Lima Barreto
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Essa questão dos pescadores originários de Póvoa do Varzim, em Portugal, que, desde muitos anos, se haviam especializado, entre nós, na pesca em alto mar, e como que a tinham monopolizado, por parecer terminada, merece ser epilogada, pois muitas são as notas que se lhe podem apor à margem.
De parte a parte, nas afirmações e atos de um e outro adversário, um espírito imparcial encontra o que observar e material para reflexões.
Os defensores lastimosos dos “poveiros”, que não se quiseram naturalizar brasileiros e, por isso, se repatriaram, encarniçaram-se contra os japoneses, entre outros motivos, porque eles se insulam na massa da população nacional, com a qual parece não quererem ter senão rápidos contatos, os indispensáveis para os seus negócios.
Curioso é que encontrem, unicamente nos japoneses, essa repugnância pela imitação com o geral da população brasileira, quando os tais “poveiros” a possuem ou possuíam também, a ponto de não permitirem que, entre eles, houvesse outra gente, empregada nas suas pescarias, senão os naturais de Póvoa do Varzim.
Quando menino e adolescente, devido à ocupação de meu pai, na ilha do Governador, andei enfronhado nessas coisas de pesca e sabia bem desse exclusivismo dos “poveiros”, extensivo até aos outros seus patrícios portugueses, oriundos de outras localidades de Portugal. Pessoa de toda a confiança, há dias, informou-me que dos estatutos de uma sociedade de tais pescadores naturais de Póvoa do Varzim constava, em letra redonda, não poder fazerem parte dela senão os nascidos naquele lugarejo de Portugal.
Os portugueses de Outra origem, que possuíam canoas, redes, “currais” e outros petrechos de pesca em escala mais ou menos desenvolvida, e a exerciam no interior da baía, empregavam na sua indústria indiferentemente auxiliares quaisquer, fossem ou não seus patrícios. Os “poveiros” não; quem não é de Póvoa não pesca com eles; e a sua vida é toda feita à parte dos outros portugueses e dos demais de outra qualquer nacionalidade, brasileira ou não. Por aí, vê-se bem que eles levavam o seu isolamento do resto dos habitantes do Brasil mais longe que os japonêses. Estes fazem – estou disposto a crer – uma colônia confinada em si mesma, ferozmente isolada do grosso da nossa população; mas os “poveiros” só faziam uma colônia dentro da própria colônia de naturais do país de origem, com os quais pouco ou quase nada se misturavam.
As minhas idéias e os meus princípios são inteiramente infensos a esse prurido de nacionalização quê anda por aí, e do qual os “poveiros” foram vitimas, tanto mais que, no caso desses homens, se trata de uma profissão humilde, tendo ligações muito tênues e remotas com a administração, a política e coisas militares do Brasil, não exigindo, portanto, o tal “fogo sagrado do patriotismo”, a fim de apurar-lhe o exercício, junto a excelentes vencimentos.
A verdade, porém, deve ser dita; e não foi senão isto que fiz. A desorientação a esse respeito é tal que estamos vendo como essa questão se vai desdobrando em lamentáveis espetáculos de violências inauditas.
O inspetor de pesca, a quem não atribuo móveis subalternos – longe de mim tal coisa! – não contente de exercer draconianamente as atribuições que as leis e os regulamentos conferem a seu cargo, sobre redes e outras coisas próprias ao ofício de pescar, meteu-se também a querer regular o comércio do pescado. Com a sua educação militar, que só vê solução para os problemas que a sociedade põe na violência, não trepidou em empregá-la, violando os mais elementares princípios constitucionais. Com auxílio da marinhagem do cruzador sob seu comando e de sequazes paisanos, talvez mais brutais e ferozes do que as próprias praças de marinha, apesar de estarem habituadas estas, desde tenra idade, nas Escolas de Aprendizes, a ver, num oficial de marinha, um ente à parte, um semideus arquipoderoso, cujas ordens são ditames celestiais – com semelhante gente, violentamente, pôs-se a apreender as “marés” nas canoas de pescaria, para vendê-las ao preço que entendesse, deduzir percentagem arbitrariamente calculada, e, ainda por cima, a intimar os pescadores isolados a se matricularem em umas famosas colônias de pesca, improvisadas do pé para a mão.
Tudo isto consta de jornais insuspeitos e não houve quem contestasse. Essa subversão das mais comezinhas garantias constitucionais, levada a efeito por um oficial que, por mais distinto que seja, não pode possuir autoridade para tanto, como ninguém a tem, leva-nos a pensar como as nossas instituições republicanas vão respondendo muito mal aos intuitos dos seus codificadores e legisladores.
Seja qual for a emergência, pouco a pouco, não só nos Estados longínquos, até mesmo nos mais adiantados, e no próprio Rio de Janeiro, capital da República, a autoridade mais modesta e mais transitória que seja procura abandonar os meios estabelecidos em lei e recorre à violência, ao chanfalho, ao chicote, ao cano de borracha, à solitária a pão e água, e outros processos torquemadescos e otomanos.
É o regímen de “villayet” turco em que estamos; é o governo de beis, paxás e cádis o que temos. Isto é um sintoma de moléstia generalizada. A época que atravessamos parece ser de loucura coletiva em toda a humanidade.
Havia de parecer que a gente de juízo e de coração, com responsabilidade na direção política e administrativa dos povos, depois dessa chacina horrorosa e inútil que foi a guerra de 1914, e das conseqüências de miséria, fome e doença que, acabada, acarretou ainda como contrapeso procurasse afugentar, por todos os meios, dos seus países, os germens desse aterrador flagelo da guerra; entretanto não é assim. Em vez de propugnarem uma aproximação mais fraternal entre os povos do mundo, um mútuo, sincero e leal entendimento entre todos eles, como que timbram em mostrar desejarem mais guerra, pois estabelecem iníquas medidas fiscais que isolam os países uns dos outros; tentam instalar artificialmente indústrias que só são possíveis em certas e determinadas regiões do globo, devido às condições naturais, e isto ainda no fito de prescindirem da cooperação de outra nação qualquer, amiga ou inimiga; e – o que é pior – todos se armam até os dentes, mesmo à custa de empréstimos onerosíssimos ou da depreciação das respectivas moedas, originada por emissões sucessivas e inúmeras, de papel-moeda. Estamos no tempo da cegueira e da violência.
Max-Nordau, em artigo que uma revista desta cidade traduziu, cujo título é Loucura Coletiva, – observa muito bem, após examinar os despropósitos de toda a sorte que se seguiram à terminação oficial da grande guerra:
“Dizia-se antigamente: “Todo o homem tem duas pátrias, a própria e depois a França”. Pois esta mesma França, tão hospitaleira, tão carinhosa, mostra agora a todos os estrangeiros um semblante hostil e, durante a maior parte do tempo, torna-se impossível a estada em seu solo. As relações entre, povo e povo, entre homem e homem, quebraram-se violentamente e cada país encerra-se por detrás das suas fronteiras, opondo-se a tôda a, infiltração humana do exterior.
“Esperava-se que à guerra sucedesse a reconciliação. Pelo contrário, procura-se por todos os lados atiçar os ódios, exasperar os rancores, excitar a sede de vingança.
Mais adiante, ele acrescenta esta observação que pode ser verificada por qualquer:
“Também se esperava um desarmamento geral, mas em toda a parte se reorganizam os exércitos e as marinhas, com mais impetuosidade que nunca. O militarismo torna-se mais forte e vai imperando em países onde anteriormente era desconhecido.”
Essa mania militar que se apossou de quase todos os países do globo, inclusive o nosso, levou todos eles a examinar e a imitar a poderosa máquina guerreira alemã.
Os seus códigos e regulamentos militares vão sendo mais ou menos estudados e imitados, quando não são copiados. Não se fica só nisso. A tendência alemã, ou melhor, prussiana, de militarizar tudo, os mais elementares atos da nossa vida civil, por meio de códigos, regulamentos, penas e multas, vai-se também apossando dos cérebros dos governantes que, com afã, adotam tão nociva prática de asfixiar o indivíduo num “batras” legislativo.
O ideal dos militares atuais não é ser um grande general, ao jeito dos passados, que, aos seus predicados guerreiros, sabiam unir vistas práticas de sociólogo e de político.
O ideal deles é o cabeçudo Ludendorff, cujas memórias denunciam uma curiosa deformação mental, obtida pelo ensino de uma multidão de escolas militares que o militarismo prussiano inventou, as quais têm de ser freqüentadas pelos oficiais que ambicionam altos postos. Tais escolas tiram-lhes toda e qualquer faculdade crítica, todo o poder de observação pessoal, fazendo-os perder de vista as relações que tem a guerra com outras manifestações de atividade social, para só ver a guerra, só a guerra com os seus petrechos, suas divisões, seus corpos, etc., citados pelo “Cabeçudo”, cabalisticamente, pelas iniciais de suas denominações. Esqueceu-se ele que seu livro era destinado, por sua natureza, a ser lido pelo mundo inteiro, e o mundo inteiro não podia viver enfronhado nas coisas pasmosas da burocracia militar alemã, para decifrar tais hieróglifos.
Ludendorff não é um general; é uma consolidação viva das leis e regulamentos militares da Alemanha.
Não foi à toa que o célebre jornalista alemão Maximiliano Harden, falando do livro do general francês Buat sobre esse famigerado Ludendorff, a mais alta expressão da lamentável limitação do espírito militar em todos os tempos, disse: “… é uma obra -prima, de clara psicologia latina, dominada em toda sua extensão por um espírito cavalheiresco e uma forte consciência de justiça, que fornecerá ao leitor alemão uma relação maior de verdades que as execráveis e copiosas banalidades editadas por quase todos os generais alemães”.
Houve quem chamasse o Sr. general Ludendorff, autor também de “execráveis e copiosas banalidades”, de César. Sim, ele pode ser César; mas um César que não escreverá nunca a Guerra das Gálias e não transformará nenhuma sociedade.
O mundo todo, porém, está fascinado pelos métodos alemães.
Pode-se dizer que a Alemanha, depois de vencida, é vencedora pela força hipnótica de sua mania organizadora, até as menores minúcias.
O brutal e odioso Estados Unidos, com a Alemanha aparentemente vencida, é outro país modelo para os que estão sofrendo de mal de imitação e maluquice organizadora, concomitantemente.
Foi talvez nas coisas peculiares do país de “Uncle Sam” que, certamente, o Sr. Norton de Matos, ministro de Estado de Portugal, buscou inspirar-se para estabelecer a seguinte cláusula, a que se deviam obrigar os “poveiros” repatriados, no caso de quererem estabelecer-se nas colônias portuguesas da África.
Ei-la, como vem estampada na Pótria, de 28 de novembro último: “…que evitem (os “poveiros”) a comunicação e as relações de ordem sexual com o elemento nativo da África, de cor”.
Uma cláusula destas é por demais pueril e ridícula.
Não é preciso dizer por quê; e seria escabroso.
Mas, à vista dela, nós nos podemos lembrar de dois casos célebres que deviam incidir na punição do Sr. Norton de Matos, se ele fosse ministro ou coisa que o valha, no grande século das descobertas e conquistas portuguesas.
Um é com Camões, cuja glória universal é um dos mais justos orgulhos de Portugal.
Pois bem: o grande épico andou lá, pelo ultramar, de gorra, com uma rapariga de côr. Creio até que se chamava Bárbara e o autor dos Lusiadas fez-lhe versos, aos quais intitulou se não me falha a memória “Pretidão do Amor”. Li isto há bastantes anos no Cancioneiro Alegre, de Camilo Castelo Branco.
O outro caso dessa espécie de comunicações e relações que o Sr. Norton de Matos divinamente proíbe, ao jeito da nação do Paraíso, passou-se com o Albuquerque terríbil. Ele mandou matar sumariamente um seu soldado ou homem d’armas (parece que se chamava Rui Dias), por suspeitá-lo amoroso de uma escrava, da qual o extraordinário Afonso d’Albuquer que não desprezava totalmente os encantos secretos, segundo tudo leva a crer.
Camões, no seu maravilhoso poema, alude ao fato; e Teófilo Braga, no seu Camões o elucida.
E assim que o vate lusitano comenta o caso, no – Canto X, XLVII. Vou transcrever os quatro primeiros versos da oitava. Ei-los:
Não será a culpa abominoso incesto,
Nem violento estupro em virgem pura
Nem menos adultério desonesto
Mas cuma escrava vil, lasciva, e escura.
Vejam bem como Camões diz quem foi a causa do terríbil Albuquerque por na sua “fama alva, nódoa negra e feia”. Estou vendo daqui o Sr. Norton de Matos, quando foi aos embarques, para a Índia, de Albuquerque, em 1503 (primeira vez), e de Camões, em 1553.
E preciso supor que o Sr. Matos pudesse ser ministro durante tão dilatado lapso de tempo.
Admitido isso, certamente o ministro havia de recomendar a cada um deles ter sempre presente à lembrança, a sua prescrição mais ou menos de Deus que larga um qualquer Adão no Paraíso. E falaria assim: – Olhe, Sr. d’Albuquerque, V.M. foi estribeiro-mor del-Rei D. João lI, a quem Deus tenha em sua santa guarda; V.M. é um grande fidalgo e deu mostras em Nápoles de ser um grande guerreiro – não vá V.M. meter-se lá nas Índias com as negras. Cuide V.M. nisto que lho digo, para a salvação de su’alma e prestígio da nação portuguêsa.
Ao cantor inigualável das proezas e feitos do Portugal glorioso, ele aconselharia desta forma:
— Sr. Luís de Camões, V.S. é um poeta, ao que se diz, de bom e valioso engenho; V.S. freqüentou o paço dei-Rei; V.S. versejou para as damas e açafatas da côrte. Depois de tudo isto, não vá V.S. meter-se lá, nas índias, com as negras. Tome VS. tento nisso.
Não há dúvida alguma que a providência do Sr. Matos é muito boa; mas a verdade é que os tais Amon, Lapouge, Gobineau e outros trapalhões antropólogos e etnográficos, tão do paladar dos antinipões, não admitem como lá muito puros os portugueses. Oliveira Martins também. Dá-lhes uma boa dose de sangue berbere.
Isto não vem ao caso e só tratei de tal por mera digressão, mesmo porque este modesto artigo não passa de um ajustamento da marginália que fiz às notícias lidas por mim, nos quotidianos, enquanto durou a questão dos “poveiros”.
Era tal a falta de uma segura orientação nos que se digladiavam, que só tive um remédio para estudá-la mais tarde: cortar as notícias dos jornais, colar os retalhos num caderno e anotar à margem as reflexões que esta e aquela passagem me sugerissem. Organizei assim uma Marginália a esses artigos e notícias. Uma parte vai aqui; a mais importante, porém, que é sobre os Estados Unidos, omito por prudência. Hei de publicá-la um dia.
Contudo, explico por que entram os Estados Unidos nela. O motivo é simples. Os defensores dos “poveiros” atacam os japonêses e se servem dos exemplos da grande república da América do Norte no seu proceder com os nipões. Fui estudar alguma coisa da história das relações yankees com outros Estados estrangeiros; é deplorável, é cheia de felonias. Lembrei-me também como lá se procede com os negros e mulatos. Pensei. Se os doutrinários que querem que procedamos com os japonêses, da mesma forma com que os Estados Unidos se comportam com eles, forem vitoriosos, com a sua singular teoria, não faltará quem proponha que também os imitemos, no tocante aos negros e mulatos. É lógico. Então, meus senhores, ai de mim e de… muita gente!
Gazeta de Notícias, 2-1-1921.
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