Amor de Perdição

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Capítulo I

Capítulo II

Capítulo III

Capítulo IV

Capítulo V

Capítulo VI

 

 

INTRODUÇÃO

Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório
das cadeias da Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803
a 1805, a folhas 232, o seguinte:

Simão Antônio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro,
e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa,
e assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito
anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão
Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo
e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão
pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei – Filipe Moreira
Dias.

A margem esquerda deste assento está escrito:

Foi para a Índia em 17 de março de 1807.

Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor,
se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó.

Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida!
As louçanias do coração que ainda não sonha em frutos, e todo se embalsama
no perfume das flores! Dezoito anos! O amor daquela idade! A passagem do seio
da família, dos braços de mãe, dos beijos das irmãs para as carícias mais
doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma sazão e dos mesmos
aromas, e à mesma hora da vida! Dezoito anos!… E degredado da pátria, do
amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade, nem irmãos,
nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!… É triste!

O leitor decerto se compungiria; e a leitora, se lhe dissessem
em menos de uma linha a história daqueles dezoito anos, choraria!

Amou, perdeu-se, e morreu amando.

É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos
a mulher, a criatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por
vezes traz consigo do céu um reflexo da divina misericórdia?! Essa, a minha
leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem
que o pobre moço perdera honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe,
vida, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes
desejos?!

Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobressalto
que me causaram aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas com amargura
e respeito e, ao mesmo tempo, ódio. Ódio, sim… A tempo vereão se é perdoável
o ódio, ou se antes me não fora melhor abrir mão desde já de uma história
que me pode acarear enojos dos frios julgadores do coração, e das sentenças
que eu aqui lavrar contra a falsa virtude de homens, feitos bárbaros, em nome
da sua honra.

CAPÍTULO I

Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo
de linhageme um dos mais antigos solarengos de Vila-Real de Trás-os-Montes,
era em 1779,juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama
do paço, D. RitaTeresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco,
filha dum capitão decavalos, neta de outro Antônio de Azevedo Castelo Branco
Pereira da Silva, temnotável por sua jerarquia, como por um, naquele tempo,
precioso livro acerca daArte de Guerra.

Dez anos de enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o bacharelprovinciano.
Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhedotes físicos:
Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar comopartido conveniente
a uma filha segunda, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveresdele não excediam
a trinta mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes deespírito não o
recomendavam também: era alcançadíssimo de inteligência, egranjeara entre
os seus condiscípulos da Universidade o epíteto de “brocas”, comque
ainda hoje os seus descendentes em Vila-Real são conhecidos. Bem ou malderivado,
o epíteto Brocas vem de broa. Entenderam os acadêmicos que a rudezado seu
condiscípulo procedia de muito pão de milho que ele digeria na sua terra.Domingos
Botelho devia ter uma vocação qualquer, e tinha: era excelenteflautista; foi
a primeira flauta do seu tempo; e a tocar flauta se sustentou dois anosem
Coimbra, durante os quais seu pai lhe suspendeu as mesadas, porque osrendimentos
da casa não bastavam a livrar outro filho de um crime de morte (1).Formara-se
Domingos Botelho em 1767, e fora a Lisboa ler no Desembargodo Paço, iniciação
banal dos que aspiravam à carreira da magistratura. Já FernãoBotelho, pai
do bacharel, fora bem aceite em Lisboa, e mormente ao duque deAveiro, cuja
estima lhe teve a cabeça em risco, na tentativa regicida de 1758. Oprovinciano
saiu das masmorras da Junqueira ilibado da infamante nódoa, e até benquisto
do conde de Oeiras, porque tomara parte na prova que este fizera doprimor
de sua geneologia sobre a dos Pintos Coelhos, do Bomjardim do Porto: pleitoridículo,
mas estrondoso, movido pela recusa que o fidalgo portuense fizera de suafilha
ao filho de Sebastião José de Carvalho.

As artes como que o bacharel flautista vingou insinuar-se
na estima de D. Maria I e Pedro III não as sei eu. É tradição que o homem
fazia rir a rainha com as suas facécias, e por ventura com os trejeitos de
que tirava o melhor do seu espírito. O certo é que Domingos Botelho freqüentava
o paço, e recebia do bolsinho da soberana uma farta pensão. com a qual o aspirante
a juiz de fora se esqueceu de si, do futuro e do ministro da justiça, que,
muito rogado, fiara das suas letras o encargo de juiz de fora de Cascais.

Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço. não poetando
como Luís de Camões ou Bernardim Ribeiro; mas namorando na sua prosa provinciana,
e captando a bem-querença da rainha para amolecer as durezas da dama.
Devia de ser, afinal, feliz “doutor bexiga” – que assim era na corte
conhecido – para se não desconcertar a discórdia em que andam rixados o talento
e a felicidade. Domingos Botelho casou com D. Rita Preciosa. Rita era uma
formosura, que ainda aos cinqüenta anos se podia prezar de o ser. E não tinha
outro dote. se não é dote uma série de avoengos, uns bispos, outros generais,
e entre estes o que morrera frigido em caldeirão de não sei que terra da mourisma,
glória, na verdade, um pouco ardente. mas de tal monta que os descendentes
do general frito se assinaram Caldeirões.

A dama do paço não foi ditosa com o marido. Molestavam-na
saudades da corte, das pompas das câmaras reais. e dos amores de sua feição
e malde, que imolou ao capricho da rainha. Este desgostoso viver, porém, não
empreceu que se reproduzissem em dois filhos e três meninas. O mais velho
era Manuel, o segundo Simão; das meninas uma era Maria, a segunda Ana e a
última tinha o nome de sua mãe, e alguns traços de beleza dela,

O Juiz de fora de Cascais, solicitando lugar de mais graduado
banco, demorava em Lisboa, na freguesia da Ajuda. em 1784. Neste ano é que
nasceu Simão, o penúltimo dos seus filhos. Conseguiu ele, sempre balanceado
da fortuna,. transferência para Vila-Real, sua ambição suprema.

A distância duma légua de Vila-Real estava a nobreza da vila
esperando o seu conterrâneo. Cada família tinha a sua liteira com o brasão
da casa. A dos Correias de Mesquita era a mais antiquada no feitio, e as librés
dos criados as mais surradas e traçadas que figuravam na comitiva.

D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho
direito a sua grande luneta de oiro, e disse:

– Ó Meneses, aquilo que é?

– São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.

– Em que século estamos nós nesta montanha? – tornou dama
do paço.

– Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.

– Ah! sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze…

O marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeara
grandemente.

Fernão Botelho, pai do juiz de fora, saiu à frente do préstito
para dar a mão à nora, que apeava da liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita,
antes de ver a cara de seu sogro, contemplou-lhe a olho armado as fivelas
de aço, e a bolsa do rabicho. Dizia ela depois que os fidalgos de Vila-Real
eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa. Antes de entrar na avoenga
liteira de seu marido, perguntou, com a mais refalsada seriedade, se não haveria
risco em ir dentro daquela antigüidade. Fernão Botelho asseverou a sua nora
que a sua liteira não tinha ainda cem anos, e que os machos não excediam a
trinta.

O modo altivo como ela recebeu as cortesias da nobreza – velha
nobreza, que para ali viera em tempo de D. Deniz, fundador da vila – fez que
o mais novo do préstito, que ainda vivia há doze anos, me dissesse a mim:
“Sabíamos que ela era dama da Senhora D. Maria I; porém, da soberba com
que nos tratou ficamos pensando que seria ela a própria rainha”. Repicaram
os sinos da terra quando a comitiva assomou à Senhora de Almudena. D. Rita
disse ao marido que a recepção dos sinos era a mais estrondosa e barata.

Apearam à porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do
paço relanceou os olhos pela fachada do edifício, e disse de si para si: “É
uma bonita vivenda para quem foi criada em Mafra e Sintra, na Bemposta e Queluz”.

Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha
medo de ser devorada das ratazanas; que aquela casa era um covil de feras;
que os tetos estavam a desabar; que as paredes não resistiriam ao inverno;
que os preceitos de uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de frio uma
esposa delicada e afeita às almofadas do palácio dos reis,

Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte,
e começou a fábrica dum palacete. Escassamente lhe chegavam os recursos para
os alicerces: escreveu à rainha, e obteve generoso subsídio com que ultimou
a casa. As varandas das janelas foram a última dádiva que a real viúva fez
à sua dama. Quer-nos parecer que a dádiva é um testemunho, até agora inédito,
da demência da Senhora D. Maria I.

Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas;
D. Rita, porém, teimara que no escudo se esquarteassem também as suas; mas
era tarde, porque já a obra tinha vindo do escultor, e o magistrado não podia
com segunda despesa, nem queria desgostar seu pai, orgulhoso de seu brasão.
Resultou daqui ficar a casa sem armas e D. Rita vitoriosa.

O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga
dobrou-se até aos grandes da província, ou antes houve por bem levantá-los
até ela. D. Rita tinha uma corte de primos, uns que se contentavam de serem
primos, outros que invejavam a sorte do marido. O mais audacioso não ousava
fitá-la de rosto, quando ela o remirava com a luneta, em jeito de tanta altivez
e zombaria, que não será estranha figura dizer que a luneta de Rita Preciosa
era a mais vigilante sentinela da sua virtude.

Domingos Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos
próprios para cabalmente encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o ciúme;
mas sufocava os suspiros, receando que Rita se desse por injuriada da suspeita.
E razão era que se ofendesse. A neta do general frígido no caldeirão sarrareno
ria dos primos, que, por amor dela, erriçavam e empoavam as cabeleiras com
desgracioso esmero, e cavaleavam estrepitosamente na calçada os seus ginetes,
fingindo que os picadores da província não desconheciam as graças hípicas
do marquês de Marialva.

Não o cuidava assim, porém, o juiz de fora, O intriguista
que lhe trazia o espírito em ânsias era o seu espelho. Via-se sinceramente
feio, e conhecia Rita cada vez mais em flor, e mais enfadada no trato íntimo.
Nenhum exemplo da história antiga, exemplo de amor sem quebra entre o esposo
disforme e a esposa linda, lhe ocorria. Um só lhe mortificava a memória, e
esse, com quanto fosse da fábula, era-lhe avesso, e vinha a ser o casamento
de Vênus e Vulcano. Lembravam-lhe as redes que o ferreiro coxo fabricara para
apanhar os deuses adúlteros, e assombrava-se da paciência daquele marido.
Entre si, dizia ele, que, erguido o véu da perfídia, nem se queixaria a Júpiter,
nem armaria ratoeiras aos primos. A par do bacamarte de Luís Botelho, que
varara em terra o alfares, estava uma fileira de bacamartes em que o juiz
de fora era entendido com muito superior inteligência à que revelava na compreensão
do Digesto e das Ordenações do Reino.

Este viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria.
O juiz de fora empenhara os seus amigos na transferência, e conseguiu mais
do que ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou
saudades em Vila-Real, e duradoura memória da sua soberba, formosura e graças
de espírito. O marido também deixou anedotas que ainda agora se repetem. Duas
contarei somente para não enfadar. Acontecera um lavrador mandar-lhe o presente
duma vitela, e mandar com ela a vaca, para se não desgarrar a filha. Domingos
Botelho mandou recolher à loja a vitela e a vaca, dizendo que quem dava a
filha dava a mãe. Outra vez, deu-se o caso de lhe mandarem um presente de
pastéis em rica salva de prata. O juiz de fora repartiu os pastéis pelos meninos,
e mandou guardar a salva, dizendo que receberia como escárnio um presente
de doces, que valiam dez patacões, sendo que naturalmente os pastéis tinham
vindo como ornato da bandeja, E assim é que, ainda hoje, em Vila-Real, quando
se dá um caso análogo de ficar alguém com o conteúdo e continente, diz a gente
da terra: “Aquele é como o doutor Brocas”.

Não tenho assunto de tradição com que possa reter-me em miudezas
da vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a comarca,
e ameaçava o marido de ir com seus cinco filhos para Lisboa, se ele não saísse
daquela intratável terra, Parece que a fidalguia de Lamego, em todo o tempo
orgulhosa de uma antigüidade que principia na aclamação de Almacave, desdenhou
a filáucia da dama do paço, e esmerilhou certas vergônteas podres do tronco
dos Botelhos Correais de Mesquita, desprimorando-lhe as cãs com o fato de
ele ter vivido dois anos em Coimbra tocando flauta.

Em 1801, achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita
corregedor em Viseu.

Manuel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos,
e freqüenta o segundo ano jurídico. Simão, que tem quinze, estuda humanidades
em Coimbra. As meninas são o prazer e a vida toda do coração de sua mãe.

O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não
poder viver com seu irmão, temeroso do gênio sanguinário dele. Conta que a
cada passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro
dos livros, convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre
de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com assuadas.
O corregedor admira a bravura de seu filho Simão, e diz à consternada mãe
que o rapaz é a figura e o gênio de seu bisavô Paulo Botelho Correia, o mais
valente fidalgo que dera Trás-os-Montes.

Manuel, cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai
de Coimbra antes de férias e vai a Viseu queixar-se e pedir que lhe dê seu
pai outro destino, D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavalaria. De
Viseu parte para Bragança Manuel Botelho, e justifica-se nobre dos quatro
costados para ser cadete.

No entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus exames feitos
e aprovados. O pai maravilhava-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagância
por amor do talento. Pede-lhe explicações do seu mau viver com Manuel, e ele
responde que seu irmão o quer forçar a viver monásticamente.

Os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de
compleição; belo homem com as feições de sua mãe, e a corpulência dela; mas
de todo avesso em gênio. Na plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros.
Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que faz, Simão zomba das genealogias,
e mormente do general Caldeirão que morreu frito. Isto bastou para ele granjear
a malquerência de sua mãe. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher,
e tomou parte no desgosto dela e na aversão ao filho. As irmãs temiam-no,
tirante Rita, a mais nova, com quem ele brincava puerilmente, e a quem obedecia,
se ela lhe pedia, com meiguices de criança, que não andasse com pessoas mecânicas.

Finalizavam as férias, quando o corregedor teve um grave dissabor.
Um dos seus criados tinha ido levar a beber os machos, e, por descuido ou
propósito, deixou quebrar algumas vasilhas que estavam à vez no parapeito
do chafariz. Os donos das vasilhas conjuraram contra o criado; espancaram-no.
Simão passava nesse ensejo; e, armado de um fueiro que descravou de um carro,
partiu muitas cabeças, e rematou o trágico espetáculo pela farsa de quebrar
todos os cântaros. O povoléu intacto fugira espavorido, que ninguém se atrevia
ao filho do corregedor; os feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar
justiça à porta do magistrado.

Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao meirinho
geral que o prendesse à sua ordem. D. Rita, não menos irritada, mas irritada
como mãe, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para que, sem detença,
fugisse para Coimbra, e esperasse lá o perdão do pai.

O corregedor quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se
zangado, e prometeu fazê-lo capturar em Coimbra. Como, porém, D. Rita lhe
chamasse brutal nas suas vinganças e estúpido juiz de uma rapaziada, o magistrado
desenrugou a severidade postiça da testa, e confessou tacitamente que era
brutal e estúpido juiz.

CAPÍTULO II

Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes convicções
da sua valentia. Se recordava os chibantes pormenores da derrota em que pusera
trinta aguadeiros, o som cavo das pancadas, a queda atordoada deste, o levantar-se
daquele, ensangüentado, a bordoada que abrangia três a um tempo, a que afocinhava
dois, a gritaria de todos, e o estrépito dos cântaros afinal, Simão deliciava-se
nestas lembranças, como ainda não vi nalgum drama, em que o veterano de cem
batalhas relembra os louros de cada uma, e esmorece, afinal, estafado de espantar,
quando não é de estafar, os ouvintes.

O acadêmico, porém, com os seus entusiasmos, era incomparavelmente
muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragédia. As recordações
esporeavam-no a façanhas novas, e naquele tempo a academia dava azo a elas.
A mocidade estudiosa, em grande parte, simpatizava com as balbuciantes teorias
da liberdade, mais por pressentimento, que por estudo. Os apóstolos da revolução
francesa não tinham podido fazer revoar o trovão dos seus clamores neste canto
do mundo; mas os livros dos enciclopedistas, as fontes onde a geração seguinte
bebera a peçonha que saiu no sangue de noventa e três, não eram de todo ignorados.
As doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns tímidos sectários
em Portugal, e esses de ver é que deviam pertencer à geração nova. Além de
que, o rancor à Inglaterra lavrara nas entranhas das classes manufatureiras,
e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos, apertado, desde o princípio
do século anterior, com as sogas de ruinosos e pérfidos tratados, estava no
ânimo de muitos e bons portugueses que se queriam antes aliançados com a França.
Estes eram os pensadores reflexivos; os sectários da academia, porém, exprimiam
mais a paixão da novidade que as doutrinas do raciocínio.

No ano anterior de 1800, saíra Antônio de Araújo de Azevedo,
depois conde da Barca, a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de Portugal.
Rejeitaram-lhe as potências aliadas as propostas, tendo-lhe em conta de nada
os dezesseis milhões que o diplomata oferecia ao primeiro cônsul. Sem delongas,
foi o território português infestado pelos exércitos de Espanha e França.
As nossas tropas, comandadas pelo duque de Lafões, não chegaram a travar a
luta desigual, porque a esse tempo Luís Pinto de Sousa, mais tarde visconde
de Balsemão, negociara ignominosa paz em Badajoz, com cedência de Olivença
à Espanha, exclusão de ingleses de nossos portos, e indenização de alguns
milhões à França.

Estes sucessos tinham irritado contra Napoleão os ânimos daqueles
que odiavam o aventureiro, e para outros deram causa a congratularem-se do
rompimento com Inglaterra. Entre os desta parcialidade, na convulsiva e irrequieta
academia, era voto de grande monta Simão Botelho, apesar dos seus imberbes
dezesseis anos. Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros
algozes e mártires do grande açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos
de Simão. Difamá-los na sua presença era afrontarem-no a ele, e bofetada certa,
e pistolas engatilhadas à cara do difamador. O filho do corregedor de Viseu
defendia que Portugal devia regenerar-se num batismo de sangue, para que a
hidra dos tiranos não erguesse mais uma das suas mil cabeças sob a dava do
Hércules popular.

Estes discursos, arremedo de alguma clandestina objurgatória
de Saint-Just, afugentavam da sua comunhão aqueles mesmos que o tinham aplaudido
em mais racionais princípios de liberdade. Simão Botelho tornou-se odioso
aos condiscípulos, que, para se salvarem pela infâmia, o delataram ao bispo-conde
e ao reitor da Universidade.

Um dia, proclamava o demagogo acadêmico na praça de Sansão
aos poucos ouvintes que lhe restaram fiéis, uns por medo, outros por analogia
de bossas. O discurso ia no mais acrisolado da idéia regicida, quando uma
escolta de verdeais lhe aguou a escandescência. Quis o orador resistir, aperrando
as pistolas, mas de sobra sabiam os braços musculosos da corte do reitor com
quem as haviam. O jacobino, desarmado e cercado, entre a escolta dos arqueiros
foi levado ao cárcere acadêmico, donde saiu seis meses depois, a grandes instâncias
dos amigos de seu pai e dos parentes de D. Rita Preciosa.

Perdido o ano letivo, foi para Viseu Simão. O corregedor repeliu-o
da sua presença com ameaças de o expulsar de casa. A mãe, mais levada do dever
que do coração. intercedeu pelo filho e conseguiu sentá-lo à mesa comum.

No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes
de Simão. As companhias da relé desprezou-as. Saía de casa raras vezes, ou
só, ou com a irmã mais nova, sua predileta. O campo, as árvores e os sítios
mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de estio demorava-se
por fora até ao repontar da alva. Aqueles que assim o viam admiravam-lhe o
ar cismador e o recolhimento que o seqüestrava da vida vulgar. Em casa encerrava-se
no seu quarto, e saía quando o chamavam para a mesa.

D. Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido
dela, ao fim de cinco meses, consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra.

Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando
o que parecia absurda reforma aos dezessete anos.

Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira,
regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira
pela primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que
fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual
nos seus anos.

Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher
aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores
de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O amor dos quinze anos é uma
brincadeira; é a última manifestação do amor às bonecas; é a tentativa da
avezinha que ensaia o vôo fora do ninho, sempre com os olhos fitos na ave-mãe,
que a está de fronte próxima chamando: tanto sabe a primeira o que é amar
muito, como a segunda o que é voar para longe.

Teresa de Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no
seu amor.

O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa,
por motivo de litígios, em que Domingos Botelho lhe deu sentenças contra.
Afora isso, ainda no ano anterior dois criados de Tadeu de Albuquerque tinham
sido feridos na celebrada pancadaria da fonte. E, pois, evidente que o amor
de Teresa, declinando de si o dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo
azedume de seu pai, era verdadeiro e forte.

E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se
e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança e nem sequer suspeitas
às duas famílias. O destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele
ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela
esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração,
o seu grande patrimônio.

Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na
presumível ignorância de Teresa em coisas materiais da vida, como são um patrimônio!

Na véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se
da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado
moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por
lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto
como o tigre contra as grades inflexíveis da jaula. Teve tentações de se matar,
na impotência de socorrê-la. As restantes horas daquela noite passou-as em
raivas e projetos de vingança. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu
a esperança com os cálculos.

Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito
de tal modo transfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado dele,
foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de ir enquanto assim estivesse
febril. Simão, porém, entre mil projetos, achara melhor o de ir para Coimbra,
esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultar a Viseu falar com ela. Ajuizadamente
discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de Teresa.

Descera o acadêmico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs,
e beijar a mão do pai, que para esta hora reservara uma admoestração severa,
a ponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria se ele caísse em novas
extravagâncias. Quando metia o pé no estribo, viu a seu lado uma velha mendiga,
estendeu-lhe a mão aberta como quem pede esmola, e, na palma da mão, um pequeno
papel. Sobressaltou-se o moço; e, a poucos passos distante de sua casa, leu
estas linhas:

“Meu pai diz que me vai encerrar num convento por tua
causa. Sofrerei tudo por amor de ti. Não me esqueças tu, e achar-me-ás no
convento, ou no céu, sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para Coimbra.
Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome hás de responder
à tua pobre Teresa”.

A mudança do estudante maravilhou a academia. Se o não viam
nas aulas, em parte nenhuma o viam. Das antigas relações restavam-lhe apenas
as dos condiscípulos sensatos que o aconselhavam para bem, e o visitaram no
cárcere de seis meses, dando-lhe alentos e recursos, que seu pai lhe não dava,
e sua mãe escassamente supria. Estudava com fervor, como quem já dali formava
as bases do futuro renome e da posição por ele merecida, bastante a sustentar
dignamente a esposa. A ninguém confiava o seu segredo, senão às cartas que
enviava a Teresa, longas cartas em que folgava o espírito da tarefa da ciência.
A apaixonada menina escrevia-lhe a miúdo, e já dizia que a ameaça do convento
fora mero terror de que já não tinha medo, porque seu pai não podia viver
sem ela.

Isto afervorou-lhe para mais o amor ao estudo. Simão, chamado
em pontos difíceis das matérias do primeiro ano, tal conta deu de si, que
os lentes e os condiscípulos o houveram como primeiro premiado.

A este tempo. Manuel Botelho, cadete em Bragança, destacado
no Porto, licenciou-se para estudar na Universidade as matemáticas. Animou-o
a notícia do reviramento que se dera em seu irmão. Foi viver com ele; achou-o
quieto. mas alheado numa idéia que o tornava misantropo e intratável noutro
gênero. Pouco tempo conviveram, sendo a causa da separação um desgraçado amor
de Manuel Botelho a uma açoreana casada com um acadêmico. A esposa apaixonada
perdeu-se nas ilusões do cego amante. Deixou o marido e fugiu com ele para
Lisboa, e daí para Espanha. Em outro relanço desta narrativa darei conta do
remate deste episódio.

No mês de fevereiro de 1803 recebeu Simão Botelho uma carta
de Tereza. No seguinte capítulo se diz minuciosamente a peripécia que forçara
a filha de Tadeu de Albuquerque a escrever aquela carta de pungentíssima surpresa
para o acadêmico, convertido aos deveres, à honra, à sociedade e a Deus pelo
amor.

CAPÍTULO III

O pai de Teresa não embicaria na impureza do sangue do corregedor,
se o ajustarem-se os dois filhos em casamento se compadecesse com o ódio de
um e o desprezo do outro. O magistrado mofava do rancor do seu vizinho, e
o vizinho malsinava de venalidade a reputação do magistrado. Este sabia da
injuriosa vingança em que o outro se ia despicando; fingia-se invulnerável
à detração; mas de dia para dia se lhe azedava a bílis; e é de crer que, se
o não contivessem considerações da família, sofreria menos, desabafando pela
boca dum bacamarte, arma da predileção dos Botelhos Correais de Mesquita.
Seria impossível o reconciliarem-se.

Rita, a filha mais nova, estava um dia na janela do quarto
de Simão, e viu a vizinha rente com os vidros e a testa apoiada nas mãos.
Sabia Teresa que era aquela menina a mais querida irmã de Simão, e a que mais
semelhança de parecer tinha com ele. Saiu da sua artificial indiferença, e
respondeu ao reparo de Rita, fazendo-lhe com a mão um gesto e sorrindo. A
filha do corregedor sorriu também, mas fugiu logo da janela, porque sua mãe
tinha proibido às filhas de trocarem vistas com pessoa daquele casa.

No dia seguinte, à mesma hora, levada da simpatia que lhe
causara aquele gesto de amizade, tornou Rita à janela, e lá viu Teresa com
os olhos fitos na sua, como se a estivesse esperando. Sorriram-se com resguardo,
afastando-se a um pouco do peitoril das janelas; e assim, ambas de pé, no
interior dos quartos, se estavam contemplando. Como a rua era estreita, podiam
ouvir-se, falando baixo. Tereza, mais pelo movimento dos lábios que por palavras,
perguntou a Rita se era sua amiga. A menina respondeu com um gesto afirmativo,
e fugiu, acenando-lhe um adeus. Estes rápidos instantes de se verem repetiram-se
sucessivos dias, até que, perdido o maior medo de ambas, ousaram demorar-se
em palestras a meia voz. Tereza falava de Simão, contava à menina de onze
anos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que ela havia de ser nada sua irmã,
recomendando-lhe muito que não dissesse nada à sua família.

Numa dessas conversações, Rita descuidara-se, e levantou de
modo a voz que foi ouvida de uma irmã, que a foi logo acusar ao pai. O corregedor
chamou Rita, e forçou-a pelo terror a contar tudo que ouvira à vizinha. Tanta
foi sua cólera, que, sem atender às razões da esposa, que viera espavorida
dos gritos, correu ao quarto de Simão, e viu ainda Teresa à janela.

– Olé! – disse ele à pálida menina – Não tenha a confiança
de pôr olhos em pessoa de minha casa, Se quer casar, case com um sapateiro,
que é um digno genro de seu pai.

Tereza não ouviu o remate da brutal apóstrofe: tinha fugido
aturdida e envergonhada. Porém, como o desabrido ministro ficasse bramindo
no quarto, e Tadeu de Albuquerque saísse a uma janela, a cólera do doutor
redobrou, e a torrente das injúrias, longo tempo represada, bateu no rosto
do vizinho, que não ousou replicar-lhe.

Tadeu interrogou sua filha, e acreditou que foi causa à sanha
de Domingos Botelho estarem as duas meninas praticando inocentemente, por
trejeitos, em coisas de sua idade. Desculpou o velho a criancice de Teresa,
admoestando-a que não voltasse àquela janela.

Esta mansidão do fidalgo, cujo natural era bravio, tem a sua
explicação no projeto de casar em breve a filha com seu primo Baltasar Coutinho,
de Castro-d’Aire, senhor de casa, e igualmente nobre da mesma prosápia. Cuidava
o velho, presunçoso conhecedor do coração das mulheres, que a brandura seria
o mais seguro expediente para levar a filha ao esquecimento daquele pueril
amor a Simão. Era máxima sua que o amor, aos quinze anos, carece de consistência
para 50breviver a uma ausência de seis meses. Não pensava errado o fidalgo,
mas o erro existia. As exceções têm sido o ludíbrio dos mais assisados pensadores,
tanto no especulativo como no experimental. Não era muito que Tadeu de Albuquerque
fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher, cujas variantes são
tantas e tão caprichosas, que eu não sei se alguma máxima pode ser-nos guia,
a não ser esta: “Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando
alternadamente como se hão de desmentir umas às outras”. Isto é o mais
seguro; mas não é infalível. Aí está Teresa que parece ser única em si. Dir-se-á
que as três da conta, que diz a sentença, não podem coexistir com a quarta
aos quinze anos? Também o penso assim, posto que a fixidez, a constância daquele
amor, funda em causa independente do coração: é porque Teresa não vai à sociedade,
não tem um altar em cada noite na sala, não provou o incenso doutros galãs,
nem teve ainda uma hora de comparar a imagem amada, desluzida pela ausência,
com a imagem amante, amor nos olhos que a fitam, e amor nas palavras que a
convencem de que há um coração para cada homem, e uma só mocidade para cada
mulher. Quem me diz a mim que Teresa teria em si as quatro mulheres da máxima,
se o vapor de quatro incensórios lhe estonteasse o espírito? Não é fácil,
nem preciso decidir. E vamos ao conto.

Acerca de Simão Botelho, nunca diante de sua filha Tadeu de
Albuquerque proferiu palavra, nem antes nem depois do disparate do corregedor.
O que ele fez logo foi chamar a Viseu o sobrinho de Castro-d’Aire, e preveni-lo
do seu desígnio, para que ele, em face de Teresa, procedesse como convinha
a um enamorado de feição, e mutuamente se apaixonassem e prometessem auspicioso
futuro ao casamento.

Por parte de Baltasar Coutinho a paixão inflamou-se tão depressa,
quanto o coração de Teresa se congelou de terror e repugnância. O morgado
de Castro-d’Aire, atribuindo a frieza de sua prima a modéstia, inocência e
acanhamento, lisonjeou-se do virginal melindre daquela alma, e saboreou de
antemão o prazer de uma lenta, mas segura conquista. Verdade é que Baltazar
nunca se explicara de modo que Teresa lhe desse resposta decisiva. Um dia,
porém, instigado por seu tio, afoitou-se o ditoso noivo a falar assim à melancólica
menina:

– É tempo de lhe abrir o meu coração, prima. Está bem disposta
a ouvir-me?

– Eu estou sempre bem disposta a ouvi-lo, primo Baltasar.

O desdém aborrecido desta resposta abalou algum tanto as convicções
do fidalgo, respeito à inocência, modéstia e acanhamento de sua prima. Ainda
assim, quis ele no momento persuadir-se que a boa vontade não poderia exprimir-se
doutro modo, e continuou:

– Os nossos corações penso eu que estão unidos; agora é preciso
que as nossas casas se unam.

Teresa empalideceu, e baixou os olhos.

– Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradável?! – prosseguiu
Baltasar, rebatido pela desfiguração de Teresa.

– Disse-me o que é impossível fazer-se – respondeu ela sem
turvação – O primo engana-se: os nossos corações não estão unidos. Sou muito
sua amiga, mas nunca pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que o primo
pensasse em tal.

– Quer dizer que me aborrece, prima Teresa? – atalhou, corrido,
o morgado.

– Não, senhor: já lhe disse que o estimava muito, e por isso
mesmo não devo ser esposa dum amigo a quem não posso amar. A infelicidade
não seria só minha…

– Muito bem… Posso eu saber – tornou com refalsado sorriso
o primo – quem é que me disputa o coração de minha prima?

– Que lucra em o saber?

– Lucro saber, pelo menos, que a minha prima ama outro homem…
E exato?

– É.

– E com tamanha paixão que desobedece a seu pai?

– Não desobedeço: o coração é mais forte que a submissa vontade
duma filha. Desobedeceria, se casasse contra a vontade de meu pai; mas eu
não disse ao primo Baltasar que casava; disse-lhe unicamente que amava.

– Sabe a prima que eu estou espantado do seu modo de falar!…
Quem pensaria que os seus dezesseis anos estavam tão abundantes de palavras!…

– Não são só palavras, primo – retorquiu Teresa com gravidade
– são sentimentos que merecem a sua estima, por serem verdadeiros. Se eu lhe
mentisse, ficaria mais bem vista de meu primo?

– Não, prima Teresa; fez bem em dizer a verdade, e de a dizer
em tudo. Ora olhe: não duvida declarar quem é o ditoso mortal da sua preferência?

– Que lhe faz saber isso?

– Muito, prima: todos temos a nossa vaidade, e eu folgaria
muito de me ver vencido por quem tivesse merecimentos que eu não tenho aos
seus olhos. Tem a bondade de me dizer o seu segredo, como o diria a seu primo
Baltasar, se o tivesse em conta de seu amigo intimo?

– Nessa conta é que eu o não posso já ter… – respondeu Teresa,
sorrindo, e pausando, como ele, as sílabas das palavras.

– Pois nem para amigo me quer?!

– O primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e será
de hoje em diante meu inimigo.

– Pelo contrário… – tornou ele com mal rebuçada ironia –
muito pelo contrário… Eu lhe provarei que sou seu amigo, se alguma vez a
vir casada com algum miserável indigno de si.

– Casada!… – interrompeu ela. Mas Baltasar cortou-lhe logo
a réplica deste modo:

– Casada com algum famoso ébrio ou jogador de pau, valentão
de aguadeiros, distinto cavalheiro, que passa os anos letivos encarcerados
nas cadeias de Coimbra…

Claro está que Baltasar Coutinho conhecia o segredo de Teresa.
Seu tio, naturalmente, lhe comunicara a criancice da prima, talvez antes de
destinar-lhe a esposa.

Ouvira Teresa o tom sarcástico daquelas palavras, e erguera-se
respondendo com altivez:

– Não tem mais que me diga, primo Baltasar?

– Tenho, prima; queira sentar-se algum tempo mais. Não cuide
agora que está falando com o namorado infeliz: convença-se de que fala com
o seu mais próximo parente, mais sincero amigo, e mais decidido guarda da
sua dignidade e fortuna. Eu sabia que minha prima, contra a expressa vontade
de seu pai, uma ou outra vez conversava da janela com o filho do corregedor.
Não dei valor ao sucesso, e tomei-o como brincadeira própria da sua idade.
Como eu freqüentasse o meu último ano em Coimbra, há dois anos, conheci de
sobra Simão Botelho. Quando voltei, e me contaram a sua afeição ao acadêmico,
pasmei da boa fé da priminha; depois entendi que a sua mesma inocência devia
ser o seu anjo da guarda. Agora, como seu amigo, compunjo-me de a ver ainda
fascinada pela perversidade do seu vizinho Não se recorda de ter visto Simão
Botelho suciando com a ínfima vilanagem desta terra?! Não viu os seus criados
com as cabeças quebradas pelo tal varredor de feiras? Não lhe constou que
ele, em Coimbra, abarrotado de vinho, andava pelas ruas armado como um salteador
de estradas, proclamando à canalha a guerra aos nobres e aos reis, e à religião
de nossos país? A prima ignoraria isto porventura?

– Ignorava parte disso e não me aflige a sabê-lo. Desde que
conheci Simão, não me consta que ele tenha dado o menor desgosto à sua família,
nem ouço falar mal dele.

– E está por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor
a reforma de costume?

– Não sei, nem penso nisso – replicou com enfado Tereza.

– Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas últimas palavras:
eu hei de, enquanto viver, trabalhar por salvá-la das garras de Simão Botelho.
Se seu pai lhe faltar, fico eu. Se as leis a não defenderem dos ataques do
seu demônio, eu farei ver ao valentão que a vitória sobre os aguadeiros não
o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio
Tadeu de Albuquerque.

– Então o primo quer me governar!? – atalhou ela com desabrida
irritação.

– Quero-a dirigir enquanto a sua razão precisar de auxílio.
Tenha juízo e eu serei indiferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima
Teresa.

Baltasar Coutinho foi dali procurar seu tio, e contou-lhe
o essencial do diálogo. Tadeu, atônito da coragem da filha e ferido no coração
e direitos paternais, correu ao quarto dela, disposto a espancá-la. Reteve-o
Baltasar, reflexionando-lhe que a violência prejudicaria muito a crise, sendo
coisa de esperar que Teresa fugisse de casa. Refreou o pai a sua ira, e meditou.
Horas depois, chamou sua filha, mandou-a sentar ao pé de si, em termos serenos
e gesto bem composto, lhe disse que era sua vontade casá-la com o primo; porém,
que ele já sabia que a vontade de sua filha não era essa. Ajuntou que a não
violentaria; mas também não consentiria que ela, sovando aos pés o pundonor
de seu pai, se desse de coração ao filho do seu maior inimigo. Disse mais
que estava a resvaIar na sepultura, e mais depressa desceria a ela, perdendo
o amor da filha, que ele já considerava morta. Terminou perguntando a Teresa
se ela duvidava entrar num convento, e a esperar que seu pai morresse, para
depois ser desgraçada à sua vontade.

Teresa respondeu, chorando, que entraria num convento, se
essa era a vontade de seu pai; porém, que se não privasse ele de a ter em
sua companhia nem a privasse a ela dos seus afetos, por medo de que sua filha
praticasse alguma ação indigna, ou lhe desobedecesse no que era virtude obedecer.

Prometeu-lhe julgar-se morta para todos os homens, menos para
seu pai.

Tadeu ouviu-a, e não lhe replicou.

CAPÍTULO IV

O coração de Teresa estava mentindo. Vão pedir sinceridade
ao coração!

Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu
a filha de Tadeu de Albuquerque. E mulher varonil, tem força de caráter, orgulho
fortalecido pelo amor, desapego das vulgares apreensões, se são apreensões
a renúncia que uma filha fez do seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas
vontades de seu pai. Diz boa gente que não, e eu abundo sempre no voto da
gente boa. Não será aleive atribuir-lhe uma pouca de astúcia ou hipocrisia,
se quiserem; perspicácia seria mais correto dizer. Teresa adivinha que a lealdade
tropeça a cada passo na estrada real da vida, e que os melhores fins se atingem
por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são raros
na idade inexperta de Teresa; mas a mulher do romance quase nunca é trivial,
e esta de que rezam os meus apontamentos era distintíssima. A mim me basta
crer em sua distinção, a celebridade que ela veio a ganhar à conta da desgraça.

Da carta que ela escreveu a Simão Botelho, contando as cenas
descritas, a crítica deduz que a menina de Viseu contemporizava com o pai,
pondo a mira no futuro, sem passar pelo dissabor do convento, nem romper com
o velho em manifesta desobediência. Na narrativa que fez ao acadêmico omitiu
ela as ameaças do primo Baltasar, cláusula que. a ser transmitida, arrebataria
de Coimbra o moço, em quem sobejavam brios e bravura para mantê-los.

Mas não é esta ainda a carta que surpreendeu Simão Botelho.

Parecia bonançoso o céu de Teresa. Seu pai não falava em claustro
nem em casamento. Baltasar Coutinho voltara ao seu solar de Castro-d’Aire.
A tranqüila menina dava semanalmente estas boas novas a Simão, que, aliando
às venturas do coração as riquezas do espírito, estudava incessantemente,
e desvelava as noites arquitetando o seu edifício de futura glória.

Ao romper d’alva dum domingo de junho de 1803, foi Teresa
chamada para ir com seu pai à primeira missa da igreja paroquial. Vestiu-se
a menina, assustada, e encontrou o velho na antecâmara a recebê-la com muito
agrado, perguntando-lhe se ela se erguia de bons humores para dar ao autor
de seus dias um resto de velhice feliz. O silêncio de Teresa era interrogador.

– Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha
filha. É preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que
deres este passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam
ser impostas pela violência. Mas repara, minha querida filha, que a violência
dum pai é sempre amor. Amor tem sido a minha condescendência e brandura para
contigo. Outro teria subjugado a tua desobediência com maus tratos, com os
rigores do convento, e talvez com o desfalque do teu grande patrimônio. Eu,
não. Esperei que o tempo te aclarasse o juízo, e felicito-me de te julgar
desassombrada do diabólico prestígio do maldito que acordou o teu inocente
coração. Não te consultei outra vez sobre este casamento, por temer que a
reflexão fizesse mal ao zelo de boa filha com que tu vais abraçar teu pai,
e agradecer-lhe a prudência com que ele respeitou o teu gênio, velando sempre
a honra de te encontrar digna do seu amor.

Teresa não desfitou os olhos do pai; mas tão abstraída estava,
que escassamente lhe ouviu as primeiras palavras, e nada das últimas.

– Não me respondes, Teresa?! – tornou Tadeu, tomando-lhe cariciosamente
as mãos.

– Que hei de eu responder-lhe, meu pai? – balbuciou ela.

– Dá-me o que te peço? Enches de contentamento os poucos dias
que me restam?

– E será o pai feliz com o meu sacrifício?

– Não digas sacrifício, Teresa… Amanhã a estas horas verás
que transfiguração se fez na tua alma. Teu primo é um composto de todas as
virtudes; nem a qualidade de ser um gentil moço lhe falta, como se a riqueza,
a ciência e as virtudes não bastassem a formar um marido excelente.

– E ele quer-me. depois de eu me ter negado? – disse ela com
amargura irônica.

– Se ele está apaixonado, filha!… e tem bastante confiança
em si para crer que tu hás de amá-lo muito!…

– E não será mais certo odiá-lo eu sempre?! Eu agora mesmo
o abomino como nunca pensei que se pudesse abominar! Meu pai… – continuou
ela, chorando, com as mãos erguidas – mate-me; mas não me force a casar com
meu primo! É escusada a violência, porque eu não caso!

Tadeu mudou de aspecto, e disse irado:

– Hás de casar! – Quero que cases! Quero!… Quando não, amaldiçoada
serás para sempre, Teresa! Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo!
Nenhum infame há de aqui pôr pé nas alcatifas de meus avós. Se és uma alma
vil, não me pertences, não és minha filha, não podes herdar apelidos honrosos,
que foram pela primeira vez insultados pelo pai desse miserável que tu amas!
Maldita sejas! Entra nesse quarto, e espera que daí te arranquem para outro,
onde não verás um raio de Sol.

Teresa ergueu-se sem lágrimas, e entrou serenamente no seu
quarto. Tadeu de Albuquerque foi encontrar seu sobrinho, e disse-lhe:

– Não te posso dar minha filha, porque já não tenho filha.
A miserável, a quem dei este nome, perdeu-se para nós e para ela.

Baltasar, que, a juízo de seu tio, era um composto de excelência,
tinha apenas um quebra; a absoluta carência de brios. Malograda a tentativa
do seu amor de emboscada, tornou para a terra o primo de Teresa, dizendo ao
velho que ele o livraria do assédio em que Simão Botelho lhe tinha o coração
da filha. Não aprovou a reclusão no convento, discorrendo sobre as hipóteses
infamantes que a opinião pública inventaria. Aconselhou que a deixasse estar
em casa, e esperasse que o filho do corregedor viesse de Coimbra.

Ponderaram no ânimo do velho as razões de Baltasar. Teresa
maravilhou-se da quietação inesperada de seu pai e desconfiou da incoerência.
Escreveu a Simão. Nada lhe escondeu do sucedido; nem as ameças de Baltasar
por delicadeza suprimiu. Rematava comunicando-lhe as suas suspeitas de algum
plano de violência.

O acadêmico, chegando ao período das ameças. já não tinha
clara luz nos olhos para decifrar o restante da carta. Tremia sezões, e as
artérias frontais arfavam-lhe entumescidas. Não era sobressalto do coração
apaixonado: era a índole arrogante que lhe escaldava o sangue. Ir dali a Castro-d’Aire
e apunhalar o primo de Teresa na sua própria casa, foi o primeiro conselho
que lhe segredou a fúria do ódio. Neste propósito saiu, alugou cavalo, e recolheu
a vestir-se de jornada. Já preparado, a cada minuto de espera assomava-se
em frenesis. O cavalo demorou-se meia hora, e o seu bom anjo, neste espaço,
vestido com as galas com que ele vestia na imaginação Teresa, deu-lhe rebates
de saudade daqueles tempos e ainda das horas daquele mesmo dia em que cismava
na felicidade que o amor lhe prometia, se ele a procurasse no caminho do trabalho,
e da honra. Contemplou os seus livros com tanto afeto, como se em cada um
estivesse uma página da história do seu coração. Nenhuma daquelas páginas
tinha ele lido, sem que a imagem de Teresa lhe aparecesse a fortalecê-lo para
vencer os tédios da continuada aplicação, e os ímpetos dum natural inquieto
e ansioso de comoções desusadas. “E há de tudo acabar assim? – pensava
ele, com a face entre as mãos, encostado à sua banca de estudo. – Ainda há
pouco eu era tão feliz!… – Feliz! – repetiu ele, erguendo-se de golpe. –
Quem pode ser feliz com a desonra duma ameaça impune7 Mas eu perco-a!
Nunca mais hei de vê-la!. . . Fugirei como um assassino, e meu pai será o
meu primeiro inimigo, e ela mesmo há de horrorizar-se da minha vingança…
A ameaça só ela a ouviu; e, se eu tivesse sido aviltado no conceito de Teresa
pelos insultos do miserável, talvez que ela os não repetisse.

Simão Botelho releu a carta duas vezes, e à terceira leitura
achou menos afrontosas as bravatas do fidalgo cioso. A5 linhas
finais desmentiam formalmente a suspeita do aviltamento, com que o seu orgulho
o atormentava: eram expressões ternas, súplicas ao seu amor como recompensa
dos passados e futuros desgostos, visões encantadoras do futuro, novos juramentos
de constância, e sentidas frases de saudade.

Quando o arreeiro bateu à porta, Simão Botelho já não pensava
em matar o homem de Castro-d’Aire; mas resolvera ir a Viseu, entrar de noite,
esconder-se e ver Teresa. Faltava-lhe, porém, casa de confiança onde se ocultasse.
Nas estalagens, seria logo descoberto. Perguntou ao arreeiro se conhecia alguma
casa em Viseu onde ele pudesse estar escondido uma noite ou duas, sem receio
de ser denunciado. O arreeiro respondeu que tinha, a um quarto de légua de
Viseu, um primo ferrador; e não conhecia em Viseu senão os estalajadeiros.
Simão achou aproveitável o parentesco do homem, e logo daí o presenteou com
uma jaqueta de peles e uma faixa de seda escarlate, à conta de maiores valores
prometidos, se ele o bem servisse numa empresa, amorosa.

No dia seguinte, chegou o acadêmico a casa do ferrador. O
arreeiro deu conta ao seu parente do que vinha tratado com o estudante.

Foi Simão Botelho cautelosamente hospedado, e o arreeiro abalou
no mesmo ponto para Viseu, com uma carta destinada a uma mendiga, que morava
no mais impraticável beco da terra. A mendiga informou-se miudamente da pessoa
que enviava a carta, e saiu, mandando esperar o caminheiro. Pouco depois.
voltou ela com a resposta, e o arreeiro partiu a galope.

Era a resposta um grito de alegria. Teresa não refletiu, respondendo
a Simão que naquela noite se festejavam os seus anos, e se reuniam em casa
os parentes. Disse-lhe que às onze horas em ponto ela iria ao quintal e lhe
abriria a porta.

Não esperava tanto o acadêmico. O que ele pedia era falar-lhe
da rua para a janela do seu quarto, e receava impossível este prazer, que
ele avaliava o máximo. Apertar-lhe a mão, sentir-lhe o hálito, abraçá-la talvez,
cometer a ousadia de um beijo, estas esperanças, tão além de suas modestas
e honestas ambições, igualmente o enlevavam e assustavam. Enlevo e susto em
corações que se estreiam na comédia humana são sentimentos congeniais.

A hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas
da timidez, sem saber que os encantos da vida, os mais angélicos momentos
da alma, são esses lances de misterioso alvoroço que aos mais seródios de
coração sucedem em todas as razões da vida, e a todos os homens, uma vez ao
menos.

As onze horas em ponto estava Simão encostado á porta do quintal,
e a distância convencionada o arreeiro com o cavalo à rédea. A toada da música,
que vinha das salas remotas, alvoroçava-o, porque a festa em casa de Tadeu
de Albuquerque o surpreendera. No longo termo de três anos nunca ele ouvira
música naquela casa. Se ele soubesse o dia natalício de Teresa, espantara-se
menos da estranha alegria daquelas salas, sempre fechadas como em dias de
mortório. Simão imaginou desvairadamente as quimeras que voejam, ora negras,
ora translúcidas, em redor da fantasia apaixonada. Não há baliza racional
para as belas, nem para as horrorosas ilusões, quando o amor as inventa. Simão
Botelho, com o ouvido colado à fechadura, ouvia apenas o som das flautas,
e as pancadas do coração sobressaltado.

CAPÍTULO V

Baltasar Coutinho estava na sala, simulando vingativa indiferença
por sua prima. As irmãs do fidalgo e a demais parentela da casa não deixavam
respirar Teresa. Moças e velhas, todas, uma, se repetiam, aconselhando-a a
reconciliar-se com seu primo, e dar a seu pai a alegria que o pobre velho
tanto rogava Deus, antes de fechar os olhos. Replicava Teresa que não queria
mal a seu primo, nem sequer estava sentida dele; que era sua amiga, e se-lo-ia
sempre enquanto ele lhe deixasse livre o coração.

O velho esperava muito daquela noitada de festa. Alguns parentes
presumidos de circunspectos, lhe tinham dito que seria proveitoso regalar
a filha com os prazeres congruentes à sua idade, dando-lhe ensejo a que ela
repartisse o espírito, concentrado num só ponto, por diversões em que a natural
vaidade se preocupa, e a força do amor contrariado se vai a pouco e pouco
quebrantando. Aconselharam-lhe as reuniões amiúdas, já em sua casa, já na
dos seus parentes, para deste modo Teresa se mostrar a muitos, ser cortejada
de todos, e ter em opinião de menos valia o único homem com quem falava, e
a quem julgava superior a todos. O fidalgo acedeu, mas com dificuldade: é
que tinha lá um sistema seu de ajuizar das mulheres, vivera trinta anos de
vida libertina e dispendiosa, e se estava agora saboreando na economia e na
quietação. Os anos de Teresa eram pela primeira vez festejados com estrondo.
A morgada viu então o que era o minueto da corte e certos jogos de prendas
com que os intervalos naqueles tempos se aligeiravam em delícias, sem fadiga
do corpo, nem desagrado da moral.

Mas, de agitada que estava, Teresa não compartia do gozo dos
seus hóspedes. Desde que soaram as dez horas daquela noite, a rainha da festa
parecia tão alienada das finezas com que as senhoras e homens à competência
a lisonjeavam, que Baltasar Coutinho deu tento do desassossego de sua prima,
e teve a modéstia de imaginar que ela se ofendera da indiferença dele, Generoso
até ao perdão, o morgado de Castro-d’Aire, compondo o rosto com gesto grave
e melanc6lico, dirigiu-se a Teresa, e pediu-lhe desculpa da frieza que ele
disse ser como a das montanhas, que têm vulcões por dentro e neve por fora.
Teresa teve a sinceridade de responder que não tinha reparado na frieza de
seu primo, e chamou para junto dela uma menina, para evitar que a montanha
se fendesse em vulcões. Pouco depois ergueu-se e saiu da sala.

Eram dez horas e três quartos. Teresa correra ao fundo do
quintal, abrira a porta, e, como não visse alguém, tornou de corrida para
a sala. No momento, porém, de subir a escada que ligava o jardim à casa, Baltasar
Coutinho, que a espiava desde que ela saiu da sala, chegou a uma das janelas
sobre o jardim, bem longe de imaginar que a via. Retirou-se, e entrou com
Teresa na sala, ao mesmo tempo, por diversa porta. Decorridos alguns minutos,
a menina saiu outra vez e o primo também. Teresa ouviu, a distância, o estrépito
dum cavalo, quando passou ao patamar da escada. Baltasar também o ouviu, e
notou que sua prima, receosa de ser vista e conhecida pela alvura do vestido,
levava uma capa ou chale que a envolvia toda. O de Castro-d’Aire fez pé atrás
para não ser visto. Teresa, porém, num relance de olhar temeroso, ainda vira
um vulto retirar-se. Teve medo, e retrocedeu a largar a capa, e entrou na
sala, ofegante de cansaço e pálida de medo.

– Que tens, minha filha? – disse-lhe o pai – Já duas vezes
saíste da sala, e vens tão alvoraçada! Tens algum incômodo, Teresa?

– Tenho uma dor: preciso de ir respirar de vez em quando…
Nada é, meu pai.

Tadeu acreditou, e disse a toda a gente que a sua filha tinha
uma dor; só o não disse a seu sobrinho, porque o não encontrou, e soube que
ele tinha saído.

Também Teresa dera pela ausência do primo, e fingiu que o
ia procurar, resolução de que o velho gostou muito. Desceu ela ao jardim,
correu à porta onde a esperava Simão, abriu-a, e, com a voz cortada pela ansiedade,
apenas disse:

– Vai-te embora; vem amanhã às mesmas horas… Vai, vai!

Simão, quando isto ouvia, os olhos fitos num vulto que se
aproximava dele, rente com o muro do quintal. O arreeiro, que primeiro o vira,
dera um sinal, e entalara as rédeas do cavalo entre umas pedras, para ficar
desembaraçado, se o estudante se não pudesse haver com o inimigo.

Simão Botelho não se moveu do local, e Baltasar Coutinho parou
na distância de seis passos. O arreeiro tinha lentamente avançado a meio caminho
do patrão, quando este lhe disse que não se aproximasse. E, caminhando para
o vulto, aperrou duas pistolas, e disse-lhe:

– Isto aqui não é caminho. Que quer?

O fidalgo não respondeu.

– Parece-me que lhe abro a boca com uma bala – tornou Simão.

– Que lhe importa o senhor quem está?! – disse Baltasar –
Se eu tiver um segredo, como o senhor parece que tem o seu nestes sítios,
sou obrigado a confessar-lho!?

Simão refletiu, e replicou.

– Este muro pertence a uma casa onde mora uma só família,
e uma só mulher.

– Estão nessa casa mais de quarenta mulheres esta noite –
redargüiu o primo de Teresa. – Se o cavalheiro espera uma, eu posso esperar
outra.

– Quem é o senhor? – tornou com arrogância o filho do corregedor.

– Não conheço a pessoa que me interroga, nem quero conhecer.
Fiquemos cada um com o nosso incógnito. Boas noites.

Baltasar Coutinho retrocedeu, dizendo entre si:

– “Que partido tem uma espada contra dois homens e duas
pistolas?”

Simão Botelho cavalgou, e partiu para casa do hospitaleiro
ferrador.

O sobrinho de Tadeu de Albuquerque entrou na sala sem denunciar
levemente alteração de ânimo. Viu que Teresa o observava de revés, e soube
dissimular-se de modo que a sossegou. A pobre menina, ansiosa por se ver sozinha,
viu com prazer erguer-se para sair a primeira família, que deu rebate às outras,
menos ao de Castro-d’Aire e suas irmãs, que ficaram hospedados em casa de
seu tio, com tenção de se demorarem oito dias em Viseu.

Velou Teresa o restante da noite, escrevendo a Simão a longa
história dos seus terrores, e pedindo-lhe perdão de o ela não ter advertido
do baile, por ficar doida de alegria com a sua vinda. No tocante ao plano
de se encontrarem na seguinte noite não havia alteração na carta. Isto espantou
o acadêmico. A seu ver, o vulto era Baltasar Coutinho, e o pai de Teresa devia
ser avisado naquela mesma noite.

Respondeu ele contando a história do incidente com o encapotado;
receando, porém, assustar Teresa e privar-se da entrevista, escreveu nova
carta em que não transluzia medo de ser atacado, nem sequer receio de marear-lhe
a fama. Quis parecer a Simão Botelho que este era o digno porte de um amante
corajoso.

Passou o estudante aquele dia contando as longas horas, e
meditando instantes nos funestos resultados que podia ter a sua temerária
ida, se Baltasar Coutinho era aquele homem que reservara para melhor relance
a vingança da provocação insolente. Mas de si para si tinha ele que pensar
em que tal era mais cobardia que prudência.

O ferrador tinha uma filha, moça de vinte e quatro anos, formas
bonitas, um rosto belo e triste. Notou Simão os reparos em que ela se demorava
a contemplá-lo, e perguntou-lhe a causa daquele olhar melancólico com que
ela o fitava. Mariana corou, abriu um sorriso triste, e respondeu:

– Não sei o que me adivinha o coração a respeito de vossa
senhoria. Alguma desgraça está para lhe suceder…

– A menina não dizia isso – replicou Simão – sem saber alguma
coisa da minha vida.

– Alguma coisa sei… – tornou ela.

– Ouviu contar ao arreeiro?

– Não, senhor. E que meu pai conhece o paizinho de vossa senhoria,
e também conhece o senhor. E há bocadinho que eu ouvi estar meu pai a dizer
a meu tio, que é o arreeiro que veio com vossa senhoria, que tinha suas razões
para saber que alguma desgraça lhe estava para acontecer…

– Por quê?

– Por amor duma fidalga de Viseu, que tem um primo em Castro-d’Aire.

Simão espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher
pormenores do que ele julgava mistério entre duas famílias, quando o mestre
ferrador João da Cruz entrou no sobrado, onde o precedente diálogo se passara.
A moça, como ouvisse os passos do pai, saíra lentamente por outra porta.

– Com sua licença – disse mestre João.

Dizendo, fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre
uma arca.

– Ora, meu fidalgo – continuou ele, descendo as mangas arregaçadas
da camisa, e apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe
as etiquetas das mangas – há de desculpar que eu viesse assim em mangas de
camisa; mas não dei com a jaqueta…

– Está muito bem, senhor João – atalhou o acadêmico.

– Pois, senhor, eu devo um favor a seu pai, e um favor daquela
casta. Uma vez armou-se aqui à minha porta uma desordem, a troco de um couce
que um macho dum almocreve deu numa égua, que estava ferrando, e, em tão boa
hora foi, que lhe partiu rente o jarrete por aqui, salvo tal lugar.

João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fraturada
a da égua, e continuou:

– Eu tinha ali à mão o martelo, e não me tive que não pregasse
com ele na cabeça do macho, que foi logo pra terra. O recoveiro de Carção,
que era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre uma carga,
e desfechou comigo, sem mais tirte nem garte. “Ó alma danada! – disse-lhe
eu – pois tu vês que o teu macho me aleijou esta égua, que custou vinte peças
a seu dono, e que eu tenho de pagar, e dás-me um tiro por eu te atordoar o
macho!?”

– E o tiro acertou-lhe? – atalhou Simão.

– Acertou; mas saberá vossa senhoria que me não matou; deu-me
aqui por este braço esquerdo com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou
à cabeceira da cama, e trago uma clavina, e desfecho-lha na tábua do peito.
O almocreve caiu como um tordo, e não tugiu nem mugiu. Prenderam-me, e fui
para Viseu e já lá estava há três anos, no ano que o paízinho de vossa senhoria
veio corregedor. Andava muita gente a trabalhar contra mim, e todos me diziam
que eu ia pernear na forca. Estava lá na enxovia comigo um preso a cumprir
sentença, e disse-me ele que o senhor corregedor tinha muita devoção com as
sete dores de Nossa Senhora. Uma vez que ele ia passando com a família para
a missa, disse-lhe eu: – “Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas
sete dores de Maria Santíssima, que me mande ir à sua presença para eu explicar
a minha culpa a vossa senhoria”. O paizinho de vossa senhoria chamou
o meirinho-geral, e mandou tomar o meu nome. Ao outro dia fui chamado ao senhor
corregedor, e contei-lhe tudo, mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço.
Seu pai ouviu-me, e disse-me: – “Vai-te embora, que eu farei o que puder”.
O caso é, meu fidalgo, que eu saí absolvido, quando muita gente dizia que
eu havia de ser enforcado à minha porta. Faz favor de me dizer se eu não devo
andar com a cara onde o seu paizinho põe os pés?!

– Tem o senhor João motivo para lhe ser grato, não há dúvida
nenhuma.

– Agora faz favor de ouvir o mais. Eu, antes de ser ferrador,
fui criado de farda em casa do fidalgo de Castrod’Aire, que é o senhor Baltasar.
Conhece-o vossa senhoria? Ora, se conhece…

– Conheço de nome.

– Foi ele que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer;
mas paguei-lhas, Deus louvado. Há de haver seis meses que ele me mandou chamar
a Viseu, e me disse que tinha trinta peças para me dar, se eu lhe fizesse
um serviço. – “O que vossa senhoria quiser, fidalgo”. E vai ele
disse-me que queria que eu tirasse a vida a um homem. Isto buliu cá por dentro
comigo, porque. a falar a verdade, um homem que mata outro num aperto não
é matador de oficio, acho eu, não é assim?

– De certo… – respondeu Simão, adivinhando o remate da história.
– Quem era o homem que ele queria morto?

– Era vossa senhoria… O homem! – disse o ferrador com espanto
– O senhor nem sequer mudou de cor!

– Eu não mudo nunca de cor, senhor João – disse o acadêmico.

– Estou pasmado!

– E vossemecê não aceitou a incumbência, pelo que vejo – tornou
Simão.

– Não, senhor; e, então, logo que ele me disse quem era, a
minha vontade era pregar-lhe com a cabeça numa esquina.

– E ele disse-lhe a razão por que me mandava matar?

– Não, meu fidalgo; eu lhe conto: Na semana adiante, quando
soube que o senhor Baltasar (raios o partam!> tinha saído de Viseu, fui
falar com o senhor corregedor, e contei-lhe tudo como se passara. O senhor
corregedor esteve a cismar um pouquinho, e disse-me, e vossa senhoria há de
perdoar por eu lhe dizer o que seu pai me disse, tal e qual.

– Diga.

– Seu pai começou a esfregar o nariz, e disse-me: -“Eu
sei o que é isso. Se aquele brejeiro de meu filho Simão tivesse honra, não
olharia para a prima desse assassino. Cuida o patife que eu consentia que
meu filho se ligasse a uma filha de Tadeu de Albuquerque Ainda disse mais
coisas que me não lembram; mas eu fiquei sabendo tudo. Ora aqui tem o que
houve. Agora apareceu-me aqui vossa senhoria, e a noite passada foi a Viseu.
Perdoará a minha confiança: mas vossa senhoria foi falar com a tal menina;
e eu estive vai não vai a segui-lo; mas, como ia meu cunhado, que é homem
para três, fiquei descansado. Ele contou-me um encontro que vossa senhoria
teve à porta do quintal da menina. Se lá torna, senhor Simão, vá preparado
para alguma coisa de maior. Eu bem sei que vossa senhoria não é medroso; mas
duma traição ninguém se livra. Se quer que eu vá também, estou às suas ordens;
e a clavina que deu polícia ao almocreve ainda ali está, e dá fogo debaixo
de água, como diz o outro. Mas, se vossa senhoria dá licença que eu lhe diga
a minha opinião, o melhor é não andar nessas encamisadas. Se quer casar com
ela, vá pedir a seu pai licença, e deixe o resto cá por minha conta; ponto
é que ela queria. que eu, num abrir e fechar de olhos, atiro com ela para
cima duma égua de chupeta. que ali tenho, e o pai e mais o primo ficam a ver
navios.

– Obrigado, meu amigo – disse Simão – aproveitarei os seus
bons serviços quando me forem necessários. Esta noite hei de ir, como fui
a noite passada, a Viseu. Se houver novidade, então veremos o que se há de
fazer. Conto com vossemecê, e creia que tem em mim um amigo.

Mestre João da Cruz não replicou. Dali foi examinar mudamente
a fecharia da clavina, e entender-se com o cunhado sobre cautelas necessárias,
enquanto descarregava a arma, e a carregava de novo com uns zagalotes especiais,
que ele denominava “amêndoas de pimpões”.

Neste intervalo, Mariana, a filha do ferrador, entrou no sobrado,
e disse com meiguice a Simão Botelho:

– Então sempre é certo ir?

– Vou; para que não hei de ir?!

– Pois Nossa Senhora vá na sua companhia – tornou ela, saindo
logo para esconder as lágrimas.

CAPÍTULO VI

As dez horas e meia da noite daquele dia, três vultos convergiram
para o local, raro freqüentado, em que se abria a porta do quintal de Tadeu
de Albuquerque. Ali se detiveram alguns minutos discutindo e gesticulando.
Dos três vultos havia um, cujas palavras eram ouvidas em silêncio e sem réplica
pelos outros. Dizia ele a um dos dois:

– Não convém que estejas perto desta porta. Se o homem aparecesse
aqui morto, as suspeitas caiam logo sobre mim ou meu tio. Afastem-se vocês
um do outro, tenham o ouvido aplicado ao tropel do cavalo. Depois apressem
o passo até o encontrarem, de modo que os tiros sejam dados longe daqui.

– Mas… – atalhou um – quem nos diz que ele veio ontem a
cavalo, e hoje vem a pé?

– E verdade! – acrescentou o outro.

– Se ele vier a pé, eu lhes darei aviso para o seguirem depois
até o terem a jeito de tiro, mas longe daqui, percebem vocês? – disse Baltasar
Coutinho.

– Sim, senhor: mas se ele sal. de casa do pai, e entra sem
nos dar tempo?

– Tenho a certeza de que não está em casa do pai, já Iho disse.
Basta de palavreado. Vão esconder-se atrás da Igreja, e não adormeçam.

Debandou o grupo, e Baltasar ficou alguns momentos encostado
ao muro. Soaram os três quarto depois da dez. O de Castro-d’Aire colocou o
ouvido à porta, e retirou-se aceleradamente, ouvindo o rumor da folhagem seca
que Teresa vinha pisando.

Apenas Baltasar, cosido com o muro, desaparecera, um vulto
assomou do outro lado a passo rápido. Não parou: foi direito a todos os pontos
onde uma sombra podia figurar um homem. Rodeou a igreja, que estava a duzentos
passos de distância. Viu os dois vultos direitos com o recanto que formava
a junção da capela-mor, e sobre o qual caíram as sombras da torre. Fitou-os
de passagem, e suspeitou; não os conheceu, mas eles disseram entre si, depois
que ele desaparecera:

– E o João da Cruz, ferrador, ou o diabo por ele!…

– Que fará a estas horas por aqui?!

– Eu sei!

– Não desconfias que ele entre nisto?

– Agora! se entrasse, era por nós. Não sabes que ele foi mochila
do nosso amo?

– Pois então que medo tens?

– Não há medo; mas também sei que foi o corregedor que o livrou
da forca…

– Isso que tem! O corregedor não se importa com isso, nem
sabe que o filho cá está…

– Assim será; mas não estou muito contente… Ele é homem
dos diabos…

– Deixá-lo ser… Tanto entram as balas nele como noutro…

A discussão continuou sobre várias conjeturas. De tudo o que
eles disseram uma coisa era certíssima: ser o vulto o João da Cruz, ferrador.

Teria este dado trezentos passos, quando os criados de Baltasar
ouviram o remoto tropel da cavalgadura.

Ao tempo que eles saíam do seu esconderijo, saía João da Cruz
à frente do cavaleiro. Simão aperrou as pistolas, e o arreeiro uma clavina.

– Não há novidade – disse o ferrador -; mas saiba vossa senhoria
que já podia estar em baixo do cavalo com quatro zagalotes no peito.

O arreeiro reconheceu o cunhado, e disse:

– És tu, João?

– Sou eu. Vim primeiro que tu.

Simão estendeu a mão ao ferrador, e disse, comovido.

– Dê cá a sua mão; quero sentir na minha a mão dum homem honrado.

– Nas ocasiões é que se conhecem os homens – redargüiu o ferrador.
– Ora vamos… não há tempo para falatórios. O senhor doutor tem uma espera.

– Tenho – disse Simão.

– Atrás da igreja estão dois homens que eu não pude conhecer;
mas não se me dava de jurar que são criados do Sr. Baltasar. Salte abaixo
do cavalo, que há de haver mostarda. Eu disse-lhe que não viesse; mas vossa
senhoria veio, e agora é andar com a cara para frente.

– Olhe que eu não tremo, mestre João! – disse o filho do corregedor.

– Bem sei que não; mas, à vista do inimigo, veremos.

Simão tinha apeado. O ferrador tomou as rédeas do cavalo,
recuou alguns passos na rua, e foi prendê-lo à argola da parede duma estalagem.

Voltou, e disse a Simão que o seguisse a ele e ao cunhado
na distância de vinte passos; e que, se os visse parar perto do quintal de
Albuquerque, não passasse do ponto donde os visse.

Quis o acadêmico protestar contra um plano que o humilhava
como protegido pela defesa dos dois homens; o ferrador, porém, não admitiu
a réplica

– Faça o que eu lhe digo, fidal9o – disse ele com energia.

João da Cruz e o cunhado, espiando todas as esquinas, chegaram
defronte do quintal de Teresa, e viram, um vulto a sumir-se no ângulo da parede.

– Vamos sobre eles – disse o ferrador – que lá passaram para
o adro da igreja; nestes entrementes, o doutor chegará à porta do quintal
e entra; depois voltaremos para lhe guardar a saída.

Neste propósito, moveram-se apressados, e Simão Botelho caminhou
com as pistolas aperradas na direção da porta.

Em frente do muro do jardim de Teresa haviam uma cascalheira
escarpada. que se esplainava depois numa alameda sombria.

Os dois criados de Baltasar, quando o tropel do cavalo parou,
recordaram as ordens do amo, no caso de vir a pé Simão. Buscaram sitio azado
para o espreitarem na saída, e entraram na alameda quando o acadêmico chegara
à porta do quintal.

– Agora está seguro – disse um,

– Se lá não ficar dentro… – respondeu o outro, vendo-o entrar,
e fechar-se a porta.

– Mas além vêm dois homens… – disse o mais assustado, olhando
para a outra entrada da alameda.

– E vêm direitos a nós… Aperra lá a cravina…

– O melhor é retirarmos. Nós estamos à espera do outro, e
não deste. Vamos embora daqui…

Este não esperou convencer o companheiro: desceu a ribanceira
do cascalho. O mais intrépido teve também a prudência de todos os assassinos
assalariados: seguiu o assustadiço, e deu-lhe razão, quando ouviu após de
si os passos velozes dos perseguidores. Saiu-lhes o amo de frente quando dobravam
a esquina do quintal, disse-lhes:

– Vocês a que fogem, seus poltrões?

Os homens pararam de envergonhados, aperrando os bacamartes.

João da Cruz e o arreeiro apareceram, e Baltasar caminhou
para eles, brandando:

– Alto aí!

O ferrador disse ao cunhado:

– Fala-lhe tu, que eu não quero que ele me conheça.

– Quem manda fazer alto? – disse o arreeiro.

– São três clavinas – respondeu Baltasar.

– Olha se os demoras a dar tempo que o doutor saía – disse
João da Cruz ao ouvido do arreeiro.

– Pois nós cá estamos parados – replicou o criado de Simão.
– Que nos querem vocês?

– Quero saber o que têm que fazer neste sítio.

– E vocês o que fazem por cá?

– Não admito perguntas – disse o de Castro-d’Aire, aventurando
alguns passos vacilantes para a frente. – Quero saber quem são.

Mestre João disse ao ouvido do cunhado:

– Diz-lhe que, se dá mais um passo, que o arrebentas.

O arreeiro repetiu a cláusula, e Baltasar parou.

Um dos criados deles chamou-o ao lado para lhe dizer que aquele
dos dois que não falava parecia ser o João da Cruz. O morgado duvidou, e quis
esclarecer-se; mas o ferrador ouvira as palavras do criado, e disse ao cunhado:

– Vem comigo, que eles conhecem-me.

Dizendo, voltou as costas ao grupo, e caminhou ao longo do
quintal de Tadeu de Albuquerque. Os criados de Baltasar, gloriosos da retirada,
como de uma derrota certa, apressaram o passo, na cola dos supostos fugitivos.
O morgado ainda lhes disse que os não seguissem; mas eles, momentos antes
cobardes, queriam desforrar-se agora, correndo após o inimigo tanto quanto
lhe tinham fugido antes.

Simão Botelho ouvira passos ligeiros, e, compelido pelo susto
de Teresa, abrira a porta do quintal, sem saber ainda de quem fossem os passos.
João da Cruz, com ar galhofeiro, já quando os perseguidores se viam, disse
ao filho do corregedor, se estavam ajustando o casamento, que não havia pano
para mangas.

Simão entendeu o perigo, apertou convulsamente a mão de Teresa,
e retirou-se. Queria ele reconhecer os dois vultos parados a distância, mas
João da Cruz, com o tom imperioso de quem obriga à submissão, disse ao filho
do corregedor:

– Vá por onde veio, e não olhe para trás. Simão foi indo até
encontrar o cavalo. Montou, e esperou os dois inalteráveis guardas que o seguiam
a passo vagaroso. Maravilhara-os o súbito desaparecimento dos criados de Baltasar,
e recearam-se de alguma espera fora da cidade. O ferrador conhecia o atalho
que podia levar os da emboscada ao caminho, e revelou o seu receio a Simão,
dizendo-lhe que picasse a toda a brida, que ele e o cunhado lá iriam ter.
O acadêmico recebeu com enfado a advertência, admoestando-os a que o não tivessem
em tal vil preço. E acintemente sofreu as rédeas para não forçar os homens
a aligeirar o passo.

– Vá como quiser – disse mestre João – que nós vamos por fora
do caminho.

E subiram a uma rampa de olivais, para tornarem a descer encobertos
por moitas de giesta, cosendo-se aos torcicolos duma parede paralela com a
estrada.

– O atalho vai acolá onde a serra faz aquele cotovelo – disse
o ferrador ao cunhado, – hão de ali passar, ou já passaram. A estrada vai
mesmo na quebrada daquele outeirinho. Os homens é dali que vão atirar, encobertos
pelos sobreiros. Vamos depressa…

E um pouco descobertos, e outro curvados à sombra das devesas,
chegaram a um valado donde ouviram os passos dos dois homens que atravessavam
o pontilhão de um córrego.

– Já não vamos a tempo – disse aflito o João da Cruz – os
homens vão atirar-lhe, porque o cavalo trupa cá muito atrás.

E corriam já sem temor de serem vistos, porque os outros tinham
dobrado o outeiro, em cujo vale corria a estrada.

– Os homens vão atirar-lhe… – disse o ferrador.

– Gritemos daqui ao doutor que não vá para diante.

– Já não é tempo… Ou o matem ou não matem, quando voltarem
são nossos.

Tinham já passado o pontilhão, e subiam a ladeira quando ouviram
dois tiros.

– Arriba! – esclamou João da Cruz – que não vão meter-se à
estrada, se mataram o fidalgo.

Tinham vencido o chá, esbofados e ansiados, com as davinas
aperradas. Os criados de Baltasar, ao invés da conjetura do ferrador, retrocediam
pelo mesmo atalho, supondo que os companheiros de Simão iam adiante batendo
os pontos azados à emboscada, ou se tinham retardado.

– Eles aí vêm! disse o arreeíro.

– Nós cá estamos – respondeu o ferrador, sentando-se a coberto
de um cômoro. – Senta-te também, que eu não estou para correr atrás deles.
Os assassinos, a dez passos, viram de frente erguerem-se os dois vulto, e
ladearam cada qual para seu lado, um galgando os socalcos duma vinha e outro
atirando-se a uns silveirais.

– Atira ao da esquerda – disse João da Cruz.

Foram simultâneas as explosões. A pontaria do ferrador fez
logo um cadáver. Os balotes do arreeiro não estremaram o outro entre o carrascal
onde se embrenhara.

A este tempo assomava Simão no teso donde lhe tinham atirado,
e corria ao ponto onde ouvira o segundo tiro.

– É vossa senhoria, fidalgo – bradou o ferrador.

– Sou.

– Não o mataram?

– Creio que não – respondeu Simão.

– Este desalmado deixou fugir o melro – tomou João da Cruz
– mas o meu lá está a pernear na vinha. Sempre lhe quero ver as trombas…

O ferrador desceu os três socalcos da vinha, e curvou-se sobre
o cadáver, dizendo:

– Alma de cântaro, se eu tivesse duas clavinas, não ias sozinho
para o inferno.

– Anda daí! – disse o arreeiro – deixa lá esse diabo, que
o senhor doutor está ferido num ombro. Vamos depressa, que está o sangue a
escorrer-lhe.

– Eu vi duas cabeças a espreitarem-me de cima da ribanceira,
e cuidei que eram vocês – disse Simão, enquanto o ferrador, com a destreza
de hábil cirurgião, lhe enfaixava com lenços o braço ferido. – Parei o cavalo,
e disse: “Olé! há novidade?” Logo que me não responderam, saltei
para terra; mas ainda eu tinha um pé no estribo quando me fizeram fogo. Quis
saltar à ribanceira, mas não pude romper o mato. Dei uma voltar grande para
achar subida, e foi então que dei fé de estar ferido.

– Isto é uma arranhadura – disse João da Cruz – olhe que eu
sei disto, fidalgo! Estou afeito a curar muitas feridas.

– Nos burros, mestre João? – disse o ferido, sorrindo.

– E nos cristãos também, senhor doutor. Olhe que houve em
Portugal um rei que não queria outro médico senão um alveitar. Hei de mostrar-lhe
o meu corpo, que está uma rede de facadas, e nunca fui ao cirurgião. Com ceroto
e vinagre sou capaz de ir ressuscitar aquela alma do diabo que ali está a
escutar a cavalaria.

Nisto ouviu-se um leve rumor de folhagem no matagal para onde
tinha saltado o companheiro do morto.

João da Cruz, como galo de fino olfato, fitou a orelha e resmungou:

– Querem vocês ver que eles se armam!.

Dar-se-á caso que o outro ainda esteja por ali a tremer maleitas?

O rumor continuou, e logo um bando de pássaros rompeu dentre
a folhagem, chilreando.

– O homem está ali – tornou o ferrador. – Passe-me cá uma
pistola, senhor Simão!

Correu mestre João, e ao mesmo tempo uma grande restolhada
se fez entre as moitas de codessos e urzes.

– Ele estrinça lenha como um porco do monte! – exclamou o
ferrador, – Ó cunhado, bate este mato com alguns penedos; quero ver sair o
javali da moita!..

Para o outro lado da bouça estava um plaino cultivado. Simão,
rodeando a sebe, conseguira saltar ao campo por sobre a pedra dum agüeiro.

– Tenha lá mão, mestre; não vá você atirar-me! – bradou Simão
ao ferrador.

– Pois o fidalgo já aí anda!? Então está fechado o cerco.
Eu cá vou fazer de furão. Se este nos escapa, não há nada seguro neste mundo!

Não se enganaram. O criado de Baltasar Coutínho, quando se
atirara desamparado à brenha, deslocara um joelho, e caíra atordoado. O arreeiro
não examinou o efeito do tiro, porque atirara à ventura, e achava natural
que o fugitivo se não molestasse. Quando volveu a si do aturdimento da queda,
o homem arrastou-se até encontrar um cercado de árvores silvestres, em que
pernoitava a passarinhada. Como os melros cacarejassem, esvoaçando, o criado
de Baltasar retrocedeu para o mato, cuidando que aí escaparia; mas o arreeiro
jogava enormes calhaus em todas as direções, e alguns acercavam mais que as
balas do seu bacamarte. João da Cruz tirou do bolso da jaqueta um podão, e
começou a cortar a selva de carvalhas novas e giestas que se emaranhavam em
redor do esconderijo. Já cansado, porém, e vendo o pouco fruto do trabalho,
disse ao arreeiro:

– Petisca lume, vai ali dentro buscar um pouco de restolho
seco, e vamos pegar fogo ao mato, que este ladrão há de morrer assado.

O perseguido, quando tal ouviu, tirou do maior perigo coragem
para fugir, rompendo a espessura e saltando a parede da tapada para o campo
do restolho em que o arreeiro andava apanhando palha e Simão esperava o desfecho
da montaria. Correram a um tempo o arreeiro e o acadêmico sobre ele, O fugitivo,
sentindo-se alcançado, lançou-se de joelhos e mãos erguidas, pedindo perdão,
e dizendo que o amo o obrigaria àquela desgraça. Já a coronha do bacamarte
do arreeiro lhe ia direita ao peito, quando Simão lhe reteve o braço.

– Não se bate num homem ajoelhado! – disse o moço – Levanta-te,
rapaz!

– Eu não posso, senhor. Tenho uma perna quebrada e estou aleijado
para a minha vida!

Neste comenos chegou o ferrador, e exclamou:

– Pois esse tratante ainda está vivo!?

E correu sobre ele com o podão.

– Não mate o homem, senhor João! – disse o filho do corregedor’.

– Que o não mate! Essa é de cabo de esquadra! Com que então
o fidalgo quer pagar-me com a forca o favor de o acompanhar… hein?

– Com a forca?! – atalhou Simão.

– Pudera não! Quer que este homem fique para ir contar a história?
Acha bonito? Lá vossa senhoria, como é filho de ministro, não terá perigo;
mas eu, que sou ferrador, posso contar que desta vez tenho o baraço no pescoço.
Não me faz jeito o negócio. Deixe-me cá com o homem…

– Não o mate, senhor João; peço-lhe eu que o deixe ir. Uma
testemunha não nos pode fazer mal.

– O quê! – redargüiu o ferrador – vossa senhoria é doutor,
saberá muito, mas de justiça não sabe nada. e há de perdoar o meu atrevimento.
Basta uma só testemunha para guiar a justiça na devassa. As duas por três,
uma testemunha de vista, e quatro de ouvir dizer, com o fidalgo de Castrod’ALre
a mexer os pauzinhos, é forca certa, como dois e dois serem quatro.

– Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para
Castro-d’Aire – exclamou o homem.

– Deixe-o ficar, João da Cruz… vamos embora…

– Isso! – acudiu o ferrador – Chame-me João da Cruz… para
este maroto ficar bem certo de que sou o João da Cruz… Como efeito, não
sei o que me parece vossa senhoria querer deixar com vida uma alma do diabo
que lhe deu um tiro para o matar.

– Pois sim, tem você razão; mas eu não sei castigar miseráveis
que não resistem.

– E, se ele o tivesse matado, castigava-o? Responda a isto,
senhor doutor.

– Vamos embora – tornou Simão – deixemos por aí esse miserável.

Mestre João cismou alguns momentos, coçando a cabeça, e resmungou
com descontentamento:

– Vamos lá. .. Quem o seu inimigo poupa nas mãos lhe morre.

Tinham já saído do plano e saltado o tapada, e iam descendo
para a estrada, quando o ferrador exclamou:

– Lá me ficou a minha clavina escostada à sebe… Vão indo
que eu venho já.

O arreeiro conduzia o cavalo, que pacificamente estivera tosando
a relva das paredes marginais da estrada, quando Simão ouviu gritos. Conjeturou
com certeza o que era.

– O João lá está a fazer justiça! – disse o arreeiro – Deixá-lo
lá, meu amo, que ele é homem que sabe o que faz.

João da Cruz apareceu daí a pouco, limpando com fentos o podão
ensangüentado.

– Você é cruel, sr. João – disse o acadêmico.

– Não sou cruel – disse o ferrador – o fidalgo está enganado
comigo; é que, diz lá o ditado, morrer por morrer, morra meu pai, que é mais
velho. Tanto faz matar um como dois. Quando se está com a mão na massa, tanto
faz amassar um alqueire como três. As obras devem ser acabadas, ou então o
melhor é não se meter a gente nelas. Agora levo a minha consciência sossegada.
A justiça que prove, se quiser; mas não há de ser porque lho digam aqueles
dois que eu mandei de presente ao diabo.

Simão teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento
de se ter ligado com tal homem.

CAPÍTULO VII

O ferimento de Simão Botelho era melindroso demais para obedecer
prontamente ao curativo do ferrador, enfronhado em aforismos de alveitaria.
A bala passara-lhe de revés a porção muscular do braço esquerdo; mas algum
vaso importante rompera, que não bastavam compressas a vedar-lhe o sangue.
Horas depois de ferido, o acadêmico deitou-se febril, deixando-se medicar
pelo ferrador. O arreeiro partiu para Coimbra, encarregado de espalhar a notícia
de ter ficado no Porto Simão Botelho.

Mais que as dores e o receio da amputação, o mortificava a
ânsia de saber novas de Teresa. João da Cruz estava sempre de sobrerrolda,
precavido contra algum procedimento judicial por suspeitas dele. As pessoas
que vinham de feirar na cidade contavam todas que dois homens tinham aparecido
mortos, e constava serem criados dum fidalgo de Castrod’Aire, Ninguém, porém,
ouvira imputar o assassínio a determinadas pessoas.

Na tarde desse dia recebeu Simão a seguinte carta de Teresa:

“Deus permita que tenhas chegado sem perigo a casa
dessa boa gente. Eu não sei o que se passa. mas há coisa misteriosa que
eu não posso adivinhar. Meu pai tem estado toda a manhã fechado com o primo,
e a mim não me deixa sair do quarto. Mandou-me tirar o tinteiro; mas eu
felizmente estava prevenida com outro. Nossa Senhora quis que a pobre viesse
pedir esmola debaixo da janela do meu quarto; senão, eu nem tinha modo de
lhe dar sinal para ela esperar esta carta. Não sei o que ela me disse Falou-me
em criados mortos; mas eu não pude entender… Tua mana Rita está-me acenando
por trás dos vidros do teu quarto…

Disse-me agora tua mana que os moços de meu primo tinham
aparecido mortos perto da estrada. Agora já sei tudo. Estive para lhe dizer
que tu aí estás, mas não me deram tempo. Meu pai de hora a hora dá passeios
no corredor, e solta uns ais muitos altos.

Ó meu querido Simão, que será feito de ti?… Estás ferido?
Serei eu a causa da tua morte?

Dize-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua
vida. Foge desses sítios: vai para Coimbra, e espera que o tempo melhore
a nossa situação. Tem confiança nesta desgraçada, que é digna da tua dedicação…
Chega a pobre: não quero demorá-la mais… Perguntei-lhe se se dizia de
ti alguma coisa, e ela respondeu que não. Deus o queira”.

Respondeu Simão a querer tranqüilizar o ânimo de Tereza. Do
seu sofrimento falava tão de passagem, que dava a supor que nem o curativo
era necessário.

Prometia partir para Coimbra logo que o pudesse fazer sem
receio de Teresa sofrer na sua ausência. Animava-a a chamá-lo assim que as
ameaças do convento passassem a ser realizadas.

Entretanto, Baltasar Coutinho, chamado às autoridades judiciárias
para esclarecer a devassa instaurada, respondeu que efetivamente os homens
mortos eram seus criados, de quem ele e sua família se acompanhara de Castro-d’Aire.
Acrescentou que não sabia que eles tivessem inimigos em Viseu, nem tinha contra
alguém as mais leves presunções.

Os mais próximos vizinhos da localidade onde os cadáveres
tinham aparecido apenas depunham que, alta noite, tinham ouvido dois tiros
ao mesmo tempo, e outro pouco depois. Um apenas adiantava coisa que não podia
alumiar a justiça, e vinha a ser que o mato, nas vizinhanças do local, fora
chapotado. Nesta escuridade a justiça não podia dar passo algum.

Tadeu de Albuquerque era conivente no atentado contra a vida
de Simão Botelho. Fora seu ó alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa
das saídas freqüentes de Teresa na noite do baile. Tanto ao velho como ao
morgado convinha apagar algum indício que pudesse envolvê-los no mistério
daquelas duas mortes. Os criados não mereciam as penas dum desforço que implicasse
o desdouro de seus amos. Provas contra Simão Botelho não podiam aduzi-las.
Aquela hora o supunham eles a caminho de Coimbra, ou refugiado em casa de
seu pai. Restava-lhes ainda a esperança de que ele tivesse sido ferido, e
fosse acabar longe do local em que o tinham assaltado.

Enquanto a Teresa, resolveu Albuquerque encerrá-la num convento
do Porto, e escolheu Monchique, onde era prioresa uma sua próxima parenta.
Escreveu à prelada para lhe preparar aposentos, e ao procurador para negociar
as licenças eclesiásticas para a entrada. Todavia, receando o velho algum
incidente no espaço de tempo que medeava até se conseguirem as licenças, resolveu
não ter consigo Teresa, e solicitou a retenção temporária dela num convento
de Viseu.

Acabara Teresa de ler e esconder no seio a resposta de Simão
Botelho que a mendiga lhe passara ao escurecer, pendente de uma linha, quando
o pai entrou no seu quarto, e a mandou vestir-se. A menina obedeceu, tomando
uma capa e um lenço,

– Vista-se como quem é: lembre-se que ainda tem os meus apelidos
– disse com severidade o velho.

– Cuidei que não era preciso vestir-me melhor para sair à
noite… – disse Teresa.

– E a senhora sabe para onde vai?

– Não sei… meu pai.

– Então vista-se, e não me dê leis.

– Mas, meu pai. atenda-me um momento.

– Diga.

– Se a sua idéia é obrigar-me a casar com meu primo…

– E daí?

– De certo não caso; morro, e morro contente, mas não caso.

– Nem ele a quer. A senhora é indigna de Baltasar Coutinho.
Um homem do meu sangue não aceita para esposa uma mulher que fala de noite
aos amantes nos quintais. Vista-se depressa, que vai para um convento.

– Prontamente, meu pai. Esse destino lho pedi eu muitas vezes.

– Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas
primas esperam-na para a acompanharem.

Quando se viu sozinha, Teresa debulhou-se em lágrimas, e quis
escrever a Simão. Aquela hora quem lhe levaria a carta? Apelou para o retábulo
da Virgem, que ela fizera confidente do seu amor. Pediu-lhe de joelhos que
a protegesse, e desse forças a Simão para resistir ao golpe, e guardar-lhe
constância através dos trabalhos que sucedessem, Depois vestiu-se, comprimindo
contra o seio um embrulho em que levava o tinteiro, o papel e o macete de
cartas de Simão. Saiu do seu quarto, relanceando os olhos lacrimosos para
o painel da Virgem, e, encontrando o pai, pediu-lhe licença para levar consigo
aquela devota imagem.

– Lá irá ter – respondeu ele. – Se tivesse tanta vergonha
como devoção, seria mais feliz do que há de ser.

Uma das primas, irmãs de Baltasar, chamou-a de parte. e segredou-lhe:

– Ó menina, estava ainda na tua mão dares remédio à desordem
desta casa…

– Qual remédio?! – perguntou Teresa com artificial seriedade.

– Diz a teu pai que não duvidas casar com o mano Baltasar…

– Primo Baltasar não me quer – replicou ela, sorrindo.

– Quem te disse isso, Teresinha?

– Disse-mo meu pai.

– Deixa falar teu pai, está desatinado com o amor que te tem.
Queres tu que eu lhe fale.

– Para quê?

– Para se remediar deste modo a desgraça de todos nós.

– Estás a brincar, prima! – redargüiu Teresa. – Eu hei de
ser tua cunhada quando não tiver coração. Teu mano tem a certeza de que eu
amo outro homem. Queria viver para ele; mas, se quiserem que eu morra por
ele, abençoarei’ todos os meus algozes. Podes dizer isto ao primo Baltasar
e dize-lho antes que te esqueça.

– Então? Vamos! – disse o velho.

– Estou pronta, meu pai.

Abriu-se a portaria do mosteiro. Teresa entrou sem uma lágrima.
Beijou a mão de seu pai, que ele não ousou recusar-lhe na presença das freiras.
Abraçou suas primas, com semblante de regozijo; e, ao fechar-se a porta, exclamou,
com grande espanto das monjas:

– Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo.

As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra
“coração” uma heresia, uma blasfêmia proferida na casa do Senhor.

– Que diz a menina?! – perguntou a prioresa, fitando-a por
cima dos óculos, e apanhando no lenço de Alcobaça a destilação do esturrinho.

– Disse eu que me sentia aqui muito bem, minha senhora.

Não diga – minha senhora – atalhou a escrivã.

– Como hei de dizer?

– Diga: “nossa madre prioresa”.

– Pois sim, nossa madre prioresa, disse eu que me sentia aqui
muito bem.

– Mas quem vem para estas casas de Deus não vem para se sentir
bem – tornou a nossa madre prioresa.

– Não?! – disse Teresa com sincera admiração.

– Quem para aqui vem, menina, há de mortificar o espírito,
e deixar lá fora as paixões mundanas. Ora pois! Aqui está a nossa madre mestra
de noviças, a quem compete encaminhá-la e dirigi-la.

Teresa não redargüiu: fez um gesto de respeito à mestra de
noviças, e seguiu o caminho que a prelada lhe ia indicando.

A nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa
que era sua hóspeda enquanto ali estivesse; e ajuntou que não sabia se seu
pai escolheria aquele convento ou outro.

– Que importa que seja um ou outro? – disse Teresa.

– É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em
ordem rica das bentas ou bernardas.

– Professe! – exclamou Teresa. – Eu não quero ser freira aqui,
nem noutra parte.

– A senhora há de ser o que seu pai quiser que seja.

– Freira?! A isso não pode ninguém obrigar-me! -recalcitrou
Teresa.

– Isso assim é – retorquiu a prioresa – mas, como a menina
tem de noviciado um ano, sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá
que não há vida mais descansada para o corpo, nem mais saudável para a alma.

– Mas a nossa madre – tornou Teresa, sorrindo, como se a ironia
lhe fosse habitual – já disse que a estas casas ninguém vem para se sentir
bem…

– É um modo de falar, menina. Todos temos as nossas mortificações
e obrigações de coro e de serviços para que nem sempre o espírito está bem
disposto. Ora vês aí. Mas, em comparação do que lá vai pelo mundo, o convento
é um paraíso. Aqui não há paixões, nem cuidados que tirem o sono, nem a vontade
de comer, bendito seja o Senhor! Vive-mos umas com as outras como Deus com
os anjos. O que uma quer querem todas. Más línguas é coisa que a menina não
há de achar aqui, nem intriguistas, nem murmurações de soalheiro. Enfim, Deus
fará o que for servido. Eu vou à cozinha buscar a ceia da menina, e já volto.
Aqui a deixo com a senhora madre organista, que é uma pomba, e com a nossa
mestra de noviças, que sabe dizer melhor que eu o que é a virtude nestas santas
casas.

Apenas a prioresa voltou as costas, disse a organista à mestra
de noviças:

– Que impostora!

– E que estúpida! – acudiu a outra. – A menina não se fie
nesta trapalhona, e veja se seu pai lhe dá outra companhia enquanto cá estiver,
que a prioresa é a maior intriguista do convento. Depois que fez sessenta
anos, fala das paixões do mundo como quem as conhece por dentro e por fora.
Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos dava na casa; depois de
velha era a mais ridícula porque ainda queria amar e ser amada; agora, que
está decrépita, anda sempre este mostrengo a fazer missões e a curar indigestões.

Teresa, apesar da sua dor, não pôde reprimir uma risada, lembrando-se
da vida de Deus com os anjos que as esposas do Senhor ali viviam, no
dizer da madre prioresa.

Pouco depois, entrou a prelada com a ceia, e saíram as duas
freiras.

– Que lhe pareceram as duas religiosas que ficaram com a menina?
– disse ela a Teresa.

– Pareceram-me muito bem.

A velha distendeu os beiços matizados de meandros de esturrinho
líquido, e regougou:

– Hum!… Está feito, está feito!… Ainda não são das piores;
mas, se fossem melhores, não se perdia nada… Ora vamos a isto, menina; aqui
tem duas pernas de galinha e um caldo que o podem comer os anjos.

– Eu não como nada, minha senhora – disse Teresa.

– Ora essa! Não come nada?! Há de comer; sem comer ninguém
resiste. Paixões… que as leve o porco-sujo!… As mulheres é que ficam logradas,
e eles não têm que perder!… Que eu, cá de mim, até ao presente, Deus louvado,
não sei o que sejam paixões; mas quem tem cinqüenta e cinco anos de convento,
tem muita experiência do que vê penar às outras doidivanas. E, para não ir
mais longe, estas duas que daqui saíram têm pagado bem o seu tributo à asneira,
Deus me perdoe, se peco. A organista tem já os seus quarenta bons, e ainda
vai ao locutório derreter-se em finezas; a outra, apesar de ser mestra de
noviças, à falta doutra que quisesse sê-lo, se eu lhe não andasse com o olho
em cima, estragava-me as raparigas.

Este edificante discurso de caridade foi interrompido pela
madre escrivã, que vinha, palitando os dentes, pedir à prelada um copinho
de certo vinho estomacal com que todas as noites era brindada.

– Estava eu a dizer a esta menina as peças que são a organista
e a mestra – disse a prioresa.

– Oh! são para o que eu lhe prestar! Lá foram ambas para a
cela da porteira. A esta hora está a menina a ser cortada por aquelas línguas,
que não perdoam a ninguém.

– Vais tu ver se ouves alguma coisa, minha flor? – disse a
prelada.

A escrivã, contente da missão, foi imperceptivelmente ao longo
dos dormitórios até parar a uma porta, que não vedava o ruído estridente das
risadas.

No entanto, dizia a prelada a Teresa:

– Esta escrivã não é má rapariga. Só tem o defeito de se tomar
da pingoleta; depois, não há quem a ature. Tem uma boa tença, mas gasta tudo
em vinho, e tem ocasiões de entrar no coro a fazer ss que é mesmo uma
desgraça. Não tem outro defeito; é uma alma lavada, e amiga da sua amiga.
~ verdade, que, às vezes… (aqui a prelada ergueu-se a escutar nos dormitórios,
e fechou por dentro a porta); é verdade que, às vezes, quando anda azoratada,
dá por paus e por pedras, e descobre os defeitos das suas amigas. A mim já
ela me assacou um aleive, dizendo que eu, quando saía a ares, não ia só a
ares, e andava por lá a fazer o que fazem as outras. Forte pouca vergonha!
Lá que outra falasse, vá; mas ela, que tem sempre uns namorados pandílhas
que bebem com ela na grade, isso lá me custa; mas, enfim, não há ninguém perfeito!…
Boa rapariga é ela… se não fosse aquele maldito vício…

Como tocasse ao coro nesta ocasião, a veneranda prioresa bebeu
o segundo cálice do vinho estomacal, e disse a Teresa que a esperasse um quarto
de hora, que ela ia ao coro, e pouco se demoraria. Tinha ela saído, quando
a escrivã entrou a tempo que Teresa, com as mãos abertas sobre a face, dizia
em si: “Um convento, meu Deus! Isto é que é um convento?”

– Está sozinha? – disse a escrivã.

– Estou, minha senhora.

– Pois aquela grosseira vai-se embora, e deixa uma hóspeda
sozinha?! Bem se vê que é filha de funileiro!… Pois tinha tempo de ter prática
do mundo, que tem andado por lá que farte… Eu havia de ir ao coro… Mas
não vou, para lhe fazer companhia, menina.

– Vá, vá minha senhora, que eu fico bem sozinha – disse Teresa,
com a esperança de poder desafogar em lágrimas a sua aflição.

– Não vou, ……. A menina aqui estarrecia de medo; mas a
prelada não tarda aí. Ela, se pode escapar-se do coro, não para lá muito tempo.
Apostar que ela lhe esteve a falar mal de mim?

– Não, minha senhora, pelo contrário…

– Ora, diga a verdade, menina! Eu sei que esta cegonha não
fala bem de ninguém. Para ela tudo são libertinas e bêbedas.

– Nada, não, minha senhora; nada me disse a respeito de alguma
freira,

– E, se disse, deixá-la dizer. Ela o vinho não o bebe, suga-o;
é uma esponja viva. Enquanto à libertinagem, tomara eu tantos mil cruzados
como de amantes ela tem tido! Faz lá uma pequena idéia, menina!…

A escrivã bebeu um cálice do vinho da sua prelada, e continuou:

– Faz lá uma pequena idéia! Ela é velhíssima como a sé. Quando
eu professei, já ela era velha como agora, com pouca diferença. Ora eu sou
freira há vinte e seis anos. Calcule a menina quantas arrobas de esturrínho
ela tem atulhado naqueles narizes! Pois olhe, quer me creia, quer não, tenho-lhe
conhecido mais de uma dúzia de chichisbéus, não falando do padre capelão,
que esse ainda agora lhe fornece a garrafeira, à nossa custa, entende-se.
É uma dissipadora dos rendimentos da casa. Eu, que sou escrivã, é que sei
o que ela rouba. Eu tenho imensa pena de ver a menina hospedada em casa desta
hipócrita. Não se deixe levar das imposturices dela, meu anjinho. Eu sei que
seu pai lhe mandou falar, e a encarregou de a não deixar escrever, nem receber
cartas; mas olhe, minha filha, se quiser escrever, eu dou-lhe tinteiro, papel,
obreias e o meu quarto, se para lá quiser ir escrever. Se tem alguém que lhe
escreva, diga-lhe que mande as cartas em meu nome; eu chamo-me Dionísia da
Imaculada Conceição.

– Muit9 agradecida, minha senhora – disse Teresa,
animada pelo oferecimento. – Quem me dera poder mandar um recado a uma pobre
que mora no beco do…

– O que quiser, menina. Eu mando lá logo que for dia. Esteja
descansada. Não se fie de alguém, senão de mim. Olhe que a mestra de noviças
e a organista são duas falsas. Não lhes dê trela, que, se as admite
à sua confiança, está perdida. Ai vem a lesma… Falemos noutra coisa…

A prelada vinha entrando, e a escrivã prosseguiu assim:

– Não há, não há nada mais agradável que a vida do convento
quando se tem a fortuna de ter uma prelada como a nossa… Aí! eras tu, menina?
Olha se estivéssemos a falar mal de ti!

– Eu sei que tu nunca falas mal de mim – disse a prelada,
piscando o olho a Teresa. – Aí está essa menina que diga o que eu lhe estive
a dizer das tuas boas qualidades…

– Pois o que eu disse de ti – respondeu sóror Dionísia da
Imaculada Conceição – não precisas de perguntar porque felizmente ouviste
o que eu estava dizendo. Oxalá que se pudesse dizer o mesmo das outras que
desonram a casa, e trazem aqui tudo intrigado numa meada, que é mesmo coisa
de pecado!

– Então não vais ao coro, Nini? – tornou a prioresa.

– Já agora é tarde… Tu absolves-me da falta, sim?

– Absolvo, absolvo; mas dou-te como penitência beberes um
copinho…

– Do estomacal?

– Pudera!

Dionisia cumpriu a penitência, e saiu para, dizia ela deixar
a prelada na sua hora de oração.

Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver
do convento onde Tadeu de Albuquerque mandara sua filha a respirar o puríssimo
ar dos anjos, enquanto se lhe preparava crisol mais depurador dos sedimentos
do vício no convento de Manchique.

Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas
duas horas de vida conventual. Ignorava ela que o mundo tinha daquilo. Ouvira
falar dos mosteiros como de um refúgio da virtude, da inocência e das esperanças
imorredoiras. Algumas cartas lera de sua tia, prelada em Monchique, e por
elas formara conceito do que devia ser uma santa. Daquelas mesmas dominicanas,
em cuja casa estava, ouvira dizer às velhas e devotas fidalgas de Víseu virtudes,
maravilhas de caridade, e até milagres. Que desilusão tão triste e, ao mesmo
tempo, que ânsia de fugir dali!

A cama de Teresa estava na mesma cela da prioresa, em alcova.
separada, com cortinas de cassa.

Quando a prelada lhe disse que podia deitar-se, querendo,
perguntou-lhe a menina se poderia escrever a seu pai. A freira respondeu que
no dia seguinte o faria, posto que o senhor Albuquerque ordenasse que sua
filha não escrevesse; assim mesmo, ajuntou ela, que lho não proibiria, se
tivesse tinteiro e papel na cela.

Teresa deitou-se, e a prelada ajoelhou diante dum oratório,
rezando a coroa a meia voz, Se o murmúrio da oração enfadasse a hóspeda, não
teria ela muita razão de queixa, porque a devota monja, ao segundo Padre-nosso,
cabeceava de modo que já não atinou com a primeira Ave-Maria. Levantou-se,
cambaleando uma mesura às imagens do santuário, foi deitar-se, e pegou a ressonar.

Teresa afastou sutilmente as cortinas do quarto, e tirou de
entre o seu fato o tinteiro de tarraxa e o papel.

A lâmpada do oratório lançava um frouxo raio sobre a cadeira
em que Teresa pusera os seus vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao pé da cadeira,
e escreveu a Simão, relatando-lhe minuciosamente os sucessos daquele dia.
A carta rematava assim:

“Não receies nada por mim, Simão. Todos estes trabalhos
me parecem leves, se os comparo aos que tens padecido por amor de mim. A
desgraça não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus projetos.
São alguns dias de tempestade, e mais nada. Qualquer nova resolução que
meu pai tome dír-ta-ei logo, podendo, ou quando puder. A falta das minhas
noticias deves atribuí-la sempre ao impossível. Ama-me assim desgraçada,
porque me parece que os desgraçados são os que mais precisam de amor e de
conforto. Vou ver se posso esquecer-me, dormindo. Como isto é triste, meu
querido amigo!… Adeus”.

CAPÍTULO VIII

Mariana, a filha de João da Cruz, quando viu seu pai pensar
a chaga do braço de Simão, perdeu os sentidos. O ferrador riu estrondosamente
da fraqueza da moça, e o acadêmico achou estranha sensibilidade em mulher
afeita a curar as feridas com que seu pai vinha laureado de todas as feiras
e romarias.

– Não há ainda um ano que me fizeram três buracos na cabeça,
quando eu fui à Senhora dos Remédios, a Lamego, e foi ela que me tosqueou
e rapou o casco à navalha – disse o ferrador. – Pelo que vejo, o sangue do
fidalgo deu volta ao estômago da rapariga!… Estamos então bem aviados! Eu
tenho cá a minha vida, e queria que ela fosse a enfermeira do meu doente…
És, ou não és, rapariga? – disse ele à filha quando ela abriu os olhos, com
semblante de envergonhada da sua fraqueza.

– Serei com muito gosto, se o pai quiser.

– Pois, então, moça, se hás de ir costurar para a varanda,
vem aqui para a beira do senhor Simão. Dá-lhe caldos a miúdo, e trata-lhe
da ferida; vinagre e mais vinagre, quando ela estiver assim a modo de roxa.
Conversa com ele, não o deixes estar a malucar, nem escrever muito, que não
é bom quando se está fraco do miolo. E vossa senhoria não tenha aquelas de
cerimônia, nem me diga à Mariana – a menina isto, a menina aquilo. É – rapariga,
da cá um caldo; rapariga, lava-me o braço, da cá as compressas – e nada de
políticas. Ela está aqui como sua criada, porque eu já lhe disse que, se não
fosse o pai de vossa senhoria, já ela há muito tempo que andava por aí às
esmolas, ou pior ainda. E verdade que eu podia deixar-lhe uns benzinhos ganhos
ali a suar na bigorna há dez anos, afora uns quatrocentos mil réis que herdei
de minha mãe, que Deus haja; mas vossa senhoria bem sabe que, se eu fosse
à forca ou pela barra fora, vinha a justiça, e tomava conta de tudo para as
custas.

– Vossemecê tem uma casinha sofrível – atalhou Simão – pode,
querendo, casar a sua filha numa boa casa de lavoura.

– Assim ela quisesse. Maridos não lhe faltam; até o alferes
da casa da Igreja a queria, se eu lhe fizesse doação de tudo, que pouco é,
mas ainda quatro mil cruzados bons; o caso é que a moça não tem querido casar,
e eu, a falar a verdade, sou só e mais ela, e também não tenho grande vontade
de ficar sem esta companhia, para quem trabalho como moiro. Se não fosse ela,
fidalgo, muitas asneiras tinha eu feito! Quando vou às feiras ou romarias,
se a levo comigo, não bato, nem apanho; indo sozinho, é desordem certa. A
rapariga já conhece quando a pinga me sobe ao capacete do alambique; puxa-me
pela jaqueta, e por bons modos põe-me fora do arraial. Se alguém chama para
beber mais um quartilho, ela não me deixa ir, e eu acho graça à obediência
com que me deixo guiar pela moça, que me pede que não vá por alma da mãe.
Eu cá, em ela me pedindo por alma da minha santa mulher, já não sei de que
freguesia sou.

Mariana ouvia o pai. escondendo meio rosto no seu alvíssimo
avental de linho. Simão estava-se gozando na simpleza daquele quadro rústico,
mas sublime de naturalidade.

João da Cruz foi chamado para ferrar um cavalo, e despediu-se
nestes termos:

– Tenho dito, rapariga; aqui te entrego o nosso doente: trata-o
como quem é e como se fosse teu irmão ou marido.

O rosto de Mariana acerejou-se quando aquela última palavra
saiu, natural como todas, da boca de seu pai.

A moça ficou encostada ao batente da alcova de Simão.

– Não foi nada boa esta praga que lhe caiu em casa, Mariana!
– disse o acadêmico – Fazerem-na enfermeira dum doente, e privarem-na talvez
de ir costurar na sua varanda, e conversar com as pessoas que passam…

– Que se me dá a mim disso? – respondeu ela, sacudindo o avental,
e baixando o cós ao lugar da cintura com infantil graça.

– Sente-se, Mariana; seu pai disse-lhe que se sentasse…
Vá buscar a sua costura, e dê-me dali um folha de papel e um lápis que está
na carteira.

– Mas o pai também me disse que o não deixasse escrever…
– replicou ela, sorrindo.

– Pouco, não faz mal. Eu escrevo apenas algumas linhas.

– Veja lá o que faz… – tornou ela, dando-lhe o papel e o
lápis – Olhe se alguma carta se perde, e se descobre tudo…

– Tudo o quê, Mariana? Pois sabe alguma coisa.?

– Era preciso que eu fosse tola… Eu não lhe disse já que
sabia da sua amizade a uma menina fidalga da cidade?

– Disse. Mas que tem isso?

– Aconteceu o que eu receava. Vossa senhoria está ai ferido,
e toda a gente fala nuns homens que apareceram mortos.

– Que tenho eu com os homens que apareceram mortos?

– Para que está a fingir-se de novas?! Pois eu não sei que
esses homens eram criados do primo da tal senhora? Parece que vossa senhoria
desconfia de mim, e está a querer guardar um segredo que eu tomara que ninguém
soubesse, para que meu pai e o senhor Simão não tenha alguns trabalhos maiores…

– Tem razão, Mariana; eu não devia esconder de si o mau encontro
que tivemos.

– E Deus queira que seja o último!… Tanto tenho pedido ao
Senhor dos Passos que lhe dê remédio a essa paixão!… O pior futuro é o que
ainda está por passar…

– Não, menina, isto acaba assim: eu vou para Coimbra logo
que esteja bom, e a menina da cidade fica em sua casa.

– Se assim for, já prometi dois arráteis de cera ao Senhor
dos Passos; mas não me diz o coração que vossa senhoria faça o que diz…

– Muito agradecido lhe estou pelo bem que me deseja – disse
Simão, comovido. – Não sei o que lhe fiz para lhe merecer a sua amizade.

– Basta ver o que o seu paizinho fez pelo meu – disse ela,
limpando as lágrimas. – O que seria de mim, se ele me faltasse, e se fosse
à forca como toda a gente dizia!… Eu era ainda muito nova quando ele estava
na enxovia. Teria treze anos; mas estava resolvida a atirar-me ao poço, se
ele fosse condenado à morte. Se o degredassem, então ia com ele; ia morrer
onde ele fosse morrer. Não há dia nenhum que eu não peça a Deus que dê a seu
pai tantos prazeres como estrelas tem o céu. Fui de propósito à cidade para
beijar os pés à sua mãezinha, e vi suas manas, e uma, que era a mais nova,
deu-me uma saía de lapím, que eu ainda ali tenho guardada como uma relíquia.
Depois, cada vez que ia à feira, dava uma grande volta para ver se acertava
de encontrar a senhora D. Ritinha à janela; e muitas vezes vi o senhor Simão.
E talvez não saiba que eu estava a beber na fonte quando vossa senhoria, há
dois para três anos8 deu muita pancada nos criados, que era mesmo
um rebuliço que parecia o fim do mundo. Eu vim contar ao pai. e ele caiu ao
chão a dar risadas como um doido… Depois nunca mais o vi senão quando vossa
senhoria entrou com o tio de Coimbra; mas já sabia que vinha para esta desgraça.
porque tinha tido um sonho, em que via muito sangue, e eu estava a chorar
porque via uma pessoa muito minha amiga a cair numa cova muito funda…

– Isso são sonhos, Mariana!…

– São sonhos, são; mas eu nunca sonhei nada que não acontecesse.
Quando o meu pai matou o almocreve, tinha eu sonhado que o via a dar um tiro
noutro homem; antes de minha mãe morrer, acordei eu a chorar por ela, e mais
ainda viveu dois meses… A gente da cidade ri-se dos sonhos, mas Deus sabe
o que isto é… Aí vem meu pai… Senhor dos Passos! Não vá ser alguma má
nova!…

João da Cruz entrou com uma carta que recebera da pobre do
costume. Enquanto Simão leu a carta escrita do convento, Mariana fitou os
seus grandes olhos azuis no rosto do acadêmico, e, a cada contração da fronte
dele, angustiavase-lhe a ela o coração. Não teve mão da sua ânsia, e perguntou:

– E noticia má?

– Tu és muito atrevida, rapariga! – disse João da Cruz.

– Não é, não – atalhou o estudante. – Não é má noticia, Mariana,
Senhor João. deixe-me ter na sua filha uma amiga, que os desgraçados é que
sabem avaliar os amigos.

– Isso é verdade; mas eu não me atrevia a perguntar o que
a carta diz.

– Nem eu perguntei, meu pai; foi porque me pareceu que o senhor
Simão estava aflito quando lia.

– E não se enganou – tornou o doente, voltando-se para o ferrador.
– O pai arrastou Teresa ao convento.

– Sempre é patife duma vez! – disse o ferrador, fazendo com
os braços instintivamente um movimento de quem aperta às mãos um pescoço.

Neste, lance, um observador pespícaz veria luzir nos olhos
de Mariana um clarão de inocente alegria.

Simão sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Mariana
espontaneamente lhe chegou, dizendo:

– Enquanto escreve, vou olhar pelo caldinho, que está a ferver.

“E necessário arrancar-te daí – dizia a carta de Simão.
– Esse convento há de ter uma evasiva. Procura-a, e dize-me a noite e a
hora em que devo esperar-te. Se não puderes fugir, essas portas hão de abrir-se
diante da minha cólera. Se daí te mandarem para outro convento mais longe,
avisa-me, que eu irei, sozinho ou acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensável
que te refaças de ânimo para te não assustarem os arrojos da minha paixão.
És minha! Não sei de que me serve a vida, se a não sacrificar a salvar-te.
Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás fiel na vida e na morte. Não sofras
com paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia quando o poder
paternal é uma afronta. Escreve-me a toda a hora que possas. Eu estou quase
bom. Dize-me uma palavra, chama-me, e eu sentirei que a perda do sangue
não diminui as forças do coração”.

Simão pediu a sua carteira, tirou dinheiro em prata, deu-o
ao ferrador, e recomendou-lhe que o entregasse à pobre com a carta.

Depois ficou relendo a de Teresa, e recordando-se da resposta
que dera.

Mestre João foi à cozinha, e disse a Mariana:

– Desconfio de uma coisa, rapariga.

– O que é, meu pai?

– O nosso doente está sem dinheiro.

– Porquê? O pai como sabe isso?

– E que ele pediu-me a carteira para tirar dinheiro, e ela
pesava tanto como uma bexiga de porco cheia de vento.

Isto bole-me cá por dentro! Queria oferecer-lhe dinheiro e
não sei como há de ser…

– Eu pensarei nisso, meu pai – disse Mariana. refletindo.

– Pois sim; cogita lá tu, que tens melhores idéias que eu.

– E, se o pai não quiser bulir nos seus quatrocentos, eu tenho
aquele dinheiro dos meus bezerros: são onze moedas de ouro menos um quarto.

– Pois falaremos: pensa tu no modo de ele aceitar sem remorsos.

Remorsos, na linguagem pouco castigada de mestre João, era
sinômico de escrúpulos, ou repugnância.

Foi Mariana levar o caldo a Simão, que lho rejeitou como distraído
em profundo cismar.

– Pois não toma o caldinho? – disse ela com tristeza.

– Não posso, não tenho vontade, menina; será logo. Deixe-me
sozinho algum tempo; vá, vá; não passe o seu tempo ao pé dum doente aborrecido.

– Não me quer aqui? Irei, e voltarei quando vossa senhoria
chamar.

Dissera isto Mariana com os olhos a verterem lágrimas.

Simão notou as lágrimas, e pensou um momento na dedicação
da moça; mas não lhe disse palavra alguma.

E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe
idéias aflitivas que os romancistas raras vezes atribuem aos seus heróis.
Nos romances todas as crises se explicam, menos a crise ignóbil da falta de
dinheiro. Entendem os novelistas que a matéria é baixa e plebéia. O estilo
vai de má vontade para coisas rasas. Balzac fala muito em dinheiro; mas dinheiro
a milhões. Não conheço, nos cinqüenta livros que tenho dele, um galã num entre
ato da sua tragédia a cismar no modo de arranjar uma quantia com que um usurário
lhe lança, desde a casa do juiz de paz a todas as esquinas, donde o assaltam
o capital e o juro de oitenta por cento. Dist0 é que os mestres
em romances se escapam sempre. Bem sabem eles que o interesse do leitor se
gela a passo igual que o herói se encolhe nas proporções destes heroizinhos
de botequim, de quem o leitor dinheiroso foge por instinto, e o outro foge
também, porque não tem que fazer com ele. A coisa é vilmente prosáica, de
todo o meu coração o confesso. Não é bonito deixar a gente vulgarizar-se o
seu herói a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois que escreveu
à mulher estremecida uma carta como aquela de Simão Botelho. Quem a lesse,
diria que o rapaz tinha postadas, em diferentes estações das estradas do país,
carroças e folgadas parelhas de mulas para transportarem a Paris, a Veneza,
ou ao Japão a bela fugitiva! A estradas, naquele tempo, deviam ser boas para
isso, mas não tenho a certeza de que houvesse estradas para o Japão. Agora
creio que há, porque me dizem que há tudo.

Pois eu já lhes fiz saber, leitores, pela boca de mestre João,
que o filho do corregedor não tinha dinheiro. Agora lhes digo que era em dinheiro
que ele cismava, quando Mariana lhe trouxe o caldo rejeitado.

A meu ver, deviam atribulá-lo estes pensamentos:

Como pagaria a hospitalidade de João da Cruz?

Com que agradeceria os desvelos de Mariana?

Se Teresa fugisse, com que recurso proveria à subsistência
de ambos?

Ora, Simão Botelho saíra de Coimbra com a sua mesada, que
não era grande, e quase lha absorvera o aluguel da cavalgadura, e a gorjeta
generosa que dera ao arreeiro, a quem devia o conhecimento do prestante ferrador.

As relíquias desse dinheiro dera-as ele à portadora da carta
naquele dia. Má situação!

Lembrou-se de escrever à mãe. Que lhe diria ele? Como explicaria
a sua residência naquela casa? Deste modo não iria ele dar indícios da morte
misteriosa dos dois criados de Baltasar Coutinho?

Além de que, sobejamente sabia ele que sua mãe o não amava;
e, a mandar-lhe algum dinheiro em segredo, seria o escassamente necessário
para a jornada até Coimbra. Péssima situação!

Cansado de pensar, favoreceu-o a providência dos infelizes
com um sono profundo,

E Mariana entrara pé ante pé na sala, e, ouvindo-lhe a respiração
alta, aventurou-se a entrar na alcova. Lançou-lhe um lenço de cassa sobre
o rosto, em roda do qual zumbia um enxame de moscas. Viu a carteira sobre
uma banqueta que adornava o quarto, pegou nela, e saiu pé ante pé. Abriu a
carteira, viu papéis, que não soube ler, e num dos repartimentos duas moedas
de seis vintéis. Foi restituir a carteira ao seu lugar, e tomou de um cabide
as calças, colete e jaqueta à espanhola, do hóspede. Examinou os bolsos e
não encontrou um ceitil.

Retirou-se para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve
meia hora assim, e meditava angustiada a nobre rapariga. Depois ergueu-se
de golpe, conversou longo tempo com o pai. João da Cruz escutou-a, contrariou-a,
mas ia de vencida sempre pelas réplicas da filha, até que, a final, disse:

– Farei o que dizes, Mariana. Dá-me cá o teu dinheiro, que
não vou agora levantar a pedra da lareira para bulir no caixote dos quatrocentos
mil réis. Tanto faz um como outro: teu é ele todo.

Mariana deu-se pressa em ir à arca, donde tirou uma bolsa
de linho com dinheiro em prata, e alguns cordões, anéis e arrecadas. Guardou
o seu oiro numa boceta, e deu a bolsa ao pai.

João da Cruz aparelhou a égua. e saiu. Mariana foi para a
sala do doente.

Acordou Simão.

– Não sabe!? – exclamou ela com semblante entre alegre e assustado,
perfeitamente contrafeito.

– Que é, Mariana?

– Sua mãezinha sabe que vossa senhoria aqui está.

– Sabe?! Isso é impossível! Quem lho disse?

– Não sei; o que sei é que ela mandou chamar meu pai.

– Isso espanta-me!… E não me escreveu?

– Não, senhor!… Agora me lembro que talvez ela soubesse
que o senhor aqui esteve, e cuide que já não está, e por isso lhe não escreveu…
Poderá ser?

– Poderá… Mas quem lho diria!? Se isto se sabe, então podem
suspeitar da morte dos homens.

– Pode ser que não; e ainda que desconfiem, não há testemunhas.
O pai disse que não tinha medo nenhum. O que for soará. Não esteja a cismar
nisso… Vou-lhe buscar o caldinho, sim?

– Vá, se quer, Mariana. O céu deparou-me em si a amizade duma
irmã.

0 achou a moça na sua alegre alma palavras em
resposta à doçura que o rosto do mancebo exprimia.

Veio com o “caldinho” – diminuitivo que a retórica
duma linguagem meiga sanciona; mas contra o qual protestava a larga e funda
malga branca, ao lado da travessa com meia galinha loura, de gorda.

– Tanta coisa! – exclamou, sorrindo, Simão.

– Coma o que puder – disse ela corando. – Eu bem sei que os
senhores da cidade não comem em malgas tamanhas, mas eu não tinha outra mais
pequena; e coma sem nojo, que esta malga nunca serviu, que a fui eu comprar
à loja, por pensar que vossa senhoria não quisera ontem comer por se atrigar
da outra.

– Não, Mariana, não seja injusta, eu não tinha, nem tenho
vontade.

– Mas coma por eu lhe pedir… Perdoe o meu atrevimento…
Faça de conta que é uma sua irmã que lhe pede. Ainda agora me disse…

– Que o céu me dava em si a amizade duma irmã…

– Pois aí está…

Simão achou tão necessário à sua conservação o sacrifício,
como ao contentamento da carinhosa Mariana. Passou-lhe na mente, sem sombra
de vaidade, a conjetura de que era amado daquela doce criatura. Entre si dizia
que seria uma crueza mostrar-se conhecedor de tal afeição quando não tinha
alma para lha premiar, nem para lhe mentir. Assim mesmo, bem longe de se afligir,
lisonjeavam-no os desvelos da gentil moça. Ninguém sente em si o peso do amor
que se inspira e não comparte. Nas máximas aflições, nas derradeiras horas
do coração e da vida, é grato ainda sentir-se amado quem já não pode achar
no amor diversão das penas, nem soldar o último fio que se está partindo.
Orgulho ou insaciabilidade do coração humano, seja o que for, no amor que
nos dão nós graduamos o que valemos em nossa consciência.

Não desprazia, portanto, o amor de Mariana ao amante apaixonado
de Teresa. Isto será culpa no severo tribunal das minhas leitoras; mas, se
me deixam ter opinião, a culpa de Simão Botelho está na fraca natureza, que
é toda galas no céu, no mar e na terra, e toda incoerências, absurdas e vícios
no homem, que se aclamou a si próprio rei da criação, e nesta boa fé dinástíca
vai vivendo e morrendo.

Duas horas se detivera João da Cruz fora de casa. Chegou quando
a curiosidade do estudante era já sofrimento.

– Estará seu pai preso?! – disse ele a Mariana.

– Não mo diz o coração, e o meu coração nunca me engana –
respondera ela.

E Simão replicara:

– E que lhe diz o coração a meu respeito, Mariana? Os meus
trabalhos ficarão aqui?

– Vou-lhe dizer a verdade, senhor Simão… mas não digo…

– Diga que lho peço, porque tenho fé no bom anjo que fala
em sua alma. Diga…

– Pois sim… O meu coração diz-me que os seus trabalhos ainda
estão no começo…

Simão ouviu-a atentamente e não respondeu. Assombrou-lhe o
ânimo esta idéia torva, e afrontosa à singela rapariga: – “Pensará ela
em me desviar de Teresa, para se fazer amar?”

Pensava assim quando chegou o ferrador.

– Aqui estou de volta – disse ele com semblante festivo. –
Sua mãe mandou-me chamar…

– Já sei… E como soube ela que eu estava aqui?

– Ela sabia que o fidalgo estivera cá: mas cuidava que vossa
senhoria já tinha ido para Coimbra. Quem lho disse não sei, nem perguntei;
porque a uma pessoa de respeito não se fazem perguntas. Dizia ela que sabia
o fim a que o senhor viera esconder-se aqui. Ralhou alguma coisa; mas eu,
cá como pude, acomodei-a e não há novidade. Perguntou-me o que estava o menino
fazendo aqui depois que a fidalguinha fora para o convento. Disse-lhe que
vossa senhoria estava adoentado de uma queda que dera do cavalo abaixo. Tornou
ela a perguntar-me se o senhor tinha dinheiro; e eu disse que não sabia. E,
vai ela, foi dentro, e voltou dai a pouco com este embrulho, para eu lhe entregar.
Aí o tem tal e qual; não sei quanto é.

– E não me escreveu?

– Disse que não podia ir à escrivaninha, porque estava lá
o senhor corregedor – respondeu com firmeza mestre João – e também me recomendou
que não lhe escrevesse vossa senhoria senão de Coimbra, porque, se seu pai
soubesse que o menino cá estava, ia tudo raso lá em casa. Ora ai está.

– E não lhe falou nos criados de Baltasar?

– Nem um pio!… Lá na cidade ninguém já falava nisso hoje.

– E que lhe disse da senhora D. Teresa?

– Nada, senão que ela fora para o convento. Agora deixe-me
ir amantar a égua, que está a escorrer em fio. Ó rapariga, traze-me cá a manta.

Enquanto Simão contava onze moedas menos um quartinho, maravilhando
da estranha liberalidade, Mariana, abraçando o pai no repartimento vizinho
da casa, exclamava:

– Arranjou muito bem a mentira!

– Ó rapariga, quem mentiu foste tu! Aquilo lá o arranjaste
tu com essa tua cabecinha! Mas a coisa saiu ao pintar, hein? Ele comeu-a que
nem confeitos! Anda lá, que ficaste sem os bezerros, mas lá virá tempo em
que ele te dê bois a troco de bezerros.

– Eu não fiz isto por interesse, meu pai… – atalhou ela,
ressentida.

– Olha o milagre! isso sei eu: mas, como diz lá o ditado;
quem semeia, colhe.

Mariana quedou pensativa, e dizendo entre si: – Ainda bem
que ele não pode pensar de mim o que meu pai pensa. Deus sabe que não tenho
esperanças nenhumas interesseiras no que fiz.

Simão chamou o ferrador, e disse-lhe:

– Meu caro João, se eu não tivesse dinheiro, aceitava sem
repugnância os seus favores, e creio que vossemecê mos faria sem esperança
de ganhar com eles; mas, como recebi esta quantia, há-de consentir que lhe
dê parte dela para os meus alimentos. Motivos de gratidão a dividas que se
não pagam. ainda me ficam muitos para nunca me esquecer de si e da sua boa
filha. Tome este dinheiro.

– As contas fazem-se no fim – respondeu o ferrador, retirando
a mão – e ninguém nos há de ouvir, se Deus quiser. Precisando eu de dinheiro,
cá venh9. Por ora, ainda está a capoeira cheia de galinhas, e o pão coze-se
todas as semanas.

– Mas aceite – instou Simão – e dê-lhe a aplicação que quiser.

– Em minha casa ninguém dá leis senão eu – replicou mestre
João, com simulado enfadamento. – Guarde lá o seu dinheiro, fidalgo, e não
falemos mais nisso, se quer que o negócio vá direito até ao fim. E victo-sério!

Nos cinco subsequentes dias recebeu Simão regularmente cartas
de Teresa, umas resignadas e confortadoras, outras escritas na violência exasperada
da saudade. Em uma dizia:

“Meu pai deve saber que estás aí, e, enquanto aí estiveres,
decerto me não tira do convento. Seria bom que fosses para Coimbra, e deixássemos
esquecer a meu pai os últimos acontecimentos. Senão, meu querido esposo,
nem ele me dá liberdade, nem eu sei como hei de fugir deste inferno. Não
fazes idéia do que é um convento! Se eu pudesse fazer do meu coração sacrifício
a Deus, teria de procurar uma atmosfera menos viciosa que esta. Creio que
em toda a parte se pode orar e ser virtuosa, menos neste convento”.

Noutra carta exprimia-se assim:

“Não me desampares, Simão; não vás para Coimbra. Eu
receio que meu pai me queira mudar deste convento para outro mais rigoroso.
Uma freira me disse que eu não ficava aqui; outra positivamente me afirmou
que o pai diligencia a minha ida para um mosteiro do Porto. Sobretudo, o
que me aterra, mas não me dobra, é saber eu que o intento do pai é fazer-me
professar. Por mais que imagine violências e tiranias, nenhuma vejo capaz
de me arrancar os votos. Eu não posso professar sem ser noviça um ano, e
ir a perguntar três vezes; hei de responder sempre que não. Se eu pudesse
fugir daqui!… Ontem fui à cerca, e vi lá uma porta de carro que dá para
o caminho. Soube que algumas vezes aquela porta se abre para entrarem carros
de lenha; mas infelizmente não se torna a abrir até ao principio do inverno.
Se não puder antes, meu Simão, fugirei nesse tempo”.

Tiveram, entretanto, bom e pronto êxito as diligências de
Tadeu de Albuquerque. A prelada de Monchique, religiosa de sumas virtudes,
cuidando que a filha de seu primo muito de sua devoção e amor a Deus se recolhia
ao mosteiro, preparou-lhe casa, e congratulou-se com a sobrinha de tão piedosa
resolução. A carta congratulatória não a recebeu Teresa, porque viera à mão
de seu pai. Continha ela reflexões tendentes a desvanecê-la do propósito,
se algum desgosto passageiro a impedia à imprudência de procurar um refúgio
onde as paixões se exacerbavam mais.

Tomadas todas as precauções, Tadeu de Albuquerque fez avisar
sua filha de que sua tia de Monchique a queria ter em sua companhia algum
tempo, e que a jornada se faria na madrugada do dia seguinte.

Teresa, quando recebeu a surpreendente nova, já tinha enviado
a carta daquele dia a Simão. Em sua aflitiva perplexidade, resolveu fazer-se
doente, e tão febril estava das comoções, que dispensava o artifício. O velho
não queria transigir com a doença; mas o médico do mosteiro reagiu contra
a desumanidade do pai e da prioresa, interessada na violência. Quis Teresa
nessa noite escrever a Simão; mas a criada da prelada, obedecendo às suspeitas
da ama, não desamparou a cabeceira do leito da enferma. Era causa a esta espionagem
ter dito a escrivã, numa hora de má digestão daquele certo vinho estomacal,
que Teresa passava as noites em oração mental, e tinha correspondência com
um anjo do céu por intervenção duma mendiga. Algumas religiosas tinham visto
a mendiga no pátio do convento esperando a esmola de Teresa; mas cuidaram
que era aquela pobre uma devoção da menina. As palavras irônicas da escrivã
foram comentadas, e a mendiga recebeu ordem de sair da portaria. Teresa, num
ímpeto de angústia, quando tal soube, correu a uma janela, e chamou a pobre,
que se retirava assustada, e lançou-lhe ao pátio um bilhete com estas palavras:
“É impossível a nossa correspondência. Vou ser tirada daqui para outro
convento. Espera em Coimbra notícias minhas”. Isto foi rapidamente ao
conhecimento da prioresa, e, logo, às ordens dela, partiu o hortelão no encalço
da pobre. O hortelão seguiu-a até fora da porta, espancou-a, tirou-lhe o bilhete,
e foi do convento apresentá-lo a Tadeu de Albuquerque, A mendiga não retrocedeu;
caminhou a casa do ferrador, e contou a Simão o acontecido.

Simão lançou-se fora do leito e chamou João da Cruz. Naquele
aperto queria ouvir uma voz, queria poder chamar amigo a um homem que lhe
estendesse mão capaz de apertar o cabo dum punhal. O ferrador ouviu a história
e deu o seu voto: “esperar até ver”. Simão repeliu a prudencial
frieza do confidente, e disse que partia para Viseu imediatamente.

Mariana estava ali; ouvira a confidência, e achara acertada
a opinião de seu pai. Vedando, porém, a impaciência do hóspede, pediu licença
para falar onde não era chamada, e disse:

– Se o senhor Simão quer, eu vou à cidade e procuro no convento
a Brito, que é uma rapariga minha conhecida, moça duma freira, e dou-lhe uma
carta sua para entregar à fidalga.

– Isso é possível, Mariana? – exclamou Simão, a ponto de abraçar
a moça.

– Pois então! – disse o ferrador – o que pode fazer-se, faz-se.
Vai-te vestir, rapariga, que eu vou botar o albardão à égua.

Simão sentou-se a escrever. Tão embaralhadas lhe acudiam as
idéias, que não atinava a formar o desígnio mais proveitoso à situação de
ambos. Ao cabo de longa vacilação, disse a Teresa que fugisse, à hora do dia,
quando a porta estivesse aberta ou violentasse a porteira a abrir-lha. Dizia-lhe
que marcasse ela a hora do dia seguinte em que ele a devia esperar com cavalgaduras
para a fuga. Em recurso extremo, prometia assaltar com homens armados o mosteiro,
ou incendiá-lo para se abrirem as portas. Este programa era o mais parecido
com o espírito do acadêmico. Em vivo fogo ardia aquela pobre cabeça! Fechada
a carta, começou a passear em torcicolos, como se obedecesse a desencontrados
impulsos. Encravara as unhas na cabeça, e arrancava os cabelos. Investia como
cego contra as paredes, e sentava-se um momento para erguer-se de mais furioso
ímpeto. Maquinalmente aferrava das pistolas, e sacudia os braços vertiginosos.
Abria a carta para relê-la, e estava a ponto de rasgá-la, cuidando que iria
tarde, ou não lhe chegaria às mãos. Neste conflito de contrários projetos,
entrou Mariana, e muito alucinado devia de estar Simão para lhe não ver as
lágrimas.

O que tu sofrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes
por esse moço é gratidão ao homem que salvou a vida de teu pai, que rara virtude
a tua! Se o amas, se por lhe dar alívio às dores tu mesma lhe desempeces o
caminho por onde te ele há de fugir para sempre, que nome darei ao teu heroísmo!
Que anjo te fadou o coração para a santidade desse obscuro martírio?!

– Estou pronta, disse Mariana.

– Aqui tem a carta, minha boa amiga. Faça muito por não vir
sem resposta – disse Simão, dando-lhe com a carta um embrulho de dinheiro.

– E o dinheiro também é para a senhora? – disse ela.

– Não, é para si, Mariana: compre um anel.

Mariana tomou a carta, e voltou rapidamente as costas para
que Simão não lhe visse o gesto de despeito senão desprezo.

O acadêmico não ousou insistir, vendo-a apressar-se na descida
para o quinteiro, onde o ferrador enfreava a égua.

– Não lhe chegues muito com a vara – disse João da Cruz a
Mariana, que, de um pulo, se assentou no albardão, coberto de uma colcha escarlate.
– Tu vais amarela como cidra, moça! – exclamou ele reparando na palidez da
filha – Tu. que tens?

– Nada; que hei de eu ter?! dê-me cá a vara, meu pai.

A égua partiu a galope, e o ferrador, no meio da estrada,
a rever-se na filha e na égua, dizia em solilóquio, que Simão ouvira:

– Vales tu mais, rapariga, que quantas fidalgas tem Viseu!
Pela mais pintada não dava eu a minha égua; e, se cá viesse o Miramolim de
Marrocas pedir-me a filha, os diabos me levem se eu lha dava! Isto é que são
mulheres, e o mais é uma história!

CAPÍTULO IX

Apeou Mariana defronte do mosteiro, e foi à portaria chamar
a sua amiga Brito.

– Que boa moça! – disse o padre capelão, que estava no raro
lateral da porta, praticando com a prioresa, acerca da salvação das almas,
e de umas coretas de vinho do Pinhão que ele recebera naquele dia, e do qual
já tinha engarrafado um almude para tonizar o estômago da prelada.

– Que boa moça! – tornou ele, com um olho nela e outro no
raro, onde a ciumosa prioresa se estava remordendo.

– Deixe lá a moça, e diga quando há de ir a servente buscar
o vinho.

– Quando quiser, senhora prioresa. Mas repare bem nos olhos,
no feitio, naquele todo da rapariga!…

– Pois repare o senhor padre João – replicou a freira – que
eu tenho mais que fazer.

E retirou-se com o coração mal-ferido, e o queixo superior
escorrendo lágrimas… de simonte,

– Donde é vossemecê? – disse brandamente o padre capelão.

– Sou da aldeia – respondeu Mariana.

– Isso vejo eu… Mas de que aldeia é?

– Não me confesso agora.

– Mas não faria mal se se confessasse a mim, menina, que sou
padre…

– Bem vejo.

– Que mal gênio tem!…

– É isto que vê.

– Quem procura cá no convento?

– Já disse lá para dentro quem procuro.

– Mariana, és tu?! Anda cá!

A moça fez uma cortesia de cabeça ao padre capelão, e foi
ao locutório donde vinha aquela voz.

– Eu queria falar contigo em particular, Joaquina – disse
Mariana.

– Eu vou ver se arranjo uma grade: espera aí..

O padre tinha saído do pátio, e Mariana, enquanto esperava,
examinou, uma a uma, as janelas do mosteiro. Numa das janelas, através das
reixas de ferro, viu ela uma senhora sem hábito.

– Será aquela? – perguntou Mariana ao seu coração, que palpitava
– Se eu fosse amada como ela!…

– Sobe aquelas escadinhas, Mariana, e entra na primeira porta
do corredor, que eu lá vou – disse Joaquina.

Mariana deu alguns passos, olhou novamente para a janela onde
vira a senhora sem hábito, e repetiu ainda:

– Se eu fosse amada como ela!…

Mal entrou na grade, disse à sua amiga:

– Olha lá, Joaquina, quem é uma menina muito branca, alva
como leite, que estava ali agora numa janela?

– Seria alguma noviça, que há duas cá muito lindas.

– Mas ela não tinha vestimenta nenhuma de freira.

– Ah! já sei; é a D. Teresinha de Albuquerque.

– Então não me enganei – disse Mariana, pensativa.

– Pois tu conhece-la?

– Não; mas por amor dela é que eu cá vim falar contigo.

– Então que é?! Que tens tu com a fidalga?

– Eu cá, por mim nada; mas com uma pessoa que lhe quer muito.

– O filho do corregedor?

– Esse mesmo.

– Mas esse está em Coimbra,

– Não sei se está, nem se não. Faz-me tu um favor?

– Se eu puder…

– Podes… Eu queria falar com ela.

– Ó dianho! Isso não sei se poderá ser, porque a trazem as
freiras debaixo de olho, e ela vai-se embora amanhã.

– Para onde vai?

– Vai para outro convento, não sei se de Lisboa, se do Porto.
Os baús já estão preparados, e ela está morta por sair. E tu que lhe queres?

– Não to posso dizer, porque não sei… Queria dar-lhe um
papel… Faze com que ela venha cá, que eu dou-te chita para um vestido.

– Como tu estás rica, Mariana!… – atalhou, rindo, Joaquina.
– Eu não quero a tua chita, rapariga. Se eu puder dizer-lhe que venha, sem
que alguém me ouça, digo-lho. E agora é boa maré, porque tocou ao coro…
Deixa-me ir lá…

Joaquina saiu-se bem da difícil comissão. Teresa estava sozinha,
absorvida a cismar, com os olhos fitos no ponto onde vira Mariana.

– A menina faz favor de vir comigo depressinha? – disse-lhe
a criada.

Seguiu-a Teresa, e entrou na grade, que Joaquina fechou, dizendo:

– O mais breve que possa bata por dentro para eu lhe abrir
a porta. Se perguntarem por vossa excelência, digo-lhe que a menina está no
mirante.

A voz de Mariana tremia, quando D. Teresa lhe perguntou quem
era.

– Sou uma portadora desta carta para vossa excelência.

– É de Simão! – exclamou Teresa.

– Sim, minha senhora.

A reclusa leu convulsiva a carta duas vezes, e disse:

– Eu não posso escrever-lhe, que me roubaram o meu tinteiro,
e ninguém me empresta um. Diga-lhe que vou de madrugada para o convento de
Monchique, do Porto. Que se não aflija, porque eu sou sempre a mesma. Que
não venha cá, porque isso seria inútil, e muito perigoso. Que vá ver-me ao
Porto, que hei de arranjar modo de lhe falar. Diga-lhe isto, sim?

– Sim, minha senhora.

– Não se esqueça, não? Vir cá, por modo nenhum. É impossível
fugir, e vou muito acompanhada. Vai o primo Baltasar e as minhas primas, e
meu pai e não sei quantos criados de bagagem e das liteiras. Tirar-me no caminho
é uma locura com resultados funestos. Diga-lhe tudo, sim?

Joaquina disse fora da porta:

– Menina, olhe que a prioresa anda lá por dentro a procurá-la.

– Adeus, adeus – disse Teresa, sobressaltada. – Tome lá esta
lembrança como prova de minha gratidão.

E tirou do dedo um anel de ouro, que ofereceu a Mariana.

– Não aceito minha senhora.

– Por que não aceita?

– Porque não fiz algum favor a vossa excelência. A receber
alguma paga há de ser de quem cá me mandou. Fique com Deus, minha senhora,
e oxalá que seja feliz.

Saiu Teresa, e Joaquina entrou na grade.

– Já te vais embora, Mariana?

– Vou, que é pressa; um dia virei conversar contigo muito.
Adeus, Joaquina.

– Pois não me contas o que isto é? O amor da fidalga está
perto daqui? Conta, que eu não digo nada, rapariga!…

– Outra vez, outra vez; obrigada, Joaquina?

Mariana, durante a veloz caminhada, foi repetindo o recado
da fidalga; e, se alguma vez se distraia deste exercício de memória, era para
pensar nas feições da amada do seu hóspede, e dizer, como em segredo, ao seu
coração: “Não lhe bastava ser fidalga e rica: é, além de tudo, linda
como nunca vi outra!” E o coração da pobre moça, avergando ao que a consciência
lhe ia dizendo, chorava.

Simão, de uma fresta do postigo do seu quarto, espreitava
ao longo do caminho, ou escutava a estropeada da cavalgadura.

Ao descobrir Mariana, desceu ao quinteiro, desprezando cautelas
e esquecido já do ferimento, cuja crise de perigo piorara naquele dia, que
era o oitavo depois do tiro.

A filha do ferrador deu o recado, e sem alteração de palavra.
Simão escutara-a placidamente até ao ponto em que lhe ela disse que o primo
Baltasar a acompanhava ao Porto.

– O primo Baltasar!… – murmurou ele com um sorriso sinistro
– Sempre este primo Baltasar cavando a sua sepultura e a minha!…

– A sua, fidalgo! – exclamou João da Cruz. – Morra ele, que
o levem trinta milhões de diabos! Mas vossa senhoria há de viver enquanto
eu for João. Deixe-a ir para o Porto, que não tem perigo no convento. De hora
a hora Deus melhora. O senhor doutor vai para Coimbra, está por lá algum tempo,
e às duas por três, quando o velho mal se precatar, a fidalguinha engrampa-o,
e é sua tão certo como esta luz que nos alumia.

– Eu hei de vê-la antes de partir para Coimbra – disse Simão.

– Olhe que ela recomendou-me muito que não fosse lá – acudiu
Mariana.

– Por causa do primo? – tornou o acadêmico ironicamente.

– Acho que sim, e por talvez não servir de nada lá ir vossa
senhoria – respondeu timidamente a moça.

– Lá, se quer, – brandou mestre João – a mulher, vai-se-lhe
tirar ao caminho. Não tem mais que dizer.

– Meu pai, não meta este senhor em maiores trabalhos? – disse
Mariana.

– Não tem dúvida menina – atalhou Simão – eu é que não quero
meter ninguém em trabalhos. Com a minha desgraça, por maior que ela seja,
hei de eu lutar sozinho.

João da Cruz, assumiu uma gravidade de que a sua figura raras
vezes se enobrecia, disse:

– Senhor Simão, vossa senhoria não sabe nada do mundo. Não
meta sozinho a cabeça aos trabalhos, que eles, como o outro que diz, quando
pegam de ensarrilhar um homem, não lhe deixam tomar fôlego. Eu sou um rústico;
mas, a bem dizer, estou naquela daquele que dizia que o mal dos seus burrinhos
o fizera alveitar. Paixões… que as leve o diabo, e mais quem com elas engorda.
Por causa de uma mulher, ainda que ela seja filha do rei, não se há de um
homem botar a perder. Mulheres há tantas como a praga, e são como as rãs do
charco, que mergulha uma, e aparecem quatro à tona da água. Um homem rico
e fidalgo como vossa senhoria, onde quer topa uma com um palmo de cara como
se quer e um dote de encher o olho. Deixe-a ir com Deus ou com a breca, que
ela, se tiver de ser sua, não lhe há de vir dar, tanto andar para trás como
para diante: é ditado dos antigos. Olhe que isto não é medo, fidalgo. Tome
sentido, que João da Cruz sabe o que é pôr dois homens duma feita a olhar
o sete-estrelo, mas não sabe o que é medo. Se o senhor quer sair à estrada
e tirar a tal pessoa ao pai, ao primo, e a um regimento, se for necessário,
eu vou montar na égua, e daqui a três horas estou de volta com quatro homens,
que são quatro dragões.

Simão fitara os olhos chamejantes no do ferrador, e Mariana
exclamara, ajuntando as mãos sobre o seio:

– Meu pai, não lhe dê esses conselhos!…

– Cala-te aí, rapariga! – disse mestre João. – Vai tirar o
albardão à égua, amanta-a, e bota-lhe seco. Não és aqui chamada.

– Não vá aflita, senhora – disse Simão à moça, que se retirava,
amargurada. – Eu não aproveito alguns dos conselhos de seu pai. Ouço-o com
boa vontade, porque sei que quer o meu bem; mas hei de fazer o que a honra
e o coração me aconselharem.

Ao anoitecer, Simão, como estivesse sozinho, escreveu uma
longa carta, da qual extratamos os seguintes períodos:

“Considero-te perdida, Teresa. O Sol de amanhã pode
ser que eu o não veja. Tudo, em volta de mim, tem uma cor de morte. Parece
que o frio da minha sepultura me está passando o sangue e os ossos.

Não posso ser o que tu querias que eu fosse. A minha paixão
não se conforma com a desgraça. Eras a minha vida: tinha a certeza de que
as contrariedades me não privavam de ti, Só o receio de perder-te me mata.
O que me resta do passado é a coragem de ir buscar uma morte digna de mim
e de ti. Se tens força para uma agonia lenta, eu não posso com ela.

Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem
vingança é um inferno. Não hei de dar barata a vida, não. Ficarás sem mim,
Teresa; mas não haverá ai um infame que te persiga depois da minha morte.
Tenho ciúmes de todas as tuas horas. Hás de pensar com muita saudade no
teu espôoo do céu, e nunca tirarás de mim os olhos da tua alma para veres
ao pé de ti o miserável que nos matou a realidade de tantas esperanças formosas.

Tu verás esta carta quando eu já estiver num outro mundo,
esperando as orações das tuas lágrimas. As orações! Admiro-me desta faisca
de fé que me alumia nas minhas trevas.!… Tu deras-me com o amor a religião,
Teresa. Ainda creio; não se apaga a luz, que é tua; mas a providência divina
desamparou-me.

Lembra-te de mim. Vive, para explicares ao mundo, com a
tua lealdade a uma sombra, a razão por que me atraíste a um abismo. Escutarás
com glória a voz do mundo, dizendo que eras digna de mim.

A hora em que leres esta carta…”

Não o deixaram continuar as lágrimas, nem depois a presença
de Mariana. Vinha ela pôr a mesa para a ceia, e, quando desdobrava a toalha,
disse em voz abafada, como se a si mesma somente o dissesse:

– É a última vez que ponho a mesa ao senhor Simão em minha
casa!

– Por que diz isso, Mariana?

– Por que mo diz o coração.

Desta vez, o acadêmico ponderou supersticiosamente os ditames
do coração da moça, e com o silêncio meditativo deu-lhe a ela a evidência
antecipada do vaticínio.

Quando voltou com a travessa da galinha, vinha chorando a
filha de João da Cruz.

– Chora com pena de mim, Mariana? – disse Simão, enternecido.

– Choro, porque me parece que o não tornarei a ver; ou, se
o vir, será de modo que oxalá que eu morresse antes de o ver.

– Não será, talvez, assim, minha amiga…

– Vossa senhoria não me faz uma coisa que eu lhe peço?

– Veremos o que pede, menina.

– Não saia esta noite, nem amanhã,

– Pede o impossível, Mariana. Hei de sair, porque me mataria
se não saísse.

– Então perdoe a minha ousadia. Deus o tenha da sua mão.

A rapariga foi contar ao pai as intenções do acadêmico. Acudiu
logo mestre João combatendo a idéia da saída, com encarecer os perigos do
ferimento. Depois, como não conseguisse dissuadi-lo, resolveu acompanhá-lo.
Simão agradeceu a companhia, mas rejeitou-a com decisão. O ferrador não cedia
do propósito, e estava já preparando a clavina, e arraçoando com medida dobrada
a égua – para o que desse e viesse – dizia ele, quando o estudante lhe disse
que, melhor avisado, resolvera não ir a Viseu, e seguir Teresa ao Porto, passados
os dias de convalescença. Facilmente o acreditou João da Cruz; mas Mariana,
submissa sempre ao que o seu coração lhe bacorejava, duvidou da mudança, e
disse ao pai que vigiasse o fidalgo.

As onze horas da noite, ergueu-se o acadêmico, e escutou o
movimento interior da casa: não ouviu o mais ligeiro ruído, a não ser o rangido
da égua na manjedoura. Escorvou de pólvora nova as duas pistolas. Escreveu
um bilhete sobrescritado a João da Cruz, e ajuntou-o à carta que escrevera
a Teresa. Abriu as portas da janela do seu quarto, e passou dali para a varanda
de pau, da qual o salto à estrada era sem risco. Saltou, e tinha dado alguns
passos, quando a fresta, lateral à porta da varanda, se abriu, e a voz de
Mariana lhe disse:

– Então adeus, senhor Simão. Eu fico pedindo a Nossa Senhora
que vá na sua companhia.

O acadêmico parou, e ouviu a voz intima que lhe dizia: – “O
teu anjo da guarda fala pela boca daquela mulher, que não tem mais inteligência
que a do coração alumiado pelo seu amor.”

– Dê um abraço em seu pai. Mariana – disse-lhe Simão – e adeus…
até logo, ou…

– Até ao juízo final… – atalhou ela.

– O destino há de cumprir-se… Seja o que o céu quiser.

Tinha Simão desaparecido nas trevas, quando Mariana acendeu
a lâmpada do santuário, e ajoelhou orando com o fervor das lágrimas.

Era uma hora, e estava Simão defronte do convento, contemplando
uma a uma as janelas. Em nenhuma vira da clarão de luz; só a do lampadário
do Sacramento se coava baça e pálida na vidraça duma fresta do templo. Sentou-se
nas escaleiras da igreja, e ouviu ali, imóvel as quatro horas. Das mil visões
que lhe relancearam no atribulado espírito, a que mais a miúdo se repetia
era a de Mariana suplicante, com as mãos postas; mas, ao mesmo tempo, cria
ele ouvir os gemidos de Teresa, torturada pela saudade, pedindo ao céu que
a salvasse das mãos de seus algozes. O vulto de Ta deu de Albuquerque, arrastando
a filha a um convento, não lhe afogueava a sede da vingança; mas cada vez
que lhe acudia à mente a imagem odiosa de Baltasar Coutinho instin tivamente
as mãos do acadêmico se asseguravam da posse das pistolas.

As quatro horas e um quarto, acordou a natureza toda em hinos
e aclamações ao raiar da alva. Os passarinhos trinavam na cerca do mosteiro
melodias interrompidas pelo toque solene das Ave-Marias na torre. O horizonte
passara de escarlate a alvacento. A púrpura da aurora, como labareda enorme,
desfizera-se em partículas de luz, que ondeavam no declive das montanhas,
e se distendiam nas planícies e nas várzeas, como se o anjo do Senhor, à voz
de Deus, viesse desenrolando aos olhos da criatura as maravilhas do repontar
dum dia festivo.

E nenhuma destas galas do céu e da terra enlevara os olhos
do moço poeta.!

As quatro horas e meia, ouviu Simão o tinido de liteiras,
dirigindo-se àquele ponto. Mudou de local, tomando por uma rua estreita, fronteira
ao convento.

Pararam as liteiras vazias na portaria, e logo depois chegaram
três senhoras vestidas de jornada, que deviam ser as irmãs de Baltasar, acompanhadas
de dois mochilas com as mulas à rédia. As damas foram sentar-se nos bancos
de pedra, laterais à portaria. Em seguida abriu-se a grossa porta, rangendo
nos gonzos, e as três senhoras entraram.

Momentos depois, viu Simão chegar à portaria Tadeu de Albuquerque,
encostado ao braço de Baltasar Coutinho. O velho denotava quebranto e desfalecimento
a espaços. O de Castro-d’Aíre, bem composto de figura e caprichosamente vestido
à castelhana, gesticulava com o aprumo de quem dá as suas irrefutáveis razões,
e consola tomando a riso a dor alheia.

– Nada de lamúrias, meu tio! – dizia ele. – Desgraça seria
vê-la casada! Eu prometo-lhe antes de um ano restituir-lhe curada. Um ano
de convento é um ótimo vomitório do coração. Não há nada como isso para limpar
o sarro do vício em corações de meninas criadas à discrição. Se meu tio a
obrigasse, desde menina, a uma obediência cega, tê-la-ia agora submissa, e
ela não se julgaria autorizada a escolher marido.

– Era uma filha única, Baltasar! – dizia o velho soluçando.

– Pois por isso mesmo – replicou o sobrinho. – Se tivesse
outra, ser-lhe-ia menos sensível a perda, e menos funesta a desobediência.
Faria a sua casa na filha mais querida, embora tivesse de impetrar uma licença
régia para deserdar a primogênita. Assim, agora, não lhe vejo outro remédio
senão empregar o cautério à chaga; com emplastros é que se não faz nada.

Abriu-se novamente a portaria. e saíram as três senhoras,
e após elas Teresa.

Tadeu enxugou as lágrimas, e deu alguns passos a saudar a
filha, que não ergueu do chão os olhos.

– Teresa… – disse o velho.

– Aqui estou, senhor – respondeu a filha, sem o encarar.

– Ainda é tempo – tornou Albuquerque.

– Tempo de quê?

– Tempo de seres boa filha.

– Não me acusa a consciência de o não ser.

– Ainda mais?!… Queres ir para tua casa, e esquecer o maldito
que nos faz a todos desgraçados?

– Não, meu pai. O meu destino é o convento. Esquecê-lo nem
por morte. Serei filha desobediente, mas mentirosa é que nunca.

Teresa, circunvagando os olhos, viu Baltasar, e estremeceu,
exclamando:

– Nem aqui!

– Fala comigo, prima Teresa? – disse Baltasar, risonho.

– Consigo falo! Nem aqui me deixa a sua odiosa presença?

– Sou um dos criados que minha prima leva em sua companhia.
Dois tinha eu há dias, dignos de acompanharem a minha prima, mas esses houve
aí um assassino que mos matou. A falta deles, sou eu que me ofereço.

– Dispenso-o da delicadeza – atalhou Teresa, com veemência.

– Eu é que me não dispenso de a servir, à falta dos meus dois
fiéis criados, que um celerado me matou.

– Assim devia ser – tornou ela também irônica -porque os cobardes
escondem-se nas costas dos criados, que se deixam matar.

– Ainda se não fizeram as contas finais…, minha querida
prima – redargüiu o morgado.

Este diálogo correu rapidamente, enquanto Tadeu de Albuquerque
cortejava a prioresa e outras religiosas. As quatro senhoras, seguidas de
Baltasar, tinham saído do átrio do convento, e deram de rosto em Simão Botelho,
encostado à esquina da rua fronteira.

Teresa viu-o… adivinhou-o, primeira de todas, e exclamou:

– Simão!

O filho do corregedor não se moveu.

Baltasar, espavorido do encontro, fitando os olhos nele, duvidava
ainda.

– É incrível que este infame aqui viesse! – exclamou o de
Castro-d’Aire.

Simão deu alguns passos, e disse placidamente:

In[ame… eu! e por que?

– Infame, e infame assassino! – replicou Baltasar. – Já fora
da minha presença!

– É parvo este homem! – disse o acadêmico. – Eu não discuto
com sua senhoria… Minha senhora – disse ele a Teresa, com a voz comovida
e o semblante alterado unicamente pelos afetos do coração. – Sofra com resignação,
da qual eu lhe estou dando um exemplo. Leve a sua cruz, sem amaldiçoar a violência,
e bem pode ser que a meio caminho do seu calvário a misericórdia divina lhe
redobre as forças.

– Que diz este patife?! – exclamou Tadeu.

– Vem aqui insultá-lo, meu tio! – respondeu Baltasar, – Tem
a petulância de se apresentar a sua filha a confortá-la na sua malvadez! Isto
é de mais! Olhe que eu esmago-o aqui, seu vilão.

– Vilão é o desgraçado que me ameaça, sem ousar avançar para
mim um passo – redargüiu o filho do corregedor.

– Eu não o tenho feito – exclamou enfurecidamente Baltasar
– por entender que me avilto, castigando-o na presença de criados de meu tio,
que tu podes supor meus defensores, canalha!

– Se assim é – tornou Simão, sorrindo – espero nunca me encontrar
de rosto com sua senhoria. Reputo-o tão cobarde, tão sem dignidade, que o
hei de mandar azorragar pelo primeiro mariola das esquinas.

Baltasar Coutinho lançou-se de ímpeto a Simão. Chegou a apertar-lhe
a garganta nas mãos; mas depressa perdeu o vigor dos dedos. Quando as damas
chegaram a interpor-se entre os dois, Baltasar tinha o alto do crânio aberto
por uma bala, que lhe entrara na fronte. Vacilou um segundo, e caiu desamparado
aos pés de Teresa.

Tadeu de Albuquerque gritava a altos brados. Os liteireiros
e criados rodearam Simão, que conservava o dedo no gatilho da outra pistola.
Animados uns pelos outros e pelos brados do velho, iam lançar-se ao homicida,
com risco de vida, quando um homem, com um lenço pela cara, correu da rua
fronteira, e se colocou, de bacamarte aperrado, à beira de Simão. Estacaram
os homens.

– Fuja, que a égua está ao cabo da rua – disse o ferrador
ao seu hóspede.

– Não fujo… Salve-se, e depressa – respondeu Simão.

– Fuja, que se ajunta o povo e não tardam aí soldados.

– Já lhe disse que não fujo – replicou o amante de Teresa,
com os olhos postos nela, que caíra desfalecida sobre as escadas da igreja.

– Está perdido! – tornou João da Cruz.

– Já o estava. Vá-se embora, meu amigo, por sua filha lho
rogo. Olhe que pode ser-me útil; fuja…

Abriram-se todas as portas e janelas, quando o ferrador se
lançou na fuga. até cavalgar a égua.

Um dos vizinhos do mosteiro, que, em razão do seu ofício,
primeiro saiu à rua, era o meirinho geral.

– Prendam-no, prendam-no, que é um matador! – exclamava Tadeu
de Albuquerque.

– Qual? – perguntou o meirinho geral.

– Sou eu – respondeu o filho do corregedor.

– Vossa senhoria! – disse o meirínho, espantado; e, aproximando-se,
acrescentou a meia voz: – Venha, que eu deixo-o fugir.

– Eu não fujo – tornou Simão. – Estou preso. Aqui tem a minhas
armas.

E entregou as pistolas.

Tadeu de Albuquerque, quando se recobrou do espasmo, fez transportar
a filha a uma das liteiras, e ordenou que dois criados a acompanhassem ao
Porto.

As irmãs de Baltasar seguiram o cadáver de seu irmão para
casa do tio.

CAPÍTULO X

O corregedor acorda com o grande rebuliço que ia na casa,
e perguntou à esposa, que ele supunha também desperta na câmara imediata,
que bulha era aquela. Como ninguém lhe respondesse, sacudiu freneticamente
a campainha, e ferrou ao mesmo tempo, aterrado pela hipótese de incêndio na
casa. Quando D. Rita acudiu, já ele estava enfiando os calções às avessas.

– Que estrondo é este? Quem é que grita? – exclamou Domingos
Botelho.

– Quem grita mais é o senhor – respondeu D. Rita.

– Sou eu?! Mas quem é que chora?

– São suas filhas.

– E por quê? Diga numa palavra.

– Pois sim, direi: o Simão matou um homem.

– Em Coimbra?… E fazem tanta bulha por isso!

– Não foi em Coimbra, foi em Viseu – tornou D. Ri-ta.

– A senhora manga comigo?! Pois o rapaz está em Coimbra, e
mata em Viseu! Aí está um caso para que as Ordenações do Reino não providenciaram.

– Parece que brinca, Menezes! Seu filho matou na madrugada
de hoje Baltasar Coutinho, sobrinho de Tadeu de Albuquerque.

Domingos Botelho mudou inteiramente de aspecto.

– Foi preso? – perguntou o corregedor.

– Está em casa do juiz de fora.

– Manda-me chamar o meirinho geral. Sabe como foi e por que
foi essa morte?… Mande-me chamar o meirinho, sem demora.

– Por que se não veste o senhor, e vai a casa do juiz?

– Que vou eu fazer a casa do juiz?

– Saber de seu filho como isto foi.

– Se não sou pai; sou corregedor. Não me incumbe a mim interrogá-lo.
Senhora D. Rita, eu não quero ouvir choradeiras; diga às meninas que se calem,
ou que vão chorar no quintal.

O meirinho, chamado, relatou miudamente o que sabia e disse
ter-se verificado que o amor à filha do Albuquerque fora causa daquele desastre.

Domingos Botelho, ouvia a história, disse ao meirinho:

– O juiz de fora que cumpra as leis; se ele não for rigoroso,
eu o obrigarei a sê-lo.

Ausente o meirinho, disse D. Rita Preciosa ao marido:

– Que significa esse modo de falar de seu filho?

– Significa que sou corregedor desta comarca, e que não protejo
assassinos por ciúmes, e ciúmes da filha dum homem, que eu detesto. Eu antes
queria ver mil vezes morto Simão que ligado a essa família. Escrevi-lhe muitas
vezes dizendo-lhe que o expulsava de minha casa, se alguém me desse a certeza
de que ele tinha correspondência com tal mulher. Não há de querer a senhora
que eu vá sacrificar a minha integridade a um filho rebelde, e de mais a mais
homicida.

D. Rita, algum tanto por afeto maternal e bastante por espírito
de contradição, contendeu largo espaço; mas desistiu, obrigada pela insólita
pertinácia e cólera do marido. Tão iracundo e áspero em palavras nunca o ela
vira. Quando lhe ele disse: – “Senhora, em coisas de pouca monta o seu
domínio era tolerável; em questões de honra, o seu domínio acabou: deixe-me!”
– D. Rita, quando tal ouviu, e reparou na fisionomia de Domingos Botelho,
sentiu-se mulher, e retirou-se.

A ponto foi isto de entrar o juiz de fora na sala de espera.
O corregedor foi recebê-lo, não com o semblante afetuoso de quem vai agradecer
a delicadeza e implorar indulgência, senão que, de carrancudo que ia, mais
parecera ir ele representar o juiz, por vir naquela visita dar a crer que
a balança da justiça na sua mão tremia algumas vezes.

– Começo por dar a vossa senhoria os pêsames da desgraça de
seu filho – disse o juiz de fora.

– Obrigado a vossa senhoria. Sei tudo. Está instaurado o processo?

– Não podia deixar eu de aceitar a querela.

– Se a não aceitasse, obrigá-lo-ia eu ao cumprimento dos seus
deveres.

– A situação do senhor Simão Botelho é péssima. Confessa tudo.
Diz que matou o algoz da mulher que ele amava…

– Fez muito bem – interrompeu o corregedor, soltando uma casquinada
seca e rouca.

– Perguntei-lhe se foi em defesa, e fiz-lhe sinal que respondesse
afirmativamente. Respondeu que não; que, a defender-se, o faria com a ponta
da bota, e não com um tiro. Busquei todos os modos honestos de o levar a dar
algumas respostas que denotassem alucinação ou demência; ele, porém, respondeu
e replica com tanta igualdade e presença de espírito, que é impossível supor
que o assassínio não foi perpetrado muito intencionalmente e de claro juízo.
Aqui tem vossa senhoria uma especialíssima e triste posição. Queria valer-lhe,
e não posso.

– E eu não posso nem quero, senhor doutor juiz de fora. Está
na cadeia?

– Ainda não: está em minha casa. Venho saber se vossa senhoria
determina que lhe seja preparada com decência a prisão.

– Eu não determino nada. Faça de conta que o preso Simão não
tem aqui parente algum.

– Mas, senhor doutor corregedor – disse o juiz de fora com
tristeza e compunção – vossa senhoria é pai.

– Sou um magistrado.

– É demasiada a severidade – perdoe-me a reflexão, que é amiga.
Lá está a lei para o castigar; não o castigue vossa senhoria com o seu ódio.
A desgraça quebranta o rancor de estranhos, quanto mais o afetuoso ressentimento
de um pai!

– Eu não odeio, senhor doutor; desconheço esse homem em que
me fala. Cumpra o seus deveres, que lho ordena o corregedor, e o amigo mais
tarde lhe agradecerá a delicadeza.

Saiu o juiz de fora, e foi encontrar Simão na mesma serenidade
em que o deixara.

– Venho de falar com seu pai – disse o juiz; encontrei-o mais
irado do que era natural calcular. Penso que por enquanto nada pode esperar
da influência ou patrocínio dele.

– Isto que importa? – respondeu sossegadamente Simão.

– Importa muito, senhor Botelho. Se seu pai quisesse haveria
meios de mais tarde lhe adoçar a sentença.

– Que me importa a mim a sentença? – replicou o filho do corregedor.

– Pelo que vejo, não lhe importa ao senhor ir a uma forca?

– Não, senhor.

– Que diz, senhor Simão! – redargüiu espantado o interrogador.

– Digo que o meu coração é indiferente ao destino da minha
cabeça.

– E sabe que seu pai não lhe dá mesmo proteção, a proteção
das primeiras necessidades na cadeia?

– Não sabia; que tem isso? Que importa morrer de fome, ou
morrer no patíbulo?

– Porque não escreve a sua mãe? Peça-lhe que…

– Que hei de eu pedir a minha mãe? – atalhou Simão.

– Peça-lhe que amacie a cólera de seu pai, senão o senhor
Botelho não tem quem o alimente.

– Vossa senhoria está-me julgando um miserável, a quem dá
cuidado saber onde há de almoçar hoje. Penso que não incumbem ao senhor juiz
de fora essas miudezas de estômago.

– De certo não – redargüiu, irritado, o juiz – Faça o que
quiser.

E, chamando o meirinho geral, entregou-lhe o réu, dispensando
o aguazil de pedir força para acompanhá-lo.

O carceireiro recebeu respeitosamente o preso, e alojou-o
num dos quartos melhores do cárcere; mas nu e desprovido do mínimo conforto.

Um outro preso emprestou-lhe uma cadeira de pau. Simão sentou-se,
cruzou os braços e meditou.

Pouco depois, um criado de seu pai conduziu-lhe o almoço,
dizendo-lhe que sua mãe lho mandava a ocultas, e entregando-lhe uma carta
dela, cujo conteúdo importa saber. Simão, antes de tocar no almoço, cujo cabaz
estava no pavimento, leu o seguinte:

“Desgraçado, que estás perdido!
Eu não te posso valer, porque teu pai está inexorável: As escondidas dele
é que te mando o almoço, e não sei se poderei mandar-te o jantar!
Que destino o teu! Oxalá que tivesses morrido ao nascer!
Morto me disseram que tinhas nascido; mas o teu fatal destino não quis largar
a vitima.
Para que saiste de Coimbra? A que vieste, infeliz? Agora sei que tens vivido
fora de Coimbra há quinze dias, e nunca tiveste uma palavra que dissesses
a tua mãe!. .”

Simão suspendeu a leitura, e disse entre si:

– Como se entende isto?! Pois minha mãe não mandou chamar
o João da Cruz! E não foi e]a quem me mandou o dinheiro?

– Olhe que o almoço arrefece, menino! – disse o criado.

Simão continuou a ler, sem ouvir o criado:

“Deves estar sem dinheiro, e eu desgraçadamente não
posso hoje enviar-te um pinto. Teu irmão Manuel, desde que fugiu para Espanha,
absorve-me todas as economias – Veremos, passado algum tempo, o que posso
fazer; mas receio bem que teu pai saia de Viseu, e nos leve para Vila-Real,
para abandonar de todo o teu julgamento à severidade das leis.
Meu pobre Simão! Onde estarias tu escondido quinze dias?! Hoje mesmo é que
teu pai teve carta dum lente, participando-lhe a tua falta nas aulas, e
saída para o Porto, segundo dizia o arreeiro que te acompanhou.
Não posso mais. Teu pai já espancou a Ritinha, por ela querer ir à cadeia.
Conta com o pouco valor da tua pobre mãe e ao pé dum homem enfurecido como
está teu pai” –

Simão Botelho refletiu alguns minutos, e convenceu-se de que
o dinheiro recebido era de João da Cruz. Quando saiu com o espírito desta
meditação, tinha os olhos marejados de lágrimas.

– Não chore, menino – disse o criado. – Os trabalhos são para
os homens, e Deus há de fazer tudo pelo melhor. Almoce, senhor Simão.

– Leva o almoço – disse ele.

– Pois não quer almoçar?!

– Não. Nem voltes aqui. Eu não tenho família. Não quero absolutamente
nada da casa de meus pais. Diz a minha mãe que eu estou sossegado, bem alojado,
e feliz, e orgulhoso da minha sorte. Vai-te embora já.

O criado saiu, e disse ao carcereiro que o seu infeliz amo
estava doido. D. Rita achou provável a suspeita do servo, e viu a evidência
da locura nas palavras do filho.

Quando o carcereiro voltou ao quarto de Simão, entrou acompanhado
de uma rapariga camponesa: era Mariana. A filha de João da Cruz, que até àquele
momento não apertava sequer a mão do hóspede. correu a ele com os braços abertos
e o rosto banhado de lágrimas. O carcereiro retirou-se, dizendo consigo: –
“Esta é bem mais bonita que a fidalga!”

– Não quero ver lágrimas, Mariana – disse Simão. – Aqui, se
alguém deve chorar, sou eu; mas lágrimas dignas de mim, lágrimas de gratidão
aos favores que tenho recebido de si e de seu pai. Acabo de saber que minha
mãe nunca me mandou dinheiro algum. Era de seu pai aquele dinheiro que recebi.

Mariana escondeu o rosto no avental com que enxugava o pranto.

– Seu pai teve algum perigo? – tornou Simão em voz perceptível
dela.

– Não, senhor.

– Está em casa?

– Está, e parece furioso. Queria vir aqui, mas eu não o deixei.

– Perseguiu-o alguém?

– Não, senhor.

– Diga-lhe que não se assuste, e vá depressa sossegá-lo.

– Eu não posso ir sem fazer o que ele me disse. Eu vou sair,
e volto daqui a pouco.

– Mande-me comprar uma banca, uma cadeira, e um tinteiro e
papel – disse Simão, dando-lhe dinheiro.

– Há de vir logo tudo; já cá podia estar; mas o pai disse-me
que não comprasse nada sem saber se sua família lhe mandava o necessário.

– Eu não tenho família, Mariana. Tome o dinheiro.

– Não recebo dinheiro, sem licença de meu pai. Para essas
compras trouxe eu demais. E a sua ferida como estará?

– Ainda agora me lembro que tenho uma ferida! – disse Simão,
sorrindo. – Deve estar boa, que não me dói… Soube alguma coisa de D. Teresa?

– Soube que foi para o Porto. Estavam ali a contar que o pai
a mandara meter sem sentidos na liteira, e está muito povo à porta do fidalgo.

– Está bom, Mariana… Não há desgraçado sem amparo. Vá, pense
no seu hóspede, seja o seu anjo de misericórdia.

Saltaram de novo as lágrimas dos olhos da moça; e, por entre
soluços, estas palavras:

– Tenha paciência. Não há de morrer ao desamparo. Faça de
conta que lhe apareceu hoje uma irmã.

E, dizendo, tirou das amplas algibeiras um embrulho de biscoitos
e uma garrafa de licor de canela, que depôs sobre a cadeira.

– Mau almoço é; mas não achei outra coisa pronta – disse ela,
e saiu apressada, como para poupar ao infeliz palavras de gratidão.

CAPÍTULO XI

O corregedor, nesse mesmo dia, ordenou que se preparassem
mulher e filhas para no dia imediato saírem de Viseu com tudo que pudesse
ser transportado em cavalgaduras.

Vou descrever a singela e dorida reminiscência duma senhora
daquela família, como a tenho em carta recebida há meses:

“Já lá vão cinqüenta e sete anos, e ainda me lembro,
como se fossem ontem passados, os tristes acontecimentos da minha mocidade.
Não sei como é que tenho hoje mais clara a memória das coisas da infância.
Parece-me que há trinta anos me não lembravam com tantas circunstâncias
e pormenores.
Quando a mãe disse a mim e as minhas irmãs que preparássemos os nossos baús,
rompemos todas num choro que irritou a ira do pai. As manas, como mais velhas
ou mais afeitas ao castigo, calaram-se logo. Eu, porém, que só uma vez,
e unicamente por causa de Simão, tinha sido castigada, continuei a chorar,
e tive o inocente valor de pedir ao pai que me deixasse ir ver o mano à
cadeia antes de sairmos de Viseu.
Então fui castigada pela segunda vez, e asperamente.
O criado que levou o jantar à cadeia voltou com ele, e contou-nos que Simão
já tinha alguns móveis no seu quarto, e estava jantando com exterior sossegado.
Aquela hora todos os sinos de Viseu estavam dobrando a finados por alma
de Baltasar.
Ao pé dele disse o criado que estava uma formosa rapariga de aldeia e coberta
de lágrimas. Apontando-a ao criado que a observava, disse Simão: – A minha
família é esta.
No dia seguinte, ao romper da manhã, partimos para Vila-Real. A mãe chorava
sempre; o pai, encolerizado por isso, saiu da liteira em que vinha com ela,
fez que eu passasse para o seu lugar, e fez toda a jornada na minha cavalgadura.
Logo que chegamos a Vila-Real, eram tão freqüentes as desordens em casa,
à conta do Simão, que meu pai abandonou a família, e foi sozinho para a
quinta de Montezelos. A mãe quis também abandonar-nos e ir para os primos
de Lisboa, a fim de solicitar o livramento do mano. Mas o pai. que fizera
uma espantosa mudança de gênio, quando tal soube, ameaçou minha mãe de a
obrigar judicialmente a não sair da casa de seu marido e filhas.
Escrevia a mãe a Simão, e não recebia resposta. Pensava ela que o filho
não respondia: anos depois, vimos entre os papéis de meu pai todas as cartas
que ela escrevera. Já se vê que o pai as fazia tirar no correio.
Uma senhora de Viseu escreveu à mãe, louvando-a pelo muito amor e caridade
com que ela acudia às necessidades de seu infeliz filho. Esta carta foi-lhe
entregue por um almocreve; quando não, teria o destino das outras. Espantou-se
minha mãe do conceito em que a tinha a sua amiga, e confessou-lhe que não
o tinha socorrido, porque o filho rejeitara o pouco que ela quisera fazer
em seu bem. A isto respondeu a senhora de Viseu que uma rapariga, filha
dum ferrador, estava vivendo nas vizinhanças da cadeia, e cuidava do preso
com abundância e limpeza, e a todos dizia que ali estava por ordem e à custa
da senhora D. Rita Preciosa. Acrescentava a amiga de minha mãe que algumas
vezes mandara chamar a bela moça, e lhe quisera dar alguns cozinhados mais
esquisitos para Simão, os quais ela rejeitava, dizendo que o senhor Simão
não aceitava nada.
De tempos a tempos recebíamos estas novas, sempre triste, porque, na ausência
de meu pai, conspiraram, como era de esperar, quase todas as pessoas distintas
de Viseu contra o meu desgraçado irmão.
A mãe escrevia aos seus parentes da capital implorando a graça régia para
o filho; mas aquelas cartas não saiam do correio, e iam dar todas à mão
de meu pai.
E que fazia este, entretanto, na quinta, sem família, sem glória, nem recompensa
alguma a tantas faltas? Rodeado de jornaleiros, cultivava aquele grande
montado onde ainda hoje, por entre os tojos e urzes, que voltaram com o
abandono, se podem ver relíquias de cepas plantadas por ele. A mãe escrevia-lhe
lastimando o filho; meu pai apenas respondia que a justiça não era uma brincadeira,
e que na antigüidade os próprios pais condenavam os filhos criminosos.
Teve minha mãe a afoiteza de se lhe apresentar um dia, pedindo licença para
ir a Viseu. Meu inexorável pai negou-lha, e invectivou-a furiosamente.
Passados sete meses, soubemos que Simão tinha sido condenado a morrer na
forca, levantada no local onde fizera a morte. Fecharam-se as janelas por
oito dias; vestimos de luto, e minha mãe caiu doente.
Quando isto se soube em Vila-Real, todas as pessoas ilustres da terra foram
a Montezelos, a fim de obrigarem brandamente o pai a empregar o seu valimento
na salvação do filho condenado. De Lisboa vieram alguns parentes protestar
contra a infâmia, que tamanha ignomínia faria recair sobre a família, Meu
pai a todos respondia com estas palavras: – A forca não foi inventada somente
para os que não sabem o nome do seu avô. A ignominia das famílias são as
más ações. A justiça não infama senão aquele que castiga.
Tínhamos nós um tio-avô, muito velho e venerando, chamado Antônio da Veiga.
Foi este quem fez o milagre, e foi assim: Apresentou-se a meu pai, e disse-lhe:
– Guardou-me Deus a vida até aos oitenta e três anos. Poderei viver mais
dois ou três? Isto nem já é vida; mas foi-o, e honrada, e sem mancha até
agora, e já agora há de assim acabar; meus olhos não hão de ver a desonra
de sua família. Domingos Botelho, ou tu me prometes aqui de salvar teu filho
da forca, ou eu na tua presença me mato. – E, dizendo isto, apontava ao
pescoço uma navalha de barba. Meu pai teve-lhe mão do braço, e disse que
Simão não seria enforcado.
No dia seguinte, foi meu pai para o Porto, onde tinha muitos amigos na Relação,
e de lá para Lisboa.
Em principio de março de 1805, soube minha mãe, com grande prazer, que Simão
fora removido para as cadeias da Relação do Porto, vencendo os grandes obstáculos
que opuseram a essa mudança os queixosos, que eram Tadeu de Albuquerque
e as irmãs do morto.
Depois…”

Suspendemos aqui o extrato da carta para não anteciparmos
a narrativa de sucessos, que importa, em respeito à arte, atar no fio cortado.

Simão Botelho vira imperturbável chegar o dia do julgamento.
Sentou-se no banco dos homicidas sem patrono nem testemunhas de defesa. As
perguntas respondeu com o mesmo ânimo frio daquelas respostas ao interrogatório
do juízo. Obrigado a explicar a causa do crime, deu-a com toda a lealdade,
sem articular o nome de Teresa Clementina de Albuquerque. Quando o advogado
da acusação proferiu aquele nome, Simão Botelho ergueu-se de golpe, e exclamou:

– Que vem aqui fazer o nome de uma senhora a este antro de
infâmia e sangue? Que miserável acusador está ai, que não sabe, com a confissão
do réu, provar a necessidade do carrasco sem enlamear a reputação duma mulher?
A minha acusação está feita: eu a fiz. Agora a lei que fale, e cale-se o vilão
que não sabe acusar sem infamar.

O juiz impôs-lhe silêncio. Simão sentou-se, murmurando:

– Miseráveis todos!

Ouviu o réu a sentença de morte natural para sempre na forca,
arvorada no local do delito. E ao mesmo tempo saíram dentre a multidão uns
gritos dilacerantes. Simão voltou a face para as turbas, e disse:

– Ides ter um belo espetáculo, senhores! A forca é a única
festa do povo! Levai dai essa pobre mulher que chora: essa é a criatura única
para quem o meu suplício não será um passatempo,

Mariana foi transportada em braços à sua casinha, na vizinhança
da cadeia. Os robustos braços que a levam eram os de seu pai, Simão Botelho,
quando, em toda a agilidade e força dos dezoito anos, ia do tribunal ao cárcere,
ouviu algumas vozes que se alteravam deste modo:

– Quanto vai ele a padecer?

– É bem feito! Vai pagar pelos inocentes que o pai mandou
enforcar.

– Queria apanhar a morgada à força de balas!

– Não que estes fidalgos cuidam que não é mais senão matar!…

– Matasse ele um pobre. e tu verias como ele estava em casal

– Também é verdade!

– E como ele vai de cara no ar!

– Deixa ir, que não tarda quem lha faça cair ao chão!…

– Dizem que o carrasco já vem pelo caminho.

– Já chegou de noite, e trazia dois cutelos numa coifa.

– Tu viste-o?

– Não; mas disse a minha comadre que lho dissera a vizinha
do cunhado da irmã, que o carrasco está escondido numa enxovia.

– Tu hás de levar os pequenos a ver o padecente?

– Pudera não! Estes exemplos não se devem perder.

– Eu cá de mim já vi enforcar três, que me lembre, todos por
matadores.

– Por isso tu, há dois anos, não atiraste com a vida do Amaro
Lampreia a casa do diabo!…

– Assim foi; mas, se eu o não matasse, matava-me ele.

– Então de que voga o exemplo?!

– Eu sei cá de que voga? O frei Anselmo dos franciscanos é
que prega aos país que levem os filhos a verem os enforcados.

– Isso há de ser para o não esfolarem a ele, quando ele nos
esfola com os peditórios.

Tão desassombrado ia o espírito de Simão, que algumas vezes
esvoaçou nos lábios um sorriso, desafiado pela filosofia do povo, à cerca
da forca,

Recolhido ao seu quarto. foi intimado para apelar, dentro
do prazo legal. Respondeu que não apelava, que estava contente da sua sorte,
e de boas avanças com a justiça.

Perguntou por Mariana, e o carcereiro lhe disse que a mandava
chamar. Veio João da Cruz, e a chorar se lastimou de perder a filha, porque
a via delirante a falar em forca e a pedir que a matassem primeiro. Agudíssíma
foi então a dor do acadêmico ao compreender, como se instantaneamente lhe
fulgurasse a verdade, que Mariana o amava até o extremo de morrer. Por momentos
se lhe esvaiu do coração a imagem de Teresa, se é possível assim pensá-lo.
Vê-la-ia porventura como um anjo redimido em serena contemplação do seu criador;
e veria Mariana como o símbolo da tortura, morrer a pedaços, sem instantes
de amor remunerado que lhe dessem a glória do martírio. Uma, morrendo amada;
outra, agonizando, sem ter ouvido a palavra “amor” dos lábios que
escassamente balbuciavam frias palavras de gratidão.

E chorou então aquele homem de ferro. Chorou lágrimas que
valiam bem as amarguras de Mariana.

– Cuide de sua filha, senhor Cruz! – disse Simão com fervente
súplica ao ferrador – Deixe-me a mim, que estou vigoroso e bom. Vá consolar
essa criatura, que nasceu debaixo da minha má estrela. Tire-a de Viseu; leve-a
para sua casa. Salve-a, para que neste mundo fiquem duas irmãs que me chorem.
Os favores que me tem feito, já agora dispensa-os a brevidade da minha vida.
Daqui a dias mandam-me recolher ao oratório; bom será sua filha ignore.

De volta, João da Cruz achou a filha prostada na pavimento,
ferida no rosto, chorando e rindo, demente em suma. Levou-a amarrada para
sua casa, e deixou a cargo de outra pessoa a sustentação do condenado.

Terribilíssimas foram então as horas solitárias do infeliz.
Até àquele dia, Mariana, benquista do carcereiro e protegida pela amiga de
D. Rita Preciosa, tinha franca entrada no cárcere a toda a hora do dia, e
raras horas deixava sozinho o preso. Costurava enquanto ele escrevia, ou cuidava
do amanho e limpeza do quarto. Se Simão estava no leito doente ou prostrado,
Mariana, que tivera alguns princípios de escrita, sentava-se à banca, e escrevia
cem vezes o nome de Simão, que muitas vezes as lágrimas deliam. E isto
assim, durante sete meses, sem nunca ouvir nem proferir a palavra amor. Isto
assim, depois das vigílias noturnas, ora em preces, ora em trabalho, ora no
caminho de sua casa, onde ia visitar o pai a desoras.

Nunca mais o preso, na perspectiva da forca, viu entrar aquela
doce criatura o limiar da ferrada porta, que lhe graduava o ar, medido e calculado
para que as inteiras horas da asfixia as gozasse o cordel do patíbulo. Nunca
mais!

E, quando ele evocava a imagem de Teresa, um capricho dos
olhos quebrantados lhe afigurava a visão de Mariana ao par da outra. E lacrimosas
via as duas. Saltava então do leito, fincava os dedos nos espessos ferros
da janela, e pensava em partir o crânio contra as grades.

Não o sustinha a esperança na terra, nem no céu. Raio de luz
divina jamais penetrou no seu ergástulo. O anjo da piedade encarnada naquela
criatura celestial que enlouquecera, ou voltara para o céu com o espírito
dela. O que o salvara do suicídio não era, pois, esperanças em Deus, nem nos
homens; era este pensamento: “Afinal, cobarde! Que bravura é morrer
quando não há esperança da vida?! A forca é um triunfo quando se encontra
ao cabo do caminho da honra.

CAPÍTULO XII

– E Teresa?

Perguntam a tempo, minha senhoras, e não me hei de queixar
se me argüírem de a ter esquecido e sacrificado a incidentes de menosporte.

Esquecido, não. Muito há que me reluz e voeja, alada como
o ideal querubim dos santos, nesta minha quase escuridade, aquela ave do céu,
como a pedir-me que lhe cubra de flores o restilho de sangue que ela deixou
na terra. Mais lágrimas que sangue deixaste, ó filha da amargura! Flores são
tuas lágrimas, e do céu me diz se os perfumes delas não valem mais aos pés
do teu Deus que as preces de muita devota que morre santificada pelo mundo,
e cujo cheiro de santidade não passa do olfato hipócrita ou estúpido dos mortais.

Teresa Clementina bem a viam transportada da escadaria do
templo onde caíra, à liteira que a conduziu ao Porto. Recobrando o alento,
viu defronte de si uma criada, que lhe dizia banais e frias expressões de
alívio. Se alguma criada de seu pai lhe era amiga, decerto não aquela, acintemente
escolhida pelo velho. Nem ao menos a confiança para tal expansão em gritos
restava à afligida menina! Mas um raio de piedade ferira o peito da mulher
até àquela hora desafeta a sua ama.

Perguntava-se a si mesma Teresa se aquela horrorosa situação
seria um sonho! Sentia-se de novo falecer de forças, e voltava à vida, sacudida
pela consciência da sua desgraça. Condoeu-se a criada, e incitou-a a respirar,
chorando com ela, e dizendo-lhe:

– Pode falar, menina, que ninguém nos segue.

– Ninguém?!

– As suas primas ficaram: apenas vêm os dois lacaios.

– E meu pai não?

– Não, fidalga… Pode chorar e falar à sua vontade.

– E eu vou para o Porto?

– Vamos, sim minha senhora.

– E tu viste tudo como foi, Constança?

– Desgraçadamente vi…

– Como foi? Conta-me tudo.

– A menina bem sabe que seu primo morreu.

– Morreu?! Vi-o cair quase nos meus pés; mas…

– Morreu logo, e depois quiseram os criados, à voz de seu
pai, prender o senhor Simão; mas ele com outra pistola…

– E fugiu? – atalhou Teresa, com veemente alegria.

– Afinal foi ele que se deu à prisão.

– Está preso?!

E, sufocada pelos soluços, com o rosto no lenço, não ouvia
as palavras confortadoras de Constança.

Serenado algum tanto o violento acesso de gemidos e choro,
Teresa sugeriu à criada o louco plano de a deixar fugir da primeira estalagem
onde pousassem para ela ir a Viseu dar o último adeus a Simão.

A criada a custo a despersuadiu do intento, pintando-lhe os
novos perigos que ia acumular à desgraça do seu amante, e animando-a com a
esperança de livrar-se Simão do crime, com a influência do pai, apesar da
perseguição do fidalgo.

Calaram lentamente estas razões no espírito de Teresa. Chorosa,
ansiada e a reveses desfalecida, foi Teresa vencendo a distância que a separava
de Monchique, onde chegou ao quinto dia de jornada.

A prelada já estava sabedora dos sucessos, por emissários
que se adiantaram ao moroso caminhar da liteira.

Foi Teresa recebida com brandura por sua tia, posto que as
recomendações de Tadeu de Albuquerque eram clausura rigorosa e absoluta privação
de meios de escrever a quem quer que fosse.

Ouviu a prelada da boca de sua sobrinha a fiel história dos
acontecimentos, e viu uma a uma as cartas de Simão Botelho. Choraram abraçadas;
mas a prelada, enxugadas as lágrimas de mulher ao fogo da austeridade religiosa,
falou e aconselhou como freira, e freira que ciliciava o corpo com as rosetas,
e o coração com as privações tormentosas de quarenta anos.

Teresa carecia de forças para a rebelião. Deixou a sua tia
a santa vaidade de exorcismar o demônio das paixões, e deu um sorriso ao anjo
da morte, que, de permeio ao seu amor e à esperança, lhe interpunha a asa
negra que tão de luz refulgente rebrilha às vezes em corações infelizes.

Quis Teresa escrever.

– A quem, minha filha? – perguntou a prelada.

Teresa não respondeu.

– Escrever-lhe para quê? – tornou a religiosa. – Cuidas tu,
menina, que as tuas cartas lhe chegam à mão? Que vais tu fazer senão redobrar
a ira de teu pai contra ti e contra o infeliz preso?! Se o amas, como creio,
apesar de tudo, cuida em salvá-lo. Se não ouves a minha razão, finge-te esquecida.
Se podes violentar a tua dor, dissimula, faze muito porque o teu pai chegue
a noticia de que lhe serás dócil em tudo, se ele tiver piedade do teu pobre
amigo.

Não recalcitrou Teresa. Deu outro sorriso ao anjo da morte,
e pediu-lhe que a envolvesse a ela, e ao seu amor, e à sua esperança, de todo,
na negrura de suas asas.

De mês a mês recebia a abadessa de Monchique uma carta de
seu primo. Eram estas cartas um respiradouro de vingança. Em todas dizia o
velho que o assassino iria ao patíbulo irremediavelmente. A sobrinha não via
as cartas; mas reparava nas lágrimas da compassiva freira.

A débil compleição de Teresa deperecia aceleradamente. A ciência
condenou-a a morte breve. Disto foi informado Tadeu de Albuquerque, e respondeu:
– “Que a não desejava morta; mas, se Deus a levasse, morreria mais tranqüilo,
e com a sua honra sem mancha”, Era assim imaculada a honra do fidalgo
de Viseu!… A HONRA, que dizem proceder em linha reta da virtude de Sócrates,
da virtude de Jesus Cristo, da virtude de milhões de mártires, que se deram
às garras das feras, quando predicavam a caridade e o perdão aos homens!

Quantas carícias inventou a simpatia e a piedade, todas, por
ministério das religiosas exemplares de Monchique, aporfiaram em refrigerar
o ardor que consumia rapidamente a reclusa. Inútil tudo. Teresa reconhecia
com lágrimas a compaixão, e, ao mesmo tempo, alegrava-se tirando das carícias
a certeza de que os médicos a julgavam incurável,

Alguma freira inadvertida lhe disse um dia que uma sua amiga
do convento dos Remédios de Lamengo lhe dissera que Simão tinha sido condenado
à morte.

– E eu vivo ainda!

Depois orou, e chorou; mas os costumes da sua vida em paroxismos
continuaram inalteráveis.

Perguntou à senhora que lhe dera a noticia se a sua amiga
do convento dos Remédios lhe faria a esmola de fazer chegar às mãos de Simão
uma carta. Prontificou-se a freira, depois que ouviu o parecer da prelada.
Entendeu esta religiosa que O derradeiro colóquio entre dois moribundos não
podia danificá-los na vida temporal, nem na vida eterna.

Esta é a carta que leu Simão, quinze dias depois do seu julgamento:

“Simão, meu esposo. Sei tudo… Está conosco a morte.
Olha que te escrevo sem lágrimas. A minha agonia começou há sete meses.
Deus é bom, que me poupou ao crime. Ouvi a notícia da tua próxima morte,
e então compreendi porque estou morrendo hora a hora. Aqui está o nosso
fim, Simão!… Olha as nossas esperanças! Quando tu me dizias os teus sonhos
de felicidade, e eu te dizia os meus!… Que mal fariam a Deus os nossos
inocentes desejos?!… Porque não merecemos nós o que tanta gente tem?…
Assim acabaria tudo, Simão? Não posso crê-lo! A eternidade apresenta-se-me
tenebrosa, porque a esperança era a luz que me guiava de ti para a fé. Mas
não pode findar assim o nosso destino. Vê se podes segurar o último fio
da tua vida a uma esperança qualquer. Ver-nos-emos num outro mundo, Simão?
Terei eu merecido a Deus contemplar-te? Eu rezo, suplico, mas desfaleço
na fé quando me lembram as últimas agonias do teu martírio. As minhas são
suaves; quase que as não sinto. Não deve custar a morte a quem tiver o coração
tranqüilo. O pior é a saudade, saudade daquelas esperanças que tu achavas
no meu coração, adivinhando as tuas. Não importa, se nada há além desta
vida. Ao menos, morrer. Se tu pudesses viver agora, de que te serviria?
Eu também estou condenada, e sem remédio. Segue-me, Simão! Não tenhas saudades
da vida, não tenhas, ainda que a razão te diga que podias ser feliz, se
me não tivesses encontrado no caminho por onde te levei à morte… E que
morte, meu Deus!… Aceita-a! Não te arrependas. Se houver crime, a justiça
de Deus te perdoará pelas angústias que tens de sofrer no cárcere… e nos
últimos dias, e na presença da…”

Teresa ia escrever uma palavra, quando a pena lhe caiu da
mão, e uma convulsão lhe vibrou todo o corpo por largo espaço. Não escreveu
a palavra! Mas a idéia da força parou-lhe a vida. A freira entrou na
cela a pedir-lhe a carta, porque o correio ia a partir. Teresa, indicando-lhe,
disse:

– Leia, se quiser, e feche-a, por caridade, que eu não posso.

Nos três dias seguintes Teresa não saiu do leito. A cada hora
as religiosas assistentes esperavam que ela fechasse os olhos.

– Custa muito morrer! – dizia algumas vezes a enferma.

Não faltavam piedosos discursos a divertirem-lhe o espírito
do mundo,

Teresa ouvia-os, e dizia com ânsia:

– Mas a esperança do céu, sem ele!… Que é o céu, meu Deus?

E o apostólico capelão do mosteiro não sabia dizer se os bens
do céu tinham comum com os do mundo as delícias que falsamente na terra se
chamam assim. Aquelas sutilezas espirituais que vêm com algumas espécies de
física, assim à maneira dos últimos lampejos da vital flama, tinha-as a enferma,
quando acontecia falarem-lhe as religiosas na bem-aventurança. Às vezes, se
o capelão, convidado pela lucidez de Teresa, entrava os domínios da filosofia,
tratando como tema a imortalidade da alma, a inculta senhora argumentava em
breves termos, com razões tão claras a favor da união eterna das almas, já
deste mundo esposas, que o padre ficava em dúvidas se seria herético contestar
uma cláusula não inscrita em algum dos quatro evangelhos.

Maravilhava-se já a medicina da pertinácia daquela vida. Tinha
a abadessa escrito a seu primo Tadeu, apressando-o a ir ver o anjo ao despedir-se
da terra. O velho, tocado de piedade e por ventura de amor paternal, deliberou
tirar do convento a filha, na esperança de salvá-la ainda, Uma forte razão
acrescia àquela: era a mudança do condenado para os cárceres do Porto. Deu-se
pressa, pois, o fidalgo, e chegou ao Porto a tempo que a religiosa, amiga
da outra de Lamego, entregava à doente esta carta de Simão:

“Não me fujas ainda, Teresa. Já não vejo a forca, nem
a morte. Meu pai protege-me, e a salvação é possível. Prende ao coração
os últimos fios da tua vida. Prolonga a tua agonia, enquanto te eu disser
que espero. Amanhã vou para as cadeias do Porto, e hei de ali esperar a
absolvição ou comutação da sentença. A vida é tudo. Posso amar-te no degredo.
Em toda a parte há céu, e flores, e Deus. Se viveres, um dia serás livre;
a pedra do sepulcro é que nunca se levanta, Vive, Teresa, vive! Há dias,
lembrava-me que as tuas lágrimas lavariam da minha face as nódoas do sangue
do enforcado. Esse pesadelo atroz passou. Agora neste inferno respira-se;
o esparto do carrasco já me não aperta em sonhos a garganta. Já fito os
olhos no céu, e reconheço a providência dos infelizes. Ontem, vi as nossas
estrelas, aquelas dos nossos segredos nas noites da ausência. Volvi à vida,
e tenho o coração cheio de esperanças. Não morras, filha da minha alma!”

Ia alta a noite, quando Teresa, sentada no seu leito, leu
esta carta. Chamou a criada, para ajudá-la a vestir, Mandou abrir a janela
do seu quarto, e encostou as faces às reixas de ferro. Esta janela olhava
para o mar, e o mar era nessa noite uma imensa flama de prata; e a Lua, esplendidíssima,
eclipsava o fulgor dumas estrelas que Teresa procurava no céu.

– São aquelas! – exclamou ela.

– Aquelas que, minha senhora? – disse Constança.

– As minhas estrelas!… pálidas como eu… A vida! ai! a
vida! – clamou ela, erguendo-se, e passando pela fronte as mãos cadavéricas
– Quero viver! Deixai-me viver, ó Senhor!

– Há de viver, menina! Há de viver, que Deus é piedoso! –
disse a criada – mas não tome o ar da noite. Este nevoeiro do rio faz-lhe
grande mal.

– Deixa-me, deixa-me, que tudo isto é viver… Não vejo o
céu há tanto tempo! Sinto-me ressuscitar aqui, Constança! Por que não tenho
eu respirado todas as noites este ar? Eu poderia viver alguns anos? Poderei,
minha Constança? Pede tu, pede muito à minha Virgem Santíssima! Vamos orar
ambas! Vamos, que o Simão não morre… O meu Simão vive, e quer que eu viva.
Está no Porto amanhã, e talvez já esteja…

– Quem, minha senhora?!

– Simão; o Simão vem para o Porto.

A criada julgou que a sua ama delirava, mas não a contrariou.

– Teve carta dele a fidalga? – tornou ela, cuidando que assim
lhe alimentava aquele instante de febril contentamento.

– Tive… Queres ouvir?… Eu leio…

E leu a carta, com grande pasmo de Constança, que se convenceu.

– Agora vamos rezar, sim?… Tu não és inimiga dele, não?
Olha, Constança, se eu casar com ele, tu vais para a nossa companhia. Verás
como és feliz, Queres ir, não queres?

– Sim, minha senhora, vou. Mas ele conseguirá livrar-se da
morte?

– Livra; tu verás que livra; o pai dele há de livrá-lo…
e a Virgem Santíssima é que nos há de unir. Mas, se eu morro… se eu morro,
meu Deus!

E, com as mãos convulsivamente enlaçadas sobre o seio, Teresa
arquejava em pranto.

– Se eu não tenho já forças!… Todos dizem que eu morro,
e o médico já nem me receita!… Então melhor me fora ter acabado antes desta
hora! Morrer com esperanças, ó Mãe de Deus!

E ajoelhou ante o retábulo devoto que trouxera do seu quarto
de Viseu, ao qual sua mãe e avó já tinham orado, e em cujo rosto compassivo
os olhos das duas senhoras moribundas tinham apagado os seus últimos raios
de luz.

CAPÍTULO XIII

Anunciara-se Tadeu de Albuquerque na portaria de Monchique,
ao dia seguinte dos anteriores sucessos.

Sua prima, primeira senhora que lhe saiu ao locutório, vinha
enxugando as lágrimas de alegria.

– Não cuide que eu choro de aflita, meu primo – disse ela.
– O nosso anjo, se Deus quiser, pode salvar-se. Logo de manhã a vi passear
por seu pé nos dormitórios. Que diferença de semblante ela tem hoje! Isto,
meu primo, é milagre de duas santas que temos inteiras na claustura, e com
as quais algumas perfeitas criaturas desta casa se apegaram. Se as melhoras
continuarem assim, temos a Teresa; o céu consente que esteja entre nós aquele
anjo mais alguns anos…

– Muito folgo com o que me diz, minha boa prima – atalhou
o fidalgo. – A minha resolução é levá-la já para Viseu, e lá se restabelecerá
com os ares pátrios, que são muito mais sadios que os do Porto.

– É ainda cedo para tão longa e custosa jornada, meu primo.
Não vá o senhor cuidar que ela está capaz de se meter ao caminho. Lembre-se
que ainda ontem pensamos em encontrá-la hoje morta. Deixe-a estar mais alguns
meses; e depois não digo que não leve; mas, por enquanto, não consinto semelhante
imprudência.

– Maior imprudência – replicou o velho – é conservá-la no
Porto, onde, as estas horas, deve estar o malvado matador de meu sobrinho.
Talvez não saiba a prima?… Pois é verdade: o patife do corregedor saiu a
campo em defesa dele, e conseguiu que o tribunal da Relação lhe aceitasse
a apelação da sentença, passado o prazo da lei; e, não contente com isto,
fez que o filho fosse removido para as cadeias do Porto. Eu agora trabalho
para que a sentença seja confirmada, e espero consegui-lo; mas, enquanto o
assassino aqui estiver, não quero que minha filha esteja no Porto.

– O primo é pai, e eu sou apenas uma parenta – disse a abadessa
– cumpra-se a sua vontade. Quer ver a menina, não é assim?

– Quero, se é possível.

– Pois bem, enquanto eu vou chamá-la, queira entrar na primeira
grade à sua mão direita, que Teresa lá vai ter.

Avisada Teresa de que seu pai a esperava, instantaneamente
a cor sadia que alegrava as senhoras religiosas se demudou na lividez costumada.
Quis a tia, vendo-a assim, que ela não saísse do seu quarto, e encarregava-se
de espaçar a visita do pai.

– Tem de ser – disse Teresa. – Eu vou, minha tia.

O pai, ao vê-la, estremeceu e enfiou. Esperava mudança, mas
não tamanha. Pensou que a não conheceria sem o prevenirem de que ia ver sua
filha.

– Como eu te encontro, Teresa! – exclamou ele, comovido. –
Por que me não disseste há mais tempo o teu estado?

Teresa sorriu-se, e disse:

– Eu não estou tão mal como as minhas amigas imaginam.

– Terás tu forças para ir comigo para Viseu?

– Não, meu pai; não tenho mesmo forças para lhe dizer em poucas
palavras que não torno ao Viseu.

– Porque não, se a tua saúde depender disso?!…

– A minha saúde depende do contrário. Aqui viverei ou morrerei.

– Não é tanto assim, Teresa – replicou Tadeu com dissimulada
brandura. – se eu entender que estes ares são nocivos à tua saúde, hás de
ir, porque é obrigação minha conduzir e corrigir a tua má sina.

– Está corrigida, meu pai. A morte emenda todos os erros da
vida.

– Bem sei; mas eu quero-te viva, e, portanto, recobra forças
para o caminho, Logo que tiveres meio dia de jornada, verás como a saúde volta
como por milagre.

– Não vou, meu pai.

– Não vais?! – exclamou, irritado, o velho, lançando às grades
as mãos trementes de ira.

– Separam-nos esses ferros a que meu pai se encosta, e para
sempre nos separam.

– E as leis? Cuidas tu que eu não tenho direitos legítimos
para te obrigar a sair do convento? Não sabes que tens apenas dezoito anos?

– Sei que tenho dezoito anos; as leis não sei quais são, nem
me incomoda a minha ignorância. Se pode ser que mão violenta venha arrancar-me
daqui, convença-se, meu pai, de que essa mão há de encontrar um cadáver. Depois…
o que quiserem de mim. Enquanto, porém, eu puder dizer que não vou, juro-lhe
que não vou, meu pai.

– Sei o que é! – bramiu o velho. – já sabes que o assassino
está no Porto?

– Sei, sim, senhor.

– Ainda o dizes sem vergonha, nem horror de ti mesma! Ainda…

– Meu pai – interrompeu Teresa – não posso continuar a ouvi-lo,
porque me sinto mal. Dê-me licença… e vingue-se como puder. A minha glória
neste longo martírio seria uma forca levantada ao lado da do assassino.

Teresa saiu da grade, deu alguns passos na direção da sua
cela, e encostou-se esvaída à parede. Correram a ampará-la sua tia e a criada,
mas ela, afastando-as suavemente de si, murmurou:

– Não é preciso… Estou boa… Esses golpes dão vida, minha
tia.

E caminhou sozinha a passos vacilantes.

Tadeu batia à porta do mosteiro com irrisório enfurecimento
pancadas, umas após outras, com grande medo da porteira e outras madres, espantadas
do insólito despropósito.

– Que é isso, primo? – disse a prelada, com severidade.

– Quero cá fora Teresa.

– Como fora? Quem há de lançá-la fora?!

– A senhora, que não pode aqui reter uma filha contra a vontade
de seu pai.

– Isso assim é; mas tenha prudência, primo.

– Não há prudência nem meia prudência. Quero minha filha cá
fora.

– Pois ela não quer ir?

– Não, senhora.

– Então espere que por bons modos a convençamos a sair, porque
não havemos trazer-lha a rastos.

– Eu vou buscá-la, sendo preciso – redargüiu em crescente
fúria. – Abram-me estas portas, que eu a trarei!

– Estas portas não se abrem assim, meu primo, sem licença
superior. A regra do mosteiro não pode ser quebrantada para servir uma paixão
desordenada, Tranqüilize-se, senhor! Vá descansar desse frenesi, e venha noutra
hora combinar comigo o que for digno de todos nós.

– Tenho entendido! – exclamou o velho, gesticulando contra
o ralo do locutório. – Conspiram todas contra mim! Ora descansem, que eu lhes
darei uma boa lição, Fique a senhora abadessa sabendo que eu não quero que
minha filha receba mais cartas do matador, percebeu?

– Eu creio que Teresa nunca recebeu cartas de matadores, nem
suponho que as receba d’ora em diante.

– Nã0 sei se sabe, nem se não. Eu vigiarei o convento.
A criada, que está com ela, ponham-na fora, percebeu?

– Por quê? – redargüiu a prelada com enfado.

– Porque a encarreguei de me avisar de tudo, e ela nada me
tem contado.

– Se não tinha que lhe dizer, senhor!

– Nã0 me conte histórias, prima! A criada quero
vê-la sair do convento e já!

– Eu não lhe posso fazer a vontade, porque não faço injustiças.
Se vossa senhoria quiser que a sua filha tenha outra criada, mande-lha: mas
a que ela tem, logo que deixe de a servir, há muitas senhoras nesta casa que
a desejam, e ela mesma deseja aqui ficar.

– Tenho entendido – bradou ele – querem-me matar! Pois não
matam; primeiro há de o diabo dar um estouro!

Tadeu de Albuquerque saiu em corcovos do átrio do mosteiro.
Era hedionda aquela raiva que lhe contraia as faces encorreadas, revendo suor
e sangue aos olhos acovados.

Apresentou-se ao intendente da polícia, pedindo providências
para que se lhe entregasse sua filha. O intendente respondeu que ele não solicitava
competentemente tais providências. Instou para que o carcereiro da cadeia
não deixasse sair alguma carta de um assassino vindo da comarca de Viseu,
por nome Simão Botelho. O intendente disse que não podia, sem motivos concernentes
a devassas, obstar a que o preso escrevesse a quem quer que fosse.

Reduplicada a fúria, foi dali ao corregedor do Porto, com
os mesmos requerimentos, em tom arrogante. O corregedor, particular amigo
de Domingos Botelho, despediu com enfado o importuno, dizendo-lhe que a velhice
sem juízo era coisa tão de riso como de lástima. Esteve então a pique de perder-se
a cabeça de Tadeu de Albuquerque. Andava e desandava as ruas do Porto, sem
atinar com uma saída digna da sua prosápia e vingança. No dia seguinte, bateu
à porta de alguns desembargadores, e achava-os mais inclinados à demência
que à justiça a respeito de Simão Botelho. Um deles, amigo de infância de
D. Rita Preciosa, e implorado por ela, falou assim ao sanhudo fidalgo:

– Em pouco está o ser homicida, senhor Albuquerque. Quantas
mortes teria vossa senhoria hoje feito se alguns adversários se opusessem
à sua cólera? Esse infeliz moço, contra quem o senhor solicita desvairadas
violências, conserva a honra na altura da sua imensa desgraça. Abandonou-o
o pai, deixando-o condenar à forca; e ele da sua extrema degradação nunca
fez sair um grito suplicante de misericórdia, Um estranho lhe esmolou a subsistência
de oito meses de cárcere, e ele aceitou a esmola, que era honra para si e
para quem lha dava. Hoje, fui eu ver esse desgraçado filho de uma senhora
que eu conheci no paço, sentada ao lado dos reis. Achei-o vestido de baetão
e pano pedrês. Perguntei-lhe se assim estava desprovido de fato. Respondeu-me
que se vestira à proporção dos seus meios, e que devia à caridade dum ferrador
aquelas calças e jaqueta. Repliquei-lhe eu que escrevesse a seu pai para o
vestir decentemente. Disse-me que não pedia nada a quem consentiu que os delitos
do seu coração e da sua dignidade e do pundonor do seu nome fossem expiados
num patíbulo. Há grandeza neste homem de dezoito anos, senhor Albuquerque.
Se vossa senhoria tivesse consentido que sua filha amasse Simão Botelho Castelo-Branco,
teria poupado a vida ao homem sem honra que se lhe atravessou com insultos
e ofensas corporais de tal afronta, que desonrado ficaria Simão se as não
repelisse como homem de alma e brios. Se vossa senhoria se não tivesse oposto
às honestíssimas e inocentes afeições de sua filha, a justiça não teria mandado
arvorar uma forca, nem a vida de seu sobrinho teria sido imolada aos seus
caprichos de mau pai. E, se sua filha casasse com o filho do corregedor de
Viseu, pensa acaso vossa senhoria que os seus brasões sofriam desdouro? Não
sei de que século data a nobreza do senhor Tadeu de Albuquerque, mas do brasão
de D. Rita Teresa Margarida Preciosa Caldeirão Castelo-Branco posso dar-lhe
informações sobre as páginas das mais verídicas e ilustres genealogias do
reino. Par parte de seu pai, Simão Botelho tem do melhor sangue de Trás-os-Montes,
e não se temerá de entrar em competências com o dos Albuquerques de Viseu,
que não é de certo o dos Albuquerques terríveis de que reza Luís de
Camões…

Ofendido até ao âmago pela derradeira ironia, Tadeu ergueu-se
de ímpeto, tomou o chapéu e a enorme bengala de castão de ouro e fez a cortesia
de despedida.

– São amargas as verdades, não é assim? – disse-lhe, sorrindo,
o desembargador Mourão Mosqueira,

– Vossa excelência lá sabe o que diz, e eu cá sei no que hei
de ficar – respondeu com tom irônico o fidalgo, alanceado na sua honra e na
dos seus quinze avós.

O desembargador retorquiu:

– Fique no que quiser; mas vá na certeza, se isso lhe serve
de alguma coisa, que Simão Botelho não vai à forca.

– Veremos… – resmoneou o velho.

São treze dias decorridos do mês de Março de 1805.

Está Simão num quarto de malta das cadeias da Relação. Um
catre de tábuas, um colchão de embarque, uma banca e cadeira de ninho e um
pequeno pacote de roupa, colocado no lugar do travesseiro, são a sua mobília.
Sobre a mesa tem um caixote de pau preto, que contém as cartas de Teresa,
ramilhetes secos, os seus manuscritos do cárcere de Viseu e um avental de
Mariana, o último com que ela, no dia do julgamento, enxugara as lágrimas
e arrancara de si no primeiro instante de demência.

Simão relê as cartas de Teresa, abre os envoltórios de papel
que encerram as flores ressequidas, contempla o avental de linho, procurando
esvaídos vestígios das lágrimas. Depois, encosta a face e o peito aos ferros
da sua janela, e avista os horizontes boleados pela serras de Valongo e Gralheira,
e cortados pelas ribas pitorescas de Gaia, do Candal, de Oliveira e do mosteiro
da Serra-do-Pilar. ~ um dia lindo, Refletem-se do azul do céu os mil matizes
da primavera. Tem aromas o ar, e a viração fugitiva dos jardins derrama no
éter as aromas que roubou aos canteiros, Aquela indefinida alegria, que parece
reluzir nas legiões de espírito que se geram ao sol de março, rejubila a natureza
que, toda pompa de luz e flores, se está namorando do calor que a vai fecundando.

Dia de amor e de esperanças era aquele que o Senhor mandava
à choça escravada na garganta da serra, ao palácio esplendoroso que reverberava
ao Sol os seus espiráculos, ao opulento que passeava as ruas moles equipagens,
bafejado pelo respiro acre das sarças, e ao mendigo que desentorpecia os membros
encostado às colunas dos templos.

E Simão Botelho, fugindo a claridade da luz e o voejar das
aves, meditando, chorava e escrevia assim as suas meditações:

“O pão do trabalho de cada dia e o teu seio para repousar
uma hora a face, pura de manchas: não pedi mais ao céu.

Achei-me homem aos dezesseis anos. Vi a virtude à luz do
teu amor. Cuidei que era santa a paixão que. absorvia todas as outras, ou
as depurava com o seu fogo sagrado.

Nunca os meus pensamentos foram denegridos por um desejo
que eu não possa confessar alto diante de todo o mundo. Diz tu, Teresa,
se os meus lábios profanaram a pureza de teus ouvidos. Pergunta a Deus quando
quis eu fazer do meu amor o teu opróbrio.

Nunca, Teresa! Nunca, 6 mundo que me condenas!

Se teu pai quisesse que eu me arrastasse a seus pés para
te merecer, beijar-lhos-ia. Se tu me mandasses morrer para te não privar
de ser feliz com outro homem, morreria, Teresa!

Mas tu eras sozinha e infeliz, e eu cuidei que o teu algoz
não devia sobreviver-te. Eis-me aqui homicida, e sem remorsos. A insânia
do crime aturde a consciência; não a minha, que se não temia das escadas
da forca, nos dias em que o meu despertar era sempre o estrebuxamento da
sufocação.

Eu esperava a cada hora o chamamento para o oratório, e
dizia comigo: falarei a Jesus Cristo.

Sem pavor, premeditava nas setenta horas dessa agonia moral,
e antevia consolações que o crime não ousa esperar sem injúria da justiça
de Deus.

Mas chorava por ti, Teresa! O travor do meu cálix tinha
sobre a amargura as mil amarguras das tuas lágrimas.

Gemias aos meus ouvidos, mártir! Ver-me-ias sacudindo nas
convulsões da morte, em teus delírios. A mesma morte tem horror da suprema
desgraça. Tarde morrerias, A minha imagem, em vez de te acenar com a palma
de martírios, te seria um fantasma levando das tábuas dum cadafalso.

Que morte a tua, ó minha santa amiga!”

E prosseguiu até ao momento em que João da Cruz, com ordem
do intendente geral da polícia, entrou no quarto.

– Aqui! – exclamou Simão, abraçando-o. – E Mariana? Deixou-a
sozinha?! Morta, talvez!

– Nem sozinha, nem morta, fidalgo! O diabo nem sempre está
atrás da porta… Mariana voltou ao seu juízo.

– Fala verdade, senhor João?

– Pudera mentir!… Aquilo foi coisa de bruxaria, enquanto
a mim… Sangrias, sedenhos, água fria na cabeça, e exorcismos do missionário,
não lhe digo nada, a rapariga está escorreita, e, assim que tiver um todo-nada
de forças, bota-se ao caminho.

– Bendito seja Deus! – exclamou Simão.

– Amém – acrescentou o ferrador. – Então que arranjo
é este de casa? Que breca de tarimba é esta?! Quer-se aqui uma cama de gente,
e alguma coisa em que um cristão se possa sentar,

– Isto assim está excelente.

– Bem vejo… E de barriga? Como vamos nós de trincadeira?

– Ainda tenho dinheiro, meu amigo.

– Há de ter muito, não tem dúvida; mas eu tenho mais, e vossa
senhoria tem ordem franca. Veja lá esse papel.

Simão leu uma carta de D. Rita Preciosa, escrita ao ferrador,
em que o autorizava a socorrer seu filho com as necessárias despesas, prontificando-se
a pagar todas as ordens que lhe fossem apresentadas com a sua assinatura.

– É justo – disse Simão, restituindo a carta – porque eu devo
ter uma legitima.

– Então já vê que não tem mais do que pedir por boca. Eu vou
comprar-lhe arranjos…

– Abra-me o seu nobre coração para outro serviço mais valioso
– atalhou o preso.

– Diga lá, fidalgo.

Simão pediu-lhe a entrega de uma carta em Monchique a Teresa
de Albuquerque.

– O berzabum parece-me que as arma! – disse o ferrador. –
Venha de lá a carta. O pai dela está cá. Já sabia?

– Não.

– Pois está; e, se o diabo o traz à minha beira, não sei se
lhe darei com a cabeça numa, já me lembrou de o esperar no caminho e pendurá-lo
pelo gasnete no galho dum sobreiro. . . A carta tem resposta?

– Se lha derem, meu bom amigo.

Chegou o ferrador a Monchique, a tempo que um oficial da justiça,
dois médicos e Tadeu de Albuquerque entravam no pátio do convento.

Falou o azuazíl à prelada, exigindo em nome do juiz de fora
que dois médicos entrassem no convento a examinar a doente D. Teresa Clementina
de Albuquerque, a requerimento de seu pai.

Perguntou a prelada aos médicos se eles tinham a necessária
licença eclesiástica para entrarem em Monchique. À resposta negativa redargüiu
a abadessa que as portas do convento não se abriam. Disseram os médicos de
Tadeu de Albuquerque que era aquele o estilo dos mosteiros, e não houve que
redargüir à rigorosa prelada.

Saíram, e o ferrador só então refletiu no modo de entregar
a carta. A primeira idéia pareceu-lhe a melhor. Chegou ao ralo, e disse:

– Ó senhora freira!

– Que quer vossemecê? – disse a prelada.

– A senhora faz favor de dizer à senhora D. Teresinha de Viseu,
que está aqui o pai daquela rapariga da aldeia que ela sabe?

– E quem é vossemecê?

– Sou o pai da tal rapariga que ela sabe.

– Já sei! – exclamou de dentro a voz de Teresa, correndo ao
locutório.

A prelada retirou-se a um lado, e disse:

– Vê lá o que fazes, minha filha…

– A sua filha escreveu-me? – disse Teresa ao João da Cruz.

– Sim, senhora, aqui está a carta.

E depositou na roda a carta em que a abadessa reparou, e disse,
sorrindo:

– Muito engenhoso é o amor, Teresinha… Permita Deus que
as noticias da rapariga da aldeia te alegrem o coração; mas olha, filhinha,
não cuides que a tua velha tia é menos esperta que o pai da rapariga da
aldeia.

Teresa respondeu com beijos às jovialidades carinhosas da
santa senhora, e sumiu-se a ler a carta, e a responder-lhe. Entregando a resposta,
disse ela ao ferrador:

– Não vê ai sentada naquela escadinha uma pobre?

– Vejo, sim, senhora, e conheço-a. Como diabo veio para aqui
esta mulher? Cuide que depois da esfrega que lhe deu o hortelão, a pobrezinha
não tinha pernas que a cá trouxessem! A mulher pelos modos tem fibras daquela
casta!

– Fale baixo – tornou Teresa. – Pois olhe… quando trouxer
as cartas, entregue-lhas a ela, sim? Eu já a mandei à cadeia; mas não a deixaram
lá entrar.

– Bem está, e o arranjo não é mau assim. Fique com Deus, menina.

Esta boa nova alegrou Simão. A providência divina apiedara-se
dele naquele dia. O restaurar-se o juízo de Mariana e a possibilidade de corresponder-se
com Teresa eram as máximas alegrias que podiam baixar do céu ao seu cerrado
infortúnio.

Exaltara-se Simão em graças a Deus, na presença de João da
Cruz, que arrumava, no quarto, uns móveis que comprara em segunda mão, quando
este, suspendendo o trabalho, exclamou:

– Então vou-lhe dizer outra coisa, que não tinha tenção de
lhe dizer, para o apanhar de súpeto.

– Que é?

– A minha Mariana veio comigo, e ficou na estalagem porque
não se podia bulir com dores; mas amanhã ela cá está para lhe fazer a cozinha
e varrer a casa.

Simão, reconcentrando o indefinível sentimento que esta noticia
lhe causara, disse com melancólica pausa:

– É, pois, certo que a minha má estréia arrasta a sua desgraçada
filha a todos os meus abismos! Pobre anjo de caridade, que digna tu és do
céu!

– Que está o senhor ai a pregar? – interrompeu o ferrador.
– Parece que ficou a modo de tristonho com a notícia!…

– Senhor João – tornou solenemente o preso – não deixe aqui
a sua querida filha. Deixe-ma ver, traga-a consigo uma vez a esta casa; mas
não a deixe cá, porque eu não posso tolher o destino de Mariana. Como há de
ela viver no Porto, sozinha, sem conhecer ninguém, bela como ela é, e perseguida
como tem de ser?!

– Perseguida! Tó carocha! Não que ela é mesmo de se
lhe dar que a persigam!… Que vão para lá, mas que deixem as ventas em casa.
Meu amigo, as mulheres são como as pêras verdes: um homem apalpa-as, e, se
o dedo acha duro, deixa-as, e não as come. É como é. A rapariga sai à mãe.
Minha mulher, que Deus haja, quando eu lhe andava rentanto, dei-lhe um dia
um beliscão numa perna. E vai ela põe-se direita comigo, e deu-me dois cascudos
nas trombas, que ainda agora os sinto. A Mariana!… Aquilo é d’a pele de
Satanás! Pergunte o senhor, se algum dia falar com aquele fidalguinho Mendes,
de Viseu, a troçada que ele levou com as rédias da égua, só por lhe bulir
na chinela quando ela estava em cima da burra!

Simão sorriu ao rasgado penegírico da bravura da moça, e orgulhou-se
secretamente dos brandos afagos com que ela o desvelara em oito meses de quase
continuada convivência.

– E vossemecê há de privar-se da companhia de sua filha? –
insistiu o preso.

– Eu lá me arranjarei como puder. Tenho uma cunhada velha,
e levo-a para mim para me arranjar o caldo. E vossa senhoria pouco tempo aqui
estará… O senhor corregedor lá anda a tratar de o pôr na rua, e que o senhor
sai, cá para mim são favas contadas. E assim com’assim, viu dizer-lhe tudo
duma feita: a rapariga, se eu a não deixasse vir para o Porto, dava um estouro
como uma castanha. Olhe que eu não sou tolo, fidalgo. Que ela tem paixão d’alma
por vossa senhoria, isto; tão certo como eu ser João. É a sua sina; que hei
de eu fazer-lhe? Deixá-la, que pelo senhor Simão não lhe há de vir mal, ou
então já não há honra neste mundo.

Simão lançou-se aos braços do ferrador, exclamando:

– Pudesse eu ser o marido de sua filha, meu nobre amigo!

– Qual marido!… – disse o ferrador com os olhos vidrados
das primeiras lágrimas que Simão lhe vira – Eu nunca me lembrei disso, nem
ela!… Eu sei que sou um ferrador, e ela sabe que pode ser sua criada, e
mais nada, senhor Simão; mas… sabe que mais? Eu desejo que os meus amigos
sejam desgraçados como havia de ser o senhor se casasse com a pobre rapariga!
Não falemos nisto, que eu por milagre choro; mas, quando pego a chorar, sou
um chafariz… Vamos ao arranjo: a mesa deve aqui ficar; a cômoda ali; duas
cadeiras deste lado, e duas daquele. A barra acolá. O baú debaixo da cama.
A bacia e a bilha da água sobre esta coisa, que não sei como se chama. Os
lençóis e o mais bragal tem-nos lá a rapariga. Amanhã é que o quarto há de
ficar que nem uma capela. Olhe que a Mariana já me disse que comprasse duas
aquelas… Como se chamam aquelas envasilhas de pôr ramos?

– Jarras.

– E como diz, duas jarras para flores; mas eu não sei onde
se vende isso. Agora vou buscar o jantar, que a moça há de cuidar que me não
deixar sair da cadeia. Ainda lhe não disse que não me deixaram cá entrar ontem
à tarde; mas eu, como trouxe uma cartinha de sua mãe para um senhor desembargador,
fui onde a ele, e hoje de manhã já lá tinha na estalagem a ordem do senhor
intendente geral da policia. Até logo.

CAPÍTULO XIV

Um incidente agora me ocorre, não muito concertado com o seguimento
da história, mas a propósito vindo para demonstrar uma face da índole do ex~corregedor
de Viseu, já então exonerado do cargo.

Sabido é que Manuel Botelho, o primogênito. voltando a freqüentar
matemáticas em Coimbra, fugira dali para Espanha com uma dama desleal a seu
marido, estudante açoreano que cursava medicina.

Um ano demorara na Corunha Manuel Botelho com a fugitiva.
alimentando-se dos recursos que sua mãe, extremosa por ele, lhe remetia, vendendo
a pouco e pouco as suas jóias, e privando as filhas dos adornos próprios dos
anos e da qualidade.

Secaram-se estas fontes, e não restavam outras. D. Rita disse
afinal ao filho que deixara de socorrer Simão por não ter meios; e agora das
escassas economias que fazia nada podia enviar-lhe porque estava em obrigação
de pagar os alimentos de Simão à pessoa que por compaixão lhos dera em Viseu,
e lhos estava dando no Porto. Ajuntava ela, para consolação do filho, que
viesse ele para Vila-Real, e trouxesse consigo a infeliz senhora; que fosse
ele para casa, e a deixasse a ela numa estalagem até se lhe arranjar habitação;
que o ensejo era oportuno por estar na quinta de Montezelos o pai, quase divorciado
da família.

Voltou pelo Minho Manuel Botelho, e chegou com a dama ao Porto,
quinze dias depois que Simão entrara no cárcere.

Já noutro ponto deixamos dito que nunca os dois irmãos se
deram, nem estimaram; mas o infortúnio de Simão remia as culpas do gênio fatal
que o orfanara de pai e mãe, e só da irmã Rita lhe deixara uma lembrança saudosa.

Foi Manuel à cadeia, e, abrindo os braços ao irmão. teve um
glacial acolhimento.

Perguntou-lhe Manuel a história do seu desastre,

– Consta do processo – respondeu Simão.

– E tem o mano esperanças de liberdade? – replicou Manuel.

– Não penso nisso.

– Eu pouco posso oferecer-lhe, porque vou para casa forçado
pela falta de recursos; mas, se precisa de roupa, repartirei consigo da minha.

– Não preciso nada, Esmolas só as recebo daquela mulher.

Já Manuel tinha reparado em Mariana, e da beleza da moça inferira
conclusões para formar falsos juízos.

– E quem é esta menina? – tornou Manuel.

– É um anjo… Não lhe sei dizer mais nada.

Mariana sorriu-se, e disse:

– Sou uma criada do senhor Simão e de vossa senhoria.

– E cá do Porto?

– Nã0, meu senhor, seu dos arrabaldes de Viseu.

– E tem feito sempre companhia a meu mano?

Simão atalhou assim à resposta balbuciante de Mariana:

– A sua curiosidade incomoda-me, mano Manuel,

– Cuidei que não era ofensiva – replicou o outro, tomando
o chapéu. – Quer alguma coisa para a mãe?

– Nada.

Estando Manuel Botelho, na tarde desse dia, fechando as malas
para seguir jornada para Vila-Real, foi visitado pelo desembargador Mourão
Mosqueira e pelo corregedor do crime.

– Devemos à espionagem da polícia – disse o corregedor – a
novidade de estar nesta estalagem um filho do meu antigo amigo, condiscípulo
e colega Domingos Correia Botelho. Aqui vimos dar-lhe um abraço e oferecer
o nosso préstimo. Esta senhora é sua esposa? – continuou o magistrado, reparando
na açoreana.

– Não é minha esposa… – balbuciou Manuel – é…
minha irmã.

– Sua irmã… – disse Mosqueira – qual das três? Há cinco
anos que as vi em Viseu, e grande mudança fez esta senhora, que não me recordo
das suas feições absolutamente coisa nenhuma. E a senhora D. Ana Amália?

– Justamente – disse Manuel.

– Bela lhe afirmo eu que está, minha senhora; mas fez-se um
rosto muito outro do que era!…

– Vieram ver o infeliz Simão? – atalhou o corregedor.

– Sim, senhor… viemos ver meu pobre irmão.

– Foi um raio que caiu na família aquele rapaz!… -ajuntou
Mosqueira – mas pode estar na certeza que a sentença não se executa; diga
a sua mãe que mo ouviu da minha boca. O meu tribunal está preparando para
lhe minorar a pena em dez anos de degredo para a Índia, e seu pai. segundo
me disse na passagem para Vila-Real, já preparou as coisas na suplicação e
no desembargo do paço, não obstante o morto ter lá parentes poderosos nas
duas instâncias. Quiséramos absolvê-lo e restitui-lo à sua família; mas tanto
é impossível. Simão matou, e confessa soberbamente que matou. Não consente
mesmo que se diga que em defesa o fez. É um doido desgraçado com sentimentos
nobilíssimos! Chovem cartas de empenho a favor do Albuquerque. Pedem a cabeça
do pobre rapaz com uma sem-cerimônia que indigna o ânimo.

– E essa menina que foi a causa da desgraça? – perguntou Manuel.

– Isso é uma heroína! – respondeu o corregedor do crime, –
Davam-na já por morta quando Simão chegou aqui. Desde que soube das probabilidades
da comutação da pena, deu um pontapé na morte, e está salva, segundo me disse
o médico.

– Conhece-a muito bem, minha senhora? – disse o desembargador
à dama, suposta irmã de Manuel.

– Muito bem – respondeu ela, relaceando os olhos ao amante.

– Dizem que é formosíssima!

– Decerto – acudiu Manuel – é formosíssima!

– Muito bem – disse o corregedor, erguendo-se. – Leve este
abraço ao pai, e diga-lhe que o condiscípulo cá está leal e dedicado como
sempre. Eu tenho de lhe escrever brevemente.

– E outro abraço a sua virtuosa, mãe – acrescentou o desembargador.

– Vou desconfiado! – disse o Mosqueira ao colega. – Manuel
Botelho tinha, há coisa de um ano, fugido para Espanha com uma senhora casada.
Aquela mulher que vimos não é irmã dele.

– Pois, se nos mentiu, é patife, por nos obrigar a cortejar
uma concubina!… Eu me informarei… – disse o corregedor, ofendido no seu
austero pundonor.

E no próximo correio, escrevendo a Domingos Botelho, dizia
no período final “Tive o gosto de conhecer teu filho Manuel e uma de
tuas filhas; por ele te mandei um abraço, e por ela te mandaria outro, se
fosse moda ensinarem velhos a meninas bonitas como se dão os abraços nos pais”.

Estava já Manuel em casa, e cuidava em trajar uma modesta
casa para a açoreana, auxiliado por sua bondosa e indulgente mãe. Domingos
Botelho fora informado da vinda, e dissera que não queria ver o filho, avisando-o
de que era considerado desertor de cavalaria seis desde que abandonara os
estudos, onde estava com licença.

Recebeu depois a carta do corregedor do crime, e mandou imediata
e secretamente devassar se em Vila-Real estava a senhora que indicava a carta.
A espionagem deu-a como certa na estalagem, enquanto Manuel Botelho cuidava
nos adornos de uma casa. Escreveu o magistrado ao juiz de fora, e este mandou
chamar à sua presença a mulher suspeita, e ouviu dela a sua história sincera
e lacrimosamente contada. Condoeu-se o juiz, e revelou ao colega as suas averiguações,
Domingos Botelho foi a Vila-Real, e hospedou-se em casa do juiz de fora, onde
a senhora foi novamente chamada, sendo que ao mesmo tempo o general da província
lavrava ordem de prisão para o cadete desertor de cavalaria de Bragança.

A açoreana, em vez do juiz, encontrou um feio homem, de carrancuda
sambra, e aparência de intenções sinistras.

– Eu sou pai de Manuel – disse Domingos Botelho. Sei a história
da senhora. O infame é ele. Vossa senhoria é a vítima. O castigo da senhora
principiou desde o momento em que a sua consciência lhe disse que praticou
uma ação indigna. Se a consciência lho não disse ainda, ela lho dirá. Donde
é?

– Da ilha do Faial – respondeu trêmula a dama.

– Tem família?

– Tenho mãe e irmãs.

– Sua mãe aceitá-la-ia, se a senhora lhe pedisse abrigo?

– Creio que sim.

– Sabe que Manuel é um desertor, que a estas horas está preso
ou fugitivo?

– Não sabia…

– Quer isto dizer que a senhora não tem proteção de alguém…

A pobre mulher soluçava, abafada por ânsias, e debulhada em
lágrimas.

– Por que não vai para sua mãe?

– Não tenho recursos alguns – respondeu ela.

– Quer partir hoje mesmo? A porta da estalagem. daqui a pouco,
encontrará uma liteira e uma criada para acompanhá-la até ao Porto. Lá entregará
uma carta. A pessoa a quem escrevo lhe cuidará da passagem para Lisboa. Em
Lisboa outra pessoa a levará a bordo da primeira embarcação que sair para
os Açores. Estamos combinados? Aceita?

– E beijo as mãos de vossa senhoria… Uma desgraçada como
eu não podia esperar tanta caridade.

Poucas horas depois. a esposa do médico…

– Que tinha morrido de paixão e vergonha talvez! – exclama
uma leitora sensível.

– Não, minha senhora; o estudante continuava nesse ano a freqüentar
a Universidade; e, como tinha já vasta instrução em patologia, poupou-se à
morte da vergonha. que é uma morte inventada pelo visconde de A. Garrett no
Fr. Luiz de Sousa, e à morte da paixão. que é outra morte inventada
pelos namorados nas cartas despeitosas, e que não pega nos maridos a quem
o século dotou de uns longes de filosofia, filosofia grega e romana, porque
bem sabem que os filósofos da antigüidade davam por mimo as mulheres aos seus
amigos, quando os seus amigos por favor lhas não tiravam, E esta filosofia
hoje então…

Pois o médico não morreu, nem sequer desmedrou, ou levou R
significativo de preocupação do ânimo, insensível às amenidades da terapêutica.

A esposa, inquestionavelmente muito mais alquebrada e valetudinária
que seu esposo, lavada em pranto, morta de saudades, sem futuro, sem esperanças,
sem voz humana que a consolasse, entrou na liteira, e chegou ao Porto, onde
procurou o corregedor do crime para entregar-lhe uma carta do doutor Domingos
Botelho. Um período desta carta dizia assim:

“Deste-me a noticia duma filha que eu não conhecia,
nem conheço. A mãe desta senhora está no Faial, para onde ela vai. Cuida
tu, ou manda cuidar no seu transporte para Lisboa, e encarrega ali alguém
de correr com a passagem dela para os Açores no primeiro navio. A mim me
darás conta das despesas. Meu filho Manuel teve ao menos a virtude de não
matar ninguém para se constituir amante. Do modo como correm os tempos,
muito virtuoso é o rapaz que não mata o marido da mulher que ama. Vê se
consegues do general, que está ai, perdão para o rapaz, que é desertor da
cavalaria seis, e me consta que está escondido em casa dum parente. Enquanto
a Simão, creio que não é possível salvá-lo do degredo temporário… É uma
lança em África livrá-lo da forca. Em Lisboa movem-se grandes potências
contra o desgraçado, e eu estou mal visto do intendente geral por abandonar
o lugar… etc.”.

Partiu para Lisboa a açoreana, e dali para a sua terra, e
para o abrigo de sua mãe, que a julgara morta, e lhe deu anos de vida, se
não ditosa, sossegada e desiludida de quimeras.

Manuel Botelho, obtido o perdão pela preponderância do corregedor
do crime, mudou de regimento para Lisboa, e ai permaneceu até que, falecido
seu pai, pediu a baixa e voltou à província.

CAPÍTULO XV

João da Cruz, no dia 4 de agosto de 1805, sentou-se à mesa
com triste aspecto e nenhum apetite do almoço.

– Não comes, João? – disse-lhe a cunhada.

– Não passa daqui o bocado – respondeu ele, pondo o dedo nos
gorgomilos.

– Que tens tu?

– Tenho saudades da rapariga… Dava agora tudo quando tenho
para a ver aqui ao pé de mim, com aqueles olhos que pareciam ir direito aos
desgostos que um homem tem no seu interior. Mal hajam as desgraças da minha
vida, que ma fizeram perder, Deus sabe se para pouco, se para sempre!… Se
eu não tivesse dado o tiro no almocreve, não vinha a ficar em obrigação ao
corregedor, e não se me dava que o filho vivesse ou morresse…

– Mas, se tens saudades – atalhou a senhora Josefa – manda
buscar a rapariga, tem-na cá algum tempo, e torna depois para onde ao senhor
Simão.

– Isso não é de homem que põe navalha na cara, Josefa. O rapaz,
se ela lhe falta, morre de pasmo dentro daqueles ferros. Isto é veneta que
me deu hoje… Sabes que mais? Leve a breca o dinheiro! Amanhã vou ao Porto.

– Pois isso é o que deves fazer.

– Está dito. Quem cá ficar que o ganhe. Vão-se os anéis e
fiquem os dedos. Por ora, tem-se resistido a tudo com o meu braço. A rapariga,
se ficar com menos, lá se avenha. Assim o quer, assim o tenha.

Reanimou-se a fisionomia do mestre ferrador, e como que os
empeços da garganta se iam removendo à medida que planizava a sua ida ao Porto.

Acabara de almoçar, e ficara cismático, encostado à mesa do
escano.

– Ainda estás malucando?! – tornou Josefa.

– Parece coisa do demônio, mulher!… A rapariga estará doente
ou morta?

– Anjo bento da Santíssima Trindade! – exclamou a cunhada,
erguendo as mãos – que dizes tu, João?

– Estou cá por dentro negro como aquela sertã!

– Isso é flato, homem! Vai tomar ar; trabalha um poucochinho
para espaireceres.

João da Cruz passou ao coberto onde tinha o armário da ferragem
e a bigorna, e começou a atarracar cravos.

Alguns conhecidos tinham passados, palavreando com ele consoante
costumavam, e achavam-no taciturno e nada para graças.

– Que tens tu, João? – dizia um.

– Não tenho nada. Vai à tua vida e deixa-me, que não estou
para lérias.

Outro parava e dizia:

– Guarde-o Deus, senhor João.

– E a vossemecê também. Que novidade há?

– Não sei nada.

– Pois então vá com Nossa Senhora, que eu estou cá de candeias
às avessas.

O ferrador largava o martelo; sentava-se aos poucos no tronco,
e coçava a cabeça com frenesi. Depois recomeçava novamente, e tão alheado
o fazia, que estragava o cravo, ou martelava os dedos.

– Isto é coisa do diabo! – exclamou ele; e foi à cozinha procurar
a pichorra, que emborcou como qualquer elegante de paixões etéreas se aturde
com absinto. – Hei de afogar-te, coisa má, que me estás apertando a alma!
– continuou o ferrador, sacudindo os braços, e batendo o pé no soalho.

Voltou ao coberto a tempo que um viandante ia passando sobre
a sua possante mula. Envolvia-se o cavaleiro num amplo capote à moda espanhola,
sem embargo da calma que fazia. Viam-se-lhe as botas de couro cru, com esporas
amarelas afiveladas, e o chapéu derrubado sobre os olhos.

– Ora viva! – disse o passageiro.

– Viva! – respondeu mestre João, relaceando os olhos pelas
quatro patas da mula, a ver se tinha obra em que entreter o espírito – A mula
é de rópia e chibança!

– Não é má. Vossemecê é que é o senhor João da Cruz?

– Para o servir.

– Venho aqui pagar-lhe uma dívida.

– A mim? O senhor não me deve nada, que eu saiba.

– Não sou eu que devo; é meu pai, e ele que me encarregou
de lhe pagar.

– E quem é seu pai?

– Meu pai era um recoveiro de Carção, chamado Bento Machado.

Proferida metade destas palavras, o cavalheiro afastou rapidamente
as bandas do capote e desfechou um bacamarte no peito do ferrador. O ferido
recuou, exclamando:

– Mataram-me!… Mariana, não te vejo mais!…

O assassino teria dado cinqüenta passos a todo o galope da
espantada mula, quando João da Cruz, debruçado sobre o banco, arrancava o
último suspiro com a cara posta no chão, donde apontara ao peito do almocreve
dez anos antes.

Os caminheiros, que perpassaram pelo cavaleiro inadvertidamente,
ajuntaram-se em redor do cadáver. Josefa acudiu ao estrondo do tiro, e já
não ouviu as últimas palavras de seu cunhado. Quis transportá-lo para dentro
e correr a chamar cirurgião; mas um cirurgião estava no ajuntamento, e declarou
morto o homem.

– Quem o matou? – exclamavam trinta vozes a um tempo.

Nesse mesmo dia vieram justiça de Viseu lavrar auto e devassar:
nenhum indício lhes deu o fio do misterioso assassínio. O escrivão dos órfãos
inventariou os objetos encontrados, e fechou as portas quando os sinos corriam
o derradeiro dobre ao cair da lousa sobre João da Cruz.

Deus terá descontado nos instintos sanguinários do teu temperamento
a nobreza de tua alma! Pensando nas incoerências da tua índole, homem que
me explicas a providência, assombram-me as caprichosas antíteses que a mão
de Deus infunde em alentos na criatura. Dorme o teu sono infinito, se nenhum
outro tribunal te cita a responder pelas vidas que tiraste, e pelo uso que
fizeste da tua. Mas, se há estância de castigo e de misericórdia, as lágrimas
de tua filha terão sido, na presença do Juiz Supremo, os teus merecimentos.

Fez Josefa escrever a Mariana, noticiando-lhe a morte de seu
pai, mas sobrescritou a carta a Simão Botelho, para maior segurança. Estava
Mariana no quarto do preso, quando a carta lhe foi entregue.

– Não conheço a letra, Mariana… E a obreia é preta…

Mariana examinou o sobrescrito, e empalideceu.

– Eu conheço a letra – disse ela – é do Joaquim da loja. Abra,
depressa, senhor Simão… Meu pai morreria?

– Que lembrança! Pois não teve há três dias carta dele?…
E não disse que estava bom?

– Isso que tem?… Veja quem assina.

Simão buscou a assinatura, e disse:

– Josefa Maria!… É a tua tia que lhe escreve.

– Leia… leia… Que diz ela? Deixe-me ler a mim…

O preso lia mentalmente, e Mariana instou:

– Leia alto, por quem é, senhor Simão, que estou a tremer…
e vossa senhoria descora… Que é, meu Deus?

Simão deixou cair a carta, e sentou-se prostrado de ânimo.
Mariana correu a levantar a carta, e ele, tomando-lhe a mão, murmurou:

– Pobre amigo!… Choremo-lo ambos… choremo-lo, Mariana,
que o amávamos como filhos…

– Pois morreu? – bradou ela.

– Morreu… mataram-no!…

A moça expediu um grito estrídulo, e foi com o rosto contra
os ferros das grades. Simão inclinou-a para o seio, e disse-lhe com muita
ternura e veemência:

– Mariana, lembre-se que é o meu amparo. Lembre-se de que
as últimas palavras de seu pai deviam ser recomendar-lhe o desgraçado que
recebe das tuas mãos benfeitoras o pão da vida. Mariana, minha querida irmã,
vença a dor, que pode matá-la, e vença-a por amor de mim. Ouve-me, amiga da
minha alma?

Mariana exclamou:

– Deixe-me chorar, por caridade!… Ai! meu Deus, se eu torno
a endoidecer!

– Que seria de mim! – A quem deixaria Mariana o seu nobre
coração para me suavizar este martírio? Quem me levaria ao desterro uma palavra
amiga que me animasse a crer em Deus? Não há de enlouquecer, Mariana, porque
eu sei que me estima, que me ama, e que afrontará com coragem a maior desgraça
que ainda pode sugerir-me o inferno! Chore, minha irmã, chore: mas veja-me
através das suas lágrimas!

CAPÍTULO XVI

Mariana, decorridos dias, foi a Viseu recolher a herança paterna
Em proporção com o seu nascimento, bem dotada a deixara o laborioso ferrador.
Afora os campos, cujo rendimento bastaria para a sustentação dela, Mariana
levantou a laje conhecida da lareira e achou os quatrocentos mil réis com
que João da Cruz contava para alimentar as regalias de sua decrepitude inerte.
Vendeu Mariana as terras, e deixou a casa a sua tia, que nascera nela, e onde
seu pai casara.

Liquidada a herança, tornou para o Porto, e depositou o seu
cabedal nas mãos de Simão Botelho, dizendo que receava ser roubada na casinha
em que vivia, fronteira à Relação, na Rua de S. Bento.

– Por que vendeu as suas terras, Mariana? – perguntou o preso.

– Vendi-as, porque não faço tenção de lá voltar.

– Não faz?… Para onde há de ir, Mariana, indo eu degredado?
Fica no Porto?

– Não, senhor, não fico – balbuciou ela como admirada desta
pergunta, à qual o seu coração julgava ter respondido de muito.

– Pois não?!

– Vou para o degredo, se vossa senhoria me quiser na sua companhia.

Fingindo-se surpreendido, Simão seria ridículo aos seus próprios
olhos.

– Esperava essa resposta, Mariana, e sabia que não me dava
outra. Mas sabe o que é o degredo, minha amiga?

– Tenho ouvido dizer muitas vezes o que é, senhor Simão…
É uma terra mais quente que a nossa; mas também há lá pão, e vive-se…

– E morre-se abrasado ao sol doentio daquele céu morre-se
de saudades da pátria, morre-se muitas vezes dos maus tratos dos governadores
das galés, que têm um condenado na conta de fera.

– Não há de ser tanto assim. Eu tenho perguntado muito por
isso à mulher dum preso, que cumpriu dez anos de sentença na Índia, e viveu
muito bem em uma terra chamada Solor, onde teve uma tenda; e, se não fossem
as saudades, diz ela que não vinha, porque lhe corria melhor por lá a vida
que por cá. Eu, se for por vontade do Senhor Simão, vou pôr uma lojinha também.
Verá como eu amanho a vida. Afeita ao calor estou eu; vossa senhoria não está;
mas não há de ter precisão, se Deus quiser, de andar ao tempo.

– E suponha, Mariana, que eu morro apenas chegar ao degredo?

– Não falemos nisso, senhor Simão…

– Falemos, minha amiga, porque eu hei de sentir à hora da
morte, a pesar-me na alma, a responsabilidade do seu destino… Seu eu morrer?

– Se o senhor morrer, eu saberei morrer também.

– Ninguém morre quando quer, Mariana…

– Oh! se morre!… E vive também quando quer… Não mo disse
já a senhora D. Teresa?

– Que lhe disse ela?

– Que estava a passar quando vossa senhoria chegou ao Porto,
e que a sua chegada lhe dera vida. Pois há muita gente assim, senhor Simão…
E mais a fidalga é fraquinha, e eu sou mulher do campo, vezada a todos os
trabalhos; e, se fosse preciso meter uma lanceta no braço e deixar correr
o sangue até morrer, fazia-o como quem o diz.

– Ouça-me, Mariana que espera de mim?

– Que hei de eu esperar!… Por que me diz isso o senhor Simão?

– Os sacrifícios que Mariana tem feito e quer fazer por mim
só podiam ter uma paga, embora mos não faça esperando recompensa. Abre-me
o seu coração, Mariana?

– Que quer que eu lhe diga?

– Conhece a minha vida tão bem como eu, não é verdade?

– Conheço. E que tem isso?

– Sabe que eu estou ligado pela vida e pela morte àquela desgraçada
senhora?

– E dai? Quem lhe diz menos disso?!

– Os sentimentos do coração só os posso agradecer com amizade.

– Eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?!

– Nada me pediu, Mariana; mas obriga-me tanto, que me faz
mais infeliz o peso da obrigação.

Mariana não respondeu; chorou.

– E por que chora? – tornou Simão carinhosamente.

– Isso é ingratidão… e eu não mereço que me diga que o faço
infeliz.

– Não me compreendeu… Sou infeliz por não poder fazê-la
minha mulher. Eu queria que Mariana pudesse dizer:

– “Sacrifiquei-me por meu marido; no dia em que o vi
ferido em casa de meu pai, velei as noites a seu lado; quando a desgraça o
encerrou entre ferros, dei-lhe o pão que nem seus ricos pais lhe davam; quando
o vi sentenciado à forca, endoideci; quando a luz da minha razão me tornou
num raio de compaixão divina, corri ao segundo cárcere, alimentei-o, vesti-o,
e adornei-lhe as paredes nuas do seu antro; quando o desterraram, acompanhei-o,
fiz-me a pátria daquele pobre coração, trabalhei à luz do sol homicida para
ele se resguardar do clima, do trabalho, e do desamparo, que o matariam…”

O espírito de Mariana não podia altear-se à expressão do preso;
mas o coração adivinhava-lhe as idéias. E a pobre moça sorria e chorava a
um tempo. Simão continuou:

– Tem vinte e seis anos, Mariana. Viva, que esta sua existência
não pode ser senão um suplício oculto. Viva, que não deve dar tudo a quem
lhe não pode restituir senão as lágrimas que eu lhe tenho custado. O tempo
do meu desterro não pode estar longe; esperar outro melhor destino seria uma
locura. Se eu ficasse na pátria, livre ou preso, pediria a minha irmã que
completasse a obra generosa da sua compaixão, esperando que eu lhe desse a
última palavra da minha vida. Mas não vá comigo à África ou à Índia, que sei
que voltará sozinha à pátria depois que eu fechar os olhos. Se o meu degredo
for temporário, e a morte me guardar para maiores naufrágios, voltarei à pátria
um dia. É preciso que Mariana aqui esteja para eu poder dizer que venho para
a minha família, que tenho aqui uma alma extremosa que me espera. Se a encontrar
com marido e filhos, a sua extremosa família será a minha. Se a vir livre
e só, irei para a companhia de minha irmã. Que me responde, Mariana?

A filha de João da Cruz, erguendo os olhos do pavimento. disse:

– Eu verei o que hei de fazer quando o senhor Simão partir
para o degredo…

– Pense desde já, Mariana.

– Não tenho que pensar… A minha tenção está feita…

– Fale, minha amiga; diga qual é a sua tenção.

Mariana hesitou alguns segundos, e respondeu serenamente:

– Quando eu vir que não lhe sou precisa, acabo com a vida.
Cuida que eu ponho muito em me matar? Não tenho pai, não tenho ninguém, a
minha vida não faz falta a pessoa nenhuma. O senhor Simão pode viver sem mim?
Paciência!… Eu é que não posso…

Susteve o complemento da idéia como quem se peja duma ousadia.
O preso apertou-a nos braços estremecidamente, e disse:

– Irá, irá comigo, minha irmã. Pense muito no infortúnio de
nós ambos d’ora em diante, que ele é comum; é um veneno que havemos de tragar
unidos, e lá teremos uma sepultura de terra tão pesada como a da pátria.

Desde este dia, um secreto júbilo endoidecia o coração de
Mariana. Não inventemos maravilhas de abnegação. Era de mulher o coração de
Mariana. Amava como a fantasia se compraz de idear o amor duns anjos que batem
as asas de baile em baile, e apenas quedam o tempo preciso para se fazerem
ver e adorar a um reflexo de poesia apaixonada. Amava, e tinha ciúmes de Teresa,
não ciúmes que se refrigeram na expansão ou no despeito, mas infernos surdos,
que não rompiam em labareda aos lábios, porque os olhos se abriam prontos
em lágrimas para apagá-la. Sonhava com as delícias do desterro, porque voz
humana alguma não iria lá gemer à cabeceira do desgraçado. Se a forçassem
a resignar a sua inglória missão de irmã daquele homem, resigná-la-ia, dizendo:
– “Ninguém lhe adoçará as penas tão desinteresseiramente como o eu fiz”.

E, contudo, nunca vacilou em aceitar da mão de Teresa ou da
mendiga as cartas para Simão. A cada vinco de dor que a leitura daquelas cartas
sulcava na fronte do preso, Mariana, que o espreitava disfarçada, tremia em
todas as fibras do seu coração, e dizia entre si: – “Para que há de aquela
senhora amargurar-lhe a vida?”

E amargurava acerbamente a desditosa menina!

Ressurgiram naquela alma esperanças, que não deviam durar
além do tempo necessário para que a desilusão lhe acrisolasse o infortúnio.
Imaginara ela a liberdade, o perdão, o casamento, a ventura, a coroa do seu
martírio. A5 suas amigas matizavam-lhe a tela da fantasia, umas
porque não conheciam a atroz realidade das coisas, outras porque fiavam em
demasia nas orações das virtuosas do mosteiros. Se os vaticínios das profetisas
se realizassem, Simão sairia da cadeia, Tadeu de Albuquerque morreria de velhice
e de raiva, o casamento seria um ato indisputável, e o céu dos desgraçados
principiaria neste mundo.

Porém, Simão Botelho, ao cabo de cinco meses de cárcere, já
sabia o seu destino, e achara útil prevenir Teresa, para não sucumbir ao inevitável
golpe da separação. Bem queria ele alumiar com esperanças a perspectiva negra
do desterro; mas froixos e frios eram os alívios em que não era parte a convicção
nem o sentimento. Teresa não podia sequer iludir-se, porque tinha no peito
um despertador que a estava acordando sempre para a hora final, embora o semblante
enganasse a condolência dos estranhos.

E, então, era o expandir-se em lástimas nas cartas que escrevia
ao seu amigo; invocações a Deus, e sacrílegas apóstrofes ao destino; branduras
de paciência e ímpetos de cólera contra o pai; o aferro à vida que lhe foge,
e súplicas à morte.

No termo de sete meses o tribunal de segunda instância comutou
a pena última em dez anos de degredo para a Índia. Tadeu de Albuquerque acompanhou
a Lisboa a apelação, e ofereceu a sua casa a quem mantivesse de pé a forca
de Simão Botelho. O pai do condenado, segundo assustador aviso que seu filho
Manuel lhe dera, foi para Lisboa lutar com o dinheiro e as poderosas influências
que Tadeu de Albuquerque granjeara na Casa da Suplicação e no Desembargo do
Paço. Venceu Domingos Botelho, e, instigado mais do seu capricho que do amor
paternal, alcançou do Príncipe Regente a graça de cumprir o condenado a sua
sentença na prisão de Vila-Real.

Quando intimaram a Simão Botelho a decisão do recurso e a
graça do Regente, o preso respondeu que não aceitava a graça; que queria a
liberdade do degredo; que protestaria perante os poderes judiciários contra
um favor que não implorava e que reputava mais atroz do que a morte.

Domingos Botelho, avisado da rejeição do filho, respondeu
que fizesse ele a sua vontade; mas que a sua vitória dele sobre os protetores
e os corrompidos pelo ouro do fidalgo de Viseu estava plenamente obtida.

Foi aviso ao intendente geral da polícia, e o nome de Simão
Botelho foi inscrito no catálogo dos degredados para a Índia.

CAPÍTULO XVII

A verdade é algumas vezes o escolho de um romance.

Na vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos,
ou da lógica implacável das coisas; mas, na novela, custa-nos a sofrer que
o autor, se inventa, não invente melhor; e, se copia, não minta por amor da
arte.

Um romance que estriba na verdade o seu merecimento é frio,
é impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos, nem a gente, sequer
uma temporada, enquanto ele nos lembra, deste jogo de nora, cujos alcatruzes
somos, uns a subir, outros a descer, movidos pela manivela do egoísmo.

A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao
público!?

A verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos
de ferro que o prendem ao barro doente saiu, ou pesam nele e o submergem no
charco da culpa primitiva, para que é emergi-lo, retratá-lo e pô-lo à venda!?

Os reparos são de quem tem o juízo no seu lugar; mas, pois
que eu perdi o meu a estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é pintá-la
como ela é feia e repugnante.

A desgraça afervora ou quebranta o amor?

Isto é que eu submeto à decisão do leitor inteligente. Fatos
e não teses é o que eu trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não
explica as funções ópticas do aparelho visual.

Ao cabo de dezenove meses de cárcere, Simão Botelho almejava
um raio de Sol, uma lufada do ar não coada pelos ferros, o pavimento do céu,
que o da abóbada do seu cubículo pesava-lhe o peito.

Ânsia de viver era a sua; não era já ânsia de amar.

Seis meses de sobressaltos diante da forca deviam distender-lhe
as fibras do coração; e o coração, para o amor, quer-se forte e tenso, de
uma certa rijeza, que se ganha com o bom sangue, com os anseios das esperanças,
e com as alegrias. que o enchem e reforçam para os reveses.

Caiu a forca pavorosa aos olhos de Simão; mas os pulsos ficaram
em ferros, o pulmão ao ar mortal das cadeias, o espírito entanguido no glacial
estupidez dumas paredes salitrosas, e dum pavimento que ressoa os derradeiros
passos do último padecente, e dum teto que filtra a morte a gotas de água.

O que é o coração, o coração dos dezoito anos, o coração sem
remorsos, o espírito anelante de glórias, ao cabo de dezoito meses de estagnação
da vida?

O coração é a víscera, ferida de paralisia, a primeira que
falece sufocada pela rebeliões da alma que se identifica à natureza, e a quer,
e se devora na ânsia dela, e se estorce nas agonias da amputação, para os
quais a saudade da ventura extinta é um cautério em brasa; e o amor, que leva
ao abismo pelo caminho da sonhada felicidade, não é sequer um refrigério.

Ao deslaçar da garganta a corda da justiça, Simão Botelho
teve uma hora de desafogo, como que sentia o patíbulo lascar entre os seus
braços, e então convidou o coração da mulher que o perdera a assistir às segundas
núpcias da sua vida com a esperança.

Depois, a passo igual, a esperança fugia-lhe para as areias
da Ásia, e o coração intumescia-se de fel, o amor afogava-se nele. morte inevitável,
quando não há abertura por onde a esperança entre a luzir na escuridão íntima.

Esperança para Simão Botelho, qual?

A Índia, a humilhação, a miséria, a indigência.

E os anelos daquela alma tinham mirado as ambições de um nome.
Para a felicidade do amor envidava as forças do talento; mas, além do amor,
estava a glória, o renome e a vã imortalidade, que só não é demência nas grandes
almas e nos gênios que se sentem previver nas gerações vindouras.

Mas grinaldas de amor a escorrerem sangue dos espinhos, essas
infiltram veneno corrosivo no pensamento, apagam no seio a faísca das nobres
afoitezas, apoucam a idéia que abrangera mundos, e paralisam de mortal espasmo
os estos do coração.

Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito meses de cárcere,
com o patíbulo ou o degredo na linha do teu porvir, te haviam matado o melhor
da alma.

A ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava
responder, retraía-se, recriminado pelos ditames da razão.

De além, daquele convento onde outra existência agonizava,
gementes queixas te vinham espremer fel na chaga; e tu, que não sabias nem
podias consolar, pedias palavras ao anjo da compaixão para ela, e as do demônio
do desespero para ti.

Os dez anos de ferros em que lhe quiseram minorar a pena,
eram-lhe mais horrorosos que o patíbulo. E aceitá-los-ia, porventura, se amasse
o céu, onde Teresa bebia o ar, que nos pulmões se lhe formava em peçonha?
Creio: – antes a masmorra, onde pode ouvir-se o som abafado de uma voz amiga;
antes os paroxismos de dez anos sobre as lajes úmidas de uma enxovia, se,
na hora extrema, a última faísca da paixão, ao bruxulear para morrer, nos
alumia o caminho do céu por onde o anjo do amor desditoso se levantou a dar
conta de si a Deus, e a pedir a alma do que ficou.

Teresa pedira a Simão Botelho que aceitasse dez anos de cadeia,
e esperasse ai a sua redenção por ela.

“Dez anos! – dizia-lhe a enclausurada de Monchique.
Em dez anos terá morrido meu pai e eu serei tua esposa, e irei pedir ao
rei que te perdoe, se não tiveres cumprido a sentença. Se vais ao degredo,
para sempre te perdi, Simão, porque morrerás, ou não acharás memória de
mim, quando voltares”.

Como a pobre se iludia nas horas em que as débeis forças de
vida se lhe concentravam no coração!

As ânsias, a lividez, o deperecimento tinham voltado. O sangue,
que criara novo, já lhe saía em golfadas com a tosse.

Se por amor ou piedade o condenado aceitasse os ferrolhos
três mil seiscentas e cinqüenta vezes corridos sobre as suas longas noites
solitárias, nem assim Teresa susteria a pedra sepulcral que a vergava de hora
a hora.

“Não esperes nada, mártir – escrevia-lhe ele. – A luta
com a desgraça é inútil, e eu não posso já lutar. Foi um atroz engano o
nosso encontro. Não temos nada neste mundo, Caminhemos ao encontro da morte…
Há um segredo que só no sepulcro se sabe. Ver-nos-emos?

Vou. Abomino a pátria, abomino a minha família; todo este
solo está aos meus olhos coberto de forcas, e quantos homens falam a minha
língua, creio que os ouço vociferar as imprecações do carrasco. Em Portugal,
nem a liberdade com a opulência; nem já agora a realização das esperanças
que me dava o teu amor, Teresa!

Esquece-te de mim, e adormece no seio do nada. Eu quero
morrer, mas não aqui. Apague-se a luz dos meus olhos; mas a luz do céu,
quero-a! Quero ver o céu no meu último olhar!

Não me peças que aceite dez anos de prisão. Tu não sabes
o que é a liberdade cativa dez anos! Não compreendes a tortura dos meus
vinte meses. A voz única que tenho ouvido é a da mulher piedosa que me esmola
o pão de cada dia, e a do aguazil que veio dar-me a sarcástica boa-nova
de uma graça real, que me comuta o morrer instantâneo da forca pelas agonias
de dez anos de cárcere.

Salva-te, se podes, Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande
desgraçado. Se teu pai te chama, vai. Se tem de renascer para ti uma aurora
de paz, vive para a felicidade desse dia. E, se não, morre, Teresa, que
a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó as fibras laceradas pela
dor, é o esquecimento que salva das injúrias a memória dos padecentes”.

As palavras únicas de Teresa, em resposta àquela carta, significativa
da turbação do infeliz, foram estas: “Morrerei, Simão, morrerei. Perdoa
tu ao meu destino… Perdi-te… Bem sabes que sorte eu queria dar-te… e
morro, porque não posso, nem poderei jamais resgatar-te. Se podes, viva; não
te peço que morras, Simão; quero que vivas para me chorares. Consolar-te-á
o meu espírito… Estou tranqüila. Vejo a aurora da paz… Adeus, até ao céu,
Simão”.

Seguiram-se a esta carta muitos dias de terrível taciturnidade.
Simão Botelho não respondia às perguntas de Mariana, Di-lo-íeis arroubado
nas voluptuosas angústias do seu próprio aniquilamento. A criatura posta por
Deus ao lado daqueles dezoito anos tão atribulados chorava; mas as lágrimas,
se Simão as via, tiravam-no da mudez sossegada para ímpetos de aflição, que
afinal o extenuavam..

Decorreram seis meses ainda.

E Teresa vivia, dizendo às suas consternadas companheiras
que sabia ao certo o dia do seu trespasse.

Duas primaveras via Simão Botelho pelas grades do seu cárcere.
A terceira já enflorava as hortas, e esverdeava as florestas do Candal.

Era em março de 1807.

No dia 10 desse mês, recebeu o condenado intimação para sair
na primeira embarcação que levava âncora do Douro para a Índia. Nesse tempo
vinham aqui os navios buscar os degredados, e recebiam em Lisboa os que tinham
igual destino.

Nenhum estorvo impedia o embarque de Mariana, que se apresentou
ao corregedor do crime como criada do degredado, com passagem paga por seu
amo.

– E a passagem vale-a bem! – disse o galhofeiro magistrado.

Simão assistiu ao encaixotar da sua bagagem, numa quietação
terrível, como se ignorasse o seu destino.

Quis muitas vezes escrever a derradeira carta à moribunda
Teresa, e nem sinais de lágrimas podia já enviar-lhe no papel.

– Que trevas, meu Deus! – exclamava ele, e arrancava a mãos
cheias os cabelos. – Dai-me lágrimas, Senhor! Deixai-me chorar, ou matai-me,
que este sofrimento e insuportável!

Mariana contemplava estarrecida estes e outros lances de loucura,
ou os não menos medonhos da letargia.

– E Teresa! – bradava ele, surgindo subitamente do seu espasmo.
– E aquela infeliz menina que eu matei! Não hei de vê-la mais, nunca mais!
Ninguém me levará ao degredo a noticia de sua morte! E, quando a eu chamar
para que me veja morrer digno dela, quem te dirá que eu morri, ó mártir?!

A 17 de março de 1807, saiu dos cárceres da Relação Simão
Antônio Botelho, e embarcou no cais da Ribeira, com setenta e cinco companheiros.
O filho do ex-corregedor de Viseu, a pedido do desembargador Mourão Mosqueira,
e por ordem do regedor das justiça, não ia amarrado com cordas ao braço de
algum companheiro. Desceu da cadeia ao embarque, ao lado de um meirinho, e
seguido de Mariana, que vigiava os caixões da bagagem. O magistrado, fiel
amigo de D. Rita Preciosa, foi a bordo da nau, e recomendou ao comandante
que distinguisse o condenado Simão, consentindo-o na tolda, e sentando-o à
sua mesa. Chamou Simão de parte, e deu-lhe um cartucho de dinheiro em ouro,
que sua mãe lhe enviava. Simão Botelho aceitou o dinheiro, e, na presença
de Mourão Mosqueira. pediu ao comandante que fizesse distribuir pelos seus
companheiros de degredo o dinheiro que lhe dava.

– É demente o senhor Simão?! – disse o desembargador.

– Tenho a demência da dignidade: por amor da minha dignidade
me perdi; quero agora ver a que extremo de infortúnio ela pode levar os seus
amantes. A caridade só me não humilha quando parte do coração e não do dever.
Não conheço a pessoa que me remeteu esse dinheiro.

– É sua mãe – tornou Mosqueira.

– Não tenho mãe. Quer vossa excelência remeter-lhe esta esmola
rejeitada?

– Não, senhor.

– Então, senhor comandante, cumpra o que lhe peço, ou eu atiro
com isto ao rio.

O Comandante aceitou o dinheiro, e o desembargador saiu de
bordo como espantado da sinistra condição do moço.

– Onde é Monchique? – perguntou Simão a Mariana.

– É acolá, senhor Simão – respondeu. indicando-lhe o mosteiro,
que se debruça sobre a margem do Douro, em Miragaia.

Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante
um vulto,

Era Teresa.

Na véspera recebera ela o adeus de Simão, e respondera enviando-lhe
a trança dos seus cabelos.

Ao anoitecer daquele dia, pediu Teresa os sacramentos, e comungou
à grade do coro, onde se foi amparada à sua criada, Parte das horas da noite
passou-as sentada ao pé do santuário de sua tia, que toda a noite orou, Algumas
vezes pediu que a levassem à janela que se abria para o mar, e não sentia
ali a frialdade da viração. Conversava serenamente com as freiras, e despedira-se
de todas, uma a uma, indo por seu pé às celas das senhoras entrevadas para
lhes dar o beijo da despedida.

Todas cuidavam em reanimá-la, e Teresa sorria, sem responder
aos piedosos artifícios com que as boas almas a si mesmas queriam simular
esperanças. Ao abrir da manhã, Teresa leu uma a uma a cartas de Simão Botelho.
As que tinham sido escritas nas margens do Mondego enterneciam-na a copiosas
lágrimas. Eram hinos à felicidade prevista: eram tudo que mais formoso pode
dar o coração humano quando a poesia da paixão dá cor ao pensamento, e uma
formosa e inspirativa natureza lhe empresta os seus esmaltes, Então lhe acudiam
vivas reminiscências daqueles dias: a sua alegria doida, as suas doces tristezas,
esperanças a desveneceram saudades, os mudos colóquios com a irmã querida
de Simão, o céu aromático que se lhe alargava à inspiração sôfrega de vagos
desejos, tudo, enfim, que lembra a desgraçados.

Emaçou depois as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas
de raminhos de flores murchas, que Simão, dois anos antes, lhe atirara da
sua janela ao quarto dela.

As pétalas das flores soltas quase todas se desfizeram, e
Teresa, contemplando-as, disse: – “Como a minha vida…” – e chorou,
beijando os cálices desfolhados das primeiras que recebeu.

Deu as cartas a Constança, e encarregou-a de uma ordem, a
respeito delas, que logo veremos cumprida.

Depois foi orar, e esteve ajoelhada meia hora, com meio corpo
reclinado sobre uma cadeira. Erguendo-se, quase tirada pela violência, aceitou
uma xícara de caldo, e murmurou com um sorriso: – “Para a viagem…”

As nove horas da manhã pediu a Constança que a acompanhasse
ao mirante, e, sentando-se em ânsias mortais, nunca mais desfitou os olhos
da nau, que já estava verga alta, esperando a leva dos degredados.

Quando viu, a dois a dois, entrarem, amarrados, no tombadilho,
os condenados, Teresa teve um breve acidente, em que a já frouxa claridade
dos olhos se lhe apagou, e as mãos conculsas pareciam querer aferrar a luz
fugitiva.

Foi então que Simão Botelho a viu.

E ao mesmo tempo atracou à nau um bote em que vinha a pobre
de Viseu, chamando Simão. Foi ele ao portaló, e, estendendo o braço à mendiga,
recebeu o pacotinho das suas cartas. Reconheceu ele que a primeira não era
sua, pela lisura do papel, mas não a abriu.

Ouviu-se a voz de levar âncora e largar amarras. Simão encostou-se
à amurada da nau, com os olhos fitos no mirante.

Viu agitar-se um lenço, e ele respondeu com o seu àquele aceno.
Desceu a nau ao mar, e passou fronteira ao convento. Distintamente Simão viu
um rosto e uns braços suspensos das reixas de ferro; mas não era de Teresa
aquele rosto: seria antes um cadáver que subiu da claustra ao mirante, com
os ossos da cara inçados ainda das herpes da sepultura.

– É Teresa? – perguntou Simão a Mariana.

– É, senhor, é ela – disse num afogado gemido a generosa criatura,
ouvindo o seu coração dizer-lhe que a alma do condenado iria breve no seguimento
daquela por quem se perdera.

De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e entreviu
Simão um movimento impetuoso de alguns braços e o desaparecimento de Teresa
e do vulto de Constança, que ele divisara mais tarde.

A nau parou defronte de Sobreiras. Uma nuvem no horizonte
da barra, e o súbito encapelamento das ondas causara a suspensão da viagem
anunciada pelo comandante. Em seguida, velejou da Foz uma catraia com o piloto-mor,
que mandava lançar ferro até novas ordens. Mais tarde adiou-se a saída para
o dia seguinte.

E, no entanto, 5imáo Botelho, como o cadáver embalsamado,
cujos olhos artificiais rebrilham cravados e imotos num ponto, lá tinha os
seus imersos na interior escuridade do miradouro. Nenhum sinal de vida. E
as horas passaram até que o derradeiro raio de Sol se apagou nas grades do
mosteiro.

Ao escurecer, voltou de terra o comandante, e contemplou,
com os olhos embaciados de lágrimas. o desterrado, que contemplava as primeiras
estrelas, iminentes ao mirante,

– Procura-a no céu? – disse o nauta.

– Se a procuro no céu… – repetiu maquinalmente Simão.

– Sim!… No céu deve ela estar.

– Quem, senhor?

– Teresa.

– Teresa…! Morreu?!

– Morreu, além, no mirante, donde ela estava acenando.

Simão curvou-se sobre a amurada, e fitou os olhos na torrente.
O comandante lançou-lhe os braços, e disse:

– Coragem, grande desgraçado, coragem! Os homens do mar crêem
em Deus! Espere que o céu se abra para si pelas súplicas daquele anjo!

Mariana estava um passo atrás de Simão, e tinha as mãos erguidas.

– Acabou-se tudo!… – murmurou Simão. – Eis-me livre… para
a morte… Senhor comandante – continuou ele energicamente – eu não me suicido.
Pode deixar-me.

– Peço-lhe que se recolha à câmara. O seu beliche está ao
pé do meu.

– É obrigatório recolher-me?

– Para vossa senhoria não há obrigações; há rogos: peço-lhe,
não mando.

– Vou, e agradeço a compaixão.

Mariana seguiu-o com aquele olhar quebrado e mavioso do Jau,
quando o poeta desembarcava, segundo a idéia apaixonada do cantor de Camões.

Encarou nela Simão, e disse ao comandante:

– E esta infeliz?

– Que o siga… – respondeu o compassivo homem do mar, que
cria em Deus.

Simão recolheu-se ao beliche, e o comandante sentou-se em
frente dele, e Mariana ficou no escuro da câmara a chorar.

– Fale, senhor Simão! – disse o comandante – desafogue e chore.

– Chorei, senhor!

– Eu não tinha imaginado uma angústia igual à sua. A invenção
humana não criou ainda um quadro tão atroz. Arrepiam-se-me os cabelos, e tenho
visto espetáculos horríveis na terra e no mar.

Acintemente, o comandante estava provocando Simão ao desabafo.
Não respondia o condenado. Ouvia os soluços de Mariana, e tinha os olhos postos
no maço das Cartas, que pusera sobre uma banqueta.

O capitão prosseguiu:

– Quando em Miragaia me contaram a morte daquela senhora,
pedi a uma pessoa relacionada no convento que me levasse a ouvir de alguma
freira a triste história. Uma religiosa ma contou; mas eram mais os gemidos
que as palavras. Soube que ela, quando descíamos na altura do Oiro, proferia
em alta voz: – “Simão, adeus até à eternidade!” – E caiu nos braços
duma criada. A criada gritou, e outras foram ao mirante, e a trouxeram meia-morta
para baixo, ou morta, melhor direi, que nenhuma palavra mais lhe ouviram.
Depois, contaram-me o que ela penara em dois anos e nove meses naquele mosteiro;
o amor que ela lhe tinha, e as mil mortes que ali padeceu, de cada vez que
a esperança lhe morria. Que desgraçada menina, e que desgraçado moço o senhor
é!

– Por pouco tempo… – disse Simão, como se o dissesse a si
próprio, ou a própria imaginação estivesse dialogando consigo.

– Creio, creio, por pouco tempo – prosseguiu o capitão – mas,
se os amigos pudessem salvá-lo, senhor, eu dar-lhos-ia na Índia mais fiéis
que em Portugal. Prometo-lhe, sob a minha palavra de honra, alcançar do vizo-rei
a sua residência em Goa. Prometo segurar-lhe um decente principio de vida
e as comodidades que fazem a existência tão saudável como ela é na Ásia. Não
o intimide a idéia do degredo, senhor Simão. Viva, faça por vencer-se, e será
feliz!

– O seu silêncio, por piedade, senhor… – atalhou o degredado.

– Bem sei que é cedo ainda para planizar futuros. Desculpe
à simpatia que me inspira a indiscrição, mas aceite um amigo nesta hora atribulada.

– Aceito, e preciso dele… Mariana! – Chamou Simão. – Venha
aqui, se este cavalheiro o permite.

Mariana entrou no quarto.

– Esta mulher tem sido a minha providência – disse Simão.
– Porque ela me valeu, não senti a fome em dois anos e nove meses de cárcere.
Tudo que tinha vendeu para me sustentar e vestir. Aqui vai comigo esta criatura.
Seja respeitável ao seus olhos, senhor, porque ela é tão pura como a verdade
o deve ser nos lábios dum moribundo. Se eu morrer, senhor comandante, aceite
o legado de a amparar com a sua caridade como se ela fosse minha irmã. Se
ela quiser voltar à sua pátria, seja o seu protetor na passagem. – E, estendendo-lhe
a mão, disse com transporte: – Promete-me isto, senhor?

– Juro-lho.

O comandante, obrigado a subir ao tombadilho, deixou Simão
com Mariana.

– Estou tranqüilo pelo seu futuro, minha amiga.

– Eu já o estava, senhor Simão – respondeu ela.

Não se trocam palavras por largo espaço. Simão apoiou a face
sobre a mesa, e apertou com as mãos as fontes arquejantes. Mariana, de pé,
ao lado dele, fitava os olhos na luz mortiça da lâmpada oscilante, e cismava,
como ele, na morte.

E o nordeste sibilava, como um gemido, nas gáveas da nau.

CONCLUSÃO

As onze horas da noite, o comandante recolhera-se num beliche
de passageiro, e Mariana, sentada no pavimento, com o rosto sobre os joelhos,
parecia sucumbir ao quebranto das trabalhosas e aflitivas horas daquele dia.

Simão Botelho velava prostrado no camarote, com os braços
cruzados sobre o peito, e os olhos fitos na luz que balançava, pendente de
um arame. O ouvido tê-lo-ia, talvez, atento a um assobio da ventania: devia
de soar-lhe como um ai plangente aquele silvo agudo, voz única no silêncio
da terra e céu.

A meia-noite, estendeu Simão o braço trêmulo ao maço das cartas
que Teresa lhe enviara, e contemplou um pouco a que estava ao de cima, que
era dela. Rompeu a obreia, e dispôs-se no camarote para alcançar o baço clarão
da lâmpada.

Dizia assim a carta:

“É já o meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga
morreu. A tua pobre Teresa, à hora em que leres esta carta, se Deus não
me engana, está em descanso.

Eu devia poupar-te a esta última tortura; não devia escrever-te;
mas perdoa à tua esposa do céu a culpa, pela consolação que sinto em conversar
contigo a esta hora, hora final da noite da minha vida,

Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma, Simão?
Daqui a pouco. perderás de vista este mosteiro; correrás milhares de léguas,
e não acharás, em parte alguma do mundo, voz humana que te diga:

– A infeliz espera-te noutro mundo, e pede ao Senhor que
te resgate. – Se te pudesses iludir, meu amigo, quererias antes pensar que
eu ficava com a vida e com esperança de ver-te na volta do degredo? Assim
pode ser, mas, ainda agora, neste solene momento, me domina a vontade de
fazer-te sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma infelicidade
tem às vezes vaidade de mostrar que o é, até não podê-lo ser mais! Quero
que digas: – Está morta, e morreu quando eu lhe tirei a última esperança.

– Isto não é queixar-me, Simão: não é. Talvez, que eu pudesse
resistir alguns dias à morte, se tu ficasses; mas, de um modo ou de outro,
era inevitável fechar os olhos quando se rompesse o último fio, este último
que se está partindo, e eu mesma o ouço partir.

Não vão estas palavras acrescentar a tua pena. Deus me livre
de ajuntar um remorso injusto à tua saudade.

Se eu pudesse ainda ver-te feliz neste mundo; se Deus permitisse
à minha alma esta visão!… Feliz, tu, meu pobre condenado!… Sem
o querer, o meu amor agora te fazia injúria, julgando-te capaz de felicidade!
Tu morrerás de saudade, se o clima do desterro te não matar ainda antes
de sucumbires à dor do espírito.

A vida era bela, era, Simão, se a tivéssemos como tu ma
pintavas nas tuas cartas, que li há pouco! Estou vendo a casinha que tu
descrevias defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves. A tua
imaginação passeava comigo às margens do Mondego, à hora pensativa
do escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a água. Eu respondia
com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada por teu sorriso, inclinava
a face ao teu seio, como se fosse ao de minha mãe. Tudo isto li nas tuas
cartas; e parece que cessa o despedaçar da agonia enquanto a alma se está
recordando. Noutra carta, me falavas em triunfos e glórias e imortalidade
do teu nome. Também eu ia após da tua aspiração, ou adiante dela, porque
o maior quinhão dos teus prazeres de espírito queria eu que fosse meu. Era
criança há três anos, Simão, e já entendia os teus anelos de glória, e imaginava-os
realizados como obra minha, se tu me dizias, como disseste muitas vezes,
que não serias nada sem o estimulo do meu amor.

Ó Simão, de que céu tão lindo caímos! A hora que te escrevo,
tu estás para entrar na nau dos degredados, e eu na sepultura.

Que importa morrer, se não podemos jamais ter nesta vida
a nossa esperança de há três anos? Poderias tu com a desesperança e com
a vida, Simão? Eu não podia. Os instantes do dormir eram os escassos benefícios
que Deus me concedia; a morte é mais que uma necessidade, é uma misericórdia
divina, uma bem-aventurança para mim.

E que farias tu da vida sem a tua companheira de martírio?
Onde tu irás aviventar o coração que a desgraça te esmagou, sem o esquecimento
da imagem desta dócil mulher, que seguiu cegamente a estrela da tua malfadada
sorte?!

Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti
mesmo, se uma vez visses passar rapidamente a minha sombra por diante dos
teus olhos enxutos? Sofre, sofre ao coração da tua amiga estas derradeiras
perguntas, a que tu responderás, no alto mar, quando esta carta leres.

Rompe a manhã. Vou ver a minha última aurora… a última
dos meus dezoito anos!

Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre de uma
agonia longa. Todas as minhas angústias lhe ofereço em desconto das tuas
culpas. Se algumas impaciências a justiça divina me condena, oferece tu
a Deus, meu amigo, os teus padecimentos, para que eu seja perdoada.

Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão!”

Ergueu-se o degredado, olhou em redor de si e fitou com espasmo
Mariana, que levantava a cabeça ao menor movimento dele.

– Que tem, senhor Simão? – disse ela, erguendo-se.

– Estava aqui, Mariana?… Não se vai deitar?!

– Não vou; o comandante deu-me licença de ficar aqui.

– Mas há de assim passar a noite?! Rogo-lhe que vá, porque
não é necessário o seu sacrifício.

– Se o não incomodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão.

– Esteja, minha amiga, esteja… Poderei subir ao convés?

– Quer ir ao convés, senhor Botelho? – disse o comandante,
lançando-se do beliche.

– Queria, senhor comandante.

– Iremos juntos.

Simão ajuntou a carta de Teresa ao maço das suas, e saiu cambaleando.
No convés sentou-se num monte de cordame, e contemplou o mirante do Manchique,
que avultava negro ao sopé da serra penhascosa em que atualmente vai a Rua
da Restauração.

O capitão passeava da proa à ré, mas com o ouvido fito aos
movimentos do degredado. Receara ele o propósito do suicídio, porque Mariana
lhe incutira semelhante suspeita.

Queria o marítimo falar-lhe palavras consoladoras, mas pensava
consigo: – “O que há de dizer-se a um homem que sofre assim?” –
E parava junto dele algumas vezes, como para desviar-lhe o espírito daquele
mirante.

– Eu não me suicido! – exclamou abruptamente Simão Botelho.
– Se a sua generosidade, senhor capitão. se interessa em que eu viva, pode
dormir descansado a sua noite, que eu não me suicido.

– Mas mereço-lhe eu a condescendência de descer comigo à câmara?

– Irei; mas eu, lá, sofro mais, senhor.

Não replicou o comandante, e continuou a passear no convés
apesar das rajadas de vento.

Mariana estava agachada entre os pacotes da carga, a pouca
distância de Simão. O comandante viu-a, falou-lhe, e retirou-se.

As três horas da manhã, Simão Botelho segurou entre as mãos
a testa, que se lhe abria abrasada pela febre. Não pôde ter-se sentado, e
deixou cair o meio corpo. A cabeça, ao declinar, pousou no seio de Mariana.

– O Anjo da compaixão sempre comigo! – murmurou ele, – Teresa
foi muito desgraçada…

– Quer descer ao camarote? – disse ela.

– Não poderei… Ampare-me, minha irmã.

Deu alguns passos para a escadinha, e olhou ainda sobre o
mirante. Desceu a íngreme escada, apegando-se às cordas. Lançou-se sobre o
colchão, e pediu água. que bebeu insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o estarcimento,
e as ânsias, com intervalo de delírio.

De manhã veio a bordo um facultativo, por convite do capitão.
Examinando o condenado, disse que era febre maligna a doença, e bem podia
ser que ele achasse a sepultura no caminho da Índia.

Mariana ouviu o prognóstico, e não chorou.

As onze horas saiu barra fora a nau. As ânsias da doença acresceram
as do enjôo. A pedido do comandante, Simão bebia remédios, que bolsava logo,
revoltos pelas contrações do vômito.

Ao segundo dia de viagem, Mariana disse a Simão:

– Se o meu irmão morrer, que hei de eu fazer àquelas cartas
que vão na caixa?

Pasmosa serenidade a desta pergunta!

– Se eu morrer no mar – disse ele – Mariana, atire ao mar
todos os meus papéis, todos; e estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro
também.

Passada uma ânsia, que lhe embargava a voz, Simão continuou:

– Se eu morrer, que tenciona fazer, Mariana?

– Morrerei, senhor Simão.

– Morrerás?!… Tanta gente desgraçada que eu fiz!…

A febre aumentava. Os sintomas da morte eram visíveis aos
olhos do capitão, que tinha sobeja experiência de ver morrerem centenares
de condenados, feridos da febre no mar, e desprovidos de algum medicamento.

Ao quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de
Cascais, sobreveio tormenta súbita. O navio fez-se ao largo muitas milhas,
e, perdido o rumo de Lisboa, navegou desnorteado. Ao sexto dia de navegação
incerta, por entre espessas brumas, partiu-se o leme defronte de Gibraltar.
E, em seguida ao desastre, aplacaram as refregas, desencapelaram-se as ondas,
e nasceu, com a aurora do dia seguinte, um formoso dia de primavera. Era o
dia de primavera. Era o dia 27 de março, o nono da enfermidade de Simão Botelho.

Mariana tinha envelhecido. O comandante, encarando nela, exclamou:

– Parece que volta da índia com os dez anos de trabalhos já
passados!…

– Já acabados… de certo… – disse ela.

Ao anoitecer desse dia o condenado delirou pela última vez,
e dizia assim no seu delírio:

“A casinha, defronte de Coimbra, cercada de árvores,
flores e aves. Passeavas comigo à margem do Mondego, à hora pensativa do escurecer.
Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a água. Eu respondia com a mudez
do coração ao teu silêncio, e, animada por teu sorriso, inclinada a face ao
teu seio, como se fosse o de minha mãe… De que céu tão lindo caímos!…
A tua amiga morreu… A tua pobre Teresa…”

“E que farias tu da vida, sem a tua companheira de martírio?…
Onde irás tu aviventar o coração que a desgraça te esmagou?!… Rompe a manhã…
Vou ver a minha última aurora… a última dos meus dezoito anos. Oferece a
Deus os teus padecimentos, para que eu seja perdoado… Mariana…”

Mariana colocou os ouvidos aos lábios roxos do moribundo,
quando cuidou ouvir o seu nome.

“Tu virás ter conosco; ser-te-emos irmãos no céu… O
mais puro anjo serás tu… se és deste mundo, irmã; se és deste mundo, Mariana…”

A transição do delírio para a letargia completa era o anúncio
infalível do trespasse.

Ao romper da manhã apagara-se a lâmpada. Mariana saíra a pedir
luz, e ouvira um gemido estertoroso. Voltando às escuras, com os braços estendidos
para tatear a face do agonizante, encontrou a mão convulsa, que lhe apertou
uma das suas, e relaxou de súbito a pressão dos dedos.

Entrou o comandante com uma lâmpada, e aproximou-lha da respiração,
que não embaciou levemente o vidro.

– Está morto! – disse ele.

Mariana curvou-se sobre o cadáver, e beijou-lhe a face. Era
o primeiro beijo. Ajoelhou depois ao pé do beliche com as mãos erguidas, e
não orava nem chorava.

Algumas horas volvidas, o comandante disse a Mariana:

– Agora é tempo de dar sepultura ao nosso venturoso amigo…
É ventura morrer quando se vem a este mundo com tal estrela. Passe a senhora
Mariana ali para a câmara que vai ser levado daqui o defunto.

Mariana tirou o maço das cartas debaixo do travesseiro, e
foi a uma caixa buscar os papéis de Simão. Atou o rolo no avental, que ele
tinha daquelas lágrimas dela, choradas no dia da sua demência, e cingiu o
embrulho à cintura.

Foi o cadáver envolto num lençol, e transportado ao convés.

Mariana seguiu-o.

D0 porão da nau foi trazida uma pedra, que um marujo
lhe atou às pernas com um pedaço de cabo. O comandante contemplava a cena
triste com os olhos úmidos, e os soldados que guarneciam a nau, tão funeral
respeito os impressionara, que insensivelmente se descobriram.

Mariana estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e
parecia estupidamente encarar aqueles empuxões que o marujo dava ao cadáver,
para segurar a pedra na cintura.

Dois homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe
o balanço para o arremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver se fizesse
ouvir na água, todos viram, e ninguém já pôde segurar Mariana, que se atirara
ao mar.

A voz do comandante desamarraram rapidamente o bote, e saltaram
homens para salvar Mariana.

Salvá-la!…

Viram-na, um momento, bracejar, não para resistir à morte
mas para abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços.
O comandante olhou para o sítio donde Mariana se atirara, e viu, enleado no
cordame, o avental, e à flor da água, um rolo de papéis, que os marujos recolheram
na lancha. Eram, como sabem, a correspondência de Teresa e Simão.

Da família de Simão Botelho vive ainda, em Vila-Real-de-Trás-os-Montes,
a senhora D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a irmã predileta dele. A
última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi Manoel Botelho, pai do autor
deste livro.

FIM

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