parelha na história da justiça militar.
Signatário da capitulação de Metz e do exército do Reno, entregara Bazaine aos prussianos a flor das forças francesas. Uma praça de fronteira de primeira ordem e não menos de cento e sessenta mil homens, válidos, bravos, sôfregos pelo combate, desesperados contra a capitulação com cerca de mil e setecentos canhões, além das bandeiras, as gloriosas águias francesas de tantas batalhas, se renderam às armas alemãs, em um momento em que algum tempo mais de resistência, não impossível, salvaria talvez a sitiada capital da França, permitindo ao exército do Loire, pouco depois vitorioso em Coulmiers, entalar os sitiantes entre dois fogos. A voz de Gambetta, ministro então da Guerra, trovejara contra o marechal prevaricador o brado sinistro da traição, que ressoou no país inteiro. A decisão dos seus pares não lhe foi menos funesta.
O governo comutou-a depois; mas o tribunal fulminara o criminoso com a pena de morte.
Figurai agora a grandeza trágica daquele plenário e a imensidade material do trabalho, com que ele havia de assoberbar os juízes. A acusação durou quatro dias; quatro dias a defesa; sete, o interrogatório do acusado. Nos debates se ventilaram as mais sérias questões de administração militar, de tática militar, de direito militar, de moral militar. As testemunhas foram legião: chefes, oficiais, soldados, guardas florestais, operários, camponeses, mulheres, membros do governo. Todos esses depoimentos, não obstante, se tomaram em quinze dias, e o conselho de guerra, presidido por um príncipe de sangue, o duque d’Aumale, abrindo as suas sessões em 6 de outubro, proferia, em 8 de dezembro, a sentença final. Dois meses lhe tinham bastado para instaurar e concluir aquele julgamento incomparável. Em quase cinco vezes esse espaço de tempo, entretanto, a justiça militar brasileira ainda não acabou de liquidar a culpa aos indiciados no caso de 14 de novembro.
Não será manifesto que o sistema desta justiça se ressente de aleijões orgânicos e monstruosos? Que ela adultera o processo em suplício, o julgamento em perseguição, a verificação da criminalidade em presunção de crime, as formas tutelares da inocência em tratos aflitivos contra os acusados? Não sentireis, como eu sinto, que esta paródia odiosa da justiça está reclamando a mais urgente e severa interferência do legislador?
Não vos acode, como a mim, que, antes dessa reforma, a voz imperiosa da humanidade nos impõe, contra o escândalo desta afronta ao direito, a soberana reparação da anistia?
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – As provas do meu apelo à vossa consciência estão feitas. Mas, se vos apraz que alarguemos a audiência, poderei começar logo, citando à vossa presença o próprio governo da nação, na pessoa do seu chefe. Escutai outra vez, ao Presidente da República, o que ele vos dizia, há três meses, na mensagem com que abriu esta sessão legislativa:
“Os incidentes, que têm ocorrido durante os processos, provocados pela obscuridade das leis ou pela confusão no modo de apre- ciá-las, não podem ser indiferentes ao legislador e suscitam algumas reflexões.
“É preciso definir, relevai que o diga, de modo claro e positivo, a competência dos tribunais civis e militares para o julgamento de réus envolvidos em movimentos sediciosos, e regular os processos, simplificando- os e firmando, de uma vez, a extensão das imunidades parlamentares, quando deputados e senadores neles tiverem qualquer responsabilidade.
“Não tem sido uniforme a jurisprudência dos tribunais e a incerteza dos julgados enfraquece a ação da autoridade, produzindo no espírito público uma impressão de desalento, que é prejudicial à justiça.”
Eis o depoimento do governo. Quem pleitearia mais eloqüentemente a causa que advogo? Atentai bem nas expressões, a cuja leitura acabamos de proceder. Na matéria do processo intentado a propósito dos fatos de novembro, declara o Presidente da República, a obscuridade das leis e a hermenêutica nos têm levado à confusão. Não se conhece a extensão das imunidades parlamentares. Não está discriminada a esfera dos tribunais, civis ou militares, no julgar de réus indiciados em sedições, que abranjam militares e civis. A jurisprudência dos tribunais vacila e diversifica. Com a incerteza dos julgados se desmoraliza a ação da autoridade, e o espírito público se ensombra, acabando por desanimar da justiça. Aqui está, por mão do chefe do Poder Executivo, o debuxo deste processo, das suas enfermidades viscerais, do seu influxo desastroso no ânimo da nação. Com encarecimento invoca o governo, contra essa deplorável situação legal e moral, o socorro do legislador. Só ele tem os meios de prover ao caso. Só ele poderá definir as competências balburdiadas, assinando a alçada legítima a cada magistratura. Só ele, mediante providências renovadoras, conseguirá extrair do caos a ordem processual, o direito judiciário obscurecido e anarquizado, imprimindo-lhe simplicidade, seguridade, regularidade. É o que o governo abertamente reconhece.
De modo que todo esse aparato de justiça, ronceiro, emaranhado e inextricável, não passa, confessadamente, de uma solene iniqüidade, laboriosamente sustentada à força de equívocos e caprichos, babel cujos protagonistas não se entendem, e onde nem sequer está fixado o primeiro elemento orgânico de todo o processo, a jurisdição dos julgadores.
É o governo quem o sente, afirma, e lastima.
Pois então não estou eu com o governo? Não é então um expediente essencial de governo este com que ora vos proponho sanearmos dessa imoralidade a atmosfera política, exonerarmos a nossa consciência jurídica desse atentado, reconciliarmos a administração pública consigo mesma, com as suas próprias opiniões, com a honestidade das suas declarações oficiais, acendermos no desalento, cuja cerração o governo denuncia, um raio de conforto, um clarão de esperança?
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – A síntese dos fatos aí está, delineada em termos frisantes na linguagem do chefe de estado. Agora, a análise, que se me impõe, a análise a que não posso fugir, ainda mais vos edificará, descortinando-vos novas maravilhas, maravilhas jurídicas, maravilhas políticas, maravilhas morais, no caso que se desdobra, há tantos meses, sob as feições vulgares de um quadro judiciário, entre as paredes a cuja sombra se vão sucedendo as audiências deste pleito.
Neste processo teratológico, nas peripécias da sua emburilhada, nada resiste à luz, ao ar livre, à exploração do olhar inteligente. Labirinto aéreo, não tem nexo de orientação, nem rudimento de alicerces; porque a mesma aparência da lei, onde assenta, não existe: é um simulacro, de cuja figura nada resiste ao toque do nosso direito constitucional.
Estamos frente a frente com um exemplar típico na patologia das nossas delegações legislativas. Dentre as anomalias parlamentares no Brasil, com efeito, poucas rivalizariam na extravagância com o espécimen desse regulamento, que hoje impera sobre a justiça militar.
Prescreve, Senhores, a Constituição Brasileira que ao Congresso Nacional compete privativamente legislar sobre o direito processual da justiça militar. São as próprias expressões, as expressões textuais da nossa Constituição, no art. 34, nº 23. É o artigo onde se demarca ao Poder Legislativo o âmbito dos seus direitos, onde se lhe traça o círculo dos seus deveres. A competência dos tribunais federais estabeleceu-a a Constituição de 24 de fevereiro noutros artigos: nos arts. 58 a 62. Por estes a justiça federal não legisla, julga. Assim o quer a nossa Constituição.
Querem-no assim todas as constituições conhecidas. De outro lado, pelos textos constitucionais, ninguém legisla, senão o Congresso. Isto nomeadamente a respeito do processo federal.
Pois ides ver agora o que fizeram as casas do Congresso, os órgãos do Poder Legislativo. Uma lei, votada nesta câmara e na outra, declarou que ao Supremo Tribunal Militar incumbe “estabelecer a forma processual militar, enquanto a matéria não for resolvida em lei”. Será, deveras, um ato legislativo o que tal coisa declare? Sim: o decreto legislativo nº 149, de 18 de julho de 1893, no seu art. 3º.
Reproduzi literalmente a fórmula do texto. Reconhece ele explicitamente que a forma processual militar constitui matéria de lei, diz que à lei cabe o regê-la, e anuncia que a lei o regerá de futuro. Quando? Não se sabe. Quando pudermos. É um adiamento da lei necessário; mas é, ao mesmo tempo, a confissão categórica da sua necessidade. Essa necessidade é constitucional. Promana da Constituição, que o Congresso não pode transgredir, que o Congresso absolutamente não pode reformar, sem que os seus atos se inquinem de nulidade insanável. Sem embargo, enquanto não legisla sobre este ramo do processo federal, em vez de manter a legislação existente, manda o Congresso ao Supremo Tribunal Militar que este o regule. Isto é: manda substituir uma lei por um regulamento, e ocupar uma parte do território legislativo por um tribunal de justiça.
Devia o Supremo Tribunal Militar obedecer-lhe? Podia fazê- lo? Não. Os tribunais, neste regímen, não executam as leis, senão quando estas respeitem a Constituição. O Supremo Tribunal Militar, porém, curvou-se e expediu o regulamento de 16 de julho de 1895. Chama- se, por batismo do seu autor, o Regulamento processual criminal militar.
Mas onde achar o Supremo Tribunal Militar essa atribuição, que exerceu, de regular matérias alheias à sua vida interior?
O Supremo Tribunal Federal, que é o tribunal mais alto da República, elaborou o seu regimento interno. Figurai-o agora a decretar a organização geral do processo, o regímen processual, para toda a magistratura da União. Vingaria esse ato descomunalmente usurpatório? Só se em todos os graus da hierarquia judiciária se houvesse obliterado a consciência profissional.
Ou o processo militar é matéria de regulamento, como se supõe na rubrica do expedido pelo Supremo Tribunal Militar; e então ao Poder Executivo, privativamente, cabia fazê-lo. São os termos formais da Constituição, art. 48, nº 1. Ou era matéria de lei, como a Constituição formalmente estabelece no artigo 34, nº 23, e como no mesmo ato delegatório, o Congresso reconhece explicitamente. Mas, neste caso, era da privativa competência do legislador.
De maneira que o Supremo Tribunal Militar está neste dilema: ou se apropriou uma atribuição exclusiva e intransferível do Presidente da República ou absorveu uma atribuição privativa e incessível do Congresso. Que o fizesse com autorização deste, nada importa. Ao Poder Legislativo não assiste o arbítrio de renunciar às suas funções, e muito menos o de regalar o Judiciário com as do Executivo. Delegar um poder a própria autoridade, é ato de ilegítima doação ou de abandono criminoso.
Delegar a terceiro poder as prerrogativas de outro é ato de invasão, esbulho e alienação do alheio.
Não se deu o esbulho, porque a atribuição transferida é legislativa.
Deu-se, porém, a abdicação. Tem um poder político, na rigidez do sistema das Constituições escritas, o direito de repartir a sua competência com outro?
Ordinariamente o beneficiado nesses empréstimos, nessas divisões, nessas renúncias, é o Executivo. A costumeira, se bem que autorizada com exemplos respeitáveis, não se recomenda como boa praxe; visto que a Constituição nitidamente separa da função de legislar a de regular, cometendo cada uma, como privativa, a um só poder. Mas as duas, verdade seja, não se podem considerar substancialmente distintas e rigorosamente delimitáveis. Do regular ao legislar, do legislar ao regular nem sempre são claras as raias. Entre as duas competências medeia uma zona de fronteira, indecisa mista, porventura comum, em que ora as leis regulamentam, ora os regulamentos legislam.
O que, porém, absolutamente nunca se confundirá, senão abolindo noções elementares no direito constitucional, é a atribuição de legislar, ou a de regular, com a de julgar. Foi, entretanto, o que obrou o Congresso, fazendo essa delegação ao Supremo Tribunal Militar. Foi o que o Supremo Tribunal Militar aventurou, condescendendo no uso dessa delegação.
Aqui está como os poderes públicos, nesta terra, cumprem os seus deveres. Que faz o legislador, quando confere a um tribunal a missão de legislar?
Reforma, no mais substancial dos seus princípios, na delimitação dos poderes entre a legislatura e a magistratura, a Constituição da República, assume amplas faculdades constituintes, anarquiza o regímen.
De onde vêm ao legislador as suas prerrogativas? Da Constituição, que as enumera, as define, as circunscreve. Como ele, os outros dois poderes têm, igualmente, a sua competência taxada na lei fundamental.
Desta deriva, para cada um dos três, a autoridade, que exercita.
Logo, dessa autoridade, nenhum deles se pode aliviar em outro. Se aos tribunais fosse lícito legislar, por outorga do Congresso, lícito seria ao Congresso julgar, por outorga dos tribunais. Admitis que o Congresso profira sentenças? Não. Como admitirdes, então, que um tribunal promulgue leis?
A Constituição declarou que o direito processual é assunto legislativo, a Constituição o encarregou ao Congresso. Entretanto, o regulamento de 6 de julho de 1895 abrange o direito processual militar no seu todo, organizando os tribunais, criando a polícia judicial, precisando as competências, dando a forma ao processo, fixando os casos de prisão, instituindo as condições das sentenças, taxando-lhes os recursos, e pautando-lhes a execução. É, portanto, indubitavelmente, sob o falso nome de regulamento, a lei do processo criminal, para as forças de mar e terra. Logo, só o Congresso a podia fazer. Logo, não a podia fazer um tribunal. Logo, feita pelo Supremo Tribunal Militar, é vã, írrita, nenhuma: não vale, não obriga, não existe.
Pode-se contestar, acaso, esta invalidade? esta existência? Evidentemente, não. Logo, os juízes, que funcionam hoje no foro militar, não são juízes. Logo, os processos, que hoje correm pela justiça militar, não são processos. Logo, as sentenças, que ora se pronunciam nos tribunais militares, não são sentenças. Os réus do conflito de 14 de novembro, por conseqüência, não estão sendo julgados. Vexados, sim, coagidos, tiranizados.
Não há judicatura sem lei que a crie, nem processo sem judicatura, nem sentença sem processo. Toda essa encenação processual, a que as- sistimos, conseguintemente, gira em torno de uma suposição errônea, mentida, fraudulenta: a da existência de uma lei que não existe.
Mas então uma ilegalidade geral viciaria atualmente, no foro militar, a todos os processos? Inquestionavelmente. Por estupenda que seja a enormidade, o fato não deixa de ser o fato, nem o direito o direito.
Entre o regulamento processual militar e a Constituição da República seria desatino hesitar. Se a Constituição não está revogada, não se pode observar o regulamento. Força é abandoná-lo e volver às leis anteriores, até que o Congresso as revogue, as altere, as codifique.
Lembra-vos o ocorrido com o Código Penal Militar? Um Ministro da Marinha posta já em vigor a Constituição da República, se arrogou o arbítrio de legislar, por um decreto do Presidente da República, o Código Penal da Armada. Contra essa afoita usurpação ergui-me eu energicamente, na minha campanha jornalística, forense e parlamentar de 1893. Debalde. As paixões políticas não consentiram que se atendesse à verdade. O Código Foster, simples ato administrativo, continuou a reger como lei, para a Marinha, o direito penal, e nisto se esteve, até que, afinal, em 1899, advertiu o poder legislativo em que era mister imprimir-lhe cunho de legitimidade. Aprovou-o então, reunindo sob o império das suas disposições as forças de terra às de mar, para que ele se formulara, e a que até aquela data se aplicava.
De sorte que, sob uma Constituição onde se atribui ao Congresso a faculdade privativa de legislar acerca do direito penal, o direito penal da Armada se regeu durante nove anos por um código de secretaria.
A Constituição reserva, semelhantemente, ao Congresso, a competência legislativa sobre o direito processual, quanto às justiças federais e, todavia, há dez anos, o processo militar obedece a um regulamento decretado por um tribunal.
Durante aqueles nove anos, está claro, eram ilegítimas e nulas todas as sentenças penais dos tribunais militares. Durante estes dez anos, usurpatórios e insubsistentes são todos os atos processados nesses tribunais. Mas as sentenças se cumpriam e se estão cumprindo. Mas os processos prosseguiam e prosseguem. Ora, dizei-me: está ou não revogada há quinze anos, para o Exército e a Armada, a Constituição da Re- pública? estão eles ou não, durante o qüindecênio republicano, pelo que toca à Justiça fora da Constituição? (Muito bem!)
A moral da resignação aos fatos consumados sancionava esta anarquia. Os processos individuais passavam, na sua dispersão, abandonados a si mesmos. Sobrevém agora, porém, uma dessas ocasiões, em que as grandes solidariedades acordam, protestam e reagem. Quem teria a coragem estólida e malfazeja de a repelir?
Mas não é só esta a ferida, que o processo da sedição de 14 de novembro desvenda e alarga na vida constitucional do regímen. Outro lado há, por onde esse episódio lastimoso interessa diretamente a própria existência do Congresso Nacional. Melhor do que eu, sabeis como, no curso desta ação criminal, se conculcaram as prerrogativas parlamentares.
O Sr. Barata Ribeiro – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – Infelizmente as teorias exóticas, imaginadas a benefício do sistema que aniquila as garantias defensivas da independência do Congresso, merecem, ainda agora, as simpatias do governo, e se alteiam arrimadas à autoridade do chefe da nação.
Na mensagem presidencial, de que, há pouco, vos dei a ouvir um trecho, logo em seqüência a este, justamente ao acabar de exprimir o seu desgosto com as obscuridades, que viciam as nossas leis, e desmoralizam a nossa jurisprudência, nas relações de direito criminal, processual e constitucional que entendem com a liquidação deste caso, o Presidente da República esposa francamente uma das erronias mais favoráveis aos arrojos do Poder Executivo contra o Legislativo, isto é, aos choques entre os poderes constitucionais, ao seu desrespeito mútuo, à sua confusão: a idéia cerebrina, minaz e funesta de que, declarado o estado de sítio, cessam de todo o ponto as garantias constitucionais.
Em um rasgo da mais desabalada franqueza, nos arrosta ele com esse artigo da sua fé republicana. (Lendo.) “Em meu conceito”, diz o Presidente da República, “o estado de sítio suspende todas as garantias constitucionais. Não o compreendo de outra forma; pois ele foi criado, como um estado de exceção, para resguardar a ordem pública, que é o interesse supremo da sociedade, contra as convulsões provocadas por grandes crises.”
Ora, Senhores, de que nos vale correrem os anos, acumularem- se os lustros, sucederem-se as decisões, cuja harmonia devera cimentar o regímen, se os resultados jurídicos da nossa experiência, dos nossos sofrimentos, das nossas capitulações ante a evidência das grandes verdades cardeais no governo representativo, no governo democrático, no governo livre, recaem incessantemente em debate? se todos os dias os interesses do momento volvem a turvar, a desconhecer, a aluir os axiomas do nosso direito político? se não há santidade para os arestos? se não há bases do regímen, que se não contestem? se não há noções das primeiras letras constitucionais, sobre que se não renove eternamente a luta, agitada pelas sutilezas oficiais ou oficiosas, toda a vez que uma administração enxergue proveito em rever, mediante os expedientes do sofisma, esse pacto republicano, a cuja revisão regular todos os devotos do sistema se opõem com a superstição da idolatria?
O estado de sítio rompe, segundo essa escola, todas as garantias constitucionais. Mas, a ser assim, que vale uma constituição evanescente, como a sombra de um sonho, à vontade da primeira maioria parlamentar, cuja humildade transija em entregar o Congresso ao governo? O estado de sítio exclui todas as garantias constitucionais. Realmente?
Mas vejamos então as conseqüências desta novidade temerária.
Que entendem os adeptos desse conceito por garantias constitucionais?
Eu conheço duas definições da expressão, duas séries de instituições designadas por esse qualificativo. Umas e outras, pois, se devem considerar suspensas, se é certo que essa medida suspende todas as garantias constitucionais. Atentemos agora no que daí resultaria.
Garantias constitucionais se chamam, primeiramente, as defesas postas pela constituição aos direitos especiais do indivíduo. Consistem elas no sistema de proteção organizado pelos autores da nossa lei fundamental em segurança da pessoa humana, da vida humana, da liberdade humana. Nele se contempla a igualdade legal, a consciência, a palavra, o ensino, a associação, o domicílio, a propriedade. Tudo o que a essa região toca, se inscreve sob o domínio das garantias constitucionais, no sentido mais ordinário desta locução.
Um texto da Constituição atual, por exemplo, aboliu a pena de morte. Outro, a de galés e o banimento. São, inegavelmente, outras tantas garantias constitucionais. Ao abrigo destas, como das outras, se acha a nossa personalidade, a nossa humanidade, a nossa existência mesma, contra os impulsos dos governos violentos. Se estes, porém, transpuserem aquelas barreiras e, sem embargo delas, nos esbulharem de uma destas franquias individuais, a instituição do habeas corpus firmada igualmente na Constituição da República, nos arma para as reivindicar, sem dificuldade, contra semelhante gênero de atentados.
E aí temos, nesse maravilhoso recurso, outra garantia constitucional.
Não é assim?
Mas, se, com o estado de sítio, se removem todas as garantias constitucionais, suspensa está, declarado ele, a cláusula constitucional, que nos garante a vida, ao mesmo tempo que se suspende a estipulação constitucional, cujos termos, para eficácia daquela outra, nos asseguram o habeas corpus. Promulgado, pois, o estado de sítio, que é que nos restará, se nos não resta sequer a garantia da vida? As cabeças enviadas ao cadafalso pelo delírio dos partidos triunfantes, nas épocas de comoções ensangüentadas, não poderão invocar o compromisso do pacto republicano, que acabou com a pena capital, nem refugiar-se, pelo habeas corpus, nos tribunais, que o pacto republicano lhes oferece. Eram duas garantias constitucionais. Como tais, portanto, com o estado de sítio se sumiriam.
Tão horrendos são os corolários que no seu bojo esconde a façanhosa teoria. E ainda não é tudo.
Sob o título de garantias constitucionais empreende a ciência, por outro lado, com a mesma justeza de linguagem, a organização dos poderes públicos. Graças à combinação que os divide, que os harmoniza, que os contrapesa, uns aos outros se limitam, se moderam, se coíbem, no seio da ordem jurídica, tranqüilizando, mediante esta ação recíproca, os cidadãos contra os arbítrios, os excessos, os crimes da autoridade.
“Nas constituições mecânicas (e a nossa é uma delas) “as garantias propriamente ditas nascem primeiramente da organização política e administrativa”.
São palavras de um célebre publicista contemporâneo, a quem se deve um dos mais modernos e científicos tratados sobre as garantias constitucionais. Garantias constitucionais vêm a ser por conseguinte, acima de tudo, as providências que na Constituição se destinam a manter os poderes públicos no jogo harmônico das suas funções…
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – … no exercício contrabalançado e simultâneo das suas prerrogativas. Dizemos então garantias constitucionais no mesmo sentido em que os ingleses falam nos freios e contrapesos da Constituição.
Logo, Senhores, se o estado de sítio eclipsa todas as garantias constitucionais, estas também com o estado de sítio se eclipsarão. Deixarão de funcionar os tribunais. O próprio Congresso, a quem, aliás, a Constituição comete julgar os atos do Poder Executivo na aplicação dessa medida extraordinária, não poderá deliberar, enquanto ela dure.
Do estado de sítio, pois, a uma ditadura sem limites no tempo, ou no arbítrio, se terá disposto a mais fácil das transições, a mais lógica, a mais natural, a mais direta. Suspensas de todo as garantias constitucionais, o que fica é uma desgarantia geral, absoluta; a inversão completa do regímen constitucional, a absorção de todos os poderes na onipotência exclusiva do chefe do estado.
Vozes – Muito bem. Apoiado.
O Sr. Rui Barbosa – Eis o desenvolvimento fatal da teoria por ele advogada na sua mensagem deste ano. Por que não dizer logo, então, que o estado de sítio suspende a Constituição inteira? Já uma voz eloqüente aqui propugnou, vai por alguns anos, essa doutrina. Entre as duas, a variação está simplesmente no feitio exterior do enunciado. No conteúdo não diversificam. Uma refolha no indeciso da locução garantias constitucionais o que a outra expõe na sua desnudez: a fórmula do cesarismo republicano, encerrada nesta concepção do estado de sítio.
Mas como explicar aberração tão crassa da inteligência do nosso direito constitucional? Só uma política essencialmente refratária ao temperamento dos regimens livres a poderia engendrar. Ela envolve uma confusão imperdoável entre o estado de sitio constitucional, que os publicistas denominam político ou civil, e o estado de sítio efetivo, real ou militar.
Neste, sim, é que todas as garantias constitucionais se extinguem.
Mas ele resulta de um fato irresistível: a ocupação do território pelas armas. Dada esta premissa, não se lhe podem recusar os corolários: a entrega da administração à autoridade militar, a declaração da lei marcial, a cessação de todos os poderes regulares. É, reconhecidamente, o estado de guerra, ou se estabeleça contra invasões estrangeiras ou contra comoções intestinas.
Foi o que se deu nos Estados Unidos, após a guerra civil, durante a fase reacionária da reconstrução, quando ocupados os rebeldes pelos exércitos vitoriosos do Norte, se organizou, naquela região do país, a ditadura das armas, regulada pelas instituições militares, exercidas pelos chefes militares, servida na administração da justiça, pelas comissões militares. Aí está aonde vai ter a suspensão total das garantias constitucionais.
É isso. Se a escola que preconiza esta fórmula, vingar no Brasil, disponhamo-nos para esse regímen: o estado de guerra manejado pela ditadura civil, a magistratura exercida pelas comissões do governo, o reinado da polícia sobre o Congresso.
Essas conseqüências viriam a seu tempo, quando se lhes talhasse o ensejo. No que respeita ao Congresso, porém, a teoria já vai entrando em ação lógica e desenvolta, com a regra, ultimamente posta em prática, de que durante o estado de sítio cessam as imunidades parlamentares.
Esta invenção não sei se seria possível sob o Império, quando até os corifeus da escola conservadora, como Pimenta Bueno, consideravam associada às imunidades parlamentares “a independência dos representantes da nação, e, com ela, os direitos do país, o exercício da soberania nacional”.
Como conciliar com estas noções, outrora aceitas ainda aos espíritos menos liberais, o lustroso modernismo de que o estado de sítio não tolera as imunidades parlamentares? A garantia constitucional falharia então, quando mais necessária.
Sujeitas assim ao arbítrio policial, que seria das oposições e, até, das maiorias no Congresso, podendo o governo joeirá-las, dizimá- las, aniquilá-las, com o direito, que lhe assistisse, de prender e desterrar os representantes da nação, hostis ou suspeitos? (Apoiados.)
Na espécie de que ora se questiona, a violência recaiu unicamente sobre um membro desta câmara: o Senador Lauro Sodré. Recolhido à prisão em 19 de novembro, logo a 21 se lhe instaurou a culpa, encerrando-se o Conselho de Investigação aos 27 desse mês, entretanto que só em 19 do seguinte concedeu o Senado a licença de processar.
Ora, que valia jurídica se apurará, senhores, em um processo, cujas bases, condição do seu desenvolvimento ulterior, contravêm a uma lei de ordem pública, a um cânon fundamental do regímen, como esse, que, pela imunidade pessoal dos senadores e deputados, mantém, com a imunidade coletiva da legislatura, a sua independência, a sua inteireza, a sua autoridade constitucional? (Apoiados.)
Aceitemos, porém, momentaneamente a lição reacionária. Era lícita, antes da licença constitucional, a prisão de um senador? Mas então era lícita a de dez, a de vinte, a de quantos a polícia tivesse por indiciados; e o mesmo critério legal aplicado a esta câmara seria aplicável à outra.
Destarte, depuradas, escoimadas ambas as assembléias de toda a resistência, o Executivo as menearia com dois ornamentos do seu poder, como dois guarda-sóis da sua irresponsabilidade, e, senhor absoluto do Congresso pelo estado de sítio, mediante este o perpetuaria, perpetuando- se na ditadura. (Muito bem!)
Nos tribunais não se abalançou a buscar valhacouto esta heresia jurídica. Teria de arcar ali com arestos. Rendeu-se neles homenagem às imunidades parlamentares; mas em benefício do abuso cometido se pretextou que o senador, entregando-se à prisão, as renunciara.
Ora, Senhores, só dos próprios direitos cabe a uma pessoa abrir mão validamente. Direitos alheios ninguém, juridicamente, os pode renunciar. As imunidades parlamentares, são, portanto, de sua natureza, irrenunciáveis…
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – … porque não pertencem ao deputado, ou ao senador, não lhe são pessoais. Este privilégio constitucional não abroquela, no senador, ou no deputado, o indivíduo, mas a representação do povo, cujas parcelas se resguardam, a fim de a resguardar no seu todo. É uma égide forjada para a instituição. Só esta, pois, tem a faculdade legítima de a depor; e tem-na unicamente porque a Constituição de modo expresso lha deu, no art. 20, reservando-lhe a autoridade privativa de assentir no processo ou na prisão.
Se verdades há de caráter altamente, dogmático, em matéria de garantias constitucionais, nenhuma o terá mais do que esta. Dela farão bom barato, logicamente, os que o fizerem das imunidades parlamentares, desdenhando-as de “antigualhas”. A nossa Constituição, porém, encarou o assunto a luz diversa. O tipo que na lei fundamental do Brasil se cristaliza é outro. Nele assumem um destaque de alto-relevo as imunidades parlamentares, confiadas como depósito legal aos dois ramos da legislatura. Nesta, conseqüentemente, essa garantia não pode ser resignável por aqueles que a desfrutam apenas como partes das duas assembléias, como frações do seu poder coletivo.
A doutrina oposta calunia o texto constitucional, que só admite a renunciabilidade pelos membros do Congresso nos casos de prisão em flagrante. Porque, aí, deve preferir a tudo o direito inauferível do preso a reaver quanto antes a liberdade. A imunidade, neste caso, convém notar ainda, a imunidade aí já se acha suspensa ipso facto com a ocorrência da prisão regular do membro do Congresso, colhido no ato de perpetrar o crime inafiançável. Já se não encontra intacta, pois, a garantia constitucional. A câmara, a que pertence o detido, já sofreu o desfalque de um dos seus membros. A prisão está consumada. O processo mesmo seguirá, sem ingerência da câmara interessada, até ao momento da pronúncia. Em circunstâncias tais ao interesse político da corporação, justo é que prevaleça o direito natural do preso, empenhado, talvez, em se abluir imediatamente da increpação que o vexa e prejudica.
Não arquiteto, Senhores, uma construção jurídica: cinjo-me a produzir nuamente a prescrição constitucional, explícita, em termos incisivos no art. 20, que, vedando o processo e a prisão antes de autorizados pela câmara competente, acrescenta:
“Neste caso, levado o processo até pronúncia exclusive, a autoridade processante remeterá os autos à câmara respectiva para resolver sobre a procedência da acusação, se o acusado não optar pelo julgamento imediato.”
O “se o acusado não optar pelo julgamento imediato” está, como se vê, subordinado às expressões iniciais do “período neste caso”; isto é, no caso de prisão em flagrante.
Ora, o Senador Lauro Sodré não fora preso em flagrante.
Logo, a sua prisão não se podia efetuar, sem que de antemão o Senado consentisse. Ofereceu-se voluntariamente a ela o acusado? Embora. Valor para legitimar aquela detenção, só o teria o ato renunciatório, caso a imunidade fosse renunciável. Não o era. Logo, a prisão foi inconstitucional.
Logo, inconstitucional é o processo na sua fase primária, no conselho de investigação, base impreterível e inseparável da outra o conselho de guerra.
Se esta verdade certa, óbvia, inelutável não encontrou acolhida no areópago da nossa justiça, e mercê desse erro deplorável, em que resvalaram os pontífices da magistratura republicana, se baldaram os recursos da mais luminosa defesa, é que o espírito da lei nem sempre habita os tribunais humanos, e a Constituição nem sempre está segura no presídio de seus guardas.
Estarei, com estas reivindicações, perdendo o meu feitio? Bem sei que são de uma epiderme calejada estes nossos tempos; bem sei que falo para uma época, em cuja indiferença nada faz mossa. A sociedade se tornou coriácea. Não é só indiferente por hábito e apatia: é indiferentista por sistema e comodidade. A atmosfera política perdeu a sua antiga ressonância. Os fatos mais clamorosos lhe não despertam a mínima vibração. Mas, entre os que se criaram, como eu, e envelheceram, amando o direito, estremecendo-o, querendo-lhe mais que a tudo, penando por ele, com a mesma afeição da mocidade, através de outras gerações que cada vez mais o desadoram, esse culto, abandonado pela deserção geral, se levanta imortal das ruínas, como as devoções ou as superstições que sobrevivem à fé e à esperança. (Muito bem!)
Desanima-se de nossa felicidade? Resta-nos pensar com carinho na dos nossos descendentes. Descrê-se do presente? Sente-se que ele moteja da nossa indignação liberal, do nosso aferro às idéias, da nossa confiança nas leis morais? Vamos cuidar então na posteridade, a cujos dias os atentados de agora chegarão, na sua reminiscência, como estigmas de uma quadra social, que, se para algures nos vai levando a correr, não é decerto para a consolidação de um regímen tão malservido, ou para a melhora da nossa tranqüilidade, cada vez mais ameaçada.
Tenho dito de sobra, creio eu, para caracterizar a fisionomia da repressão, num processo onde nem sequer os tribunais se entenderam quanto à classificação do crime. Os conselhos de investigação parciais opinaram pela sedição, o conselho geral de investigação, que os substituiu, capitulou os fatos em reunião sediciosa e revolta. O Supremo Tribunal Militar dali o desclassificou e reclassificou-os em sedição. O Supremo Tribunal Federal, ao conhecer do recurso Varela, desaprovou todas essas qualificações jurídicas, assentes na lei militar, para averbar o ato criminoso em sedição civil. Desta arte perambulou a figura legal do atentado, ora entre os arts. 90, 93 e 100 do Código Penal Militar, ora do Código Penal Militar ao Código Penal comum.
Deixemos, porém, os vícios da legalidade ordinária para tornar aos da legalidade constitucional, cuja conta ainda não acabamos.
Dispõe a Constituição atual, Senhores, que “ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ela regulada”. São os termos do § 15, art. 72.
Têm-se observado, acaso, estas garantias para com os indiciados no caso de 14 de novembro? Estão eles sendo julgados por juízes competentes? Não, absolutamente não.
No foro militar, Senhores, bem o sabeis, uma só magistratura é permanente: a do Supremo Tribunal Militar. Os demais se constituem ad hoc para cada processo, consoante a norma que, na sua longa antiguidade, não tem variado essencialmente. De presente, sob o regulamento de 1895, a matéria se acha definida em termos iniludíveis. Os arts. 12 e 13 desse ato, observado como lei, fixam as regras, segundo as quais se têm de compor os conselhos de guerra, determinando o número dos juízes e a sua graduação militar. O art. 8º, enfim, prevenindo o caso de minguarem oficiais efetivos em número bastante, institui, subsidiariamente, o recurso aos de outras classes armadas.
Para a observância dessas provisões estatui o art. 304 que os oficiais de cada circunscrição militar judicial, no Exército ou na Armada, se relacionarão, periodicamente, na ordem dos seus postos, a fim de serem escalados para o serviço nos conselhos de investigação e de guerra.
Essas relações alistarão os efetivos, os reformados, os honorários. Uma vez organizadas e revistas, por trimestre, semestre, ou ano, conforme se trate da oficialidade efetiva, da reformada e honorária, ou da guarda nacional, serão transcritas em livro peculiar a este objeto, na repartição respectiva, e publicadas em Ordem do Dia.
Coroando, afinal, todas estas regras, determina o art. 305: “A nomeação dos conselhos de investigação e de guerra deverá obedecer rigorosamente à escala das relações dos oficiais de que trata o artigo anterior; o contrário do que, induz nulidade do processo.”
O Sr. Presidente – Lembro ao nobre senador que a hora do expediente está finda, podendo S. Exª, de acordo com a regimento, pedir prorrogação.
O Sr. Rui Barbosa – Requeiro prorrogação da hora.
(Consultado, o Senado atende ao requerimento.)
O Sr. Rui Barbosa (continuando) – As autoridades militares nenhuma discrição exercem, portanto, ao nomear os conselhos de investigação e de guerra. Não são elas, senão a própria lei quem os nomeia, por um sistema automático de indicação, que a ordem escalar executa, digamos assim, mecanicamente. Designa-os fatalmente a escala na seqüência estrita da sua graduação. A escala periodicamente organizada nos prazos legais e resguardada cautelosamente das ob-repções e falsificações, dos enxertos e cortes, das antedatas e pós-datas, mediante a publicidade inadiável nas Ordens do Dia. Tudo sob a pena de nulidade. Nulidade, se a escala não teve a sua revisão periódica. Nulidade ainda se a escala não recebeu para logo a devida publicidade. Nulidade, enfim, se os conselhos não foram nomeados precisamente segundo a individuação da escala.
E por que todos esses requisitos sob a cominação de nulidade? Porque a exatidão na escala depende essencialmente da sua renovação nos períodos taxados. Porque a certeza da sinceridade nesta renovação pende substancialmente da publicação da escala nas épocas e sob as formas legais. Porque, derradeiramente, se a escala não reveste os caracteres elementares de sinceridade e exação, a magistratura dos conselhos militares está falseada, adulterada na sua origem.
Para esses juízes militares, na designação regular pela escala e na escrupulosa legalidade da escala está, portanto, a fonte da competência da jurisdição do poder.
Não quis a lei que os conselhos de investigação e os de guerra fossem comissões das secretarias. Se o governo dispusesse do menor arbítrio na composição desses tribunais, grande mentira mentiríamos, dando à autoridade neles investida o nome de magistratura. Daí a exigência da sucessão previamente estabelecida entre os julgadores. Daí a notoriedade oficial imposta aos quadros fixativos desta sucessão. Daí a sujeição absoluta da escolha a essa ordem de sucessão notória e antecipada. Quebrou- se um desses elos à garantia? Não existe a distribuição legal da autoridade judicante. Não há investidura judicial. Os julgadores não são juízes. Os processamentos não são processos. Os julgados não são sentenças.
Tais, entretanto, as sentenças, os processos, os julgadores que têm cabido aos indiciados no caso de 14 de novembro. Esses julgadores são eleitos do governo, e não designados da escala. Porque escala não havia, não houve, não há. Nunca se publicou em Ordem do Dia. Logo, não há, não havia, não houve. Já se contentavam os interessados que o governo lha desse por certidão. Era conceder nimiamente. A escala não publicada com a precedência legal seria uma escala clandestina. Podia-se ter forjicado na véspera, no dia, a dedo, para o caso. Mas nem isso, nem a certidão se obteve. Os interessados requereram, insistiram, sempre em vão. Prova de que a escala nem ao menos consta do registro competente, se é que tal registro existe. Com que direito, pois, distribuem justiça aqueles oficiais? Com que direito o Supremo Tribunal Militar, em face do seu próprio regulamento, conheceu da pronúncia do conselho de investigação e vai conhecer das sentenças do de guerra? Tribunais desta procedência adulterina são ajuntamentos ilícitos, não são tribunais. Não distribuem a justiça entre os cidadãos: introduzem a ilegalidade e a desordem na justiça. A judicatura, que exercitam, não decorre da lei: nasce direta e exclusivamente da prepotência do Executivo, a quem as instituições, neste regímen, não deram alçada para submeterem a juízes de sua feitura a liberdade e a honra de ninguém. Os acusados, portanto, não foram, não têm sido, não vão ser processados pela autoridade competente.
Ataque descoberto à Constituição Republicana, em cuja declaração dos nossos direitos sobressai incisivamente essa garantia.
Ainda não é, porém, esta a derradeira ferida aqui aberta nas garantias constitucionais. Outra cláusula do art. 72 assegura aos acusados “a mais plena defesa, com todos os recursos e meios essenciais a ela”.
Ora, desta lei constitucional se tem feito insigne irrisão neste processo. Pronunciados os réus por conselhos que nasceram, funcionaram e terminaram durante o estado de sítio, dilatados meses atravessou a ação da justiça, estando aqueles cidadãos adstritos, no interior de praças de guerra, a severa incomunicabilidade. Ora, a incomunicabilidade, que outrora se hesitava em aplicar aos autores dos mais detestáveis crimes, e hoje se tem generalizado como o expediente de polícia mais corriqueiro, é a negação de toda a defesa constitucional. As exigências naturais desta repelem essa cláusula inquisitóría, ainda hoje, entretanto, mantida em boa parte, contra alguns dos réus neste processo. Ainda agora, com efeito, para alguns dos acusados, como o senador Lauro Sodré, a seqüestração não se alivia senão duas vezes por semana, em dias aprazados.
Por que não franquear aos réus o contacto livre com os parentes, os amigos, os advogados? Por que segregá-los dos seus defensores? Facilitando a defesa, facilitando-se o descobrimento da verdade.
Trata-se acaso de condenados? ou simplesmente de acusados? Em outros tempos as leis criminais assentavam na presunção de criminalidade, cujo corolário processual era a tortura, engenhosamente uniforme e atroz. Todo réu se supunha culpado. Daí um sistema de investigação judicial, empenhado todo ele em extorquir pela crueldade a confissão. O direito moderno, ao contrário, estriba na presunção de inocência. É a nossa presunção constitucional. A Constituição partiu desse pressuposto, cuja conseqüência era assegurar-se a defesa na sua maior amplitude.
Ora, no caso atual, os processados não a tiveram durante o sumário militar da culpa, o conselho de investigação, e no plenário ainda não a têm senão contrafeita e cerceada. A comunicabilidade que se lhes permite é restrita. Certidões, que requerem para a justificação de circunstâncias especiais ao seu direito, não se lhes concedem. E por último lhes embaraçam, lhes truncam, lhes corrompem a prova testemunhal.
O que ali vai de abusos, quanto a este derradeiro ponto, não tem nome. Retardado o julgamento por dilações e dilações incansáveis, ainda se lhe adiaram as audiências para inquirir uma testemunha sem importância no Alto Juruá, prescindindo-se, ao contrário, do testemunho do general Calado, que se achava na Bahia. E em que depoimentos se apóia a acusação? Em sua maioria no de co-réus, no de cúmplices, que se subtraíram à ação penal, a fim de colaborar como testemunhas na acusação. Serviço por serviço. Destas algumas não confirmaram no conselho de guerra o que haviam relatado no de investigação, outras, com louvável espírito de verdade, se recusaram ao papel de testemunhas, confessando- se associadas no delito.
Não obstante, porém, essa postergação geral das leis, da verdade e do decoro, tão magros e inconcludentes são os resultados obtidos, que, há poucos dias, um dos membros do Conselho de Guerra declarou, em audiência aberta, não haver provas convincentes no plenário.
Mas, em vez de concluir, como devia, pela insubsistância da ação penal, sugeriu irem-se buscar os meios de salvá-la nos elementos do sumário e do inquérito, militar e civil. O plenário, cujo vazio aí estava clamando em favor dos acusados, seria suplantado, assim, pelos dados suspeitos, viciosos, ilegais de uma investigação processada em segredo, sob a compressão do estado de sítio, com os réus ausentes ou coactos, por juízes incompetentes, funcionários parciais e órgãos da polícia interessados em agradar ao governo.
É para nos sublimarmos ao ápice destas belezas, que se tem retrilhado, remanchado, remoído a canseira desse processo longos nove meses, quando o artigo 296 do Regulamento Processual Militar obriga os conselhos de guerra a não transcenderem o limite de 60 dias. Salvo, diz ele, “força maior comprovada”. Ousaria alguém articular, seriamente, que se haja verificado aqui a exceção desta ressalva, no sentido limitativo e preciso a que a boa-fé e o senso jurídico lhe restringem o significado? (Apoiados.)
Alguma coisa acresce, porém, ainda mais grave que tudo isso.
Sobre ser anárquico o processo e os juízes ilegais, acontece que o tribunal, destituído já de autoridade jurídica, está profundamente arruinado na sua autoridade moral. Pode a justiça correr por mãos de juízes postulantes ou agraciados? Vários membros do Conselho de Guerra têm obtido, ou solicitado, publicamente, benefícios do governo. Tanto bastava, para que, moralmente, cessasse de existir o tribunal; pois já não existe imparcialidade, independência, desinteresse. Onde tais condições não houver, não haverá magistratura; e não se poderá dizer que ainda as haja naquele corpo judiciário, se considerarmos nas vantagens requeridas ou aceitas por muitos dos seus membros, nas graças valiosas com que o Poder Executivo não tem hesitado…
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – … em obsequiar alguns daqueles julgadores.
De sete membros se compõe o Conselho de Guerra. Pois bem: quem não sabe que três ou quatro devem ao governo obrigações recentes, contraídas no curso deste processo, ou do governo pretendem agora mesmo proteção? Não sabe o Senado que para um se anuncia (ignoro se já lhe deram) a melhor comissão do Exército? Não sabe que outro foi recentemente promovido? Não sabe que a favor de outro os ami- gos do governo agenciaram, na outra câmara, a rejeição de um veto presidencial?
Não sabe que outro, enfim, desses julgadores, o mais alto deles, o presidente do tribunal, acaba de requerer melhora nas condições da sua reforma, pondo-se assim em dependência manifesta, não só com os maiores governistas do Congresso, mas ainda com o próprio chefe do estado, árbitro da sanção?
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – Em outra época, senhores, fatos desta gravidade incendiariam a opinião do país. Se ainda fôssemos suscetíveis de impressões, não haveria mister tanto para que a nação inteira ardesse em cólera e vergonha. Ao desabar de tantas ruínas morais, nem a disciplina resistiria, no grêmio dos partidos, e as mais fortes ligações de hábito, de escola, de interesse não conteriam os homens políticos mais moderados.
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – Dezesseis anos atrás nenhum estadista brasileiro aceitaria responsabilidades tamanhas. As duas assembléias legislativas se levantariam em peso, compreendendo que não há sistema de governo capaz de sobreviver a estes choques revolucionários do poder nos fundamentos das instituições, que não há nacionalidade bastante forte para se manter neste deleixo completo da sua salubridade moral.
Contra as diáteses mais perigosas do corpo social, a justiça é o último órgão de reação e defesa. Quando ele também se intoxica, em comunhão com a doença, a medicina já não tem que fazer. Quem nos escudará do poder, quando o poder se insinua com a derrama das suas graças no ânimo dos tribunais? Para que recurso então se há de volver a sociedade indefesa? Só lhe resta o desconhecido, o apelo de cada indivíduo à sua própria energia, a confiança de cada coração em si mesmo e em Deus, que acima de tudo e de todos paira sobre o destino dos povos, reservando às nações novas, nas crises mais desesperadas, tesouros imprevistos de vitalidade. (Muito bem!)
Note bem o Senado. Aqui não se lida com atentados singulares, ou lesões individuais, cujo remédio está previsto nos meios ordinários do processo. O de que se trata é de um momento crítico nos supremos interesses da sociedade. A respeitabilidade dos tribunais sofreu uma comoção orgânica, alimentada pela continuação deste processo. As liber- dades de uma classe inteira, de uma classe grande, forte, vivaz, aquela onde se condensam especialmente as qualidades do vigor, da coragem e do brio, sentem-se abolidas, se de ora avante os processos militares durarem o espaço de gestações, os tribunais militares se constituírem ao bel-prazer dos governos, e os juízes militares se familiarizarem com o cofre das graças.
Vozes – Muito bem!
O Sr. Rui Barbosa – Para essa classe a ordem social cessou; porquanto, em relação a essa classe, cessaram as leis essenciais da vida civilizada, esfacelou-se o organismo jurídico do estado; porquanto, no que a ela respeita, se destruiu o mecanismo de proteção criado para abrigar a existência dos direitos individuais; porquanto, no que com ela entende, a justiça anda à mercê do poder.
Ora, todas as classes, todas as camadas sociais são organicamente solidárias. Quando se rompem os laços entre uma delas e a lei, a desordem propaga as suas ondas vibratórias pela sociedade inteira. Tais perturbações nunca se deixam circunscrever a uma só classe; todas, com esses movimentos do solo moral, se comovem, aproximando-se, misturando- se, nivelando-se, como as grandes águas de uma vasta bacia, em um descontentamento comum.
Pouca atenção costumam os governos fazer a estas crises, nas quais a irritação geral dos ânimos lavra por muito tempo solapadamente.
De ordinário não dão pela anarquia, senão quando irrompe, em acessos convulsivos. Mas aos representantes do povo cabe pressenti-la, quando ferve e se derrama nesse estado latente e misterioso, em que o cognominado imprevisto se cansa de avisar e prevenir os descuidados. Mal do país nessas incubações do mal formidável, se o Poder Legislativo não interpõe as medidas supremas, se vacila em acorrer com os grandes atos de moralização, de regeneração, de apaziguação geral.
Esta oportunidade é uma dessas, e o remédio por ela apontado está, visivelmente, na anistia. Eu digo, senhores, anistia, e não “perpétuo silêncio aos processos”. Esta longa perífrase não vale o vocábulo grego, glorificado, há dezenas de séculos, na instituição que ele nomeia, por tantos serviços à humanidade. O circunlóquio agora sugerido não tem a amplidão generosa e salvadora da idéia contida na palavra antiga.
A anistia não se resume em emudecer os processos: extingue as conde- nações já impostas; priva de existência a própria culpa; elimina todas as conseqüências jurídicas do delito. Os que o reiterarem, não incorrerão em reincidência; porque os vestígios do fato anistiado se terão delido inteiramente da memória legal. Que seria, pois, “o perpétuo silêncio aos processos”? Um pedaço de anistia, a mutilação da anistia, uma anistia esboçada e truncada.
Depois, o nosso direito constitucional não sabe de semelhante instituição. Ele não admite senão dois meios de atalhar a ação da justiça penal: o indulto e a anistia. O indulto, confiado ao Presidente da República, cifra-se no perdão individual do crime. Só se aplica aos condenados, remite o castigo; mas não apaga a lembrança jurídica do atentado, não extingue a tacha da culpa. A anistia, confiada ao Congresso, cancela a sentença, a ação penal e o próprio delito. É, na significação estrita da palavra helênica, ainda hoje viva, o total esquecimento do passado.
Nisto reside, para a anistia, a sua característica, o traço que lhe imprime a sua alta expressão política, a gravidade que a singulariza privilegiadamente como função peculiar à competência legislativa. Com tais elementos, com eles todos, a concebeu e designou a Constituição; aludindo a uma entidade orgânica, notoriamente definida pela sua denominação multissecular. O Congresso não tem o direito de lhe alterar a figura jurídica, de lhe cercear a integridade constitucional.
Nós não ditamos silêncio a processos. Só há um poder capaz de calar os processos, de prevenir ou interceptar a ação penal: a anistia.
Decretada esta, dela resultarão as suas conseqüências imediatas, uma das quais é o silêncio dos processos. Tê-lo-emos com as outras, se o Congresso decretar a anistia. Ele a decretará, se quiser. Mas fracioná-la não poderia; porque fracioná-la seria desnaturá-la.
Nem porque a anistia apague legalmente os fatos suscetíveis de ação penal, se seguiria que os absolva ou os preconize. Não; a anistia não julga: esquece, extingue, apaga. Bem vedes que não coloco a anistia no terreno de glorificação do caso de 14 de novembro. A anistia não é nem uma apologia nem uma transação. A anistia é o olvido, é a paz.
O Sr. Barata Ribeiro – Muito bem!
O Sr. Rui Barbosa – Nós não exercemos a magistratura da justiça: fazemos a política das necessidades sociais. Quando as circunstâncias desarmam a repressão; quando as responsabilidades se obscure- cem na confusão dos erros e dos crimes; quando a severidade, pelos seus excessos, ou pelos seus transvios, começa a induzir a opinião pública a abraçar a causa das paixões vencidas, o que se não alcançaria da perseguição e do medo, vai-se obter da clemência, pela anistia, que aplaca os ânimos, adormece as vinganças e cicatriza as feridas.
Vozes – Muito bem!
O Sr. Rui Barbosa – Ela não viria inverter posições, transformar os vencidos em vencedores, humilhar a autoridade a uma capitulação, esboçar a teoria da misericórdia como prêmio à desordem. Não; na anistia não se sentenceia, não se galardoa, nem se pactua: entrega-se à consciência pública, à ação modifícadora do tempo, à volta do bom-senso e da calma no próprio ânimo dos culpados uma causa, que, envenenada pelas dilacerações civis, já não encontra, de uma e outra parte, senão juízes apaixonados. (Muito bem!)
Consultai as tradições desta medida entre nós. Alvo sempre dos mais vivos antagonismos reacionários e dos prognósticos mais funestos, a anistia não recorda, todavia, na história da República, senão benefícios à ordem e à consolidação do regímen, a que ela tem servido largamente, extinguindo a discórdia, desasselvajando os partidos, restabelecendo a lei, a autoridade, a disciplina, o sossego na família brasileira.
(Muito bem!)
A anistia, portanto, nos termos em que eu vo-la aconselho e no valor da sua expressão real, não será, jamais, um tratado entre o poder e a revolta. É a intervenção da eqüidade pública e da legalidade suprema, varrendo os danos de uma repressão que se desnorteou e se não sustenta. (Muito bem!) É o bálsamo do amor aos nossos semelhantes, vertido sobre as violências de um processo, de onde se banira a justiça. É o remédio final para o abonançamento das paixões, para a reaquisição de simpatias perdidas, para a normalização da ordem pela confiança entre governados e governantes. (Muito bem!)
Eis a anistia, qual ela é, e qual a eu quero: não a glorificação do crime, não; mas a consagração da paz, a volta das sociedades ao selo do bom-senso, o meio soberano, que, em situações como a de agora, se reserva aos poderes públicos, na derradeira extremidade, para saírem de situações inextricáveis, atendendo, mediante concessões oportunas, aos conselhos da previsão política e às exigências do sentimento nacional.
(Muito bem!)
Pretendem, Senhores, que deste modo abusaremos da anistia.
Inexato. Se percorrerdes a legislação dos povos livres, haveis de ver que poucos se terão utilizado mais raramente desta medicina reparadora. Em algumas, com os exemplos mais concludentes, eu vos poderia mostrar que a ela se recorre com freqüência, ao passo que aqui, por dezesseis anos de república, agitada, não temos visto mais que três anistias, e uma dessas, anômala, deformada, invertida, mal merece tal nome. Foi um embrião de anistia, uma falsa meia-medida, que ainda hoje aguarda o seu complemento.
Inculcam, por outro lado que, aplicada a casos desta natureza, a anistia acoroçoa as sedições militares, Não há tal. O que semeia e germina as sedições militares é a ilegalidade habitual…
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – … o abuso crônico, em que se comprazem de viver as situações republicanas. (Muito bem!)
Longe de mim dissimular com o caráter maligno e pernicioso das revoltas militares. Ninguém mais do que eu as aborrece entranhadamente.
Delas só se lograriam apurar situações bastardas, efêmeras, viciosas, desacreditadas, estéreis. (Apoiados.)
Caberá, porém, ao elemento civil, neste assunto, entre nós, o direito de arremessar a pedra ao elemento militar? Haverá uma só das erupções da desordem no seio deste, que se não vá filiar, em última análise, à ação manifesta da política civil, das facções civis, dos estadistas civis? Não. Todas elas resultaram, direta ou indiretamente, de hostilidade aberta, em que os nossos governos se têm posto com as instituições constitucionais, ou da fraqueza lamentável desses governos ante os seus deveres mais elementares.
De um relance de olhos o vereis, se evocarmos, instantaneamente, a história destes quinze anos.
A revolução militar de 23 de novembro de 1891 foi, declaradamente, um movimento de restauração da legalidade contra o golpe de estado que dissolvera o Congresso Nacional. Ora, evidentemente, a espada que desfechara aquele golpe, o não ousaria, se não fora inspirada, animada, sustentada pelos conselheiros civis que a rodeavam.
O Sr. Barata Ribeiro – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – Mas a restauração da legalidade federal, apoiada no entusiasmo civil, começou empregando o Exército em arrasar, nos estados, a legalidade local, fraudou a Constituição, convertendo em posse definitiva a sua interinidade na cadeira da presidência, abusou inconstitucionalmente do estado de sítio, feriu nos cidadãos os mais claros direitos constitucionais, postergou as garantias constitucionais nos militares. E não lhes faltaram interesses civis, partidos civis, maiorias civis, que a cobrissem, devotadamente, em todos esses excessos.
O Sr. Barata Ribeiro – Apoiado.
O Sr. Rui Barbosa – Se eles não houvessem malquistado tão seriamente a administração nacional com o país, acaso a revolta naval de 6 de setembro de 1893 teria encontrado no descontentamento público a influência, que a estimulou, e a base das reivindicações constitucionais que a estribaram?
Sob a terceira presidência, em 1897, a impunidade galardoou os mazorqueiros desta Capital e absolveu as hecatombes de Canudos…
O Sr. Barata Ribeiro – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – … onde, por se cumprirem as instruções presidenciais de não ficar pedra sobre pedra, se ludibriou, em trucidações bárbaras, cujo estigma só não envergonharia um povo selvagem, a garantia suprema da palavra empenhada, na capitulação, pelos vencedores aos vencidos, e a lei, sobre todas inviolável, da guerra civilizada, nas lutas estrangeiras ou civis, que santifica a vida aos prisioneiros, e a confia à lealdade da vitória como pedra de toque da sua justiça e depósito da sua honra. Nem à humanidade, nem à justiça, nem à honra militar se deu a satisfação a que tinham o mais augusto direito. A expiação providencial tinha de vir. Providencial ou moral, como quiserdes: mas fatal. A lei existe, no mundo das ações humanas, como no da natureza, dai-lhe, embora, o nome que entenderdes. Tinha de vir. E veio. O enxurro sangrento do crime, represado ao longo e do alto, golfou, tremendo, aqui, um belo dia, aos pés do Presidente da República, em uma praça de guerra, no atentado de 5 de novembro.
Por último, enfim, o do 14 de novembro, o ano passado, se atreveria a sair à rua, se não esperasse achar segurança de bom êxito na agitação popular desencadeada contra uma lei, que a opinião repelia violentamente?…
O Sr. Barata Ribeiro – Apoiado. Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – … se o Governo houvesse feito, em tempo, aos conselhos do bom-senso o sacrifício desse ato legislativo, que pouco deve de sacrificar às exigências da fraqueza.
O Sr. Barata Ribeiro – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – Tal a história dos nossos movimentos militares. À maneira que as instituições se dissolvem, os laços do dever militar se vão desatando. Por que não metermos uma vez a mão na consciência? Os nossos erros, os nossos males, a nossa decadência, os nossos perigos, incalculáveis, talvez extremos, só nos não assoberbam, porque já renunciamos de todo em todo à previdência, adotamos o Alcorão da fatalidade turca, e estamos deixando indiferentes a paralisia da sensibilidade invadir-nos os centros da vida moral.
Todos os vícios do antigo regímen cresceram, agigantados, no de hoje. Com tanto mais insuspeição e tanto mais desespero assim me pronuncio, quanto considero irrestaurável o outro. Os abusos medraram tão enormemente que, relendo agora as nossas objurgatórias de 1889 contra a monarquia, nos admiramos de que pecados tão veniais como aqueles hoje que se nos afiguram, pudessem atear uma revolução. Não são tão-somente os órgãos oficiais e os costumes políticos os que se arruinaram.
Com eles se perderam, igualmente, os órgãos morais e os costumes sociais, garantia da regeneração ulterior pela reação do espírito popular contra o oficialismo. Para ajeitar leito suave à corrupção dos governos, entrou, até, nos estilos, a aliciação da publicidade: os dois achaques se aconchegam, se acariciam, se protegem um ao outro, na mais vantajosa mutualidade. O poder renunciou, assim, a ter notícia do que a opinião quer. A opinião desacoroçoou de penetrar o que o governo lhe oculta. Opinião e governo, destarte, vivem separados e transviados pelo órgão de informação e censura, que os devia comunicar e esclarecer.
(Muito bem!)
Nem sequer estímulos de arrependimento e reabilitação nos acenam com um futuro menos ingrato. O fato agora mesmo aí está.
Quando já tão pouco tempo nos resta para a emenda, para a cura de tantas mazelas, para a reconstituição de tantas perdas, no momento de liquidar situações findas e aparelhar situações vindouras, aí, ao menos, recorreremos à vontade nacional, consultaremos, ao menos aí, a consciência nacional, as exigências superiores do nosso destino?
Não: é só o poder, ou o campanário, quem fala. O que ao poder se disputa, é somente para o campanário. A pátria desapareceu. Sobre os seus despojos reinam os grupos e os senhores feudais. Já não somos brasileiros. O antigo sentimento da nossa grandeza comum expirou.
O manto do governo caiu dos ombros da nação nos do mandarinato local, sobreposto ao país e empenachado com as insígnias da soberania.
Na atmosfera desses costumes, em convivência com eles explorado, o elemento militar não se podia eximir ao contágio perversivo.
Só se conhece um poder a que a força naturalmente se dobre: o do respeito.
Mas não há respeito verdadeiro sem moralidade. (Apoiados.) Acostumando- se a vê-la tantas vezes ausente da autoridade civil, o soldado começa a desprezá-la. Ora desatendido nos seus direitos, quando eles colidem com as exigências do nepotismo; ora adulado nos seus interesses, quando os do governo periclitam na defesa dos abusos…
O Sr. Barata Ribeiro – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – … aqui seduzidos pelos que lhe cobiçam a cumplicidade, ali maltratado pelos que se desforram da sua independência; o militar umas vezes esmorece no civismo, embebendo-se do ambiente insalubre que respiramos; outras, arrebatado pelo coração, dá ouvidos aos conselhos nefastos da rebeldia. Os governos então se queixam.
Mas de si mesmos primeiro é que se haviam de queixar. Antes de solicitado pelos manejos da conspiração, a força estava habituada a sê-lo pela política do poder. Quando, aqui, há anos, o conselho nomeado para investigar da conjuração que se atribuía a certo almirante, concluiu pela inocência do acusado, os generais da Armada, cuja unanimidade firmara esse parecer, foram destituídos um a um das comissões profissionais, que exerciam. Se opinassem, ao contrário, pela culpabilidade, claro está que só lhes não choveriam em casa as honras e graças não sonhadas.
Ora um tal sistema de administração rebaixa, atrofia, extingue, nas classes armadas, o sentimento do dever, e, ou as degenera em cego mecanismo de opressão civil nas mãos da autoridade corruptora, ou lhes desenvolve no seio, contra ela, o perigoso fermento da indisciplina militar.
(Apoiados.)
Quem tais germes esparze, que outros frutos queria? A disciplina social é uma só: não se divide. Sua base está na lei, cuja majestade é inteiriça. Dai-me um país de legalidade, e eu vos darei um exército legalista.
O Sr. Barata Ribeiro – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – Dai-me um país de arbítrio, e o exército será, naturalmente, agitado. Ora, no Brasil, a República tem sido um regímen de sucessivas ditaduras, militares, ou civis.
O Sr. Barata Ribeiro – Apoiadíssimo.
O Sr. Rui Barbosa – Umas se não distinguem das outras, senão em que as civis se vão fazendo mais absorventes que as militares.
O Sr. Barata Ribeiro – Apoiado.
O Sr. Rui Barbosa – Sob as militares o espírito de resistência civil teve lances gloriosos no seio do Congresso. Sob as civis esse espírito morreu, e não se tolera. Se não queremos, portanto, rolar para sempre nesse vaivém de alternativas ditaduras, em cujo andamento inevitável as de farda acabarão engolindo, uma vez por todas, as de casaca, resolva- se o Poder Civil, o Poder Constitucional, a lançar as bases da sua volta à Constituição, até aqui burlada e subvertida.
Mas por que falar em volta? Não se volta aonde nunca se esteve.
O que importa, é que, mediante um fundo exame de consciência e uma reconciliação sincera com a lei, o poder inaugure essa constitucionalidade, que a nação anela, para avaliar enfim, num ensaio leal, as vantagens do sistema de governo, cuja teoria adotamos. Ora, eis que se vos abro uma grande oportunidade, para estreardes, correndo o véu do pudor público sobre a cena, onde as formas de uma justiça caduca, entrevada e paralítica representam com a maior infelicidade a comédia da repressão legal, e, nos desconcertos da sua impotência, aniquilam as garantias essenciais o direito para uma grande classe de cidadãos brasileiros.
(Muito bem!)
Nunca me toparam, Senhores, nem me hão de topar entre os cortesãos. Não fiz a corte à coroa, não cortejei o povo, não cortejarei a força armada, cujos desvios tenho reprovado com a mesma isenção, com que lhe propugno os direitos. Não me arreceio, pois, de passar por está-la cortejando, se disser que, no íntimo d’alma, desejo com ardor a preservação e reconstituição desse elemento numa entidade respeitável; porque as nossas circunstâncias lhes reservam um destino assinaladamente nacional. Esta grande nacionalidade, que do Amazonas ao Prata se estende quase com uma só religião e sem nenhum dialeto, o regionalismo do sistema federativo estragado pelas nossas enfermidades políticas ameaça dissolvê-la aceleradamente. Já não temos solidariedades nacionais, movimentos nacionais, nomes nacionais. Só nos resta uma justaposição de estados mutuamente estranhos e uma poeira de aldeias manipulada por interesses dispersos. A imagem da grande pátria brasileira se esvai à distância, numa longínqua saudade, rapidamente desbotada. (Sensação.)
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – Dela quase não se lembra a política, senão para a profanar, de tarde em tarde, com as invocações banais das formas de protocolo, nos dias de guerra ou de negócio entre os conluios.
Mas o exército de terra e mar ainda é, graças a Deus, nacional.
Ergamos-lhe os sentimentos, retemperando-o no metal austero dos deveres da sua vocação, e será um poder invencível de união entre nós, uma armadura de aço, em cujas malhas a abalada estrutura da nossa unidade nacional aguarde para melhores dias a hora do seu renovamento.
Vozes – Muito bem,
O Sr. Rui Barbosa – Tal, porém, senhores, não seria possível nem com um exército de demagogos, nem com um exército de janízaros.
Dessas duas condições depende a função dupla, que lhe deve assistir, a um tempo, como órgão interior da nossa unidade e órgão externo da nossa integridade.
A respeito, porém, quer de uma, quer de outra, o valor da força estará sempre mais no caráter do soldado que nos instrumentos de guerra. Espectadora atônita, a humanidade assiste agora, da Europa ao Extremo Oriente, ao maior desmoronamento da História. O agente dessa catástrofe abençoada, com que a Ásia vem acabar de civilizar a Europa (apoiados; muito bem!), livrando-a da tirania russa, a mais truculenta e imoral das tiranias, suscitou-o a Providência em um povo até há dois anos desprezado, mas agora, tamanho, que a maior das nações ocidentais se ensoberbece da sua aliança, e todas as potências européias o estudam como um modelo e uma escola.
Vozes – Muito bem.
O Sr. Rui Barbosa – Pois bem. Na epopéia deslumbrante, encantada, paradoxal dessa campanha, que os épicos gregos celebrariam como espetáculo digno dos homens e dos deuses, o que sobretudo assombra o mundo contemporâneo, não é nem o mérito impecável da organização militar daquele povo, nem a mobilidade prodigiosa das suas imensas massas combatentes, nem o poder fulminante das suas invenções e das suas armas, nem a ciência perfeita dos seus capitães, nem a fulgurante bravura dos seus soldados, nem a inspiração dos seus planos, a certeza dos seus golpes e o encadeamento dos seus triunfos: são as grandes virtudes humanas e militares, que os animam…
Vozes – Muito bem. Apoiado.
O Sr. Rui Barbosa – … aquele sublime espírito de religião no amor da pátria…
Vozes – Muito bem. Apoiado.
O Sr. Rui Barbosa – … uma consumada moral; a abnegação de todo o interesse; o oferecer da vida singelamente, a cada hora, como o mais comezinho dos sacrifícios, ao dever público; a generosidade, a modéstia; a temperança. (Muito bem!)
Daí a invencibilidade japonesa, a espontaneidade daquele heroísmo, renascente de contínuo como o sorrir da terra bendita no país das cerejeiras em flor. É que os exércitos respiram ali um meio nacional límpido, uma política honesta, uma administração imaculada. (Muito bem!)
As nações que não buscarem essa higiene, acabarão, como o colosso moscovita, devoradas pelas misérias intestinas, envergonhadas pelas humilhações estrangeiras, embora multipliquem o trem das suas máquinas de combate, cubram os campos de hostes inumeráveis, e sobrecarreguem os orçamentos de sacrifícios militares. Porque as asas da vitória não se fazem do chumbo das balas, nem do aço dos canhões, mas do espírito que eletriza as hostes combatentes, e lampeja como centelha divina entre os horrores da guerra. A maior das verdades táticas é que os povos se defendem principalmente com o coração dos seus soldados.
Desta fonte sagrada é que borbota o ímpeto, o entusiasmo, a veemência das proezas ilustres, o gênio das grandes resistências, o brilho das ofensivas triunfantes, o segredo das conquistas estáveis. (Bravos.)
Essas qualidades do coração militar, porém, não se formam sem altos ensinamentos, nobres exemplos, grandes ações magnânimas.
Para uma dessas permita Deus que desperte, que estimule, que alevante a vossa consciência, Srs. Senadores, o grito da opinião nacional que o meu projeto desfere neste recinto. (Bravos, longas salvas de palmas, nas galerias e no recinto. Aclamações prolongadas interrompem a sessão durante muito tempo. O orador é coberto de flores, rodeado e abraçado pelos senadores presentes.)
***
Tendo em vista a demora no apurar as responsabilidades dos implicados na revolta das Escolas Militares, em 14 de novembro de 1904, apresentou Rui Barbosa, em sessão de 5 de agosto de 1905, o seguinte projeto de anistia: O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º São anistiadas todas as pessoas, que tiveram parte nos sucessos desta capital durante a noite de 14 de novembro de 1904, assim como nas ocorrências civis ou militares, anteriores ou posteriores, que com elas se relacionem.
Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.
Sala das Sessões do Senado, 5 de agosto de 1905. – Rui Barbosa. – Belfort Vieira. – Barata Ribeiro. – Manuel Barata. – Jônatas Pedrosa. – Oliveira Figueiredo. – Sá Peixoto. – Virgílio Damásio. – Joaquim Murtinho. – Lourenço Batista. – A. Azeredo.
Em sessão de 9 de agosto, entrando o projeto em 1ª discussão, requer Barata Ribeiro seja nominal a votação. Votam a favor 31 senadores contra 4. Vai às comissões de Constituição e Diplomacia e de Justiça e Legislação as quais apresentaram pareceres favoráveis em sessões de 12 e 14 desse mês.
Em sessão de 17 é aprovado em 2ª discussão sem debate, por 31 votos contra dois. Em 18 entra em 3ª discussão, sendo encerrada sem debate. Requer Barata Ribeiro votação nominal. É aprovado o projeto por 32 votos contra um.
Redes Sociais