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Epígrafes
“Guardai, Padre, esta Espada, porque um dia me hei de valer dela com
os Mouros, metendo o Reino pela Ãfrica adentro!” Dom Sebastião
I – ou Dom Sebastião, o Desejado, Rei de Portugal, do Brasil e do Sertão,
1578.
“Quem não sabe que o digno Príncipe, o Senhor Dom Pedro
III, tem poder legitimamente constituido por Deus para governar o Brasil?
Das ondas do mar Dom Sebastião sahirá com todo o seu exercito.
Tira a todos no fio da Espada deste papel da Republica e o sangue hade ir
até a junta grossa.” Dom Antônio Conselheiro, projeta e
regente do Império do Belo-Monte de Canudos, Sertão da Bahia,
1897.
“Soldados de todo o exército do Império! Lembrai-vos
das fogueiras do Sertão Bonito! Aqui me tendes: quem defende o Brasil
não morre! Com esta Bandeira em frente do campo da honra destruiremos
os nossos inimigos e, no maior dos combates, gritaremos: Viva a Independência
do Brasil!” Dom Pedro I, Imperador do Brasil e Rei de Portugal, 1822.
“Passa o município de Princesa a constituir, com seus limites
atuais, um Território Livre, que terá a denominação
de Território de Princesa. Cidadãos de Princesa aguerrida! Celebremos,
com força e paixão, a beleza invulgar desta Lida e a bravura
sem-par do Sertão!”
Dom José Pereira – ou Dom José I, O, Invencível, Rei
Guerrilheiro de Princesa, Sertão da Paraíba, 1930.
“Estejão certos que a República se acaba breve. É
princípio de espinhos. Entrando a Monarquia, serão formados
novos Batalhões, pois por serem os Batalhões feitos de canalhas
é que tem chegado a tal ponto.
Prinspo é o verdadeiro dono do Brasil. Quem for republicano mude-se
para os Estados-Unidos!”
De uma carta encontrada no bornal de balas de E. P. Almeida, guerrilheiro
do Império de Canudos, Sertão da Bahia, 1897.
“Dom Sebastião está muito desgostoso e triste com seu
Povo, porque o perseguem, não regando o Campo Encontrado e não
lavando as duas torres da Catedral de seu Reino com o sangue necessário
para quebrar de uma vez este cruel Encantamento!”
Dom João Ferreira-Quaderna – ou Dom João II, 0 Execrável,
Rei da Pedra Bonita, Sertão do Pajeú, Pernambuco-Paraíba,
1838.
Romance da Pedra do Reino eo Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta Romance-enigmático
de crime e sangue, no qual aparece o misterioso Rapaz do Cavalo Branco. A
emboscada do Lajedo sertanejo. Notícia da Pedra do Reino, com seu Castelo
enigmático, cheio de sentidos ocultos! Primeiras indicações
sobre os três irmãos sertanejos, Arésio, Silvestre e Sinésio!
Como seu Pai foi morto por cruéis e desconhecidos assassinos, que degolaram
o velho Rei e raptaram o mais moço dos jovens Príncipes, sepultando-o
numa Masmorra onde ele penou durante dois anos! Caçadas e expedições
heróicas nas serras do Sertão! Aparições assombratícias
e proféticas! Intrigas, presepadas, combates e aventuras nas Catingas!
Enigma, ódio, calúnia, amor, batalhas, sensualidade e morte!
Ave Musa incandescente do deserto do Sertão! Forje, no Sol do meu
Sangue, o Trono do meu clarão: cante as Pedras encantadas o a Catedral
Soterrada, Castelo deste meu Chão!
Nobres Damas e Senhores ouçam meu Canto espantoso: a doida Desaventura
de Sinésio, 0 Alumioso, o Cetro e sua centelha na Bandeira aurivermelha
do meu Sonho perigoso!
FOLHETO I
Pequeno Cantar Acadêmico a Modo de Introdução Daqui
de cima, no pavimento superior, pela janela gradeada da Cadeia onde estou
preso, vejo os arredores da nossa indomável Vila sertaneja. 0 Sol treme
na vista, reluzindo nas pedras mais próximas. Da terra agreste, espinhenta
e pedregosa, batida pelo Sol esbraseado, parece desprender-se um sopro ardente,
que tanto pode ser o arquejo de gerações e gerações
de Cangaceiros, de rudes Beatos e Profetas, assassinados durante anos e anos
entre essas pedras selvagens, como pode ser a respiração dessa
Fera estranha, a Terra – esta Onça-Parda em cujo dorso habita a Raça
piolhosa dos homens. Pode ser, também, a respiração fogosa
dessa outra Fera, a Divindade, Onça-Malhada que é dona da Parda,
e que, há milênios, acicata a nossa Raça, puxando-a para
o alto, para o Reino e para o Sol.
Daqui de cima, porém, o que vejo agora é a tripla face, de
Paraíso, Purgatório e Inferno, do Sertão. Para os lados
do poente, longe, azulada pela distância, a Serra do Pico, com a enorme
e altíssima pedra que lhe dá nome. Perto, no leito seco do Rio
Taperoá, cuja areia é cheia de cristais despedaçados
que faíscam ao Sol, grandes Cajueiros, com seus frutos vermelhos e
cor de ouro. Para o outro lado, o do nascente, o da estrada de Campina Grande
e Estaca-Zero, vejo pedaços esparsos e agrestes de tabuleiro, cobertos
de Marmeleiros secos e Xiquexiques. Finalmente, para os lados do norte, vejo
pedras, lajedos e serrotes, cercando a nossa Vila e cercados eles mesmos por
Favelas espinhentas e t Urtigas, parecendo enormes Lagartos cinzentos, malhados
de negro e ferrugem, Lagartos venenosos, adormecidos, estirados ao Sol o abrigando
Cobras, Gaviões e outros bichos ligados à crueldade da Onça
do Mundo.
Aí, talvez por causa da situação em que me encontro,
preso na Cadeia, o Sertão, sob o Sol fagulhante do meio-dia, me aparece,
ele todo, como uma enorme Cadeia, dentro da qual, entre muralhas de serras
pedregosas que lhe servissem de muro inexpugnável a apertar suas fronteiras,
estivéssemos todos nós, aprisionados e acusados, aguardando
as decisões da justiça, sendo que, a qualquer momento, a Onça-Malhada
do Divino pode se precipitar sobre nós, para nos sangrar, ungir e consagrar
pela destruição.
É meio-dia, agora, em nossa Vila de Taperoá. Estamos a 9 de
Outubro de 1938. É tempo de seca, e aqui, dentro da Cadeia onde estou
preso, o calor começou a ficar insuportável desde as dez horas
da manhã. Pedi então ao Cabo Luís Riscão que me
deixasse sair lá de baixo, da cela comum, e vir cá para cima,
varrer o chão de madeira do pavimento superior, onde funcionava, até
o fim do ano passado, a Câmara Municipal. 0 Cabo Luís Riscão
é filho daquele outro, de nome igual, que morreu, aqui mesmo na Cadeia,
em 1912, na chamada “Guerra de Doze”, num tiroteio da Polícia
contra as tropas de Sertanejos que, a mando de meu tio e Padrinho, Dom Pedro
Sebastião Garcia-Barretto, atacaram, tomaram e saquearam nossa Vila.
Tem, portanto, o Cabo todos os motivos de má vontade contra mim. Mas
como sou “de família de certa ordem” e lhe dou pequenas gorjetas,
abranda essa má vontade de vez em quando. Hoje, por exemplo, quando
fiz o pedido, ele me concedeu o cobiçado privilégio de preso-varredor.
Abriu a porta de grades enferrujadas, trouxe-me para cá, deixou-me
aqui sozinho, trancado, varrendo, e foi-se a cochilar na rede da sua casa,
que fica no quintal da Cadeia. Aproveitei, então, o fato de ter terminado
logo a tarefa e deitei-me no chão de tábuas, perto da parede,
pensando, procurando um modo hábil de iniciar este meu Memorial, de
modo a comover o mais possível com a narração dos meus
infortúnios os corações generosos e compassivos que agora
me ouvem. Pensei: – Este, como as Memórias de um Sargento de Milícias,
é um “romance” escrito por “um Brasileiro”. Posso
começá-lo, portanto, dizendo que era, e é, “no tempo
do Rei”. Na verdade, o tempo que decorre entre 1935 o este nosso ano
de 1938 é o chamado “Século do Reino”, sendo eu, apesar
de preso, o Rei de quem aí se f ala.
Depois, porém, cheguei à conclusão de que, além
de anunciar o tempo, eu devo ser claro também sobre o local onde sucederam
todos os acontecimentos que me trouxeram à Cadeia. Não tendo
muitas idéias próprias, lembrei-me então de me valer
de outro dos meus Mestres e Precursores, o genial escritor-brasileiro Nuno
Marques Pereira. Como todos sabem, o “romance” dele, publicado em
1728, intitula-se Compêndio Narrativo do Peregrino da América
Latina. Ora, este meu livro é, de certa forma, um Compêndio Narrativo
do Peregrino do Sertão. Por isso, adaptando ao nosso caso as palavras
iniciais de Nuno Marques Pereira, falo do modo que segue sobre o lugar onde
se passou a nossa estranha Desaventura: “Uns doze graus abaixo da Linha
Equinocial, aqui onde se encontra a Terra do Nordeste metida no Mar, mas entrando-se
umas cinqüenta léguas para o Sertão dos Cariris Velhos
da Paraíba do Norte, num planalto pedregoso e espinhento onde passeiam
Bodes, Jumentos e Gaviões sem outro roteiro que os serrotes de pedra
cobertos de coroas-de-frade e mandacarus; aqui, nesta bela Concha, sem água
mas cheia de fósseis e velhos esqueletos petrificados, vê-se
uma rica Pérola, engastada em fino Ouro, que é a muito nobre
e sempre leal Vila da Ribeira do Taperoá, banhada pelo rio do mesmo
nome”. – Ora, eu, Dom Pedro Dinis FerreiraQuaderna, sou o mesmo Dom Pedro
IV, cognominado “0 Decifrador”, Rei do Quinto Império e do
Quinto Naipe, Profeta da Igreja Católico-Sertaneja e pretendente ao
trono do Império do Brasil. Por outro lado, consta da minha certidão
de nascimento ter nascido eu na Vila de Taperoá. É por isso,
então, que pude começar dizendo que neste ano de 1938 estamos
ainda “no tempo do Rei”, e anunciar que a nobre Vila sertaneja onde
nasci é o palco da terrível “desaventura” que tenho
a contar.
Para ser mais exato, preciso explicar ainda que meu “romance”
é, mais, um Memorial que dirijo à Nação Brasileira,
à guisa de defesa e apelo, no terrível processo em que me vejo
envolvido. Para que ninguém julgue que sou um impostor vulgar, devo
finalmente esclarecer que, infeliz e desgraçado como estou agora, preso
aqui nesta velha Cadeia da nossa Vila, sou, nada mais, nada menos, do que
descendente, em linha masculina e direta, de Dom João Ferreira-Quaderna,
mais conhecido como El-Rei Dom João II, 0 Execrável, homem sertanejo
que, há um século, foi Rei da Pedra Bonita, no Sertão
do Pajeú, na fronteira da Paraíba com Pernambuco. Isto significa
que sou descendente, não daqueles reis e imperadores estrangeiros e
falsificados da Casa de Bragança, mencionados com descabida insistência
na História Geral do Brasil, de Varnhagen; mas sim dos legítimos
e verdadeiros Reis brasileiros, os Reis castanhos e cabras da Pedra do Reino
do Sertão, que cingiram, de uma vez para sempre, a sagrada Coroa do
Brasil, de 1835 a 1838, transmitindo-a assim a seus descendentes, por herança
de sangue e decreto divino.
Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha
vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao mesmo tempo grotescos
e gloriosos. Sou um grande apreciador do jogo do Baralho. Talvez por isso,
o mundo me pareça uma mesa e a vida um jogo, onde se cruzam fidalgos
Reis de Ouro com castanhas Damas de Espada, onde passam Ases, Peninchas e
Coringas, governados pelas regras desconhecidas de alguma velha Canastra esquecida.
É por isso também que, do fundo do cárcere onde estou
trancafiado neste nosso ano de 1938 – faminto, esfarrapado, sujo, prematuramente
envelhecido pelos sofrimentos aos quarenta e um anos de idade – dirijo-me
a todos os Brasileiros, sem exceção; mas especialmente, através
do Supremo Tribunal, aos magistrados e soldados – toda essa raça ilustre
que tem o poder de julgar e prender os outros. Dirijo-me, outrossim, aos escritores
brasileiros, principalmente aos que sejam Poetas-Escrivães e Acadêmicos
fidalgos, como eu e Pero Vaz de Caminha, o que faço aqui, expressamente,
por intermédio da Academia Brasileira, esse Supremo Tribunal das Letras.
Sim! Neste estranho processo, a um tempo político e literário,
ao qual estou sendo submetido por decisão da justiça, este é
um pedido de clemência, uma espécie de confissão geral,
uma apelação – um apelo ao coração magnânimo
de Vossas Excelências. E, sobretudo, uma vez que as mulheres têm
sempre o coração mais brando, esta é uma solicitação
dirigida aos brandos peitos das mulheres e filhas de Vossas Excelências,
às brandas excelências de todas as mulheres que me ouvem.
Escutem, pois, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos, minha terrível
história de amor e de culpa; de sangue o de justiça; de sensualidade
e violência; de enigma, de morte o disparate; de lutas nas estradas
e combates nas Catingas; história que foi a suma de tudo o que passei
e que terminou com meus costados aqui, nesta Cadeia Velha da Vila Real da
Ribeira do Taperoá, Sertão dos Cariris Velhos da Capitania e
Província da Paraíba do Norte.
FOLHETO II
0 Caso da Estranha Cavalgada Há três anos passados, na Véspera
de Pentecostes, dia 1.0 de Junho de 1935, pela estrada que nos liga à
Vila de Estaca-Zero, vinha se aproximando de Taperoá uma cavalgada
que iria mudar o destino de muitas das pessoas mais poderosas do lugar, incluindose
entre estas o modesto Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e poeta-Escrivão
que lhes fala neste momento.
Era, talvez, ‘ a mais estranha Cavalgada que já foi vista no Sertão
por homem nascido de mulher. Aliás, não sei nem se o nome de
“cavalgada” se ajusta bem àquilo, que parecia antes uma espécie
de tropel confuso de cavalos, jaulas, carretas, tendas, Cavaleiros e animais
selvagens. Era, realmente, uma verdadeira “desfilada moura”, como
muito bem a classificou dépois, na noite daquele mesmo dia, o Doutor
Samuel Wandernes, homem intelectual, Poeta e promotor da nossa Comarca. Na
verdade, como ele vive afirmando freqüentemente, “os árabes,
negros, judeus, tapuias, asiáticos, berberes e outros Povos mouros
do mundo, são sempre meio aciganados, meio ladrões, trocadores
de cavalos, irresponsáveis e valdevinos”; e o estranho grupo de
Cavaleiros que, naquele dia, iniciava a mais terrível agitação
em nossa Vila, revelava no conjunto, ao primeiro exame, alguma coisa de errante,
como uma tribo selvagem, nômade, empoeirada e “sem confiança”.
Era composta de cerca de quarenta Cavaleiros. Os arreios dos cavalos que
a compunham vinham cobertos de medalhas e moedas, que refulgiam ao Sol sertanejo,
devolvendo aos fulgores dos cristais das cercas-de-pedra as faíscas
de seus metais. As esporas, como estrelas de fogo, retiniam suas rosetas,
batendo nos estribos e centelhando nos sapatões de couro castanho,
sob as véstias e os canos poeirentos das calças-perneiras, também
castanhas, mas providas de fortes placas de reforço, costuradas a modo
de joelheiras nas calças, e de ombreiras nos gibões. Os chapelões
de couro, de largas abas dobradas e levantadas, coroavam-se, também,
de estrelas o moedas que reluziam – três nas abas, inumeráveis
nas testeiras o barbicachos. Mais do que tudo, porém, pairava no ar,
sobre aquela esquisita tropa de bichos, carretas e Cavaleiros, uma atmosfera
de feira-de-cavalos; de sortilégios e encantamentos; de companhia de
Circo; de comboio-de-mal-assombrados; de cavalaria de rapina; de comércio
de raízes, augúrios e zodíacos; e tudo isso junto lembrava,
logo, uma tribo de Ciganos sertanejos em viagem.
Uma coisa que talvez cause estranheza aos menos avisados é que o
genial Poeta-Brasileiro e Patrono-Académico, Antônio Gonçalves
Dias, tendo vivido um século antes desta cena, já previsse que
ela ia acontecer. É que, como diz o Doutor Samuel Wandernes, “os
Poetas são verdadeiros visionários”, isto é, gente
que prediz o futuro e vê visagens e assombrações, como
Antônio Conselheiro via as dele, no Império pedregoso e sitiado
de Canudos.
Assim, ninguém se espante de que Gonçalves Dias, tantos anos
antes, visse, como alumiado e visionário que era, a chegada desse tropel
de cavalos a Taperoá, descrevendo assim a estranha Cavalgada que, já
perto do meio-dia daquela Véspera de Pentecostes, errava pelos campos
do Sertão do Cariri: “Eram Ciganos errantes, atilados e torcidos,
trocadores de Cavalos com semblantes de atrevidos: causa medo vê-los
tantos, tão astutos e crescidos.
Vinham Ladrões de cavalo, vinham muitos Raizeiros, vinham, do Sol
abrasados, nossos bárbaros Guerreiros, bons dizedores de Sortes, muitos
e bons Cavaleiros!
E vinha o Donzel errante no cerco dos roubadores! De sua Dama-de-Copas no
Escudo trazia as cores: tinha amor pela Sonhosa, eram claros seus amores!
Enfim, dizer quanto vimos não cabe neste Papel: vinham muitas Alimárias
– são roubadas a granele vinha o Alumioso, montado em branco Corcel!”
Entretanto, se eram, mesmo, Ciganos em viagem, seria uma tribo que, ao lado
das roupas principescas, das medalhas nos arreios e da ladroagem meio acangaceirada,
possuía algumas singularidades.
Primeiro, os Ciganos sertanejos comuns não andam encourados. Usam,
quase sempre, camisa e calça cáquis, chapelões de pano
pardo e botas de cano alto. Ora, aqueles estavam como fica dito, de calça-perneira,
guarda-peito e gibão, tudo de couro. Os gibões, porém,
feitos de duro e castanho couro de bode, além das placas de reforço
nas ombreiras e joelheiras, tinham debruns e emblemas cravejados de brochas
de metal. Essas brochas, ora se agrupavam em áreas maciças,
ora seguiam, em fileiras, as linhas das costuras e debruns mais importantes,
de modo que suas armaduras de couro faziam aqueles Cavaleiros sertanejos semelhantes
ao Guerreiro mouro que o genial Poeta pernambucano Severino Montenegro descreveu
num soneto célebre: vestido de armadura negra e escarlate, de placas
de aço, incrustada de esmaltes e brasões, parecendo, o todo,
a carapaça dura, calcária, espinhosa e violeta-escarlate de
um crustáceo gigantesco encravado num penhasco. Aqui, porém,
as armaduras eram apenas de couro castanhonegro, cravejado pelos metais das
brochas; e, em vez dos “penhascos” estrangeirados do soneto de Montenegro,
o fundo do quadro era formado pelos enormes Lajedos sertanejos, que, de vez
em quando, apareciam ao lado da estrada, enfeitados por macambiras roxas e
amarelas e pelo vermelho sangrento dos topes das coroasde-frade.
A segunda singularidade era que a Cavalgada tinha, à frente, três
homens, à guisa dos “matinadores” que iniciam nossos desfiles
de Cavalhada.
0 primeiro, o mais da frente, estava a cavalo, e conduzia na mão
uma bandeira que, depois, devidamente instruído por mim e pelo Doutor
Pedro Gouveia, o Cantador Lino Pedra-Verde descreveria assim, no “folheto”
que escreveu sobre o acontecimento: “Dividida por dois Campos – um Direito
e outro Esquerdo – tinha três Onças vermelhas em campo de Ouro
– o Direito – e Contra-arminhos de Prata semeando o Campo negro”.
Meu irmão bastardo, Taparica Pajeú-Quaderna, é cortador-demadeira
e “riscador” de todas as gravuras com que ilustro as capas dos “folhetos”
impressos por mim, aqui, na Gazeta de Taperoá. Pedi a ele que fizesse
uma cópia dessa bandeira e anexo a gravura resultante aos autos desta
Apelação, pois ela é peça importante no processo
que veio bater comigo aqui, na Cadeia de Taperoá.
Atrás, porém, desse primeiro matinador, vinha um segundo homem,
a pé, conduzindo uma pesada haste de madeira, com outra menor cruzada
em cima, sendo que esta, braço transversal da cruz, vinha cheia de
Gaviões e Carcarás, amarrados pelos pés a argolinhas
cravadas na madeira.
Em seguida, a cavalo, vinha um terceiro homem, o mais esquisito de todos,
creio. Era uma espécie de Frade-Cangaceiro.
BANDEIRA DAS ONÇAS, QUE VINHA NA CAVALGADA DO
RAPAZ DO CAVALO BRANCO
Ou, para ficar mais de acordo com o estilo de meu Mestre, o Doutor Samuel
Wandernes, uma espécie de Monge-Cavaleiro, únicas expressões
capazes, talvez, de dar idéia desse personagem, Frei Simão de
nome, e que, posteriormente, veio a se tornar, em nossa Vila, centro de grandes
controvérsias. Aliás, a meu ver, ou por ignorância ou
por má-fé: porque, aqui no Sertão, a coisa menos surpreendente
é um Padre cangaceiro, do tipo do Padre Aristides Ferreira, degolado
em Piancó, pela “Coluna Prestes”, em 1926; ou parecido com
aqueles Bispos e monges que, segundo o genial Acadêmico pernambucano,
Doutor Manuel de Oliveira Lima, envergavam, na Idade Média, armaduras
de ferro sob as sobrepelizes e pluviais, colocando-se, assim, “à
frente de bandos armados”.
Entretanto, o nosso Monge-Cangaceiro daquele dia não vinha nem com
sobrepeliz nem com armadura de ferro. Envergava um burel branco, com um enorme
Coração-de-Jesus sangrento e flamejante, bordado a seda vermelha,
no peito. Por baixo do burel, arregaçado porque o Frade viajava escanchado
na sela, viam-se calças-perneiras de couro, esporas e sapatões
iguais aos dos outros Cavaleiros, o que indicava que, por baixo do hábito,
Frei Simão usava, também, guarda-peito e gibão, se bem
que não trouxesse chapéu de couro. Em compensação
a essa falha, trazia, porém, por cima do burel, um grosso cinturão
sertanejo de sola, cartucheira e talabartes atulhados de balas; assim como
trazia às costas um mosquetão atravessado, preso a seu tronco
por uma correia de couro que lhe cruzava o peito a tiracolo. 0 Frade conduzia
ainda, presa na haste de uma lança de marmeleiro fincada no arção
da sela, uma bandeira, mais alta do que larga, vermelha e com peças
de ouro enfeitando o campo encarnado – ou “de goles”, para os que
são, como eu, entendidos na nobre Arte da Heráldica. Nos cantos,
formando uma “aspa” ou “santor”, havia quatro peças
que pareciam-ter sido bordadas em pano amarelo, imitando “ferros”
de ferrar boi, mas que, de fato, “simbolizavam chamas”, como o Doutor
Pedro Gouveia nos explicaria depois. Entre essas quatro peças, mais
ou menos no meio do campo vermelho, havia um Sol com dezesseis raios e com
seu centro, vazio, formando um anel que circundava um pombo volante. Embaixo
do Sol, uma Coroa real, encimada por Esfera e Cruz, sendo todas estas peças
“de ouro em campo de goles”. E como, do mesmo modo, essa bandeira
é ponto importante no meu processo, aqui vai, também, a gravura
que Taparica cortou em casca de cajá e que é cópia dela.
Atrás dos dois porta-bandeiras, o leigo e o Frade, numa jaula colocada
sobre uma carreta puxada por dois burros bem tosados e escovados, ripados
à moda cigano-sertaneja, vinha uma Onça Pintada, um soberbo
animal de malhas negras e pêlo cor de ouro, manchado, aqui e ali, de
um vermelho que se fundia no fulvo, em tons cambiantes que o Sol incendiava.
Depois, em jaulas semelhantes, vinham: uma Onça-Parda, dessas chamadas
no Sertão de Suçuaranas ou Onças-de-Bode; um casal de
Pavões, abrindo o macho, ao Sol, sua cauda incrustada de jóias
e pedrarias; uma Onça-Negra, ou seja, uma Maçaroca, que é
uma Onça mestiça de negra e pintada, dessas que têm o
dorso meio pardo em cima do espinhaço e sob cujo pêlo negro e
aveludado vêem-se malhas, meio-negras, meio-vermelhas, mas sempre luminosas:
são chamadas, também, de Onças lombo-pardo, assim como
a Negra é chamada Onça-Tigre ou Onça lombo-preto. E como
no Sertão não existem Tigres, animal estrangeiro, onça
falsificada, fora certamente já antevendo, como alumiado e visionário,
esta cena da minha história, que o excelso Bardo brasileiro Joaquim
de Souza-Andrade escreveu aqueles famosos versos que dizem: “No Sertão,
no Sertão, vede a tremente ondulação das Malhas luminosas
num relâmpago – o Tigre atrás da Corça”.
Para que Vossas Excelências não estranhem que eu seja tão
entendido em Onça e bandeira, explico, primeiro, que sou membro do
nosso querido e tradicional “Instituto Genealógico e Histórico
do Sertão do Cariri”, fundado pelo Doutor Pedro Gouveia, e no
qual, para se entrar, a gente tem que fazer um curso completo de bandeiras,
brasões e outras coisas armoriais. Quanto às Onças, posso
dizer, em sã consciência, que fui criado junto com uma, na fazenda
“Onça Malhada”, pertencente a meu tio e Padrinho, Dom Pedro
Sebastião Garcia-Barretto. Na “Onça Malhada”, não
sei se como alusão ao nome da fazenda, havia uma Onça-Pintada,
mansa, criada solta no pátio e no tabuleiro da frente da casa. Em segundo
lugar, porém, aqui no Sertão quem não cuidar nas Onças
pode muito bem acabar sendo comido por elas. É daí, aliás,
que se originam todas essas histórias e ditados sertanejos sobre Onças,
todos muito instrutivos. Por exemplo, aquele ditado que diz “Quem banca
o Carneiro, e não o homem, a Onça chega por trás e come”.
Ou então aquele outro: “Depois da Onça estar morta, qualquer
um tem coragem de meter o dedo no Cu dela”. Temos, ainda, uma história
do meu amigo Eusébio Monteiro, conhecido aqui na rua como Dom Eusébio
Monturo. Ele me dizia certa vez: – Eu vejo esse pessoal por aí dizer
a toda hora: – Eu tive um susto, dei um salto, um grito… Povo mole dos seiscentos
diabos! Olhe, Quaderna, no dia em que eu der um salto e um demanda novelosa
da Guerra do Reino, causa principal da minha prisão.
0 Doutor Pedro Gouveia trazia paletó preto com debruns de seda negra
na gola, uma rosa vermelha à botoeira, colete cinza com relógio
e correntão de ouro, calças justas, riscadas de negro e cinza,
botinas negro-pardas abotoadas de lado por uma fieira de botões, e
polainas brancas. Com uma das mãos, segurava as rédeas do cavalo.
Com a outra, sobraçava um meio-termo de pasta-de-documentos e maleta
de viagem. Como logo descobriríamos depois, ali, naquela pasta, é
que vinham todos os papéis e documentos que terminariam causando tanta
complicação, tantas mortes e tantos infortúnios. Amarrada
ao pescoço por uma fita branca e amarela – “as cores do Papa”,
como ele mesmo nos explicou – o Doutor carregava uma espécie de condecoração,
“uma Cruz semelhante à da Ordem de Cristo, mas com esmaltes diferentes”,
pois era de ouro e goles – ou de amarelo e vermelho, para os não traquejados
na Heráldica. No dedo anular da mão esquerda, o Doutor usava
um anel brasonado. No indicador da direita, uma pedra-de-grau de Licenciado
em Direito, um enorme rubi, cercado por pequenos diamantes encravados em chuveiro.
Explico a Vossas Excelências que, sendo já, como sou, um Acadêmico,
tive, na infância, muito contato com os Cantadores sertanejos, tendo
mesmo, sob as ordens de meu velho primo João Melchíades Ferreira
da Silva, praticado um pouco da Arte da Cantoria. Depois, porém, por
influência do Doutor Samuel e do Professor Clemente, passei a desprezar
os Cantadores. Até que, lá um dia, li um artigo de escritor
consagrado e Acadêmico, o paraibano Carlos Dias Fernandes, artigo no
qual, depois de chamar os Cantadores de “Trovadores de chapéu
de couro”, ele os elogiava, dizendo que “o espírito épico
da nossa Raça” andava certamente esparso por aí, nos cantos
rudes daqueles “Aedos sertanejos”. Depois daí, senti-me autorizado
a externar meu velho e secreto gosto, minha velha e secreta admiração.
Perdi o acanhamento acadêmico a que tinha me visto obrigado, de modo
que, agora, para descrever melhor o Doutor Pedro Gouveia, posso e devo lançar
mão dos versos do genial Cantador Jerônimo do Junqueiro, nos
seguintes termos: Quanto ao segundo Cavaleiro, para evocá-lo aqui talvez
seja ainda mais necessário que eu me socorra das Musas de outros Poetas
brasileiros e da minha própria – aquele Gavião macho-efêmea
e sertanejo ao qual devo minha visagem poética e profética de
Alumiado. Cercava-o, efetivamente, uma atmosfera sobrenatural, uma espécie
de “aura” que só mesmo o fogo da Poesia pode descrever e
que, mesmo depois de sua chegada, ainda podia ser entrevista em torno da sua
cabeça, pelo menos “por aqueles que tinham olhos para ver”.
Tinha cerca de vinte e cinco anos. Não era simplesmente um rapaz:
era um mancebo. Mais do que isso: era um Donzel. E tem gente, aí pela
rua, que, ainda hoje, garante que naquele tempo ele chegava, mesmo, a ser
um donzelo. Fosse como fosse, a primeira pergunta que nos ocorria diante dele
era aquela que eu tantas vezes li na Antologia Nacional de Carlos de Laet:
– “Dom Donzel, onde está El-Rei”? Via-se que ele era o centro,
motivo e honra da Cavalgada, porque tinham lhe destacado a maior, mais bela
e melhor das montarias, um enorme e nobre animal branco, de narinas rosadas,
de cauda e crinas cor de ouro, cavalo que, como soubemos depois, tinha o nome
legendário de “Tremedal”. Ele o montava, como observou mais
tarde o Doutor Samuel, “com um ar ao mesmo tempo modesto e altivo de
jovem Príncipe, recém-coroado e que, por isso mesmo, ainda está
convencido de sua realeza”. Alto, esbelto, de pele ligeiramente amorenada
e de cabelos castanhos, montava com elegância, e de seus grandes olhos,
também castanhos e um pouco melancólicos, espalhava-se sobre
todo o seu rosto uma certa graça sonhadora que suavizava até
certo ponto suas feições e sua natureza – às vezes arrebatada,
enérgica, quase dura e meio enigmática, como depois viemos a
notar, principalmente depois dos terríveis acontecimentos da morte
de Arésio.
Como, ao que parece, tinha se convencionado que ninguém com a luz
do Sol na mão, de botinas-borzeguim, passa-pé, como um Barão,
sobre o Colete cinzento ajeitava o correntão. No dedo da mão
direita, seu Anel de condição.
No dedo da mão esquerda, um outro Anel, com Brasão. Era um
dele, outro emprestado: mau costume do Sertão!”
“Era magro e espigado, metido um tanto a pimpão. Trazia Cruz
ao pescoço, trancelim, Colar, cordão. Todo vestido de preto
– sela, bride, estribo, arção – com seu Chapéu, também
negro, se vestisse de maneira mais comum naquela tribo, o rapaz do cavalo
branco usava um gibão mais artisticamente trabalhado do que os dos
outros Cavaleiros. Assemelhava-se aos “gibões de honra e boniteza”
que se usam nos desfiles de Cavalhadas e puxadasde-boi. Era feito de três
qualidades diferentes de couro – de Bode, de Vaqueta e de Veado – combinando
de maneira variada o amarelo, o castanho, o vermelho e o negro. Tinha as mesmas
joelheiras e ombreiras dos outros. As dele, porém, eram negras e costuradas
ao couro castanho da véstia e das “guardas” por tiras de
couro vermelho, de modo que, mais do que qualquer outro, seu gibão
parecia a armadura de um Cavaleiro sertanejo, com os couros trançados
em ouro, púrpura, goles e sable – para narrar com esmaltes heráldicos
esta heráldica cena da mais armorial Cavalaria sertaneja. E o próprio
Donzel, assim, com aquela roupa de couro dominantemente amarela e vermelha,
parecia (todo ele ouro, sangue e coração) um Valete de Copas
montado num cavalo branco e escoltado por uma tropa sertaneja de peninchas
e valetes de paus ou de espadas.
0 mais notável, porém, é que, atado ao pescoço
por uma fechadura de prata, caía por trás das costas do Donzel,
de modo a cobrir a garupa do cavalo “Tremedal”, um manto vermelho,
no qual estava bordado um grande Escudo com as mesmas armas da bandeira –
as três Onças vermelhas em campo de ouro e os treze contra-arminhos
de prata em campo negro. Aqui, porém, havia uma novidade: o escudo
era encimado por uma figura a modo de “timbre”, uma bela Dama de
cabelos soltos, vestida com um manto negro semeado de contra-arminhos de prata
e mantendo as mãos cobertas. Era a Dama jovem e sonhosa, de olhos verdes,
de cabelos lisos, finos, compridos e castanho-claros que seria, para o rapaz
do cavalo branco, “o grande amor de sua vida”.
Notem Vossas Excelências que Gonçalves Dias já fazia
referência a ela, pois escreveu, assim como eu já disse: “De
sua Dama de Copas no Escudo trazia as cores: tinha amor pela Sonhosa, eram
claros seus amores”. Ora, naquele dia em que iniciava sua Desaventura,
o rapaz do cavalo branco ainda não reconhecera aquela moça meio
ausente, absorta e sonhosa, de cabelos castanhos o olhos verde-azuis, aquela
que veio a ser o grande amor de sua vida. Como se explica, pois, que já
trouxesse a imagem dela gravada em seu escudo? Respondo, fácil: tudo
isso “são coisas cifradas e enigmáticas”, como costuma
dizer o Doutor Samuel, coisas que somente um Poeta-Escrivão, Acadêmico,
ex-seminarista o Astrólogo sertanejo como eu pode decifrar. Vamos adiante
que, aos poucos, Vossas Excelências terminarão por entender tudo
em seu verdadeiro significado.
De fato, nobres Senhores e belas Damas de peitos macios, o escudo que acabei
de descrever era o Brasão familiar do Donzel, como o Doutor Pedro Gouveia
explicaria logo mais. Mas não deixa, também, de ser “uma
coincidência epopéica, astrosa e fatídica”, que o
timbre desse Escudo fosse exatamente “uma Dama de cabelos soltos e com
as mãos cobertas”: porque a moça Heliana, aquela que veio
a ser o grande amor e o segredo da sua vida, vivia sempre com as mãos
cobertas, não se conhecendo notícia de homem nenhum a quem ela,
conscientemente, consentisse desvendá-las – com exceção
dele, é claro.
E para concluir a descrição da parelha de homens de pró
que viria subverter nossa Vila naquele sábado de 1935, valho-me do
genial Amador Santelmo, que deles falou assim, na sua bem conhecida Vida,
Aventuras e Morte de Lampião e Maria Bonita: “Dizem que uma Sombra
escura com duas Pontas na testa, por onde o Donzel caminha, ao lado, se manifesta.
Desde a Cadeia onde o Moço na Morte foi sepultado, esta Sombra cornipeta
caminha sempre a seu lado. Como irmã-de-caridade seguindo o jovem Defunto,
o Carcará de chavelhos vai sempre ao Mancebo junto.
o Doutor, luz verde-escura da Cidade dos Pés Juntos, Lampa acesa
dos jazigos, fogo-fátuo dos Defuntos.
o Donzel, estrela errante, facho dos Lumes eternos, ouro do Sol, Desafio
às negras chamas do Inferno.
o Doutor, vela de sebo, sinal dos Magos errôneos, Lume lúgubre
da Morte, lampadário do Demônio.
o Donzel, lustre e Candeia que o Sol do sangue espadana, carne cravada de
Estrelas, Coroa da Raça Humana!”
FOLHETO III – BANDEIRA DO DIVINO ESPIRITO SANTO DO SERTÃO, QUE 0
FRADE CONDUZIA
A Aventura da Emboscada Sertaneja Vossas Excelências não imaginam
o trabalho que tive para arrumar todos os elementos desta cena, colhidos em
certidões que mandei tirar dos depoimentos dados por mim no inquérito,
numa “prosa heráldica”, como dizia o grande Carlos Dias Fernandes.
Só o consegui porque, além de pertencer ao “Oncismo”
do Professor Clemente, pertenço também ao movimento literário
do Doutor Samuel Wandernes, o “Tapirismo Ibérico-Armorial do Nordeste”.
Graças a este último é que omiti, nas descrições
que fiz até aqui, qualquer referência ao tamanho diminuto e à
magreza dos cavalos sertanejos que serviam de montada aos Cavaleiros, assim
como às pobrezas e sujeiras mais aberrantes e evidentes da tropa. No
movimento literário de Samuel é assim: Onça, é
“jaguar”, anta é “Tapir”, e qualquer cavalinho
esquelético e crioulo do Brasil é logo explicado como “um
descendente magro, ardente, nervoso e ágil das nobres raças
andaluzas e árabes, cruzadas na Península Ibérica e para
cá trazidas pelos Conquistadores fidalgos da Espanha e de Portugal,
quando realizaram a Cruzada épica da Conquista”. Tendo sido eu
discípulo desses dois homens durante a vida inteira, nota-se à
primeira vista que meu estilo é uma fusão feliz do “oncismo”
de Clemente com o “tapirismo” de Samuel. É por isso que,
contando a chegada do Donzel, parti, oncisticamente, “da realidade raposa
e afoscada do Sertão”, com seus animais feios e plebeus, como
o Urubu, o Sapo e a Lagartixa, e com os retirantes famintos, sujos, maltrapilhos
e desdentados. Mas, por um artifício tapirista de estilo, pelo menos
nessa primeira cena de estrada, só lembrei o que, da realidade pobre
e oncista do Sertão, pudesse se combinar com os esmaltes e brasões
tapiristas da Heráldica. Cuidei de só falar nas bandeiras, que
se usam realmente no Sertão para as procissões e para as Cavalhadas;
nos gibões de honra, que são as armaduras de couro dos Sertanejos;
na Cobra-Coral; na Onça; nos Gaviões; nos Pavões; e em
homens que, estando de gibão e montados a cavalo, não são
homens sertanejos comuns, mas sim Cavaleiros à altura de uma história
bandeirosa e cavalariana como a minha.
Entretanto, é deste relato que depende a minha sorte e ninguém
é tão fanático a ponto de fazer Literatura em troca de
cadeia. Devo ser exato: e infelizmente, no mesmo instante em que consigo arrumar
tudo, tenho que desarrumar tudo de novo. Porque, naquele 33 dia, quando a
Cavalgada vinha perto do legendário Riacho de Cosme Pinto, ela mesma
foi desarrumada por um incidente sujo o oncístico, que causou alguns
rasgões raposos na bandeira da frente, sujou homens e cavalos de suor
e poeira e chegou mesmo a derramar sangue, se bem que esta última parte
ainda possa ser considerada tapirista e heráldica, pois houve tiros
e reluzir de facas nos riscos de Sol – o que não deixa de ser armorial.
Naquele ponto da estrada, do lado direito de quem vem para Taperoá,
existe um Lajedo não dos maiores, manchado aqui e ali de líquenes
avermelhados, e separado da estrada por um pedaço de tabuleiro raso,
coberto de ralos pés de Marmeleiro, Pinhão, Velame, Malva e
Cardo-Santo. Pouco antes de atingir esse Lajedo, a carreta da Onça-Pintada
enganchou-se na subida de uma ladeira. Atendendo a uma ordem rápida
do Cigano Praxedes – que, como soubemos depois, não era o verdadeiro
Chefe, mas sim seu preposto o uma espécie de Sargento-Mor da tropa
– alguns dos almocreves que tangiam os burros começaram a empurrar
a carreta, atrasando a marcha do grupo compacto de Cavaleiros. 0 Doutor Pedro
Gouveia, impaciente pela demora, esporeou seu cavalo e foi se colocar, com
o rapaz, perto de Frei Simão, lá na frente. E como o resto da
Cavalgada parasse com o contratempo, a parte da frente dela se adiantou, de
modo que foram eles os primeiros a cair numa emboscada, cujos componentes
estavam escondidos no Lajedo, por trás de umas pedras que em seu topo
se equilibravam.
0 tiroteio começou de maneira um tanto inusitada. Na grimpa do lajedo,
erguendo-se de trás da pedra, apareceu de repente um Negro moço,
desempenado, vestido de cáqui, encruzado de cartucheiras e de chapéu
de couro à cabeça. Erguendo um rifle bem alto no ar com a mão
direita, o Negro cantou uma estrofe desafiadora, rindo com os dentes alvos
e perfeitos que luziam no Sol: “Filha de branco, linda e clara como a
Lua! eu vou pegar você nua, mas não é para casar! É
pra lascar, que eu me chamo é Ludugero! Eu nasci Negro e só
quero moça branca pra estragar!” dgero Cobra-Preta, como também
era conhecido – deu um rincho e jumento e, levando o rifle à cara,
atirou.
Pode se dizer que a salvação do rapaz do cavalo branco deveu-se,
naquele instante, à bandeira que o matinador da frente conduzia. Julgando,
por causa dela, que “aquele era o rapaz importante da encomenda que tinham
recebido”, foi contra o matinador da bandeira que se disparou o primeiro
tiro e convergiram os outros disparos, numa saraivada de balas que ressoaram
por trás das pedras, em estalos secos como os de um tabocal incendiado,
por entre gritos, insultos, relinchos e gargalhadas:
“E era um barulho danado, todo esse Povo atirando! As balas, por perto
deles, passavam no Ar, silvando! 0 tiroteio imitava um Tabocal se queimando!”
O homem que vinha com os Gaviões, vendo começar o tiroteio,
largou no chão a cruz que vinha com as aves, correu para o outro lado
da estrada e deitou-se em sua beira, encolhendo-se o mais que podia para passar
despercebido. Mas, com o corpo todo traspassado de balas, o matinador da bandeira
caiu do cavalo, já nos estremeços da morte. Como ficara com
o pé enganchado no estribo, foi arrastado pelo cavalo espavorido na
direção aqui de Taperoá, com a bandeira rasgando-se um
pouco e sujando-se muito, enquanto ele mesmo deixava pelo chão endurecido
da estrada pedaços de seu couro e golfadas de sangue, logo bebidas
pelo Sol e pelo pó. Soubemos, depois, que ele se chamava José
Colatino. Era do Sertão do Sabugi. Deixara sua casa, encravada no sopé
áspero e seco da pedregosa Serra de Santa Luzia, para se alistar nas
tropas do Cigano Praxedes e morrer ali, daquele jeito! O Doutor Pedro Gouveia,
homem expedito, calculou num repente o que se seguiria se o rapaz do cavalo
branco ficasse ali mais alguns segundos. Viu então que o cavalo de
Colatino, depois de correr duzentos a trezentos metros arrastando o corpo,
parara na beira esquerda da estrada e ali se mantinha impassível, por
cansaço ou por pachorra. Isso indicava que provavelmente não
havia ali outros Cangaceiros emboscados. 0 Doutor gritou, então, para
o rapaz: – Abaixe-se! Em seguida, jogando no chão a pasta de documentos,
abraçouse ao pescoço de seu cavalo, pegou na rédea de
“Tremedal”, esporeou sua própria montaria, e assim galoparam
os dois para o lugar onde parara o cavalo de Colatino. Por sua vez, o gigantesco
Acabada a estrofe e aproveitando o momento de estupefação causado
por seu aparecimento, o Negro Ludugero – ou Ludu- ~ Vs
Frei Simão, entendendo logo o alcance da manobra do Doutor, viu que,
quanto a si, o melhor que tinha a fazer era ficar entretendo com tiros os
Cangaceiros do lajedo. Saltou, portanto, do cavalo e, como antigo que era
nas refregas sertanejas, abrigou-se por trás do animal, fazendo trincheira
do corpo do bicho, ao mesmo tempo que o segurava para ele não correr,
com a mão esquerda no freio e a direita no loro do estribo. Notando,
então, que o cavalo, apesar de estremecer a cada estalo de tiro, não
estava amedrontado a ponto de desembestar, emendou, com rédea curta,
o loro com a bride, tirou o mosquetão das costas e começou a
responder ao fogo cerrado dos rifles, que pipocavam de trás das pedras
do Lajedo.
Tempos depois, Lino Pedra-Verde escreveria aquele tal “romance”
a que já me referi, e eu me lembro bem de que, quando chegava a essa
parte, havia uma sextilha meio plagiada do Romance do Valente Vilela, assim:
“Frei Simão pegou do Rifle, ficou o Mundo tinindo! Era o dedo
amolegando e o fumaceiro cobrindo, balas batendo nas Pedras, voltando pra
trás, zunindo!” É verdade que o Frade trazia era um mosquetão.
Mas como este não cabia na métrica, Lino Pedra-Verde transformou-o
num rifle, no “folheto”. E é aí que eu, apesar de
partir “da realidade rasa e cruel do mundo”, como Clemente, dou
também razão a Samuel, quando diz que, na Arte, a gente tem
que ajeitar um pouco a realidade que, de outra forma, não caberia bem
nas métricas da Poesia.
Enquanto Frei Simão trocava tiros com os Cangaceiros, o Doutor e
o rapaz chegavam, sem dano, ao lugar que procuravam. A sorte foi que o Capitão
Ludugero recebera informações erradas sobre a tropa, o que o
atraso das carretas e dos Cavaleiros confirmara, Sendo assim, seguro de sua
superioridade, o Negro não tivera o cuidado de empiquetar os dois lados
da estrada.
0 Doutor pensou, primeiro, em ultrapassar o cavalo de Colatino, continuando
a carreira em direção a Taperoá. Depois, porém,
lembrou-se de que seria perigoso perder ligação, de vez, com
a tropa do Cigano, que não estava longe. Ordenou ao rapaz que desmontasse,
apeou-se e, forçando os cavalos a se deitarem, espi36 charam-se os
dois no chão, por trás dos bichos, . para cuidarem também
um pouco em Frei Simão que estava em situação difícil.
Aí os acontecimentos se precipitaram. Porque sete ou oito Cangaceiros,
vendo, de cima do Lajedo, que os dois tinham parado, fora do alcance dos tiros
mas sozinhos e praticamente inermes, começaram a sair de trás
das trincheiras de pedra: deixando dois ou três companheiros para a
troca de tiros com o Frade, desceram o flanco direito do Serrote e correram
na direção dos dois para acabar com eles. 0 Doutor puxou a pistola
e já ia ordenar ao rapaz que montasse e buscasse salvação
na fuga, enquanto ele resistia. Mas nesse momento o Cigano Praxedes apontou
na estrada, galopando desenfreadamente com seus Cavaleiros. Conforme soubemos
depois, o verdadeiro Chefe e Mestre-de-Campo da tropa viajava incógnito,
no meio dos simples almocreves da cavalgada. Do lugar em que estava, junto
às carretas, ouvira o pipocar dos tiros e, na emergência, dera
ordem ao Cigano para varrer o local a patas de cavalo.
Foi outro golpe de sorte. Se os Cangaceiros não tivessem saído
de cima do serrote, a situação dos Ciganos seria ruim, incapacitados
como estavam de escalar os lajedos. Teriam que desmontar, e, a pé,
os grossos gibões e calças de couro tolheriam seus movimentos,
numa luta corpo a corpo. Mas os Cangaceiros tinham se desentocado de trás
das pedras, e agora corriam a pé, no raso, pela beira da estrada.
Na carreira em que vinha a tropa, uma fila de Cavaleiros, a da direita,
obedecendo a uma ordem gritada ao vento pelo Cigano, galopou pela Catinga,
demandando a parte traseira do lajedo e a retaguarda dos Cangaceiros que ali
ainda estavam, a fim de, com isso, aliviar a posição do Frade.
Os outros, passando entre Frei Simão e as pedras e desembainhando os
enormes facões rabo-de-galo, partiram com o Cigano à frente,
para os Cangaceiros que corriam contra o rapaz e o Doutor.
De cima do lajedo, Ludugero Cobra-Preta viu tudo e entendeu a gravidade
da situação. Corajoso e galhofeiro como era, foi zombando de
si mesmo e dos seus que colocou as mãos em concha na boca e gritou:
– Eira, que a gente agora vai se acabar tudo na faca! Corre, cabroeira dos
seiscentos diabos! Cai no marmeleiro, negrada! Entope no oco do mundo, senão
vai tudo sangrado! Aí, às gargalhadas, ele mesmo desceu do lajedo,
na carreira, acompanhado pelos Cangaceiros que estavam ainda ali, caindo no
mato. Os Cangaceiros que corriam para o Doutor e o rapaz, ouvindo o alarido
do Capitão Ludugero entenderam o que vinha por trás. Desviaram
o rumo da carreira em que iam, caíram na Catinga e conseguiram atingir
uma cerca-de-pedra, que galgaram rapidamente, 37 afundando-se no mato ralo
e espinhoso do cercado que havia por trás dela. Certos de que já
tinham cumprido o objetivo principal da emboscada e matado o rapaz que lhes
fora designado, queriam agora era escapar o mais depressa possível,
fugindo à luta desigual com toda aquela tropa. Por outro lado, isso
vinha ao encontro do que o Frade e o Doutor desejavam. Vendo que os Cangaceiros
fugiam, os dois se reuniram, confabularam rapidamente e deram uma ordem a
Praxedes. Foi a vez de soar o grito do Cigano, ordenando que a tropa de Cavaleiros
saísse daquele mato perigoso; que novamente poderia favorecer os Cangaceiros,
para emboscadas. A tropa, obedecendo a Praxedes, reuniu-se de novo na estrada,
e todos, insensivelmente atraídos pela figura do rapaz do cavalo branco,
fixaram os olhos nele, como a indagar até que ponto ele fora atingido
pelos acontecimentos. Ele estava já de pé, segurando as rédeas
de “Tremedal” e contemplando, absorto, o corpo do rapaz que morrera
em seu lugar. O Doutor, depois de apanhar a importante pasta de documentos,
caminhou para lá, puxando seu cavalo pela rédea: – Venha, vamos
embora! – falou ele para o rapaz. – O que passou, passou! – Ele está
morto? – perguntou o rapaz, sempre com expressão meio ausente.
– Está, sim! Mas vamos! – insistiu o Doutor Pedro Gouveia.
Enquanto assim falavam, Frei Simão, aproveitando a atenção
com que todos olhavam para o rapaz, ia catando e guardando disfarçadamente,
no bolso da batina, cápsulas deflagradas e mesmo três ou quatro
amassadas balas de chumbo. O rapaz, sempre olhando o corpo de Colatino, comentou:
– É a primeira vez que eu vejo a morte! – É assim mesmo, é
a vida! – disse o Doutor, apanhando a bandeira, espanando com o lenço
a poeira que a sujara e passando-a a outro, para que assumisse o posto de
matinador, de Colatino. E continuou: – Hoje, ou amanhã, de tiro ou
de doença, de qualquer jeito um dia ele tinha de morrer! Depois, talvez
não seja esta a primeira vez que você vê a morte! Talvez
você esteja somente esquecido, por causa de tudo o que passou, de outras
mortes que viu, antes. Mas vamos sair logo daqui, que os Cangaceiros podem
voltar com mais gente! Nesse momento, um homem alto, magro e forte, de olhos
castanhos, com a calma, a energia e a mansidão aparente dos Sertanejos
mais corajosos, destacou-se no meio dos almocreves, que a essa altura também
já tinham chegado, e aproximou-se do Doutor. Era o Chefe e Capitão-Mor
da tropa, um homem cujo nome, quando depois se espalhou pela Vila, eletrizou
todo mundo: porque ele era, nem mais nem menos, que o célebre Lufs
Pereira de 38 Sousa, mais conhecido como Luís do Triângulo, por
causa de sua pequena fazenda pajeuzeira, “O Triângulo”. E
so estranhará que esse nome de Luís do Triângulo tenha
causado tanta emoção entre nós quem ignorar dois fatos:
primeiro, que, pertencendo ele à grande família dos Pereiras,
do Pajeú – famosa pela coragem e pelas façanhas guerreiras –
Luís do Triângulo era parente de -Dom José Pereira Lima,
aquele mesmo Fidalgo sertanejo que, em 1930, se rebelara contra o Governo,
tornando-se Rei-Guerrilheiro de Princesa, proclamando a independência
do município com hino, selo, bandeira, Constituição e
tudo, subvertendo o Sertão da Paraíba à frente do seu
exército de dois mil homens de armas, numa guerrilha heróica
que o governo do Presidente João Pessoa em vão tentou vencer
com sua Polícia. Nesse Reino, ou Território Livre, de Princesa,
o Rei era Dom José Pereira Lima, o Invencível, e Lufs do Triângulo,
então com trinta e dois anos, era o Condestável e Chefe do Estado-Maior.
O outro fato importante, ligado a Lufs do Triângulo, era que ele possuía
uma terra, situada exatamente na fronteira da Paraíba com Pernambuco,
para os lados do Sertão do Piancó. Nessa terra, fica a famosa
Serra do Reino, na qual se erguem aquelas duas enormes pedras, estreitas,
compridas e paralelas, que os nossos Sertanejos consideram sagradas, por serem
as torres do Castelo, Fortaleza ou Catedral Encantada onde meu bisavô,
Dom João Ferreira-Quaderna, foi Rei, ensinando, de uma vez para sempre,
que o Castelo está ali, soterrado por um cruel encantamento, do qual
somente o sangue nos poderia livrar, acabando de uma vez com a miséria
do Sertão e fazendo todos nós felizes, ricos, belos, poderosos,
eternamente jovens e imortais.
Luis do Triângulo chegou-se para o Doutor, falando: – Viu o que eu
lhe disse, Seu Doutor? Era o grupo de Ludugero Cobra-Preta! – Sim! – concordou
o Doutor. – Mas deve ter sido tudo a mandado do pessoal de Taperoá:
de Arésio Garcia-Barretto e de Antônio Moraes! – Mas o senhor
viu como eu tinha razão? Com essa história de se viajar de gibão,
que o senhor inventou, a gente podia ter se desgraçado! – É
verdade, e eu sabia que você tinha razão, Lufs! – retrucou, sério,
o Doutor. – Mas eu não podia abrir mão das bandeiras e dos gibões:
tudo isso me é indispensável para impressionar o Povo, quando
entrarmos em Taperoá! E não se queixe, porque a bandeira também
foi idéia minha e, se não fosse ela, a essas horas o morto seria
outro! Lamento por causa do rapaz que morreu, mas um de nós teria que
morrer e, no mais, tudo vai bem! Antes de chegar no Cosme Pinto, a gente faz
uma parada, 39 enterra Colatino e almoça: dá tempo de chegar
em Taperoá aí pelas duas horas da tarde, exatamente quando estará
começando a Cavalhada que o Prefeito organizou. Vamos embora!
Montaram. O rapaz do cavalo branco também montou. Naquele tempo, as
forças da violência e as divindades subterrâneas ainda
estavam adormecidas em seu sangue, pois não tinham sido despertadas
pelo veneno do nosso convívio. De modo que, sonhoso o absorto, ele
ignorava naquele instante quantas cenas e quantas mortes como aquela sua chegada
iria causar entre nós, durante os três anos que medearam entre
aquela Véspera de Pentecostes de 1935 e a Semana da Paixão,
deste nosso ano de 1938. Foi também esta cena inicial da “Demanda
Novelosa do Reino do Sertão” que terminou batendo com meus costados
na Cadeia onde estou preso, à mercê do julgamento de Vossas Excelências.
Naquele dia porém, e mesmo com o aviso dado pela Providência
com a morte de Colatino, ainda não estava rompida a descuidosa mas
culposa ignorância em que estávamos todos nós que iríamos
participar da terrível Desaventura do rapaz do cavalo branco. O Sol
alumiava e esquentava tudo, como antes. Como se tivesse sido por ele gerado,
um Ferreiro, no mato, começou a desferir seu canto metálico,
semelhante ao batido dum martelo numa bigorna, canto logo seguido pelos piados,
também violentos o metálicos, de um bando de cancões.
O corpo de Colatino, colocado de través em címa do cavalo, foi
conduzido, assim, aguardando o enterro que o Doutor ordenara para logo mais,
nas imediações do histórico riacho em que, no século
XVII, o Ajudante Cosme Pinto iniciara a penetração do Cariri,
sob as ordens do Capitão-Mor Teodósio de Oliveira Ledo. Novamente
a tropa de Cavaleiros, com a bandeira à frente, tomou o caminho de
Taperoá. Agora, porém, como precaução, o rapaz,
o Doutor e o Frade iam no meio dos dois cordões de Cavaleiros e todos
viajavam de rifle na mão, prontos para qualquer novo ataque. Aquele,
porém, seria o último incidente sério, até a chegada
a Taperoá. O perigo principal passara, de modo que, como tinha previsto
desde 1922 a genial J. A. Nogueira – em seu livro Sonho de Gigante, que tanta
influência exerceu entre nós, Acadêmicos sertanejos – naquele
instante, passando o lajedo e a emboscada, “o Peregrino do Sonho transpunha,
de repente, a fronteira de dois Reinos. O Rio subterrâneo deixava de
refletir as tenebrosas asperezas da região da morte: elevou-se como
uma Coluna de diamantes e, arrebentando à flor da terra, espraiou-se
debaixo de um Céu de meio-dia, na região pedregosa do Sol e
das altitudes, que o Reabilitados da vida elegera para iluminar com sua presença
de Fogo”.
FOLHETO IV
O Caso do Fazendeiro Degolado Pode-se dizer, nobres Senhores e belas Damas,
que houve duas causas próximas para minha prisão. A primeira,
foi a chegada, a Taperoá, do rapaz do cavalo branco. A segunda, estreitamente
ligada a ela, foi o assassinato, por degolação, de meu tio e
Padrinho, o fazendeiro Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto. Meu Padrinho
foi encontrado morto, no dia 24 de Agosto de 1930, no elevado aposento de
uma torre que existia na sua fazenda, a “Onça Malhada”. Essa
torre servia, ao mesmo tempo, de mirante à casa-forte, o de campanário
à capela da fazenda, que era pegada à casa. Seu aposento superior
era um quarto quadrado, sem móveis nem janelas. O chão, as grossas
paredes e o teto abobadado desse aposento eram de pedra-e-cal. Por outro lado,
meu Padrinho, naquele dia, entrara so no aposento e trancara-se lá
em cima, dentro dele, usando, para isso, não so a chave, como a barra
de ferro que a porta tinha por dentro, como tranca. Outra coisa misteriosa:
no mesmo dia, Sinésio, o filho mais moço de meu Padrinho, desapareceu
sem ninguém saber como. Dizia-se que fora raptado, a mando das pessoas
que tinham degolado seu Pai, pessoas que odiavam o rapaz porque ele era amado
pelo Povo sertanejo, que depositava nele as últimas esperanças
de um enigmático Reino, semelhante àquele que meu bisavô
criara. Sinésio fora raptado e, segundo se noticiou, morrera também
de modo cruel e enigmático, dois anos depois, na Paraíba, o
que não impedia o Povo de continuar esperando a volta e o Reino miraculoso
dele.
Pergunto: e agora? Como e que meu Padrinho foi degolado num quarto de pesadas
paredes sem janelas, cuja porta fora trancada por dentro, por ele mesmo? Como
foi que os assassinos alí penetraram, sem ter por onde? Como foi que
saíram, deixando o quarto trancado por dentro? Quem foram esses assassinos?
Como foi que raptaram Sinésio, aquele rapaz alumioso, que concentrava
em si as esperanças dos Sertanejos por um Reino de glória, de
justiça, de beleza e de grandeza para todos? Bem, não posso
avançar nada, porque aí é que está o nó!
Este é o “centro de enigma e sangue” da minha história.
Lembro que o genial poeta Nicolau Fagundes Varela adverte todos nós,
Brasileiros, de que “os irônicos estrangeiros” vivem sempre
vigilantes, sempre à espreita do menor deslize nosso para, então,
“ridicularizar o pátrio pensamento”:
ESCUDO DO MANTO DO RAPAZ DO CAVALO BRANCO
“Fatal destino o dos brasílios Mestres! Fatal destino o dos brasílios
Vates! Política nefanda, horrenda e negra, pestilento Bulcão
abafa e matá quanto, aos olhos de irônico estrangeiro, podia
honrar o pátrio pensamento! ”
Ora, um dos argumentos que os “irônicos estrangeiros” mais
invocam para isso é dizer que nós, Brasileiros, somos incapazes
de forjar uma verdadeira trança, uma intrincada teia, um insolúvel
enredo de “romance de crime e sangue”. Dizem eles que não
é necessário nem um adulto dotado de argúcia especial:
qualquer adolescente estrangeiro é capaz de decifrar os enigmas brasileiros,
I os quais, tecidos por um Povo superficial, à luz de um Sol por demais
luminoso, são pouco sombrios, pouco maldosos e subterrâneos,
transparentes ao primeiro exame, facílimos de desenredar. ~ Ah, e se
fossem somente os estrangeiros, ainda ia: mas até o excelso Gênio
brasileiro Tobias Barretto, aí é demais! Diz I Tobias Barre
tto que no Brasil é impossível aparecer um “romance ,,
de gênio”, porque “a nossa vida pública e particular
não é bastante fértil de peripécias e lances romanescos”.
Lamenta que seja raro, entre nós, “um amor sincero, delirante,
terrível e sanguinário”, ou que, quando apareça,
seja num velho como o Desembargador Pontes Visgueiro, o célebre assassino
alagoano do Segundo Império. E comenta, ácido: “Um ou outro
crime, mesmo, que porventura erga a cabeça acima do nível da
vulgaridade, são coisas que não desmancham a impressão
geral da monotonia continua. Até na estatística criminal o nosso
País revela-se mesquinho. O delito mais comum é justamente o
mais frívolo e estúpido: o furto de cavalos”.
A gente lê uma coisa dessas e fica até desanimado, julgando
ser impossível a um Brasileiro ultrapassar Homero e outros conceituados
gênios estrangeiros! A sorte é que, na mesma hora, o Doutor Samuel
nos lembra que a conquista da América Latina “foi uma Epopéia”.
Vemos que somos muito maiores do que a Grécia – aquela porqueirinha
de terra! – e aí descansamos o pobre coração, amargurado
pelas injustiças, mas também incendiado de esperanças!
Sim, nobres Senhores e belas Damas: porque eu, Dom Pedro Quaderna (Quaderna,
o Astrólogo, Quaderna, o Decifrador, como tantas vezes fui chamado);
eu, Poeta-Guerreiro e soberano de um Reino cujos súditos são,
quase todos, cavalarianos, trocadores e ladrões de cavalo, desafio
qualquer irônico, estrangeiro ou Brasileiro, primeiro a narrar uma história
de amor mais sangrenta, terrível, cruel e delirante do que a minha;
e, depois, a decifrar, antes que eu o faça, o centro enigmático
de
crime e sangue da minha história, isto é, a degola do meu Padrinho
e a “desaparição profética” de seu filho Sinésio,
o Alumioso, esperança e bandeira do Reino Sertanejo.
É por causa desses dois fatos que eu dizia, há pouco, que
as causas próximas da minha prisão tinham sido a morte de meu
Padrinho e a chegada do rapaz do cavalo branco a Taperoá. As causas
remotas, porém, foram a Cantiga de La Condessa, que incendiou meu sangue
na puberdade, e os sangrentos sucessos ocorridos exatamente há um século,
de 1835 a 1838, quando minha família ocupou o trono do Brasil, no Sertão
da Pedra do Reino, entre o Pajeú de Pernambuco e o Piancó da
Paraíba. Estes últimos, além de serem os mais remotos,
são também os acontecimentos mais importantes. Foram, talvez,
a causa e o começo de “todas as vicissitudes da minha atribulada
existência”, como dizem os contos publicados num dos meus livros-de-cabeceira,
o Almanaque Charadistico e Literário Luso-Brasileiro. É por
isso que, logo de entrada, devo narra-los, a fim de que Vossas Excelências
possam, aos poucos, ir fazendo do meu caso a opinião mais completa
possível.
Para narrar essa história, valer-me-ei o mais que possa das palavras
de geniais escritores brasileiros, como o Comendador Francisco Benfcio das
Chagas, o Doutor Pereira da Costa e o Doutor Antônio Attico de Souza
Leite, todos eles Acadêmicos ou consagrados e, portanto, indiscutíveis:
assim, ninguém poderá dizer que estou mentindo por mania de
grandeza e querendo sentar de novo um Ferreira-Quaderna, eu, no trono do Brasil,
pretendido também – mas sem fundamento! – pelos impostores da Casa
de Bragança. Faço isso também porque assim, nas palavras
dos outros, fica mais provado que a história da minha família
é uma verdadeira Epopéia, escrita segundo a receita do Retórico
e gramático de Dom Pedro II, o Doutor Amorico Carvalho: uma história
épica, com Cavaleiros armados e montados a cavalo, com degolações
e combates sangrentos, cercos ilustres, quedas de tronos, coroas e outras
monarquias – o que sempre me entusiasmou, por motivos políticos e literários
que logo esclarecerei.
Aliás, minto: sempre, não! A princípio, a história
de minha famflia era para nós, Ferreira-Quadernas, uma espécie
de estigma vergonhoso e de mancha indelével do nosso sangue. E não
era para menos, quando somente meu bisavô, El-Rei Dom João Ferreira-Quaderna,
o Execrável, no espaço de três dias mandou degolar cinqüenta
e três pessoas, incluindo-se entre elas trinta crianças inocentes,
o que aconteceu no fatídico e astroso mês de Maio de 1838. Meu
Pai, Dom Pedro Justino, e minha tia Dona Filipa, Irmã dele, tinham
pavor de todas aquelas mortes cometidas por nossos antepassados, e temiam
que o sangue dos inocentes caísse um dia sobre nossas cabeças,
como os Judeus invocaram o sangue do Cristo sobre as deles.
Apesar de todos os cuidados, porém, um dia, meu velho parente e padrinho-de-crisma,
o Cantador João Melchfades Ferreira, num momento de entusiasmo pelas
grandezas da famflia, contou tudo isso a mim, que era seu discípulo
“na Arte da Poesia”. Fiquei terrivelmente abalado, sentindo como
se aquele sangue me infeccionasse o meu de uma vez para sempre. Eu teria,
então, uns doze anos; e, em tudo, o que mais me impressionava era a
morte de um menino, mais ou menos de minha idade, degolado por seu próprio
Pai, por ordem de meu bisavô. Na hora do sacrifício, o inocente,
chorando, reprochava docemente o degolados, dizendo, num queixume: – “Meu
Pai, você não dizia que me queria tanto bem?” Fiquei, assim,
apavorado e fulminado, por descender do sangue ferreiral e quadernesco, carregado
com tantos crimes! So depois, aos poucos, unindo aqui e ali uma ou outra idéia
que Samuel, Clemente e outros me forneciam, é que fui entendendo melhor
as coisas e descobrindo que podia, mesmo, transformar em motivo de honras,
monarquias e cavalarias gloriosas, aquilo que meu Pai escondia como mancha
e estigma do sangue real dos Quadernas. O Padre Daniel foi uma dessas pessoas:
lá um dia provou ele, num sermão que causou espanto, que todos
os homens, e não somente os Judeus, eram os assassinos do Cristo. Ao
ouvi-lo, passei a refletir assim: – “Se isso e verdade, então
todas as outras pessoas, e não somente os Quadernas, são responsáveis
por aquelas mortes da Pedra do Reino”! E, com isso, comecei a me libertar
do peso exclusivo de toda aquela carga de sangue. Outra pessoa foi o próprio
João Melchíades Ferreira. Tempos depois, ele cantou para eu
ouvir um folheto q.ie escrevera, a Vida, Paixão e Morte – Sorte, Símbolo
e Sinais – de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nesse folheto, João Melchíades,
que ouvira o sermão do Padre Daniel, dizia Ia, a certa altura: “O
Sangue que saiu dele, selou o nosso Destino.
Nós todos matamos Cristo: somos todos assassinos! Nós todos
matamos Deus: por isso somos divinos!”
Não pude deixar de refletir de novo, dizendo-me que, se o fato de
matar Deus, tinha tornado os homens divinos, o de me
/ originar de uma família de Reis, assassinos de Reis, era a maior
prova da minha realeza.
Além desses testemunhos, porém, o Doutor Samuel Wandernes
me disse um dia que eu, além do sangue cigano-árabe c godoflamengo,
tenho, ainda, umas gotas de sangue judaico, herdadas de minha Mãe,
Maria Sulpícia Garcia-Barretto. Depois daí, entendi: de qualquer
modo eu estaria incluído entre os criminosos mais ilustres do mundo
– aqueles que, por terem tido a coragem de matar Deus, tinham propiciado a
todos os homens a possibilidade de ascender e se igualar ao Divino. Quanto
ao Professor Clemente, provou-me ele, um dia, com exemplos tirados da História
da Civilização, de Oliveira Lima, que todas as famílias
reais do mundo são compostas de criminosos, ladroes de cavalo e assassinos,
de modo que a minha não era, absolutamente, uma exceção.
Depois daí, mesmo quando minha imaginação pegava fogo
e eu evocava, sem querer, a degola de todas aquelas crianças, minha
razão vinha em socorro da consciência, e eu opunha, ao que via,
aquela outra degola dos inocentes, acontecida no Sertão da Judéia,
no tempo em que Cristo era menino. Dizia-me que, apesar de ter sido o mandante
daquela matança, Herodes passara à História com o nome
glorioso de E1-Rei Herodes I, o Grande. E então já não
me sentia mais desonrado, e sim orgulhoso, por ser bisneto de El-Rei Dom João
II, o Execrável.
Mas para não me alongar muito, passo a contar logo a gloriosa e sangrenta
ascensão dos Quadernas ao trono da Pedra do Reino do Sertão
do Brasil.
assim, permanece de acesso difícil e penoso. É coberta de
espinheiros entrançados de unhas-de-gato, malícia, favela, alastrados,
urtigas, mororós e marmeleiros. Catolezeiros e cactos espinhosos rotnpletam
a vegetação, e conta-se que o sangue que embebeu a terra e as
pedras, durante o reinado dos Quadernas, foi tanto que, na Sexta-Feira da
Paixão de cada ano, os catolezeiros começam a gemer, as pedras
a refulgir no castanho e nas incrustações de prata ou malacacheta,
e as coroas-de-frade começam a minar sangue, vermelho e vivo como se
tivesse sido há pouco derramado.
Não é isso, porém, o elemento mais importante, ali,
como fundamento de glória e sangue da minha realeza: são as
duas enormes pedras castanhas a que já me referi, meio cilíndricas,
meio retangulares, altas, compridas, estreitas, paralelas e mais ou menos
iguais, que, saindo da terra para o céu esbraseado, numa altura de
mais de vinte metros, formam as torres do meu Castelo, da Catedral èncantada
que os Reis meus antepassados revelaram como pedras-angulares do nosso Império
do Brasil. O genial Acadêmico sertanejo Antônio Attico de Souza
Leite, nascido ali por perto, fala delas assim, na Crônica-Epopéica
intitulada Memória sobre a Pedra Bonita, ou Reino Encantado, na Comarca
de Vila-Bela, Província de Pernambuco, escrita em 1874 e apresentada
em memorável sessão do “Instituto Arqueológico de
Pernambuco”: “A Pedra Bonita, ou Pedra do Reino, como lhe chamam
hoje, são duas pirâmides imensas de pedra maciça, de cor
férrea e de forma meio quadrangular, que, surgindo do seio da terra
defronte uma da outra, elevam-se sempre à mesma distância, guardando
grande semelhança com as torres de uma vasta Matriz, a uma altura de
cento e cinqüenta palmos (ou seja, trinta e três metros). A que
fica para o lado do Nascente, em conseqüência de uma espécie
de chuvisco prateado de que está coberta, de meia altura para cima,
e que parece infiltração de malacacheta, adquiriu o nome de
Pedra Bonita, em completo prejuízo da companheira. Ao Poente, e logo
na extremidade da segunda pirâmide, ou Torre, há uma pequena
sala meio subterrânea, a que chamavam Santuário, não só
por ser o lugar onde primeiro entravam os noivos, depois de casados pelo falso
Sacerdote da seita, o intitulado Frei Simão, como porque era ali que
o Vaticinados, o execrável Rei João Ferreira-Quaderna, afirmava,
em suas práticas, que ressuscitariam gloriosamente, com El-Rei Dom
Sebastião, todas as vítimas que lhe fossem oferecidas. Ao Sul
desta sala, porém próximas dela, elevam-se várias pedras
grandes, sobrepostas umas às outras, as quais formam uma espécie
de caramanchão abobadado. Este lugar tinha o nome de Trono ou Púlpito,
por ser dele que El-Rei Dom João Ferreira-Quaderna, inculcado Profeta,
pregava a seus sectários. Cerca de duzentas braças ao Norte
das duas Torres,
FOLHETO V
Primeira Notícia dos Quadernas e da Pedra do Reino A Pedra do Reino
situa-se numa serra áspera e pedregosa do Sertão do Pajeú,
fronteira da Paraíba com Pernambuco, serra que, depois dos terríveis
acontecimentos de 18 de Maio de 1838, passou a ser conhecida como “Serra
do Reino”. Dela descem águas que, através dos rios Pajeú,
Piancó e Piranhas, são ligadas a três dos “sete Rios
sagrados” e três dos sete Reinos do meu Império. Hoje, a
Serra está menos áspera e impenetrável do que no tempo
do meu bisavô Dom João Ferreira-Quaderna. Ainda existe um Penedo
colossal, cuja concavidade natural, na inferior, formava um grande esconderijo
que, aumentado por profunda escavação que ali fizeram os Sebastianistas,
adquiriu porções para comportar o número de duzentas
pessoas. Este 1 é conhecido pelo nome de Casa-Santa, por ser ali que
o peru e execrável Rei João Ferreira-Quaderna recolhia e embriagav
seus associados, ministrando-lhes beberagens, todas as vezes pretendia vítimas
voluntárias para o Reino”.
Este, nobres Senhores e belas Damas, foi um dos trecho Crônica-Epopéica
que mais influência exerceram na minha fo cão político-literária.
Foi ele que me convenceu, de uma vez todas, que havia alguma coisa de sagrado,
escondida e aprisio nas grades de granito de tudo quanto é pedra sertaneja
po afora. Foi ele que tornou para sempre sagradas em meu sa as palavras torre,
pedra, prata, chuvisco prateado, Profeta, tr sebastianismo, penedo, pedras
de cor férrea, brilho de malacac Catedral, Reino e Vaticinados.
Ocorre, ainda, que eu tinha lido, no jornal do Govern Paraíba, A
União, um artigo, publicado em 1924, pelo extra nário Ademar
Vidal, escritor paraibano tão importante que che até, a ser
Delegado de Polícia. Nesse artigo, contava ele viagem que tinha feito
pelo Sertão, e dizia que as pedras e laj do nosso sagrado Cariri encontram-se,
às vezes, em aglomer que parecem Fortalezas ou Castelos arruinados.
A partir daí, vez que eu me lembrava dos dois rochedos gêmeos
da Pedra Reino, era como se eles fossem, além da Catedral Soterranha
Os Reis, meus antepassados, tinham revelado, a Fortaleza Castelo onde se fundamenta
a realeza do nosso sangue.
Em 1838, o Padre Francisco José Corres de Albuque fez um desenho
representando as duas Pedras Encantadas do n Reino, desenho que Pereira da
Costa e Souza Leite publica Levei meu irmão Taparica à nossa
Biblioteca e pedi-lhe copiasse a estampa do Padre, cortando-a, depois, na
madeira, ser impressa num “folheto” que eu pensava publicar, tendo
c assunto o nosso Reino. Taparica, a princípio, fez cara feia. que,
no desenho do Padre, tudo era miúdo demais, e que, daq jeito, dava
muito trabalho para cortar. Retruquei que ele modificar o desenho a seu modo.
Então concordou, e fez a gra que vai anexada, também, aos Autos
desta Apelação, para pro cionar a Vossas Excelências todos
os elementos necessários estudo da questão.
Como se vê por essa simples amostra, os acontecimentos da edra do
Reino foram suficientemente astrosos e fatídicos para arcar para sempre
meu sangue de realeza. De fato, porém, nossa gia história começa
antes, noutra Pedra sagrada, a “Serra do odeador”, onde, em 1819,
aparecem três Infantes sertanejos. O cimeiro, Dom Silvestre José
dos Santos, que morreu sem desndência, foi o primeiro varão de
minha família a subir ao trono, m o nome de Dom Silvestre I, o Rei
do Rodeador. O segundo ra seu irmão, Dom Gonçalo José
Vieira dos Santos. O terceiro t meu trisavô, Dom José Maria Ferreira-Quaderna,
primo-legímo e cunhado dos outros dois, por ter se casado com a irmã
eles, a Infanta Dona Maria Vieira dos Santos, em cujo ventre na gerado meu
bisavô, Dom João Ferreira-Quaderna, o Exeável.
O reinado de Dom Silvestre I, no Rodeador, foi curto, mas tinha todas as
características tradicionais da nossa Dinastia. u trono era uma Pedra
sertaneja, Catedral, Fortaleza e Castelo. ali, ele pregava também a
ressurreição daquele Rei antigo, sanem,, casto e sem mancha,
que foi Dom Sebastião, o Desejado.
gava também a Revolução, com a degola dos poderosos
e a tauração de novo Reino, com o Povo no poder. O consagrado
adémico pernambucano, Doutor Pereira da Costa, fez sua Crôca,
que não transcrevo por economia retórica. Limito-me a inrmar
que, temerosos os proprietários das redondezas pela proagação
de Reino tão revolucionário, fizeram apelo ao Governador ufs
do Rego, que mandou para lá uma tropa, comandada pelo arechal Luís
Antônio Salazar Moscoso. Incendiaram o Arraial, orrendo nas chamas mulheres
e crianças, enquanto os homens ue escaparam ao incêndio e à
fuzilaria foram passados a fio de pada.
A Crônica-Epopéica de Pereira da Costa aumentou danadaente
o número de minhas palavras sagradas, com séquito, ressurição,
El-Rei, tesouro, templo, revelação, quimeras, prodígios,
enntamentos, encantação, desencantação, jóia,
agraciado, confrade, enitente, abóbada, liturgia, desafio, armas, beberagem,
gado, /0 go, raiai, carnificina, assalto povoação, chamas, espadas
e fuzilarias. oda vez que eu evocava esse primeiro reinado, o Primeiro Império
a minha família, via todo aquele sangue derramado no Rodeador nes flan
de tent mai de lida Cler tóri~ do r sino Dep evoc razã* aque
no t sido com já ni de F e sar do S FO] Prir e da E Sertãc que,
c passos águas a três Impér no tel existe um Penedo colossal,
cuja concavidade natural, na parte inferior, formava um grande esconderijo
que, aumentado por uma profunda escavação que ali fizeram os
Sebastianistas, adquiriu proporçôes para comportar o número
de duzentas pessoas. Este lugar é conhecido pelo nome de Casa-Santa,
por ser ali que o perverso e execrável Rei João Ferreira-Quaderna
recolhia e embriagava os seus associados, ministrando-lhes beberagens, todas
as vezes que pretendia vítimas voluntárias para o Reino”.
Este, nobres Senhores e belas Damas, foi um dos trechos de Crônica-Epopéica
que mais influência exerceram na minha formação político-literária.
Foi ele que me convenceu, de uma vez por todas, que havia alguma coisa de
sagrado, escondida e aprisionada nas grades de granito de tudo quanto é
pedra sertaneja por at afora. Foi ele que tornou para sempre sagradas em meu
sangue as palavras torre, pedra, prata, chuvisco prateado, Profeta, trono,
sebastianismo, penedo, pedras de cor férrea, brilho de malacacheta,
Catedral, Reino e Vaticinados.
Ocorre, ainda, que eu tinha lido, no jornal do Governo da Paraíba,
A União, um artigo, publicado em 1924, pelo extraordinário Ademar
Vidal, escritor paraibano tão importante que chegou, até, a
ser Delegado de Policia. Nesse artigo, contava ele uma viagem que tinha feito
pelo Sertão, e dizia que as pedras e lajedos do nosso sagrado Cariri
encontram-se, às vezes, em aglomerados que parecem Fortalezas ou Castelos
arruinados. A partir daí, toda vez que eu me lembrava dos dois rochedos
gêmeos da Pedra do Reino, era como se eles fossem, além da Catedral
Soterranha que os Reis, meus antepassados, tinham revelado, a Fortaleza e
o Castelo onde se fundamenta a realeza do nosso sangue.
Em 1838, o Padre Francisco José Corres de Albuquerque fez um desenho
representando as duas Pedras Encantadas do nosso Reino, desenho que Pereira
da Costa e Souza Leite publicaram. Levei meu irmão Taparica à
nossa Biblioteca e pedi-lhe qu copiasse a estampa do Padre, cortando-a, depois,
na madeira, para ser impressa num “folheto” que eu pensava publicar,
tendo como assunto o nosso Reino. Taparica, a princípio, fez cara feia.
Dizia que, no desenho do Padre, tudo era miúdo demais, e que, daquele
jeito, dava muito trabalho para cortar. Retruquei que ele podia modificar
o desenho a seu modo. Então concordou, e fez a gravura que vai anexada,
também, aos Autos desta Apelação, para propor cionar
a Vossas Excelências todos os elementos necessários a estudo
da questão.
Como se vê por essa simples amostra, os acontecimentos da pedra do
Reino foram suficientemente astrosos e fatídicos para marcar para sempre
meu sangue de realeza. De fato, porém, nossa régia história
começa antes, noutra Pedra sagrada, a “Serra do Rodeador”,
onde, em 1819, aparecem três Infantes sertanejos. O primeiro, Dom Silvestre
José dos Santos, que morreu sem descendência, foi o primeiro
varão de minha família a subir ao trono, com o nome de Dom Silvestre
I, o Rei do Rodeador. O segundo era seu irmão, Dom Gonçalo José
Vieira dos Santos. O terceiro foi meu trisavô, Dom José Maria
Ferreira-Quaderna, primo-legítimo e cunhado dos outros dois, por ter
se casado com a irmã deles, a Infanta Dona Maria Vieira dos Santos,
em cujo ventre seria gerado meu bisavô, Dom João Ferreira-Quaderna,
o Execrável.
O reinado de Dom Silvestre I, no Rodeador, foi curto, mas já tinha
todas as características tradicionais da nossa Dinastia. Seu trono
era uma Pedra sertaneja, Catedral, Fortaleza e Castelo. Dali, ele pregava
também a ressurreição daquele Rei antigo, sangrento,
casto e sem mancha, que foi Dom Sebastião, o Desejado. Pregava também
a Revolução, com a degola dos poderosos e a instauração
de novo Reino, com o Povo no poder. O consagrado Acadêmico pernambucano,
Doutor Pereira da Costa, fez sua Crônica, que não transcrevo
por economia retórica. Limito-me a informar que, temerosos os proprietários
das redondezas pela propagação de Reino tão revolucionário,
fizeram apelo ao Governador Luís do Rego, que mandou para lá
uma tropa, comandada pelo Marechal Luís Antônio Salazar Moscoso.
Incendiaram o Arraial, morrendo nas chamas mulheres e crianças, enquanto
os homens que escaparam ao incêndio e à fuzilaria foram passados
a fio de espada.
A Crônica-Epopéica de Pereira da Costa aumentou danadamente
o número de minhas palavras sagradas, com séquito, ressurreição,
El-Rei, tesouro, templo, revelação, quimeras, prodigios, encantamentos,
enc-antação, desencantação, jóia, agraciado,
confrade, penitente, abóbada, liturgia, desafio, armas, beberagem,
gado, fogo, arraial, carpi ficina, assalto, povoação, chamas,
espadas e fuzilarias. Toda vez que eu evocava esse primeiro reinado, o Primeiro
Império da minha família, via todo aquele sangue derramado no
Rodeador
FOLHETO VI
O Primeiro Império existe um Penedo colossal, cuja concavidade natural,
na parte inferior, formava um grande esconderijo que, aumentado por uma profunda
escavação que ali fizeram os Sebastianistas, adquiriu proporções
para comportar o número de duzentas pessoas. Este lugar é conhecido
pelo nome de Casa-Santa, por ser ali que o perverso e execrável Rei
João Ferreira-Quaderna recolhia e embriagava os seus associados, ministrando-lhes
beberagens, todas as vezes que pretendia vítimas voluntárias
para o Reino”.
Este, nobres Senhores e belas Damas, foi um dos trechos de Crônica-Epopéica
que mais influência exerceram na minha formação político-literária.
Foi ele que me convenceu, de uma vez por todas, que havia alguma coisa de
sagrado, escondida e aprisionada nas grades de granito de tudo quanto é
pedra sertaneja por at afora. Foi ele que tornou para sempre sagradas em meu
sangue as palavras torre, pedra, prata, chuvisco prateado, Profeta, trono,
sebastianismo, penedo, pedras de cor férrea, brilho de malacacheta,
Catedral, Reino e Vaticinados.
Ocorre, ainda, que eu tinha lido, no jornal do Governo da Paraíba,
A União, um artigo, publicado em 1924, pelo extraordinário Ademar
Vidal, escritor paraibano tão importante que chegou, até, a
ser Delegado de Polícia. Nesse artigo, contava ele uma viagem que tinha
feito pelo Sertão, e dizia que as pedras e lajedos do nosso sagrado
Cariri encontram-se, às vezes, em aglomerados que parecem Fortalezas
ou Castelos arruinados. A partir daí, toda vez que eu me lembrava dos
dois rochedos gêmeos da Pedra do Reino, era como se eles fossem, além
da Catedral Soterranha que os Reis, meus antepassados, tinham revelado, a
Fortaleza e o Castelo onde se fundamenta a realeza do nosso sangue.
Em 1838, o Padre Francisco José Corres de Albuquerque fez um desenho
representando as duas Pedras Encantadas do nosso Reino, desenho que Pereira
da Costa e Souza Leite publicaram. Levei meu irmão Taparica à
nossa Biblioteca e pedi-lhe que copiasse a estampa do Padre, cortando-a, depois,
na madeira, para ser impressa num “folheto” que eu pensava publicar,
tendo como assunto o nosso Reino. Taparica, a princípio, fez cara feia.
Dizia que, no desenho do Padre, tudo era miúdo demais, e que, daquele
jeito, dava muito trabalho para cortar. Retruquei que ele podia modificar
o desenho a seu modo. Então concordou, e fez a gravur que vai anexada,
também, aos Autos desta Apelação, para propor cionar
a Vossas Excelências todos os elementos necessários a estudo
da questão.
Como se vê por essa simples amostra, os acontecimentos da pedra do
Reino foram suficientemente astrosos e fatídicos para marcar para sempre
meu sangue de realeza. De fato, porém, nossa régia história
começa antes, noutra Pedra sagrada, a “Serra do Rodeador”,
onde, em 1819, aparecem três Infantes sertanejos. O primeiro, Dom Silvestre
José dos Santos, que morreu sem descendência, foi o primeiro
varão de minha família a subir ao trono, com o nome de Dom Silvestre
I, o Rei do Rodeador. O segundo era seu irmão, Dom Gonçalo José
Vieira dos Santos. O terceiro foi meu trisavô, Dom José Maria
Ferreira-Quaderna, primo-legítimo e cunhado dos outros dois, por ter
se casado com a irmã deles, a Infanta Dona Maria Vieira dos Santos,
em cujo ventre seria gerado meu bisavô, Dom João Ferreira-Quaderna,
o Execrável.
O reinado de Dom Silvestre I, no Rodeador, foi curto, mas já tinha
todas as características tradicionais da nossa Dinastia. Seu trono
era uma Pedra sertaneja, Catedral, Fortaleza e Castelo. Dali, ele pregava
também a ressurreição daquele Rei antigo, sangrento,
casto e sem mancha, que foi Dom Sebastião, o Desejado. Pregava também
a Revolução, com a degola dos poderosos e a instauração
de novo Reino, com o Povo no poder. O consagrado Acadêmico pernambucano,
Doutor Pereira da Costa, fez sua Crônica, que não transcrevo
por economia retórica. Limito-me a informar que, temerosos os proprietários
das redondezas pela propagação de Reino tão revolucionário,
fizeram apelo ao Governador Luís do Rego, que mandou para lá
uma tropa, comandada pelo Marechal Luis Antônio Salazar Moscoso. Incendiaram
o Arraial, morrendo nas chamas mulheres e crianças, enquanto os homens
que escaparam ao incêndio e à fuzilaria foram passados a fio
de espada.
A Crônica-Epopéica de Pereira da Costa aumentou danadamente
o número de minhas palavras sagradas, com séquito, ressurreição,
El-Rei, tesouro, templo, revelação, quimeras, prodígios,
encantamentos, encantação, desencantação, jóia,
agraciado, confrade, penitente, abóbada, liturgia, desafio, armas,
beberagem, gado, fogo, arraial, carnificina, assalto, povoação,
chamas, espadas e fuzilarias. Toda vez que eu evocava esse primeiro reinado,
o Primeiro Império da minha família, via todo aquele sangue
derramado no Rodeador
FOLHETO VI
Q Primeiro Impériopingando sobre uma Coroa de Prata. Via as espadas
luzindo por entre chamas gloriosas, ao pipocar da fuzilaria. Via meus parentes,
tingindo os dentes e escumando de raiva sagrada, lutando na defesa do Arraial
incendiado, por entre fogaréus, quimeras, prodfgios e revelações.
Era assim que, aos poucos, o Trono da minha família ia mpeçonhando
e glorificando meu sangue, até que eu chegasse a ser “o prodígio
e encantamento” que sou hoje; e foi por isso que, quando o rapaz do cavalo
branco reapareceu miraculosamente entre nós, meu sangue estava preparado
e eu ousei me meter, apesar de toda a minha covardia, em sua terrível
Desaventura.
Outra coisa importante é que, como diz Pereira da Costa, a tradição
da minha família é sempre a fundação de um Reino
junto a uma Pedra, dentro da qual, prisioneiro e encantado, está E1-Rei
Dom Sebastião, o Desejado. No Reino, domina um Catolicismo meio-maçônico
e sertanejo, baseado no qual nossa família começa a assaltar
os gados, as terras, as fazendas, as pastagens e os dinheiros dos proprietários
ricos, para distribuí-los com os súditos pobres e fiéis
do Reino, juntamente com Cartas-Patentes e Cartas-de-Brasão. Tudo isso
ia sendo pacientemente estudado e entendido por mim que, à medida que
me punha adulto, ia guardando tudo isso em meu coração, para
quando se completasse, de 1935 a 1938, o Século da Pedra do Reino,
abrindo-se caminho para que um Ferreira-Quaderna se sentasse novamente no
Trono do Sertão do Brasil.
FOLHETO VII
GRAVURA DE TAPARICA, BASEADA NO DESENHO DO PADRE E REPRESENTANDO AS PEDRAS
DO REINO. VE-SE, A DIREITA, COM CETRO E MANTO, MEU BISAVO DOM JOAO FERREIRA-QUADERNA,
O EXECRÁVEL, E, A ESQUERDA, MINHA BISAVO, A PRINCESA ISABEL, SENDO
DEGOLADA. EMBAIXO DA PEDRA, O RECÉM-NASCIDO QUE ELA PARIU NOS ESTREME
ÇOS DA MORTE E QUE, DEPOIS, FOI MEU AVO, DOM PEDRO ALEXANDRE.
O Segundo Império O Primeiro Reinado de minha família terminou,
portanto, com a queda gloriosa e fatídica da Pedra do Rodeador, por
entre
chamas, com o Rei Dom Silvestre I degolado a fio de espada.
Seu irmão, sua irmã e o marido desta, porém, escaparam
à chacina. Vendo o perigo que corriam se ficassem por ali, emigra ram
para o Sertão do Pajeú, fixando-se em terras daquela que seria,
depois, a Serra do Reino. Era um decreto da Providência
Divina, que desejava fixar os Ferreira-Quadernas exatamente na fronteira
das duas Províncias niais sagradas do Império do Brasil, a Paraíba
e Pernambuco, às quais somente o Rio Grande do Norte pode ser ajuntado
em absoluto pé. de igualdade. Delineavam-se assim, aos poucos, as fronteiras
do nosso Império da Pedra do Reino, cortado pelos sete Rios sagrados
e integrado por seus sete Reinos tributários.
Chegaram, pois, aqueles Príncipes, errantes, retirantes e malandantes,
pelas estradas e descaminhos do Sertão, até a Serra Talhada,
onde, ocultando a linhagem principesca de seu sangue, acolheram-se à
proteção daquela simples família de Barões sertanejos,
os poderosos e façanhudos Pereiras – família que, em nosso tempo,
daria aquele magnífico Luís do Triângulo, Condestável
do Reino de Princesa e chefe da tropa do rapaz do cavalo branco.
Pouco iria durar, porém, a tranqüilidade plebéia que
meus antepassados afetavam na Vila Bela da Serra Talhada, porque vocação
de Rei é mesmo que o Diabo para atentar o sangue da minha família!
Lá um dia, o Infante Dom João Antônio Vieira dos Santos,
filho de Dom Gonçalo José, sabendo a gloriosa história
vivida por seu tio, EI-Rei Dom Silvestre I, inflamou-se também da sagrada
ambição do Trono e do dom escumante da Profecia, e, proclamando-se
Rei, iniciou o Segundo Império, com nova pregação do
Reino-Encantado e subindo ao trono com o nome de Dom João I, o Precursor.
Conta, lá, o genial Antônio Áttico de Souza Leite: “Tempestuoso
e medonho, corria o ano de 1835. A comarca de Flores, retalhada por partidos,
era teatro de constantes desordens e conflitos. Daí para os começos
de 1836, um mameluco de nome Joãò Antônio dos Santos,
morador no termo de Vila Bela da Serra Talhada, munido de duas pedrinhas mais
ou menos formosas que ele mostrava misteriosamente, dizia aos incautos habitantes
daquele lugar serem elas dois brilhantes finíssimos, tirados por ele
próprio de uma Mina encantada que lhe fora revelada. Inspirado num
velho folheto, do qual nunca se apartava, e que encerrava um desses contos
ou lendas, que andavam muito em voga, acerca do misterioso desaparecimento
de El-Rei Dom Sebastião, na Batalha de Alcácer-Quibir, em Africa,
e de sua esperada e quase infalível ressurreição, tratou
de propalar pela população daquele e dos vizinhos distritos,
que estava sendo conduzido todos os dias, por EI-Rei Dom Sebastião,
a um sítio pouco distante do lugar de sua residência, no qual
mostrava-lhe EI-Rei, além de uma Lagoa encantada, de cujas margens
extraíra ele aqueles e outros brilhantes, duas belíssimas Torres,
de um Templo já meio visível, que seria, por certo, a Catedral
do Reino, na época pouco distante da sua Restauração.
Assim discorrendo, e nunca se esquecendo de mostrar, entre outros, um tópico
do folheto em que o Visionário escritor, improvisado em Profeta, ensinava
que quando João se casasse com Maria, aquele Reino se desencantaria,
conseguiu ele, graças à ignorância da população
e à bem conhecida tendência que o espírito humano tem
para abraçar o maravilhoso e o fantástico, não só
realizar o seu casamento com uma interessante rapariga de nome Maria – que
sempre, até ali, lhe fora negada – como obter, por empréstimo,
de muitos Fazendeiros do lugar, bois, cavalos e dinheiro, em porção
não pequena, com a onerosa condição de restituir tudo
em muitos dobros, logo que se operasse o pretenso desencantamento do misterioso
Reino. Desde o começo de sua prédica, auxiliavam-tio seu próprio
Pai, Gonçalo José Vieira dos Santos, seu irmão Pedro
Antônio, seus tios e parentes José Joaquim Vieira, Manuel Vieira,
José Vieira, Carlos Vieira, José-Maria Ferreira-Quaderna e João
Pilé Vieira Gomes, os quais, constituindo, por assim dizer, o seu Apostolado,
iam dar testemunho das suas riquezas e fazer repercutir os seus engenhosos
embustes no meio das populações ignorantes do Piancó,
do Cariri, Riacho do Navio e margens do Rio São Francisco. Seus esforços
e os dos seus mais ardentes sectários iam engrossando gradualmente
a seita com multiplicadas conquistas feitas nas últimas camadas da
sociedade. Essas e outras considerações moveram o Padre Antônio
Gonçalves de Lima a reclamar a presença do missionário
Padre Francisco José Correa de Albuquerque naquele distrito. 0 incansável
apóstolo, apesar de sua idade setuagenária e falta de saúde,
não se fez esperar. Instruído de tudo quanto havia, seguiu para
a fazenda `Cachoeira’, pertencente ao Capitão Simplício Pereira,
onde, felizmente, compareceu o impostor, ainda durante as Missões,
perante o admirável Levita. Depois de entregar-lhe as duas pedras –
que estavam longe de ser brilhantes – e de publicamente confessar os seus
embustes, prometeu-lhe retirar-se do lugar, o que pôs logo em execução,
procurando os lados do Rio do Peixe, Sertão da Paraíba, e passando
dali aos do Sertão dos Inhamuns, no Ceará”.
Como se vê, a tradição do nosso Reino continuava. E
teria ido logo muito longe, se não fosse a intervenção
indébita desse Padre, que convenceu meu tio-bisavô, Dom João
I, a abdicar, o que mostra como o Catolicismo puramente romano, ortodoxo e
oficial, é funesto para a sagrada Coroa do Sertão. Foi por ter
ido nessa conversa que meu tio Dom João I perdeu esse nome, tão
régio
FOLHETO VIII
0 Terceiro Império e glorioso, recebendo outro, apenas ducal – o de
Dom João Antônio, Prior do Crato (por ter ido morar nas imediações
do Crato, Sertão do Ceará). Mas essas coisas de Monarquia são
tão imprevisíveis, que aquilo que parecia um acontecimento funesto
para a nossa Casa era apenas um desígnio secreto da Providência
Divina, que desejava instaurar, no Sertão, o Terceiro Império,
aquele que viria a ser, verdadeiramente, o núcleo-encantado de fogo
e sangue da realeza dos Quadernas.
Acontece que meu bisavô, o Infante Dom João Ferreira-Quaderna,
tinha seduzido e raptado, de uma vez só, suas duas primas, a Infanta
Josefa e a Princesa Isabel, irmãs do Rei Dom João I, que abdicara.
Meu bisavô era meio tarado, bastando dizer que, depois, quando já
tinha sido coroado Rei, instituiu, na Pedra do Reino, um ritual Católico-Sertanejo,
segundo o qual ele, Rei, era quem primeiro possuía as noivas, no dia
do casamento, o que fazia, segundo explicava, “para inoculá-las
com o Espírito Santo”. Parece que ele só conseguia ser
macho praticando, ao mesmo tempo, um sacrilégio e uma crueldade – mas,
então, depois de assim despertada pelo sangue e pela maldade, não
havia quem contivesse mais sua potência. Pois bem: como o Catolicismo-Sertanejo
da Pedra do Reino permitia a poligamia, Dom João FerreiraQuaderna,
o Execrável, chegou a ter o número sagrado de sete mulheres,
entre as quais as importantes, mesmo, eram as duas Princesas irmãs,
Josefa e Isabel, por serem de sangue real.
Ora, depois de seduzir as duas Infantas, meu bisavô viajara com elas
para o Sertão da Paraíba, ainda no reinado de Dom João
I. Aí, nas bandas de Catolé do Rocha, foi encontrá-lo,
depois de sua abdicação, seu cunhado e primo, o agora Prior
do Crato, Dom João Antônio, irmão das moças, o
qual lhe contou todas as grandezas e cavalarias, quimeras e encantamentos,
que realizara no Pajeú. Disse-lhe que, apesar de ter abdicado, deixara
lá, bem plantados, os alicerces e fundamentos da Pedra do Reino do
Sertão, com a Lagoa encantada dos diamantes, as minas de prata e as
duas torres do Castelo, Catedral e Fortaleza da nossa Raça. Consta
mesmo que ele teria dito ao cunhado: – “João! A Pedra do Reino
será o fundamento do Império do Brasil! Se assim for, põe
a Coroa sobre a tua cabeça, antes que outro aventureiro lance mão
dela!” E então, ali mesmo, com os direitos proféticos de
Prior, que tinha, sagrou, como novo Rei, seu cunhado e bisavô meu; o
qual, com o nome de Dom João II, tomou suas mulheres, regressou ao
Pajeú, assumiu o Trono e iniciou o Terceiro Império.
Sobre tudo isso, existe um papel do Governo, coisa oficial e portanto indiscutível.
É uma carta-relatório, dirigida a Francisco do Rego Barros,
Conde da Boa Vista, Governador, no tempo do Império, da Província
de Pernambuco. Foi escrita pelo Prefeito de Flores, o Fidalgo sertanejo Francisco
Barbosa Nogueira Paes, e registrada na Secretaria do Governo de Pernambuco,
o que prova que até o falso e estrangeirado Império dos Braganças
reconheceu oficialmente, através de seu Condezinho de merda, a realidade
do Império da Pedra do Reino do Brasil. Nesse documento fica provado
que meu bisavô, coroado Rei, foi quem teve, realmente, a idéia
sagrada e gloriosa de banhar as torres do nosso Castelo de Pedra com o sangue
dos inocentes. É por isso que o Terceiro Império da Pedra do
Reino do Brasil. Nesse documento fica estigma indelével da realeza.
Apesar de oficial, porém, e de ter instilado em mim a peçonha
do “campo encantado e sagrado, banhado de sangue”, a carta-relatório
omite uma porção de fatos importantes ligados à política
dos Quadernas. Não explica, por exemplo, que o exército d’El-Rei
Dom Sebastião viria era para destruir os poderosos. Nem relata que,
além das pessoas, meu bisavô mandava também degolar cachorros
que, no dia da Ressurreição, deveriam voltar, transformados
em dragões, para devorar todos os proprietários, repartindo-se
então as terras dos finados com os pobres. Por isso, Pereira da Costa,
depois de confirmar que o Rei tinha sete mulheres, diz que, “além
do fanatismo religioso”, transparecia também, “entre esses
Visionários, um como que pensamento socialista”.
O Terceiro Império durou de 1836 a 1838. Infelizmente, porém,
como sempre acontece nesses casos de Monarquia trágicoepopeica, a traição
emboscava o Sagrado Império da Pedra do Reino, o que aconteceu como
passo a narrar.
Ocorre que, atraindo o Reino sempre novos adeptos, alguns primos nossos,
da família Vieira, convidaram para que nele entrasse um nosso parente,
o Conde Dom José Vieira Gomes, homem falso, traiçoeiro, lacaio,
fatídico e astroso, que terminaria renegado. Era Vaqueiro do Comandante
Manuel Pereira, fidalgo, rico e poderoso, pai do Barão do Pajeú.
A família Pereira, a mais poderosa entre os Barões sertanejos
daquela zona, era uma das mais atingidas pela pregação revolucionária
da Pedra do Reino. Por isso, a traição do Conde foi, para eles,
uma bênção do céu. 0 traidor, levado para a Serra
do Reino, viu tudo e se aproveitou de tudo, durante vários dias. Inclusive,
bebeu o Vinho encantado e sagrado, cuja receita integral só os Príncipes
de sangue da nossa Casa conhecem. Assim, divinamente embriagado, viu os tesouros
de prata e diamante do Reino e possuiu não sei quantas mulheres que
meu bisavô generosamente lhe cedeu. Pois bem: apesar de todos esses
privilégios, aquele judas, aquele cairn, foi delatar as atividades
e o caminho de acesso do nosso Reino aos herodes e caifases da família
Pereira.
Foi em Maio de 1838 que se deu o “instante de fulminação”
do Império da Pedra do Reino. Naquele mês, meu bisavô teve
a gloriosa coragem de iniciar o grande banho-de-sangue, que deveria depois se
estender numa verdadeira guerra sertaneja, a “Guerra do Reino”, com
a degola geral dos proprietários, indispensável, segundo Samuel
e Clemente, a toda Revolução que se preza. Como a justiça,
para ser boa, começa de casa, era porém entre os próprios
súditos do Reino que deveria se iniciar a matança: os que se apresentassem
voluntariamente para a degola, ressuscitariam daí a três dias como
“Grandes do Império”, belos, poderosos, eternamente jovens
e imortais.
0 velho Infante, Dom José Maria Ferreira-Quaderna, meu trisavô
e pai do Rei, foi o primeiro a dar o exemplo, sendo degolado, e banhando-se
as pedras com o sangue dele. Seguiram-se outras mortes, a princípio
voluntárias, depois não, porque isso de ser degolado, mesmo
com ressurreição garantida, é incômodo como o diabo.
Aí o Rei, impacientando-se, escolheu alguns carrascos, principalmente
entre nossos primos Vieiras, e mandou que pegassem, à força,
as vítimas que, tendo sido escolhidas, se recusassem à degola.
De um jeito ou de outro, a matança foi grande, “e o sangue foi
até a junta grossa”, como dizia o Regente Dom Antônio Conselheiro,
em Canudos. Ora, em tais momentos, aparecem sempre os gritos, os pedidos de
compaixão, as preces e as lágrimas dos escolhidos para a Morte.
Pois foi sob o pretexto de compaixão, que o refalsado Conde, Dom José
Vieira Gomes, aproveitando os gritos desesperados das vítimas e a confusão
causada pelas degolações, fugiu por uma vereda perdida, entre
cactos e unhas-de-gato, indo chamar as tropas dos Barões do Pajeú,
os Pereiras, que aniquilaram o Sagrado Império da Pedra do Reino. Conta
o nosso Cronista-Mor, Antônio Áttico de Souza Leite: – “Eram
mais ou menos dez horas da manhã, do dia 17 de Maio de 1838. Sentado
com seus irmãos Cipriano e Alexandre Pereira na frente de sua fazenda
`Belém’, situada cinco léguas ao poente da Serra Talhada, o
Comandante Manuel Pereira praticava com eles a respeito do abandono em que
estavam os gados de sua fazenda `Caiçara’, depois da inesperada ausência
de seu Vaqueiro, José Vieira Gomes. De repente, aproxima-se e ajoelha-se
diante deles um indivíduo imundo, andrajoso, desfigurado e assustado.
Era José Vieira Gomes, o vaqueiro que há mais de vinte dias
desaparecera, e agora prorrompia em suplicantes vozes: – Valha-me, meu Amo,
e perdoe-me pelo amor de Deus! Fazem mais de vinte dias que meu tio José
Joaquim Vieira veio iludir-me na fazenda de Vossa Senhoria! Conduziu-me para
a Serra Formosa, para ver muitas coisas bonitas e ajudá-lo na defesa
dos tesouros e do Reino descoberto por João Antônio dos Santos,
os quais contou-me que já tinham sido desencantados por outro Rei,
muito sábio, João Ferreira-Quaderna, mandado por ele da Paraíba.
Não sou ambicioso, mas fui ver se isso era verdade. Chegando lá,
em verdade encontrei muita gente ao pé da Pedra Bonita, e o Rei, com
uma grande Coroa na cabeça, trepado numa ponta de pedra, pregando,
cantando e saltando, muito alegre. Quando ele findou a sua prática,
o Povo deu muitos vivas a El-Rei Dom Sebastião, e meu primo Manuel
Vieira, a quem chamam agora Frei Simão e que estava lá, com
o Pai, a família e os irmãos, foi fazer dois casamentos, de
umas moças do Piancó, entregando-as, em seguida, ao Rei, para
dispensá-las (consistia esta dispensa em passar a noiva ao poder do
Rei, que a restituía no outro dia, completamente dispensada). Isto
feito, o Rei – a quem, em particular, também chamavam João Ferreira,
e, às vezes, simplesmente Joca – deu o braço às duas
noivas e seguimos todos, tocando, cantando e batendo palmas, para a Casa Santa,
espécie de subterrâneo aberto por baixo de um Penedo prodigioso.
Ali, todos beberam um líquido, dado pelo Rei, ao qual chamavam Vinho
Encantado, certa composição de jurema e manacá: tem a
propriedade do álcool e do ópio, ao mesmo tempo. E fomos fumar
em cachimbos, para vermos as riquezas. Iam-se assim passando os tempos, até
que nó dia 14 deste mês de Maio – oh que dia infeliz e horroroso!
– o Rei, depois que deu muito vinho a todos, declarou que `El Rei Dom Sebastião
estava muito desgostoso e triste com seu Povo’. – `E por quê?’ – perguntaram
os homens, muito aflitos, e as mulheres todas muito chorosas. – `Porque são
incrédulos! Porque são fracos! Porque são falsos! E finalmente
porque o perseguem, não regando o Campo Encantado e não lavando
as duas torres da Catedral de seu Reino com o sangue necessário para
quebrar de uma vez este cruel Encantamento!’ – proferiu o Rei. Ah, meu Amo
e meus Senhores! 0 que depois disso se seguiu é horrível! 0
velho José Maria Juca Ferreira-Quaderna, pai do Rei, foi o primeiro
que correu, abraçando-se com as pedras e entregando o pescoço
a Carlos Vieira, que o cortou cérceo, pois já lá estava
para isso, com um facão afiado! As mulheres e os homens iam agarrando
os filhos e vinham entrega-los a Carlos Vieira, a José Vieira e a outros,
que lhes cortavam as gargantas ou quebravam-lhes as cabeças nas mesmas
pedras, que assim untavam de sangue! Nessa ocasião, aproveitei-me da
confusão e horror que havia e fugi sem ser visto; mas com tanto espanto
e infelicidade, que andei mais de dois dias perdido!” Assim foi que o
traidor fugiu da Pedra do Reino, andando extraviado e errante por ali, nos
dias 15 e 16 de Maio de 1838. Só no dia 17 foi que encontrou a casa
dos Pereiras, a quem, com a subserviência de todo traidor de alma de
lacaio, ajoelha-se numa zumbaia indigna de um Príncipe de sangue, tratava
por “Meus Amos e meus Senhores! ” Ali, na fazenda “Belém”,
tendo delatado o Reino e se oferecido para levar os Pereiras até lá,
como guia, encontrou acolhida e ajuda, começando todos juntos a preparar
a repressão.
Enquanto isso, ignorando ainda a traição do renegado, continuavam
os nossos a promover, na Pedra do Reino, o grande evento da Restauração.
Meu bisavô teria, talvez, suspendido antes as matanças: ocorre,
porém, que, excitado por elas, seu desejo sexual exacerbou-se. Mandou
trazer sua mulher, a Princesa Isabel, querendo possuí-Ia na frente
de todos, enquanto o sangue dos degolados corria. Ela, porém, estava
grávida de nove meses, pronta, já, para parir, e recusou-se.
Então Dom João II, o Execrável, pegou a irmã dela,
a Rainha Josefa, e, enquanto se preparava para possuí-Ia, mandou que
lhe dessem dezessete facadas, o que foi feito durante a posse, alcançando
ele, segundo dizia, um gozo como nunca tinha experimentado. Souza Leite, mais
discreto, recusa-se a contar tudo com todos os pormenores. Mesmo assim, suas
palavras são suficientemente fortes, para dar idéia daquela
cena régia e sangrenta: Diz ele: “Os sacrifícios continuaram
nos seguintes dias, 15 e 16 de Maio de 1838, com o mesmo, senão maior
desvairamento, porquanto o monstruoso e execrável João Ferreira-Quaderna
conseguira mergulhar aquela turba numa espécie de delírio ou
embriaguez continuada. No auge supremo desta embriaguez, um pardo de nome
João Pilé Vieira Gomes, para obter o melhor quinhão do
Reino, subiu ao cume de um rochedo próximo e precipitou-se com dois
netos nos braços. Em seguida, José Vieira pega um filho de dez
anos, coloca-o na Pedra dos Sacrifícios e decepa-lhe o braço
do primeiro golpe. A vítima, ajoelhando-se, bradava-lhe, de mãos
postas: `Meu Pai, você não dizia que me queria tanto bem?’ Uma
viúva, de nome Francisca, alimentando a louca pretensão de ser
Rainha, imola, por si mesma, seus dois filhos mais novos. Isabel, irmã
de Pedro Antônio e do primeiro Rei, João Antônio, grávida
do monstro, é designada para o sacrifício pelo Execrável
João Ferreira-Quaderna, que respondia às suas súplicas
e alegações de gravidez gritando para Carlos Vieira e José
Vieira: `Imolai-a assim mesmo, para ela não sofrer duas dores, a do
parto e a do encantamento!’ Tão adiantado era o estado de gravidez
desta infeliz que, momentos depois de ter recebido o golpe na garganta, a
criança rolava pela rampa da Pedra e estendiase no chão. Finalmente
Josefa, irmã de Isabel, de Pedro Antônio e do primeiro Rei, João
Antônio, conhecida como Rainha Josefa, por ter se casado também
com o monstro João Ferreira-Quaderna, recebe setenta e tantas facadas.
Desta forma, no fim do terceiro dia de matança, tinha o Execrável
João Ferreira-Quaderna conseguido lavar as bases das duas Torres de
granito e inundar os terrenos adjacentes com o sangue de trinta crianças,
doze homens – entre os quais seu próprio Pai – e onze mulheres, cujos
corpos, bem como os esqueletos de quatorze cães, iam sendo colocados
ao pé das Pedras”.
Tenho perfeita consciência da má vontade de Souza Leite para
com minha família. Mas isso é até bom, porque, assim,
tudo o que ele diz a nosso favor é absolutamente insuspeito. Ora, o
ilustre Acadêmico, com toda a sua aversão, não ocultou
um fato fundamental para as monarquias e outras glórias quadernescas:
meu bisavô foi visto, mesmo, na Pedra do Reino, trazendo à cabeça
a sagrada Coroa de couro e prata que é a verdadeira Coroa do Brasil
e que é a mesma que ainda hoje eu possuo! Infelizmente, porém,
um dia tão bem começado como aquele 17 de Maio de 1838, seria
o último de matança e do nosso Terceiro Império: porque
na manhã desse dia, meu outro tio-bisavô, o Infante Dom Pedro
Antônio, levantaria um motim contra Dom João II, o Execrável,
sendo vitorioso e levando novamente ao trono o ramo Vieira-dos-Santos, no
Quarto Império, que só iria durar até o dia seguinte.
Conta Souza Leite: “Na manhã, porém, do dia 17 de Maio
de 1838, quando 0 Monstro se dispunha a preparar o Povo para novas matanças,
Pedro Antônio, indignado pela morte de suas irmãs, a Rainha Josefa
e a Princesa Isabel, e julgando-se talvez com melhor direito ao poder, por
ser irmão do primeiro Rei, João Antônio, antecipou-se
em subir ao Trono. Dali anunciou, em voz alta, que Dom Sebastião, cercado
de sua Corte, lhe aparecera na noite antecedente e reclamava a presença
do Rei João Ferreira-Quaderna, única vítima que faltava
para operar-se o seu completo desencantamento. – `Viva El-Rei Dom Sebastião!
Viva nosso irmão Pedro Antônio!’ – tal foi o brado uníssono
de todos os circunstantes. Poucas horas depois, Pedro Antônio era proclamado
Rei, com o nome de Dom Pedro I, e o cadáver de seu antecessor, o de
Execrável Memória, era amarrado de pés e mãos
em dois grossos troncos de árvore. As pessoas que estiveram no Reino
são acordes em afirmar que se viram forçadas a quebrar a cabeça
de João Ferreira-Quaderna, a extrair-lhe as entranhas e a atar seu
cadáver, de pés e mãos, naquelas árvores, por
causa dos berros, das roncarias e dos sinistros movimentos que ele, depois
de morto, executava com a boca, o ventre e os braços. Por isso, e como
já se não respirava ar puro no lugar, ordenou o novo Rei a transferência
do acampamento para o pé de uns Umbuzeiros situados perto das Pedras
e onde devia operar-se o aparecimento de El-Rei Dom Sebastião”.
FOLHETO IX
0 Quarto Império Iniciava-se, portanto, o Quarto Império que,
como já disse, durou somente um dia, mas teve a vantagem de revelar
ao Brasil quem foi seu verdadeiro e real Dom Pedro I, o nosso, e não
aquele Português debochado da Casa de Bragança, tão valorizado
pelo nosso Promotor, o Doutor Samuel Wandernes. Chegamos, então, ao
trecho mais epopéico, bandeiroso e cavalariano da história da
Pedra do Reino. Digo isso porque é agora que aparecem os Cavaleiros
sertanejos, comandados pelo Capitão-Mor Manuel Pereira, Senhor do Pajeú,
todos galopando em cavalos, armados de espadas reluzentes e arcabuzes tauxiados
de prata, na sua expedição punitiva contra os Reis castanhos
e Profetas da Pedra do Reino. Fazendo pacientes pesquisas, descobri que, naquele
dia, a Guarda de Honra do Comandante Manuel Pereira era composta de trinta
e seis Cavaleiros, entre os quais se destacavam seus nove irmãos, Antônio
Simplício, João, Francisco, Vitorino, Joaquim, Sebastião,
Cipriano e Alexandre. Isso mostra que ele era três vezes mais importante
do que Carlos Magno, porque tinha três vezes Doze Pares de França.
Era um inimigo implacável da minha casa: mas ressalto essa grandeza
dele por patriotismo sertanejo e para provar também, logo de entrada,
a superioridade do Sertão sobre aquele Reinozinho besta, estrangeirado
e mixuruca que- é a França.
0 Comandante Manuel Pereira passou a noite de 17 de Maio reunindo sua tropa
de Cavaleiros, de modo que já se achava em marcha para a “Serra
do Reino”, quando “a aurora do dia 18 de Maio começava a
derramar sua roseada luz sobre as águas prateadas do Riacho Belém”,
como diz Souza Leite em seu puro estilo epopéico. E ele continua, contando
como a tropa, guiada pelo traidor, descobriu o melhor caminho de acesso, galgando
a Serra, passando pelos espinheiros e cactos espinhosos e por fim cruzando
um altíssimo capinzal: “No momento, porém, em que os Pereiras,
com os Soldados que os seguiam, se aproximavam das capoeiras e se dirigiam
para aqueles Umbuzeiros, acharam-se face a face com E1-Rei Dom Pedro Antônio,
o qual estava com uma grande Coroa na cabeça, acompanhado de um séquito
numeroso de mulheres, meninos e de homens armados de facões e cacetes.
– `Não os tememos! Acudam-nos as tropas do nosso Reino! Viva El-Rei
Dom Sebastião!’ – assim exclamou Pedro Antônio, agitando no ar
a sua Coroa e arremessando-se furioso, com todos os seus, sobre aquele punhado
de Cavaleiros. Foi horrível o que resultou do encontro das duas Forças:
sobre o Campo de combate ficaram inúmeros cadáveres, sendo um
o do Rei Pedro Antônio, com muitos dos seus sectários, e os de
Cipriano e Alexandre Pereira. 0 Comandante Manuel Pereira seguiu pessoalmente
com as mulheres e filhos dos criminosos ali apreendidos. Apenas chegou em
sua fazenda `Belém’, enviou os presos ao Prefeito de Flores, Francisco
Barbosa Nogueira Paes. Este soltou as mulheres, distribuiu as crianças
e passou os delinqüentes à disposição do juiz Criminal.
Uma dessas crianças é, hoje, 1874, o digno Tabelião da
Vila de Flores, Joaquim José do Nascimento Wanderley, educado pelo
Padre Manuel José do Nascimento Bruno Wanderley, de quem tomou o apelido.
E, entre os delinqüentes, contava-se Gonçalo José dos Santos,
pai do primeiro Rei João Antônio, o qual, condenado pelo júri
de Flores, acabou seus dias arrastando ferros no Presídio de Fernando
de Noronha”.
FOLHETO X
0 Quinto Império Foi esse o trágico fim do Quarto Império.
E, apesar de sua hostilidade, o genial Souza Leite reconhece que a queda sangrenta
da nossa Coroa foi “uma catástrofe, uma horripilante Tragédia
que a História registrará”: o que prova que nossa Casa
Real não fica devendo nada às outras, em questões de
prosápia e importância epopéica. Nossa Monarquia acaba,
como todo Trono digno desse nome, com os campos e a Coroa banhados pelo sangue
dos Reis.
Assim, resta-me somente mostrar como foi que a dupla linhagem real dos Vieiras-dos-Santos
e dos Quadernas terminou se fundindo numa só e unindo na minha pessoa
todo os direitos à sagrada Coroa do Sertão. Como já contei,
meu bisavô casou-se, ao mesmo tempo, com duas irmãs, as duas
Infantas suas primas, isto é, a Rainha Josefa e a Princesa Isabel.
Não teve filhos da primeira, mas a segunda engravidou dele. Vossas
Excelências viram, na Crônica, que, no momento de ser degolada,
a Princesa Isabel pariu um menino, que rolou de pedra abaixo, no chão.
Pois foi através desse menino que continuou a estirpe real dos Quadernas.
O corpo da minha bisavó Isabel só foi encontrado na manhã
do dia seguinte, por um Vaqueiro que, indo ali por curiosidade, para ver o
campo de Batalha, ouviu um débil vagido por trás das pedras.
Assombrado, aproximou-se do lugar de onde vinha o choro, e viu um quadro estarrecedor.
No chão, estava o corpo jovem, desnudo e moreno de uma mulher degolada.
Enroladas em suas coxas, havia duas Cobras-Corais, enormes, de um tamanho
como nunca se viu nessa espécie. Lambendo e farejando o corpo, estavam
duas Onças-Pintadas, que correram assim que o intruso apareceu. De
cada lado do corpo, havia uma cabeça de mulher, ambas cortadas pelo
pescoço. As cabeças eram parecidíssimas, com a mesma
beleza e os mesmos cabelos negros e compridos. E como não consta pelo
menos em Crônica de historiador fidedigno, que minha bisavó tivesse
duas cabeças, provavelmente uma delas era a de sua irmã, a Rainha
Josefa, cujo corpo nunca foi encontrado.
O estranho, porém, é que o menino sobrevivera e estava ali,
perto do corpo de sua jovem Mãe. Como teria o recém-nascido
escapado, assim? Não se sabe, e eu, como membro ilustre do nosso “Instituto
Genealógico e Histórico do Cariri”, não avanço
hipóteses, só digo o que posso provar. Mas vá ver que
são mesmo corretas as versões, correntes aqui no Cariri, de
que uma daquelas Onças era fêmea e teria amamentado o inocente
naquele primeiro dia de vida, no que, aliás, teria somente seguido
outros exemplos ilustres da História.
De qualquer modo, o importante é que o Vaqueiro se apiedou do menino
e levou-o., Sabendo, depois, que o Comandante Pereira tinha distribuído
os filhos dos outros finados, conduziu o inocente a Flores, entregando-o àquele
mesmo Padre Manuel José do Nascimento Wanderley, que protegeu o outro,
depois Tabelião.
Esse Padre Wanderley era homem bondoso, virtuoso e prudente. Sabendo que
o novo protegido era filho do Rei João Ferreira-Quaderna, teve medo
de que essa fama se espalhasse, atraindo sobre a cabeça do Principezinho
as marcas de sangue da família. Ocorre que meu bisavô era mais
conhecido somente pelo sobrenome de Ferreira, sendo assim que ele é
tratado por todos os que escrevem sobre a Pedra do Reino: eu é que,
por motivos de clareza, acrescentei sempre o de Quaderna, que aparece aqui.
O Padre então, aproveitando isso, quando foi batizar o inocente, omitiu
o Ferreira e manteve somente o Quaderna, que quase ninguém conhecia.
Foi por isso que meu avô, o Principezinho escapo à matança,
foi batizado com o nome de Pedro Alexandre Quaderna, e não de Pedro
Alexandre Vieira-dos-Santos FerreiraQuaderna, como teria acontecido em condições
normais.
Quando o menino se tornou adulto, o virtuoso Padre Wanderley deu a ele,
em casamento, uma filha natural sua, Bruna Wanderley, moça loura, conhecida
no Sertão por sua beleza. E foi do casamento de Bruna com meu avô,
Dom Pedro Alexandre (subido ao trono com o nome de Dom Pedro II), que nasceu
Dom Pedro Justino Quaderna (ou Dom Pedro III), aquele que veio a ser meu Pai,
por seu casamento com Dona Maria Sulpícia GarciaBarretto, filha bastarda
do Barão do Cariri e irmã de meu tio e Padrinho, Dom Pedro Sebastião
Garcia-Barretto, degolado daquela maneira cruel e enigmática a que
já me referi, no dia 24 de Agosto de 1930, dia em que o Diabo andou
solto.
FOLHETO XI – A Aventura de Rosa e De La Condessa
Estão resumidos aí, portanto, alguns dos motivos que terminaram
me fazendo considerar honrosa minha descendência quadernesca. Outro,
também fundamental, foi a Cantiga de La Condessa, que me preparou,
por sua vez, para receber duas terríveis influências em minha
vida, a de minha Tia, Dona Filipa Quaderna, e a de meu Padrinho-de-Crisma,
o Cantador João Melchíades Ferreira.
Aliás, Vossas Excelências só poderiam entender a influência
que teve sobre mim essa minha Tia Filipa, se conhecessem ambos, tia e sobrinho.
Digo, hoje, depois de muito refletir sobre isso, que, em menino, eu amava
demais minha Mãe, a suave e bondosa Maria Sulpícia. Mas, admirar,
mesmo, eu admirava era minha TiaÇFilipa, que, no dia em que estava
azeitada, tomava umas quatro ou cinco lapadas, montava num cavalo brabo, atravessava
a feira quebrando as louças de barro espalhadas no chão, e dava
tapa até na cara dos valentes. Eu, que nascera e me criara admirando
as caçadas, as cavalgadas, os tiroteios, as brigas de faca e outras
cavalarias e heroísmos sertanejos, tinha a desgraça de ser mau
cavaleiro, mau caçador e mau brigador. Talvez por isso, admirava minha
Tia Filipa, em cuja pessoa alta, magra e esgrouviada, parecia ter se reunido
a maior parte da coragem da família Quaderna.
Ora, foi Tia Filipa quem me criou, depois da morte de minha Mãe,
Maria Sulpícia. Sendo o mais moço dos filhos legítimos
de meu Pai, eu era o predileto de minha Tia, e muitas das coragens que me
vi obrigado a praticar na vida, eu as fiz com medo dela. Não podia
eu permitir que Tia Filipa descobrisse um covarde em seu sobrinho predileto,
um homem sem talento e sem sustança, um sujeito que não podia
montar muito tempo a cavalo sem assar a bunda e sem inchar os dois joelhos
de uma vez. Não podia consentir, também, que minha Tia terminasse
amargamente sabedora de que ela própria, uma mulher, tinha mais coragem
do que os homens da família, o que a teria matado de desgosto. Por
isso, quando surgia uma questão qualquer em que, segundo os códigos
particulares dela, estava empenhada “a honra dos Quadernas”, lá
ia eu, apavorado, a contragosto, procurando me fazer o mais parecido possível
com a imagem que ela guardava de mim.
Pois bem: depois da morte de minha Mãe, Tia Filipa tornou-se caseira
da “Casa-Forte da Onça Malhada”, a fazenda do meu Padrinho,
Dom Pedro Sebastião. Impressionavam-me a calma, a modéstia e
a energia mansa que ela conseguia conciliar com a coragem viril e os assomos
cavaleiros dos dias em que estava azeitada. Nesses dias de calma cotidiana,
vestindo a saia comprida e o casaco com mangas que sempre usou, punha óculos
de aro de ouro e, sentando-se à almofada, fazia rendas e rendas, cantando
velhas cantigas e folhetos, que sabia de cor, às dúzias. Meu
Padrinho tinha, por ela, a maior admiração. De modo que assim,
fazendo renda e cantando suas cantigas, ela dirigia tudo, despoticamente:
desde a criadagem até a educação, o catecismo e as diversões
das filhas dos moradores e Vaqueiros. A estas, ensinava ela algumas de suas
velhas cantigas-de-roda, reunindo-as à noite, no pátio lajeado
da fazenda, para os cantos e as danças.
Eu, à medida que me punha taludo e me iniciava com as cabras de minha
Tia – de um modo que contarei melhor, depois – começava a deixar de
lado as caçadas de balieira e badoque, e a me chegar mais, de noite,
para a roda das mocinhas e meninas, antes desprezadas como indignas do interesse
de um homem. De repente, dei para rondá-las toda noite, a fim de me
aproveitar do contato de uma ou outra menina mais despachada, com os peitos
já se arredondando e disposta a me acompanhar disfarçadamente
para fora do pátio, para lugares mais escuros e cobertos de mato, mais
propícios, portanto, à brincadeira e às alegrias. Quando
éramos surpreendidos, eu levava uns cascudos e Tia Filipa sublinhava-os
comentando: – Menino safado! Menino maligno! Vai ficar igualzinho ao Pai!
É que Tia Filipa não perdoava a meu Pai a vida desregrada que
valeu a ele o apelido de “0 Pai-d ‘Égua do Cariri”, saído
num jornal de Campina que fazia oposição a meu Padrinho, e que
nos valeu a ruína, com a nossa terra dividida pelos bastardos.
Um dia, de noite, Tia Filipa ensinou às meninas uma cantiga de roda
que, entre outras coisas, precisava de um menino-homem para tomar parte no
diálogo cantado. Eu já estava um pouco grande, mas disputei
ferozmente o lugar, sem me incomodar com as galhofas dirigidas contra mim
pelos filhos de moradores meus companheiros, Lino Pedra-Verde, Severino Putrião,
Marcolino Arapuá e outros vadios. É que eu andava de olho, há
muitos dias, na filha de um Vaqueiro, Rosa, menina morena, de cabelos lisos,
já moça e interessada demais no que ainda não sabia.
Tia Filipa consentiu que eu entrasse na roda. Explicou que eu ia fazer o
papel de Cavaleiro. Elisa, uma menina, filha de Comadre Teresa, o de La Condessa.
Elisa ficava de lá, com todas as meninas de mãos dadas, formando
uma fila e de cara para mim. As meninas eram as filhas de La Condessa, a quem
eu me dirigia, puxando o canto e dialogando com ela:
– “La Condessa, La Condessa! – Que queres com La Condessa? – Quero uma
dessas Moças para com ela casar! – Eu não tiro as minhas filhas
do Mosteiro em que elas ‘tão, nem por Ouro, nem por Prata, nem por
sangue de Aragão! – Tão contente que eu vinha! Tão triste
que vou voltando! – Volta, volta, Cavaleiro! Vem e escolhe a que quiseres!
– Esta fede e esta cheira! Esta, come o pão da feira! Esta é
a que eu queria pra ser minha Companheira!”
Para que se entenda bem o estado de exaltação em que fiquei,
brincando isso, devo acrescentar que fazia uma noite fria e enluarada, dessas
noites sertanejas em que o céu come estrelas e nas quais o mato que
cercava a “Onça Malhada” ficava o mais bonito e cheiroso
do mundo. Tudo isto, juntamente com o desejo que eu sentia por Rosa, que foi
minha escolhida, é claro, criou em mim uma exaltação
que me jogou para o alto e para além de mim mesmo. 0 sonho e o sangue
se misturavam num fogo só, incen65 diado pelo desejo, pela beleza da
mocinha, pelos cantos, pela noite, pela lua e pelas estrelas. As palavras
do canto marcavam-me mais ainda porque seu sentido era obscuro e estranho.
Impressionado com o ouro, a prata, o mosteiro, o sangue, imediatamente tudo
aquilo se tornava sagrado para mim, sacralizado pela luz da lua, que me parecia,
ela também, uma bola de ouro, molhada pelo sangue de aragão
que pingava da noite no mato, à poeira de prata de sua luz.
Então, vieram chamar Tia Filipa para resolver, lá dentro,
um problema da casa. Saí do pátio e, cruzando o portão,
cheguei até a orla do mato, que fiquei olhando, sonhando nem sei bem
com quê. Logo, ouvia uns passos cautelosos e suaves atrás de
mim: e antes mesmo de me voltar, eu já sabia que era Rosa.
Só depois, mais tarde, é que eu iria conhecer mulher, na noite
memorável em que Arésio e eu fomos ao “Circo Estringuine”,
depois do espetáculo. Mas a primeira experiência de amor que
senti com Rosa, naquela noite, foi muito mais importante. Ela deixou que eu
a beijasse, o que fiz desajeitadamente, ignorantemente, afetuosamente, num
beijo que apenas aflorou a pele macia e cheirosa dos lábios dela. Em
compensação, beijei-lhe os cabelos, que tinham sido lavados
mas estavam, já, enxutos e cheirosos, e, sentindo o cheiro capitoso
que se desprendia de seu corpo, ergui instintivamente a mão e passei-a
suavemente por seu busto, tocando nos dois seios.
Nesse momento, ouvi a voz de Tia Filipa que gritava por mim, no pátio.
-Disse a Rosa qúe desse a volta pelo muro, a fim de dar a impressão
de que voltava de dentro da casa, e voltei sozinho pelo portão de entrada.
Apesar de todas essas precauções, porém, Tia Filipa estava
desconfiadíssima. Cheguei para perto dela, acariciei-a, lisonjeei sua
vaidade elogiando uma gola de rendas que ela mesma tinha feito e estava usando.
Ao mesmo tempo, a sensação de felicidade que eu experimentara
prolongava-se de tal modo que parecia tornar o mundo melhor, em torno de mim.
Eu estava ansioso para ir para a cama, a fim de sonhar melhor meu desejo e
minha exaltação. Sentia, porém, ainda, necessidade de
esclarecer algumas coisas que me tinham intrigado e fascinado na Cantiga de
La Condessa. Perguntei a Tia Filipa o que era uma Condessa e o que significava
um Cavaleiro.
– Isso são coisas antigas, Dinis! – disse ela. – É melhor
você perguntar a seu Pai, que é homem mais ilustre do que eu!
Acho que uma Condessa é uma Princesa, filha de um fazendeiro rico,
de um Rei como Dom Pedro I ou Dom Sebastião! – E um Cavaleiro? – insisti,
depois de anotar, em meu sangue, aquela noção de Princesa, misturada
para sempre, agora, ao cheiro e aos seios de Rosa.
– Um Cavaleiro – explicou Tia Filipa – é um homem que tem um cavalo
e monta nele, para brigar de faca com os outros e casar com a filha do Rei!
Foi então por isso, nobres Senhores e belas Damas, que a Cantiga de
La Condessa contribuiu danadamente para que eu me entusiasmasse quando, depois,
soube a história da Pedra do Reino, com os Pereiras, Barões
do Pajeú, montados a cavalo e comandando a tropa de Cavaleiros que
iria acabar, a faca, com o Trono real dos Quadernas. Preparou-me, também,
para entender o que, de fato, significava o rapaz do cavalo branco. É
que, desde aquela noite com Rosa e a cantiga, toda vez que eu, via um Vaqueiro
montado a cavalo, com seu gibão, seu chapéu de couro e os arreios
do cavalo enfeitados de estrelas de metal, eu fingia que aquele metal era
prata e dizia para mim mesmo: – “Lá vai um Cavaleiro montado em
seu cavalo! Vai furtar Rosa, a filha mais bonita de La Condessa e do Rei Dom
Pedro I, para levá-la para o mato, beijar seus cabelos cheirosos e
acariciar os peitos dela, enquanto a bola de ouro da lua se molha no sangue
de aragão que pinga da noite, em sua luz de moeda de prata!” 0
Reino da Poesia Aí, à medida que eu ia crescendo, essas idéias
iam cada vez mais se enraizando no meu sangue. Eu ouvia, decorava e cantava
inúmeros folhetos e romances que me eram ensinados por Tia Filipa,
por meu Padrinho-de-Crisma João Melchíades Ferreira e pela velha
Maria Galdina, uma velha meio despilotada do juízo, que nos freqüentava.
João Melchíades era um Cantador conhecido em todo o Sertão.
Para assinar seus folhetos, adotava o orgulhoso cognome de “0 Cantador
da Borborema”, em homenagem à serra sagrada da Paraíba.
Tinha sido soldado na “Guerra dos Canudos”, em 1897, lutando sob
as ordens do então Tenente-Coronel Dantas Barretto. Depois, fizera
parte das tropas que tinham ido ocupar o Acre, conquistado pelas tropas irregulares
de nordestinos de Plácido de Castro. Fora, depois, reformado no posto
de Cabo, voltando então para a Paraíba, terra sua, e acolhendo-se
à proteção do homem poderoso do Cariri, meu Padrinho,
Dom Pedro Sebastião. Este deu morada ao velho Cantador perto da casa
da fazenda, onde João Melchíades não tinha obrigações,
vivendo do soldo de Cabo e da renda dos seus folhetos e cantadas.
FOLHETO XII
Logo ele se tornaria célebre, com um romance que escreveu sobre a
“Guerra de Canudos” e também pelos inúmeros folhetos
que escreveu contra os Protestantes, os nova-seitas, que já começavam
a aparecer, no Sertão, “com seus evangelhos, cizânias e
pregações proselitistas”, como dizia, indignado, o nosso
Padre Renato.
Já a velha Maria Galdina era conhecida por três apelidos: Sá
Maria Galdina, Galdina Gato e Sá Maria do Badalo, pelo fato de ser
da família Gato e de morar no “Badalo”, uma região
do nosso município onde só dá doido. Ela tinha horror
a ouvir isso. Aparecia às vezes na “Onça Malhada”,
para vender ovos, coentro e galinhas. Tia Filipa comprava tudo, sem precisar.
E como só a chamava respeitosamente de Dona Maria Galdina, não
ligando para sua sandice, a velha era louca por ela. Braba com todo mundo,
com Tia Filipa era um cordeiro. Nunca vinha à “Onça Malhada”
sem lhe trazer pequenos presentes, molhos de maxixe, ovos, e, mesmo, no tempo
de inverno, uma ou duas braçadas de rosas do seu terreiro.
Ora, a amizade entre minha tia e a Velha do Badalo estreitouse ainda mais
quando elas descobriram que ambas gostavam dumas velhas cantigas que somente
elas ainda sabiam. Depois daí, quando Sá Maria Galdina ia lá
em casa, sentava-se no chão, perto da almofada onde Tia Filipa fazia
renda, e começavam a cantar, uma ajudando a outra, uns romances esquisitos,
ao mesmo tempo diferentes e parecidos com os do velho João Melchíades.
Mas sabiam também romances e cantigas de Cangaceiros, tendo grande
estima pelo Abecê de Jesuíno Brilhante. Ambas admiravam muito
esse Cangaceiro, a quem consideravam “o mais corajoso e cavaleiro do
Sertão, um Cangaceiro muito diferente desses Cangaceiros safados de
hoje em dia, que não respeitam mais as famílias”, como
dizia a Velha do Badalo, com plena concordância de Tia Filipa.
Eu, o que mais admirava em Jesuíno Brilhante e nos outros Cangaceiros,
era a coragem que todos eles tinham de enfrentar morte cruel e sangrenta.
Impressionado pelas mortes dos Reis meus antepassados, no Pajeú, sentia-me,
ao mesmo tempo, fascinado o apavorado com elas. Desejava imitá-los
na grandeza real que tinham mantido na vida e na morte, mas sabia que não
tinha coragem suficiente para isso. Eu ouvia aquele tropel de Cavaleiros o
barões sertanejos, montados a cavalo, armados de bacamartes o espadas,
seguindo para a Pedra do Reino. Ouvia o entrechoque dos ferros, na Batalha.
Via as gargantas cortadas, com o sangue dos Reis e das Princesas esguichando
e embebendo o ardente chão sertanejo. De modo que, quando lá
um dia, Dona Maria cujoe Galdina e Tia Filipa cantaram um certo romance que
conheciam assunto era, também, Jesuíno Brilhante, aquilo tudo
de iepente pegou fogo em minha cabeça. Lembro-me bem de que havia uma
estrofe que dizia:
“Jesuíno já morreu! Morreu o Rei do Sertão! Morreu
no campo da honra, não entregou-se à prisão, por causa
de uma desfeita que fizeram a seu irmão!”
Preparado pelos acontecimentos da Pedra do Reino, impressionado com as palavras
Rei e campo (tanto fazia “campo da honra” como “campo encantado
embebido de sangue”), eu começava a misturar Jesuíno Brilhante
com meu bisavô, Dom João Ferreira-Quaderna. Aprendi, então,
a solfa da “Cantiga de Jesuíno”, e quando chegava nos versos
que acabo de citar, substituía as palavras assim: “Dom João
Quaderna morreu, morreu o Rei do Sertão! Morreu no Campo Encantado,
sofrendo a degolação! Pedro Antônio assassinou-o, subiu
ao Trono do irmão!” Tudo isso, porém, era a princípio
apenas uma raiz do sangue, uma peçonha confusa que fincava dentro de
mim suas raízes profundas e inarrancáveis. Só depois
é que tudo iria se aclarando o se espalhando diante dos meus olhos,
graças, principalmente, às lições de meu Padrinho,
João Melchíades Ferreira. É que ele, seguindo o exemplo
de seu antigo Mestre, o grande Francisco Romano, da Vila do Teixeira, instalara
na “Onça Malhada” uma Escola de cantoria, onde procurava
nos ensinar “a Arte, a memória o o estro da Poesia”. Procurava,
entre nós, os que ouviam com mais interesse seus romances e folhetos,
verificava se “tinham vocação para a Arte”, e então
tornava-os discípulos seus. Terminou escolhendo quatro entre os melhores:
eu, Marcolino, Arapuá, Severino Putrião e Lino Pedra-Verde.
Começou ensinando-os que havia dois tipos de romance: o “versado
e rimado”, ou em poesia; e o “desversado e desrimado”, ou em
prosa. Era, mesmo, um exercício que nos obrigava a fazer: pegar um
romance desrimado qualquer e “versá-lo”, contando em verso
o que era contado em prosa. Lia para nós a História de Carlos
Magno e os Doze Pares de França, um “romance desversado”
que nos encantava pelo heroismo de suas cavalarias, aquelas histórias
de Coroas e batalhas, que eu, por causa da Pedra do Reino, via logo, com Princesas
amorosas e desventuradas que, ou eram degoladas ou desonradas, mas disputadas
sempre por Cavaleiros, em duelos mortais, travados a punhal, junto a enormes
pedras e num Campo encantado, embebido de sangue inocente. Inúmeros
Cantadores e Poetas sertanejos tinham, já, versado esse romance do
Imperador Carlos Magno. Nós preferíamos as versões rimadas,
não só porque eram mais fáceis de decorar, como porque
a gente podia cantar os versos, acompanhando a solfa com o baião da
viola, coisa que João Melchíades também não se
descuidou de nos ensinar. Uma dessas versões dizia:
“Depois que o Rei Carlos Magno venceu a grande Campanha, fez a Igreja
de Sant’Iago, padroeiro da Espanha, e a de Nossa Senhora, em Aquisgrã,
na Alemanha.
Tomou dezesseis Cidades, da Guerra saiu feliz! Deu muitas graças a
Deus por conquistar um País: Foi visitar a Alemanha, daí tornou
a Paris.
Acompanhado dos Pares Reinaldo de Montalvão, de Gui, Duque de Borgonha,
de Oliveiros e Roldão, Guarim, Duque de Lorena, o do Conde Galalão;
de Lamberto de Bruxelas, Frisa, Rei de Gardená, Tietri, Duque de Dardanha,
Gerardo e Urgel Danoá, de Bosim, Duque de Gênova, homens-bons
no guerrear;
o o Duque de Regnér, mais Engelo de Almirante, O que me impressionava,
nisso, eram os nomes dos lugares o o fato de, na lista, os Doze Pares de França
serem vinte. Um dia, perguntei a Tia Filipa onde eram todos aqueles lugares
maravilhosos, chamados Lorena, Alemanha, Baviera, Gênova e Bruxelas.
Ela respondeu: – Não sei direito não, Dinis, mas deve ser longe
como o diabo, ali por perto da Turquia, já quase na beira do mundo!
Em Serra Talhada, existe uma família Lorena: portanto esses lugares
devem ser pra lá do Sertão do Pajeú, de Serra Talhada
pra cima, mais de sessenta léguas! Ou então, é pr’os
lados do Piauí, entre a Turquia e a Alemanha! A guerra do Doutor Santa
Cruz contra o Governo da Paraíba, parece que foi pr’aquelas bandas,
em 1912: mas o que eu me admiro é que uns chamam ela de “A Guerra
de Doze”, e outros de “A Guerra de Catorze”, o a gente fica
sem saber quantos Reis se meteram nela, se foram doze ou catorze! Meteram-se
nela um tal de Togo do Japão, o Caisalamão, Antônio Silvino,
os Pereiras, Dom Sebastião, Carlos Magno, os Viriatos, esse pessoal
guerreiro todo! Digo isso porque, naquele tempo, eu perguntei a seu Pai: –
“Justino, sabe me dizer se a Paraíba está metida nessa
guerra que está havendo por aí?” Ele respondeu: – “Filipa,
a Paraíba é do Brasil, e o Brasil está! ” Aí,
eu perguntei: – “A favor ou contra a Alemanha?” Aí ele disse:
– “Contra o Caisalamão!” Eu perguntei de novo: – “Contra
o quê?” Seu Pai disse: – “Contra a Alemanha! 0 Caisalamão
é o Rei da Alemanha!” Aí eu perguntei: – “E se a Alemanha
ganhar a guerra, você acha que vão tomar as terras do nosso Compadre
Pedro Sebastião?” Justino respondeu: – “Essa gente de Governo
é tão ruim, que são capazes de tomar!” Eu, com raiva,
falei: – “Tá, é da vez que eu largo esse Brasil velho o
vou me embora pr’o Ceará! ”
e Nemé da Baviera, Hoel e Riol de Nantes, Reinaldo e Anselmo Fiel,
mais Oton, Príncipe de Anglante.
Aí passou Carlos Magno vinte anos em campanha. Aquartelou os exércitos
d’Itália, França e Alemanha. Mas lhe chega uma Embaixada: novas
guerras na Espanha!” O velho João Melchíades ensinou-nos,
ainda, que, entre os romances versados, havia sete tipos principais: os romances
de amor; os de safadeza e putaria; os cangaceiros e cavalarianos; os de exemplo;
os de espertezas, estradeirices e quengadas; os jornaleiros; e os de profecia
e assombração.
Um dia, ouvi Tia Filipa e a Velha do Badalo cantarem, juntas, uma daquelas
cantigas que eu achava estranhas, mas parecidas com a Cantiga de La Condessa.
As duas estavam sentadas no chão, fazendo renda, e enquanto Tia Filipa
manejava os bilros, cantava em diálogo com Dona Maria Galdina: “Ai
Valença! Guai Valença! De fogo sejas queimada! Antes fosses
pelos Mouros que pelos Cristãos tomada! Ai Valença! Guai Valença!
Como estás bem assentada! Antes que sejam três dias, de Mouros
serás cercada! ” “Vesti-vos, vós, minha Filha, vesti-vos
de Ouro e de Prata! Detende-me aquele Mouro, em palavra por palavra! Que as
palavras sejam poucas, mas sejam bem rematadas, e essas poucas que lhe derdes
sejam de amores tocadas! ” Aí, foi a vez de eu consultar meu padrinho
João Melchíades sobre essas cantigas. Ele me explicou que aquilo
eram “uns romances velhos, meio desmantelados e já um pouco fora
de moda”. Disse que a briga entre os Cristãos e os Mouros de que
a cantiga falava, eram aquelas que eu via, todo ano, entre Natal e Reis, nas
representações da Nau Catarineta, com os Reis Mouros do Cordão
Encarnado, e os Reis Cristãos do Cordão Azul. Ele sabia algumas
daquelas cantigas velhas, que tinha decorado como obrigação
de ofício, nos começos de sua carreira de Cantador. Então,
cantou-me uma dessas, uma espécie de mistura de romance de amor com
romance de putaria. Chamava-se Romance da Filha do Imperador do Brasil, e
era assim: Sá Galdina: “0 Imperador Dom Pedro tem uma Filha bastarda,
a quem quer tanto do bem que ela ficou malcriada! Queriam casar com ela Barões
de capa e de espada. Ela, porém, orgulhosa, a todos que recusava: –
Este, é menino! Esse é velho! Aquele, lá, não
tem barba! o de cá, não tem bom pulso pra manejar uma Espada!
Tia Filipa: Dom Pedro falou, se rindo: – Inda serás castigada! Não
vás tu, de algum Vaqueiro, terminar apaixonada! Na fazenda de seu Pai,
já no fim da madrugada, um dia, numa janela, a Infanta se debruçava.
Viu passar três moradores que trabalhavam de enxada.
o mais garboso dos três era o que mais trabalhava. Tanto plantava
Algodão, como do Gado cuidava. Vestia Gibão de couro, fortes
sapatos calçava. N’aba do chapéu de couro, fina prata se estrelava.
Pois logo, desse Vaqueiro, a Infanta se apaixonava.
o o Vaqueiro, só cavando: ele sabe o que cavava! 72 A Princesa chama
a Velha em que mais se confiava: – Estás vendo aquele Vaqueiro, trabalhando,
ali, de enxada? Condes, Duques, Cavaleiros, por nenhum eu o trocava! Vai chamá-lo
aqui, depressa, e ninguém saiba de nada! A Velha vai ao Vaqueiro que
na terra trabalhava: – Vem comigo, meu Vaqueiro! Por que essa vista baixa?
Levanta os olhos, que vês a Estrela da Madrugada! Entraram pelo portão,
que a Porta estava fechada. Na camarinha da Moça o Vaqueiro já
chegava:
– Senhora, o que é que me manda? Eu vim por vossa chamada! – Quero
saber se te atreves a queimar minha Coivara! – Atrever, me atrevo a tudo,
que um homem não se acovarda! Dizei-me, porém, Senhora, onde
está vossa Coivara! – É abaixo dos dois Montes, na Fonte das
minhas águas, abaixo do Tabuleiro o na Furna da Pintada, na linha da
Perseguida, no corte da Desejada!
Passam o dia folgando, o mais da noite passavam, o o Vaqueiro socavando:
ele sabe o que cavava!
À meia-noite, a Princesa pediu tréguas, por cansada: – Basta!
Basta, meu Vaqueiro! Queimaste mesmo a Coivara! Não sei se por varas
morro ou com ela incendiada! E, assim, a filha do Rei do orgulho foi castigada!”
Ora, eu sabia que meu tio-bisavô, Dom Pedro I, Imperador da Pedra do
Reino, não tinha filho nem filha, de modo que fiquei abismado com as
mentiras desse romance. Até que, muito depois, soube que quem tinha
uma filha bastarda era o outro Dom Pedro I, o falso, o impostor da Casa de
Bragança. Certamente fora essa
filha a Duquesa de Goiás, que, tendo puxado às taras da Mãe,
a Marquesa de Santos, terminara como personagem desse romance que meu Padrinho
me cantou naquele dia.
0 Caso da Cavalhada Aos sábados, Tia Filipa me levava para a feira,
e ficávamos na rua até o dia seguinte, para assistirmos à
Missa do domingo. Ufia vez, terminada a feira, houve uma Cavalhada, coisa
que também iria ser de importância capital na minha vida.
Havia vinte e quatro Cavaleiros. Doze deles representavam os Doze Pares
de França do Cordão Azul, e os outros doze, os Doze Pares de
França do Cordão Encarnado. Havia, portanto, un, Roldão
do azul e outro do encarnado, de modo que, apesar de serem vinte e quatro
os Cavaleiros, aqui os Doze Pares de França eram realmente doze, a
saber: Roldão, Oliveiros, Guarim de Lorena, Gerardo de Mondifér,
Guí de Borgonha, Ricarte de Normandia, Tietri de Dardanha, Urgel de
Danoá, Bosim de Gênova, Hoel de Nantes, o Duque de Nemé
e Lamberto de Bruxelas.
Ninguém pode imaginar o entusiasmo régio que me empolgou quando
os Cavaleiros desfilaram pela rua, a cavalo, com os matinadores levando à
frente as Bandeiras dos dois cordões, uma azul, outra encarnada. Explicaram-me
que os Azuis iam disputar troféus com os Vermelhos, e que eu devia
escolher para mim um dos dois partidos. Disseram-me que o Cordão Azul
era a cor de Nossa Senhora, e o Encarnado, a do Cristo. Mas Tia Filipa, que,
por ser devota de Nossa Senhora da Conceição, era do Azul, me
disse, logo, que eu não fosse nessa conversa não, porque o Cordão
Encarnado era do Diabo. Espantei-me de que uma cor só, o Vermelho,
pudesse ser, ao mesmo tempo, do Cristo e do Diabo. Só depois de adulto,
aprofundando meus conhecimentos religiosos e astrológicos e estudando
o Catolicismo da Pedra do Reino, foi que descobri como essa noção
é profunda, zodiacal e estrelar! Mas isso foi depois e fica para depois:
naquele meu primeiro dia de Cavalhada, obedecendo à orientação
de Tia Filipa, filiei-me ao Cordão Azul, no que fiz, aliás,
muito bem, porque ele ganhou e eh quase morro de entusiasmo.
Aconteceu, porém, que os derrotados cavaleiros do Encarnado não
se conformaram e pediram desforra para o sábado seguinte.
Fomos à feira de novo, eu e Tia Filipa; e quando eu, muito lampeiro,
esperava a repetição da vitória do Azul, coisa que eu
julgava de rotina pela proteção de Nossa Senhora contra o Diabo,
ganhou o Encarnado! Encafifei! Assim, não era vantagem!. No primeiro
dia, eu ficara entusiasmado com as bandeiras vermelhas, triunfais, agitadas
pelo vento, tremulando desafiadoramente contra o céu azul; só
não me filiara ao Cordão Encarnado, primeiro para não
perder a alma, e depois porque estava certo de que o Azul, com a proteção
da Virgem Santíssima, ganhava toda vez. Pensei, então, em virar
a casaca para o Encarnado, indagando porém, antes, a Tia Filipa, qual
era o Cordão que ganhava mais. Perplexa, ela respondeu que isso era
coisa que ninguém podia saber. Então, como era que eu podia
fazer minha escolha? Se ao menos houvesse uma coerência, uma garantia!
Acresce que eu achava ambas as bandeiras bonitas: o Azul era tranqüilo
e fraterno, mas o Vermelho era festivo e corajoso, o eu gostava era de todos
dois! Só havia, portanto, uma solução e foi a que adotei:
resolvi pertencer aos dois partidos de uma vez, só decidindo qual a
minha facção do dia depois da corrida. Quando o Azul ganhava,
eu voltava para a “Onça Malhada” dizendo: – Hoje, eu era
do Azul! Tia Filipa ouvia isso enfarruscada mas calada. Quando, porém,
o Encarnado vencia e eu me declarava por ele, ela rosnava: – Esse menino não
tem caráter! Não sei a quem ele puxou, tão desassistido
de vergonha!
Tudo isso me ajudava, aos poucos, a entender cada vez melhor a história
da Pedra do Reino e a me orgulhar da realeza e cavalaria dos meus antepassados.
Tornava também o mundo, aquele meu mundo sertanejo, áspero,
pardo e pedregoso, um Reino Encantado, semelhante àquele que meus bisavós
tinham instaurado e que ilustres Poetas-Acadêmicos tinham incendiado
de uma vez para sempre em meu sangue. Minha vida, cinzenta, feia e mesquinha,
de menino sertanejo reduzido à pobreza e à dependência
pela ruína da fazenda do Pai, enchia-se dos galopes, das cores e bandeiras
das Cavalhadas, dos heroísmos e cavalarias dos folhetos. Assim, quando
agora me acontecia evocar os acontecimentos da Pedra do Reino, o que eu via
eram os Pereiras, como uma espécie de Cavaleiros Cristãos do
Cordão Azul, assediando e assaltando o Reino criado e defendido pelos
Reis Mouros do Cordão Encarnado da família Quaderna. Sonhava
em me tornar, também, um dia, Rei e Cavaleiro, como meu bisavô.
Não para degolar os outros, mas para conquistar Rosa e sete Princesas,
queimando sete coivaras o abrindo, ainda, a broca dos cercados dos outros,
pelo direito real de “dispensar” todas as donzelas do Reino em sua
primeira noite de casadas.
Ao mesmo tempo, entregava-me furiosamente à leitura dos folhetos
e romances, de que ia tomando conhecimento por intermédio de meu Padrinho
e professor João Melchíades. Quando o romance era muito grande,
era publicado em folhetos separados, como a História de Alonso e Marina,
dividido em dois: Alonso e Marina, ou A Força do Amor e A Morte de
Alonso e a Vingança de Marina. Este, era uma mistura de romance de
amor com romance cavalariano de heroísmos, e eu achava maravilhosos
esses títulos duplos, “isto ou aquilo”. Outras vezes, o folheto
trazia na primeira página, por baixo do título, uma espécie
de explicação, destinada a causar “água na boca”
aos que iam comprá-lo. Assim, por exemplo:
0 PRÍNCIPE JOÃO SEM MEDO E A PRINCESA DA ILHA DOS DIAMANTES
ROMANCE DE PÁGINAS MISTERIOSAS, ONDE SE VÊ UM JOVEM PRÍNCIPE
VIAJANTE E ERRANTE PELAS MAIS TEMEROSAS ESTRADAS, EM BUSCA DE INTRINCADOS
LABIRINTOS QUE LHE CAUSASSEM MEDO, AMOR, SACRIFÍCIO E TRIUNFO! Havia
romances de exemplo, como o Exemplo dos Quatro Conselhos. Havia os romances
cangaceiros e cavalarianos como, por exemplo, 0 Encontro de Antônio
Silvino com o Valente Nicácio. Este começava com uma reflexão
que, segundo João Melchíades, era “filosófica, filantrópica
e litúrgica até o osso”. Era assim: “Neste Planeta
terrestre, o Homem não se domina: tem que viver sob o jugo da Providência
Divina. Foi feito do Pó da terra, no Pó da terra termina!
Assim, eu mostro a estrada do Passado e do Presente, Estrada onde morrem
Reis ,molhados de Sangue quente! Hoje, tornados em Pó, resta a Memória,
somente! ”
FOLHETO DE JOÃO MELCHIADES, 0 CANTADOR DA BORBOREMA. A GRAVURA DE
TAPARICA FOI FEITA A PARTIR DA CARLOS MAGNO SEGUNDO APARECE NA “HISTÓRIA
DA CIVILIZAÇÃO” DO DOUTOR MANOEL DE OLIVEIRA LIMA.
Eram, ainda, os três Reis degolados da Pedra do Reino que vinham à
minha imaginação, quando eu ouvia meu Padrinho cantar esses
versos, “de tão profunda significação filantrópica
e litúrgica”. E quando, em 1930, meu tio Dom Pedro Sebastião
GarciaBarretto foi degolado, foram ainda esses versos que me queimaram a memória,
pegando fogo em meu sangue.
Outras vezes, a reflexão inicial do folheto vinha como uma invocação
dirigida às Musas, a Apolo, a Mercúrio ou a outras figuras que,
depois, quando me dediquei à Astrologia, tiveram tanta importância
em minha vida. Era o caso de um romance de amores desventurados, 0 Assassino
da Honra, ou A Louca do Jardim, que começava com a seguinte estrofe:
“Venha, 6 Musa, mensageira do Reino de Eloim: me traga a pena de Apolo
e escreva aqui, por mim, O Assassino da Honra ou A Louca do Jardim.”
Assim, Vossas Excelências já entendem por que segui esse mesmo
estilo, no meu Memorial: pretendia e pretendo, com isso, predispor favoravelmente
a mim não só os ânimos de Vossas Excelências como
“o Povo em geral” e até as divindades divinodiabólicas
que protegem os Poetas nascidos e criados no Sertão da Paraíba.
FOLHETO XIV 0 Caso do Castelo Sertanejo Um dia, tendo sido eu já
iniciado nas realezas e cavalarias da História Geral do Brasil, caiu
nas minhas ouças um folheto, decorado por Lino Pedra-Verde, e que começava
assim:
“No Sertão da Espinhara, junto à Vila de Pombal, habitava
o poderoso Barão Afonso Durval, que inda vinha a ser parente da Família
Imperial”.
Eu já não me sentia mais envergonhado, e sim orgulhoso, de pertencer
à Casa Real da Pedra do Reino, de modo que já andava era com medo
de rivais. A Espinhara e a Vila de Pombal eram aqui na Paraíba, a dois
passos do nosso Cariri: daqui a pouco, se essa Literatura continuasse, os Sertanejos
pensariam que tanto faziam os Imperadores da Casa dos Quadernas quanto os Impostores
da Casa de Bragança, que tanto valia um Barão Afonso Durval qualquer
quanto Dom Andrelino Pereira, Barão do Pajeú! Resolvi cortar o
mal pela raiz: pedi a João Melchíades que, como parente dos Ferreira-Quadernas,
escrevesse um romance sobre a Pedra do Reino. Ele me atendeu, e o folheto ficou
uma beleza, cuidando eu logo de imprimi-lo e vendê-lo nas feiras. Começava
assim: “No Reino do Pajeú morava o Rei João Ferreira. Ele
era Conde e Barão: Foi o terror da ribeira! Tinha a Coroa de Prata lá
no Trono da Pedreira! Havia, lá, dois Rochedos bem juntos e paralelos.
A Pedra era cor de ferro o incrustada de amarelo. Foi delas que, por grandeza,
o Rei fez a Fortaleza, levantando o seu Castelo!”
Agora sim, estava honroso e como eu queria! Apenas adverti a João
Melchíades que a Coroa dos nossos antepassados era de metal barato,
e não de prata, e que as incrustações da Pedra do Reino
eram “uma espécie de chuvisco prateado”, e não de
ouro amarelo, como ele escrevera no folheto. Ele me respondeu que “a
rima e a Poesia obrigavam a gente a fazer essas mudanças de glória
filosófica e beleza litúrgica”. Conformei-me, concordei
e perguntei, então, que Castelo era aquele que tinha aparecido no folheto
e que não figurava nos livros de Pereira da Costa e Souza Leite. Ele
retrucou que todo Rei tem um Castelo, uma Fortaleza, uma edificação
de pedra e cal na qual se isola como defesa contra os inimigos e como marco
de sua realeza. Todos os Cantadores, quando cantavam as façanhas dos
Cangaceiros, costumavam construir, em versos, um Castelo para seu herói.
0 de Antônio Silvino, por exemplo, era descrito assim: “Meu Castelo
está fincado em Pedra de grande altura.
o feita de pedra e cal sua Muralha segura! o Governo tem lutado, mas ele
não foi tomado, pois a Pedra é muito dura! ” Todas essas
grandezas e monarquias iam, assim, tocando fogo em meu sangue, com o desejo
de me sentar no Trono de meus antepassados e de me assenhorear de novo do
Castelo de pedra que eles tinham levantado no Pajeú. Quando, porém,
meu sonho atingia o auge de fogo, lá vinha a lembrança estarrecedora:
todos os Reis da minha família tinham terminado de garganta cortada,
de morte violenta tinha acabado Jesuíno Brilhante, o Rei do Sertão!
Então, envergonhado, eu baixava*a cabeça, corria de enfrentar
morte cruel para realizar minha realeza, e confessavá para mim que
preferia ser um covarde vivo a ser uín Rei degolado.
Estavam as coisas nesse pé, quando, um dia, ouvi Tia Filipa e a Velha
do Badalo cantarem, juntas, o Desafio de Francisco Romano com Inácio
da Catingueira. Tia Filipa cantava as estrofes atribuídas ao primeiro
Cantador e Sá Maria Galdina as do segundo. De repente, feriu minha
atenção um trecho em que Romano, sabedor do fato de que Inácio
“tinha um Castelo”, ameaçava-o assim: Romano: Inácio:
“Inácio, tu me conheces e sabes bem quem eu sou! eu posso te garantir
que à Catingueira inda vou: vou derrubar teu Castelo que nunca se derrubou!”
“A parede do Castelo tem cem metros de largura! Tem ainda um Alicerce
com bem trinta de fundura, e, do nível para cima, mais de uma légua
de altura! ” Romano: As glosas eram assim: “Pra tudo o que lá
tiveres tenho trabalho de sobra: eu dou veneno ao Cachorro, meto o cacete
na Cobra! Derrubo-te a Fortaleza, escangalho a tua Obra!” Intrigado,
fui procurar meu Padrinho, João Melchíades, e ele me fez, então,
aquela que seria, talvez, a maior revelação para a minha carreira.
É que os Cantadores, assim como faziam Fortalezas para os Cangaceiros,
construíam também, com palavras e a golpes de versos, Castelos
para eles próprios, uns lugares pedregosos, belos, inacessíveis,
amuralhados, onde os donos se isolavam orgulhosamente, coroando-se Reis, e
que os outros Cantadores, nos desafios, tinham obrigação de
assediar, tentando destruí-los palmo a palmo, à força
de audácia e de fogo poético. Os Castelos dos poetas e Cantadores
chamavam-se, também, indiferentemente, Fortalezas, Marcos e Obras.
Foi um grande momento em minha vida. Era a solução para o
beco sem saída em que me via! Era me tornando Cantador que eu poderia
reerguer, na pedra do Verso, o Castelo do meu Reino, reinstalando os Quadernas
no Trono do Brasil, sem arriscar a garganta e sem me meter em cavalarias,
para as quais não tinha nem tempo nem disposição, montando
mal como monto e atirando pior ainda! Assim firmou-se para mim a importância
definitiva da Poesia, única coisa que, ao mesmo tempo, poderia me tornar
Rei sem risco e exalçar minha existência de Decifrador. Anexei
às raízes do sangue aquela fundamental aquisição
do Castelo literário, e continuei a refletir e sonhar, errante pelo
mundo dos folhetos. Um dos tipos que eu mais apreciava eram os de safadeza,
subdivididos em dois grupos, os de putaria e os de quengadas e estradeirices.
Dos primeiros, o que mais me entusiasmava eram umas “décimas”
do Cantador Leandro Gomes de Barros, glosadas sobre o “mote” “Qual
será o beco estreito que três não podem cruzar? Só
entra um, ficam dois, ajudando a trabalhar!” “Frei Bedegueba dizia
a Frei Manzapo, em disputa: – Existe uma certa Gruta onde hei de ter moradia.
Hei de conhecê-la um dia, embora quebre o Preceito. Vou penetrá-la
direito, para a verdade saber, pois preciso conhecer qual será o beco
estreito.
Dizem que tem pouca altura e fica no pé dum Monte. A entrada é
uma Fonte: vou medir sua largura! Para saber-lhe a fundura vou lá dentro
mergulhar. Para me certificar, não podendo entrar os três, só
entra o Cabo-Pedrês, que três não podem cruzar.
Um Padre já me contou que foi dar uma caçada e, nessa Mata
fechada, viu um Bicho e não matou! De dentro, uma Voz gritou: – Padre,
dizei-me quem sois! Podereis entrar depois, respondendo ao que pergunto: mas,
dos três que vejo juntos, só entra um, ficam dois! Um Monge,
de lisa fronte, também já contou a mim: – Já brinquei
nesse Capim, já ressonei nesse Monte! Quase sempre a essa Fonte venho
eu e mais um Par: os dois não podendo entrar, por serem moles e bambos,
eu entro só, ficam ambos ajudando a trabalhar!”
Ora, Leandro Gomes de Barros era o autor de Alonso e Marina, ou A Força
do Amor, e eu me admirava de que ele, sendo, assim, esfarinhado, em questões
de safadeza e porcaria, contasse de maneira tão casta o casamento de
Alonso com a feroz e apaixonada Marina. João Melchíades me explicou,
porém, que, se Leandro descrevesse desavergonhadamente a noite de núpcias
de Marina, era capaz de ser preso. Objetei que tinha lido um folheto, intitulado
Histórias de um Velho que Brigou 72 Horas com um Cabaço sem Chegar
no Fundo e sem Lascar as Beiras, safadfssimo e, no entanto, publicado. João
Melchíades disse que eu reparasse direito: o folheto sobre o Velho não
era assinado, para não dar com o autor na Cadeia.
Passei a prestar atenção e vi que, de fato, os romances de
putaria nunca eram assinados. Eu os lia furiosamente e logo passava a compará-los
com outros, desrimados, dos quais começava a tomar conhecimento, por
intermédio de Lino Pedra-Verde. A medida que crescíamos, Lino
ia se tornando Cantador. Cantador, mesmo: não nas horas vagas, como
eu, mas Cantador alugado, de carreira, como João Melchíades.
Com isso, começou a viajar, inclusive para Campina Grande, de onde
começou a trazer, para revendê-los na feira, uns romances desversados,
imoralíssimos. A perturbação que senti, lendo o primeiro,
foi terrível. Sentia-me fascinado e, ao mesmo tempo, aterrorizado,
pensando comigo mesmo: – “Esse pessoal não tem medo não?
Terminam indo todos para a Cadeia e para o Inferno, e me levando também,
com eles!” Havia um chamado o Homem da Rua do Fogo. Outro, A Prostituta
do Céu. Mas o melhor de todos era A Afilhada de Monsenhor Agnelo, ou
o Castelo do Amor, que lamentei não conhecer já, quando daquela
noite com Rosa, porque então tudo teria ido até o fim, executando
eu, com ela, tudo aquilo que o romance agora me ensinava.
O curioso, porém, é que esses romances eram, todos, escritos
o assinados por um certo Visconde de Montalvão, na certa parente do
Marquês de Montalvão, personagem da “História do
Brasil”, parece que até Vice-Rei nosso. Seria o Visconde filho
do Marquês? Interroguei Lino, que achou graça: – Que Visconde
que nada, Dinis! Esses romances são escritos em Campina, mesmo, por
um tal de José de Santa Rita Pinheiro Nogueira, amigo meu! Ele pega
uns livros que compra no Recife, escreve de novo, ajeita, corta, aumenta,
assina com o nome de Visconde de Montalvão para não ser preso,
imprime e vende! Tem um lucro danado, porque todo mundo gosta de ler safadeza!
– Mas se ele for pegado, vai preso, Lino! Primeiro, pela safadeza, depois
pelo plágio! – Ah não, isso não! Esse negócio
de plágio pode valer para os outros, para nós, Cantadores, não!
Você não vê João Melchíades mandando a gente
plagiar, em verso, A Donzela Teodora, Roberto do Diabo, a História
de Carlos Magno e outras? – É mesmo! – disse, vendo que Lino tinha
razão.
Depois daí, nunca mais tive escrúpulos de me apropriar do
que os outros tinham escrito, suprindo, assim, “a falta de imaginação
e de autoridade” que Samuel e Clemente vivem passando na minha cara de
“charadista e intelectual de segunda ordem”.
Reassegurado, mergulhava com avidez na leitura dos romances de José
de Santa Rita Pinheiro Nogueira, Visconde de Montalvão. Meu preferido
era, mesmo, A Afilhada de Monsenhor Agnelo, porque, além das putarias,
tinha, ainda, aquele elemento heróico do Castelo do Amor. Isto me indicava
que a Fortaleza de um Rei, poeta e Cantador como eu, além dos heroísmos
e cavalarias das estradas e catingas, devia ter, também, camarinhas
e alcovas para o amor e as safadezas. Era o que acontecera com o Castelo da
Pedra do Reino, onde meu bisavô Dom João II instituíra
heroísmos sangrentos no Campo Encantado e safadezas amorosas na Sala
Soterranha, onde ele dispensava as donzelas.
Acresce que o danado do Visconde escrevia talvez melhor ainda do que Antônio
Áttico de Souza Leite. Convenci-me, de vez, que o plágio seria
indispensável à minha vocação de Poeta, porque,
sozinho, eu jamais teria inteligência para escrever como aqueles dois
Mestres. 0 livro dele começava assim “Se o amável Leitor
não conheceu Teresa, a afilhada órfã do lúbrico
Monsenhor Agnelo, procure-a no meu Castelo! Ela mora aí, no repertório
literário que tenho, depositado, a cargo da Mulher que amo! Neste régio
Castelo, erguido a golpes de escopro de meu Cálamo de ouro, o egrégio
Leitor encontrará uma Aia prisca, não decrépita mas trôpega,
que o receberá com pouca lisura mas com muita habilidade”. 0 Visconde
contava, então, como a mãe de Teresa, morrendo, deixara a menina
aos cuidados do Monsenhor Agnelo, “padre sensual e sem escrúpulos”,
que, à medida que a afilhada se punha moça, começava
a seduzi-la, aproveitando a circunstância de ela ser “inocente
e brejeira, ingênua e voluptuosa”. Depois do almoço, Monsenhor
Agnelo costumava sentar-se numa espreguiçadeira ou deitar-se na cama,
para fazer a sesta. Era o momento escolhido para as safadezas, que me abstenho
de transcrever, com medo do Inferno. Conto apenas que, num certo dia, depois
de várias escaramuças com Teresa, Monsenhor Agnelo, descobrindo
que o fruto estava maduro, pensava: – “Agora é necessário
aplicar-lhe um pouco de óleo sensual que lhe sirva de antídoto,
fazendo-a expelir as matérias envenenadas de seus filamentos nervosos,
ao mesmo tempo que se lhe crava nas entranhas o dardo subentendido”.
Aí, havia ainda umas três ou quatro escaramuças, e o Visconde
concluía, dizendo que “logo o problema se resolvia, e o atrevido
soldado de capacete vermelho, encontrando a relva umedecida, rasgava docemente
as barreiras e penetrava inteiramente a gruta negra e vermelha, plantada no
centro do Castelo do Amor!” Como se vê, nossos pobres folhetos
sertanejos não podiam, mesmo, nem de longe, competir com os romances
do Visconde. A safadeza dos nossos era, mais, uma sem-vergonhice risadeira,
que só fazia era a gente achar graça. Eram bons, mesmo, era
nas estradeirices e quengadas, nas astúcias e molecagens dos quengos.
Esses quengos-estradeiros, isto é, pessoas de bom quengo para enganar
os outros, eram popularíssimos, entre nós. Os mais conhecidos
eram Pedro Malasarte, João Malasarte – neto dele e morador no Rio Grande
do Norte – Pedro Quengo, João Grilo e Cancão de Fogo, este um
sertanejo, paraibano como eu, cuja vida era narrada num romance de dois folhetos.
A história de João Malasarte acontecia nas três Províncias
que formam “o coração do Brasil”, a Paraíba,
o Rio Grande do Norte e Pernambuco, acontecendo os casos no Cariri, no Piancó,
no Pajeú e no Seridó. As aventuras do Pajeú, passavam-se
exatamente em Serra Talhada, no mesmo local, portanto, onde tinha, realmente,
começado o Reinado glorioso e sangrento da minha Casa. Mas a parte
mais engraçada era a do Seridó, no Rio Grande do Norte, quando
João Malasarte encontrava, na estrada, um Português leso e o
enrolava da seguinte maneira: “Chegou no Seridó, liso: não
tendo de que viver, arranjou umas pimentas e foi p’ra Feira vender. Porém,
no caminho, fez um Português se morder.
João achou o Português com um Jumento acuado, carregado de
panelas, lá no caminho, parado, com o Português dando nele, porém
o burro emperrado.
João lhe disse: – Camarada, eu tenho um remédio aqui! Deu-lhe
as pimentas, dizendo: – Como este, eu nunca vi! Esfregue no fundo dele que
ele sai logo daí! o besta passou as bichas no lugar que João
mandou: o jumento deu um coice que a cangalha revirou! As panelas se quebraram
o o burro desembestou! João disse pr’o Português: – Seu jumento
já correu! Com o remédio no f loto, ele desapareceu! o você
só pega ele se passar também no seu! o pobre do Português,
para pegar o jumento, passou a pimenta ardosa no lugar de sair vento.
João gritou: – Ou cabra besta! Desgraçaste o fedorento! Quando
o Português sentiu o ardor no f io f ó, puxou a Faca da cinta
o João gritou: – Fique só! Dessa carreira que deu, foi parar
em Mossoró!” Aí, andando ao léu pela estrada, João
vai bater numa Fazenda, onde pede ao dono que lhe arranje emprego pela comida,
pela roupa e um pequeno salário. 0 Fazendeiro emprega-o, João
trabalha uma porção de tempo, com grande eficiência, até
ganhar a confiança do patrão. Aí arma outro laço
que o folheto contava assim: “E João ficou manobrando aquela propriedade.
Passou dois anos quieto, sem usar perversidade, conquistando, do Patrão,
confiança e intimidade.
Porém Satanás, um dia, manifestou-se em João e ele
armou uma Cilada para a filha do Patrão. Ela, por ser inocente, caiu
no laço do Cão!
João lhe disse: – Madalena, seu Pai, por ser meu amigo, mandou dizer
que você dormisse um sono comigo! Ela foi, porque pensou: – Pai mandou,
não há perigo!
Ainda estavam deitados quando o Pai dela chegou. A Moça gritou, do
quarto: – Com João aqui eu estou, cumprindo com meu dever, como Papai
ordenou!
O velho conheceu logo que havia uma traição: deu um pontapé
na porta que a porta rolou no chão! João desabou, de cueca,
o a Moça, de camisão!
O Velho pegou João o deu-lhe um soco, direto! João ficou tonto
e caiu, mas disse: – Seu Anacleto, não me mate, que se atola! Tenho
que criar seu neto! A Velha disse: – Meu Velho, é mesmo! Não
mate João, senão nossa filha fica perdida e sem cotação!
João falou: – E eu só me caso porque comi do Pirão!”
Eu ria com essas astúcias, praticadas nos caminhos empoeirados do Sertão,
e me lembrava também, orgulhoso, de que, na Pedra do Reino, a parte
das degolações e da batalha era um
romance cangaceiro e cavalariano. Mas a primeira, começo de tudo,
fora uma “quengada” de meu tio-bisavô, o primeiro Rei, João
Antônio, que armara um laço tão genial quanto os de João
Malasarte, tendo, como material, somente duas pedrinhas e um folheto com a
profecia sobre El-Rei Dom Sebastião, e erguendo, sobre alicerces tão
pobres, todas aquelas grandezas e monarquias.
Assim, aos poucos, ia se formando no meu sangue o projeto de eu mesmo erguer,
de novo, poeticamente, meu Castelo pedregoso o amuralhado. Tirando daqui e
dali, juntando o que acontecera com o que ia sonhando, :terminaria com um
Castelo afortalezado, de pedra, com as duas torres centradas no coração
do meu Império. Este, espinhoso e meio adesertado, era integrado astrologicamente
por sete Reinos: o dos Cariris Velhos, o da Espinhara, o do Seridó,
o do Pajeú, o de Canudos, o dos Cariris Novos e o do Sertão
do Ipanema. Era o Quinto Império, profetizado por tantos Profetas brasileiros
e sertanejos e cortado por sete Rios sagrados: o São Francisco-Moxotó,
o Vaza-Barris, o Ipanema, o Pajeú, o TaperoáParaíba,
o Piancó-Piranhas e o Jaguaribe. Ali eu reergueria, sem perigo de vida,
as Torres de lajedo do meu Castelo, para que ele me servisse de trono, de
pedra-de-ara, de ninho de gaviões, onde eu pudesse respirar os ares
das grandes alturas. Seria um Reino literário, poderoso e sertanejo,
um Marco, uma Obra cheia de estradas empoeiradas, catingas e tabuleiros espinhosos,
serras e serrotes pedreguentos, cruzada por Vaqueiros e Cangaceiros, que disputavam
belas mulheres, montados a cavalo e vestidos de armaduras de couro. Um Reino
varrido a cada instante pelo sopro sangrento do infortúnio, dos amores
desventurados, poéticos e sensuais, e, ao mesmo tempo, pelo riso violento
e desembandeirado, pelo pipocar dos rifles estralando guerras, vinditas e
emboscadas, ao tropel dos cascos de cavalo, tudo isso batido pelas duas ventanias
guerreiras do Sertão: o cariri, vento frio e áspero das noites
de serra, e o espinhara, o vento queimoso e abrasador das tardes incendiadas.
Nas serras, nas catingas e nas estradas, apareceriam as partes cangaceiras
e bandeirosas da história, guardando-se as partes de galhofa e estradeirice
para os pátios, cozinhas e veredas, o as partes de amor e safadeza
para os quartos e camarinhas do Castelo, que era o Marco central do Reino
inteiro.
FOLHETO XV
0 Sonho do Casteló Verdadeiro Era um sonho grandioso, um sonho à
altura da estirpe dos Quadernas. No fundo, porém, lá bem longe
e bem dentro do meu sangue, reprimido pela covardia, vigiava ainda o desejo
de reconquistar o Castelo real, o da Pedra do Reino. Não o de erguer
um Castelo poético, como o dos Cantadores; mas o de ir ao Pajeú
e retomar, a patas de cavalo, ponta de punhal e tiros de rifle, o Castelo
de pedra que era meu e que os Pereiras tinham conquistado. Só assim
eu poderia ser, também, Rei do Sertão, como Jesuíno Brilhante
e meu bisavô. Só assim eu seria, de fato, o Cavaleiro que, encarnando
o Brasil, seria estimado e honrado pelos amigos, temido pelos inimigos e amado
pelas mulheres, belas Princesas parecidas com Rosa, a da “Onça
Malhada”, e com Marina, a do folheto. Gozaria de todas a meu prazer,
tendo as primícias das donzelas e podendo até degolá-las,
caso isso me desse na veneta, como tinha dado na do meu bisavô, “o
Execrável”.
Ora, em 1930, meu tio e Padrinho, Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto,
tomara parte na “Guerra de Princesa”, ao lado de Dom José
Pereira Lima, contra o Governo e a Polícia do Presidente João
Pessoa. Quando Dom José Pereira, nessa guerra, proclamou a independência
da Vila da Princesa Isabel, outorgando-lhe Constituição, hino
e bandeira, fiz dele, secretamente, Rei da Espinhara, fazendo da Vila de Princesa
a capital desse Reino. 0 nome de Vila Real da Princesa Isabel só podia
ser resultado de um desígnio da Providência: algum lambe-cu e
cheira-peito dos Braganças tinha querido colocar esse nome em nossa
muito nobre e leal Vila para bajular a falsa Princesa Isabel, a da Casa de
Bragança, a filha do Impostor Dom Pedro II. Agora, porém, ficava
claro que a Princesa Isabel que dava nome à Capital do meu Reino da
Espinhara era a verdadeira, a da Casa dos Quadernas, minha bisavó.
Só não comuniquei tudo isso a Dom José Pereira Lima porque
ele, julgando-me um simples agregado e parente pobre de meu Padrinho, estranharia
um pouco minhas grandezas. Foi, portanto, em segredo que o sagrei como Rei
da Espinhara. E como, apesar de todos os esforços, o Governo não
conseguiu derrotá-lo, dei-lhe o tratamento de Dom José I, o
Invencível, assim como já tinha ungido meu Padrinho Dom Pedro
Sebastião como Rei do Cariri, o que, depois de sua morte, lhe valeu
passar à Crônica sertaneja com o nome de Dom Pedro Sebastião,
o Degolado.
Como se recorda, o Condestável do Reino de Princesa, em 1930, era
Luís Pereira de Sousa, ou Luís do Triângulo, o mesmo que
comandava, incógnito, as tropas do rapaz do cavalo branco. Eu, recadeiro
e homem de confiança de meu Padrinho, fui várias vezes a Princesa,
em 1930, acompanhado por meu irmão bastardo, Malaquias Nicolau Pavão-Quaderna,
em missões e embaixadas secretas de Dom Pedro Sebastião para
Dom José Pereira. Ninguém pode, assim, imaginar o sobressalto
que experimentei, na primeira dessas viagens, quando conheci Luís do
Triângulo, em Princesa, e soube que ele, sendo descendente do Comandante
Manuel Pereira e do Barão do Pajeú, era o dono atual das terras
onde ficavam as torres de pedra do nosso Castelo, sagrado, soterrado e encantado.
Só podia ter sido outro desígnio da Providência que, exatamente
a Serra do Reino, tivesse ido cair na mão daquele homem, de família
inimiga, mas, atualmente, amigo e aliado nosso.
Resolvi imediatamente ir à Serra, para conhecer meu Castelo. 0 tempo
não era propício, porque, em 1930, eu estava em missão
de guerras e cavalarias, e as estradas, cortadas de Soldados e eriçadas
de piquetes, eram perigosíssimas para nós, soldados extraviados
daquela aventura guerrilheira. Apesar disso, porém, deliberadamente
procurei cativar, e terminei amigo de Luís do Triângulo, que
prometeu convidar-me depois, se ambos escapássemos com vida. Eu me
calara a respeito da Pedra do Reino: apesar de meu amigo, Luís do Triângulo
era um Pereira de pura raça, e bem podia resolver liquidar esta vergôntea
da Raça real dos Quadernas.
0 fato é que passou a “Guerra de Princesa”. Meu padrinho
morreu, degolado por causa dela; mas eu escapei e Luís do Triângulo
também. Passaram os anos de 1931, 32 e 33. Entrou 1934, e aproximava-se
1935, ano importantíssimo, porque marcava o início daquilo que
inúmeras profecias sertanejas chamavam “0 Século do Reino
Encantado”, uma vez que o Reinado realmente importante da minha família
durara de 1835 a 1838. Então, quando chegávamos ao fim de 1934,
escrevi a Luís do Triângulo cobrando a promessa dele e declarando-me
disposto a viajar para Serra Talhada em janeiro, caso ele pudesse cumprir
o que prometera.
Uns vinte dias depois, recebi a resposta do Condestável de Princesa.
Dizia ele que teria grande honra em receber seu amigo e aliado de 1930. Estava
perfeitamente lembrado da promessa: que eu viajasse em janeiro, ou quando
quisesse, porque ele e os outros Pereiras estavam de braços abertos
para me receber. Aconselhavame a seguir a mesma rota das minhas viagens de
1930: Taperoá, Desterro, Teixeira, Imaculada, Água-Branca, Tavares,
Princesa. Daí, cruzando a fronteira, entrasse eu em Pernambuco e seguisse,
por Flores, até Serra Talhada. Indagava se eu ainda estava lembrado
do Chefe atual da família Pereira, Manuel Pereira Lins, mais conhecido
como Né da Carnaúba. Comunicava-me que entrara em entendimento
com ele, que me receberia., como hóspede, em Serra Talhada. Daí,
eu seria finalmente encaminhado para a Vila de Bernardo Vieira, antiga Sítios
Novos, onde ele, Luís do Triângulo, estaria me esperando.
Eu me recordava perfeitamente do velho Fidalgo, Dom Manuel Pereira, Senhor
da Carnaúba. Como membro do Estado-Maior do Rei Dom José Pereira,
tinha sido um dos Doze Pares e um dos Grandes do Reino de Princesa. Era um
homem guerreiro e perigoso em tempo de brigas, mas hospitaleiro e manso em
tempo de paz. Aliado e parente do Rei da Espinhara, levara um troço
dos seus inumeráveis cabras-de-guerra para integrar o invicto Exército
de Princesa. Com essas coisas ardendo na cabeça, passei a noite de
ano-novo de 1934 na mais tensa expectativa. Iam começar os anos do
Século do Reino e eu ia ver, pela primeira vez, a Pedra do Reino. Sem
me sentir, ia transformando a carta de Luís do Triângulo numa
Crônica-Epopeica, escrita no estilo monárquico que eu aprendera
lendo as histórias de Souza Leite. Dizia para mim mesmo: “Partindo
da Vila Real da Ribeira do Taperoá, farei dois pousos principais. 0
primeiro, ainda dentro do meu Reino do Cariri, na Vila Real da Serra do Teixeira.
0 segundo, na Vila Real da Princesa Isabel, Capital do meu Reino da Espinhara.
Daí, cruzando a fronteira, entrarei no meu Reino do Pajeú, e
entrarei triunfalmente a cavalo, como todo Cavaleiro que se preza, na Capital
dele, minha muito nobre e leal Vila Bela da Serra Talhada!” Passei então
um telegrama a Luís do Triângulo, avisando-o de que partia, e
comecei os preparativos da viagem. Resolvera levar comigo meu irmão
predileto, Malaquias, e um amigo, o fidalgo Euclydes Villar, intelectual e
Poeta famoso da nossa Vila, homem que além de Mestre em charadas e
logogrifos, era fotógrafo respeitado, instalado com oficina, primeiro
em Taperoá, terra sua, depois na antiga Vila Nova da Rainha de Campina
Grande.
A presença de Malaquias era-me indispensável porque ele, ao
contrário do que acontece comigo, é corajoso, bom Cavaleiro,
bom atirador e bom caçador. Os Quadernas são altos, mas Malaquias
é o mais alto, robusto e bem-proporcionado de todos. Creio que, em
todo o Cariri, só havia dois homens capazes de derrotar Malaquias numa
luta corpo a corpo. 0 primeiro, era Marino Quelê Pimenta, pela descomunal
força, física. 0 outro, era meu primo Arésio Garcia-Barretto,
filho mais velho de meu Padrinho: não porque fosse muito mais forte,
mas porque, na luta, Malaquias combateria pela alegria do combate, enquanto
que Arésio, moreno e cerrado, depois de receber os primeiros golpes,
não poderia impedir que irrompesse de dentro dele aquela violência
obscura e cega que morava nos recessos de seu sangue e que foi a causa de
tantos infortúnios para nós e para ele mesmo. Meu irmão
Malaquias, porém, era um desses homens que, sem esforço nenhum,
atraem risonhamente as mulheres, coisa que sempre me causou a maior inveja.
Muitas vezes eu passara pela decepção de levar meses e meses
fazendo prodígios de habilidade para atrair a atenção
de uma mulher, isto para ver Malaquias, de volta de uma das suas viagens de
cambiteiro, conseguir, sem levantar um dedo e no mesmo instante, aquilo que
eu tentara em vão, a força de mérito e por tanto tempo.
Restava-me somente o consolo de ser o Chefe e irmão predileto do próprio
Malaquias e dos outros bastardos, que não se davam bem com meus irmãos
legítimos, Manuel, Francisco, Antônio e Alfredo.
Assim, a ida de Malaquias destinava-sé a fazer brilhar a família
Quaderna diante dos aguerridos e façanhosos Pereiras. Em Serra Talhada,
das charadas, das conversas de guerra’s e caçadas, da Astrologia e
de tudo o mais que se liga à Literatura, poderia eu me encarregar,
como Poeta, ex-seminarista e Acadêmico que sou. Mas se fosse para lá
sozinho, seria derrotado infalivelmente pelos Pereiras, na parte dos heroísmos
e cavalarias.
Quanto a Euclydes Villar, eu jurara secretamente que, chegando ao Pajeú,
acharia um meio de fazer com que os próprios Pereiras me levassem à
Pedra do Reino. Seria uma vitória que eles conduzissem para lá
aquele que, tomado como simples Escrivão, ex-seminarista e Bibliotecário,
era, de fato, o Rei do Quinto Império, Dom Pedro Dinis Quaderna, o
Astrólogo, ou Dom Pedro IV, o Decifrador, como sou mais conhecido.
Euclydes Villar era quem se encarregaria de documentar isso, fotografando
os lances principais da viagem. Eu teria o cuidado de me fazer retratar junto
das pedras, com as torres absolutamente iguais, reluzindo gloriosamente ao
sol o chuvisco prateado que as recobria e que formavam, no meu sonho, o Castelo
de pedra e prata do meu sangue.
BANDEIRA DA ONÇA
O Corregedor assumiu um ar esperto, astuto, desconfiado, e disse: – Ela não
pode ter visto o fazendeiro fechar as duas portas, porque, depois de fechada
a de baixo, não se pode mais ver a de cima! – Tem razão, Senhor
Corregedor, e eu ia, já, esclarecer esse fato! Realmente, naquele dia,
quando sentimos falta de meu Padrinho e começamos a procurá-lo,
topamos com a porta de baixo trancada por dentro. Mas mandamos chamar um machadeiro
que arrombou a porta, e foi quando subimos a escada que vimos a segunda porta,
também trancada por dentro. Foi só depois de arrombar essa segunda
porta que encontramos o corpo.
– Quem foi que primeiro sentiu falta de Dom Pedro Sebastião? – perguntou
o Corregedor, revelando, pelo tratamento de Dom, que ele usara, já,
sem se aperceber, como essas histórias de Fidalguia e monarquismo da
Esquerda são contagiosas. Mas fingi não notar nada e respondi:
– Quem primeiro sentiu falta de Dom Pedro Sebastião foi Arésio.
Mas, antes mesmo que ele desse o alarme, minha tia, Dona Filipa Quaderna,
também começou a sentir falta e nos disse! – Além do
senhor e de Arésio, quem mais entrou no aposento da torre? – Está
lá, também, no processo, Doutor: quem encontrou o corpo fomos
eu, Arésio, Tia Filipa, o Doutor Samuel e o Professor Clemente.
– Vá anotando, Dona Margarida, tudo isso é muito importante!
O senhor diz que, com as portas trancadas, o mirante era praticamente inacessível.
Mas os assassinos poderiam tê-lo matado pelas seteiras, atirando de
longe, através delas! – Meu Padrinho foi morto a faca, Senhor Corregedor!
– Imaginemos, então, que, por fora, encostando escadas às paredes
da torre da capela, tenham subido dois, três ou quatro assassinos. Nesse
caso, pelas seteiras, pegando o velho fazendeiro descuidado e por todos os
lados da torre de uma vez, podem tê-lo matado com chuços ou com
facas de ponta amarradas fortemente a varas compridas! – Não pode ser
não, Senhor Corregedor! Não havia escada nenhuma, fora! – Pode
ter subido alguém pela corda do sino! – Na “Onça Malhada”
fazia muitos anos que não havia missa. A corda do sino tinha caído,
de velha e esfiapada, e nunca mais tinha sido substituída! – Bem, então
podem ter levado as escadas, retirando-as depois! 308 – Também não
pode ter sido não, Excelência! Havia vários homens trabalhando
nas imediações da casa, eles teriam visto colocar as escadas!
Além disso, por trás, a “Casa da Onça Malhada”
é toda murada, porque fica quase a pique sobre um despenhadeiro, formado
ali pelo enorme lajedo sobre o qual ela é edificada. Assim, a única
parede”na qual os assassinos poderiam ter encostado uma escada era a
que dá frente para o pátio pedrado e lajeado da fazenda, de
modo que teria sido impossível trazer a escada e encostá-la
sem que os homens vissem. Não se esqueça, também, de
que mesmo esse pátio é murado, pois a torre, a capela e as duas
moradias da “Casa-Forte” são afortalezadas e a torre foi
construída exatamente de modo a permitir que os Garcia-Barrettos atirassem
nos Arqueiros tapuias do modo mais seguro possível! Finalmente o senhor
se lembre de que, em 1930, com a “Guerra de Princesa”, a “Onça
Malhada” estava fervilhando de gente armada, com centenas e centenas
de cabras-do-rifle e cabras-do-eito armados e preparados para o que desse
e viesse! – Então, foi suicídio! – A natureza dos ferimentos
afastava essa possibilidade, Senhor Corregedor: naquele lugar inacessível,
meu tio, cunhado e Padrinho, Dom Pedro Sebastião, foi encontrado, ainda
quente e sangrando, poucos momentos depois de ter sido assassinado. Tinha
levado várias cacetadas na cabeça, estava degolado, com a garganta
cortada, e terrivelmente esfaqueado em todo o corpo, sendo que o ferimento
que golfava mais sangue era naturalmente o da garganta. No entanto, ele estava
só, e não havia, na torre, nenhum rastro, nenhum sinal dos assassinos!
– Nenhum sinal? Nem um botão de camisa? Nem um fio de cabelo? O fato
foi verificado? Não havia nenhum indício? – O fato foi verificado
no processo, Excelência: não havia indício nenhum! Eu
não já lhe disse que isto aqui é um enigma sério,
um enigma de gênio, um enigma brasileiro, sertanejo e epopéico?
Ora indício! Com indício, é canja, qualquer decifrador
estrangeiro decifra! No caso, não havia nada: nem vela dobrada, nem
disco mortífero, nem botões de camisa, nem abotoaduras de ouro,
nem fios de cabelo, nem alfinete novo, nem nada dessas outras coisas que costumam
fornecer pistas aos decifradores dos ridículos enigmas estrangeiros!
Para o meu enigma, portanto, só um Decifrador brasileiro e de gênio!
Agora, havia era um pormenor estranho, que reforça nossa convicção
de que a morte de meu Padrinho só pode ter sido praticada dentro da
própria torre, gastando-se no crime um tempo tal que pessoas trepadas
em escadas o usando chuços através das seteiras não podem
tê-lo executado de jeito nenhum: é que, na espádua esquerda
de Dom Pedro Sebastião, tinham ferrado, a fogo, um ferro desconhecido
e que não é nenhum dos ferros familiares de ferrar boi do Sertão
da Paraíba! Eu sei, porque no nosso “Instituto Genealógico
e Histórico do Sertão do Cariri” temos um arquivo e registro
desses ferros, arquivo que eu organizei por sugestão do Doutor Pedro
Gouveia! – Você ainda se lembra como era o ferro? – Me lembro como se
fosse hoje, Excelência! Era uma espécie de lua, ou melhor, para
ser mais fiel à nobre Arte da Heráldica, um crescente, com as
pontas viradas para cima e encimado por uma cruz.
– A marca do ferro na espádua de seu Padrinho era recente? – A queimadura
era recentíssima! Quando a gente entrou na torre, sentia-se ainda a
catinga meio fumaçada e polvorenta de carne de bicho ferrada! ferro?
elevado Nenhum, Excelência! Eu não já expliquei que no
aposento da torre da capela não havia nada, a não ser o sino?
– Eu digo é no mato, pelas imediações. Procuraram? –
Procuramos, sim senhor! Não havia sinal de fogo nenhum, por perto da
“Casa-Forte da Onça Malhada”! – Então, foi que trouxeram
de longe o ferro quente! Como é que puderam conservá-lo em brasa
tanto tempo, durante o caminho? – E quem sabe, Excelência? O Corregedor
olhou-me durante alguns momentos, de modo fixo e com ar descontente. Depois,
negaceou: – A que motivo o senhor atribui a morte de seu tio e padrinho? –
Não atribuo a motivo nenhum, Senhor Corregedor, porque não tenho
a menor idéia sobre isso! – Ele era muito rico, não? – Demais!
Era o homem mais rico, mais fidalgo e mais poderoso do Sertão! Aliás,
no caso, isso seria obrigatório: de outro modo, eu não poderia
tê-lo escolhido como personagem central e Rei decaído da minha
Epopéia, pois não se poderia chamar a “perfídia
terrível” em que ele foi trucidado de “queda do trono, da
Coroa e da monarquia do Sertão do Cariri”! – Bem, então,
se ele era rico assim, o motivo do crime pode ter sido roubo.
– Mas não foi não, aí é que está! Como
depois nós verificamos, não tinha havido roubo nenhum! A única
falta que se notou em toda a “Casa da Onça Malhada” foi a
de três objetos, aliás sem grande importância e que podem,
até, ter desaparecido antes daquele dia sem que ninguém tivesse
se apercebido. Eram um anel que meu Padrinho usava às vezes, uma bengala
encastoada de ouro e um tinteiro de bronze.
– É verdade que Arésio, o filho mais velho, viajou repentinamente,
abandonando a casa logo no dia seguinte ao do enterro de Dom Pedro Sebastião?
– É verdade, o que, aliás, foi uma sorte para ele, porque do
contrário poderia ter morrido no incêndio que uma mão
desconhecida ateou à casa-forte na noite daquele mesmo dia 24 de Agosto
de 1930.
– E o filho mais moço, Sinésio? – Aí é que está
o nó, Excelência, ou melhor, aí é que está
a parte mais astrológica e zodiacal do nó! Naquele dia, quando
nós descemos daquela torre astrosa e fatídica, nova e terrível
surpresa nos aguardava, embaixo: Sinésio, o filho mais moço,
mancebo que andava então pelos vinte anos, tinha desaparecido. Parecia
que “a terra se abrira e ele fora sepultado em suas entranhas”!
– Senhor Quaderna, tenho observado que o senhor, de vez em quando, dá
para falar difícil, o que perturba um pouco a clareza do depoimento!
– É uma questão de estilo, Senhor Corregedor, uma questão
epopéica! Quando eu tirar as certidões, quero encontrar o estilo
da minha Obra pelo menos já encaminhado! Além disso, Samuel;
segundo Clemente, adota “o estilo rapão-ranhoso de cristais e
joiarias hermético-esmeráldicas da Direita”. Já
Clemente, segundo Samuel, adota “o estilo raso-circundante, raposo e
afoscado da Esquerda”. Eu fundi os dois, criando “o estilo genial,
ou régio, o estilo raposo-esmeráldico e real-hermético
dos Monarquistas da Esquerda”. Agora, porém, quando eu afirmei
que a terra se abriu e meu primo e sobrinho Sinésio foi sepultado em
suas entranhas, não estava falando assim somente por uma questão
de -estilo não. Usei a expressão, primeiro porque é a
usada em todos os “contos” do Almanaque Charadístico, de
onde a copiei. Depois, porque, no caso, ela se aplica perfeitamente à
estranha Desaventura de Sinésio, o Alumioso, e à Demanda Novelosa
do Reino do Sertão! – Explique-se melhor, porque o caso, aqui, não
é de estilo não, é de inquérito! Como foi que
o rapaz desapareceu? – Bem, Senhor Corregedor, como era de esperar, as versões
que apareceram foram as mais contraditórias! As circunstâncias
enigmáticas da morte de Dom Pedro Sebastião e o sumiço
misterioso e inexplicável de Sinésio, impressionaram fatidicamente
“a imaginação dos bárbaros e fanáticos sertanejos
do Cariri”, como costuma dizer Samuel. Dom Pedro Sebastião, aliado
aos Dantas, da Serra do Teixeira, e ao Coronel José Pereira Lima, Senhor
da Vila da Princesa Isabel – centro principal da “Guerra de Princesa”
– era uma das principais colunas sertanejas da rebelião E não
havia nenhum sinal do fogo onde esquentaram ocontra o Presidente João
Pessoa! Começaram, então, imediatamente, a correr boatos que
atribuíam a morte do velho Rei e a desaparição de seu
filho, Dom Sinésio, o Alumioso, a motivos políticos.
– Eu sei, e esse é um dos motivos pelos quais resolvi estudar, pessoalmente,
esse caso! Tive a honra de ser correligionário e servidor do inolvidável
Presidente João Pessoa, de modo que o senhor e seus companheiros podem
ficar certos de que vou apurar, bem apurada, toda essa história! Ao
dizer isso, o Corregedor cerrou de repente os maxilares, como um porco-do-mato,
e tomou, sem querer, uma expressão de ferocidade que me demonstrou
logo que, ou eu ia com cautela, ou estava desgraçado para o resto da
vida. Então falei, temeroso e solícito: – Estou pronto a ajudar
o senhor do jeito que possa! Mas como eu ia dizendo: quanto a Sinésio,
os boatos surgidos eram ainda mais fantásticos e desencontrados. Segundo
a versão mais divulgada, enquanto, na torre, os assassinos degolavam
o velho Rei do Cariri, Sinésio, que estava embaixo, adormecido em sua
cama, fora raptado por um grupo de Ciganos sertanejos. Segundo os boatos,
os Ciganos – que estavam, também, a serviço dos seguidores mais
fanáticos do Presidente João Pessoa – tinham ministrado ao Prinspo
Alumioso adormecido o chá de uma tal de “erva-moura”, que
deixa o sujeito como que sonhando acordado! – Senhor Quaderna, consta-me que
o senhor, além de várias outras habilidades, é um grande
entendido em raízes sertanejas. É verdade isso? – indagou lentamente
o Corregedor, com uma expressão que me deixou frio.
– É, sim senhor! Mas, até hoje, só empreguei essa minha
habilidade para o bem, juro por tudo quanto é sagrado! O que eu sei
de raízes é o que aprendi no Lunário Perpétuo
e nas coleções do Almanaque do Cariri que meu Pai publicava.
– Quer dizer que as habilidades de charadista, Astrólogo e raizeiro
do senhor são heranças de família? – São sim senhor,
eu já puxei a meu Pai! Foi dele, aliás, que eu puxei também
minhas qualidades poéticas, se bem que, modéstia à parte
e não faltando com o respeito filial, como Poeta eu seja mais completo
do que ele foi. Como o senhor deve saber, existem seis qualidades de Poeta
e a maioria deles ou pertence a uma qualidade ou a outra. Os melhores, pertencem
a duas categorias ao mesmo tempo. Mas somente os maiores de todos, os grandes,
os “raros do Povo”, pertencem, ao mesmo tempo, às seis categorias!
Meu Pai, que Deus guarde, era Poeta de sangue e de ciência. Mas eu,
modéstia à parte, sou dos poucos, dos raros, dos grandes, porque
sou, ao mesmo tempo, poeta de cavalgação e rei312 naço,
Poeta de sangue, Poeta de ciência, Poeta de pacto, de estradas e encruzilhadas,
Poeta de memória e Poeta de planeta! Mesmo porém tendo sido
mais completo do que ele, grande foi a influência que recebi das qualidades
de Poeta, historiador, Astrólogo e genealogista Sertanejo de meu Pai!
– Quer dizer, então, que, como leitor do Lunário e do Almanaque,
o senhor já conhecia a tal “erva-moura” que deram a Sinésio!
– Excelência, eu não sei, com certeza, se deram a ele ou não
deram o chá de erva-moura! As versões sobre o desaparecimento
de Sinésio eram, como eu disse, as mais desencontradas possíveis!
Num ponto, porém, todos os partidários dele concordavam: diziam
que, depois de raptado, Sinésio fora levado para a Cidade da Paraíba,
capital do nosso Estado, e encarcerado debaixo da terra, num subterrâneo
cavado durante a “Guerra Holandesa” e que liga a Igreja de São
Francisco à Fortaleza de Santa Catarina, situada em Cabedelo, a umas
três ou quatro léguas de distância da Igreja! – Esse subterrâneo
não existe, Senhor Quaderna! Isso é patranha! Aqui no Nordeste,
em todo lugar por onde os Holandeses passaram, no século XVII, o Povo
inventa que existe um subterrâneo cavado por eles! São imaginações
descabidas da ralé ignorante da Paraíba! – Pode ser, Excelência,
não sou eu que sustento essa história não: estou contando
o que me disseram e vendendo a história ao senhor pela preço
que me venderam! Aliás, esta opinião do senhor era, também,
a dos adversários de Sinésio. Mas, segundo os partidários
de Dom Pedro Sebastião e Sinésio, o Presidente João Pessoa,
primeiro, e, depois de seu assassinato, os seus seguidores mais fanáticos
– como o Interventor Antenor Navarro, por exemplo – sabiam que o Prinspo Alumioso
era uma vítima e refém precioso perante os Sertanejos rebelados
da gloriosa “Guerra de Princesa”. Por isso, queriam conservá-lo
prisioneiro, como elemento de intimidação e trunfo para a derrota
dos partidários dele! Mas as pessoas que, aqui na Vila e no resto do
Sertão, eram contrárias a Sinésio, isto é, os
partidários do usineiro e dono de minas Antônio Noronha de Britto
Moraes, esses diziam que Sinésio estava morto e bem morto, sepultado
não no subterrâneo, mas sim debaixo dos clássicos e comuns
sete palmos de terra que cobrem todo mundo! Como Vossa Excelência pode
ver agora, em qualquer dos casos a expressão do Almanaque Charadístico
se aplica perfeitamente, porque, seja no chão ou no subterrâneo,
o fato é que a terra se abriu e Sinésio foi soterrado – ficou
ali, soterranho, sepultado em suas entranhas! – Senhor Quaderna, tenho que
fazer, agora, uma observação contrária à de ainda
há pouco! Eu disse que às vezes o senhor dava para falar difícil:
agora,. devo observar que, para um Epopeieta, o senhor de vez em quando dá
para falar errado! Agora mesmo, o senhor disse “soterranho”, em
vez de “subterrâneo”, e disse, também, duas vezes,
“Prinspo” em vez de “Príncipe”! – Não é
erro não, Excelência, é o Português pardo, leopardo,
garranchento e pedregoso da Catinga, como diz o genial Gustavo Barroso! Quando
falo de Dom Sinésio, o Alumioso, eu prefiro dizer “Prinspo”
porque é assim que escrevia o genial E. P. Almeida, guerrilheiro do
“Império do Belo Monte de Canudos”, na carta que foi encontrada
em seu bornal de balas, em 1897! – Está bem, mas vá adiante!
– disse o Doutor Joaquim Cabeça-de-Porco com ar enfastiado, enquanto,
na carreira e de acordo com suas determinações, Margarida ora
se detinha ora copiava tudo, ao teleco-teco da velha máquina de escrever.
Eu continuei: – Essa dúvida sobre a “vida, paixão e morte”
do Alumioso, acarretava sérios problemas no tocante à herança
e ao testamento do Pai dele. Naturalmente a pessoa mais afetada por isso era
seu irmão Arésio, impedido de entrar na posse integral e efetiva
da “Casa-Forte da Torre da Onça Malhada”. Não poderia
fazê-lo enquanto Sinésio não fosse declarado morto ou
ausente – expressão esquisita para os leigos mas que faz parte das
coisas da Justiça e que, portanto, Vossa Excelência, como Corregedor,
conhece melhor do que eu – simples Poeta-Escrivão como Pero Vaz de
Caminha! E aí, entre os anos de 1930 e 1935, as notícias sobre
Sinésio, o Ausente, apareciam e desapareciam, cada vez mais fantásticas,
incertas e enigmáticas, e sempre ligadas às Revoluções
ou tentativas de insurreição acontecidas no Brasil durante esse
período. Relacionadas, principalmente, com as rebeliões e vinditas
sertanejas! Como Vossa Excelência deve se lembrar, essas datas revolucionárias
são: em 1930, a “Revolução Liberal”; em 1931,
os primeiros tiroteios e greles comunistas que tiveram o Recife como centro;
em 1932, a “Revolução Constitucionalista” de São
Paulo e, aqui no Sertão, a mal estudada mas importante “Guerra
do Verde e do Vermelho”; e, finalmente, em 1935, a “Revolução
Comunista” cujos centros principais foram o Rio, o Recife e o Rio Grande
do Norte, mas cujo episódio mais importante para a minha história,
foi a “coluna sertaneja” que, partindo de Natal foi derrotada pelos
Sertanejos, na Serra do Doutor, no Sertão do Seridó e que teve
papel preponderante no desfecho da história de Arésio e Sinésio
Garcia-Barretto.
Ora, Senhor Corregedor, desde quando o velho Rei, Dom Pedro Sebastião,
era vivo – e mais ainda depois de sua morte – os moradores da nossa Vila tinham
se separado, formando dois partidos em torno dos filhos dele! Uns tomavam
o partido de Arésio, filho do primeiro casamento de meu Padrinho com
Dona Maria da Purificação Pereira Monteiro. Os outros, tomavam
o de Sinésio, filho de minha irmã, Joana Garcia-Barretto Ferreira
Quaderna. Na verdade, havia ainda um outro filho, Silvestre, nascido entre
Arésio e Sinésio e no intervalo dos dois casamentos de meu tio
e Padrinho. Mas o partido deste segundo filho ninguém pensava em tomar!
Primeiro, porque ele próprio era partidário de Sinésio.
Depois, pprque ele era bastardo e pobre. E, finalmente, porque, depois da
morte de Dom Pedro Sebastião, todo mundo, de repente, passou a considerá-lo
como meio idiota! – E verdade que, entre os filhos, Dom Pedro Sebastião
tinha preferência especial por Sinésio? – E, sim senhor! Arésío
nunca se dera muito bem com o Pai, porque ambos tinham gênio violento
e estranho e, ao mesmo tempo, eram muito diferentes na maneira de exercer
essa violência! Creio, aliás, que essa hostilidade existente
entre Dom Pedro Sebastião e seu filho mais velho, Arésio, foi
o motivo que levou o juiz da nossa Comarca a tomar, logo depois da morte do
velho Rei e Capitão-Mor do Sertão do Cariri, uma decisão
que a muitos pareceu estranha: a de nomear como ínventariante dos bens
do Rei Degolado, não seu filho mais velho Arésio, como seria
natural, e sim o maior inimigo e adversário político de meu
Padrinho, Antônio Noronha de Britto Moraes. Acresce que, com a desaparição
de Sinésio, o problema da sucessão do nosso Rei do Cariri se
complicara. Diziam que, de acordo com a Lei brasileira, teria que decorrer
o prazo de dois anos para que, legalmente, o rapaz desaparecido fosse declarado
ausente. Está certo isso, Doutor? – Está, uma vez que ele não
deixou, na Vila, procurador legalmente habilitado! – Era exatamente isso o
que diziam os partidários de Arésio, entre os quais figurava
naquele tempo, em primeiro plano e por ter sido contratado profissionalmente,
o Advogado que Vossa Excelência já conhece, o Bacharel Clemente
Hará de Ravasco Anvérsio, criminalista, mestre-escola e Filósofo
de altos méritos. Já os partidários de Sinésio,
soprados pelo Promotor e curador de ausentes,
FOLHETO LII
Os Três Irmãos Sertanejos o Poeta Samuel Wan d’Ernes, lembravam
que a Lei fazia, ainda, outra exigência para que, no prazo de dois anos,
o ausente fosse dado como legalmente desaparecido: a de que não houvesse
notícias dele durante esse tempo. Está certo isso, também,
Senhor Corregedor? – Está, é isso mesmo! – “Ora, notícias
dele é o que não falta!”, diziam os mais exaltados Sertanejos
do partido do filho mais moço. “Sinésio está preso,
escondido pelo Governo e pela Polícia-Secreta deles, no subterrâneo
que os Holandeses construíram da Igreja de São Francisco até
o Forte de Cabedelo!” -E pode-se, lá, chamar esse boato ridículo
de notícia?’, retrucavam, indignados, os partidários de Arésio.
`Quem é que garante a existência desse subterrâneo? Quem
foi que, algum dia, já entrou nele? Ninguém! Esse subterrâneo
não passa de uma invenção do Povo ignorante dessa terra
infeliz que é a Paraíba!- Os partidários de Arésio
tinham razão nesse ponto, como já expliquei! – falou o Corregedor.
– Sim, Excelência, mas, apesar da lógica dessa objeção,
os partidários de Sinésio continuavam a acreditar no subterrâneo
e a sonhar com o dia em que o jovem Prinspo Alumioso conseguiria vencer seus
inimigos cruéis e desconhecidos, voltando à sua terra, para
como se esperava dele desde menino – causar a perda dos poderosos e fazer
a felicidade de todos os pobres, desgraçados, infelizes e deserdados
da sorte no Sertão do Cariri! – Como Vossa Excelência pode ver
por aí, os partidários de Arésio eram os mais razoáveis
e esclarecidos! – disse eu, para lisonjear o Corregedor que manifestara aprovação
ao ponto de vista deles. – Não admira, aliás, que assim acontecesse,
porque eram as pessoas mais ricas e bem-situadas da Vila. É verdade
que, a princípio, houvera uma cisão entre essas pessoas, ficando
com Arésio os membro da Aristocracia rural, e a Burguesia urbana cerrando
fileiras ao lado de Antônio Moraes e do Comendador Basílio Monteiro,
que, politicamente, seguia o usineiro pernambucano. Depois, por uma circunstância
que logo explicarei, essas duas facções se juntaram, de modo
que o elemento mais poderoso do Sertão ficou a favor de Arésio.
Já os partidários de Sinésio, eram os Almocreves, os
cambiteiros, os Ciganos, as lavadeiras, os Vaqueiros, os cabras-do-eito, as
Mulheres-Damas, os fazedores de chapéus de palha, os Cavalarianos,
os cabras-do-rifle, as Fateiras, os Cantadores, os Cangaceiros …
– Enfim, eram recrutados entre o Povo, a ralé sertaneja, não
é isso? – interrompeu o Corregedor, meio impaciente.
– Vossa Excelência chame como quiser! Eu, fiel aos ensinamentos de
Samuel, Clemente, Carlos Dias Fernandes, João Martins de Athayde, Gustavo
Barroso e outros Mestres, considero toda essa gente, especialmente os homens
que montam a cavalo e as moças que, vencendo a Desgraça e a
-Fome, puderam permanecer bonitas, como Fidalgos e Princesas do Povo Brasileiro!
O senhor note que, enquanto no resto do Brasil, prostituta é rapariga,
aqui, no Sertão, é Mulher-Dama, o que enobrece demais essa gente,
fazendo com que elas pareçam Damas de paus, copas, ouro e espada! Outra
coisa, Excelência: dizia-se, ainda, na rua, que, no caso da berança
do velho Rei, meu Padrinho, seria necessário que decorresse o prazo
mais longo, de quatro anos, para que Arésio tivesse o direito de requerer,
na justiça, a abertura da “sucessão provisória”.
É verdade, isso? – É verdade! – Então, foi talvez por
causa dessas discussões e do caráter duvidoso de todo o caso
que o Juiz da Comarca, Doutor Manuel Viana Paes, resolveu nomear um curador
para os riquíssimos bens deixados por Dom Pedro Sebastião! –
Não senhor, foi um ato de rotina processual! O Juiz tinha que fazer
a nomeação! – Entendo, Excelência! E ele não teria
causado nenhuma estranheza, talvez, se sua escolha não tivesse recaído
naquele mesmo inventariante nomeado anteriormente, aquele sombrio, moreno,
poderoso e enigmático Antonio Moraes, rico usineiro pernambucano que,
tendo resolvido botar uma indústria na Paraíba, precisara dos
minérios do Cariri e começara, lá um dia, a comprar terras
aqui. Depois, fora tomando gosto pelo lugar, “onde ainda se mantinham
o estilo de vida e os modos da sociedade patriarcal”. E fora, aos poucos,
estendendo suas garras de gavião sobre tudo, entre nós; de modo
tal que, ao açambarcar o algodão, o gado e os minérios
de toda a nossa zona, espalhara entre nós um terror quase supersticioso,
diante de seu poder, da sua fortuna, de sua capacidade de aniquilar os rivais,
de espalhar o infortúnio, de esmagar os que se interpunham entre ele
e o domínio total do Cariri – este Sertão onde, até 1930,
se exercera o poder, também muito grande mas muito diferente, do nosso
velho Rei, Dom Pedro Sebastião GarciaBarretto! Levado pelo embalo de
Epopeieta, eu tinha dado um “cochilo de Homero” como depoente, e
fora mais longe do que desejara, revelando ao Corregedor certas coisas que
me convinha calar. Para corrigir meu grave erro, acrescentei imediatamente,
para evitar que ele mandasse Margarida copiar: – Foi aí que, exatamente
no ano de 1932, uma notícia incendiou o Sertão, como uma pedra-lispe
ou pedra-de-corisco que passasse sobre os carrascais empoeirados e pedregosos,
queimando a terra sertaneja desde o Cariri até a Espinhara: Sinésio
tinha sido finalmente encontrado, morto, na Paraíba! – Em que lugar?
No subterrâneo? – Não senhor, mas ali perto, a uns duzentos metros
de distância do cruzeiro da Igreja de São Francisco, aquele mesmo
Cruzeiro que Carlos Dias Fernandes já vira, um dia, “fincado no
meio do Adro e cercado por uma larga peanha de Pelicanos esculpidos em Pedra”.
Vossa Excelência conhece, por acaso, a “Casa da Pólvora”,
que fica na descida da Ladeira de São Francisco, na Paraíba,
assim pelo lado esquerdo de quem está de frente para a Igreja? – Já
ouvi falar, mas não conheço não! Não tenho nenhum
interesse por velharias, de modo que nunca me interessei em descer a Ladeira
por aquele lado! – Pois quando voltar à Capital, Doutor, não
deixe de conhecer! Eu fui lá muitas vezes, quando estudava no Seminário,
instalado no velho Convento franciscano pegado à Igreja! A “Casa
da Pólvora” é uma velha edificação do século
XVIII, construída quando o Reino de Portugal ainda pertencia ao Império
do Brasil. Foi feita pelo Governador e Capitão-Mor da Paraíba,
João da Maya da Gama, a mando d’El-Rei Dom João V, e concluída
em 1710, conforme informação do genial escritor paraibano Irineu
Pinto na sua Crônica epopéica Datas e Notas para a História
da Paraíba. Ora, Senhor Corregedor, por uma coincidência que
não deixou de impressionar violentamente as ardentes imaginações
sertanejas, a Casa da Pólvora, do mesmo jeito da torre da “Onça
Malhada” onde morrera o Pai, é um pesado edifício de aposento
único, com uma só entrada, de tecto abobadado, e iluminado somente
por seteiras. É construído “no estilo militar, pesado e
austero do século XVIII brasileiro” – como nos explicou logo Samuel,
discípulo predileto, para esses assuntos de gosto e Arte, do genial
Carlos Dias Fernandes. Al, portanto, nessa “Casa da Pólvora”,
em condições muito semelhantes às do velho Rei degolado,
seu Pai, encadeado à parede por uma grossa e enferrujada corrente que
lhe prendia o pé pelo tornozelo, como se fosse um perigo para o mundo
ou “um calceta da Existência” – para usar a expressão
do genial escritor brasileiro de 1917, Henrique Stepple – foi encontrado,
por uns meninos, o cadáver, já desfigurado e apodrecido, daquele
verdadeiro Infante Sertanejo, o nosso Dom Sinésio Garcia-Barretto,
o Alumioso, ao que parece morto de fome, maustratos, solidão e desespero.
Depois de identificado por Arésio, que estava, então, na Capital,
foi o corpo convenientemente sepultado,”com todas as honras que acompanham
sob a terra os corpos dos Fidalgos, mesmo sertanejos, filhos-segundos, mancebos
e infanções”, como era o caso do nosso infortunado e alumioso
Prinspo.
– Todo mundo esperava, Senhor Corregedor, que, com a notícia da morte
de Sinésio, cessassem as controvérsias e discussões o
Arésio entrasse em juízo, naquele mesmo ano de 1932, com uma
ação que reivindicasse seus direitos. Mas isso não aconteceu.
Parecia até que Arésio, contrariando seu gênio violento,
se resignara com o infortúnio que se abatera de vez sobre toda a “Casa
Real da Onça Malhada”. Alguns opinavam que Arésio, não
querendo abrir duas frentes de luta – uma com o riquíssimo curador
de seus bens, Antônio Moraes, outra com a sombra ausente, mas ainda
poderosa, do irmão norto – aguardava, talvez, que chegássemos
ao ano de 1934, quando se completaria o prazo dos quatro anos da morte do
Pai e do desaparecimento de-Sinésio. Poderia, assim, mais resguardado
pela Lei, reivindicar seus direitos, sem entrar em choque frontal com Dom
Antônio Moraes.. De fato, como sucede sempre nas quedas das grandes
Monarquias sertanejas, a desgraça penetrara de vez na “Casa da
Onça Malhada”. Dom Pedro Sebastião, tragicamente viúvo
pela segunda vez, morrera degolado. Sinésio, primeiro fora raptado,
preso e sepultado debaixo da terra, morrendo finalmente dessa maneira terrível
e dolorosa que acabo de descrever. Silvestre, o segundo filho, o bastardo,
entrou por uma enorme decadência, em comparação com a
vida que levara conosco na “Onça Malhada” durante a vida
de seu Pai. Passou a errar no abandono, por Vila, ribeiras, estradas e povoados
do Sertão do Cariri. Dizia-se que se tornara idiota, mergulhado numa
espécie de “estoporamento do juízo”, pela sucessão
de tragédias que se abatera sobre o Pai e sobre o irmão mais
moço, com quem ele fora sempre muito pegado. Contava-se que Silvestre
tinha chegado ao extremo de se tornar guia de cego. O cego a quem ele se arrimara
como “espoleta” – Pedro Adeodato, Pedro Cego de alcunha – era daqui
da Vila. Era um meio-termo de cego, Cantador, beato e Cangaceiro aposentado.
Vivia errante e pedinte, de lugar em lugar, vestido com um velho casacão
militar, pardo o remendado, que ninguém sabia onde e quando ele obtivera
– se bem que alguns de nós desconfiássemos que fossem dados
a ele por meu Padrinho de crisma, João Melchíades Ferreira,
o Cantador da Borborema. Cantava, esmolava, rezava em altos brados o dizia
desaforos a Deus e ao mundo, por tudo quanto era de feira no Sertão.
Corriam histórias dos maus-tratos que ele infligia a Silvestre, o qual,
apesar disso, era-lhe fiel e dedicado, na idiotice que lhe acabara, de vez,
com qualquer resto de dignidade.
– E Arésio? – Senhor Corregedor, entre 1930 e 1934, Arésio
entregou-se a uma vida completamente desordenada. Aparecia e desaparecia aqui
e ali, sem explicar a ninguém os motivos dessas idas e vindas a Patos,
a Campina Grande, à Cidade da Paraíba, à Vila do Martins,
ao Pajeú, ao Seridó, a Natal, ao Recife. Dom Antônio Moraes,
atendendo a telegramas ou recados seus, enviava-lhe, sem discussão
e para onde ele ordenava, as mesadas que o juiz determinara. De modo que Arésio,
sendo solteiro, podia perfeitamente Chanter a vida dissipada que escandalizava,
aqui, as pessoas de bem da Vila. De vez em quando chegavam até nós
os ecos de suas orgias, de seus atos violentos e desabusados, inesperados,
inexplicáveis, meio insanos, mesmo. Mas como ele ficava por lá,
e aqui só chegavam os ecos, muita coisa de sua vida durante esse tempo
ficou obscura, até para aqueles que, como eu, Clemente e Samuel, tínhamos
vivido, desde a meninice dele, em estreita ligação com os seus
e com a sua Casa. Arésio teria ficado, talvez, um pouco esquecido aqui,
se não fosse. sua participação na “Guerra do Verde
e do Vermelho”, em 1932, e, nos fins de 1934, sua estranha reaparição
entre nós.
– Estranha? Estranha por quê? – Estranha porque nesse fim de ano Arésio
voltou e, para surpresa e escândalo do Povo, hospedou-se na casa do
figadal inimigo de seu Pai, Antônio Moraes. Desprezou a velha casa que
os Garcia-Barrettos tinham na Vila e lá ficou morando com os Moraes,
no aguardo, talvez, das providências legais para a herança. O
pessoal mais pobre, que não gostava dele e era partidário de
Sinésio, não deixou de verberar violentamente contra “o
procedimento daquele filho desnaturado, daquele condenado, que traía,
daquela maneira, o sangue de seu Pai”. Já nos meios da Burguesia
urbana da Vila, foram muito louvadas “a prudência e compreensão
de Arésio que, com aquele gesto, encerrava um desgraçado malentendido
que nunca deveria ter separado as duas maiores fortunas do Sertão,
os Garcia-Barrettos e os Moraes”. Falava-se, mesmo, na rua, que até
o problema sério, o problema da herança da “Onça
Malhada”, seria solucionado entre os Moraes e os GarciaBarrettos, pois,
ao que tudo indicava, Arésio ia se casar com Genoveva Moraes, única
filha moça do velho inimigo de Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto.
Fosse como fosse, e resolvido de vez o problema sério, o da herança,
com esse casamento e com a morte-escura do Prinspo Alumioso, foi nesse estado
de coisas que entramos no ano de 1935. Chegava, afinal, o momento em que Arésio
ia entrar no domínio e posse integrais de sua enorme fortuna – do algodão,
das inumeráveis cabeças de Gado cavalar, vacum, ovelhum e cabrum,
do dinheiro acumulado durante todos aqueles anos através da exportação
de couros e de pedras preciosas, das terras e pastagens imensas da “Onça
Malhada”, e sobretudo da grande fortuna em ouro, prata e pedras preciosas
que Dom Pedro Sebastião deixara.
– É verdade que todo o dinheiro em prata deixado por seu Padrinho
ficou sob sua guarda? – É, sim senhor. Mesmo com meu Padrinho vivo,
eu era uma espécie de Guarda do Selo e do Tesouro da Onça Malhada,
de modo que, quando ele morreu, eu estava com todos os baús atulhados
de prata.
– O que foi que o senhor fez desse dinheiro? – Entreguei aq juiz daqui,
que mandou colocá-lo sob a guarda de Dom Antônio Moraes.
– E é verdade que Dom Pedro Sebastião ainda tinha escondido
uma grande fortuna em ouro, prata e pedras preciosas numa certa furna do Sertão?
– É, sim senhor! – É verdade que ele deixou um roteiro, um mapa
desse tesouro, com o senhor? – Senhor Corregedor, eu não sei se aquilo
pode ser, de fato, chamado de mapa, mas, na verdade, ele deixou comigo um
papel que ninguém entendia e que diziam ser o mapa do tesouro.
– Diziam? E o senhor, o que é que diz? O senhor acha que era o mapa?
– Acho que não, Excelência.
– Então por que é que se recusava a mostrar esse mapa a qualquer
pessoa? Por que não entregou esse papel ao juiz, também? – Primeiro
porque nunca considerei que aquilo fosse, mesmo, o mapa. Depois por uma questão
de respeito à memória de meu Padrinho. Um dia, meu Padrinho
me procurou e me deu aquele papel, dizendo-me que, quando começasse
a sentir que a morte estava se aproximando, ele me comunicaria sua decifração,
que era muito importante para mim e para Sinésio. Mas, depois de 1926,
não sei se o senhor sabe que meu Padrinho ficou meio de miolo mole
…
– Ouvi falar, como ouvi falar que foi o senhor a pessoa que mais contribuiu
para isso, com as histórias de coroar seu Padrinho como Imperador do
Divino e outras coisas desse tipo.
– Isso é uma injustiça, Senhor Corregedor, é calúnia
desse pessoal! Eu já coroava meu Padrinho era a pedido dele, porque
desde 1920 e desde a passagem da “Coluna Prestes” que meu Padrinho
estava ficando assim, de juízo virado. Pois bem: um dia, vendo que
estava chegando o tempo, procurei meu Padrinho para falar com ele sobre o
papel. Já naquele tempo começavam a correr boatos sobre o tesouro
e uma versão de que o papel seria o roteiro desse tesouro. Procurei
meu Padrinho e fiz a ele uma pergunta direta sobre o assunto. Ele, com umas
palavras meio esquisitas, confirmou a existência do tesouro mas me disse
que tinha escondido tudo tão bem que agora era incapaz de encontrar
a fabulosa fortuna que tinha enterrado na furna. Lembrei então a ele
o papel que me dera. Ficou muito contente, exaltado, com os olhos fuzilantes.
Mas, quando pegou o papel, vi que, ou o papel não tinha sentido nenhum
ou então meu Padrinho se esquecera da decifração dele,
porque ele foi absolutamente incapaz de encontrar o sentido das palavras enigmáticas
que tinha escrito.
– Foi por isso que você não se julgou obrigado a entregar o
papel ao juiz? – Foi! – E onde está o papel? – Isso eu conto ao senhor,
já, já! Por enquanto, fique anotado aí, nos papéis
de Margarida, que corriam notícias de que meu Padrinho tinha deixado
um tesouro de prata, ouro e pedras preciosas, uma fortuna incalculável,
enterrada e perdida numa furna desse Sertão velho e pedregoso de meu
Deus, e que todo o sangue derramado na “Casa da Onça Malhada”
se originou disso. E foi quando, exatamente naquele memorável sábado,
Véspera de Pentecostes de 1935, sucedeu aquele grande acontecimento
sensacional que novamente complicou a história “de sangue e ouro”
da herança dos Garcia-Barrettos.
FOLHETO LIII
Meus Doze Pares de França – Naquele dia, Senhor Corregedor, a Vila
estava cheia de gente que era um despropósito. Nos dias comuns de feira
já desemboca, aqui na rua, uma boa multidão de “beiradeiros”,
saídos Deus sabe donde. Mas aquele era um Sábado todo especial,
de modo que a Vila parecia um formigueiro assanhado. Acontece que os Sertanejos
tinham ganho, recentemente, uma pendência surgida entre eles e o Prefeito,
que transferira as feiras de Taperoá, realizadas desde os tempos do
Império, aos Sábados, passando-as para as Quintas-Feiras. O
barulho fora grande, mas terminara com a remoção do Prefeito
e com a nomeação daqueles dois ínclitos varões
a que já me referi, o Prefeito Abdias Campos e o Presidente do Conselho,
Alípio da Costa Villar. Estes, mal se viram no Poder, fizeram retornar
aos Sábados as nossas feiras, e este era o motivo principal das festividades
daquele dia. O Bispo de Cajazeiras tinha sido convidado, porque as novas autoridades
queriam brindar o Povo com uma festa “litúrgica” e outra
“guerreira”, isto é, a Missa do Domingo de Pentecostes, celebrada
pelo Bispo, em roupagens suntuosas, e as Cavalhadas, marcadas para a tarde
do Sábado, quando o rebuliço da feira começasse a amainar.
O Bispo telegrafara que só chegaria no Sábado à noite,
de modo que não contaríamos com sua presença na Cavalhada,
da qual participariam os melhores Cavaleiros do nosso Cariri. De qualquer
modo, naquele Sábado, tinha se juntado aos feireiros habituais e comuns
uma sertanejada formigante, saída de tudo quanto era biboca e pé-de-serra,
todos atraídos pelas Cavalhadas e dispostos a pernoitar na Vila, a
fim de assistir à Missa do amanhecer do dia seguinte, Domingo de Pentecostes.
– Na sua opinião, o Prefeito e o Presidente do Conselho já
tinham alguma notícia do fato que veio a acontecer depois, naquela
tarde? – Tinham não senhor, e a surpresa deles foi enorme, vendo reaparecerem
os destroços daquela história de amores alumiosos, de crimes
inexpiáveis, de sc nho e sangue, a história que formará,
depois do meu depoimento, o centro-enigmático do meu Romance e Castelo!
– A que horas iam se realizar as Cavalhadas? – De duas para as duas e meia
da tarde, Excelência. – O senhor esteve presente a elas? – Não
senhor! – O senhor não é o Chefe e organizador de todas as festas
desse tipo, aqui na Vila? – Sou, Excelência, mas naquele dia, depois
de deixar tudo pronto e determinado, eu tinha saído da Vila, por acaso!
– Por acaso? As informações que tenho são outras! Para
onde o senhor saiu? – De manhã, fui dar um passeio com Clemente e Samuel,
para olharmos uns quadros ibéricos de uma Capela descoberta no mato,
e uns desenhos tapuias gravados nas pedras do Olho-d’Água da Gruta
do Pedro.
– Seus dois amigos e mestres, Samuel e Clemente, almoçaram na rua?
– Almoçaram, sim senhor! – E você? – Eu, não! Samuel e
Clemente assistiram às Cavalhadas mas o Quaderna, aqui, estava ausente,
fora do lugar dos acontecimentos! – E não havia nenhum Quaderna representando
o Chefe nas corridas da Cavalhada? Pelo ar envenenado da cara de cobra, vi
logo que Sua Excelência estava mais bem informado do que eu julgara
a princípio, de modo que julguei de bom alvitre falar a verdade, para
mostrar “a tranqüilidade dos inocentes”. Disse: – Não
senhor, meus doze irmãos bastardos estavam lá, na Praça,
representando a família e o Chefe! Mas isso tinha que ser, era indispensável,
porque, modéstia à parte, eles são tidos e havidos como
os melhores Cavaleiros do Sertão do Cariri! Margarida cochichou de
novo com o Corregedor, que me encarou com seus olhos peçonhentos de
Cascavel: – Dona Margarida afirma que o senhor tinha quatro irmãos
legítimos. Mas diz que os bastardos são mais de vinte, e não
doze como o senhor está dizendo! Ah, Senhor Corregedor, se é
assim, não posso contar mais nada não! Se é para eu contar
a história só com os sonhos do estilo rapão-ranhoso da
Direita, ou somente com a exatidão mesquinha do estilo raso da Esquerna,
não vai, de jeito nenhum! Eu só sei contar as coisas no meu
estilo, o estilo genial ou régio dos Monarquistas da Esquerda! Mas
já que interromperam e me cortaram o fio, vá lá essa
última explicação! É verdade: meu Pai, qualquer
moça-donzela que facilitava as coisas para o lado dele era passada
nos peitos, motivo pelo qual foi a primeira pessoa da família, neste
século, a sair no jornal! O Correio de Campina publicou um retrato
dele, com uma narração sucinta de sua vida amorosa, e deixando
documentado para a posteridade que ele era conhecido como “O Pai-d ‘Égua
do Cariri”! Esse foi, aliás, o motivo que nos levou à ruína
econômica, com a fragmentação da nossa terra “As
Maravilhas”. É verdade, então, que meus irmãos bastardos
são mais de vinte, e se não falei nisso foi porque, para a Epopéia,
os que interessam, mesmo, são esses doze, que são meus Doze
Pares de França! – Como é? – disse o Corregedor, mais uma vez
espantado.
– É isso mesmo, Excelência! Como meu Pai nos deixasse arruinados,
vi que tinha de tomar certas providências para salvaguardar a fidalguia
da família Quaderna! Não sendo rico, descobri, por exemplo,
que meus irmãos mais moços, os bastardos, eram o único
jeito que eu tinha de manter, de graça e ainda com lucro, uma escolta
de Cavaleiros, semelhante àquela com a qual Dom Pedro I aparece em
O Grito do I piranga, quadro do genial pintor paraibano Pedro Américo
de Figueiredo e Mello, Grande do Império do Brasil! Nós, os
Quadernas, somos também GarciaBarrettos, de modo que…
Margarida falou baixo, de novo, e o Corregedor dirigiu-se a mim, com ar
meio embaraçado: – Senhor Quaderna, perdoe que eu entre em pormenores
íntimos sobre sua vida, mas preciso esclarecer tudo e Dona Margarida
está me informando, aqui, que o senhor, de fato, é parente dos
Garcia-Barrettos, mas – como direi? – é um GarciaBarretto…
– Pode dizer, Excelência! Eu absolutamente não me incomodo
mais de ser filho-da-puta! Ou melhor, de ser neto-da-puta, porque minha Mãe,
coitada, é que era filha-da-puta, filha bastarda do Barão do
Cariri e portanto irmã por vias travessas de Dom Pedro Sebastião
Garcia-Barretto.. Antes, eu ficava danado da vida quando alguém falava
nessa filho-da-putice nossa. Mas lá um dia, numa discussão,
Samuel declarou que isso de bastardia não tem a menor importância
nessas coisas de fidalguia e linhagens reais, tanto assim que os Braganças,
descendentes de Dom João I e Nuno Alvares Pereira, são várias
vezes bastardos e netos de padre! Depois daí, fiquei descansado e perdi
a vergonha! – Quer dizer que o senhor também é de linhagem real
sertaneja? Fiquei apavorado, com medo de que ele já tivesse ouvido
falar na minha ascendência real paterna, vinda diretamente dos Reis
da Casa da Pedra Bonita. Sim, porque de fato, como sabem, eu pertenço
é a duas linhagens reais de uma vez. Mas a dos Garcia-Barrettos, a
de minha Mãe, apesar de bastarda é de ouro e Azul e confessável,
enquanto a de meu Pai, a dos Quadernas, é negra e Vermelha, e é
o estigma de crime e culpa da minha vida, se bem que seja, também,
todo o fundamento da glória e do orgulho do meu sangue. Será
que eu já estava descoberto? Se estivesse, estaria perdido. Assim,
arrisquei na primeira hipótese: – É verdade, Senhor Corregedor!
Apesar de bastardo, por via materna eu sou um Garcia-Barretto, e portanto
posso dizer, sem jactância, que pertenço à Casa Real do
Sertão do Cariri! É nessa qualidade que esses meus doze irmãos
bastardos me servem de Guarda-de-Honra, quando, por acaso, preciso fazer alguma
cavalgada heróica, semelhante às de Dom Antônio de Mariz
ou às do Capitão-Mor Gonçalo Pires Campelo, aqueles dois
Carlos Magnos de Dom José de Alencar! E se o senhor duvida, peça,
aí, o testemunho de Margarida, que no caso é insuspeita porque
é minha inimiga e é uma “virtuosa dama do cálice
sagrado de Taperoá”! Margarida, diga aqui ao Doutor: não
é verdade que meus irmãos são Pares de França
das minhas cavalhadas? Vendo que o Corregedor, talvez a despeito de si, esperava
a resposta, Margarida viu que era o jeito e confirmou: – É verdade,
Doutor Juiz!
– Que negócio é esse, Senhor Quaderna? – estranhou o Corregedor.
– Excelência, é coisa sabida! Os figurantes das Cavalhadas
sertanejas são vinte e quatro Cavaleiros armados de lanças e
representando os Doze Pares de França do Cordão Azul e os Doze
do Cordão Encarnado! Os Azuis são os Cavaleiros cruzados e cristãos,
o os Encarnados são os Cavaleiros mouros e muçulmanos. E o mais
bonito, para mim, é que, representando os Vermelhos o partido dos Mouros,
ainda assim tenham nomes iguais aos dos azuis, havendo, por exemplo, um Roldão
e um Oliveiros azuis e cristãos, o outros Roldão e Oliveiros
mouros e encarnados! E assim por diante, até completar os vinte e quatro
Cavaleiros, com um nome de Par de França para cada par de dois! Foi
por isso que eu destaquei doze prediletos, entre os meus irmãos bastardos,
fazendo com que eles assumissem, nas Cavalhadas, o papel de Guarda-deHonra
minha! – Uma curiosidade minha, Bibliotecário Quaderna: você
colocou seus irmãos no Cordão Azul ou no Encarnado? – Senhor
Corregedor, acho que, com o que já lhe esclareci sobre minha posição
política, a resposta é clara! Se eu fosse Samuel, teria colocado
todos doze no Cordão Azul, e se fosse Clemente, no Encarnado. Mas eu,
fiel à minha orientação monarquista-daesquerda, coloquei
seis no Cordão Azul e seis no Encarnado. Tive, porém, o cuidado
de que não houvesse repetição de papel na família
Quaderna: com isso, garantia um título de Par-de-FrançaSertanejo
para cada um deles, e, ao mesmo tempo, organizava, com os doze juntos, o Destacamento
azul-vermelho da minha Guarda-Real! Eu falava demais, novamente, cego pelo
orgulho que depois me perdeu. Mas, no momento, não me apercebi, e continuei
no embalo da honra: – Meus doze irmãos formam, aliás, Senhor
Corregedor, um lote de Guerreiros que orgulharia qualquer Rei! Num certo dia,
importantíssimo para mim, eu chegara à conclusão de que,
legítimos ou bastardos, todos os Quadernas eram Fidalgos, e decidi
jamais consentir que nenhum de nós exercesse “qualquer profissão
vil de Burguês”, como diz Samuel. Lembrei-me de que todos nós,
filhos de meu Pai, éramos um pouco Vaqueiros caçadores, Cantadores,
etc. Podíamos, portanto, nos manter, todos, meio ociosos, meio criminosos,
meio vagabundos e donos das nossas ventas, como todos os Fidalgos e Cavaleiros
que se ~rezam! Era o único jeito de nos mantermos à altura da
nossa linhagem, numa sociedade em que sobram poucas profissões-nobres,
na estreita margem de atividades que a propriedade rural deixa. Foi por causa
dessa decisão minha, Excelência, que nenhum Quaderna trabalha
para filho-da-puta nenhum! Proibidos pelo consuetudinário-fidalgo da
família, nenhum Quaderna tem patrão nenhum que exija de nós
as obrigações e os trabalhos que têm os industriais, os
comerciantes o outros desgraçados e danados Burgueses com vocação
de burro de carga! Todos nós só temos profissões livres,
ociosas e marginais de Fidalgos! – Como assim? – objetou o Corregedor. – O
senhor e alguns de seus irmãos não trabalham na Gazeta de Taperoá,
o jornal do Comendador Basílio Monteiro? – Ah, mas em condições
muito especiais! Um dia, procurei o Comendador e sugeri a ele que introduzisse,
no jornal, uma página literária, charadística e zodiacal.
Eu queria dirigi-la, para ter prestígio e força perante os intelectuais
da Vila. O Comendador já estava querendo tirar o corpo de fora, quando
eu disse que tinha uma exigência: era que ele não pagaria nem
um tostão nem a mim nem a meus irmãos! Eu dirigiria a página
como se fosse um jornal à parte. O trabalho extra seria todo feito
por meus irmãos, como tipógrafos, riscadores e cortadores de
madeira. Com isso, o jornal dele ganharia mais leitores e mais dinheiro, porque
nós manteríamos, na página, uma seção de
horóscopos e um consultório sentimental. A única coisa
que eu queria em troca disso, era a permissão de, trabalhando à
noite, fora do expediente normal, eu e meus irmãos imprimirmos folhetos
e romances que Lino Pedra-Verde venderia na feira, rachando todos nós
o lucro. Vendo a possibilidade de melhorar o jornal sem gastar nada, o Comendador
concordou imediatamente. Foi assim que começamos a trabalhar na Gazeta.
Eu não estou, de fato, trabalhando para o Comendador, e sim para mim
mesmo, porque a página é um suplemento separado e independente
do jornal e eu sou o Diretor soberano dela. Por seu lado, meus irmãos
trabalham é para mim, o não para o Comendador. É por
isso que aumentei o meu prestígio de intelectual e Acadêmico
sem arranhar, sequer, meus privilégios de Fidalgo! – Bem, mas me disseram,
ainda, que a Prefeitura paga ao senhor as Cavalhadas, organizadas e corridas
pelos Quadernas! – E Vossa Excelência quer coisa mais fidalga do que
isso? Primeiro, mesmo que trabalhássemos para o Estado, seria coisa
perfeitamente compatível com a nobreza-de-toga! Mas não é
propriamente trabalhar para a Prefeitura, o que fazemos! Nós não
somos propriamente funcionários não, é esporadicamente
que somos chamados. De fato, nós fazemos as Cavalhadas é somente
para nos divertir ociosamente, fidalgamente, e para imprimir na imaginação
do Povo taperoaense as nossas imagens gloriosas de Cavaleiros do Sertão.
Agora, se a Prefeitura, por conta dela, ainda por cima resolve pagar nossa
fidalga diversão, ótimo! Más, todo Fidalgo é estipendiado!
Fidalguia sem tenças, bolsas, comendas e estipêndios, não
tem graça nenhuma! Era por’ isso então que ali, naquele sábado,
dia 1.0 de Junho de 1935, estavam os meus doze irmãos prediletos ganhando
o dinheiro da Prefeitura. Não porém para trabalhar, com obrigações
plebéias de Burgueses, e sim para se divertirem numa Cavalhada ociosa,
gloriosa e guerreira de Fidalgossertanejos, com bandeira e tudo! E para que
o Corregedor fosse logo travando conhecimento com os meus gloriosos Doze Pares
de França do Sertão, desfiei, perante ele, a seguinte lista:
BANDEIRA DO ANJO QUE VINHA NA CAVALGADA DO RAPAZ DO CAVALO BRANCO.
– No Cordão Encarnado, meu irmão Virgolino Pinagé Quaderna,
que, na vida civil, é Cantador, fazia o papel de Roldão. Sílvio
Junco-Brabo Quaderna, que é Vaqueiro e rabequista, fazia o papel de
Oliveiros. Bento Guará-Vieira Quaderna, que é Tangeria e boiadeiro,
era Gui de Borgonha. Euclides Seriema Quaderna, Almocreve, era Ricarte da
Normandia. Matias Maciel Carnaúba Quaderna, Santeiro e Imaginário,
era Urgel de Danoá. E Gregorio Camaçari Quaderna, fotógrafo
e Poeta, era Guarim de Lorena. No Cordão Azul, Joaquim Braz Quaderna,
tipógrafo do meu suplemento, era Bosim de Gênova. Augusto Maracajá
Quaderna, Cavalariano, era Tietri de Dardanha. Antônio Papacunha Quaderna,
tocador de pífano e Pintor das bandeiras e santos das procissões,
era o Duque de Nemé. Rubião Timbira-Tejo Quaderna, fazedor de
fogos e Fogueteiro, era Hoel de Nantes. Taparica Pajeú-Quaderna, cortador
de madeira, Riscador e tipógrafo-ajudante, era Gerardo de Mondifer.
E finalmente, último mas não derradeiro na minha admiração,
vinha o predileto entre os meus prediletos, Malaquias Nicolau Pavão
Quaderna, aguardenteiro, conquistador, folheteiro e Cambiteiro, no papel guerreiro
e heróico de Lamberto de Bruxelas! Não se esqueça, Senhor
Corregedor, de que todos nós éramos atiradores, Caçadores,
montadores e trocadores de cavalos, de modo que mesmo os mais sedentários
de nós, os meus tipógrafos, por exemplo, tomavam parte, com
os outros, nas caçadas, nas cavalarias, nas “entradas” ociosas
e fidalgas que eu organizava o que eram expedições guerreiras
à altura do nosso sangue e da nossa estirpe! Se Vossa Excelência
visse, naquele sábado, todo o meu pessoal preparado para a Cavalhada,
ficaria entusiasmado, mesmo não sendo Sertanejo! Os Doze Pares de França
do Azul vestiam calções azuis e saio de belbutina amarela caindo
sobre botas de couro que vinham até o joelho. Usavam esporas longas
e longos punhais de cabo de prata, capacete de flandre, e, amarrada ao pescoço,
caindo para trás, uma capa azul com cruz de ouro. Os sendais que enfeitavam
suas lanças eram azuis, assim como eram as mantas-de-anca, gualdrapas
e peitorais que enfeitavam as selas e os cavalos. Já nos Doze Pares
do Cordão Encarnado, os calções eram vermelhos e vermelhas
eram as estrelas que salpicavam os saios overdes. As capas encarnadas ostentavam,
em vez de cruz, duas filas verticais de três crescentes cor de ouro,
sendo também vermelhos os sendais das lanças, os peitorais,
gualdrapas e mantasde-sela dos cavalos. O matinador do Azul conduzia, presa
à haste de uma comprida lança, uma Bandeira azul com esfera
de Ouro no centro. O do Encarnado, uma Bandeira vermelha tendo ao centro um
Crescente branco.
– Um o quê? – exclamou o Corregedor, dando uma espécie de bote
para o meu lado.
Eu, pegado de surpresa e sem saber o motivo daquele salto, repeti mais alto:
– Um crescente branco! – Você não disse que, na capa dos Cavaleiros
do Azul, havia uma cruz? – Disse, sim senhor! – Que forma o senhor disse que
tinha a marca, queimada a ferro em brasa na espádua de Dom Pedro Sebastião?
– A forma de um crescente, encimado por uma cruz! – disse eu, esmagado.
– Pois eu lhe pergunto, Senhor Quaderna: se fosse o senhor que estivesse
investigando o crime, não acharia estranha essa coincidência
não? – Senhor Corregedor, toda Cavalhada sertaneja tem esses emblemas!
– Acredito! Mas, por um motivo de pura rotina processual, convém anotar
esse fato confessado pelo depoente, Dona Margarida. Anotou? – Anotei, Doutor!
– ótimo! Agora, pode continuar, Senhor Pedro Dinis Quaderna! O nó
de lacraias começava a me enredar cada vez mais, nobres Senhores e
belas Damas de peito macio. De modo que foi sentindo aumentar a sensação
de aperto no estômago e fazendo um enorme esforço para que o
Corregedor não notasse a minha perturbação que continuei
a narração dos acontecimentos daquele terrível dia: –
Para assistir à entrada dos Cavaleiros na rua, Senhor Corregedor, tinham
vindo à Praça quase todos os moradores da nossa Vila. A Aristocracia
rural e a Nobreza de toga tinham se distribuído num palanque, previamente
armado para isso. A Burguesia urbana sentava-se em cadeiras de braço
e cadeiras de balanço, espalhadas pelas calçadas da Praça.
Quanto ao Povo, como diziam Clemente e Dom Eusébio Monturo, “estava,
como sempre,-a pé e na poeira do chão”. No palanque, estava,
portanto, o que havia de melhor entre nós, quanto a Damas e varões
de alta linhagem: sendo que, logo ao lado do Prefeito e do Presidente do Conselho,
destacavam-se, flamejantes, as figuras dos meus dois Mestres, Clemente e Samuel,
esses dois homens subversivos e perigosos mas sem dúvida geniais, a
quem devo a maior parte da minha formação. Clemente trajava
agora, ali no palanque, sua indefectível roupa de brim branco, imaculada,
engomada cuidadosamente por sua mulher, Dona Iolanda Gázia. Trazia
colete do mesmo pano e gravata cor de pérola, com um enorme rubi fincado
nela, a modo de broche. Colocada sobre tudo isso, pusera a toga negro-vermelha
que costuma usar nos grandes dias de júri, quando faz reluzir suas
qualidades de jurista e Filósofo, diante dos Sertanejos embasbacados.
Samuel usava sua inseparável roupa de casimira preta, colete castanho,
gravata verde com esmeralda, e uma toga que tinha sido desenhada por meu irmão
Antônio Papacunha Quaderna, o pintor de bandeiras, sob a orientação
e supervisão do próprio poeta Wan d’Ernes. Essa toga sempre
causava ao nosso Promotor alguns problemas com os juízes novos da nossa
Comarca.
– Alguns problemas? Por quê? – Porque era meio diferente das togas
comuns. Era amarela, com orlas e emblemas verdes debruando tudo, o que Samuel
encomendara a meu irmão por motivos de fidelidade integralista à
cor verde! – Veja a senhora, Dona Margarida, o radicalismo dessa gente! –
disse o Corregedor, abismado. – Até nas togas esses homens introduzem
o radicalismo político! Isso aqui está tudo minado pela agitação!
Para atenuar tudo, observei: – Aliás, Senhor Corregedor, acho que era
por causa disso mesmo que os Juízes estranhavam! Mas Samuel esclarecia
sempre a eles que não via nada de estranho no fato de sua toga “ostentar
as cores nacionais”, argumento que sempre fazia com que os Magistrados
recuassem, temerosos de desrespeitar a Nação! Depois, eles terminavam
por se acostumar e até, às vezes, por aplaudir o nosso Promotor,
ao conhecê-lo melhor. E quanto a essas questões de uniformes
politicamente radicais, creio que aqui a nossa jovem Margarida vai ter que
dar ao senhor algumas explicações, porque, naquele dia, estava
lá também, no palanque, a mãe dela, Dona Carmem Gutierrez
Torres Martins. Esta, Senhor Corregedor, é uma figura que Vossa Excelência
precisa conhecer e cultivar! – falei, passando um rabo de olho para Margarida,
que me atravessava, com olhos fuzilantes. – Dona Carmem é uma mulher
intelectual, viúva de um velhinho muito mais velho do que ela e que
ainda era vivo naquele tempo. É uma senhora magra, distinta, simpaticíssima
e que, não sei por qual motivo, é detestada pela filha! Naquele
tempo, ainda se poderia, talvez, encontrar um motivo para essa aversão,
porque, segundo as más-línguas da Vila, Dona Carmem mantinha,
há vários anos, uma “amizade intelectual” com o nosso
Anjo decaído e promotorial, o Doutor Samuel Wan d’Ernes, seu companheiro
de canto no coro da nossa Igreja! Mas hoje isso não se explica mais,
porque, segundo ficou provado depois, essa amizade intelectual, se existia,
não podia ser senão “um romance platônico”,
mal interpretado na rua pela maldade humana. Dona Carmern era Presidenta Perpétua
das “Virtuosas Damas do Cálice Sagrado”, organização
radical que existe aqui e da qual Vossa Excelência precisa ir tomando
conhecimento, porque é ligada à “Ordem dos Cavaleiros da
Esfera Armilar”, grupo extremista da Direita, fundado pelo Doutor Samuel
Wan d’Ernes e Gustavo Moraes, o filho do usineiro Antônio Moraes. Como
Vossa Excelência já deve ter sabido, consta que os Integralistas
tentaram um golpe armado contra o Governo, na noite de 10 de Março
passado. O chefe principal desse golpe foi o Contra-Almirante Frederico Villar,
cuja família é, aqui em Taperoá, uma das mais poderosas!
O Corregedor interrompeu: – Deixe de lado a parte das “Virtuosas Damas
do Cálice Sagrado”! Deixe, também, de lado suas análises
pessoais da Política nacional, porque a interpretação
dessas coisas fica por minha própria conta! Não preciso de esclarecimentos
-seus sobre assuntos gerais; quero saber é sobre o caso concreto e
os acontecimentos ligados a seu Padrinho e ao rapaz do cavalo branco! Continue,
portanto, a narração sobre aquele dia.
– Sim senhor! Dona Carmem, como eu vinha dizendo, na qualidade de Presidenta
da “Vida-Casta”, usava, naquele sábado, sobre o vestido verde,
de mangas compridas, uma espécie de túnica ou estola branca,
com cruz azul às costas, assim como ostentava à cabeça
um chapéu, igualzinho àquele com que Joaquim Nabuco aparece
na Crestomatia – um chapéu com borla pendurada e formado, em cima,
por uma tampa quadrada de papelão. No dela, o forro exterior era de
seda azul, enfeitado com duas largas fitas de gorgorão cor de couro,
passadas por cima da tampa, em forma de cruz. Ao lado de Dona Carmem, estava
o Comendador Basílio Monteiro, que não pertencia à Aristocracia
rural mas que estava no palanque, com sua opa roxa e seu barandão,
na qualidade de Presidente da Irmandade das Almas. Estava o Coronel Severo
Martins Torres, o velhinho marido de Dona Carmem e Pai, aqui, da nossa Margarida:
estava com sua farda amarelo-esverdeada de Comandante da Guarda Nacional,
com dragonas de ouro, espada o tudo. Olhava para tudo com desinteresse e impaciência,
aguardando o momento em que, “acabadas aquelas besteiras de cavalos,
lanças e argolinhas, começasse a parte realmente importante
da festa”, quando então ele, Severo, pelo seu bom comportamento
no palanque, seria premiado por Dona Carmem, que lhe permitiria comer bolos
à vontade, na festa que estava pronta para receber o Bispo.
– Já lhe disse que deixasse essas coisas de lado! – disse o Corregedor
que notara o constrangimento de Margarida, e falou com ar duro.
Mudei de assunto: – O irmão do Comendador Basílio Monteiro,
Eusébio, conhecido na rua pelo apelido de Dom Eusébio Monturo,
o que devia à sua língua de prata e a seu bocão desabusado,
não estava no palanque, porque, além de inimigo do irmão,
era radical em Política “e não consentiria, de modo nenhum,
em aparecer, de público, juntamente com a plutocracia sertaneja”.
Anticlerical e ateu, considerava-se “O Paladino do Povo”, e acharia
uma traição de sua parte colocar-se no palanque, ao lado da
Aristocracia, em vez de no chão, “perto dos nossos irmãos
sofredores, os pés-rapados da poeira”. Estava agora, pois, ali,
no chão, perto do palanque, com sua alta estatura, seus ombros meio
curvados, seus olhos vesgos, seus longos cabelos e bigodes caídos,
embranquecidos “nas lutas populares e nas revoluções libertárias”,
segundo ele mesmo declarava. De braços cruzados sobre o peito, mantinha
um ar soberbo e desdenhoso, com o qual desejava demonstrar à Aristocracia
taperoaense que ele, o Paladino do Povo, era superior a todas aquelas palhaçadas;
que ele poderia ter subido ao palanque, mas não quisera; que estava
na Praça por pura condescendência e assim por diante. De vez
em quando, Dom Eusébio Monturo voltava para o palanque uns olhos fuzilantes,
detendo-os principalmente sobre o Professor Clemente que, sustentando idéias
próximas das dele, “traía o Povo e a Revolução
para se exibir, como um lacaio, ao lado dos senhores-feudais do Sertão”.
O fato, porém, é que o pessoal do palanque absolutamente não
estava ligando para os desdéns nem para os furores de Dom Eusébio
Monturo. Estavam, ali, “todas as pessoas de pró da Vila”.
Com exceção, é claro, da família do riquíssimo
e poderoso Dom Antônio Moraes: excessivamente orgulhosos, não
davam acesso a ninguém da rua à casa deles e não compareciam,
também, a nenhuma das nossas festividades. Bastaria isso para mostrar
como o Senhor Antônio Moraes era diferente do nosso velho Rei Degolado,
meu padrinho Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, que comparecia a
todas, prestigiando mesmo, liturgicamente, a realização de algumas
delas, o que deu origem a essa calúnia que me fizeram perante o senhor,
de que eu teria contribuído para a demência final dele. Arésio,
por seu lado, “muito feliz da vida, de cama e mesa na casa do arquiinimigo
de seu Pai”, também não tinha aparecido para as festas.
Aliás, também em vida de seu Pai, Arésio detestava “as
palhaçadas a que ele se submetia”, de modo que era sempre Sinésio
quem comparecia ao lado do nosso Rei do Cariri e Imperador do Divino, sendo
este um dos motivos da popularidade do filho mais moço e da impopularidade
de Arésio, perante o Povo de nossa Vila. Agora, ao contrário
do que acontecia com Dom Eusébio Monturo, as ausências e os desdéns
dos Moraes e de Arésio eram sentidos por todos os moradores da rua.
Sentíamos que eles se consideravam como pertencentes a uma esfera infinitamente
superior e que esse era o motivo de permanecerem lá, na sua casa-grande
do “Alto dos Borrotes”, dominando toda a Vila, solitários,
cheios de si, fruindo, isolados e altivos, suas grandezas, seu bom gosto e
também sua vida familiar enigmática e meio inconfessável
de Fidalgos superiores ao nosso meio, emigrados das usinas de Pernambuco para
as minas, o algodão e o couro do Sertão da Paraíba.
– Do lado direito do palanque, eu ordenara que se dispusessem os “Caboclos
de Lança” da minha “Tribo Coroada dos Panatis”, e do
lado esquerdo, minha “Nação Cabinda do Reisado Sudanés”.
Sabedor, por experiência, de como são necessárias todas
as cautelas nessas coisas de monarquias – pois há sempre um pretendente
qualquer à espreita, sequioso de poder e louco para tomar nossos tronos
– eu disseminara por entre os membros de ambas as Nações os
meus irmãos bastardos que não estavam na Cavalhada. Tivera,
é claro, o cuidado de colocar os mais acaboclados na “Tribo Panati”
e os mais escuros no “Reisado Sudanés”. Escolhera, além
disso, dois dos mais bem apessoados, fazendo, de um, “Rei Caboclo e Cacique”,
e do outro, “Rei Negro”. Assim, minha família estaria a postos
em torno do meu Trono, e todos os Quadernas teriam a seu dispor os lugares
dignos de sua qualidade e hierarquia, como Príncipes de sangue do Reino
do Sertão e do Império do Brasil! – O senhor falou aí
em seu trono, foi? – perguntou o Corregedor, com expressão falsamente
descuidosa. – Quer dizer que o senhor também é Rei, como Dom
Pedro Sebastião era? Ave Maria! No meu orgulho, eu tinha ido de novo
muito longe! Estava arriscando a cabeça, porque se aquele implacável
Corregedor descobrisse meu sangue real paterno eu estaria perdido! Então,
tergiversei: – Senhor Corregedor, estas questões de monarquia são
muito complicadas, de modo que levam um pouco de tempo para entender! Do ponto
de vista político e guerreiro, Dom Pedro Sebastião e seus três
filhos é que constituem a “Casa Real do Cariri”. Eu e meus
irmãos somos apenas Príncipes e Guerreiros dessas coisas de
Cavalhadas, tribos, Naus Catarinetas e outras fidalguias literárias
e espetaculosas! – De qualquer modo, porém, sendo o senhor, pelo lado
materno, um Garcia-Barretto, mesmo bastardo, é Príncipe, motivo
pelo qual creio que tem direito, também, ao tratamento de Dom! – Bem,
de certo modo, é verdade! – confessei, lisonjeado. – E se eu não
tinha dito isso, ainda, ao senhor, foi por pura modéstia! – Desculpe
então a nossa falha, até agora, e queira continuar, Dom Pedro
Dinis Quaderna! – Obrigado! – disse eu, fingindo não ter notado a inflexão
especial que ele tinha usado.
E continuei: – Os Panatis, que na minha vida real e principesca eram a tropa
de Arqueiros do meu Exército particular, usavam mantos de pano enfeitado
com vidrilhos e longas Coroas ou cocares de penas, que, pregadas a uma manta
amarela e verde, pendiam-lhes até os ombros. Seus corpos tinham sido
pintados com listras largas e horizontais, negras e vermelhas. Vestindo apenas
a tanga ritual, traziam a cintura e os tornozelos enfeitados com penas de
Gavião. Com seus companheiros, os Negros da esquerda, estavam ali,
prontos a encher os intervalos da Cavalhada com suas danças de “Auto
dos Guerreiros”. Alguns traziam maracás, feitos de cabaços.
Outros, tacapes. Outros, lanças compridas. A maioria, porém,
estava armada com longos arcos de madeira, cujas flechas eram também
enfeitadas com penas e que eles meneavam em gestos felinos de Onça-Parda,
o que me fazia recordar sempre a introdução mitológica
negro-tapuia da famosa Filosofia do Penetral, de Clemente. Segundo essa introdução,
sendo o Sol macho-e-fêmea do Divino e gerador de tudo, os homens primitivos
descendiam do cruzamento de um deus com um bicho ou pássaro, sendo
que, como Clemente afirma sempre, “o animal mítico e gerador por
excelência da Raça humana foi a Onça”. Naquele dia,
ladeado por dois Príncipes Pardos, meu irmão Tabajara Peba Quaderna
estava à frente da Tribo, como Rei Caboclo. Seu traje era semelhante
ao dos Arqueiros de suas fileiras, mas tinha algo a mais; a modo de insígnia
real, trazia ele à cabeça um capacete de flandre, enfeitado
de penas e com um certo jeito de elmo, o que, apesar de ter causado grande
indignação a Samuel, lhe dava uma dignidade toda especial. Do
lado dos Negros, quem estava à frente da Nação era Feliciano
Nonato, o mais escuro de todos os Quadernas. Ladeado também por dois
Príncipes, trazia capacete enfeitado de plumas, saio azul e calção
vermelho. No peito, ostentava crescentes de prata e outras incrustações
de vidrilho cor de ouro, o que, espero, Vossa Excelência não
levará a mal, pois acontece em todo grupo mouro de Festas do Divino.
Colete mourisco, colares de búzios, calções debruados
e meias ajustilhadas cor de creme completavam sua régia roupagem. Nos
pés, trazia sapatos de couro de Gato-Maracajá. Seus guerreiros
vestiam de modo semelhante se bem que sempre mais modesto, para marcar bem
as hierarquias. Assim, Senhor Corregedor, tudo estava preparado para começar.
Os Cavaleiros Azuis e os Encarnados entraram na Praça, dispostos em
duas filas paralelas, e dirigiram-se ao palanque. Eu tinha proibido que meus
irmãos fizessem qualquer salamaleque ao Prefeito que, além de
republicano, era simples membro da Burguesia urbana – apesar de casado com
uma ilustre Dama pertencente à Aristocracia rural. E mesmo que ele
fosse Fidalgo, o caso é que nunca se soube que os Príncipes
de sangue fizessem saudações aos simples Gentis-homens de suas
antecâmaras! Por isso foi que, chegando diante do palanque, em vez de
saudarem o Prefeito e o Presidente do Conselho, o Rei Mouro do Encarnado o
o Rei Cruzado do Azul trocaram uma saudação entre si e depois
fizeram, um ao outro, as ameaças tradicionais. O Rei Mouro regougou,
com voz forte: “Se tens a Força capaz, lutemos de peito a peito:
vou brigar de qualquer jeito, sou Onça negra e voraz! Aqui, ninguém
entra mais! Vamos, os dois, lutar sós! Não atendo à sua
Voz, fogo de minh’Arma sai: vamos ver quem é que cai, quem ganha a
Luta feroz!” “Esta é a nossa Batalha, sangrenta, macha e
tirana! Minha espada, a Durindana, não amostra uma só falha!
Na forja desta Fornalha eu ganharei a Vitória! Mas ficarão na
Memória meus malfeitos e perigos, e os Cantadores antigos cantarão
a minha Glória!”
– Após essas saudações e ameaças rituais, Senhor
Corregedor, os dois Reis espicaçaram os cavalos e puseram-se, de novo,
à frente das duas filas de Cavaleiros, que, então, se dirigiram
para os lugares antes determinados. Uma girândola de foguetões
estralejou no ar, e a banda de música, conhecida popularmente como
“Sinhá-Zefinha”, clarinou um dobrado marcial, o Dobrado Euclydes
da Cunha, composto, especialmente para a festa, por nosso genial Mestre-deMúsica
e Mestre-de-Capela, Jovelino Maciel, o mesmo que ensaiava as músicas
do coro da Igreja, para o Doutor Samuel e Dona Carmem Gutierrez Torres Martins.
Os cavalos, excitados pelos gritos o assobios do poviléu, pela música
e pelos tiros de foguetões, pisavam nervosamente o chão, ansiosos
para correr. O Rei-de-Armas o Passavante, que era também um irmão
meu, ia baixar a Bandeira azul-vermelha que autorizaria o início do
primeiro páreo, de modo que tudo prenunciva uma Cavalhada brilhante,
alegre, ordeira e animada, muito superior àquela que inicia As Minas
de Prata, obra genial de meu precursor, Dom José de Alencar. Infelizmente,
porém, Senhor Corregedor, eu tenho que pedir a toda essa gente que
se imobilize aí, nessa atitude, meu irmão com o braço
no ar, o pessoal de olhos aboticados e de boca aberta, a bandeira contra o
céu, etc., porque tenho, agora, que passar à Estrada que nos
liga à Vila da Estaca Zero e contar algo de importância fundamental
que estava acontecendo por ali.
O Rei Cristão retrucou:
FOLHETO LV
De Novo a Cavalgada – E que, sem que as pessoas da Praça nem sequer
desconfiassem, por essa Estrada de Estaca Zero vinha se aproximando de nós,
naquele instante, uma outra Cavalgada que iria mudar inteiramente o rumo dos
acontecimentos e o destino de muitas das pessoas mais importantes do lugar,
incluindo-se entre estas, apesar de minha humildade, o modesto Cronista-Fidalgo,
Poeta-Escrivão o Rei d’Armas da Casa Real do Sertão do Cariri
que está lhe falando aqui, agora. Não vou descrever essa Cavalgada
com pormenores, pois o senhor já conhece, mais ou menos, meu estilo
régio. Basta que lhe diga que era composta quase toda de Ciganos, vestidos
de gibões medalhados e cravejados. Vinham, nela, onças, veados,
gaviões e cobras, trazidos em carretas ou caixões. Ela vinha
precedida por duas bandeiras, uma com onças e contra-arminhos, outra
com coroas e chamas de ouro em campo vermelho. Havia quatro homens que pareciam
os mais importantes, os chefes e pessoas de pró dela: um frade-cangaceiro,
Frei Simão de nome, o Doutor Pedro Gouveia da Câmara Pereira
Monteiro, Luís Pereira de Souza (mais conhecido como Luís do
Triângulo) e o rapaz do cavalo branco. Essa cavalgada caíra,
há poucos momentos, numa emboscada que lhe fora armada pelo grupo do
Capitão Ludugero Cobra-Preta, tendo perdido, na luta, um dos seus porta-bandeiras,
o Alferes José Colatino Leite. Agora vinha ali, já bem perto
de Taperoá. As bandeiras já mencionadas tinham acrescentado
mais quatro, uma representando um Touro com asas, outra uma Onça, outra
um Anjo de quatro cabeças e outra um Gavião.
– E é verdade tudo isso? Todas essas roupas fidalgas, essas bandeiras,
essas onças, esses acontecimentos estranhos, tudo isso é verdade
ou é “estilo régio”? – Bem, se o senhor quiser, pode
imaginar somente uns cavalos pequenos, magros e feios, uma porção
de gente suja, magra, faminta e empoeirada, arrastando por aquela estranha
Estrada uma porção de velhos animais de Circo, famélicos
e desdentados, numa tropa pobre e amontoada. Para mim, porém, somente
o facho sagrado da Poesia régia é capaz de dar a medida daquele
evento extraordinário, de caráter epopéico! De fato,
Senhor Corregedor, somente vendo esse pedaço de estrada por onde eles
vinham agora é que a gente pode imaginar bem a cena! Da banda direita
dos Cavaleiros ciganos, essa estrada, ali, é ladeada por um despenha338
deiro que eles vinham beirando já há uns cinco minutos em sua
caminhada. Amparavam-se, porém, do abismo através de uma cerca
de pedra que, segundo vi no Dicionário Prático Ilustrado que
é meu outro livro-de-cabeceira, os Portugueses chamavam castro, umas
trincheiras de pedra que eles herdaram dos Latinos, e nós, Sertanejos,
herdamos dos Portugueses e Espanhóis. Nas pedras da cerca, o sol enceguecedor
faiscava, centelhando em seu granito, incrustado de quartzo e malacacheta.
Do lado esquerdo dos Ciganos, o morro pedregoso, que fora cortado a dinamite
em 1924 para abrir lugar à estrada, subia quase a pino, descobrindo,
por entre pedaços o camada de terra dura e seca, trechos espaçados
do enorme lajedo, bruto e violáceo, que o constituía quase inteiramente,
por baixo. Os pedaços de lajeiro que afloravam então, apresentavam-se
cobertos de coroas-de-frade e macambiras, rubras, amarelas ou roxas, às
vezes com maravilhosas flores escarlates luzindo entre as folhas espinhosas,
mas sempre selvagens, incendiadas pelo sol, como se fossem enormes tochas,
ou lampadários, entre os quais errassem, solitárias e ferozes,
Onças-Vermelhas ou fulvo-pardas – os Leopardos sertanejos. Tudo isto,
para cumprir o que profetizara o minha Epopéia um excelso Vate brasileiro,
quando cantou assim: “As Pedras desabrocham solitárias, de Arquitetura
esplêndida e fantástica: são-lhe, Bromélias, rubros
Lampadários. E, por vida inda dar-vos, Leopardos, vivo-escarlates e
indolentemente, os Guarases, à luz do Sol, traçaram a Coroa
do Sangue Espadanante”.
– Entremeando tudo isso, Senhor Corregedor, a Catinga, o carrascal áspero
e pardo, queimado pelo Sol. Este, às duas e tanto o tarde, era tão
violento que a vista se encandeava em suas cintilações. Nesse
momentos, os Cavaleiros, meio cegos pelo Sol, que os impedia de ver o resto
das Catingas e Tabuleiros, tinham a impressão de que estavam caminhando
por uma estrada, perdida nos ares ardentes e iluminosos, uma estrada que não
tocava o chão, como as outras, mas sim pairava suspensa, pendurada
da panela emborcada e fervente-azul do céu pelos raios de cobre do
Sol. O vento incendiário da Catinga, o “Sertão” abrasador,
roncava por espaços no Tabuleiro, levantando, em ridimunho, colunas
de folhas secas e gravetos, a mais de trinta metros de altura, o que aumentava
a impressão da tribo de GuerreirosVagabundos de que estavam caminhando,
numa viagem de iluminação ou numa demanda novelosa, por uma
estrada que conduzia “à terra-estranha da morte”. O senhor
já ouviu falar, por acaso, do Cantador Pedro Ventania? – Não,
nunca me deram essa honra não! – Pois ele foi engolido por uma Cobra,
Senhor Corregedor, e foi pensando nele que eu falei, há pouco, na terra-estranha
da Morte! Ventania estava na Catinga, caçando raposas, quando, de trás
de um lajedo, uma enorme Cobra-de-Veado deu-lhe um bote e começou a
engoli-lo, primeiro os pés, depois as pernas, o bucho, o pescoço
e a cabeça de olhos aboticados! Os companheiros de caça dele,
paralisados pelo terror e meio tonteados pelo bafo da jibóia, me contaram
depois, que, quando Ventania já ia desembandeirando de cabeça
abaixo para dentro da Cobra (ou melhor, de goela e de bucho abaixo), gritou,
com uma voz meio engolida e já ressoando nas entranhas do chamado Bicho-Cobra,
sua última frase neste mundo, e que foi: “Adeus, minha gente,
que eu já vou em terra estranha!” Pois este nosso Sertão
velho, Senhor Corregedor, talvez seja mesmo a terra-estranha da Morte, dominada
pelos dentes das Onças, pelo veneno das Cobras, das Lacraias e de outros
bichos – a terra na qual, ao contrário do que seria de esperar, aquele
Donzel errante que era o rapaz do cavalo branco cada vez se adentrava mais
naquele instante, sonhosamente em busca da sua vida, destroçada e perdida,
sem que ele soubesse por quê. Por ali chegava ele, agora. E fora talvez
já pensando na aparição desse sonhoso e angélico
Donzel em minha Epopéia, que o genial Bardo brasileiro, Alvares de
Azevedo, escrevera aqueles versos proféticos que dizem:
“Criatura de Deus, se peregrina invisível na Terra, restaurando
a justiça aos que sofrem, certamente que é um Anjo de Deus!”
O Corregedor cortou, com ar incrédulo e irônico: – Quer dizer
que, na sua opinião, aquele rapaz do cavalo branco era uma espécie
de Anjo de candura, inocente e inofensivo! – Não, Senhor Corregedor!
Um Anjo é uma coisa muito diferente do que as pessoas pensam! O senhor,
não tendo sido discípulo de Samuel e Clemente, não pode
conhecer a tríplice natureza da Onça do Divino, dividida em
quatro partes: a OnçaPintada, a Onça-Negra, a Onça-Parda
e o Gavião-de-Ouro. Ou, em outras palavras, a esmeralda, a Granada
Negra, o Rubi e o Topázio. Os Anjos, sendo ligados, ao Pai, à
Onça Malhada, ao sopro do Sertão – o vento incendiário
do Deserto – e à Sarça Ardente da Pedra Lispe, são seres
de fogo, armados de espada e terrivelmente perigosos!
– Então, o senhor acha que o rapaz do cavalo branco era perigoso! – Bem,
Senhor Corregedor, quanto a isso estamos de pleno acordo! Não tenho a
menor dúvida de que o rapaz do cavalo branco era perigoso, e basta ver
tudo o que aconteceu depois da chegada dele para entender isso! Anote essa declaração,
Dona Margarida, ela é fundamental para o inquérito.
– Eu acho, aliás, que foi por isso que o grande Bardo paraibano,
Augusto dos Anjos, vendo em seus sonhos de Iluminado sertanejo, aquela Estrada
legendária e fatídica por onde o rapaz do cavalo branco apareceu,
viu-a como “uma imensa e rutilante Cobra, de epiderme finíssima
de areia”, povoada de Anjos e Demônios, e atribuiu ao Donzel aquela
imprecação cifrada e enigmática que diz assim:
“Quem foi que viu a minha Dor chorando? Saio. Minha Alma sai, agoniada!
Andam Monstros sombrios pela Estrada, e, pela Estrada, entre esses Monstros
ando!”
FOLHETO LVI
A Visagem da Bicha Bruzacã – Uma pergunta, Dom Pedro Dinis Quaderna:
o senhor acredita no Diabo? – Como é que posso não acreditar,
Senhor Corregedor? Ainda agora, quando eu vinha para cá, ele apareceu
ao irmão do Comendador Basílio Monteiro, ali, no monturo da
areia do rio, perto do Chafariz! Eugênio Monteiro estava me lembrando
quantas vezes, aqui no Sertão, a gente encontra, nessas chapadas nuas
e pedregosas, seres alados e perigosos, cruéis e sujos, bicando os
olhos dos borregos e cabritos! Quem são eles? Gaviões? Urubus?
Dragões? Acho que tudo isso ao mesmo tempo, porque todos eles são
encarnações do Bicho Bruzacã, a Ipupriapa macha-e-fêmea,
a Bicha que resume tudo o que existe de perigoso e demoníaco no mundo!
O senhor já viu a Bicha Bruzacã alguma vez? – Não! –
Nem nunca ouviu falar dela? – Também não! – Pois eu me admiro
muito, porque é a Bicha mais horrorosa e conhecida por todo esse mundo
velho por aí afora! É coisa sabida, Senhor Corregedor: ela é
o Mal, o Enigma, a Desordem! Passa no Mar os seis meses do tempo de chuva.
Durante esse tempo, tem duas ocupações: causa as tempestades
e fica esperando, perto da Costinha, aqui na Paraíba, a chegada das
Baleias, que ela sangra e devora como se fossem traíras ou Curimatãs.
Aí, quando vem chegando Setembro, ela sai do Mar, soprando fogo pelas
ventas, e vem para uma Furna de pedra perdida no Sertão. O fogo soprado
pela respiração dela é que faz a seca! E ela aparece
com muitas formas! Aliás, se o senhor não acredita em mim, veja
a História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, que era homem fidalgo
e frade, de modo que sua palavra merece respeito! Naquele tempo, a Bicha Bruzacã
era conhecida pelos índios como a Ipupriapa, ou Hipupiara. Ela apareceu
na praia, a um tal Baltazar Ferreira, donzel fidalgo, pois era filho de Capitão-Mor.
Nesse dia, apareceu com cara de Cachorro, peitos de mulher, corpo e garras
de Onça Malhada, motivo pelo qual eu acho que era um dos dias em que
ela já vinha para o Sertão: dizem que nessas horas sempre ela
tem alguma coisa de Onça! Baltazar Ferreira conseguiu feri-la a faca!
Se conseguiu, além disso, molhar a boca com sangue dela, ele se tornou
imortal! De qualquer maneira, eu ainda conheci um descendente dele que é
Tabelião numa vilazinha do Litoral, lá para os lados do Rio
Grande do Norte! É um velho meio doido; e como ele tem o mesmo nome
do ascendente, Baltazar Ferreira, tem gente que jura que ainda é o
mesmo! Ele vivia impressionado com a história da Ipupriapa Bruzacã,
e foi por isso que terminou se metendo, comigo e com o rapaz do cavalo branco,
na Odisséia marítima que nós empreendemos com o Mestre
Romão, na grande barcaça A Estrela-da-Manhã, viajando
do Rio Grande do Norte até o Rio São Francisco, entre Alagoas
e Sergipe! – Ah, e a aventura do rapaz do cavalo branco teve também
uma parte marítima? – Teve sim senhor! Constou primeiro de uma “ilíada
sertaneja e terrestre”, e depois de uma “odisséia marítima
e do litoral”, motivo pelo qual meu Castelo sertanejo fará de
mim um Epopeieta que, numa Obra só, será mais completo do que
Homero teria sido, caso existisse! – átimo! Mas continue o que você
vinha dizendo sobre esse Bicho diabólico, isso me interessa muito!
Desculpe, Dona Margarida, mas isso é tão interessante como expressão
da psicologia dessa gente, que não posso me furtar a esclarecer mesmo
isso! – E tem razão, Excelência! – disse eu. – Talvez não
convença, assim, à primeira vista, mas o fato é que tudo
isso foi importantíssimo para toda a nossa Desaventura! Olhe aqui:
pedi a meu irmão Taparica, que é desenhista e gravador, que
copiasse a figura que Samuel tinha me mostrado no livro de Frei Vicente do
Salvador! Peço ao senhor que anexe a figura da Hipupiara ao meu depoimento!
O senhor sabia que meu objetivo secreto e enigmático, quando acompanhei
o rapaz do cavalo branco, era encontrar a Bicha Bruzacã, feri-la, beber-lhe
o sangue e me tornar astrologicamente imortal? – As informações
que eu tenho são muito diferentes, sobre o senhor e principalmente
sobre ele, o rapaz do cavalo branco! – disse o Corregedor com uma expressão
que me deixou trêmulo.
Então, para convence-lo de vez da qualidade principal de “viagem
filosófica e profética” da Demanda novelosa que tínhamos
empreendido em 1935 e que terminara há poucos dias, de modo tão
terrível, voltei a insistir sobre o assunto: Vossa Excelência
tem o direito de pensar assim, mas isso só acontece porque o senhor
nunca ouviu falar nas aparições desse Demônio marinho
e sertanejo! Sem se falar em mim, conheci três pessoas que viram Bruzacã,
e nunca mais desinfeccionaram o sangue da picada peçonhenta que ela
dá! – E o senhor mesmo viu o Demônio? – Vi, mas minha visagem
vai ser contada ao senhor depois, por uma questão de ordem epopéica!
Os outros três foram o velho Baltazar Ferreira, o Tabelião de
quem já lhe falei, Mestre Romão, o velho Capitão da barcaça
A Estrela-da-Manhã, e o vaqueiro Manuel Inácio, cabra do Seridó,
que avistou a Bicha no Mar, perto da Praia de Touros, no Rio Grande do Norte.
O senhor conhece a Praia de Touros? – Não! – disse o Corregedor, meio
enfastiado.
De certo modo, o que eu queria era mesmo enfastiá-lo, para diminuir
o perigo do assunto, de modo que continuei: – É uma praia histórica:
segundo me contou Samuel, foi ali que a Esquadra brasileira, comandada pelo
Almirante Conde da Torre, deixou, no século XVII, depois de uma batalha
naval que durou vários dias, o pequeno exército, comandado por
André Vidal de Negreiros, Luís Barbalho Felpa de Barbuda, Antônio
Felipe Camarão, Henrique Dias e outros – Exército que realizou
uma das mais belas “retiradas ilustres” da nossa História!
É por isso que ali, no litoral do Rio Grande do Norte, dizem que, de
vez em quando, à noite, por cima dos arrecifes, passeiam as almas dos
danados Holandeses e também o Conde da Torre, fantasma recoberto de
topázios, procurando levantar velas batidas, rotas e molhadas e reunir
velhas Caravelas desarvoradas. Não sei se o senhor já reparou,
mas o Litoral nordestino tem umas praias rasas, brancas, de areia fina e reluzente
que range em nossos pés des calços, e outras pedregosas, altas,
empinadas, feitas de rochas cor de ferrugem. O Cabo de Santo Agostinho e a
Fortaleza de São Joaquim, praias onde o gringo Edmundo Swendson tinha
terras, eram ambas deste último tipo, com um monte pedregoso, a pique
sobre o Mar e tendo, perto, embaixo, uma enseada de praia rasa, tranqüila
e serena, perto da barra de um rio. Ora, Senhor Corregedor, segundo afiança
o genial Poeta brasileiro Vicente de Carvalho, o mar, “o belo Mar selvagem”,
é um “Tigre a que o vento do largo eriça o pêlo”,
um estranho animal felino. É, também, um Velho de barba azul,
“condenado ao cárcere das Rochas que o cingem”. Por outro
lado, deve existir, no Mar, alguma coisa profundamente ligada àquilo
que Clemente chamá “o Destino do rebanho humano”, porque
Vicente de Carvalho afirma, ainda, que, quando se põe diante do Mar,
ergue imprecações, clamores e blasfêmias contra a Mão
desconhecida que traçou nosso Destino: “Crime absurdo o crime
de nascer”, diz ele. – “Foi o meu Crime, o eu o expio vivendo”.
Pois como eu vinha contando: o vaqueiro Manuel Inácio vinha viajando
com um gado que iria vender em Macau. Além do gado, levava, também,
alguns burros carregados de couros, que deixaria lá em troca de Sal
para o Sertão. Tomou, por acaso, o caminho da Fortaleza de São
Joaquim, e seguiu uma estrada velha que beirava o Mar. Era o dia 24 de Agosto
de 1919. Naquela data, perto do meio-dia, Manuel Inácio, sufocado de
sol o calor, chegou a um bosque de cajueiros, onde corria um riacho. Fez uma
parada, tirou a carga dos burros, botou os animais para beber no riacho, almoçou,
e aproveitou os momentos em que o gado pastava para descansar um pouco. Espichado
sob um cajueiro, notou, por mal de seus pecados, que ali, à sua frente,
a terra se elevava suavemente formando um morro pedregoso que caía
a pique no Mar, a uma altura enorme. Com o deslumbramento de todo sertanejo
pela visão do Mar, resolveu subir o monte para ampliá-la. Ao
chegar lá, ficou um momento, na certa como Vicente de Carvalho, pensando
sobre o Destino do rebanho humano, sobre o número incontável
de pessoas que tinham nascido, vivido, envelhecido e morrido sempre diante
daquele mesmo velho Tigre de barbas azuis. De repente, segundo me contou depois
o Tabelião Baltazar Ferreira (que foi quem me narrou essa história),
o Vaqueiro começou a ouvir uns mugidos estranhos e poderosos. Pensou,
a princípio, que fosse o seu gado, agitado lá longe por algum
acontecimento fora do comum, mas logo mudou de opinião porque, como
ele contava, “rês nenhuma do mundo daria urros como aqueles”.
Aí, olhando para os lados do Mar, ele viu, sobre a dura o brilhante
superficie verde e azul, iluminada cruamente pelo violento sol do meio-dia,
uma Nuvem negra, cercada por uma orla brilhante da Coroa solar. Segundo contava
o Vaqueiro a Baltazar Ferreira, foi somente aí que ele começou
a perceber que a Terra é que tinha se crispado, há pouco, dando
aqueles mugidos que o tinham aterrorizado. Não sei, também,
se o senhor sabe, mas os Vaqueiros sertanejos descobriram, há muito
tempo já, que a Terra é uma Vaca, “uma vaca enorme, arcangélica
e esquisita, que vive mijando rios para o mar”, como ‘ explicava muito
bem o nosso Profeta Nazário. Dizem eles que, num certo lugar da Terra,
existe uma enorme Gruta, cuja entrada é comprida e estreita em relação
à largura, uma Fenda cuja entrada é feita de rã coberta
de musgo verde e veludoso. O Mar, Tigre verde-azul, foi parido pela Vaca arcangélica
da Terra através dessa Gruta verde, o é por isso que às
vezes a Terra dá esses poderosos mugidos, chamando o filho estranho
e felino, de cabelos verdes, nos momentos de perigo. Naquele dia, à
medida que a nuvem estranha baixava, e se dirigia para a costa, as águas,
embaixo dela, inchavam o se intumesciam. Começaram também a
ferver, batendo com mais fúria ainda contra os Rochedos castanhos do
morro. De repente, aquela inchação gigantesca das águas
se fendeu, e Bruzacã fez ltpaiecer no ar, surgindo das águas
revolvidas e ferventes, sua maldita cabeça coroada! Ah, só quem
já viu Bruzacã é que pode imaginar como são poderosas
e aterrorizantes as formas que ela tema! São sete Chifres turvos e
amolados, o Focinho peludo, a Corcova cerúlea! No cabelouro espesso,
uma Cabeleira de serpentes e conchas entrançadas! O olhar de Cobra
e o corpo feito à semelhança de um corpo enorme de Touro branco!
Era a Besta marinha, *rtejada pelos lombos diabólicos e sagrados do
Mar! Seu olhar chamejava, ora amarelo, ora azul como um aço de Martelo!
Ao fogo dó sopro das suas Ventas, ferviam as águas em borbulhas
de Enxofre envenenado. O peito era coberto pelo musgo nojento que suja e mancha
as paredes do Inferno alumiado! As espáduas eram cobertas de malhas
feridentas cor de ferrugem e em cada uma das suas ancas verdes luzia uma estrela
amarela, brilhando entre sargaços e a salsugem, entre ostras pegadas
ao tronco, anoso e velho como um velho Rochedo extraviado! O Vaqueiro ouvia
seu próprio sangue latindo, pedindo, suplicando que ele corresse e
se afastasse dco Bicho amaldiçoado. Ao mesmo tempo, porém, que
ele sentia o horror, sentia também o fascínio do Bicho e da
Desordem desmedida, obrigando-o a procurar ver, ver sempre mais, pois é
destino sem fim, nosso, querer, como diz Clemente, “decifrar todo o Bicho
deste Mundo”. Aí, Senhor Corregedor, aquela nuvem negra, ou cor
de sangue escuro, coroada pela rebrilhante orla solar, pareceu se curvar para
perto das orelhas e da barba azul do Mar. Como se fossem dois Diabos invencíveis,
a Nuvem e o Mar trocaram seus segredos indizíveis. As asas da Bicha
Bruzacã se agitaram, causando um repelão nas águas e
um estremeço na terra.
Línguas de fogo e estalos de corisco vadiaram por todo canto. As árvores
mais próximas da praia, crestaram-se imediatamente, abrasadas pelo
vento incendiado, parido pelas asas da Bicha e por suas ventas, fole de cem
brasas! Fundiam-se pedras. E dizem, mesmo, que os meninos que tiveram a pouca
sorte de nascer naquele momento, nasceram todos cegos, com os olhos queimados
pela ventania de fogo demoníaco. Aí, agitando como remos as
patas dianteiras e usando como velas suas asas de morcego, cobertas de pedrarias,
Bruzacã nadou para a praia, emergindo ali, por inteiro, sua figura
gigantesca. Pousando os cascos na areia, rompeu pelo bosque de cajueiros e
correu para o Sertão num galope estralejado de animal feroz, sumindo-se
no horizonte, que fumegava. Disse o Vaqueiro que, à medida que a Bicha
se sumia na terra, ia sofrendo uma transformação: sua dupla
natureza demoníaca ia perdendo o que tinha mais de monstro-marinho
e assumindo outras partes mais felinosertanejas, como garras e corpo de Onça,
ou Cachorra-Cantadeira. O Vaqueiro, cujos olhos tinham sido miraculosamente
preservados, desceu então o monte e olhou para o lugar onde ela se
sumira. A passagem do Monstro tinha aberto, a fogo, na Mata um rombo enorme,
um túnel fumegante que dava para passar dois trens! Era como se tivesse
passado um Cometa: o chão estava raso e coberto de cinzas. Mesmo mais
para longe, numa distância enorme, as árvores estavam com as
folhas crestadas e secas, como se tivessem sofrido dois anos de estio. As
reses e animais de sua tropa estavam todos no chão, mortos, queimados,
erguendo para o céu as patas reviradas! Abalado por tudo o que visageara,
pesaroso pela perda do rebanho, mas ainda dando graças a Deus por ter
escapado com vida, Manuel Inácio dali mesmo voltou. Agora, para os
lados do Mar, tudo se acalmara. As águas, azuis aqui, verdes ali, violetas
acolá, brilhavam de novo, serenas, limpas e afiançáveis.
Sob o Sol de ouro e cobre, pareciam um Espelho azul e prata, um Espelho que
só mostrava sua natureza de Tigre perto dos rochedos castanhos, que
ele mordia e tentava despedaçar com suas garras. Na própria
Terra, os mugidos tinham cessado: ouvia-se, agora, apenas um arfar incansável,
que era, talvez, o sopro altivo, triste e corajoso dos humanos, debatendo-se,
no Mundo, como insinuava Vicente de Carvalho, com nosso Destino cego e indecifrável.
Vossa Excelência, Senhor Corregedor, me pergunta, então, como
é o Diabo, se eu acredito nele, e como é que ele aparece…
Não posso dizer com exatidão! Nessas horas de visagem, o sol
costuma deslumbrar, encandear e cegar, fazendo o Mundo tremer em nossa vista!
Ouve-se, roncando, a ventania abrasada do mundo, e a gente fica sem saber
se é mesmo o vento, soprando em lufadas ardentes que nos crestam a
pele e nos racham os lábios, ou se é a fornalha do Inferno que,
fendendo o chão, se escancarou ali perto, dando saída à
secura e à violência do fogo, assim como à tribo malfazeja
dos Diabos que invadem o mundo, contribuindo para seu concerto e desconcerto
com seus urros, pios e guinchos de Danados! – Quer dizer que, para o senhor,
o Mar e o Sertão são as diabólicas? – É verdade,
Senhor Corregedor, mas não são eles somente n§o, é
o Mundo todo! E lhe digo mais: por mais temerosa que seja a Bicha Bruzacã
em forma de monstro-marinho ou de Onça diçoada, alada e cantadeira
das fumas sertanejas, aí pelo menos a ainda tem uma forma epopéica!
Garanto ao senhor: eu tenho quito mais medo e muito mais horror ao Diabo das
cidades, que cara de funcionário aposentado, que anda às vezes
de bicicleta, vestido de preto, com chapéu-coco, com um ar esquerdo
e maldoso, em pleno sol, sem suar nada, absolutamente nada, o que, como todo
mundo sabe, é coisa do Danado! Mas, felizmente, se o Mundo essa face
diabólica, possui também a divina. Mostrei ao r, como diz clemente
s , “a face esburacada e demoníaca do os, no seu apecto marinho
e no seu aspecto sertanejo”. Mas, lado dela, existe a outra, a angélica
e paradisíaca. Aliás, não eu, simples charadista e Acadêmico
sertanejo quem diz isso , é gente consagrada e importante, como o Cantador
e poeta ydes da Cunha. Euclydes da Cunha é, também, meu Precursor,
o José de Alencar: é recusado, ao mesmo tempo, pela Direita
pela Esquerda, e ainda foi membro da Academia Brasileira de ras. Com essa
autoridade que o torna indiscutível ele nos nstra no seu tratado Os
Sertões que o nosso Sertão tem uma de Inferno e Paraíso.
Acontece, porém, que Euclydes da , por mais genial que fosse, era apenas
um precursor meu: era Astrólogo e Decifrador, nem era o Gênio
da Raça Brasi, de modo que não sabia que, na verdade, a face
do Sertão tripla, e não dupla! É o Inferno, o Purgatório
e o Paraíso; parte macha, uma macha-e-fêmea e outra somente fêmea
aturnal, a Solar e a Lunar. É por isso que, depois de olhar a pada
infernal, com a Furna de Bruzacã, com a ventania do erro, com os Gaviões
bicando os olhos dos borregos e cabritos, assa Excelência, se quiser
entender, bem mesmo, tudo isso, e limpar os olhos e ver, no tempo das águas,
num ano de boas chuvas, já em junho, quando as trovoadas passaram e
os tios se limparam do turvo das enchentes, uma água rasa e clara 4eslizando,
como prata, sobre a areia incrustada de cristais relutes. E ainda: o fulgor
das malacachetas; os seixos amarelos, ‘k*ncos e vermelhos das encostas e ladeiras;
os poços dos rios, já meio secos, cuja água se retém,
entretanto, por entre grandes pedras, e’ que nos oferecem, quando estamos
caçando e com sede, o desCnso, a sombra, a carícia do vento
tornado suave pela proximidade
ENCARNAÇÃO DA BICHA BRUZACÃ. PELA BALEIA QUE TAPARICA
COLOCOU EMBAIXO, VE-SE A ENORME SUPERIORIDADE ATE DOS MONSTROS LATINO-AMERICANOS
SOBRE OS BESTISSIMOS MONSTRINHOS ESTRANGEIROS QUE APARECEM EM OUTRAS EPOPÉIAS
– SE BEM QUE O CACHALOTE AÍ REPRESENTADO SEJA BRASILEIRO, POIS FOI
COPIADO POR TAPARICA DO RETRATO DE UM DESSES BICHOS, QUE SÃO FREQUENTÍSSIMOS,
AQUI NA PARAÍBA, NA PRAIA DA COSTINHA.
da água; e a floração das jitiranas de campânulas
roxas ou azuis; das marias-brancas puras e imaculadas, parecidas com o jasmim-cambraia;
dos pingos vermelhos dos feijões-de-pombo, que aparecem comumente no
descampado, mas que eu posso imaginar sob a fronde umbrosa dos angicos e baraúnas,
ou mesmo sob os pés de pau-d’arco-amarelo, misturando heráldicamente
seu vermelho de goles ao amarelo de ouro que chove de cima sobre nós,
cobrindo nosso rosto e nossos cabelos. Entendeu agora, Excelência? Segundo
eu li num artigo do Almanaque Charadístico, os antigos possuíam
uma “Fonte do Cavalo”, na qual os Poetas bebiam sua água
e sua inspiração. Homero, se tivesse existido, teria bebido
nela. Pois esta tripla face do Sertão, que lhe descrevi, com sua Chapada
diabólica, seu Purgatório de chamas e com sua Fronde paradisíaca
de riachos, roçados, açudes e pomares, é a minha particular,
única e régia “Fonte do Cavalo Castanho”: é
neste Sol que queimo meu sangue, é nesta Agua que embebo meu Sol, esta
é a Fonte do cavalo sertanejo que galopa no meu riso e no meu sangue,
o sangue da terra de onde sai tudo o que sonho, como Visionário, Astrólogo
e Profeta sertanejo que sou! – Meu caro Dom Pedro Dinis Quaderna, observei
que o senhor desfiou alguns trechos do que me disse assim meio enfiado, como
quem já sabe tudo decorado! – É verdade, Excelência! O
fato é que, apesar do cotoco, eu tenho conseguido não escrever
definitivamente mas pelo menos arrumar algumas anotações para
a Epopéia e essas que o senhor notou foram algumas delas! – Mas o senhor
falou em prosa! – Pretendo versificar tudo um dia, seguindo o exemplo das
melhores autoridades brasileiras sobre o assunto.
– Está bem, mas, como já lhe disse, o que me interessa mais
é o inquérito e os acontecimentos ligados ao rapaz do cavalo
branco. Na sua opinião, aquilo tudo que sucedeu a ele no dia I de junho
de 1935 foi um acontecimento saturnal, solar ou lunar? Infernal, do purgatório
ou paradisíaco? – As três coisas, Senhor Corregedor! É
por isso que, na minha Epopéia, quando, lá um dia, o senhor
for lê-Ia, olhando com cuidado encontrará um Inferno, um Purgatório
e um Paraíso – o Pai, o Diabo, o Filho, a Mulher, e o Espírito
Santo – Saturno, o Sol e a Lua. É por isso que eu lhe contava como,
naquele dia, além dos bichos visíveis que vinham nas carretas,
a Estrada estava povoada de bichos invisíveis – Arcanjos alvos e reluzentes,
como um bando de Garças ou Cisnes de fogo, e Demônios escuros
e peludos como morcegos gigantescos, com corpo de Onça, encarnações
invisíveis de Bruzacã que enchiam o Tabuleiro seco e Pedregoso
com os ladridos diabólicos e os estalos e ridimunhos de suas asas sangrentas.
Talvez fossem, mesmo, as Espadas de fogo dos Anjos e os ladridos dos Demônios
– e não o Sol – que, retinindo nas pedras como uns martelos, estivessem
desferindo aquelas lascas de fogo cintilante, capazes de encandear e cegar
a vista. É possível, também, segundo vive dizendo Clemente
em seus arrebatamentos de Filósofo sertanejo, que o próprio
Mundo, diante do qual se encontrava o Donzel naquele instante, “fosse
um animal monstruoso, uma Onça-Parda enigmática, que nós
tivéssemos de capturar e domar, sob pena de morte”. Não
sei, Senhor Corregedor! O que eu sei é que, como diz o ditado, “quem
tem medo de Onça não se mete a andar no mato”. Agora, aqui,
como Acusado, evoco aquele Donzel de linhagem sertaneja, cuja aparição
desencadeou toda aquela história. E, sem eu querer, meu sangue repete
aqueles versos do genial vate Antônio de Castro Alves, quando cantou
em sua Viola de prata, cravejada de negro, um “joão sem direção”,
uma espécie de judeu-errante brasileiro e sertanejo, que não
era senão o meu Donzel do cavalo branco, dizendo o poeta em seu cantar-baiano:
– Nesse momento, Senhor Corregedor, chegavam os Cavaleiros a um alto, no topo
de uma ladeira da Estrada, lugar de onde se descortinam os primeiros telhados
e a torre da Igreja Nova da nossa Vila.
– Um momento, Dom Pedro Dinis Quaderna! – interrompeu o juiz. – É
nas proximidades desse – alto que existe um lajedo no qual o senhor costuma
subir, ninguém sabe direito pra quê? Ah, nobres Senhores e belas
Damas de peito brando! Estremeci de terror, ante a pergunta e o tom em que
fora formulada! Mas como vi que ele já estava pelo menos informado
de alguma coisa a esse respeito, adotei novamente a atitude de “ser sincero
para mostrar inteira boa-fé”. Disse: – É exatamente aí,
Senhor Corregedor! E como não queria me deter no assuntó, voltei
imediatamente à narração: – Naquele lugar, o Doutor do
cavalo preto, o Doutor Pedro Gouveia da Câmara Pereira Monteiro, deu
uma ordem rápida, e a cavalgada apressou o passo. Os cavalos, animais
de Cigano, .~ados com rigor, não entraram propriamente no trote, no
chouto, calvez para não quebrar a dignidade do cortejo. Apenas apressaram
a pisada do “meio”, numa quase “esquipação”,
e foi assim, nesse cesso régio, que embocaram de Vila adentro. Como
todo mundo ativesse reunido na Praça para as Cavalhadas, só
mesmo os maiores madraços e os mais danados moleques de rua foi que
avistaram, de início, a “desfilada moura”, como, depois,
a batizou $amuei. Mas foi, mesmo, para a Praça que ela se dirigiu,
já então acompanhada por todos os bêbados, doidos, mendigos
e moleques que estavam por ali, nas beiras das calçadas da periferia.
De ,peado que, para usar uma expressão do meu Mestre e precursor, .Dom
José de Alencar, quando as pessoas gradas avistaram a I valgada de
ciganos, foi já seguida da “república de todos os gtiopins
da Vila”. Posso então, agora, tirar todo o pessoal da Praça
daquela situação incômoda e tensa em que o deixei. Acho
que nem mesmo José de Alencar seria capaz de descrever a Wofundeza
da impressão causada por aquele “comboio de malammbrados”,
quando, diante das autoridades, dos Fidalgos, dos burgueses e do Povo, desembocaram
os Cavaleiros e as carretas ca animais enjaulados, com as bandeiras desfraldadas
e o FradeCAngaceiro à frente. Parando todo mundo no centro da Praça,
o Donzel do cavalo branco, sempre com uma expressão ainda sanhosa e
meio alheada de tudo, tirou do cinturão uma corneta de caça,
U as buzina feita de chifre e cravejada de prata, e desferiu nela Um toque
surdo, grave e plangente. Como se aquilo fosse um sinal combinado, os homens
que vinham com os Gaviões do cortejo tiraram as máscaras de
couro e os protetores das garras dos pássaros e soltaram-nos, desapertando
as 1_.-ha. que os Prendiam. Os Gaviões partiram para o alto, como flechas,
dando ‘pios agudos e selvagens, que pareciam tinidos de metal, e foram se
distanciando em círculos cada vez mais altos, até que se perderam
Aos ares. Ao mesmo tempo, alguns Cavaleiros ciganos desmontavam com grande
rapidez é abriam as jaulas, libertando no meio da “Não
sei quem sou. A mim, dentro do Peito, um Sol-terrível bebe o Sangue
e a vida! Príncipe-Errante que, no fim da Estrada, tem uma Esfinge,
numa Cruz erguida! Sou o Pau-d’Arco que, florado em Ouro, a Morte e o Cetro
na Coroa encerra: Vivo – que vaga sobre o Chão da morte, Morto – entre
os vivos, a vagar na Terra!”
FOLHETO LVII
Invasão e Tomada da Vila
Praça os Veados, os Pavões, as Garças, as Cobras e,
sobretudo, as Onças – toda a fauna selvagem que vinha nas carretas.
Foi um verdadeiro deus-nos-acuda, Senhor Corregedor! O Comendador Basílio
Monteiro dizia-me depois, na redação da Gazeta de Taperoá,
que “quase tivera um delíquio”, comentando ainda, com uma
frase habitual dele, que “uma cena daquelas só num país
desgraçado, como o Brasil, porque num país organizado, na Alemanha
ou nos Estados Unidos, seria rigorosamente proibida pelo Governo”. A
intelectual Dona Carmem Gutierrez Torres Martins, mãe aqui da nossa
Margarida, afirmava, por sua vez, que descera do palanque sem saber como e,
quando dera acordo de si, estava no beco da Igreja Nova, onde lhe acontecera
estranho caso com um cachorro esquisito que ainda hoje ninguém sabe
se também tinha vindo nas carretas ou não. O Sargento-Delegado
e os outros Soldados do nosso invicto e denodado Batalhão de Segurança
do Estado da Paraíba escafederam-se para São João do
Cariri, deixando a cidade “nas mãos daqueles salteadores que tinham
invadido a rua, ninguém sabe com que intuitos sinistros”, conforme
dizia o telegrama enviado, logo à noite, pelo Prefeito para o Governador.
O Doutor Samuel e o Professor Clemente, sem se deterem a examinar as implicações
poético-monárquicas ou comuno-filosóficas do acontecimento,
sumiram-se sem que ninguém visse como. Aliás, esclareço
que `não por covardia, porque os mais corajosos foram os que correram
logo: os mais frouxos ficaram pregados no chão, imobilizados pelo terror,
só encontrando forças para correr depois, quando o pavor aumentou
tanto que venceu a paralisação que tinha causado antes. O que
eu achei mais estranho porém, Senhor Corregedor, foi que os Ciganos
também correram. Esporeando os cavalos, puseram-se a salvo, acampando
depois, quando já passara a confusão e todos os animais tinham
fugido para a Catinga, naquele mesmo Tabuleiro que fica fora da rua e perto
do nosso aprazível “Cemitério da Consolação”.
Quanto aos simples assistentes e ao pessoal da Cavalhada, inclusive meus irmãos,
esse debandou todo, assim como debandaram também os dois ilustres varões
que nos governavam. De modo que, quando o pandemônio cessou, sem que
tivesse havido nenhum acidente sério, só se mantinham na Praça
o Doutor, o Frade, o rapaz do cavalo branco e Dom Eusébio Monturo.
FOLHETO LVIII
A Aventura da Onça Mijadeira
– Esse foi um ato, aliás, Senhor Corregedor, que me levou a admirar
cada vez mais a coragem nunca desmentida daquele meu grande amigo, “O
Paladino do Povo”, o único verdadeiro Paladino que conheci, sempre
pronto a arriscar sua preciosa vida por seus ideais e pela justiça!
As pessoas que não têm conhecimento das coisas, viviam falando
dele, dizendo que Eusébio tinha sido aposentado do seu lugar de funcionário
público “depois de uma história de desfalque, na qual ele
só não tinha sido preso em atenção a seu honrado
e ilustre irmão, o Comendador Basílio Monteiro, e também
porque este Brasil é um país sem jeito”. Diziam que Dom
Eusébio era um mentiroso terrível, “um infame maldizente,
falcatrueiro e sem escrúpulos, capaz de jogar lama sobre as mais ilibadas
reputações da rua”. Mas eu, que tenho, cá, minhas
opiniões, respondia sempre que Dom Eusébio tinha alguns defeitos,
como todos nós, mas nenhum dos defeitos dele era pequeno, vulgar e
mesquinho: eram todos grandes, generosos e avultados. Suas mentiras eram enormes,
heróicas, urdidas com típica coragem. Até o desfalque
que ele dera, não tinha sido, absolutamente, um desses desfalques mesquinhos,
sujos e miúdos de funcionário público, não: fora
logo um desfalque para valer, um alcance de empenar, um desfalque à
altura da grande alma do nosso Paladino do Povo. Seguindo Samuel, eu explicava
que “uma coisa é uma alma pura e outra é uma alma grande”:
Eusébio não seria, talvez, uma alma pura, mas era, sem dúvida,
uma alma cheia de grandeza. E que era homem corajoso, isso não há
mais quem discuta, mesmo entre as pessoas que não gostavam dele, na
rua. O que acontecia é que ele era um pouco azarado em seus acessos
de coragem. Em seus momentos de mau humor, Eusébio se virava por cima
de mim, por causa de sua má sorte. Chamava-me “o Covarde Sortudo”,
e apelidava-se a si próprio de “o Valente Azarado”, acrescentando
que, enquanto eu “tinha sorte na covardia”, ele era “azarado
na coragem”. Se ele tinha razão no que se referia a mim, não
sei, mas, em relação a ele, era verdade. Naquele dia, por exemplo,
como eu vinha dizendo, foi Dom Eusébio Monturo a única pessoa
que teve coragem de ficar na Praça. Ao se ver sozinho, “cercado
só de feras e de fujões acovardados”, como ele me contava
depois, gritou, com voz desafiadora, como era de seu costume nas ocasiões
de perigo: – “Covardes! Correndo e des moralizando o Povo Sertanejo!
Mas o Paladino do Povo não corre não! Onélia, traz o
meu rifle!” – Anote aí, Dona Margarida, que, segundo se depreende
dessas palavras, Dom Eusébio e seus amigos tinham, todos, armas em
casa, isso apesar de todas as batidas que o inolvidável Presidente
João Pessoa mandou realizar para apreender as armas dos Sertanejos
em 1930! Para aliviar o fato, ponderei: – Senhor Corregedor, é verdade
que Dom Eusébio Monturo tinha um rifle, mas isso absolutamente não
ameaçava a segurança do Governo da Paraíba, porque nunca
lhe sucedia estar ele com a arma, nos momentos de necessidade. Gritava então
pela mulher, para que ela o trouxesse. Mas isso também não tinha
resultado, porque Dona Onélia era surda como uma porta e nunca atendeu
a essas ordens em momento nenhum. Isso chegou a tal ponto, que a frase “Onélia,
traz o meu rifle” ficou proverbial, na rua, para os momentos de brabeza
sem conseqüências. Pois bem: naquele dia, brabo que só uma
Capota choca, Dom Eusébio Monturo ficou no meio da Praça, feito
um pião doido ou uma cobra assanhada, virando-se para um lado e para
o outro, e gritando: “Como é? Todos correm, é? Pois apareça
uma Onça de coragem, para topar comigo! ” Infelizmente, Senhor
Corregedor, as Onças, perturbadas, também, pelo barulho, tratavam
era de correr para os Tabuleiros e Catingas, procurando lugares onde houvesse
furnas, pedras e mato para elas se esconderem, de maneira que não aparecia
nenhuma, para topar com Eusébio. Ele insistiu: “E possível
que não apareça uma Onça para eu me vingar desta tentativa
de desmoralização? Não posso ficar desmoralizado de jeito
nenhum! Era o que faltava, esse comboio de Onças, correndo pra cima
e pra baixo no meio da rua, sem licença da Prefeitura! Apareça
uma Onça, que eu mostro a ela quantos nós existem do focinho
ao fiofó! ” Nesse momento, Senhor Corregedor, uma velhinha, Dona
Nanu, que morava na Praça, gritou para Eusébio, de dentro da
casa dela: “Compadre Eusébio, me acuda, que aqui tem uma Onça!
Se o que você quer é Onça pra topar, venha, que aqui tem
uma, debaixo da minha cama!” Como uma fúria, o Paladino do Povo
correu para lá e entrou na casa. Sem atender aos pedidos de que não
se arriscasse, feitos por pessoas que tinham se acolhido à casa de
Dona Nanu exatamente para fugir das Onças e agora se viam, espavoridas,
encurraladas com uma, Dom Eusébio Monturo entrou na casa da comadre,
parou no limiar do quarto de dormir dela e disse, com ar solene e majestoso:
“Onde está esse animal felino, cruel e predatório?”
Dona Nanu explicou, de longe: “Está ali, debaixo da minha cama,
por trás do penico-cuba! Mas o senhor está desarmado, Compadre
Eusébio? Assim, não vá não! Não vá
não, que é morte certa!” Aí foi que Eusébio
ficou brabo! Gritou: “Não vou, minha Comadre? Que não vou
é esse? Quem é que não vai? A senhora me desculpe, mas
eu vou, vou demais! Não posso ficar desmoralizado de jeito nenhum!
Já imaginou? Se eu não for, essas Onças vão ficar,
dagora em diante, no maior dos atrevimentos! Que é que essas pestes
estão pensando, hein? Que podem entrar na minha Vila, na Vila do Paladino
do Povo, assim à vontade, entrando e saindo quando querem e até
tendo o atrevimento de se meterem debaixo das camas de comadres minhas? Ah,
não, estão muito enganadas! Taperoá não é
cu-de-mãe-joana não!” E então, Senhor Corregedor,
magnífico de coragem e paladinice, Dom Eusébio Monturo entrou
no quarto, abaixou-se junto da cama, pegou a Onça pelo rabo e começou
a puxá-la para fora. As pessoas que estavam na casa de Dona Nanu, vendo
aproximar-se a conclusão heróica daquela aventura extraordinária
e notando, por outro lado, que os outros bichos já tinham desertado
da Praça, acompanharam Dom Eusébio, que já transpusera
a porta da rua. A Praça, também, pouco a pouco, se reenchia
com os primeiros curiosos que iam voltando; de modo que foi diante desse pessoal
sarapantado que Dom Eusébio Monturo apareceu triunfante, arrastando
a Onça pelo rabo, como mais um troféu de sua nunca desmentida
coragem. Infelizmente, porém, Senhor Corregedor, aí é
que vem o azar de meu querido amigo. Pelo que se esclareceu depois, parece
que todas as Onças que tinham vindo com os Ciganos eram ferozes. Todas,
menos aquela, que era uma velha Onça de circo, decadente, fêmea
e desdentada, mantida pelos Ciganos como chamariz de feira. Tinha sido, para
o Doutor Pedro Gouveia, o ponto de partida para aquela idéia genial
da entrada na Vila. Na hora do barulho, por engano, fora solta com os bichos
selvagens. De modo que, quando Dom Eusébio Monturo começou a
puxá-la para a Praça, diante do Povo embasbascado, a Onça
começou a ganir de terror, com uns miados queixosos que pareciam o
choro de um menino novo. E, o que foi a parte pior, mijou-se e cagou-se toda!
Pois bem, Senhor Corregedor: a humanidade é tão ruim que, no
mesmo instante, exatamente aquelas pessoas que estavam mais apavoradas e que,
caso a Onça fosse mesmo feroz como pensavam, teriam sido salvas pelo
gesto heróico de Dom Eusébio, foram as primeiras a cair na gargalhada.
Mal o meu amigo, com um gesto sobranceiro e desdenhoso, largava o rabo da
Onça, saltando também de lado para não ser atingido pelos
esguichos de mijo e por algum perdido bolotinho de merda, um engraçado
gritou: “A Onça mijou-se e cagou-se! Dom Eusébio Monturo
é tão brabo que faz Onça se mijar!” Outro, levando
a idéia adiante e aproveitando o fato do Paladino se encontrar de costas,
gritou: “Eusébio Mijurético! ” Dom Eusébio,furibundo,
voltou-se e gritou: “Apareça um sacana, aí, que seja homem,
para dizer, de frente, o que disseram comigo de costas!” Imediatamente,
Senhor Corregedor, todo mundo se amoitou. Ficaram calados, mudos e acovardados.
Dom Eusébio provocou-os de novo: “Estão vendo? Estão
vendo que são é uns covardes, mesmo? Pois a covardes eu dou
é o meu desprezo!” E, ao dizer isso, saiu. Imediatamente o coro
dos desocupados começou a acompanhá-lo em surriada: “Eusébio
Mijurético! Purgante de Onça! Cagão de Maracajá!
” Ainda o acompanharam por alguns instantes. Mas logo, vendo que não
obtinham mais a atenção dele, mesmo os mais encarniçados
deixavam Dom Eusébio Monturo em paz e voltavam à Praça,
curiosos de saberem quem eram aqueles três estranhos Cavaleiros que
tinham chegado e o que pretendiam, afinal, em nossa Vila.
FOLHETO LIX
O Grande Pretendente
– Ao voltarem, porém, aperceberam-se de que os três já
tinham se sumido da Praça. Porque, Senhor Corregedor, a maior sensação
daquela tarde memorável ainda estava para acontecer. Nem foi, propriamente,
a entrada sensacional dos Cavaleiros, nem a libertação dos bichos,
nem a aventura, azarada mas paladínica, de Dom Eusébio Monturo.
Foi que o Frade, o rapaz do cavalo branco e o Doutor, tendo se dirigido, assim
que a Praça se esvaziou, para o cartório de Seu Belo Gusmão,
inteiraram-se, lá, de que essa modelar repartição já
fechara suas portas desde o meio-dia. Encaminharam-se, então, à
casa do Juiz da nossa Comarca, o Licenciado Doutor Manuel Viana Paes. E, esbarrando
os cavalos à sua porta, interpelaram o Magistrado pela voz do Doutor:
“Temos a honra de falar ao Doutor Manuel Viana Paes, Excelentíssimo
Senhor juiz de Direito da Comarca de Taperoá?” De cima de um armário
onde tinha se encarapitado com medo, o juiz respondeu com voz insegura: “Sou
o Doutor Manuel Viana, mas se Vossa Senhoria ainda tem alguma Onça
aí, peço-lhe que me evite a companhia dela! É contra
meus princípios ser devorado por felinos!” Esclareço a
Vossa Excelência, Senhor Corregedor, que, apesar de formado e esclarecido,
o Doutor Manuel Viana Paes é um sertanejo, da Ribeira do Sertão
do Rio do Peixe, de modo que não deixava de acreditar nuns certos rumores
que correm, por aqui, a respeito de quem é comido por uma Onça
– ou devorado por um jaguar, para ser mais tapirista e epopéico. Segundo
certos adeptos do Catolicismo sertanejo, quem tem a desgraça de ser
comido por uma Onça, não ressuscita no último dia não,
quem ressuscita é a Onça! Por isso, meio cismado, o Doutor Viana,
sempre de cima do armário, indagou ainda, cauteloso: “Quem é
o senhor? Algum cigano? O Rei dos Ciganos?” O Doutor retrucou: “Qual
cigano nem Rei nenhum, Senhor juiz! Sou o Doutor Pedro Gouveia da Câmara
Pereira Monteiro. Bacharel em Direito e Advogado! Vim aqui para defender os
direitos espoliados do meu constituinte aqui presente, porque este mancebo
é, ninguém mais, ninguém menos, do que Sinésio
Garcia-Barretto, filho do fazendeiro Pedro Sebastião Garcia-Barretto,
assassinado nesta Comarca em 1930! Este é o rapaz que foi raptado no
mesmo dia da morte de seu Pai, sumindo-se daqui até o dia de. hoje,
quando reaparece para reivindicar seus direitos a seu nome e à sua
herança!” – Senhor Corregedor, quando o Doutor Pedro Gouveia pronunciou
essa frase tremenda, foi como se um corisco de pedralispe tivesse caído
aos pés do Juiz e dentro da Vila, por onde a notícia logo se
espalhou como um incêndio, causando sensação maior do
que a libertação das Onças. “Então”,
dizia o Povo, terrivelmente abalado, “esse rapaz do cavalo branco é
aquele mesmo Sinésio Garcia-Barretto, raptado em 1930, morto em 1932
e ressuscitado agora, milagrosamente, nesta Véspera de Pentecostes
de 1935!” Lembro a Vossa Excelência que estávamos, então,
naqueles dias de grande agitação política que antecederam
a Revolução Comunista de 1935. 0 Povo acreditara, sempre, que
Sinésio retornaria a qualquer momento para chefiar uma vaga Revolução
Sertaneja que ninguém sabia realmente o que era. Assim não admira
que estes tenham sido os acontecimentos que terminaram me obrigando a comparecer
como acusado neste inquérito aberto agora por Vossa Excelência.
De qualquer modo, estou de consciência tranqüila e, de certo modo,
não tenho de que me queixar, porque, um dia, os acontecimentos daquele
dia memorável, abrirão caminho à minha modesta pessoa
para que eu me torne o Gênio da Raça Brasileira! – O senhor pretende
ser o Gênio da Raça Brasileira? – indagou, irônico, o Corregedor.
– De fato, mesmo, já o sou, mas pretendo sê-lo também
de direito, oficialmente declarado pela Academia Brasileira de Letras! Se
eu for condenado neste Processo, mandarei tirar duas cópias de meus
depoimentos, mandando uma para o Supremo Tribunal, como Apelação,
e outra para a Academia, a fim de que os Imortais me dêem, oficialmente,
o título, nem que seja por levar em conta que eu criei um gênero
literário novo, o “Romance heróico-brasileiro, ibero-aventureiro,
criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa
e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertaneja”!
– Dom Pedro Dinis Quaderna, nem eu, nem a nossa Dona Margarida, aqui presente,
queremos desanimá-lo, não é, Dona Margarida? Mas o senhor
acha, mesmo, que tem condições para que á Academia Brasileira
lhe outorgue, oficialmente, esse título? – Ah, tenho, Senhor Corregedor!
Primeiro, porque sou o mais autêntico representante da nossa Raça!
Samuel é somente godo-ibérico, como diz ele. Clemente é
apenas negro-tapuia. Ora, eles dois, num dia em que estavam examinando minha
genealogia, chegaram à conclusão de que eu tinha tudo quanto
era de sangue, inclusive umas gotas de sangue negro e de sangue cigano! Vossa
Excelência me provou, ainda agora, que eu tenho sangue judaico, como
Paraibano de cotoco que sou! Assim, sou o único escritor e Escrivão-Brasileiro
a ter integralmente correndo em suas veias o sangue árabe, godo, negro,
judeu, malgaxe, suevo, berbere, fenício, latino, ibérico, cartaginês,
troiano e cário-tapuia da Raça do Brasil! Finalmente, tendo
estudado cuidadosamente, com auxílio do Almanaque Charadístico
e das Postilas de Retórica, a receita das Obras de gênio, cheguei
à conclusão de que a única história realmente
indecifrável e completa, a única que possui todos os ingredientes
de Obra da Raça, é a terrível desaventura que aconteceu
a Sinésio, o Alumioso. Depois de pronto e devidamente versado, o meu
será portanto, no mundo, o único Romance-Acastelado, cangaceiroestradício
e cavalariano-bandeiroso escrito por um Poeta ao mesmo tempo de pacto, de
memória, de estro, de sangue, de ciência e de planeta. Ora, Sinésio,
morto e desaparecido da maneira que lhe disse, mas também ressuscitado
naquele dia, nas Catingas e estradas sertanejas, foi uma espécie de
“João-sem-Direção”, personagem guerreiro, principesco
e errante do Cantador nordestino Natanael de Lima. Por isso, ninguém
pode realmente contar a história de Sinésio, ninguém
sabe qual foi, mesmo, sua verdadeira direção e seu verdadeiro
destino, de modo que ninguém, exceto eu, pode contá-la e ninguém,
portanto, exceto eu, pode vir a ser o verdadeiro Gênio da Raça
do Brasil! – Muito bem, acredito! O senhor disse, aí, que somente o
senhor é quem pode contar a história: registro e aceito essa
declaração! Foi exatamente esse, aliás, o motivo que
me levou a intimálo! O senhor portanto, Dom Pedro Dinis Quaderna, vai
me contar essa história tintim por tintim! Vamos voltar, então,
ao inquérito e aos acontecimentos daquele dia 1.0 de Junho de 1935!
– Vossa Excelência manda! Lá vai tempo! – falei, para disfarçar
meu terror, que aumentava cada vez mais. E continuei:
FOLHETO LX
A Furna Misteriosa – Como eu vinha dizendo, estávamos às vésperas
da Revolução Comunista. de 1935. Ora, Sinésio concentrava
em torno dele, durante todos aqueles anos, as esperanças de justiça
da ralé sertaneja, como o senhor chamou há pouco. O Povo nunca
perdera a fé na sua volta, quando ele, ressurreto, realizaria a Restauração,
ou instauração de não sei que Reino, um Reino sertanejo
no qual os proprietários seriam devorados por dragões e todos
os Pobres, aleijados, cegos, infelizes e doentes ficariam de repente poderosos,
perfeitos, venturosos, belos e imortais. Por isso, naquele Sábado,
com a chegada epopéica do rapaz do cavalo branco, as duas idéias
logo se juntavam num boato só. Sinésio viera para instaurar
o Reino, e a guarda de Ciganos que o acompanhava não era senão
a guarda-avançada de uma nova Coluna que o Fidalgo e Guerreiro-Brasileiro,
o Capitão Prestes, enviara ao Sertão para rebelá-lo e
subvertê-lo, como já tinha feito em 1926, com a célebre
“Coluna Prestes”! – Anote, Dona Margarida, esse pormenor é
importantíssimo! – disse o Corregedor.
Margarida obedeceu e ele indagou: – É verdade que o Comandante das
tropas revoltadas de Princesa em 1930, Luís do Triângulo, vinha
acompanhando o rapaz do cavalo branco? – É, sim senhor! – Quer dizer
que a Coluna do rapaz do cavalo branco, no fundo, era uma fusão de
remanescentes rebeldes da “Coluna Prestes” e do Exército
daquele caricato “Território Livre de Princesa” que, em 1930,
ousou levantar-se contra o Governo do Presidente João Pessoa, chegando
aos extremos ridículos de proclamar a independência, forjando
hino, bandeira, Constituição, etc.? – Senhor Corregedor, é
difícil dizer isso com segurançá, porque, aqui no Sertão,
depois que esse pessoal sertanejo entra num movimento desses, todo mundo,
depois, troca de nome, para escapar aos inquéritos e denúncias.
Se havia gente da “Coluna Prestes” ou que lutou, contra a “Coluna
Prestes” nas tropas do rapaz do cavalo branco, eu não sei. Agora,
Luís do Triângulo, esse tinha lutado no “Reino de Princesa”
e vinha na Coluna do rapaz do cavalo branco: disso eu tenho certeza, porque
Luís do Triângulo era meu amigo e eu estive com ele naquele mesmo
dia! De um modo ou de outro, essas foram as razões pelas quais as pessoas
mais ricas de Taperoá imediatamente se trancaram em suas casas, apavoradas,
enquanto, pelo contrário, as ruas começavam a fervilhar de novo
com aquela multidão de pobres e pedintes que, pouco antes, esperava
tranqüilamente a Cavalhada. Foi então que sucedeu um acontecimento
ao mesmo tempo inesperado e importantíssimo, um acontecimento que Vossa
Excelência só poderá entender bem depois que eu lhe der
algumas explicações. Eu já disse ao senhor que Dom Pedro
Sebastião, Rei do Cariri, era o parente mais parente que eu tinha,
sendo meu Tio, meu cunhado e meu Padrinho. Meu Pai, que era uma espécie
de agregado, Conselheiro e Astrólogo particular seu, tornou-o para
meu Padrinho de batismo, dando-me, por causa disso, o nome de Pedro – o outro
nome, o Dinis, me veio de Dom Dinis, o Lavrador, Rei de Portugal, de quem
nós, como todos os nordestinos que se prezam, modéstia à
parte descendemos. Ora, com todos estes parentescos, e tendo sido, ainda,
Dom Pedro Sebastião, meu protetor e pai de criação, não
admira que, durante sua vida, eu tenha feito todos os esforços para
aumentar o prestígio e o poder que ele tinha, no Cariri. Disseram ao
senhor que fiz isso com má intenção, mas é mentira!
Modéstia à parte, foi por bondade e devoção quase
filial que eu tive a idéia de aproveitar a religiosidade sertaneja
e meio fanática de meu Padrinho para, fazendo-o desfilar nas Procissões,
descalço, vestido de sacos de estopa e com a cabeça cheia de
cinza, de opa roxa e com cajado de Peregrino à mão, impressionar
o Povo com o espetáculo daquele homem poderoso que, voluntariamente,
se humilhava assim, diante de todos! Fui eu, também, que convenci meu
Padrinho a figurar como Imperador do Divino Espírito Santo, entre Natal
e Reis, quando nós, com nosso “Auto de Guerreiros”, dançávamos
diante dele. Com essas coisas, o Povo Sertanejo, que já considerava
meu Padrinho como seu Chefe espiritual, passaria, como passou, a ver nele
um Rei, que impressionava os Pobres com as roupagens, mantos e Coroas que
eu inventava para ele nessas coroações e cerimônias das
Folias do Divino Espírito Santo! Lá um dia, porém, Senhor
Corregedor, eu comecei a me aperceber de que a imagem de Profeta e Rei que
eu estava, aos poucos, forjando para meu Padrinho – com grande desgosto para
a Aristocracia, os Burgueses e os intelectuais da nossa Vila – era sempre
prejudicada numa parte importante. Para Rei, Dom Pedro Sebastião se
prestava demais, mas faltava-lhe alguma coisa para Profeta. De fato, meu Padrinho
tinha todas as qualidades imperiais de Rei Sertanejo, pois era rico, poderoso;
barbado, enigmático, imprevisível e Cavaleiro. Para Profeta,
era, ainda, maravilhosamente meio doido, meio fanático e piedoso: faltava-lhe,
porém, para que fosse um perfeito e acabado Profeta sertanejo, a condição
de “pobre e perseguido pela justiça, pelo Governo e pela Polícia”.
Esta última parte ainda veio a ser corrigida, se bem que tarde, quando,
em 1929, ele começou a ser hostilizado pelo governo do Presidente João
Pessoa. Mas pobre, isso ele nunca foi. Percebi imediatamente que, ao primeiro
Profeta que aparecesse, meio doido e barbudo como ele, mas ainda por cima
pobre e perseguido pelos poderosos, a posição de Chefe espiritual
conseguida por mim para meu Padrinho com tanto esforço, poderia ser
arrebatada, o que não me interessava de jeito nenhum, porque, sendo
seu sobrinho, minha sorte e minha linhagem monárquica se identificavam
de certo modo com a Monarquia e com a sorte dele! Novamente levado pelo orgulho
eu ia longe demais! Cego, porém, pelas sertanejíssimas divindades
gaviônicas, não me apercebi de nada, e continuei, enredando-me
cada vez mais nas teias da cegueira, do orgulho e do processo: – Lembrei-me
então, Senhor Corregedor, de que, num pé-deserra situado dentro
das terras da “Onça Malhada”, morava, há uma porção
de anos, uma figura estranha, o Velho Nazário Moura, um sujeito que
enviuvara, ficando na companhia de sua única filha, uma moça
chamada Esmeralda Moura, mas conhecida pelo apelido de Dina-Me-Dói.
Depois que sua mulher morrera, o Velho Nazário ficara paralítico
e dera para raizeiro, principalmente nas noites de lua, quando disparatava
e dava para visagear e dizer coisas descabeladas. O Velho Nazário apareceu-me,
logo, como a oportunidade que nós tínhamos de cortar o mal pela
raiz, no que se referia à qualidade de Profeta de meu tio Dom Pedro
Sebastião. Ele era pobre, raizeiro e meio doido. Por outro lado, não
tendo astúcia, nem ambição, nem grandeza, não
poderia, nunca, ameaçar a posição de meu Padrinho. Convenci
então Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto a mandar buscar o
Velho Nazário Moura para a “Casa-Forte da Onça Malhada”.
Daí em diante, cada ano, quando eu editava o nosso apreciado e famoso
Almanaque do Cariri – tradição que vinha de meu Pai – publicava
as Profecias e Eficazes Orações do Profeta Nazário, para
quem edificamos uma casinha, pegada a uma Capela que logo começou a
virar local de peregrinações e consultas para os Sertanejos.
Nas Festas mais importantes, eu não deixava de convencer meu Padrinho
a comparecer a essa Capela. E como o Profeta Nazário, na qualidade
de morador grato, dava a Dom Pedro Sebastião as mostras de um respeito
quase religioso, o prestígio de meu Padrinho se firmou definitivamente
entre o Povo. Chegamos ao ponto de aquela desvantagem inicial se tornar um
atributo profético a mais: o Povo começou a considerar Dom Pedro
Sebastião como uma espécie de divindade superior, terrível
e distante, a quem até os Profetas prestavam tributo e vassalagem!
Pois bem, Senhor Corregedor: naquele dia, exatamente no instante em que o
Doutor Pedro Gouveia comunicava ao juiz que aquele rapaz do cavalo branco
era o mesmo Sinésio Garcia-Barretto, morto em 1932 e ressuscitado agora
daquela maneira abandeirada e cavalariana – naquele mesmo instante o Profeta
Nazário surdiu de um beco, meio deitado e meio sentado, em seu carrinho
de madeira, barbado, paralítico, sujo, esmolambado, fedorento, grisalho,
revirando os olhos e com todos os demais atributos de um verdadeiro Profeta
sertanejo. Vinha empurrado por sua filha Dina, e dando grandes brados para
o Povo. O Doutor Pedro Garcia Gouveia que desmontara do cavalo, entregara
ao juiz Manuel Viana uma procuração, na qual Sinésio
o constituíra Advogado, e uma petição que deveria ser
anexada aos autos do inventário da herança deixada por Dom Pedro
Sebastião. Sinésio e o Frade tinham permanecido montados; e
foi quando o Doutor Pedro voltava para junto deles que o Profeta Nazário,
empurrado em seu carrinho, desembocou do beco defronte da casa do juiz, gritando
assim: “Meu Povo, eu vi! Eu vi a Furna da Onça-Pintada, com a
Onça de Pedra na entrada, e outra Onça, viva, dentro dela! Eu
vi, eu juro que vi! Na entrada da furna estavam as Coisas todas, pintadas
na Pedra: a Onça, o Veado, o Gavião de um lado, e, do outro,
a Traíra, o Bode, a Carneira e as Lamparinas de barro, tudo pintado
no Preto e no Vermelho! E a Onça estava lá, dentro da Furna,
com os olhos de brasa cercada de coriscos amarelos e zelações
azuis, e um bocado de pedras-líspes encarnadas despencando do céu!
Era uma Onça Malhada Cantadeira! Tinha um olho de Pedra-Verde e outro
de Pedra-Encarnada, e, além da cabeça de Canguçu, ela
tinha asas e duas cabeças de Gavião! Tinha pau e caceta de Onça-Macho
e uma carreira de peitos de Bicha-Fêmea no bucho, porque ela era a Onça
sagrada do Macho-e-Fêmea! Cheguei a ver, de perto, os bicos dos peitos
dela, que eram peitos de tarraxa, cada um formado por uma pedra preciosa amarela!
Eu vi, eu tive a Visão! Na testa ela tinha uma Coroa, um Diamante enorme,
cercado por um cordão de Pedras-Verdes e por outro de Pedras-Vermelhas!
As asas dela eram de navalha enferrujada e o Sol brilhava nelas! O rabo era
uma Cobra-Coral, e tanto as pedras dos olhos como as pedras dos peitos tinham
poder e azougue. Por isso, se a gente conseguir pegar essa Onça, a
gente vai ser tudo feliz, rico, bonito, poderoso e imortal, bebendo o sangue
do Sa362 grado e o Sol de aço das navalhas das Asas dela! Ela me dizia:
`Venha, Nazário! Chame o Povo e metam o pé na Estrada, que,
se vocês acharem a minha Furna, vão encontrar o Ouro, a Prata
e os Diamantes! Ganham a Coroa da Pedra Cristalina, e eu, ainda por cima,
faço a felicidade de vocês-!”
FOLHETO LXI
O Caso do Cego Teológico Quando terminei de repetir as palavras do
Profeta Nazário, o Corregedor disse, com evidente má vontade:
– Pelo que o senhor me contou da aparição do tal Bicho demoníaco
na praia do Rio Grande do Norte, vê-se perfeitamente quem foi que meteu
essas idéias e essas palavras na cabeça desse pobre demente
que o senhor não se envergonha de confessar que explorava, aproveitando-se
de sua simplicidade, de sua loucura e do fato de que ele dependia de seu Padrinho!
Vê-se, também, quem, foi que andou metendo na cabeça do
Povo essa história da libertação das onças, no
momento em que o rapaz do cavalo branco tocava a buzina! – Pois se o senhor
duvida de mim, pergunte aí a Margarida! Margarida, não é
verdade que soltaram umas onças aqui, no meio .do Povo, naquele dia?
E não é verdade que Nazário gritou para o pessoal que
tinha tido uma visagem de Onça? – E, Senhor Juiz! – disse Margarida,
mais ‘uma vez a contragosto. – Agora, se ele falou foi desse jeito, não
sei não! Eu, por mim, já ouvi dizer muitas vezes que foi esse
homem, aí, que meteu essas coisas na cabeça de Nazário!
– Está vendo? – falou o Corregedor, ‘vitorioso. – O mais que pode ter
acontecido é que Nazário tenha ficado impressionado com a libertação
das Onças que ele acabara de presenciar, sendo essa a causa dos disparos
que disse no momento! Então o senhor, talvez por estilo régio,
interpretou tudo a seu modo! – Foi essa, também, a opinião de
Clemente, Senhor Corregedor, apesar de que o nosso Filósofo não
deixou de encontrar, logo, um sentido filosófico, etnológico
e subversivo para a visagem de Nazário! Mas o Povo sertanejo, incapaz
dessas sutilezas, começou, logo, foi a ligar a visão da Onça
Cantadeira à missão que, segundo já se espalhava entre
a ralé, Sinésio viria desempenhar na “Guerra do Reino do
Sertão”, missão que, segundo o Povo, tinha, evidentemente,
ligações ocultas e desconhecidas com as Onças que ele
trouxera nas carretas e mandara libertar. Por isso, a agitação,
que já estava grande, começou a fermentar. E viria a crescer
ainda mais com um novo incidente, provocado logo depois da fala do Profeta
Nazário pelo Cego Pedro Adeodato Sobral, aquele mesmo Pedro Cego a
quem Silvestre servira de guia, durante todos aqueles anos da desaparição
de . Sinésio. Naquele dia, sem que ninguém tivesse se apercebido
dele antes, Pedro Cego tinha se introduzido no meio da multidão, de
viola a tiracolo e conduzido por um rapaz coberto de andrajos que, de modo
semelhante a seu patrão, o Cego, conduzia uma rabeca. Os dois vinham
acompanhados por um cachorro sertanejo, magro, arraposado, escorropichado,
amarelo e de grandes orelhas meio-negras, um cachorro que, como soubemos depois,
tinha o nome de “Cangati”. Vossa Excelência, com certeza,
sabe que os cegos sertanejos se agrupam em duas grandes categorias, os insolentes
e os teológicos. Os teológicos são humildes, submissos,
resignados, religiosos e pedem esmola de joelhos, nas calçadas e portas
de igreja, ficando horas o horas ao sol, nessa posição martirizaste
e profundamente humilde, com um ar de sofrimento milenar, capaz de comover
até o coração dos comerciantes. Cantam sextilhas como
esta: “O homem que pensa bem, sabendo se dirigir, vende a Terra é
compra o Céu, faz escada pra subir em cima do chão da Terra,
dando esmola a quem pedir”.
os insolentes, aproximam-se de nós, dão-nos, com a mão
esticada, uma espécie de facada em cima do fígado, e gritam
asperamente: “Me dê uma esmola!” Quando não são
atendidos, dizem os maiores desaforos, arregalam os olhos com o polegar e
o indicador, exibindo as chagas purulentas e vermelhas que destroçaram
seus olhos, e rogam-nos uma terrível praga, desejando que nós
terminemos cegos como eles. Cantam assim: “Que o Diabo lá dos
Infernos seja o Deus que te conheça. Que o Urubu te persiga o que teu
Sangue esmoreça! Que te encontre logo a Morte o cague na tua Sorte
cu da Mula-sem-Cabeça! ” – Pois bem, Senhor Corregedor: havendo
essas duas qualidades de Cego, pode-se dizer que aquele, Pedro Adeodato, pertencia,
ao mesmo tempo, às duas categorias, pois era um cego insolente, sujeito
a acessos teológicos. Cegara já adulto, aos vinte e cinco anos,
mas tinha sido, antes, úm pouco Caçador, um pouco Cangaceiro,
um pouco Cantador, um pouco bêbado e arruaceiro. Naquele sábado,
aparecera, também, em Taperoá, aonde não vinha há
muito tempo. Não fora notado até aquele momento porque entrara
na rua, vindo da Vila do Desterro, pela estrada da Vila do Teixeira, isto
é, exatamente pelo lado contrário ao da estrada de Campina e
de Estaca Zero, e, tendo chegado quando as Cavalhadas iam começar,
o Povo tivera a atenção desviada pela chegada de Sinésio
e das Onças. Agora, porém, ouvindo as palavras do Profeta Nazário,
Pedro Cego foi o primeiro a falar, aproveitando o momento de estupefação
geral, causado pela comunicação da visagem da Onça-Cantadeira:
“‘Eu sei, Nazário, eu sei!’, gritou ele, reconhecendo o Profeta
pela voz. ‘Eu sei onde é a Furna da Onça-Cantadeira! Quando
eu ainda tinha vista e era Caçador, fui muito tempo, caçador
de Onça! Vocês sabem que faca, quando entra em carne de Onça,
fica enganchada no sangue e nas fibras da carne da bicha, não sabem?
É por isso que, em Onça, só se dá uma facada,
porque a carne da bicha tem tanto azougue e se agarra na faca de um jeito,
que não tem força humana que tire ela de volta! Pois bem! Um
dia, numa caçada de Onça, me lembro que me perdi numa serra
cheia de pedras, lá para os lados da Espinhara. Aí, por volta
do meio-dia, me enrolei com uma Onça e a luta foi uma das maiores em
que já me vi metido. Me lembro de ter dado dezessete facadas na barriga
da bicha!”‘ – Oxente! – interrompeu o Corregedor. – E ele não
tinha dito que facada em Onça só se dá uma, porque a
carne engancha a faca? – É verdade, Senhor Corregedor, mas, aqui no
Sertão, é coisa sabida que toda história de Onça
tem sempre um gaguejado, um pedaço mal contado pelo meio! Tanto assim,
que ninguém ligou e Pedro Cego pôde continuar. Ele seguiu contando:
“‘Depois das dezessete facadas e de duas horas de luta, a Onça
começou a afracar, perdendo sangue, e terminou morrendo. Mas o certo
é que, quando a briga acabou, eu estava completamente arriado, sem
saber onde me encontrava. Andei, perdido, vagando por todo esse Sertão
velho, três dias! Pra que lado eu andei? Pr’o lado do Mar? Pr’os lados
do Piancó? Pr’as bandas do Pajeú? Pr’as do Seridó? Não
sei! O que eu sei é que, ao cabo desses três dias, meu Compadre
Nazário, eu me achei dentro de uma Serra cheia de furnas e lajedos.
Pelos sinais que descrevi “Já dela, depois, todo mundo achou que
era a tal da Serra da Pintada! Perdido e com sede, vendo a hora de morrer
por acolá, terminei desembocando, no pino do Sol, defronte uma Furna
esquisita, com uma espécie de pátio na frente, com o chão
de pedra e todo cercado de lajedos. Essas pedras, em roda da Furna, eram todas
pintadas com figuras de gente e de bicho. Me disseram, depois, que aqueles
bichos tinham sido pintados pelos Caboclos, o que eu não sei dizer
se era verdade ou não! Agora, que tinha os bichos pintados, isso tinha,
eu vi com esses olhos que estão cegos e que a terra há de comer!
Era tudo quanto era de bicho, o tudo na maior safadeza! Era Onça comendo
Veado, era Onça fudendo com Onça, era Onça fêmea
sendo fudida por Gavião macho, era Onça macho fudendo Cabocla
fêmea, era Onça fêmea sendo trepada por Veado macho, era
o diabo!’ “`E não tinha uma Onça de pedra na entrada da
Furna não, Compadre Pedro Cego?’, indagou o Profeta Nazário.
“`Não me lembro direito não, Compadre Nazário,
mas era capaz de ter! Eu estava tão perturbado, que sou capaz de ter
visto e não me lembrar direito! Mas, agora que você está
lembrando, eu estou com idéia de ter visto uma história parecida!
Parece que tinha, Compadre Nazário! Tinha, era isso mesmo! Tinha lá,
uma Onça de pedra, com um chifre amolado e envenenado na cabeça
e um par de asas nas costas! Tinha, ora se tinha! E aí, quando eu fui
me chegando pra perto da boca da Furna, comecei a sentir aquela catinga de
Onça que todo caçador conhece o que não engana ninguém!
E que diabo de catinga danada era aquela, que eu fui sentindo, e sentindo,
e fui ficando meio doido, meio afogueado, vendo maretas, e aí comecei
a ver umas faíscas de fogo faiscando pra todo lado, e na mesma hora
eu comecei a ouvir a zoada do Mar e uma musga velha e cega, que parecia tocada
por viola, pife e rabeca e cantada por mulher com boca fechada! E aí
eu olhei pra dentro do escuro da furna, e vi foi dois olhos de fogo olhando
pra mim, e a musga ia tocando, e ia me chamando, e eu sabia que, se entrasse
lá, aquela Onça ia deixar eu fuder ela, e a trepada minha ia
ser tão danada de cachorro da molesta que eu ia morrer e ressuscitar
três vezes, não mais como eu era, mas sim igual à Onça,
ajuntado com ela numa fudida só pelo resto da vida, na trepada mais
comprida e gozosa do mundo, uma trepada que não se acabava mais nunca
e que durava enquanto o Sol e o sol da Onça durasse! E aí, que
diabo de encantação foi aquela, que começaram os estalos
das asas e as faíscas de fogo, e de repente, no meio da minha encantação,
eu comecei a ter medo, e a pensar que a Onça ia era beber meu sangue
e comer minha carne, deixando somente os ossos brancos, debaixo do Sol! Eu
queria enterrar os pés e desabar dali, correndo pra trás, mas
a musga me tonteava, me chamava pra dentro e eu sentia que ia morrer! Minha
sorte foi me lembrar de meu Padrinho Padre Cícero e da Oração
da Pedra Cristalina de Jerusalém, que eu tinha trazido do Juazeiro
e trazia sempre amarrada no pescoço, escrita num papel e enrolando
uma pedra que eu-tinha trazido do chão sagrado da terra do nosso santo
Padre, meu Padrinho! Segurei a pedra na mão direita, e o papel na esquerda,
e fui dizendo a Oração, que, eu sabia decorada! Aí a
musga foi baixando, e meus pés foram ficando menos pesados, até
que ficaram maneiros, maneiros! E eu me afastei uns passos da boca da Furna,
e as coisas foram melhorando, até que eu pude dar as costas para a
Onça, e correr de serra abaixo! Corri como um desadorado, como se tivesse
vinte e quatro cachorros da molesta correndo atrás de mim! Daí
em diante, não sei mais o que foi que aconteceu não! Me lembro
somente de ter topado numa pedra e caído no chão. Pensei que
ia me acabar, foi me dando uma agonia, tive uma oura, fiquei ali, sem dar
acordo de mim, não sei quanto tempo, e o certo é que, quando
acordei, foi com uns Tangerinos que estavam junto de mim, me dando água
misturada com soro de coalhada e garapa de rapadura. Eles tinham me encontrado
perto de uma beira de estrada, a umas vinte léguas do lugar em que
eu tinha me perdido, não sei quantos dias depois! Não houve
jeito d’eu encontrar, depois de acordado, o caminho que tinha seguido, da
Furna até ali, onde acordei. Aí, veio a minha cegueira, e foi
quando tive de deixar de banda tudo quanto foi de Onça, caçada
e tudo o mais! Mas, se essa Furna e essa Onça são importantes
e sagradas como você, Compadre Nazário, acaba de dizer depois
de ter visto elas numa visagem, pode ser que eu, saindo de novo para aquelas
serras brabas da Espinhara, acerte a me perder pelo mesmo caminho: e aí,
com você me ajudando na procura, com a visagem, quem sabe se a gente
não vai bater de novo com os costados na Furna da Onça-Cantadeira?'”
FOLHETO LXII
O Atentado Misterioso – Essas duas falas, Senhor Corregedor, contribuíram
demais para aumentar, no Povo, a impressão causada por aquela sucessão
de acontecimentos extraordinários. Foi isso, talvez, o que impediu
os Sertanejos de ter, logo no primeiro momento, reconhecido no Guia do cego,
no homem da rabeca coberto de andrajos, no companheiro e dono do cachorro
“Cangati”, ninguém mais, ninguém menos, do que o irmão
bastardo do Sinésio, Silvestre. Este, por sua vez, só tendo
chegado depois à casa do Juiz, não tinha ouvido a declaração
do Doutor Pedro Gouveia sobre a identidade do rapaz do cavalo branco. O Frade,
porém, ouvindo tudo o que Nazário o Pedro Cego tinham dito,
ficou, de repente, com um ar grave o inspirado. E, do alto do seu cavalo,
dirigiu-se, um pouco a Nazário, um pouco a Pedro Cego e um pouco para
o Povo todo, dizendo: “`Meus filhos, quantas coisas sagradas e importantes
foram pronunciadas aqui, agora! Tudo isso é coisa divina e misteriosa,
de modo que vocês devem, antes de tudo, ouvir a palavra da Igreja, representada
por mim! O nosso Príncipe do Cavalo Branco vai descansar um pouco na
casa que foi de seu Pai. E eu, como homem de Deus que sou, vou para a Igreja,
a fim de me preparar espiritualmente na Vigília para o dia sagrado
de Pentecostes, que será amanhã. Depois de assim preparado pela
oração, voltarei para este lugar, daqui a pouco, porque tenho
a revelar ao nosso bom e querido Povo coisas da maior importância sobre
o nosso Destino, tanto o destino da terra quanto o do céu!’ “Enquanto
o Frade dizia essas palavras, o Doutor Pedro Gouveia tinha montado novamente,
juntando-se a ele e a Sinésio; o os três, esporeando os cavalos,
começaram a caminhar em direção à velha casa que
pertencia aos Garcia-Barrettos, aquela mesma casa que Arésio desprezara,
ao regressar, e que permanecera fechada desde 1930, após a morte de
El-Rei Dom Pedro Sebastião. Como logo se soube por informação
do Doutor Pedro, Sinésio, ‘ao contrário do irmão ruim,
e mantendo-se fiel ao sangue de seu Pai’, fazia questão absoluta de
ficar morando na velha casa, atitude que logo predispôs ainda mais o
Povo em seu favor. Ora, além da velha Casa-Forte da fazenda – moradia
primitiva e mais antiga do primeiro Garcia-Barretto sertanejo – a família
tinha, realmente, aquela outra, na rua. Os Garcia-Barrettos tinham doado uma
parte das suas imensas terras para constituir o patrimônio da primitiva
paróquia de Taperoá. Antes disso, porém, tinham separado
outro pedaço de terras para a Igreja, erguendo ali, logo, uma Capela
dedicada a São Sebastião, que, como sabemos, era o Santo de
devoção particular da família, e construindo, também,
uma casa pegada à Capela. Nesta casa se hospedaria o santo Padre Ibiapina,
nas suas passagens de missionário pelas terras do Cariri. Tudo isso
se dera durante o reinado de Dona Maria I, a Louca, avó do Impostor
Dom Pedro I, sendo Governador e Capitão-Mor da Paraíba Dom Fernando
Delgado Freire de Castilho. Em torno dessa casa e da Capela de São
Sebastião é que tinha se edificado a nossa Vila. Os Garcia-Barrettos
continuavam a morar na velha casa de Dom José Sebastião, a antiga
‘Casa-Forte da Torre da Onça Malhada’. O casarão da rua era,
apenas, moradia eventual da família, quando seus chefes vinham a rua
para comparecer às feiras, às Missas, ou para cumprir suas obrigações
monárquicas, isto é, para desfilar sob pálios, nas Procissões,
para subir aos palanques nas posses dos Prefeitos, seus prepostos, para o
dia Sete de Setembro, para as Cavalhadas, para as coroações
dos Imperadores do Divino e outras realezas grandiosas do mesmo tipo. Pois
era para esse casarão da rua que Sinésio, o Frade e o Doutor
iam se encaminhando naquele momento quando, na Rua Grande, sob o portal do
chamado `Casarão das Pinhas’, avistaram um mendigo que, sentado na
calçada, parecia alheio a tudo o que acontecera, e ali estava, com
o rosto quase inteiramente coberto por um grande chapéu de palha de
abas largas e caídas, o com o corpo inteiramente envolvido por uma
espécie de cobertor ou manta colorida, que o cobria até os pés,
como se ele estivesse com frio ou adoentado. Sinésio, que fora, ao
que parece, o único dos três a dar importância ao mendigo,
esbarrou seu belo cavalo branco – que, segundo soubemos depois, tinha o nome
terrível de `Tremedal’ – e, junto da calçada, falou com ele.”
– Seja o mais preciso que lhe for possível agora, Dom Pedro Dinis Quaderna!
– falou o Corregedor. – Deixe de lado, um. pouco, o estilo régio, porque
esse pormenor é importantíssimo para a elucidação
do assassinato de Dom Pedro Sebastião, da morte o ressurreição
de Sinésio, e de toda essa história da – como é que o
senhor chama? – da desaventura novelosa e guerreira da tal “Guerra do
Reino”. Que foi que o rapaz do cavalo branco disse ao mendigo? O assunto
era perigoso, de modo que procurei tergiversar e falei vagamente: – Excelência,
isso tudo aconteceu há três anos, e até hoje ninguém
chegou verdadeiramente a um acordo sobre quais teriam sido exatamente as palavras
trocadas entre os dois. Uns dizem que Sinésio apenas ofereceu uma esmola,
que teria sido recusada pelo mendigo. Outros dizem que ele falou no Testamento
e no Tesouro, ambos deixados por Dom Pedro Sebastião, indagando alguma
coisa sobre o Roteiro perdido desse Tesouro. E, finalmente, a maioria diz
que Sinésio teria feito alusões misteriosas ao Reino e à
sua Missão, o que não deixa de ser estranho, diante da aparente
insignificância daquele mendigo.
– E qual é sua opinião pessoal sobre essas três versões?
– Excelência, eu não tenho opinião nenhuma, e, na dúvida,
passo a história adiante pelo preço que me venderam! Dizem que
as palavras que Sinésio proferiu foram as seguintes: “Meu Velho,
posso fazer alguma coisa para ajudar você? Vim por causa do Crime, da
Herança e do Reino! Você sabe alguma coisa sobre o Caminho e
o Roteiro? Onde é que eu posso falar com Antônio Villar? ”
– Como? – disse o Corregedor, quase pulando, de novo, da cadeira. – Antônio
Villar? Ele perguntou por Antônio Villar? Anote, Dona Margarida, esse
pormenor é importantíssimo! O senhor sabia, Dom Pedro Dinis
Quaderna, que Luís Carlos Prestes, o Chefe dos comunistas brasileiros,
mais ou menos por esse tempo estava entrando no Brasil secretamente, vestido
de Padre, e adotando exatamente esse falso nome de Antônio Villar? –
Naquele momento, eu ainda não sabia disso não, Senhor Corregedor,
mas soube logo mais, à noite, por intermédio do Comendador Basílio
Monteiro! Mas, no caso de Sinésio, permanece uma dúvida. A maior
parte das pessoas, aqui, acredita que não foi a Luís Carlos
Prestes que ele se referiu, não, porque existe também, aqui
na Vila, um Fazendeiro com esse nome, pertencente à mesma família
do Contra-Almirante Frederico Villar.
– Está bem, tudo isso será apurado! E que foi que o mendigo
respondeu a Sinésio? – Dizem que ele respondeu assim: “Não
senhor, não sei onde é que o senhor pode encontrar esse homem
não, nem tenho o Dinheiro nem nada! Perdoe!” É estranho,
não? – disse o Corregedor. – Primeiro, se fosse do fazendeiro que Sinésio
tinha falado, o mendigo saberia dar a informação, porque esse
Antônio Villar, o daqui, é conhecido de todo mundo. Depois, comumente,
são os mendigos que nos pedem dinheiro e nós é que respondemos:
“Não tenho agora não, perdoe!” – Pois se não
aconteceu assim, foi assim que me contaram essa parte, Senhor Corregedor!
Dizem ainda que, então, Sinésio olhou demoradamente o mendigo,
sem dizer mais nada, porém. Após um momento, esporeou o “Tremedal”,
muito levemente, com grande delicadeza, como sempre fazia para não
feri-lo, segundo soubemos depois. Ele, o Frade e o Doutor tomaram, de novo,
o caminho do casarão dos Garcia-Barrettos, que ficava ali perto, pegado
à Capela (hoje Igreja de São Sebastião). No momento,
porém, em que os três iam chegando na esquina da Rua Grande com
a Praça onde teria se realizado a Cavalhada, o mendigo com quem ele
acabara de falar ergueu-se sobre um joelho, puxou, de dentro da manta que
o cobria, um rifle, já engatilhado, e atirou no rapaz do cavalo branco.
Poucos segundos antes, no entanto, o cavalo “Tremedal” tinha topado
ligeiramente numa pedra, baixando e reerguendo logo a cabeça, por causa
da topada. Sinésio curvara-se para afagar o pescoço do animal,
significando-lhe, assim, que aquela topada involuntária dada por ele
em nada prejudicara seu dono: foi esse gesto de afeição ao belo
animal que salvou a vida de Sinésio, sobre cuja cabeça a bala
passou zunindo, indo se cravar adiante, na fachada da Capela.
– Me diga uma coisa, Dom Pedro Dinis Quaderna: na sua opinião, o
pessoal que mandou emboscar o rapaz na estrada foi o mesmo que mandou o mendigo
atirar nele na rua? – O Povo por aqui acha que foi a mesma gente, Senhor Corregedor!
– E quem foram os mandantes? – Dizem que foi o rico e poderoso Dom Antônio
Moraes, acrescentando alguns que ele ordenou tudo por inspiração
do filho dele, Gustavo Moraes, e com o consentimento de Arésio GarciaBarretto,
irmão de Sinésio! Mas nada disso ficou bem esclarecido, Senhor
Corregedor, de modo que volto aos acontecimentos provados o sucedidos diante
de todo mundo. O falso mendigo, vendo que falhara no primeiro tiro, pôs-se
rapidamente de pé. Viu-se, então, que ele não tinha nada
de velho: era um rapaz moço, forte e mal-encarado. Manejando o rifle,
que era um Cruzeta casca-de-banda, levou de novo a arma à cara e correu
na direção de Sinésio, que parara o cavalo e se voltara
para o lugar onde tinha soado o estampido. Mas enquanto o rifle era manejado,
o Doutor Pedro e o Frade já tinham tomado as primeiras providências
para defender o pupilo. O Doutor Pedro puxou uma pistola e esporeou o cavalo
para cima do Cabra. O Frade, não conseguindo desafivelar logo o mosquetão
que trazia às costas, compreendeu, porém, a intenção
que movia o outro e impeliu também seu cavalo, a fim de, atropelando
o homem do rifle, atrapalhar o segundo tiro. E foi o que aconteceu: perturbado
com aquele tropel dos cavalos que vinham em sua direção ameaçando
pisá-lo, o homem, que parecia visar somente Sinésio em sua tentativa,
errou também o segundo tiro. Então, com velocidade surpreendente,
o Cabra aumentou a carreira em que vinha,, livrou-se agilmente dos cavalos
e, cruzando com o Doutor e o Frade, correu na direção de Sinésio.
No aperto em que se encontrava, não pudera colocar terceira bala na
agulha, o tudo indicava que sua intenção era lançar-se
sobre Sinésio, agora para esfaqueá-lo. O Doutor Pedro, porém,
esbarrando o cavalo, voltou-se e disparou a pistola sobre o Cabra. Este apercebeu-se,
então, de que não havia mais jeito: a tentativa falhara de vez,
porque ele fora ferido, se bem que levemente, e agora os dois vinham de novo
sobre ele. Jogando fora o rifle para poder fugir mais velozmente, correu ele
então pelo Beco da Igreja, na direção da Rua da Usina.
Enquanto isso, o Frade conseguira finalmente desafivelar o mosquetão,
e estava mirando o cabra que corria, quando o Doutor Pedro gritou: “Frei
Simão, não atire não! Vamos pegar o Cabra vivo, para
ele revelar por quem foi mandado!” O Corregedor interrompeu de novo,
com aquela mesma expressão aguda e cortante: – Um momento, Senhor Dom
Pedro Quaderna! O senhor tem certeza de que foi pelo nome de ‘Frei Simão
que o Doutor Pedro Gouveia tratou o tal Frade? Ah, nobres Senhores e belas
Damas! Vossas Excelências, que conhecem a história da Pedra do
Reino, bem sabem o que este nome de Frei Simão significava para todos
nós, pois Frei Simão era o nome sagrado e profético do
nosso parente Manuel Vieira, o Moço, aquele mesmo que, em 1838, tinha
presidido, como sacerdote, às degolações ordenadas por
meu bisavô, Dom João II, o Execrável! Esfriei de novo,
sem saber até que ponto o Corregedor conhecia o que esse nome de Frei
Simão significava para nós. Mas, do jeito que ele falara, parecia
que ele quisera, apenas, documentar o fato para que Margarida o anotasse.
Assim, resolvi não entrar em maiores esclarecimentos; limitei-me a
responder: – É verdade, Senhor Corregedor: foi pelo nome de Frei Simão
que o Doutor Pedro chamou o Frade. A narração dos acontecimentos
que se seguiram então é, também, mais ou menos contraditória.
Num ponto, porém, todos estão de acordo: foi nesse momento que,
lá de longe, do Tabuleiro que fica entre o leito seco do Rio Taperoá
e a Estrada de Estaca Zero, começaram a aparecer uns sinais luminosos,
acendendo e apagando em direção à Rua da Usina. Pareciam
sinais feitos com um espelhinho que alguém manejasse no meio do Tabuleiro,
escondido entre as pedras e os xiquexiques, acendendo e apagando o sol do
espelho com a mão.
– Muito bem, Dom Pedro Dinis, veja agora o que vai me dizer, porque esse
ponto é muito importante! Se da Rua da Usina se vê essa parte
do Tabuleiro, é lógico que, de lá, se vê a Rua
da Usina, não é verdade? – É, sim senhor! – Pois me diga
outra coisa: o tal lajedo, que o senhor freqüenta, não fica entre
o Tabuleiro e a Estrada, dominando a Vila a cavaleiro? – Fica, sim senhor!
– Muito bem! Dona Margarida, anote essa confissão do depoente, ela
é importante para a elucidação de tudo! Novamente a boca
do meu estômago se contraiu, apertando mais o nó. Foi com dificuldade
que continuei: – Quando os sinais de sol começaram a se acender e se
apagar no meio do Tabuleiro, o Cabra, que já tinha atingido a Rua da
Usina e parecia ter a intenção de correr para os lados do Chafariz,
margeando a areia do Rio, mudou subitamente de intenção, e,
descendo o Cais, começou a descer para o leito do Rio Taperoá,
como se quisesse ir para o Tabuleiro, ao encontro da pessoa que manejava o
espelho. O Doutor Pedro e Frei Simão iam chegando já à
Rua da Usina, quando, de repente, o Cabra pareceu tropeçar na carreira
em que ia e caiu de bruços na areia do Rio. Frei Simão e o Doutor
Pedro apearam-se junto do Cais e começaram a descer cautelosamente,
com as armas apontadas para o Cabra, como se temessem uma cilada de sua parte.
Mas, quando chegaram perto, viram que o homem estava em convulsões,
com uma perna que se estirava e se encolhia, enquanto o sangue saía,
às golfadas, pelo buraco que uma bala lhe abrira mesmo em cima do fígado.
Foi aí que se verificou que a bala do tiro do Doutor Pedro tinha pegado
somente o ombro dele, por trás.
– E o tiro que matou o Cabra, tinha vindo de longe? – É o que tudo
indica, Senhor Corregedor, porque ninguém ouviu o tiro na rua. Devem
ter atirado nele provavelmente com um fuzil munido de luneta, porque o tiro
foi acertado com grande precisão. Quanto à pessoa que tinha
atirado, deve ter fugido logo, com grande rapidez, porque as pessoas que correram
para as proximidades do lugar de onde tinham vindo os sinais luminosos não
encontraram ninguém.
– De onde o senhor acha que partiu o tiro? – Dizem, aqui na rua, que foi
do meio do Tabuleiro, do mesmo lugar de onde vinham os sinais do espelho.
O senhor, o que é que acha? – Eu não acho nada, estou somente
investigando o caso. Continue! – O que eu tenho a narrar dagora em diante
é pouca coisa, Senhor Corregedor! Esses, que já contei, foram
os acontecimentos principais que marcaram, entre nós, o reaparecimento
de Dom Sinésio, o Alumioso. O Povo, que tinha acorrido todo para a
Rua da Usina, esperava, silencioso, a volta do Doutor Pedro e de Frei Simão,
como que aguardando uma explicação ou uma palavra de ordem que
desse sentido a todos aqueles acontecimentos. O Doutor Pedro Gouveia, que
parecia homem dotado para essas situações, não se negou
a isso. E, do alto do seu cavalo, falou, com certa imponência: “`Povo
de Taperoá! Aquele rapaz, desaparecido daqui em 1930, maltratado por
seus cruéis inimigos, que mataram seu Pai o o raptaram no mesmo dia;
aquele rapaz, tão querido por todos os Pobres do nosso Sertão,
voltou hoje aqui para reivindicar seus direitos sagrados! Há interesses
poderosos, aliados contra ele e contra seus direitos! Como vocês viram,
mal ele vai chegando à terra que para ele se tornou sagrada por causa
do sangue de seu Pai, tentam matá-lo, para impedir o Moço do
cavalo branco de fazer a felicidade da Pobreza! Sozinho contra todos, raptado,
perseguido, encarcerado, maltratado, órfão, agora ameaçado
de morte, com quem poderia ele contar, senão com o Povo, esse Povo
bom, sofredor e pobre, do Sertão? Foi sempre ao lado desse Povo que
ele esteve, foi sempre a seu lado que ele apareceu, o é isso que os
seus inimigos não perdoam! Por isso, eu e Frei Simão, protetores
e amigos do rapaz do cavalo branco, pedimos a ajuda do Povo Sertanejo para
Sinésio Garcia-Barretto!'” FOLHETO LXIII O Encontro de Dois Irmãos
– Sem que ninguém se apercebesse, Senhor Corregedor, Sinésio
– que se apeara do cavalo junto à Igreja – tinha se aproximado e ficara
por trás do Povo, segurando “Tremedal” pela rédea,
ao mesmo tempo que o abraçava pelo pescoço. O Doutor Pedro que
o vira chegar enquanto falava, resolveu então causar efeito sobre o
Povo: e, ao pronunciar suas últimas palavras, apontou, com gesto magnífico,
sua mão espalmada em direção ao pupilo o protegido. Todo
mundo se voltou para o rapaz, e foi enorme a sensação causada
pela peroração do Doutor. Foi nesse momento que, do meio do
Povo, surdiu Silvestre, o irmão bastardo de Sinésio, acompanhado
por Pedro Cego e “Cangati”. Ele ouvira, finalmente, a revelação
do fato espantoso e, vendo o Doutor apontar seu irmão mais moço,
precipitou-se para ele, puxando o Cego, que o acompanhava como podia, ambos
às quedas e tropeções.
“`Sinésio?’, indagou ele, esgazeado. `O senhor disse Sinésio?
Pelo amor de Jesus Cristo e de Nossa Senhora! Você é Sinésio?
É Sinésio, mesmo? Eu sou Silvestre! Sou Silvestre, seu irmão!’
“Ao ouvir essas palavras, Senhor Corregedor, dizem que Sinésio,
profundamente emocionado, deu um passo -para o irmão, o que foi suficiente
para que os dois ficassem face a face. Silvestre parou e sua imobilidade era
tanto maior quanto tinham sido grandes os tropeções e carreiras
até ali. Dizem que, colocando as duas mãos nos ombros de Silvestre,
Sinésio disse algumas palavras em voz baixa e com os lábios
trêmulos… ” O Corregedor interrompeu: – Já ouvi outra
versão, segundo a qual esse rapaz do cavalo branco não disse
nada, nesse momento! Dizem que ele teria ficado imóvel, emocionado,
com as mãos nos ombros do outro e olhando seus olhos, isso durante
uma boa porção de tempo, até que o tal do Frei Simão
interrompeu a cena! – É, tem umas pessoas por aí que contam
assim! – expliquei. – Mas pessoas outras, pessoas fidedignas, me contaram
que, pelo contrário, Sinésio falou, dizendo: “Então,
Silvestre, ainda me conhece? Sou Sinésio! Sou eu, meu irmão!
” E os dois se abraçaram, chorando. É verdade que, logo
no dia seguinte, surgiram várias versões do acontecido, dizendo
logo os partidários de Arésio que as palavras não tinham
sido exatamente essas! – Há quem diga, mesmo, que, em vez de Silvestre,
o rapaz do cavalo branco teria chamado seu pretenso irmão de Silvério!
– É, mas muita gente, também, diz que ele acertou e chamou o
irmão foi de Silvestre, mesmo! E mesmo que não tivesse acertado,
Senhor Corregedor, os sofrimentos que ele passou podem tê-lo perturbado
um pouco, causando o erro! O senhor pensa que ver o Pai assassinado, ser raptado
no mesmo dia, ser preso sem culpa nenhuma, ser soterrado, morrer de fome,
solidão e desespero, e, ainda por cima, ressuscitar numa estrada sertaneja,
é alguma brincadeira? De qualquer modo, sei que Silvestre, abraçado
ao pescoço do irmão, dizia: “Meu Deus, será verdade
mesmo? Será que Sinésio está vivo? Sim, é ele,
meu coração me diz que é! ” Só no outro dia
é que começaram a aparecer outras versões! Naquele momento
inicial, porém, ninguém cuidava de saber exatamente o que se
dissera ou não: o Povo já estava, também, todo em prantos,
conduzido por Frei Simão e pelo Doutor Pedro, os quais, assim que tinham
visto os dois irmãos se abraçarem, tinham puxado os lenços
e, cobrindo o rosto, haviam começado a chorar convulsivamente, numa
emoção que imediatamente contagiou todo mundo! – É verdade
que Frei Simão, ao ouvir o nome de Silvestre, teria dito umas coisas
estranhas, que ninguém entendeu direito, mas que tiveram uma repercussão
enorme perante o Povo? Esfriei de novo, aterrorizado, porque aquilo era, novamente,
ligado ao grande crime, ao grande segredo da minha vida – minha linhagem real
paterna. Pegado de surpresa, fiquei, durante um momento, olhando o Corregedor,
sem nada responder. Ele insistiu: – O que foi que Frei Simão disse?
– Sei não, Excelência! – falei, tentando escapar. – Também
não entendi direito aquelas doidices não! O que posso fazer
é vender tudo ao senhor pelo preço que comprei! Dizem que, depois
de ter chorado em quantidade suficiente para emocionar e abalar o Povo, Frei
Simão conseguiu se dominar! Aí, chegando seu cavalo para junto
dos dois irmãos, apeou-se e caminhou para eles. Dizem que Sinésio,
tomando o irmão pelo braço, apresentou-o ao Frade, dizendo:
“Frei Simão, este aqui é meu irmão, o segundo, aquele
que era pegado comigo e que eu lhe disse que ficaria do nosso lado, de qualquer
jeito! É Silvestre! ” Dando mostras de um espanto visível
para todos, Frei Simão arregalou os olhos e gritou: “O quê?
Como foi que você disse? Você disse, aí, Silvestre, foi,
Sinésio? Rapaz, você se chama Silvestre? Pergunto porque, se
você se chama, mesmo, Silvestre, o Doutor Pedro precisa saber disso
imediatamente! ” E então, excitado, talando alto para que o Povo
também ouvisse, o gigantesco Frei Simão gritou para o companheiro
que se aproximava: “Doutor Pedro, chegue aqui pelo amor de Deus! Veja
se o nosso Sinésio não é, de fato, uma criatura de Deus!
Veja se tudo isso não é coisa divina, coisa do Divino Espírito
Santo! Olhe, veja quem está aqui, ressuscitado: Silvestre, o Guia,
aquele mesmo Rei e Profeta da Serra do Rodeador! É o nosso Silvestre
Quiou, o Enviado!” O Doutor Pedro Gouveia, ouvindo que aquele rapaz,
moço daquele jeito, era o mesmo Profeta aparecido na.”Guerra da
Serra do Rodeador”, abriu a boca, arregalou os olhos e persignou-se,
murmurando: “Ave Maria! Minha Nossa Senhora! É coisa do Divino
Espírito Santo, isso não tem pra onde!” Depois disso, sem
dizer mais nada, ficou olhando o Povo assombrado, enquanto brincava, de modo
aparentemente casual e descuidoso, com a Cruz meio episcopal que lhe pendia
do pescoço, amarrada a uma larga fita amarela e branca. Quanto a Silvestre,
sem ligar importância ao que o Frade e o Doutor estavam dizendo, limitava-se
a repetir mais ou menos o que tinha dito: “Mas meu Deus, será
verdade mesmo? É verdade, tudo me diz que é verdade! Sinésio
ressuscitou, e ressuscitou, com ele, o sangue de meu Pai! Louvado seja Nosso
Senhor Jesus Cristo! Sinésio ressuscitou, ressuscitou o Prinspo da
Bandeira do Divino do Sertão! Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”
“Para sempre seja louvado!”, começavam, já, a repetir,
em coro, os Sertanejos, sempre meio dispostos a uma boa ladainha. Então,
Senhor Corregedor, sucedeu um outro fato mais ou menos inesperado. De repente,
Silvestre, certamente impressionado com tudo o que acontecera, ajoelhou-se
na poeira do chão e beijou a mão do ressuscitado, o que terminou
por desgarrar, de vez, tudo quanto era fanatismo sertanejo represado. Tudo
poderia, aliás, ter continuado assim, nesse tom régio, o que
me permitiria, logo de início, manter o timbre heróico, trágico
e epopéico da minha história. Infelizmente, porém, devo
ser verídico, e, naquele momento, Pedro Cego interveio, atrapalhando
o final da cena com um daqueles “ataques de insolência” que,
nele, costumavam sempre alternar-se com os teológicos. Mal Silvestre
se erguia, o terrível Cego lhe caía em cima, dando-lhe, com
a ponta do cajado, uma estocada nas costelas: “Que é que você
está fazendo aí, seu safado, se esfregando na poeira, como um
jumento, e obrigando essas pessoas ilustres a perder tempo? Venha logo, aqui,
cantar um negócio comigo, peste! Quer ganhar a vida sem trabalhar,
é? Pra que é que eu pago a você, hein, seu corno? Chegue,
vamos cantar, aqui, uma toada, que é pra esse Doutor, aí, me
dar uma esmola!” Pegando então na viola, Senhor Corregedor, ele
deu em suas cordas uma vigorosa batida de ponteado, logo seguida de um pinicado
bem marcado e forte. Ouvindo isso, e como se nada tivesse acontecido, Silvestre
retirou a rabeca das costas. De seu rosto, tinham-se apagado completamente
todos os sinais de emoção epopeica, motivo pelo qual esse final
de cena talvez seja cortado da minha Obra. Foi já rindo que ele desferiu,
também, nas tripas de gato de sua rabeca sertaneja, um toque violento,
áspero e fanhoso. Então, sem que ninguém tivesse previsto
– mas também sem espanto nenhum de ninguém – os dois iniciaram,
depois de breve confabulação, a desafio-de-memória e
em homenagem a Sinésio, o seguinte romance de loa, em estilo narrativo:
“Quem quiser ter seu sossego, deixe a minha Companhia, pois minha Mãe
me pariu numa áspera Catinga! Armas, rifles e Cavalos, serra abaixo,
serra acima, e os Ciganos me furtaram em terras de Mouraria! Quatrocentos
me matavam, quatrocentos defendiam, até que me sepultaram numa Cadeia
que havia! Um Gavião me educou, um Cervo me salvaria, sete anos bebi
leite da feroz Onça parida, outros sete comi Pão, sete, o Vinho
da bebida! Três vezes sete, vinte e um, e eis que o Morto volta à
vida! Por sete anos fui preso e ainda lá estaria, não fosse
o sangue do Rei que me ressuscitaria! ”
FOLHETO LXIV
A Cachorra Cantadeira e o Anel Misterioso Quando eu acabei de recitar esse
enigmático “romance”, o Corregedor falou: – Dom Pedro Dinis
Quaderna, eu, se fosse o senhor, cortava essa versalhada da sua futura Epopéia,
porque ela parece- uma charada, uma espécie de logogrifo em verso!
– Pois é exatamente por isso que ela deve entrar, Senhor Corregedor!
Essa palavra que o senhor usou, “grifo”, é exatamente a prova
de que esses versos são indispensáveis à minha Epopéia!
– Por quê? – perguntou ele, espantado.
– Por causa de Homero, Excelência! Não quero, nem devo, esconder
a Vossa Excelência que, depois de conseguir da Academia Brasileira de
Letras o título de “Gênio da Raça Brasileira”,
pretendo disputar, no vasto Império da Literatura Universal, o cargo,
também ainda vago, de “Gênio Máximo da Humanidade”!
Ora, assim como fiquei com uma certa “cisma” com o Conselheiro Ruy
Barbosa em relação ao primeiro título, tive também,
a princípio, uns certos sobressaltos com Homero, para o segundo: foi
quando li nas Postilas de Retórica e Gramática, publicadas em
1879 pelo Doutor Amorico Carvalho, que, de todos os Poetas, “o primeiro,
no tempo e na glória, é Homero”. Esse Doutor foi “retórico”
do Imperador Dom Pedro II. Mesmo sendo Pedro II um impostor e usurpador, essas
coisas de monarquia são muito sérias, de modo que o cargo de
“Retórico Imperial” é venerável e a palavra
do Doutor Amorim de Carvalho não é brincadeira! Por isso, quando
li isso, fiquei meio cego de terror, com medo de que aquele peste de grego
tivesse se antecipado e me tomado o cargo. Mas Clemente e Samuel me tranqüilizaram
um dia, provandome, primeiro que Homero não existiu – opinião
de Clemente – e, depois, que tinha mau gosto e era incompleto – opinião
de Samuel. É evidente que, para uma pessoa ser nomeada “Gênio
Máximo da Humanidade” precisa, primeiro, existir! Depois, segundo
o Doutor Amorim Carvalho, uma Obra, para ser clássica, precisa ser
completa, sem o que nem é modelar nem de primeira classe! Homero, além
de não ter existido, era incompleto: como pode, portanto, ser o “Gênio
Máximo da Humanidade”? Apesar disso, porém, Senhor Corregedor,
resolvi tomar certas precauções contra ele, e a presença,
em minha Epopéia, do “enigma grifo-esfingético em versos”
que lhe recitei é uma delas! – A senhora está entendendo, Dona
Margarida? Eu estou tendo alguma dificuldade! – disse o Corregedor.
– Pois explico tudo em dois minutos! – disse eu, com boa vontade. – O suplemento
anual do Almanaque chama-se “Édipo”. O primeiro número
dele, explicando a razão do título, contou o mais famoso enigma
do povo de Homero, os Gregos – aquela charada que a Esfinge propôs a
Édipo, Rei de Tebas. A tal da Esfinge era um cruzamento de grifo com
leoa. Ou, melhor, em termos sertanejos, um cruzamento de Onça, Cavalo
e Gavião! Devia ser meio mordida de cachorro da molesta, porque só
mordida é que uma bicha podia ser faminta daquele jeito, Senhor Corregedor!
Ela devia ter alguma cobra esfomeada na raiz do sangue, ou então tinha
comido canário doido em pequena, troço que, como o senhor sabe,
é a coisa que dá mais fome canina no mundo! A Esfinge perguntava
a quem passava perto dela: “Qual é o bicho que, quando é
pequeno, tem quatro pés, depois tem dois, e morre com três?”
Quem não respondia, ela comia, com osso e tudo! Quando chegou a vez
de Édipo, ele respondeu, tornando-se, desde então, patrono dos
charadistas e decifradores: “Esse bicho é o homem, que, quando
é pequeno, engatinha de quatro pés, depois passa a andar com
dois, e finalmente, já velho, apóia-se numa bengala que passa
a ser seu terceiro pé”. A Esfinge, vendo decifrado seu logogrifo,
teve uma raiva tão da gota-serena que estourou o alferes-queiroz lá
dela, teve um infausto-do-leocádio e morreu! Ora, Senhor Corregedor,
pra mim, esse grande enigma dos gregos e de Homero é uma merda completa!
Primeiro, nem todo velho anda de bengala! Aqui mesmo, em Taperoá, conheço
o Coronel Chico Bezerra que nunca precisou de bengala e anda teso, duro, espigado,
como se tivesse engolido uma! Depois, nem todo homem adulto anda com dois
pés: existe o “perneta” que anda com uma perna só,
e existe o chamado “cotó” que não anda com perna nenhuma!
Finalmente, nem todo menino engatinha de quatro pés: já vi muito
menino por aí que começa a vida engatinhando de bunda, arrastando
o zebescuefe no chão! É por isso que, modéstia à
parte, minha charada epopéica, o logogrifo em versos que vai iniciar
minha Epopéia, é muito superior ao enigma-mor dos Gregos, povo
de Homero!- E qual é a decifração do seu enigma? – indagou
o Corregedor.
– Excelência, a meu ver o logogrifo que Pedro Cego e Silvestre cantaram
e a própria história de Sinésio, o Alumioso! Acho que
isso é claro para qualquer bom decifrador! – Claro? – protestou o juiz.
– Sua charada é ainda mais mal-armada do que a da Esfinge! Quer ver
uma coisa? Nos versos, fala-se em quatrocentos Ciganos, e os que trouxeram
o rapaz do cavalo branco eram quarenta! – Por isso não, Excelência!
Esses aumentos fazem parte do próprio estilo epopéico! Homero,
mesmo, aumenta extraordinariamente o número de Cangaceiros gregos comandados
pelos Reis lá dele, e, em Canudos, Euclydes da Cunha faz o mesmo, tanto
para o lado do Exército quanto para o lado dos Sertanejos! – Está
bem, vá lá! Mas, no seu Enigma, tem coisa ainda pior! Me diga
uma coisa: como é aquela parte que f ala nos anos em que Sinésio
esteve sumido? – “Três vezes sete, vinte e um,/e eis que o Morto
volta à vida! ” – Em que ano nasceu Sinésio? – Em 1910,
veio com o cometa! – Então, em 1935, ele estava com vinte e cinco anos,
e não com vinte e um! Eu, que, sentindo minha angústia aumentar,
estava já doido para ir-me embora, aproveitei para ver se terminava
meu depoimento e disse: – Mas Senhor Corregedor, que vocação
extraordinária de decifrador é a sua! O senhor tem toda razão,
e vou é desistir desse enigma besta, na minha Epopéia! De qualquer
modo, agradeço a colaboração que o senhor me deu, e aqui
me despeço, porque já lhe contei o que aconteceu de mais importante,
na chegada de Sinésio a Taperoá! – Já mesmo, Dom Pedro
Dinis Quaderna? – disse o juiz com ar venenoso. – Tem certeza? O senhor já
contou tudo, tudo mesmo? Não escondeu nenhum dado fundamental? – Não
senhor! Do que eu me lembro, assim, já contei tudo! O Corregedor respirou
fundo e atirou: – Pois aqui na Vila houve gente de coração mais
aberto do que o seu, gente que me disse, entre outras coisas, que o senhor,
naquela hora em que aconteceu tudo, estava justamente no tal Lajedo de onde
se avista a Rua da Usina e o rio, e de cujas proximidades partiu o tiro que
matou o “cabra”!
Aterrado, fiquei olhando para o Corregedor, sem encontrar coisa alguma para
dizer. Aquela simples frase dele mostrava-me que a teia amaldiçoada
da qual eu pensava já ir saindo, estava apenas começando a me
enredar. Fiquei atordoado. Quando, afinal, consegui falar, perguntei com voz
insegura: – O senhor recebeu alguma denúncia contra mim? – Quem tem
o direito de fazer perguntas aqui sou eu, e não o senhor! Mas, fazendo
uma exceção, vou responder a essa, sua. Acontece que recebi
uma carta anônima que o denuncia como itñplicado em todo este
caso. A carta abre uma questão muito grave, porque nela se afirma que
todo o caso do fazendeiro Pedro Sebastião e de seu filho Sinésio
tem estreitas ligações com a Revolução que os
comunistas tentaram em 1935 e que, até agora, não desanimaram
de levar adiante! A carta está aqui! – acrescentou ele, folheando seus
papéis e exibindo o documento, que se absteve de me dar.
Perguntei: – Senhor Corregedor, a letra da carta é de homem ou de
mulher? – É impossível saber isso! – Por quê? É
letra de máquina? – perguntei, olhando de través para Margarida.
– Não, mas a pessoa que escreveu a carta imitou nela as letras maiúsculas
de imprensa.
– E o que é que a carta diz, Excelência? – Ah, diz muita coisa,
Dom Pedro Dinis Quaderna! Diz várias coisas que eu irei lhe perguntando
e que o senhor irá me explicando, à medida que o inquérito
se desenrole! Por enquanto, porém, saiba o senhor que, aqui, lhe fazem
quatro acusações graves! Primeiro, dizem que a viagem que o
senhor organizou, com um Circo, em 1935, depois da chegada de Sinésio
aqui, tinha como fim oculto encontrar o tesouro deixado por Dom Pedro Sebastião.
Segundo o denunciante, esse tesouro tinha sido amontoado por seu Padrinho
como resultado dos negócios dele com “o gringo Edmundo Swendson”
no ramo das pedras preciosas, de maneira que era uma fortuna incalculável,
em diamantes, topázios e águasmarinhas. Diz-se também,
na carta, que, além das pedras preciosas, seu Padrinho, ajudado por
suas artes de Astrólogo e quiromante, tinha encontrado dois caixões
enormes, abarrotados de moedas de ouro e prata, dinheiro português e
espanhol, enterrado no tempo dos flamengos. Diz-se que Dom Pedro Sebastião
tinha enterrado essa fortuna numa furna sertaneja que ninguém sabe
onde se encontra, com exceção do senhor, pois consta textualmente
da carta que “somente o dito Pedro Dinis Quaderna é capaz de dizer
alguma coisa sobre o roteiro do tesouro”. Ora, esse tesouro é
ponto importante para a decifração do caso, porque, segundo
diz a carta, quando o senhor se juntou a Sinésio, naquela viagem, o
principal objetivo dos dois era encontrar o tesouro que financiaria a Revolução,
em sua parte sertaneja. A segunda acusação grave que se faz
aqui é que o senhor, na mesma noite em que Sinésio chegava à
Vila, propiciou, na sua estalagem e casa-de-recurso, um encontro entre seu
primo, Arésio Garcia-Barretto, e um tal Adalberto Coura, sujeito que
morava no sótão da estalagem e que não saía nunca,
porque estava escondido da Polícia. Dizem que ao mesmo tempo, o senhor
enviava a Sinésio um pacote de papéis que, segundo uns, continha
o roteiro do tesouro, e, segundo outros, uma porção de documentos
subversivos que lhe tinham sido entregues por Adalberto Coura “da parte
de um tal Antônio Villar, nome usado por Luís Carlos Prestes,
chefe dos comunistas brasileiros”. Finalmente, a outra acusação,
a mais grave de todas, diz que o senhor foi o principal culpado do assassinato
de seu Padrinho, o fazendeiro Dom Pedro Sebastião! Me diga uma coisa:
essa história do tesouro e do Circo é verdade? – É, sim
senhor! Havia o tesouro, e eu organizei, mesmo, um Circo para que nós
todos pudéssemos viajar pelo Sertão, com Sinésio, o Alumioso,
meu sobrinho, o rapaz do cavalo branco! Desde menino que eu era entusiasmado
com circo, por causa do “Circo Arabela” e do “Circo Estringuine”
que andavam por aqui, com moças equilibristas de coxas maravilhosas,
com Onças, com fitas de Cinema e peças de Teatro. Foi num Circo
que eu vi uma fita, A Carne, com aquela mulher extraordinária, Isa
Lins. Foi aí que travei conhecimento com Grácia Morena, mulher
de cara sexual, que aparecia com ousados decotes abertos, entre os peitos.
Vi O Guarani, que depois, como A Carne, leria sob forma de romance. Vi Sangue
de Irmãos, de Jota Soares, “filme de aventuras, de costumes sertanejos”.
Vi Reveses, de Chagas Ribeiro, que me deixou entusiasmadíssimo, porque
nele apareciam cavalos e Vaqueiros, como nos romances sertanejos cavalarianos
e bandeirosos. No “Circo Arabela”, porém, o que mais me entusiasmava
não eram propriamente os Cavaleiros, fazendo piruetas em cima de cavalos.
Era a própria Arabela, mulher belíssima, de coxas nuas, com
as calças aparecendo, em cima do arame ou equilibrando-se em cima dum
cavalo. Vi-a fazendo um número em que ela se espichava em cima de uma
Onça e depois a Onça se espichava em cima dela. Foi no Circo
que vi um teatro maravilhoso, uma peça chamada O Terror da Serra Morena,
com assunto tirado de um “folheto”. E vi os Palhaços, com
o Palhaço Sabido e o Palhaço Besta, de fofa e de gola branca.
Mas, sobretudo, foi no Circo que eu e Arésio, pela primeira vez, conhecemos
mulher, numa noite, depois do espetáculo. Arésio, com seu prestígio
de rapazinho rico e vigoroso, conseguiu duas moças do arame, a mais
bela para ele, a menos bela para mim, de modo que nós fomos iniciados
nos camarins, com as luzes apagadas, separados apenas por cortinas, pelas
paredes de pano que serviam aos cubículos. Depois, quando me tornei
adulto, tornei-me Chefe de cavalhadas, de autos de guerreiros, de bumba-meu-boi,
de nau-catarineta, etc. Mas tudo isso vive parado, só aqui na Vila.
Por isso, eu sonhava em me tornar dono de Circo. O Circo era o jeito que eu
tinha de transformar toda essa Literatura, todo esse Teatro de rua em Literatura
de estrada, isto é, uma Literatura cavaleira e epopéica, que
nos tornasse, a todos nós, heróis errantes pelas estradas e
catingas do Sertão, como o Valente Vilela! Por isso, com a chegada
dos Ciganos .que vieram com Sinésio e que sabiam, todos, fazer piruetas
em cima dos cavalos, vi que aquela era minha oportunidade, e foi assim que
organizei meu Circo, combinando tudo com o Doutor Pedro Gouveia! – Quer dizer
que o Doutor Pedro também entrou nessa história do Circo? –
Entrou, sim senhor! O interesse dele era encontrar o testamento e o tesouro
deixados por meu Padrinho. Ora, o senhor sabe que essas coisas custam dinheiro,
e Sinésio não tinha dinheiro nenhum. O Circo terminou, assim,
resolvendo, também, o problema dele, porque nós fazíamos
as viagens que eram necessárias à busca do tesouro e a renda
dos espetáculos, além de pagar as despesas, ainda me dava algum
lucro; principalmente porque eu levei com a gente doze mulheres da minha casa-de-recurso,
e organizei com elas um Pastoril do qual eu era o “Velho” e que
foi a nossa principal fonte de renda! – Muito bem, vê-se bem que, assim
como sua estalagem é uma “casa-de-recurso”, o dono não
fica atrás, é homem também de recursos e expedientes
de toda natureza! E a história da entrevista de Arésio com Adalberto
Coura? É verdadeira, também? – É, sim senhor! – E o pacote
de papéis? É verdade que o senhor mandou a Sinésio, na
noite de 1.0 de Junho de 1935, um pacote de documentos subversivos? – Não
senhor! Eu mandei, mesmo, o pacote, mas não eram documentos subversivos
não, era uma cópia manuscrita do Caminho Místico, de
Santo Antônio! – Santo Antônio de Pádua, o Português?
Não senhor, Santo Antônio Conselheiro de Canudos, o Sertanejo!
Eu sou devoto dele e de Padre Cícero, na minha qualidade de Profeta
do Catolicismo sertanejo! – Catolicismo sertanejo? – É a minha religião,
Excelência! Não estando muito satisfeito com o Catolicismo romano,
fundei essa outra religião para mim e para meus amigos! O pessoal aí
da rua, que sempre ouve cantar o galo, mas não sabe onde, ouviu falar
nesse Antônio, o Conselheiro, e pensou que eu estava me-referindo ao
outro Antônio, o Villar, pseudônimo de guerra de Luís Carlos
Prestes, criando-se, então, essa história de documentos subversivos!
– Está bem, vou apurar tudo isso! E a outra acusação?
Então o senhor foi um dos assassinos do seu Padrinho e pai-decriação,
de seu benfeitor Pedro Sebastião Garcia-Barretto? – Eu? Não
senhor! Deus me livre! – Então o senhor nega qualquer participação
na morte dele? – Nego, sim senhor! Eu ia, lá, matar meu Padrinho, Doutor?
Meu Padrinho foi, para mim, um segundo Pai! – Veja bem o que responde, porque
o senhor pode se complicar! O senhor não deixou de me esclarecer nenhum
indício importante sobre aquele crime de 1930? – Não senhor!
– Faça o favor de levantar a mão esquerda! Um pouco atemorizado
pelo tom de violência cortante que o Corregedor assumira de repente,
ergui a mão à altura do rosto dele, com a palma virada em sua
direção, como se quisesse, assim, deter a brutalidade da investida.
– Vire a mão! – disse ele, bruto e brusco. – Assim, está bem!
Agora me diga: que anel é esse que o senhor usa no dedo anular? Onde
o conseguiu? Senti que meu sangue, já perturbado pela tonteira, pelo
medo e pela crueldade do interrogatório, “refluía todo
para o coração”, como dizem os contos do Almanaque Charadístico.
Passei a mão no rosto, para ver se me recobrava um pouco. Mas, nesse
momento, como olhasse casualmente para fora, pela janela, tive a impressão
de que, do outro lado da rua, defronte da Cadeia, na esquina da casa de um
homem nobre da rua, o Capitão Clodoveu Torres Villar, havia um par
de olhos amaldiçoados, que me espreitavam há algum tempo e que,
no mesmo instante, desapareceram. Eram olhos maldosos e escarninhos. Num relampo,
o ar se encheu de dragões peçonhentos, de asas de morcego, que,
esvoaçando em torno de mim, começaram a me entrar para o sangue,
através dos meus ouvidos, que começaram, também, a ser
despedaçados por batidas de martelo na bigorna do Divino. Conheci que
o “mal sagrado” vinha se aproximando, e que, daí a pouco,
numa fração de segundo, eu estaria espancando o chão
com a cabeça, em contorções desesperadas, escumando pela
boca como um danado. Os olhos malditos reapareceram, agora sem dono e fulgurantes,
despedindo setas de fogo que encheram o ar de Gaviões, muito parecidos
com aqueles do dia em que perdi os olhos. Senti-me sufocado, julguei que ia
morrer, abri a boca, quis falar, mas aí o Sol tornou-se enceguecedor
e eu, perdendo a consciência, caí no chão, deslumbrado,
fulminado, com o Sol na cabeça e a tempestade no coração.
Quando acordei do “ataque”, da “grande aura” que só
acomete os gênios, Margarida estava sustentando minha cabeça
em seu colo alvo e aristocrático, e um Soldado de Polícia esperava,
impassível, que eu “tornasse”, para me dar um copo d’água
que ele segurava na mão, mantendo o resto do corpo em posição
de sentido. Somente o Corregedor, implacável, continuava com a mesma
expressão, dura e inquisitorial.
– Não foi nada não, já estou me sentindo melhor! –
disse eu, fracamente, mas já experimentando uma indizível sensação
de bem-estar, não só porque é assim que me sinto depois
dos meus ataques, como porque estava começando a me dar muito bem no
calorzinho e na maciez do colo de Margarida.
Ela, porém, não sei se notando que eu estava começando
a me aproveitar, soergueu um pouco minha cabeça e fez menção
de se levantar. Para evitar isso, falei mais depressa: – Foi o calor da sala
e a impressão de mal-estar que comecei a sentir, depois que passei
pela cela dos presos, lá embaixo! Obrigado, Margarida, Deus lhe pague
sua bondade e sua gentileza! Margarida fez, logo, uma cara ruim, de novo,
e o Corregedor falou: – O senhor, se quiser, pode se sentar nesta cadeira!
– Não senhor, obrigado! – disse eu, ficando de pé. – Se eu me
sentar, isso pode incomodar o cotoco e prejudicar a Epopéia! Peço,
aliás, que todos dois me desculpem o espetáculo constrangedor
que devo ter dado, com esse ataque esquisito! – Não, não houve
ataque esquisito nenhum! O senhor somente sentiu-se mal e teve um ligeiro
desmaio, é mais ou menos de se esperar! – disse o juiz.
– Não, Senhor Corregedor! – insisti. – Não tenha constrangimento
de me envergonhar não! Sei, muito bem, que não foi um simples
desmaio! Não fiquem constrangidos por terem visto isso; deve ter sido
horrível de assistir, mas acreditem que é pior para quem vê
do que para quem tem! Eu deveria, de fato, ter vergonha desses ataques, mas
li, a respeito deles, umas palavras de Baptista Pereira – aquele distinto
escritor brasileiro que, por ser genro do Conselheiro Ruy Barbosa, contraiu
a genialidade do sogro. Segundo essas palavras, a epilepsia é a “grande
aura”, o “mal sagrado” que só acomete os verdadeiros
gênios. Assim, nem percam tempo tentando disfarçar de mim o que
viram porque, para ser sincero, eu me sinto até orgulhoso de ser epilético!
É mais uma prova de que sou predestinado, pela Providência Divina
e pelos Astros, a ser o “Gênio da Raça Brasileira”!
– E o senhor é epilético? – perguntou, frio, o Corregedor.
– Garantir, mesmo, que sou, não posso não, Senhor Corregedor,
porque nunca fui a um médico para verificar isso, com medo de que ele,
por acaso, me curasse e me tirasse, assim, essa característica da genialidade.
Mas tenho quase certeza de que sou, pelo motivo que passo a lhe expor. Depois
que li aquelas palavras do genial genro de Ruy Barbosa, fiz uma promessa a
Santo Antônio Conselheiro para ficar epilético e me tornar gênio.
Pois bem: daí a três dias – prazo que eu tinha dado ao Santo
sertanejo – fui para cima do meu lajedo, virei-me para o lado do Pajeú
e de Canudos, ajoelhei-me e fiquei assim, uma porção de tempo.
De repente, minha cabeça deu “um estalo do Padre Vieira”
e tive o meu primeiro ataque. Daí em diante, fiquei assim! De vez em
quando, caio no chão, escumando pela boca e mordido de cachorro da
molesta! Mas, como já disse, não tenham vergonha por mim, não,
porque isso é até motivo de orgulho, uma vez que é o
mesmo “mal sagrado” de um Príncipe de sangue brasileiro,
o Impostor Dom Pedro I, e de um Poeta genial, Dom Joaquim Maria Machado de
Assis! – Pois Dom Pedro Dinis Quaderna, com todo o seu “gênio”
e a sua “fidalguia”, lamento comunicar-lhe que o senhor está
em maus lençóis! – disse o Corregedor, respirando fundo e atirando
a flecha envenenada que guardara para o fim. – A carta que recebi é
extensa e faz cerca de sessenta acusações contra o senhor. Entre
estas, duas muito importantes! A primeira, diz que o senhor descende daqueles
fanáticos execráveis que, na Pedra do Reino, de 1835 a 1838,
subverteram o Sertão com uma “seita” sanguinária,
degolando mulheres, crianças e cachorros. Diz a carta que o senhor
mesmo se encarregou de lembrar isso à ralé sertaneja daqui,
conseguindo, assim, por mais estranho que pareça, assumir uma certa
ascendência sobre ela. Dizem que o senhor fez isso, a princípio,
apenas para explorar o Povo, inclusive em dinheiro; mas que, depois, com a
chegada de Sinésio, foi por causa disso que pôde aliciar tanta
gente para a expedição do tal rapaz do cavalo branco. Segundo
a carta, o fato de pertencer àquela família sanguinária
e subversiva é o motivo da sua ascendência sobre os Cangaceiros,
Cantadores, Vaqueiros e mais toda essa ralé sertaneja de fateiras,
prostitutas, tangerinos e contrabandistas de cachaça. Finalmente a
carta revel um outro fato, gravíssimo: é que esse anel que o
senhor usa, é mesmo anel que foi retirado do dedo do fazendeiro Dom
Pedro S astião Garcia-Barretto, momentos depois de ter sido ele degolado
or seus assassinos.Pronto, nobres Senhores e belas Damas de peitos macios!
Estava descoberto o meu grande crime, aquela culpa que eu vinha procurando
ocultar tão cuidadosamente, desde que se iniciara o depoimento. Tive
a sensação de que há muito tempo eu pressentia uma acusação
dessas, na minha vida. Era esse o motivo real das minhas apreensões.
Não só das que experimentara há pouco, quando vinha para
a Cadeia, mas da apreensão geral, muito mais antiga, surgida com o
Sol do meu sangue, quando, sem motivo palpável nenhum, eu já
me sentia culpado sem ninguém me acusar diretamente, sem que suspeita
nenhuma de Juiz nenhum tivesse sido soprada a meu sangue, o qual, porém,
já se sentia enfermo, infeccionado por uma culpa que me perseguia e
me envenenava.
O Corregedor, vendo que eu não dizia nada, insistiu: – Então?
O que é que me diz? As duas afirmações são verdadeiras?
– São, sim senhor! Minha descendência da Casa Real da Pedra do
Reino é verdadeira, e é verdade também que eu, no dia
24 de Agosto de 1930, tirei o anel do dedo do meu Padrinho e fiquei com ele!
– Alguém viu o senhor tirar o anel? – Não senhor! O senhor não
disse que havia outras pessoas com o senhor, quando acharam o corpo? – Disse!
– Quer dizer que o senhor tirou o anel escondido? – De certa maneira, foi!
– Por que o senhor fez isso? – Senhor Corregedor, foi uma dessas coisas que
a gente faz sem nem ao menos saber por quê. Pensei em pedir licença
a Arésio, como filho de meu Padrinho, para ficar com aquela lembrança.
Mas a confusão estava enorme. Tirei o anel e coloquei-o no bolso, pensando
em comunicar o fato mais tarde. Mas aí comecei a ficar envergonhado,
porque ia parecer que eu o tirara de má-fé, ia parecer um furto.
Aí, deixei que as coisas ficassem como estavam.
– O senhor veja que ocultou fatos importantíssimos para a elucidação
do caso todo! Por que não disse que estava no lajedo perto do qual
dispararam o tiro? Por que não me contou nada sobre as ligações
que estabeleceu, no espírito dos Sertanejos ignorantes, entre a seita
da Pedra do Reino a expedição sediciosa de seu primo e sobrinho,
Sinésio, o Alumio ? E, sobretudo, por que escondeu de mim a história
do anel de s Padrinho? – Confesso meu erro, Senhor Co regedor! Em tudo, tive
medo de me complicar com a justiça e c lei a boca! Pois o senhor está
complicado é gora e, francamente, sua situação é
grave! Como é que eu posso, dagora em diante, confiar no senhor? –
Vou ver se dou um jeito, contando tudo o que sei, desde o começo, tintim
por tintim! Por onde Vossa Excelência quer começar a ouvir? –
Pela história da Pedra do Reino, já que, segundo a denúncia,
foi isso que fez os Sertanejos ignorantes irem atrás de suas conversas
para a expedição de Sinésio! – Muito bem então,
Excelência! Vou dizer! Escute!
FOLHETO LXV
De Novo a Pedra do Reino Comecei então, nobres Senhores e belas Damas,
a épica e famosa “Crônica dos Reis da Pedra Bonita”,
nos seguintes termos: – Não tenho dificuldade em contar essa história
a Vossa Excelência, porque colecionei cuidadosamente uma porção
de textos de geniais escritores paraibanos e pernambucanos sobre ela. Alguns
desses textos, devidamente “versados”, serão incluídos
na minha Epopéia. Por isso, trago sempre comigo a cópia manuscrita
que fiz deles, desde que Gustavo Moraes doou à nossa Biblioteca uma
coleção da Revista do Instituto Arqueológico de Pernambuco
e outra da Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba.
Não sei se Vossa Excelência sabe, mas Samuel e Clemente já
provaram que a História é da Direita e a Sociologia é
da Esquerda. Temos, aliás, uma prova disso, porque o patrono da História
brasileira, Varnhagen, é “de sangue godo, lambe-cu do Impostor
Dom Pedro II, católico e Visconde”, enquanto que o da nossa Sociologia,
Sylvio Romero, era “católico-sertanejo, rebelde e socialista”.
Ora, Gustavo Moraes era integralista e participante, no Recife, do Movimento
da revista Fronteira, ligada a Manuel Lubambo e ao Padre Antônio Fernandes.
Foi por isso que, entre nós, reforçou o interesse pela História
e pela Genealogia, com algumas idéias que tinha bebido no Recife e
que terminou difundindo entre nós, nas memoráveis sessões
do nosso “Instituto Genealógico e Histórico do Sertão
do Cariri”. Confesso que, até o dia em que li essas revistas e
outras obras doadas por ele à Biblioteca, eu escondia minha descendência
régia como se fosse um crime e uma mancha. Mas depois, um dia, caiu
nas minhas mãos um livro do genial escritor pernambucano, o Doutor
Francisco Augusto da Costa. Foi um des lumbramento para mim, Senhor Corregedor!
Como, certamente, já explicaram a Vossa Excelência na infame
carta anônima, a linhagem real dos Quadernas tinha dois ramos principais,
o dos Vieirados-Santos e o dos Ferreira-Quadernas. Mas o Rei principal, mesmo,
foi meu bisavô, Dom João II, o Execrável! – Dom João
II, o Execrável? Que diabo de confusão é essa? – Não
se espante não, Excelência! O nome dele, mesmo, era João
Ferreira-Quaderna, assim como o nome de Dom Pedro I, o Cavaleiro, era Pedro
de Alcântara de Bragança. Mas todos os escritores que escrevem
sobre a Pedra do Reino só chamam meu bisavô de “o execrável
João Ferreira”! Ora, eu aprendi, pela leitura da História
da Civilização de Oliveira Lima e da História Geral do
Brasil, de Varnhagen, que nossos Reis e Imperadores têm sempre um Dom
antes do nome e um cognome depois. Reis do Brasil e de Portugal, por exemplo,
foram Dom Manuel I, o Venturoso, e Dom Sebastião, o Desejado! No estrangeiro,
é a mesma coisa, tirando-sè o Dom. Na França, houve um
que, a se tirar pelo nome, era viciado em passarinhar: chamava-se Henrique,
o Passarinheiro! Dizem que ele não podia ver um passarinho: caga-sibito
que passasse na frente dele estava lascado, ele matava! Na Alemanha, houve
outro Rei que me fez levar, um dia, uma vaia terrível de Clemente e
Samuel! Quem foi? – Frederico, o Grande! Eu, ouvindo um dia uma discussão
dos dois, achei o nome dele safadíssimo! – Não entendo! Por
quê? – Eu não estava vendo o nome escrito não, estava
somente ouvindo, de modo que pensei que ele se chamava Frederi CuGrande! Assim,
vendo que ilustres escritores pernambucanos chamavam meu bisavô de “o
execrável João Ferreira-Quaderna”, vi logo que aquilo era
uma coisa régia e grandiosa e que o nome monárquico dele devia
ser Dom João II, o Execrável! – Mas isso é um nome pejorativo!
– disse o Corregedor que, naquele dia, apesar de todas as minhas lições,
ainda estava meio cru nessas questões de Monarquia.
Eu, compadecido dele, expliquei pacientemente: – Nessas questões
de linhagem real, Senhor Corregedor, essas coisas pejorativas não têm
a menor importância! Filipe, o Belo, da França, falsificava dinheiro,
motivo pelo qual passou à História com o nome comprido mas bonito
de Filipe, o Belo, o Moedeiro Falso! Ora, eu pensei assim: “Se esse Rei
da França falsificava dinheiro, que é que tem que meus antepassados,
Reis do Povo Brasileiro, degolassem mulheres, meninos e cachorros? Crime por
crime, os da minha família foram muito menos chinfrins, porque degolar
pessoas é muito mais monárquico do que passar dinheiro falso!”
Está vendo, Excelência? Esse negócio de Rei é assim
mesmo! Dom João li, o Príncipe Perfeito, que foi Rei de Portugal,
cometeu um desses crimes régios, parecidos com os do meu bisavô:
deu uma facada no cunhado, o Duque de Viseu, que, ali mesmo, na hora, esticou
a canela!
– Quer dizer que o senhor, além de pertencer, pelo lado materno, “à
linhagem real sertaneja dos Garcia-Barrettos”, ainda pertence, pelo lado
paterno, à “linhagem real da Pedra do Reino”? Os Quadernas
são também, na verdade, como diz a carta, de linhagem real?
– São, sim senhor! E não sou eu, um Quaderna, quem diz isso
não, é um verdadeiro “Príncipe da Literatura Brasileira”,
o genial Pereira da Costa! Foi por causa do que ele escreveu que eu me convenci,
de uma vez por todas, primeiro de que era Rei, depois que tinha de ser Monarquista
da Esquerda! Está aqui o texto dele, ando sempre com o papel em minha
pasta. Escute! Li então para o Corregedor e Margarida, aquelas palavras
sacramentais de unção e consagração que tinham
exercido -papel tão importante em minha vida, aquelas palavras de Pereira
da Costa que começam assim: “Foi na Pedra Bonita que se firmou
a reunião desses novos Sebastianistas, e nos subterrâneos dos
seus rochedos foi o Templo de seus falsos Sacerdotes e o Sólio-Real
dessa imaginária e caricata Monarquia”. Quando eu acabei de ler,
o Corregedor sorriu: . – Falsos sacerdotes! Monarquia caricata e imaginária!
E o senhor recebe isso não só resignado, como até orgulhoso,
segundo parece? – É isso mesmo, Excelência! Pereira da Costa
era um escritor oficial e consagrado, membro do “Instituto Arqueológico
de Pernambuco”, de modo que a palavra dele é palavra de Príncipe,
não voltaria atrás nem que ele depois, arrependido, quisesse
se desdizer! Se ele consagrou meus antepassados como Reis do Brasil, mesmo
que considere caricata a nossa Monarquia nós estamos consagrados e
acabou-se, nem Deus agora dá jeito! Quanto ao fato dele considerar
caricata e imaginária uma Monarquia sertaneja tão gloriosa e
cavalariana quanto a da Pedra do Reino, isso é problema dele! Não
tenho culpa de Pereira da Costa, com todo o seu gênio, ser burro desse
jeito! Depois, acontece que todas as monarquias são imaginárias
e caricatas! – E o senhor, mesmo pensando assim, é monarquista? – Sou,
sim senhor! Sou da Esquerda régia, ou, se Vossa Excelência prefere,
um Monarquista da Esquerda! – Por que essa contradição? – Porque
acho Monarquia bonito, com aquelas Coroas, tronos, cetros, Brasões,
desfiles a cavalo, bandeiras, punhais, Cavaleiros e Princesas, como no folheto
de Carlos Magno e os Doze Pares de França! É por isso que meu
parente Dom Silvestre José dos Santos foi Rei do Brasil, na Serra do
Rodeador, em Pernambuco, com o nome de Dom Silvestre I, o Enviado. Na Pedra
do Reino, estiveram juntos, reinando, os dois ramos da família, os
Vieira-dos-Santos e os Ferreira-Quadernas. Os Vieira-dos-Santos eram os quatro
filhos do velho Príncipe Dom Gonçalo José dos Santos:
João Antônio, Pedro Antônio, Isabel e Josefa; ou melhor,
Dom João I, o Precursor, Dom Pedro I, o Astucioso, a Princesa Isabel
e a Rainha Josefa. Do ramo dos Quadernas, estavam lá o velho Príncipe
Dom José Maria Ferreira-Quaderna, meu trisavô o pai do meu bisavô,
Dom João Ferreira-Quaderna, subido ao Trono sertanejo do Brasil com
o nome de Dom João II, o Execrável. Mas os dois ramos terminaram
se unificando, porque meu bisavô casou-se com as duas irmãs,
primas dele, a Rainha Josefa o a Princesa Isabel! – Casou-se com as duas irmãs
de uma vez? – Senhor Corregedor, Vossa Excelência já deve ter
notado que o Catolicismo Sertanejo tem suas leis e seus mandamentos próprios!
A poligamia, o pensamento socialista-sertanejo e monárquico, a devora
dos proprietários por Cachorros degolados e ressuscitados como Dragões
eram alguns dos itens do nosso credo da Pedra do Reino! – Veja, Dona Margarida,
que fim de mundo! – disse o Corregedor. – Eu sabia que aquela gente tinha
sido cruel e fanática; mas nunca pensei que fossem, também,
tão perigosos e subversivos! E veja como isso vai se ligando aos poucos,
para a explicação de tudo o que aconteceu, aqui! Sinésio,
sendo filho de sua irmã, Senhor Pedro Dinis Quaderna, era, também,
descendente desse pessoal, não era? – Era, sim senhor! Eu e Sinésio
somos descendentes de Dom João II, o Execrável e da prima e
segunda-mulher dele, a Princesa Isabel, degolada por ordem do marido, no dia
16 de Maio de 1838, juntamente com a outra Rainha, minha tia-bisavó
Dona Josefa! – Que horror! Que monstruosidade, a do seu bisavô! – disse
o juiz.
– Excelência, nessa questão de degolar as esposas, meu bisavô
não era nada, comparado com o rei Henrique VIII, da Inglaterra! Além
disso, depois eu descobri que todos os Reis cujas vidas são narradas
na História da Civilização tinham historiadores que escreviam
sobre as vidas deles umas espécies de Epopéias chamadas “Crônicas”
e onde vinha a relação de tudo quanto era crime e safadeza que
eles tinham praticado. Foi assim que fiquei de novo orgulhosíssimo,
vendo que os Reis sertanejos, antepassados meus e de Sinésio, tinham
tido Cronistas nas pessoas de seis geniais escritores brasileiros – Varnhagen,
Pereira da Costa, Sebastião de Vasconcelos Galvão, Antônio
Áttico de Souza Leite, Euclydes da Cunha e o Comendador Francisco Benício
das Chagas! – E todos esses se ocuparam, mesmo, da Monarquia sertaneja da
Pedra do Reino? – Se ocuparam, sim senhor! Mas, para mim, o melhor foi o genial
Antônio Áttico de Souza Leite, porque fez uma Epopéia,
com cavalos e Cavaleiros, combates sanguinolentos, Reis assassinados, Rainhas
e Princesas degoladas e tudo! Espero, um dia, “versar” tudo o que
ele escreveu, metendo o resultado na minha Obra, no meu Castelo sertanejo!
Mas como, antes disso, eu já pretendia fazer um certo proselitismo
entre os Sertanejos, mandei imprimir na tipografia da Gazeta uma cópia
“revista e melhorada” da Epopéia em prosa do genial Souza
Leite. Na capa, vinha o título: Memória sobre A Pedra do Reino,
ou Reino Encantado, na Comarca da Vila Bela da Serra Talhada, Província
de Pernambuco. Debaixo do título, eu coloquei a gravura que meu irmão
Taparica Pajeú tinha riscado e cortado em madeira. Publiquei, também,
um folheto em versos sobre o mesmo assunto, escrito por meu velho primo João
Melchíades, ilustrando sua capa com a mesma gravura de Taparica. A
gravura foi feita de acordo com o desenho que o Padre Francisco José
Correa de Albuquerque fez do lugar sagrado da Pedra do Reino. Vossa Excelência
conhece esse desenho? – Não! – Pois procure a revista do “Instituto
Arqueológico” e veja, porque é uma beleza! É um
anfiteatro grande, com o esqueleto do meu bisavô amarrado em dois troncos
de árvore, com um bocado, mais, de caveiras de gente e de cachorro,
pedras, pés de pau, subterrâneos encantados, o diabo! Mas, como
no folheto não cabia tudo o que existia no desenho, eu mandei Taparica
tirar as coisas mais desonrosas na primeira cópia: o esqueleto de meu
bisavô foi uma! Depois, na segunda gravura, ele copiou somente as duas
grandes pedras cilíndricas e paralelas que, segundo os Reis meus antepassados,
eram as duas torres da Catedral soterrada e encantada dos Sertanejos. No meio
delas, Taparica colocou um retrato do nosso bisavô, com Coroa na cabeça,
para impressionar! Olhe, Senhor Corregedor, eu tenho aqui, na minha pasta,
exemplares dos dois folhetos, de modo que posso dar ao senhor uma cópia
de cada um, para serem anexadas ao processo!
Li então para o Corregedor toda aquela história que Vossas
Excelências já conhecem, nobres Senhores e belas Damas. Quando
acabei, entreguei a ele os exemplares dos folhetos, que foram passados a Margarida
e anexados ao inquérito. Então o Corregedor falou: – Dom Pedro
Dinis Quaderna, agora tudo começa a se esclarecer! Só não
entendo é como, a partir daí, o senhor pode provar que é,
mesmo, descendente, em linha masculina e direta, desse pessoal da Pedra do
Reino! – É fácil, Senhor Corregedor! Antônio Attico de
Souza Leite não foi muito claro porque ele só escreveu sobre
a Pedra do Reino, mesmo, deixando de lado o que aconteceu depois. Acontece
porém que minha bisavó, a Princesa Isabel, no momento de ser
degolada, pariu, como o senhor deve se lembrar, um menino que rolou pela pedra
abaixo. Esse menino foi meu avô, Dom Pedro Alexandre, criado pelo Padre
Manuel José do Nascimento Bruno Wanderley. Quando ele cresceu, o Padre
Wanderley casou-o com uma filha natural sua, Bruna Wanderley, minha avó.
É por isso que os Quadernas ora nascem morenos como eu, puxando ao
sangue mouro-mameluco dos Vieira-dos-Santos e dos Quadernas, ora nascem louros,
como era o caso de minha irmã Joana Quaderna, puxando ao sangue godo-flamengo
de minha avó Bruna, filha do Padre Wanderley.
– Quer dizer que a linhagem real da Pedra do Reino continuou através
de uma filha de padre …
– É, sim senhor, o que não quer dizer nada, porque a dos Braganças
também descende de um filho de Bispo! Dom Pedro Alexandre, meu avô,
casou com a filha do Padre Wanderley; ela emprenhou e pariu meu Pai, Dom Jedro
Justino, a quem eu, Dom Pedro Dinis, sucedi, com o nome de Dom Pedro IV! Ave
Maria, nobres Senhores e belas Damas! Quando eu vi, já tinha dito isso
e não havia mais jeito de voltar atrás! O Corregedor partiu
como uma fera: – Quer dizer que o senhor é que é o verdadeiro
Rei do Brasil? Afinal de contas, quem era o Rei, mesmo, daqui? O senhor ou
seu Padrinho, Dom Pedro Sebastião? Vi que minha situação
estava ficando cada vez mais perigosa, mas como não havia mais jeito,
continuei a confessar: – De fato, Senhor Corregedor, o Rei, por direito e
por sangue, sou eu! Ou melhor, eu é que sou o Imperador, dominando
sobre todo o vasto Quinto Império do Escorpião! Meu Padrinho
era somente Rei do Cariri, um dos sete Reinos integrantes do Império
todo! Outro desses Reis vassalos e tributários meus, foi Dom José
Pereira Lima, o invencível guerrilheiro de Princesa! – Ah, quer dizer
que o senhor reconhece, formalmente, que a insurreição de Princesa
seria, para o senhor, um novo episódio da Pedra do Reino! E provavelmente,
quando Sinésio apareceu por aqui, montado em seu cavalo branco, era
tudo isso que o senhor tinha em mente, procurando unir os Sertanejos para
nova sedição contra as autoridades…
– Senhor Corregedor, o que eu queria mesmo, confesso, era ser Imperador
do Sertão e do Brasil,-para me tornar Gênio da Raça Brasileira.
Agora, que para isso eu queria unir o movimento da Pedra do Reino com a Revolução
de Princesa e a Demanda Novelosa que empreendemos com. Sinésio, isso
eu queria! – Muito bem! Anote essa confissão do acusado, Dona Margarida!
Agora, uma pergunta que lhe faço por curiosidade, Dom Pedro Dinis Quaderna!
Me diga uma coisa: seus irmãos legítimos não eram, todos,
mais velhos do que o senhor? – Eram, sim senhor! – Então como é
que se explica que o senhor tenha sido o herdeiro do Trono? – Eu redigi um
papel pelo qual eles abdicavam desse direito, e todos quatro o assinaram.
– Sem opor dificuldade? – Sem opor dificuldade! A princípio, julgando
que se tratava de renúncia a alguma herança de terras, ficaram
hesitando. Mas depois que viram o que era, assinaram tudo, até achando
graça! Manuel, o mais velho, chegou a dizer para os outros: “Esse
Dinis tem cada coisa! Eu estou lá ligando pra essas coisas do tempo
do ronca, do tempo de Dom João Pamparra e de Dom Pedro Cipó-Pau!”
Agora, o que acontece é que eu nunca ousei assumir, de fato, o Trono!
– menti. – Eu descobrira que as pessoas que realmente encarnam os Países,
os chamados “Gênios das Raças”, são sempre Poetas,
e não Reis! Assim, para que diabo ia me meter nessas empreitadas arriscando-me
a morrer degolado, como meu Padrinho? Por isso, limitei-me a desempenhar,
junto a Dom Pedro Sebastião, as funções de Astrólogo,
Conselheiro, Rei de Armas, Guarda do Selo e dos Tesouros do Cariri. Quando
Sinésio apareceu depois, em 1935, foi a mesma coisa: ele era o Príncipe
do Cavalo Branco e eu desempenhava, junto a ele, as mesmas funções
que tinha exercido junto a seu Pai! – O senhor confessa, então, que
tomou o partido de Sinésio contra Arésio? – Confesso, sim senhor!
Aliás, era uma questão de sangue e parentesco! Sinésio,
além de ser meu primo pelo lado dos GarciaBarrettos, era meu sobrinho,
por parte da minha irmã Joana! Arésio era somente primo, porque
era Garcia-Barretto, mas não era Quaderna! Mas, apesar de tomar o partido
de Sinésio, eu via perfeitamente que ele ia arriscar a garganta, que
seu destino provável era acabar como o Pai, degolado. Resolvi, então,
deixar ver como corriam as coisas: ficaria ao lado de Sinésio, como
Astrólogo e Rei de Armas. Se as coisas corressem bem com ele e com
a expedição, minha situação seria ótima.
Se corressem mal, eu não -teria me comprometido diretamente na Revolução
da “Guerra do Reino”. Poderia, então, tendo visto tudo, escrever
a minha Crônica epopéica, A Desaventura de Sinésio, o
Alumioso, começando-a com a história de meu Padrinho, continuando
com a de Sinésio e tornando-me, com ela, “Gênio da Raça
Brasileira”, oficialmente reconhecido como tal pela Academia Brasileira
de Letras! – Quer dizer então que o Chefe guerreiro da tal viagem revolucionária
e sediciosa que vocês fizeram foi, mesmo, o rapaz do cavalo branco?
– Foi, sim senhor!
– Anote, Dona Margarida! Vamos então voltar ao dia da chegada de Sinésio,
Dom Pedro Dinis Quaderna! Preciso de informações exatas sobre
todos os personagens que tinham mais interesse na vida ou na morte do rapaz
do cavalo branco. O senhor vai, portanto, fazer um esforço para recordar
onde estavam e que faziam essas pessoas, no momento em que o Doutor Pedro
Gouveia declarou ao juiz da Comarca que o rapaz do cavalo branco era Sinésio.
A seu ver, quem eram as pessoas mais afetadas pela reaparição
do rapaz? – Acho que eram, em primeiro lugar, Arésio, irmão
dele, por causa da herança; o usineiro Antônio Moraes, com seu
filho Gustavo e sua filha Genoveva; e finalmente as duas filhas do antigo
sócio de meu Padrinho, o gringo Edmundo Swendson, isto é, a
moça Clara, que era a mais velha, e a caçula, Dona Heliana,
a que tinha os olhos verdes! Vou então, conforme seu pedido, ver se
consigo me lembrar e contar onde estavam e o que faziam todos esses, no momento
em que Sinésio, ressuscitado, reapareceu aqui!
FOLHETO LXVI
A Filha Noiva do Pai, ou Amor, Culpa e Perdão – Enquanto, na rua,
se apresentavam as Cavalhadas, sucedia na Casa de Dom Antônio Moraes
um episódio importantíssimo para a nossa história. Devo
esclarecer que, além da casa da fazenda “Angicos”, Dom Antônio
Moraes tinha aquela, que fica naquele alto e que Vossa Excelência pode
avistar, daqui desta janela. É urna casa de fazenda que pertenceu ao
Coronel Deusdedit Villar, homem da mesma família do Contra Almirante,
Senhor Corregedor. Como o senhor poderá ver se vier até aqui,
hoje ela está abandonada e meio derruída. Caíram os telhados
que cobriam a calçada de Pedra que rodeia a casa, e que, formava, assim,
o copiar. Caiu o velho cruzeiro de madeira, plantado sobre uma base de pedra-e-cal
e que era tão caro ao “esteta Gustavo Moraes”, como dizia
Samuel. Caiu o muro de pedra que os Moraes tinham mandado construir e que
separava oo pátio da casa dos marmeleiros do alto do Tabuleiro. Foi
derrubada a torre que Gustavo Moraes mandara erguer, um pouco à imitação
da velha “Casa-Forte da Onça Malhada”; de fato, esta era
bastante mais antiga, mais severa e forte, e Gustavo Moraes não perdoava
isso à família GarciaBarretto, inimiga e rival da sua: por isso,
numa revolta contra o tempo e contra os fatos, procurara suprir artificialmente
e quanto possível as diferenças, tentando ficar em pé
de igualdade com a família do meu Padrinho. Mas o certo é que,
abandonada, arruinada e solitária, a casa ainda está ali, e
Vossa Excelência, se quiser, pode ir lá, em diligência
para o nosso inquérito. Naquele ano, estava restaurada e perfeita,
abrigando o esplendor e a fortuna com que os Moraes nos deslumbravam, as idéias
novas, o luxo e as novidades que traziam do Recife. Naquele dia da chegada
de Sinésio, estavam lá Antônio Moraes, seu filho mais
moço, Miguel, e sua filha Genoveva, aquela que exerceu um papel tão
terrível na vida de Arésio Garcia-Barretto. Não estavam,
no momento, nem o filho mais velho, Gustavo, nem Arésio que, como já
disse, estava morando lá, como hóspede. Arésio, com seu
gênio sombrio, estranho e violento, desaparecia às vezes durante
dois ou três dias, sem dar explicações a ninguém
sobre isso. Aquele era um desses dias. Desde a véspera, Sexta-Feira
à noite, que ele se ausentara da casa dos Moraes, de modo que no momento
em que Sinésio foi dado a conhecer, ninguém ali sabia onde se
encontrava seu irmão mais velho. Aliás, Senhor Corregedor, acho
que muita coisa da minha história ficará logo esclarecida, se
eu disser a Vossa Excelência que se trata de uma história de
casas arruinadas. Em ruínas, está, como lhe disse, a velha e
grande casa do “Alto dos Borrotes”, comprada por Dom Antônio
Moraes aos herdeiros do Fidalgo Dom Deusdedit Villar, Coronel de Milícias
e Capitão-Mor do Sertão do Taperoá. Em ruínas
está a velha casa, edificada por Dom Edmundo Swendson, pai de Clara
e Heliana, perto da Fortaleza do Nazaré do Cabo, a cavaleiro sobre
a barra do Rio Suape, no litoral de Pernambuco. Em ruínas está
a casa-forte da “Onça Malhada”, incendiada na noite do dia
24 de Agosto de 1930. E finalmente está em ruínas a antiga “Fortaleza
de São Joaquim da Pedra”, situada no litoral do Rio Grande do
Norte e pertencente, também, ao pai de Clara e Heliana, as duas moças
que, por um equívoco ao mesmo tempo funesto e alumioso, terminaram
efetuando o “cruzamento de amor e sangue” que encruzilhou e crucificou
o destino de Sinésio. Mas, como eu vinha dizendo: o primeiro acontecimento
importante daquela tarde, sucedeu na casa do usineiro e dono de minas Antônio
Moraes.. Foi-me comunicado, logo na noite daquele Sábado memorável,
por um pedreiro, Teodoro Barba-de-Bode, que era meu discípulo e membro
mais ou menos influente da “Ordem dos Cavaleiros da Pedra do Reino”.
– Ah, quer dizer que o senhor confessa que fundou essa Ordem? – Confesso,
sim senhor! Como Vossa Excelência deve se lembrar pela narração
de Antônio Áttico de Souza Leite, isso de fundar uma seita para
cobrar jóias em dinheiro é uma tradição da minha
família – e também, aliás, de toda Monarquia que se preza.
Pois bem: Teodoro Barba-de-Bode tinha sido contratado, uns vinte dias antes,
para executar uns trabalhos de pedreiro na velha casa dos Moraes. Gustavo,
filho mais velho, dirigira as reformas da velha casa, introduzindo nela várias
modificações ditadas pelas novas idéias que ele trouxera
do Recife. Como nos explicara o Doutor Samuel, Gustavo bebera essas idéias
junto a um estranho grupo de intelectuais recifenses da Direita, grupo congregado
em torno de um Padre jesuíta mais estranho ainda, o Padre Antônio
Fernandes. Esse Padre era um hindu-português de Goa, homem enigmático
e político, que adquirira renome no Recife, principalmente depois da
acirrada polêmica que mantivera com um Filósofo francês.
Conseguira reunir, em volta de si, Poetas, jornalistas e políticos,
jovens e ardorosos. Alguns deles estavam entrando, como eminências-pardas,
no Poder do Estado, em Pernambuco. Outros tinham fundado uma revista de Arte
e Literatura, Fronteira; e fora ao contato do grupo esteticista e belamente
reacionário de Fronteira – como dizia Samuel – que Gustavo Moraes adquirira
as idéias com as quais, primeiro nos chocara, e depois nos deslumbrara
a todos nós, intelectuais sertanejos de Taperoá. Esse grupo
de intelectuais recifenses da Direita “pusera em moda o estilo Barroco
brasileiro; o despojamento monacal dos Mosteiros e das Casas-de-Missões
jesuíticas; os espelhos, os cristais, as pratarias; a Aristocracia
dos Engenhos; o Catolicismo meio inquisitorial dos Ibéricos; o gosto
pela arquitetura dos velhos sobrados de azulejos; das velhas Igrejas – com
suas esculturas em madeira, seus retábulos e painéis pintados
a óleo sobre tábuas de cedro – assim como pela arquitetura das
velhas Fortalezas brasileiras dos séculos XVI, XVII e XVIII”,
o que, tudo, soubemos ainda pelo Doutor Samuel Wan d’Ernes. Assim, de acordo
com essas “boas e velhas idéias tradicionais”, Gustavo Moraes
rasgara de aberturas as paredes da casa da família Villar – comprada
por dinheiro muito acima de seu valor – enchendo-a de nichos e santuários,
nos quais colocara santos de barro cozido ou de madeira, comprados por tudo
quanto era de sacristia e igreja velha da Paraíba e de Pernambuco.
Ao chegar do Recife para Taperoá, Gustavo mandara procurar, na rua
e nas casas de fazenda da nossa Vila, mesas velhas, cadeiras, consolos e tudo
quanto era de velharia, mais, dessa qualidade. Distribuíra tudo isso
pela casa, cobrindo as mesas-decentro e forrando os oratórios com as
coisas mais extravagantes – paramentos sacerdotais franjados de ouro que ele
comprara em São João do Cariri, toalhas de renda, estribos de
selas antigas, lavatórios de louça azul e branca e móveis
que ninguém usava mais por terem se tornado “fora de moda”.
A casa ficara com tal aspecto que, um dia, a Velha do Badalo, uma velha doida
que existe por aqui e que vende coentro de porta em porta, chegando na sala
de visitas dos Moraes, julgou que estava numa capela, ajoelhou-se diante de
uma mesa-de-centro enfeitada de paramentos roxos, benzeu-se e rezou bom pedaço
de um terço, antes que os empregados a detivessem. Pois o contrato
dos Moraes com o pedreiro Teodoro Barba-de-Bode referia-se a essa reforma.
Naquele dia 1.0 de Junho de 1935, ele fora chamado para abrir umas seteiras
nas duas paredes dos oitões da casa; depois da primeira parte das reformas,
Gustavo Moraes se apercebera de que a casa dos GarciaBarrettos tinha mais
aquele elemento de “arcaica rusticidade e beleza”, e, inconformado,
mandara abrir seteiras na dos Moraes. Chamado ao “Alto dos Borrotes”
para fazer o trabalho de alvenaria e cantaria, Teodoro Barba-de-Bode, sabendo
da inimizade que reinara outrora entre Antônio Moraes e meu Padrinho,
Dom Pedro Sebastião, foi me consultar, indagando se devia, ou não,
aceitar a incumbência, temeroso que estava “de sofrer algum malefício,
por trabalhar naquela casa, ocupada por gente que pertencia ao partido do
Diabo”.
– Vê-se que o senhor instruiu bem os membros de seu Partido subversivo!
– disse vivamente o Corregedor.
Eu suspirei: – Vossa Excelência já sabe de tudo e assim é
melhor que eu confesse tudo de uma vez! De fato, Excelência, sempre
achei que guerra é guerra, e, no caso, na luta entre os Moraes e os
Garcia-Barrettos, tratava-se da sobrevivência do meu sangue e da minha
Coroa! Esse foi o motivo de eu ter explicado a todos os meus amigos que devíamos
cerrar fileiras em torno de Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, Porque
Dom Antônio Moraes era do lado do Diabo! Apesar disso, porém,
naquele dia eu tranqüilizei Teodoro. Disse que ele podia, sem remorso,
aceitar a encomenda de Gustavo Moraes, pois era até bom, para nós,
que algum dinheiro pertencente ao lado do Mal e do Diabo, passasse para uma
pessoa que, como ele, estava do lado do Bem e de Deus_ Expliquei-lhe que,
com a morte do nosso velho Rei, Dom Pedro Sebastião, a nossa luta não
se acabara, mas tinha assumido uma tática nova. Que, dentro dessa tática,
ele devia aceitar aquela oportunidade rara: nenhum de nós tinha acesso
à casa dos Moraes. Assim, ele aproveitasse, e entrasse lá, fazendo
bem o serviço, mas com os olhos e os ouvidos bem abertos, pois como
ninguém dá importância a um pedreiro, talvez lhe aparecesse
a sorte de tomar conhecimento de alguma coisa vital, de alguma informação
preciosa para o nosso Partido! – Está ouvindo, Dona Margarida? – disse
o Corregedor, escandalizado. – Está vendo como esse pessoal é
perigoso e sem escrúpulos? Anote, tudo isso é muito importante!
Margarida anotou e eu continuei: – Naquele sábado, pois, Teodoro trabalhou
a manhã toda, num altíssimo andaime, colocado num quarto situado
do lado esquerdo do corredor que ligava a sala de visitas à sala de
jantar do casarão. Estava realizando, já, o trabalho de caiação
daquele lado, pois já abrira, na parede, as seteiras encomendadas por
Gustavo Moraes. Teodoro tencionava, como quase todo mundo na Vila, ir para
a rua à tarde, para assistir às Cavalhadas. Tinha tido, aliás,
o cuidado de deixar isso bem claro, na véspera: no sábado, largaria
o trabalho ao meio-dia, só voltando ao “Alto dos Borrotes”
na segunda-feira pela manhã. Aconteceu, porém, que, no dia da
chegada de Sinésio, aí pelas onze horas da manhã, Teodoro
fez uma pausa em cima do andaime, para descansar, deitou-se um pouco e terminou
adormecendo, com a cabeça repousando em cima de uma rodilha de estopa.
Com o torpor causado pelo cansaço e pela fome que precede a hora do
almoço, dormiu um bocado e ficou lá em cima, esquecido, com
o pessoal da casa julgando que ele tinha largado o serviço, conforme
o ajuste, e se retirado para a Vila. Todos os serviçais do casarão,
atraídos pelas Cavalhadas, tinham descido para a Vila, depois de servido
o almoço. A mulher de Antônio Moraes, Dona Eulália, não
se dava bem com o marido e nunca estava onde ele estivesse, de modo que tinha
ficado na casa que a família tinha no Recife, no bairro da Benfica.
Quanto a Gustavo, aí pelas duas horas da tarde seu motorista lhe trouxera
o carro com o qual ele nos deslumbrara naquele ano, comprado no Recife por
uma fotografia publicada no Diário de Pernambuco e classificada por
Samuel como “uma Limusine presidencial ou régia”. Apanhara
o carro o seguira também para a rua. Não porém para ver
a Cavalhada o sim para viajar com a moça Clara Swendson Cavalcanti
que ia, com ele, para a “Fortaleza de São Joaquim da Pedra”,
sua casa, situada numa alta e escarpada praia do litoral do Rio Grande do
Norte. Arésio, como já expliquei, tinha desaparecido desde o
dia anterior. Desse modo, no vasto casarão silencioso e agora quase
deserto, tinham ficado somente o poderoso e sombrio Antônio Moraes,
sua filha Genoveva, seu filho. mais moço Miguel – um rapaz doente,
considerado meio idiota e ao qual ninguém dava importância –
e, finalmente, Teodoro Barba-de-Bode, adormecido nas tábuas horizontais
de seu alto andaime. Dormindo, ele não viu o belo almoço da
família Moraes, refeição que, segundo Samuel, “constituía,
já por si, uma obra de Arte, com uma toalha de linho branco e rendes
colocada sobre a vasta mesa, com jarros de prata cheios de vinho e água
gelada, e com antigas porcelanas azuis e brancas de Macau”. Não
viu, também, saírem os domésticos que iam para a Cavalhada,
nem ouviu a “limusine régia” de Gustavo arrancar e se dirigir
para a rua, guiada pelo motorista vestido de uniforme cáqui, com boné
militar e luvas castanhas de couro. E, o que foi mais grave, não viu
quando Genoveva entrou po ara seu quarto depois do almoço, deitando-se
na cama antiga que lhe servia de leito de solteira. Genoveva usava, naquele
momento, um vestido de linho “cor de pérola” que, como tudo
o que aquela família usava ou fazia, representava algo de estranho
e chocante para todos nós. Ela e seu irmão Gustavo, que lhe
era muito afeiçoado, tinham sido os primeiros a exibir em nossa Vila
aquele tal gosto meio monacal e, ao mesmo tempo, refinado, pelo que era antigo
e esquisito. Uma das surpresas, porém, que o pessoal da Vila tinha
quando tentava imitá-los, era descobrir que aquelas aparências
de pobreza e despojamento saíam mais caras do que suas riquezas ostensivas
e comuns. Outra surpresa era notar que, para o pessoal do círculo de
Gustavo Moraes, uma coisa era usar alpercatas de couro por “gosto monacal
e refinado”, e outra muito diferente era usá-las à força,
por pobreza. De qualquer modo, porém, os Moraes, por sua simples ação
de presença, estavam começando a influenciar as pessoas mais
ricas da Vila; sendo que, entre essas, começou logo a se destacar,
dada sua -categoria intelectual e seu abono econômico, a Mãe
aqui da nossa Margarida, a Poetisa e jornalista Dona Carmem Gutierrez Torres
Martins, que, tendo notícia, por Samuel, das excentricidades e refinamentos
de gosto dos Moraes, fazia tudo para imitá-los ao pé da letra,
e ardia em ânsias de ser convidada por eles, nem que fosse uma vez,
para as recepções do casarão.
Margarida lançou-me outro olhar feroz, mas não tugiu nem mugiu
– ou melhor, não berrou nem rinchou, para ser mais sertanejo. Aliás,
eu sabia que podia tripudiar à vontade, naquele assunto. A coisa de
que ela tinha mais vergonha neste mundo eram as ridicularias intelectuais
da Mãe e a caduquice do Pai, de modo que, para que eu não me
detivesse na história, deixaria passar qualquer coisa que eu dissesse.
Por isso, não comentou e eu continuei: – O vestido que Genoveva Moraes
usava naquela tarde era do tipo ditado pelo gosto “monacal e despojado”
que, como já disse, só as pessoas ricas podiam usar. De fazenda
caríssima, era formado, quase que só, por uma túnica
larga, apertada nos quadris por uma espécie de “cordão
de São Francisco”. Ela, que era alta e morena, de cabelos e olhos
pretos, tinha quadris e busto magníficos. Eu não tenho grande
atração pelas mulheres morenas, não, Doutor! Samuel,
toda vez que começa a se exaltar muito em seus acessos de fidalguia
e branquidade, gosta de chamar atenção para minha cor moreno-carregada,
e diz que eu tenho “sangue casteado de Cavalo castanho”, o que,
na linguagem dele, é alusão às pitadas de sangue negro,
vermelho, cigano, judaico e mouro que carrego. Não é de admirar,
assim, que meu sangue castanho seja tarado pelas moças louras e brancas,
principalmente da Aristocracia. Por outro lado, esses “segredos do sangue”,
como chama Samuel, me fazem pressentir que as moças louras têm
uma certa atração por minha cara feita a machado, assim como
por meu sangue de cavalo! – disse eu, lançando o olhar mais expressivo
que pude conseguir para Margarida, que, fechando a cara, olhou para o outro
lado.
Continuei, depois de suspirar: – Pois bem! Apesar dessa tara do meu sangue
castanho pelas mulheres agalegadas, digo a Vossa Senhoria, com franqueza,
que nunca pude ficar sossegado diante de Genoveva Moraes! Ela era dessas mulheres
que, quando entram numa sala, deixam os homens perturbados e as outras mulheres
de mau humor. Principalmente porque aqueles peitos magníficos, de que
eu falei há pouco, ela tinha o atrevimento de usá-los soltos,
por baixo do tal vestido monacal de linho. Diziam mesmo as más-línguas
da rua que, “nos dias em que ela estava azeitada, mesmo, usava só
o vestido, por cima do couro limpo”. Acho que nunca ninguém tinha
comprovado isso. Mas bastava o primeiro fato e a simples possibilidade do
segundo para escandalizar e indignar metade da Vila e fascinar a imaginação
da outra metade. Nos pés, Genoveva usava apenas uma sandália,
presa ao tornozelo por uma correia também de couro. Ora, quando, naquele
Sábado, Teodoro acordou – aí pelas duas e meia da tarde, mais
ou menos – Genoveva estava deitada em sua cama, adormecida, fazendo a sesta.
Acontece que a casa da família Villar era uma casa sertaneja típica.
Gustavo Moraes, quando fizera as reformas, o contrário do que esperavam
na Vila mas de acordo com as idéias do pessoal da revista Fronteira,
deixara de estucá-la para que ela ficasse “com as pesadas vigas
de braúna à mostra, de acordo com o estilo ntonasterial e afortalezado
do Barroco do áspero século XVIII brasileiro”. Assim, os
grossos “brabos”, as amplas “tesouras” e as pesadas “linhas”
de madeira pousavam diretamente sobre as grossas paredes, sustentando o enorme
telhado à vista de todo mundo. Os quartos e salas eram separados apenas
por meiasparedes, de modo que o nosso Teodoro, do alto do seu andaime, assim
que acordou, viu logo a moça Genoveva, deitada no mais completo abandono
e desalinho, nos encantos de sua intimidade. E verdade que, na casa, reinava
a semi-obscuridade comum ao interior dos casarões sertanejos quando
estão de janelas fechadas. Mas a luz das seteiras recentemente abertas
era suficiente para aclarar as coisas. Gustavo explicara, aliás, a
Samuel, que as seteiras que mandaria abrir tinham dois objetivos. O primeiro,
ligava-se to gosto do seu grupo e destinava-se a dar à velha casa “o
ar, meio de Igreja, meio de Fortaleza, da arquitetura colonial brasileira”.
O segundo, era “diminuir a sinistra obscuridade que dominava a casa em
certas horas do dia”, quando a ventania escaldante dó Sertão
obrigava aqueles delicados da Zona da Mata a fechar as janelas “para
conservar, dentro da casa protegida pelas grossas paredes, uma temperatura
mais fresca e agradável”. No terceiro motivo, Gustavo Moraes não
falara: era aquele sobre o qual já falei, isto é, o desejo que
todos os Moraes tinham de não ficar trás em coisa nenhuma, no
que se referia à casa da “Onça Malhada”. Assim, naquela
tarde, Teodoro, vendo a moça adormecida naquele desalinho de intimidade
e aconchego, ficou apavorado, temendo que os Moraes, caso o descobrissem,
julgassem que ele ficara ali de propósito, escondido para espreitá-la.
Teodoro tinha notícia do gênio violento, orgulhoso, sombrio e
maldoso do enigmático Antônio Moraes, e sabia que, se fosse descoberto,
não sairia vivo da aventura. Vinham-lhe à lembrança as
histórias que corriam na rua sobre um homem que, lá um dia,
tinha aparecido morto junto a uma velha casa em ruínas que existia
ali por perto, junto da Lagoa salgada situada nas terras dos Moraes. O homem
fora morto por um tiro de rifle, e tinha sido encontrado sem o couro da sola
dos pés, castrado e todo mutilado a faca, o que indicava que, antes
de morrer, tinha sido submetido a terríveis torturas. O caso tinha
ficado obscuro, mas dizia-se, na rua, que a morte do homem fora ordenada por
Gustavo Moraes, em circunstâncias “que não tinham ficado
esclarecidas de propósito, porque havia ali, misturadas, as coisas
mais inconfessáveis”. Com essa história na cabeça,
Teodoro achou melhor se manter, no momento, em absoluto silêncio; quando
Genoveva acordasse e saísse do quarto, ele resolveria o que fazer,
de acordo com o rumo que tomassem as coisas. Ou recomeçaria a trabalhar,
fingindo que tinha saído para o almoço e voltado depois para
continuar o serviço, ou procuraria descer sem ser notado, tomando o
caminho da rua, o que talvez fosse melhor, uma vez que a casa estava quase
vazia. Continuou, portanto, deitado no andaime, parado e calado, sem imaginar
que, dali de cima, iria ver lá embaixo, daí a pouco, uma cena
que iria aumentar mil vezes mais o perigo -que sua vida porventura estivesse
correndo.
Notei que, a despeito de si mesmos, Margarida e o Corregedor estavam acendendo
os olhos e as ventas, motivo pelo qual tomei coragem e continuei: – Tinha
se passado uma meia hora desde que Teodoro acordara. Contava-me ele no mesmo
dia, à noite, que, por maior que fosse seu medo e por mais que tomasse
a virtuosa resolução de “não olhar”, de vez
em quando Genoveva, adormecida, mudava de posição, exibindo
tais encantos que todas as suas prudentes decisões eram aniquiladas
e ele “olhava”. Olhava sofregamente, como quem sabia que essas ocasiões
são raras para um pedreiro e é preciso aproveitá-las,
sob pena de arrependimento e remorso para o resto da vida. E foi aí,
Senhor Corregedor, que, passando um bom pedaço de tempo, Teodoro ouviu
o som de passos que vinham pelo corredor. Com as maiores cautelas, virou a
cabeça, evitando que o andaime rangesse e revelasse sua presença
ali. Viu, então, Antônio Moraes que se aproximava e parou diante
do quarto da filha. Ele pareceu hesitar um pouco, mas depois, erguendo a mão,
empurrou a porta que, estando apenas cerrada, cedeu e se abriu, dando-lhe
passagem. Ele entrou, depondo a um canto, sobre uma arca, o chapéu-de-chile
e a bengala. Aproximou-se, então, da cama e olhou a filha durante largo
espaço de tempo. Depois, sentou-se à beira do leito e esboçou
um gesto que, a princípio, pareceu a Teodoro de simples carinho paternal.
O senhor conhece o Romance de Dona Silvana? – Não! – Minha Tia Filipa
costumava cantá-lo quando eu era menino. Me lembro dele mais ou menos,
e sei que começava assim:
“Andava Dona Silvava pelo corredor acima, viola de ouro levava, vai
cantando uma Modinha. Chegou-se pra ela o Pai a quem o Diabo impelia; a cada
passo que dava de amores a acometia: – Silvava, tu não te atreves uma
noite a seres minha? – Fora uma, fora duas, fora, meu Pai, cada dia, malas
Penas do inferno quem por mim las penaria? – Pená-las-ei eu, Silvava,
que las peno todo dia.
Já perto da meia-noite, eis seu Pai que a acometia: – Mas se eu soubesse,
Silvara, que estavas já corrompida, oh, Ias penas do Inferno por ti
não Ias penaria! – Mas esta não é Silvana, é a
Mãe que a paria. Também pariu Dom Alardes, senhor da Cavalaria!
Também pariu a Dom Pedro, Prinspo da Infantaria”, etc.
Quando parei aí, o Corregedor indagou, entre severo e curioso: – O
senhor está insinuando que o pedreiro viu, naquele dia, entre Antônio
Moraes e a filha uma cena desse tipo? – Senhor Corregedor, foi o que ele me
disse! Teodoro julgou, a princípio, que Antônio Moraes estava
simplesmente acordando a filha. Assim, a surpresa e o medo que ele teve foram
terríveis, quando viu o homem, por cima do vestido, apalpar e acariciar
os seios de Genoveva, seios que, segundo ele sabia pelos boatos, deveriam
estar desnudos, embaixo. Mas, mesmo assim, parece que, depois de algum tempo,
essa carícia por cima do vestido começou a ser insuficiente
ao usineiro. Aí, pelo largo decote em forma de barco,
ele acariciou o ombro descoberto e logo insinuou a mão para dentro,
acariciando já diretamente a pele macia e o bico dos seios. Como Genoveva
não acordasse, dizia-me Teodoro, “o pecado e a doidice daquele
homem do Diabo foi crescendo”: ele se deitou ao lado da moça e,
sem deixar de acariciar o seio com a mão esquerda, deslizou a direita
embaixo, por sob o vestido que, com isso, se ergueu. Então, o homem
montou, deitando-se sobre Genoveva…
– Que história é essa, Senhor Quaderna! – interrompeu o Corregedor,
asperamente, mas já um pouco azougado.
– Foi o que me contaram! – defendi-me.
– E a moça não acordou? – Era o que eu ia dizendo, quando
o senhor me interrompeu!
Teodoro disse que, quando Antônio Moraes se montou mesmo, como um pai-d’égua
que não distingue a filha das outras potrancas do rebanho, ele teve
a impressão de que Genoveva já tinha acordado, pois viu no rosto
dela uma expressão estranha, de quem sorria a contragosto. Mas, ao
mesmo tempo, ela conservava os olhos meio fechados e a cabeça pendida
para trás, de modo que ele não pôde me esclarecer, em
sã consciência, se ela estava dormindo ou não, se estava
ou não conivente com o que ia se passando. Aliás, explica-se
essa dúvida de Teodoro, porque, naquele momento mesmo, apavorado com
o que já vira, ele se encolheu no andaime e, com os olhos fechados,
os dentes cerrados e o coração batendo, ficou, durante o resto
da cena, sem olhar mais nada. Mas o resto da cena durou pouco e, se ele não
via nada, não fechara os ouvidos, de modo que logo ouviu um gemido
surdo, um gemido abafado, de Genoveva.
O Corregedor, com um ar falso e paternal, voltou-se para Margarida: – Dona
Margarida, a senhora me perdoe! – disse ele. – Eu não sabia que o inquérito
ia tomar esse rumo, e esse foi o motivo de eu ter aceito o seu gentil oferecimento!
Se a senhora acha melhor, interromperei o depoimento, e pedirei ao Cartório
que me mande um escrevente qualquer! Não, não tem importância!
– disse Margarida, com o ar angélico e martirizado de quem, pelas “Virtuosas
Damas do Cálice Sagrado”, fazia qualquer sacrifício.
Eu desconfiava, porém, de que suas narinas estavam ofegantes não
propriamente de indignação, assim como de que não era
a ânsia de sacrifício dos mártires que a fazia manter-se
como secretária do inquérito. Mas o Corregedor hesitava ainda
e ponderou: – É que, pelo que vejo, terei que investigar certos pormenores
sobre o caso e não sei como possa fazer isso, com a senhora aqui! –
Vossa Excelência pode continuar, essas coisas não me atingem!
– disse Margarida, ficando ainda mais vermelha e agitada do que estava.
– Eu, então, aceito e agradeço, porque, no caso, preciso de
segredo absoluto e um escrevente não seria a mesma coisa que a senhora!
Muito bem, Senhor Quaderna, vamos então continuar! O senhor, porém,
veja como conta as coisas! – Doutor, acho que estou contando tudo do jeito
mais discreto possível! Depois que o senhor chamou minha atenção
por causa da história de Marcolino com minha burra, tenho procurado
ser o mais delicado que sei: até procurado falar difícil eu
tenho! Agora, o que não sei é como contar uma história
danada como esta de jeito delicado e discreto! O senhor faça o seguinte:
vá perguntando as coisas do seu jeito, porque aí fica menos
difícil de responder! – Está bem! O senhor disse que a moça
proferiu um gemido abafado: na sua opinião, o que foi que houve? O
usineiro chegou a – como direi? – a consumar o delito? – Teodoro disse que
não sabia me dizer, me garantir mesmo, se sim ou não! – Pode
ser, então, que só nessa hora a moça tenha acordado:
gritou, com a surpresa, e o Pai então teria abafado o grito, colocando-lhe
a mão na boca! – É o que Teodoro acha, também, mais provável,
principalmente porque, segundo ele me garantiu, Antônio Moraes permaneceu
vestido o tempo todo! – Vestido? – Sim, Excelência, Teodoro afirmou,
sempre, que Antônio Moraes não tirou a roupa, nem quando entrou,
nem depois! E verdade que isso não garante grande coisa, e Teodoro
disse que não podia avançar hipótese nenhuma com segurança,
pois somente quando cessaram, embaixo, os ruídos abafados e os murmúrios
que se seguiram ao gemido de Genoveva, foi que ele teve coragem de olhar de
novo para lá. Já então, Antônio Moraes saía
pelo corredor e Genoveva estava de pé, no meio do quarto, com um jeito
meio indeciso. Antônio Moraes saiu pela frente da casa, e Teodoro viu
Miguel, seu filho mais moço, de pé, na porta do seu quarto,
que ficava do outro lado do corredor, defronte da camarinha de Genoveva. Pela
posição em que Miguel estava, era impossível afirmar,
também, se ele vira ou não alguma coisa do que se passara. Genoveva
saiu do quarto para o corredor. Ao se deparar com o irmão, os dois
se olharam um pouco, em silêncio. Depois, Miguel voltou a entrar no
quarto, fechando a porta atráaacute;s de si, e Genoveva, cabisbaixa, saiu
para os lados da sala de visitas, a da frente. Teodoro, aproveitando a oportunidade,
desceu como um gato a escada do andaime, cruzou o corredor na ponta dos pés
para o lado da cozinha e, saindo por trás da casa, entrou no mato do
cercado, fez uma grande volta pelo Açude do Estado – evitando, assim,
de passar pelo pátio da frente – e conseguiu chegar à Vila sem
que ninguém o visse. A noite, passados já os acontecimentos
terríveis que se desencadearam com a chegada de Sinésio, foi
me procurar na “Távola Redonda” para me contar a história
e pedir instruções. Eu o aconselhei a calar a boca, porque,
de fato, se a história se espalhasse, os Moraes eram gente para acabar
com a vida dele em poucas horas. Garanti-lhe silêncio da minha parte
e despedi-o, porque tinha muita coisa a pensar e decidir, naquela noite terrível,
decisiva para todos nós. Assim, Senhor Corregedor, esta é a
primeira vez que conto esta cena diante de terceiros. Fiz isso em atenção
ao senhor e atendendo a sua ordem de contar tudo, tintim por tintim! – Muito
bem! – disse o Corregedor, novamente impenetrável. – E as outras pessoas
que o senhor considerou afetadas pela chegada do rapaz?
FOLHETO LXVII
0 Emissário do Azul e as Juras de Castidade – É o que passo
a contar a Vossa Excelência! – continuei. – Peço, aliás,
toda a sua atenção, porque o que vou contar agora envolve, ao
mesmo tempo, três pessoas que foram de importância decisiva para
o destino de Sinésio, isto é, Gustavo, Clara e Heliana. Acontece
que, enquanto em sua casa se passavam esses estranhos acontecimentos, Gustavo
Moraes, no automóvel, em viagem para o Rio Grande do Norte, mantinha
com Clara, irmã mais velha de Heliana, uma entrevista importantíssima.
Ele realizara, há dois dias, uma viagem secreta para a “Fortaleza
de São Joaquim da Pedra”, onde conversara com o pai de Clara,
combinando com ele aquela viagem de regresso da moça que tinha passado
uns dias em nossa Vila. Agora, apanhara-a no “casarão das pinhas”
onde ela estivera hospedada e que pertencia a uns parentes seus, o pessoal
da família do Major Liberalino Cavalcanti de Albuquerque. Com Clara,
fazendo-lhe companhia para a viagem, viera uma velha parenta sua que, daí
a dois dias, deveria regressar com Gustavo no automóvel, deixando a
moça em casa, com o Pai. De modo que, no “automóvel presidencial”
de Gustavo iam agora, ali, pela estrada, para o Rio Grande do Norte, o motorista
e a velha parenta na frente, e, no banco traseiro, ele e Clara. Gustavo, Senhor
Corregedor, era um rapaz esbelto, de estatura pouco acima da mediana. Diferentemente
do resto dos Moraes, que eram todos morenos, mas de um moreno que era carregado
e sombrio em Antônio Moraes e corado e viçoso em Genoveva, Gustavo
Moraes era moreno-claro e pálido, com lábios estranhamente e
desagradavelmente vermelhos. Tinha o rosto fino e cabelos pretos bastíssimos,
lisos. Sua barba era tão cerrada e escura que ele a raspava duas vezes
por dia. Por isso, seu rosto fino, pálido nas faces, era de um azul-esverdeado
nas mandíbulas, no queixo e no pescoço, sombreados pela barba
preta, cuidadosamente escanhoada. Vendo o aspecto dele, não era necessário
nem um Mestre, como eu, nas pduas Astrologias, a Onomântica e a Transcendental,
para fazer Seu “diagnóstico astroso”: qualquer simples “curioso”
em Astrologia via logo que se tratava de um capricórnio-saturnal. Como
Vossa Excelência deve saber, o “Capricórnio” – ou,
sob sua forma férrea, a “Cabra” – é um signo governado,
em Trono noturno, elo influxo maléfico-esverdeado de Saturno, com a
presença e atuação do verde-lodo, da safira, do chumbo
e do óxido de enxofre. Acho que, de todos os personagens que comparecem
a esta história, era Gustavo Moraes o que eu conhecia menos bem. 0
motivo disto era, primeiro, o orgulho dos Moraes que, na Vila, só convidavam
praticamente o Doutor Samuel Wan d’Ernes, “por ser, como eles, um Fidalgo
dos engenhos pernambucanos, exilado e perdido nesta bárbara e bastarda
terra do Sertão”. O segundo motivo, era o ódio mortal que
existia entre eles e a família de meu Padrinho, Dom Pedro Sebastião.
Os Moraes eram uma família muito rica, de usineiros pernambucanos.
Estabelecera-se em Taperoá principalmente em busca do algodão
e dos minérios sertanejos, que estavam começando a ser explorados
naquele tempo. Só se entendia a presença, em nosso fim de mundo,
do sombrio e orgulhoso Antônio Moraes pelo fato de ele ter se tornado
sócio e testa-de-ouro de uma empresa estrangeira. De fato, já
naquele ano, como Clemente e Samuel nos explicaram, a “Sanbra” e
a “Anderson Clayton”, firmas anglo-americanas e judaicas, tinham
começado a disputa dos nossos mercados de algodão e “outros
grupos enigmáticos, a serviço d’Eles, estavam se apossando dos
minérios de cobre e tungstênio da Paraíba”. Segundo
Clemente, “essa era a origem escusa de toda aquela escusa fortuna de
Antônio Moraes”, a quem, por causa dessas interpretações,
eu hesitava e hesito ainda em outorgar o tratamento de Dom. Logo que viera
se estabelecer entre nós,. Antônio Moraes comprara uma grande
propriedade, os “Angicos”. Segundo dizia a Samuel, chegara à
conclusão de que a indústria açucareira de Pernambuco
estava ultrapassada e encaminhava-se para a falência. Por isso, resolvera
mudar de atividade e os minérios do Cariri eram fundamentais para isso.
Clemente porém dizia que aqueles montes e montes de pó-de-pedra
que reluziam nas beiras dos caminhos dos “Angicos” continham coisas
muito enigmáticas e perigosas. Eram “minérios raros, indispensáveis
às industrias bélicas d’Eles”. De fato, logo depois, Antônio
Moraes começou não só a extrair, mas também a
comprar barato umas pedrinhas pretas que ele chamava de “colombitas”
e que mandava para o Recife, onde elas eram embarcadas em navios, embaladas
em grandes caixas de madeira destinadas “a Eles”. De uma forma ou
de outra, estabelecido nos “Angicos”, ligado às companhias
estrangeiras pelo algodão e pelos minérios, Antônio Moraes
começou a querer rivalizar com Dom Pedro Sebastião sobre o domínio
do nosso Reino do Cariri. Como, além disso, tivesse surgido entre os
dois uma questão de terras por causa de um pedaço estéril
de Tabuleiro que separava as duas propriedades e pelo qual ninguém
entendia que dois homens tão ricos e poderosos se batessem tão
violentamente, um ódio mortal surgira entre os dois Fidalgos, que viveram
se odiando até a morte do velho Rei, em 1930. Os negócios principais
da “Onça Malhada” eram os couros, o algodão e as pedras
preciosas. Os de Antônio Moraes eram os minérios, de modo que
eles poderiam, talvez, ter convivido sem briga. Mas como, ao lado disso, Antônio
Moraes tivesse se aliado à “Sanbra” e, a princípio
por influência do gringo campinense Christiano Lauritzen, tivesse introduzido
novps métodos industriais de beneficiamento de algodão em Taperoá,
a separação, a luta e o ódio entre os dois aumentaram
a ponto de a situação ficar insuportável. Não
é preciso dizer que essa separação e esse ódio
tomaram também, imediatamente, o caráter de luta política.
Foi assim que, na “Guerra de Doze” que ensangüentou o Sertão
paraibano em 1912, o nosso velho Rei do Cariri tomou o partido do Coronel
Rego Barros, dos Dantas e do Bacharel Santa Cruz, representantes do velho
Partido Liberal do tempo do Império; Antônio Moraes imediatamente
tomou o outro lado, o do Senador Epitácio Lindolpho da Silva Pessoa,
herdeiro do Partido Conservador e do primeiro partido republicano do Senador
Venâncio Neiva. Também foi por causa disso que, em 1930, na “Guerra
de Princesa”, Dom Pedro Sebastião tomou o partido dos Sertanejos
comandados pelo Coronel José Pereira, e Antônio Moraes o da Polícia
e do governo do Presidente João Pessoa. Assim, por causa desses ódios
entre as duas famílias, eu não conhecia Gustavo tão intimamente
quanto conhecia Arésio, Silvestre e Sinésio. Quanto à
moça Clara, eu a conhecia sempre melhor, desde o tempo em que servira
de emissário de meu Padrinho, Dom Pedro Sebastião, junto ao
Pai dela, o “gringo” Dom Edmundo Swendson, sócio do velho
Rei Degolado no negócio dos couros e das pedras preciosas. Aliás,
para que Vossa Excelência não estranhe o nome das duas Damas
jovens e alouradas que desempenharam papel tão terrível no destino
de Sinésio, devo lembrar que são umas quatro ou cinco as estirpes
fidalgas nórdico-sertanejas e flamengo-nordestinas que existem entre
nós: os Wan der Leys, os Wan d’Ernes, os Von Sohstens, os Lauritzens
e outros, alguns deles chegados no século XVII, outros depois, mas
todos importantes. Os Swendsons e os Lauritzens são dos mais recentes.
O primeiro Swendson veio para cá com aquele outro Fidalgo sertanejo-dinamarquês,
Dom Christiano Lauritzen, Senhor da Vila Nova da Rainha de Campina Grande.
Como sabem todos os bons historiadores e genealogistas do Nordeste, Dom Christiano
Lauritzen veio para o Brasil no século XIX. Deixou o Recife e o Litoral,
e veio se estabelecer em Campina Grande, onde se casou com a filha de um Fidalgo
sertanejo, Dom Alexandrino Cavalcanti de Albuquerque, Senhor da fazenda “Cabeça-do-Boi”.
Dom Alexandrino, como se vê por seu nome, pertencia ao ramo sertanejo
e paraibano dessa famosa estirpe fidalga dos Cavalcantis de Albuquerque, da
qual descende. todo nordestino que se preza, motivo pelo qual todos nós
nos consideramos descendentes de El-Rei Dom Dinis, o Lavrador, distinto soberano
e Cantador português, quase tão bom, em seu tempo, como Francisco
Romano e Inácio da Catingueira no nosso. O casamento do dinamarquês
Christiano Lauritzen com Dona Elvira Cavalcanti de Albuquerque integrou definitivamente
o “gringo” na Aristocracia brasileira e foi origem de uma nobilíssima
progênie que ainda hoje abrilhanta o nosso sertão da Paraíba.
Quanto a Dom Edmundo Swendson, veio ele da Dinamarca, com Christiano Lauritzen,
e casou-se com outra Cavalcanti, parenta de Dona Elvira, mas do ramo dos Cavancantis
do Sertão da Serra Negra, sertão que se estende da Paraíba
até o Rio Grande do Norte. Os Cavalcantis de Albuquerque Lauritzen
fixaram-se na velha sesmaria da “Cabeça-do-Boi”, situada
a umas cinco ou seis léguas de Campina Grande, em pleno Sertão
do Cariri, numa das regiões mais ásperas e pedregosas da nossa
Província. Os Cavalcanti-Swendsons, com Dom Edmundo à frente,
dedicaram-se ao tráfico das pedras preciosas, motivo pelo qual resolveram
se fixar no litoral do Rio Grande do Norte. Num grande monte pedregoso, situado
a pique sobre o Mar, ali bem perto do lugar em que o Vaqueiro vira a Bicha
Bruzacã sair dos lombos do verde Tigre para as terras fogosas do Sertão,
Edmundo Swendson encontrou uma velha, grande e quadrada Fortaleza do século
XVII, com torreões seteirados nos quatro cantos e com velhas paredes
de pedra subindo muito alto, numa linha inclinada que, partindo das rochas
batidas pelo Mar, davam àquela Fortaleza um aspecto ao mesmo tempo
de cadeia, de quartel e de Castelo à beira-mar. Dom Edmundo comprou,
por uma ninharia, todo o pedaço de terra onde estava a velha e maciça
Fortaleza; e o pessoal que morava por perto achou a coisa mais esquisita do
mundo “aquele gringo comprar exatamente o trecho de praia mais alto e
pedregoso, sem coqueiros nem cajueiros que dessem lucros”. Espantar-se-iam
ainda mais quando “o gringo” começou a limpar o entulho que
recobria a velha Fortaleza, restaurando-a em suas linhas originais e trazendo
sua mulher para morar com ele, ali, “naquele fim de mundo e naquele lugar
soturno”. De fato, porém, Dom Edmundo Swendson precisava de um
lugar que, servindo-lhe de casa, servisse também de ancoradouro à
frota de barcaças que ele adquiriu e aumentou aos poucos, na medida
das necessidades do seu comércio de couro e pedras preciosas. Só
depois e aos poucos também, por intermédio de meu Padrinho que
financiara, como . sócio, os primeiros negócios de Dom Edmundo,
é que fomos sabendo todos esses pormenores. Quando eu o conheci, seus
negócios já cobriam o Nordeste inteiro, o iam do ouro do Piancó
ao berilo e às águas-marinhas do Sertão do Picuí.
Isto sem se falar de outros negócios que ele realizava lá para
os lados do Sertão do Rio São Francisco e que incluíam
o mármore, os couros de boi, de bode e de carneiro. As barcaças
da frota do “gringo” eram, aliás, construídas nesse
Sertão do São Francisco. Eram maiores do que as barcaças
comuns; movidas a vela, tinham na frente aquelas “carrancas” que
costumam colocar nos barcos do Rio São Francisco. No nosso litoral,
as barcaças, além de menores, não têm carrancas,
de modo que os barcos do “gringo” foram encarados como novo fator
de estranheza para o pessoal da Praia. Como dizia Samuel, esses barcos “com
as figuras rostrais esculpidas na proa pareciam verdadeiros e antigos Navios
de madeira”, o que, aliás, tivemos oportunidade de verificar na
viagem que fizemos neles e que marcaria um dos episódios mais importantes
da “odisséia marítima” de Sinésio, o Alumioso.
Essas barcaças de Dom Edmundo subiam e desciam o Rio São Francisco.
As maiores iam somente do Mar até Penedo, onde pegavam a carga deixada
pelas menores, que desciam até ali desde o Sertão das Piranhas.
De Penedo então voltavam as maiores, subindo pelo Mar para o Norte
e fazendo escala em Maceió, em Barra do Camarajibe, em Tamandaré
e São José da Coroa Grande, até chegarem à Barra
do Rio Suape, em Pernambuco, lugar onde Dom Edmundo Swendson tinha outra casa,
perto da Fortaleza de Nazaré do Cabo. Daí, com outras escalas
em Itamaracá e na Baía da Traição, da Paraíba,
chegavam até a antiga “Fortaleza de São Joaquim da Pedra”,
o Castelo rochoso, situado à beira-mar, no litoral do Rio Grande do
Norte, a tal Fortaleza da qual eu vinha falando. Fora assim, Senhor Corregedor,
o Fidalgo nórdico-sertanejo Dom Christiano Lauritzen quem pusera seu
compatriota Edmundo em contacto com Dom Pedro Sebastião, Rei do Cariri;
e eu acredito que, se Christiano Lauritzen não tivesse morrido quando
morreu, as relações existentes entre os Garcia-Barrettos e os
Cavalcanti-Swendsons não teriam se rompido depois da morte de meu Padrinho,
com repercussões tão terríveis sobre o destino das duas
filhas moças de Dom Edmundo – Clara e Heliana – e dos dois filhos varões
legítimos de meu Padrinho – Arésio e Sinésio. Mas, quando
se trata dessas questões de sina, de destino, parece que uma espécie
de cegueira se abate, mesmo, sobre todos os implicados, Senhor Corregedor!
Eu mesmo, desde o começo, tinha elementos que me possibilitariam prever
tudo o que ia acontecer. Sabia que Dom Pedro Sebastião era amigo e
sócio do Fidalgo dinamarquês-sertanejo.
Mas, cego, nunca pensei que fossem dar no terrível resultado em que
deram os “cruzamentos de sangue e de destino” que ocorreram entre
Sinésio, nosso Príncipe da Legenda Ensangüentada do Sertão,
e as duas filhas de Dom Edmundo Swendson, Dona Clara, a loura, e Dona Heliana,
a dos olhos verdes, que foi o grande amor de sua vida. Clara era a filha mais
velha de Dom Edmundo e de Dona Catarina Cavalcanti de Albuquerque, naquele
tempo já falecida. Puxara mais à raça do Pai. Era mais
alta do que baixa, tinha grandes olhos redondos e azuis, os cabelos de um
louro bronzeado,
o nariz reto, o queixo e as ancas firmes. Quem conhece, como eu, o folheto
da Descrição das Mulheres por seus Sinais notaria que ela tinha
quatro defeitos físicos que, como acontece sempre nas moças
bonitas, eram, nela, quatro encantos a mais: suas panturrilhas eram um pouco
espessas e musculosas, contrastando de
modo um pouco forte demais com os tornozelos e os joelhos finos, suas pernas
eram um quase-nada arqueadas, sendo que na direita havia, entre o joelho e
o tornozelo, na parte de fora, um sinal arredondado, claro; a testa ampla
contrastava, um pouco mais do que o permitido, com o queixo, que era forte
nas mandíbulas mas fino na ponta; e finalmente, quem olhasse durante
tempo suficiente seu dorso, notaria que a espádua direita era um pouco
mais alta do que a esquerda. Clara herdara esse último defeito de sua
Mãe. Mas, em Dona Catarina, a diferença entre as duas espáduas
era mais pronunciada, principalmente porque seus ombros eram magros e um pouco
altos, ombros de asmática. Os ombros de Clara, porém, eram cheios,
servindo de remate a braços esplendorosos. Era isso que transformava
num encanto a mais aquela espádua um pouco abaulada que, em sua Mãe,
era realmente um defeito físico. Clara, porém, não tinha
consciência dessas diferenças; e a humilhação que
sentira desde menina por aquilo que julgava ser uma espécie de mancha
ou vergonha familiar hereditária, dava a seus olhos azuis uma tristeza,
uma certa altivez melancólica que os salvavam da frieza ou da insignificância
que se casam, na maioria das vezes, a essa cor. Por outro lado, tenho hoje
a convicção, Senhor Corregedor, de que a espádua alta
e o sinal da perna não eram senão a marca que a Divindade apusera
nela para dar um aviso aos demais; eram a marca do Terrível, a marca
que fazia de Clara uma “assinalada”; ainda que, como os acontecimentos
posteriores iriam demonstrar, muito mais assinalada e terrível do que
ela fosse sua irmã, a doce, bela e sonhosa Heliana, a moça dos
olhos verdes
o das mãos cobertas que foi como urna pedra-de-raio a fulminar o
destino de Sinésio.
– Eram, pois, mais ou menos as duas e meia da tarde daquele Sábado,
Senhor Corregedor! – continuei. – Gustavo Moraes tinha apanhado Clara no casarão
das pinhas e agora viajavam pela estrada que, cortando o Cariri, entra, perto
da Vila do Junco, para a do Seridó do Rio Grande do Norte. Iam por
aquela região áspera que, naquele junho, já começava
a ficar crestada, pois o estio de 1935 começou antes do tempo. A conversa
entre os dois parecia meio difícil, quase penosa, mesmo, entremeada,
segundo me contaram depois, de pausas, de pensamentos ocultos e de subentendidos.
– Como foi que o senhor tomou conhecimento disso? – Senhor Corregedor, lembro
mais uma vez que sou um Epopeieta, de modo que tenho certas liberdades que
me são outorgadas pelo Gavião macho-e-fêmea e sertanejo
que me serve de Musa. Entre essas liberdades, está a de adivinhar e
profetizar as conversas que não ouvi! – Está certo, mas isso
aqui ainda não é a Epopéia: é um depoimento que,
depois, vai lhe servir de material bruto para ela e, para mim, de processo.
Assim, deixe de lado suas liberdades de Epopeieta e seja claro. Como foi que
o senhor soube dessa conversa? – Está bem, vou dizer a Vossa Excelência!
Não lhe escondo que, como Astrólogo e dizedor de sortes, mantenho,
na “Távola Redonda”, um consultório astrológico
e sentimental onde comparecem moças, rapazes, cavalheiros e senhoras
dos mais poderosos desta Vila! Assim, as histórias que ouço
diariamente, lá, são as mais incríveis! Raras são
as pessoas, aqui da rua, cuja vida íntima eu não conheça,
às vezes nos pormenores mais comprometedores! Olhe, Senhor Corregedor:
eu estou com quarenta e um anos de idade, e ainda fico espantado com a facilidade
que as pessoas têm de contar certas coisas e de conversar na frente
dos outros sobre os assuntos mais íntimos. Isso acontece muito quando
o terceiro é uma pessoa colocada abaixo dos que conversam: parece que
eles julgam essas pessoas cegas ou surdas, incapazes de entender qualquer
coisa! Pois foi o que aconteceu naquele dia com Gustavo e Clara. Eles conversavam,
no carro, na presença do motorista e da velha parenta que, dentro dos
nossos costumes sertanejos, servia de companhia à moça em sua
viagem. Daí os subentendidos e alusões secretas da conversa.
Acontece, porém, que aquela senhora idosa, que eles pareciam julgar
cega, surda, muda e burra como uma porta, tinha me tomado, há muito
tempo, como confidente e consultor astrológico. Ao contrário
do que julgavam, tinha uma maldade cortante, uma má-idéia sistemática
sobre as pessoas, o que lhe dava um faro de cachorro para descobrir os segredos
e as maldades dos outros. Foi ela quem me contou tudo, e com uma argúcia,
uma penetração que teriam deixado Gustavo assom416 brado, caso
tivesse tido conhecimento de nossa conversa. Aliás, Senhor Corregedor,
tendo-se em vista que a chegada de Sinésio se daria cerca de uma hora
depois, a conversa de Clara com Gustavo parecia comunicada de alguma coisa
de profético ou de pressentimento. Gustavo vestia calças de
uma fazenda meio aveludada, de cor vinho-castanha. O paletó era de
linho branco, desses que a gente chama aqui de “lonado”. A camisa
era azul. Os sapatos, pardos, e as meias azuis, da mesma cor da camisa. Estava
com gravata verde-clara e trazia bengala de castão de prata, que segurava
com as duas mãos, apoiada verticalmente no chão do carro. De
vez em quando, nos momentos de maior reflexão, apoiava o queixo sobre
o castão da bengala, baixando a cabeça e entrecerrando os olhos,
num gesto que lhe era habitual e que estava sendo imitado por tudo quanto
era de intelectual da nossa Vila. Conto todos esses pormenores para dar a
Vossa Excelência uma idéia da impressão, do espanto que
ele vinha causando na rua, com aquelas elegâncias tão diferentes
das nossas. Até a data de sua chegada recente do Recife, o homem elegante
que nos surpreendia e esmagava a cada instante com sua superioridade e sua
originalidade nesse campo, era o Doutor Samuel Wan d’Ernes. Quando, porém,
Gustavo de Moraes apareceu entre nós, depois de tantos anos de ausência,
desbancou em dois tempos o nosso Promotor que, sem outra alternativa para
se sair bem do cotejo, escondeu sua humilhação e seu despeito
atrás de furiosas comparações entre sua própria
“sobriedade” e a “pretensão” e o “espalhafato
de mau gosto” das roupas de Gustavo Moraes. Isso não o impediu,
porém, mesmo cobrindo o rival de remoques, primeiro de invejá-lo
e depois de imitá-lo furiosamente, quase morrendo de alegria e orgulho
depois que passou a ser convidado para a casa dos Moraes. Quanto a Clara,
vestia, naquele momento, um vestido preto, meio transparente, com ramagens
lilases, que se casava maravilhosamente com seus cabelos louros. As meias
cor de creme, finíssimas, ajustavam-se perfeitamente às pernas,
cobertas pelo vestido até pouco abaixo do joelho. Corretamente sentada
no banco traseiro do carro, tendo juntos os pés calçados de
sóbrios sapatos pretos, repousava ambas as mãos sobre os joelhos
que elas ajudavam a se manter unidos. Ouvia Gustavo com uma expressão
indefinida, entre atenta e sonhadora. E Gustavo falava, falava sem cessar,
como era, aliás, seu hábito. Tudo o que ele dizia, tinha sempre
bom gosto, elegância e originalidade, “um bom gosto e uma inteligência
até excessivos”, como notou Samuel a princípio, “uma
originalidade meio artificial que terminava causando uma sensação
de mal-estar, uma frieza e uma agudeza meio assustadoras, que afastavam toda
possibilidade de haver alguma coisa de vivo e de bondoso naquela alma”.
Mas isso eram sutilezas de Samuel, no tempo em que ainda não fora recebido
pelos Moraes. Nós todos, sem nos importarmos com suas análises,
nas raras ocasiões em que tínhamos oportunidade de ver e ouvir
Gustavo, ficávamos seduzidos e embasbacados pela inteligência
e pela novidade de tudo o que ele dizia. Naquela tarde, pois, Gustavo dava
conta a Clara da viagem que fizera dois ou três dias antes, por aquela
mesma estrada, para a “Fortaleza de São Joaquim da Pedra”,
onde fora se entender com o Pai dela sobre vários assuntos, sendo um
deles a viagem que agora fazia, levando Clara de volta para casa. Gustavo
dizia a Clara:
-Cheguei lá na Fortaleza na terça-feira, pelas cinco horas
da tarde, Clara. Confesso a você que não esperava encontrar aquela
casa maravilhosa que encontrei! É verdade que você já
tinha me falado nela. Eu já sabia que seu Pai tinha tido o bom gosto
de restaurar uma velha Fortaleza, situada à beira-mar, para se instalar
nela. Mas, não sei por quê – talvez por causa da Fortaleza de
Santa Catarina que é situada, aqui na Paraíba, numa praia rasa,
em Cabedelo – eu não esperava aquela Fortaleza enorme, acastelada em
cima de pedras altíssimas, batidas pelo Mar! Olhe, Clara, dos séculos
XVI, XVII e XVIII, foi isso o que de melhor nos ficou, em Arquitetura! Mesmo
a bela arquitetura dos sobrados e casarões é menos bela do que
a arquitetura despojada e monacal das Igrejas, Mosteiros e Casas-de-Missões,
e do que a arquitetura nobre, maciça, militar e acastelada das Fortalezas
do tipo de “São Joaquim da Pedra”! No dia em que cheguei
lá, fazia uma tarde fresca e suave, e o sol, já descaindo, iluminava
com uma luz dourada as enormes pedras cor de ferrugem, batidas pelas ondas;
assim como iluminava, também, as altas e grossíssimas paredes
que circundam a Fortaleza, paredes feitas de pedra-e-cal, escurecidas pelo
tempo e cujo reboco caiu, roído pelo vento, pelas águas, pelo
sal do Mar, de modo que as pedras enormes aparecem com uma nobreza vetusta
que comove e nos dá um solene sentimento de respeito. Seu Pai aliás,
Clara, teve o bom gosto de só refazer, no velho Forte, o essencial
à restauração, não tirando o caráter da
velha edificação acastelada e militar!’ “Essa expressão,
‘o caráter’, Senhor Corregedor, assim como outras originalidades da
fala de Gustavo estavam em moda nos círculos intelectuais e católico-reacionários
da revista Fronteira!”, expliquei. “Quando ele as pronunciava, acentuava
o que dizia juntando todos os dedos da mão direita e esfregando-os
delicadamente uns nos outros, como se estivesse tirando pó das suas
pontas, num gesto que trouxera do Recife e que logo se tornaria, também,
moda, entre todos os intelectuais que se reuniam em nossa Biblioteca Municipal
Raul Machado. Gustavo continuou, dizendo a Clara: “‘Meu carro ficou embaixo,
abrigado numa construção nova que seu Pai fez, longe da Fortaleza,
ao pé do promontório. Subi a pé, passando pela porta
situada no lance térreo da construção o encimada pelo
Escudo das Quinas. Segui pelo interior do Forte, por uma espécie de
túnel ou galeria de tecto abaulado. .. ‘ “`Sim, é o corredor,
como eu e Heliana chamávamos, quando éramos meninas’, comentou
Clara.
“`Pois o corredor, como diz você, está caiado de novo.
Entretanto, sob a mão de cal, a gente pode ver a irregularidade das
enormes pedras que dão à parede um ritmo, uma força,
uma nobreza conventual realmente admiráveis!’, falou Gustavo, novamente
esfregando a ponta dos dedos, levantados para cima como uma flor de pétalas
fechadas.
“‘O resto, então, eu já sei!’, disse Clara, com um sorriso
leve e uma expressão sonhadora. ‘Você subiu por uma escada de
pedra que fica no fundo do corredor e faz uma curva, subindo pela direita.
Aí, subindo a escada, chegou ao pátio da Fortaleza, lá
em cima. Meu Pai, certamente, estava esperando você na porta da casa…’
-Que abre a frente para o pátio e para as amuradas do Forte o que é
a antiga casa-forte do Capitão que comandava a Fortaleza! Que maravilha
é a casa de vocês, Clara! Sinto vergonha porque as nossas melhores
famílias brasileiras ainda não se aperceberam de que essas Fortalezas
deveriam ser os verdadeiros Castelos da nobreza nordestina, por serem nobres
edificações à altura do Castelo, da torre de Duarte Coelho,
em Olinda, ou da Casa da Torre de Tatuapara, na Bahia! Enquanto isso, enquanto
damos todas essas nobres edificações ao desprezo e ao abandono,
seu Pai, um dinamarquês, foi mais sensível do que a nossa Aristocracia,
mais atento ao que existe de verdadeiramente grande e forte, como expressão
do fundo épico da nossa Raça! Conversei muito com ele, Clara!
E um homem, um homem dos meus, um forte, um daqueles que nós deveríamos
mandar trazer para aqui às carradas, da Europa, para equilibrar, com
um bom contingente godo e nórdico, o caldeamento racial ibérico-brasileiro.
Os Fidalgos portugueses e espanhóis como contingente inicial dos nossos
melhores o maiores, está muito bem! Minha aspiração é
exatamente confirmar e exalçar em nosso sangue o sangue cavalheiresco
e católico dos Conquistadores ibéricos! Infelizmente, com o
que houve depois, com a mistura de Negros e índios nos contingentes
raciais do Povo Brasileiro, precisamos de uma raça nórdica,
marinheira e empreendedora, para o sangue do Brasil com que sonhamos!’, disse
ele, com uma expressão estranha em um entusiasmo meio doentio. ‘Isto
sem se falar em que nossa própria Aristocracia só teria a ganhar,
cruzando o velho sangue ibérico com o nórdico, unindo-se, num
tipo só, as qualidades senhoriais das duas Raças, o que, aliás,
sucede com sua família. Aqui na Paraíba, há três
famílias onde se deu esse feliz caldeamento racial: os Lauritzens,
os Von Sohstens e vocês, os Swendsons. Os Von Sohstens, como bons viquingues
que são e num grande rasgo de fidelidade ao ímpeto épico
e marítimo de sua Raça, estão se dedicando à pesca
da baleia, perto de Cabedelo, na Costinha, no litoral da Paraíba. O
velho Christiano Lauritzen praticamente fez a grandeza de Campina Grande.
Agora, é seu Pai, com esse belo tráfico de pedras preciosas
e sua frota de barcaças! Infelizmente, três famílias dessas
ainda é muito pouco! O Brasil, depois da nossa vitória, deverá
fazer todos os sacrifícios, mandando buscar mil, dois mil, cinco mil
homens como seu Pai, pagando-lhes a peso de ouro o serviço único
e exclusivo de embelezar nossos homens e nossas mulheres, de procriar, de
clarear e alourar nossa Raça, afinando-lhe o sangue, e fazendo-se assim,
da nossa terra, um laboratório de experimentação racial,
organizado de acordo com um plano preestabelecido! A Raça resultante
teria todas as qualidades da nórdica e todas as da latina!’ “`E
o que foi que você conversou com meu Pai?’, perguntou Clara, mudando
de conversa e sorrindo um pouco do entusiasmo de Gustavo.
“`Falamos de tudo aquilo que você sabe: de você, da situação
do País e da nossa em particular, de mim, dos negócios…’ “`E
a respeito de Arésio Garcia-Barretto? Você falou na possibilidade
do casamento dele com sua irmã Genoveva?’ “`Sim, falamos disso,
é claro, dada a amizade que havia entre seu Pai e o de Arésio.
Seu Pai acha que, se Arésio quer, e Genoveva também, essa é
a solução ideal para a situação que se criou.
Quando falou nisso, ele me disse que falava como amigo que foi do velho fazendeiro
morto e como atual amigo e sócio do meu Pai!’ “‘E por falar em
Arésio e Genoveva, continua tudo no mesmo pé, entre os dois?’,
perguntou Clara, curiosa.
“`Continua!’, disse Gustavo. `Pelo menos, é a minha opinião,
não sei nada por intermédio deles! Você sabe Genoveva
como é: não fala nada sobre essas coisas, retraída e
orgulhosa como sempre foi. Quanto a Arésio, é o selvagem do
qual você já tem notícia, apesar de nunca tê-lo
visto, não é isso? Não digo assim por antipatia a ele.
Pelo contrário! Para falar a verdade, tenho admiração
e orgulho por aquilo que, em Arésio, mostra a força e a violência
ancestral dos Senhores e Cavaleiros que foram os troncos da nossa Aristocracia!
Por mim, o casamento dele com minha irmã se fará!’, concluiu
ele com uma expressão que fez Clara erguer para ele e logo abaixar
de novo seus olhos azuis.
`E o testamento do Pai de Arésio?’, indagou ela, depois de uma pausa,
e já novamente com os olhos baixos. `Meu Pai falou alguma coisa sobre
isso?’ “‘Seu Pai, como eu esperava, não sabe nada sobre esse pretenso
e misterioso testamento! Diz que, em todo caso, se é que ele existe
mesmo, ninguém sabe mais nenhuma notícia a seu respeito. O problema
não seria nada se o velho fazendeiro degolado não tivesse se
casado com a primeira mulher, Dona Maria da Purificação, Mãe
de Arésio, com separação de bens, e, com a Mãe
do outro, com comunhão de bens! Houve ainda, ao que dizem, algumas
doações, feitas em vida do velho, ao rapaz que desapareceu.
Agora, porém, no pé em que estão as coisas, se o juiz
julgar tudo como nós esperamos, o rapaz será declarado ausente,
e tudo será resolvido da melhor maneira!’ “`Ausente é a
mesma coisa que morto?’, indagou Clara, sem levantar os olhos.
“`Para o caso da herança, acho que sim!’, respondeu Gustavo,
olhando-a fixamente, com uma expressão inquiridora.
“`Quer dizer que, quanto ao mais, não é a mesma coisa?’,
insistiu Clara com a mesma expressão meio penosa e ainda de olhos baixos.
“`O que é que você quer dizer com isso?’, perguntou Gustavo
com voz surda.
“`Eu, não quero dizer nada! No entanto, veja que você
mesmo, quando falou dele ainda há pouco, não disse o rapaz que
morreu, e sim o rapaz que desapareceu.’ “`Tanto faz uma coisa como outra,
e era o rapaz que morreu que eu queria dizer, porque não há
mais dúvida de que Sinésio morreu mesmo!’, disse Gustavo, pronunciando
com dificuldade o nome do desaparecido. `De qualquer modo, se ele um dia aparecesse,
você ainda se consideraria noiva dele?’ -Não sei!’, falou Clara,
como se o assunto também lhe fosse penoso e sempre sem levantar os
olhos.
“`Aliás, segundo você me disse’, insinuou Gustavo, numa
meia-pergunta, `não houve propriamente um noivado comum e firme, entre
vocês dois, porque o pedido feito por ele foi feito a seu Pai e de modo
inteiramente inesperado. Aliás, feito por ele, não, feito pelo
Pai dele! E foi seu Pai quem concordou, não foi isso mesmo?’ “`Foi!’,
assentiu Clara.
“`E, caso ele aparecesse, você se acharia na obrigação
de manter a ele essa palavra, dada por seu Pai, cinco anos atrás?’
“`Não sei!’, repetiu Clara. `Qual é a opinião de
meu Pai? Você falou com ele a respeito disso?’ “`Falei muito por
alto, porque, por culpa sua, Clara, eu não tinha uma atitude definitiva
na qual me basear para falar com ele sem indiscrição de minha
parte!’, disse Gustavo; e como Clara deixasse passar sem comentário
aquelas palavras, por culpa sua, que ele acentuara de propósito, continuou:
`Falei com seu Pai somente por alto. Ele me contou que você tinha noivado
com esse Sinésio com o consentimento dele e atendendo a um pedido,
feito por carta, do Pai do rapaz. Naquele tempo, o Pai de Sinésio e
o seu eram sócios e amigos, de modo que o consentimento era quase obrigatório!
Seu Pai me deu a entender, porém, que, com a morte do Pai, a desaparição
do filho, e as modificações havidas nas relações
entre as duas famílias, ele se considerava desobrigado em relação
a esse noivado. Mas falou somente quanto à parte pessoal dele, é
claro; disse que, quanto a você, só você mesma poderia
decidir!’, concluiu ele; e, vendo que Clara se mantinha em silêncio,
um lampejo de fria cólera passou por seus olhos. Mas ele logo se dominou,
graças a sua boa educação. Depois de uma pausa, falou
de novo, perguntando: “`Você já se decidiu?’, o que disse
forçando sua natureza e seus hábitos de perfeito cavalheiro,
uma vez que, formulando essa pergunta, não deixava de incorrer numa
intromissão direta na vida íntima de Clara. Mas a moça
fugiu, de novo, a uma resposta direta: “`Não sei!’, disse ela,
lentamente. E acrescentou, pesando as palavras: `De qualquer modo, esteja
Sinésio vivo ou morto, fique eu noiva dele ou não, casasse ele
comigo ou não, isso não significaria nada diante do juramento
que eu e você fizemos, não é mesmo?’ “Parece, Senhor
Corregedor, que havia qualquer coisa de envenenado nas últimas palavras
de Clara. Gustavo empalideceu muito além do que já era, ficando
com um ar de sonâmbulo. Seus lábios, normalmente vermelhos daquela
maneira desagradável a que já me referi, estavam inteiramente
descorados, e foi assim que ele falou: “`O nosso juramento! Você
o manteria, de qualquer modo?’ “`Sim, estou disposta a mantê-lo
de qualquer maneira! E você?’ “`Também! Sou capaz de repetir
as palavras dele, agora, diante de você, como uma renovação
de votos! É o sagrado juramento corintio da nossa Ordem da Esmeralda
do Graal, o juramento dos nobres, dos raros e dos poucos!’ “Então,
Senhor Corregedor, depois dessas palavras estranhas, sempre com um ar meio
esquisito de possesso do `mal sagrado’, Gustavo tirou um pequeno Evangelho
ou Missal do bolso interno do paletó e recitou as seguintes palavras,
que, instruído pela velha parenta, localizei e copiei: `0 corpo não
é para a fornicação, mas para o Senhor, e o Senhor é
para o corpo. Fugi da fornicação. Todos os outros pecados que
o homem cometer, são cometidos fora do corpo; mas aquele que comete
fornicação, peca contra seu próprio corpo. Digo que seria
bom para o homem não tocar em mulher alguma! Porque eu quero que todos
vós sejais como eu mesmo (que não toco em mulher). Digo também
aos solteiros e às viúvas que é bom para eles permanecerem
assim (castos) como eu. O homem que está sem mulher, está cuidadoso
das coisas que são do Senhor, de como há de agradar a Deus.
Mas o homem que está com mulher, está cuidadoso das coisas que
são do mundo, de como há de causar prazer a sua mulher. E assim,
anda dividido. E a mulher solteira e virgem, cuida nas coisas que são
do Senhor, para ser santa no corpo e no espírito. Mas a mulher que
é casada, cuida nas coisas que são do mundo e de como dará
prazer a seu marido. Assim, aquele que casa sua filha virgem, faz bem. Mas
aquele que não a casa, faz melhor!'”
– Quando Gustavo acabou de dizer essas palavras, Senhor Corregedor, Clara
estava olhando para ele com uma expressão também estranha e
enigmática. Ninguém poderia dizer o que estava se passando exatamente
por trás daqueles belos olhos azuis, naquele momento mais frios do
que de costume – se zombaria, se uma fria aversão, ou se amor. Talvez
fosse uma mistura de tudo isso. Entretanto, ela não fez nenhum comentário
sobre o que ouvira. Como se lhe tivessem ocorrido outras lembranças,
situadas numa outra ordem de idéias, perguntou: “‘E minha irmã
Heliana?’ “`Que é que tem Heliana?’, indagou Gustavo, um pouco
surpreso com a mudança de rumo da conversa.
`Você esteve com ela?’, insistiu a moça.
“`Não, não estive propriamente com ela! Tentei falar-lhe,
uma vez, mas ela fugiu.’ “`Onde estava ela, quando você a viu?’
“`No pátio da casa, perto da amurada que dá vista para
o mar, lá embaixo. Estava olhando para longe, com expressão
distraída, na direção de quatro ou cinco barcaças
que estavam ali ancoradas, com as velas frouxas mas ainda não enroladas.
Que beleza é a frota de barcos de seu Pai, Clara! As barcaças
mais comuns daqui são menores e têm as velas feitas de pano branco.
As dele, vindas do Rio São Francisco, como ele me explicou, são
enormes, com velas coloridas e com figuras rostrais esculpidas em madeira,
na proa. Para lhe ser franco, confesso que sinto até uma sensação
de prazer, só em falar nisso! É como se nos transportássemos
para os tempos heróicos do nosso País, o tempo dos Conquistadores!
Pois Heliana estava ali, sentada naquela saliência que serve de banco
à amurada, parecendo, ela também, uma figura fora do tempo,
olhando cismadoramente para o Mar verde-esmeralda e azul-turquesa, lá
embaixo. Estava com ela a mulher que lhe faz companhia.’ “`Chama-se Maria
Elvira!’, explicou Clara. `O trabalho de Maria Elvira é somente esse:
fazer companhia a Heliana para atender a seus caprichos e, ao mesmo tempo,
tomar conta dela. Mas, por favor, conte como tudo se passou!’ “`Eu fiquei
um instante parado na porta da casa, depois de tê-la avistado. Ela parece
que me pressentiu, porque, de repente, voltou a cabeça, meio assustada,
ergueu-se e depressa, quase correndo, de olhos baixos, fingindo que não
tinha me visto, atravessou o pátio e desceu pela escada, saindo do
Forte. Você me desculpe eu falar assim, mas ela corria com uma expressão
meio selvagem, meio arisca… Não sei, também, se deva lhe contar
o que aconteceu depois. .. ‘ “Por quê?’, indagou Clara, franzindo
o cenho, mas deixando transparecer, a contragosto, uma certa inquietude no
rosto.
“`Você me conhece e sabe que estou lhe falando com o coração
nas mãos, de maneira que entenderá, também, que só
falo disso porque é a você! Acredite, Clara: sinto até
uma sensação de culpa por ter seguido sua irmã, apesar
de ter feito isso quase inconscientemente, num impulso! Foi um gesto quase
instintivo, de minha parte, aquele de procurar quem parecia fugir de mim!
Outra coisa que posso alegar em meu favor é que eu não tinha
a menor idéia do que ia se passar! Depois, pensando naquilo que tinha
feito, outra coisa que me intrigava era o fato de eu ter evitado que Heliana
visse que estava sendo seguida por mim. Por que fiz isso? – tenho me perguntado
muitas vezes, de quartafeira para cá. Encontrei duas causas para esse
comportamento, tão estranho a meus modos. Primeiro, logo no começo,
foi o temor de que Heliana, vendo-me, fugisse de novo, antes que eu pudesse
falar com ela, e eu queria muito saber como era a única irmã
que você tem. Depois, do meio para o fim, foi a obscura consciência,
que começava a me inquietar, da indiscrição que eu estava
cometendo! Daí em diante, eu já ficaria era profundamente envergonhado,
se fosse surpreendido espreitando Heliana, que defendia sua solidão
de modo tão evidente e selvagem. Foi aí que me escondi para
que, quando ela se afastasse mais, eu pudesse voltar à Fortaleza sem
ser visto por ela. Infelizmente, porém, foi esse também o instante
em que Heliana tinha chegado ao lugar que talvez buscava, de modo que ela
parou, com Maria Elvira, e eu fiquei encurralado por trás das moitas
em que tinha me escondido, obrigado, já, agora, a cometer até
o fim a indiscrição da qual há pouco queria fugir. As
duas pararam junto a uma espécie de monte de pedras, pedras de tamanho
médio, escuras, entulhadas uma por cima das outras, numa encosta situada
não muito longe do Mar.’ `Heliana estava com alguma coisa nas mãos?’,
interrompeu Clara, erguendo os olhos e quase ansiosa, ao ouvir a referência
de Gustavo ao monte de pedras.
“`Não!’, respondeu Gustavo. `Mas a mulher, Maria Elvira, tinha,
no caminho da Fortaleza até ali, tirado um pequeno galho de mato, do
qual tirara as folhas com um canivete, arrepiando-lhe a casca em tiras, com
a lâmina, perto da ponta da varinha.’ “‘Então, já
sei o que aconteceu daí em diante!’, disse Clara, parecendo mais aliviada.
`Isso que você viu Maria Elvira fazer é um hissope, como a gente
chamava, quando éramos pequenas. Vou lhe dizer como tudo se passou,
quer ver? Quando elas chegaram junto das pedras, começaram a procurar
casas de abelhas, enxuís que por ali se encontram, na loca de alguma
pedra maior ou nos buracos formados por duas ou três das menores, amontoadas!’
“`Foi isso mesmo!’, concordou Gustavo, surpreendido ao ver Clara adivinhar
tudo.
“`Elas acharam as abelhas?’, perguntou Clara.
“`Acharam, sim!’ “Então vou dizer o que houve depois. Maria
Elvira deve ter acendido fogo para fazer fumaça e espantar as abelhas.’
“`É verdade!’, confirmou Gustavo. `O cheiro bom das folhas e madeiras
mal queimadas chegava até o lugar em que eu estava escondido. Mas será
que você sabe até o que aconteceu depois?’ “`Daí
em diante, é fácil adivinhar!’, disse Clara, agora segura. `Depois
de darem bastante tempo às abelhas para que saíssem, tonteadas
pela fumaça, Heliana enfiou a varinha no enxu, e as cascas arrepiadas
saíram, todas, molhadas de mel. Ela costuma fazer isso desde menina,
é louca por mel de abelha, que ela dizia ter gosto misturado de flor
e de sol!’ “`E você sabe o que é que ela faz com o mel,
depois de tirá-lo assim?’ `0 que ela faz?’, pergunta Clara, perplexa.
“`Bem, pelo menos o que ela fez! Não sei nem como lhe contar
isso, eu não devia ter falado!’ “`Não conte!’, falou Clara,
agora entregando-se ao desânimo e à inquietude. `Lá em
casa, nós já estamos todos habituados com as estranhezas de
Heliana! Não é que eu tenha vergonha nenhuma dela; não
acho nada censurável no que ela faz, mesmo quando os outros acham que
aquilo é mais do que esquisitice! Vá, diga: o que foi que Heliana
fez, então?’ “`Desabotoou o vestido!’, disse Gustavo com uma expressão
falsa e desmentindo, com ela, a resistência que afirmara sentir em contar
tudo. `Depois de desabotoá-lo, abriu-o no peito e começou a
passar o mel no busto! Nos seios! Para ser mais preciso, nos bicos dos seios!’,
acrescentou ele com um sorriso forçado, desagradável. `Ela ficou
assim, passando o mel nas aréolas, devagar, uma porção
de tempo, parecendo distraída e sonhadora. Não sei se era por
efeito da luz, mas, do lugar em que eu estava, ela me parecia pálida,
com os cabelos compridos soltbs nos ombros, finos, estirados e levemente agitados
pelo vento que soprava do Mar. De que cor é o cabelo dela, Clara?’
“`Castanho-claro e, como você pressentiu de longe, muito fino o
leve. Mas ela não é propriamente pálida, é alva
como eu, se bem que não seja loura!’, explicou Clara, aliviada por
poder desviar o assunto.
“`Foi a impressão que eu tive, pelo menos assim como pude vê-Ia,
de passagem e de longe!’, disse Gustavo. `Mas os olhos dela são da
cor dos seus?’ “`Não, são verdes! Ou melhor, são
azul-esverdeados! Verdeazulados! Afinal, como é que se diz?’, disse
Clara, tentando sorrir. E acrescentou, com tristeza: ‘Eu lhe peço desculpas,
por ela!’ “‘Desculpá-la, eu? Não, de modo nenhum! Eu sou
quem devo lhe pedir desculpa! Aliás, só estou lhe contando isso
para, de certa forma, me explicar e me desculpar perante sua família!
Eu nunca poderia desconfiar de que iria ver alguma coisa desse gênero!’
“`Eu sei!’, concordou Clara. `Nós já temos passado por
outras situações semelhantes, todas constrangedoras. Heliana
sempre foi meio estranha e selvagem, desde menina! Eu me acostumei, e posso
dizer que, de certa forma, já posso aceitá-la como ela é.
Meu Pai, coitado, é que só falta morrer de desgosto! Acredito
que, diferentemente do que você pensou, não foi por espírito
de Conquistador ou por fidelidade racial que ele foi morar em São Joaquim,
não! É por causa de Heliana que ele prefere viver isolado, naquela
Fortaleza afastada, longe de todo mundo! É por causa dessas coisas
que, de vez em quando, ele manda Heliana, somente com Maria Elvira como companhia,
de barcaça, para Nazaré do Cabo, em Pernambuco, para Penedo,
em Alagoas, ou mesmo para o Sertão das Piranhas, onde nós temos
uma fazenda. No Cabo, em Pernambuco, existe uma Fortaleza parecida com a nossa,
lá, de São Joaquim da Pedra. Meu Pai tentou comprá-la
também, para fazer dela outra das nossas moradias. Era conveniente
porque ela fica em cima, mesmo, das pedras da Barra do Rio Suape, onde nossas
barcaças têm porto e fazem escala. Mas ele não conseguiu
comprar a terra da Fortaleza, de modo que ela ficou lá, arruinada,
sem restauração. Então meu Pai comprou um terreno alto,
perto do Forte, e, defronte da velha Fortaleza, construiu uma casa assobradada.
As vezes, nós passamos tempos nesta casa do litoral de Pernambuco,
principalmente quando meu Pai precisa controlar melhor as viagens e as cargas
das barcaças. Eu evito sempre de ir para lá, já me basta
o isolamento de São Joaquim! Mas Heliana adora essas viagens, e meu
Pai aproveita esse gosto dela para distraí-la e, ao mesmo tempo, para
evitar que ela passe muito tempo num lugar só. Porque, quando acontece
isto, Heliana termina sempre fazendo alguma coisa no gênero do que você
viu!’, disse Clara, com alguma tristeza.
“`Seu Pai prefere você a Heliana, não é verdade?’
“`Não sei, talvez. Pelo menos, parece que é o que todos
pensam!’ -Foi o que concluí, pelo que pude observar e também
por certas palavras que ele deixou escapar.’ “`Talvez não seja
propriamente uma preferência! É que eu sou mais razoável
e também muito mais parecida com ele!’ “`Notei isso, é
estranho!’, disse Gustavo, olhando Clara diretamente nos olhos. `Você
se parece terrivelmente com seu Pai!’ -Terrivelmente? Terrivelmente por quê?’
“`Não sei! Acho que disse terrivelmente no sentido de demais.
De qualquer modo, foi como elogio que falei, porque, para mim, dizer que você
parece com seu Pai é elogio!’ “`Para mim, também! Já
Heliana, todo mundo diz que ela parece mais com minha Mãe quando era
moça, se bem que todos dizem, também, que minha Mãe era
muito menos bonita! Minha Mãe era uma pessoa assim, isolada no meio
dos outros, como Heliana, se bem que não tanto! De qualquer modo, foi
bom que você tivesse visto Heliana como viu, porque, assim, não
fica mais enganado!’ “`Enganado em que sentido?’, perguntou Gustavo,
empalidecendo novamente e contraindo tanto as mãos que agarravam a
bengala que os dedos embranqueceram. ‘O que é que você quer dizer
com isso?’ -Você poderá ‘ assim, de olhos abertos, pesar, os
prós e os contras da sua amizade comigo!’ “`Ninguém pesa
os prós e os contras de uma amizade, Clara!’, disse Gustavo com a voz
meio estrangulada. `Agora, se você dissesse amor, aí seria diferente!’
“`Amor?’, disse Clara, quase com ironia. ‘Eu fiz o juramento dos raros,
dos nobres e dos poucos, de modo que sou proibida de tocar em todas essas
coisas! Além disso, não sei se sou noiva ou não, porque
esse Sinésio que eu só vi uma vez, há cinco anos, e com
quem meu Pai contratou meu casamento, muita gente acredita que ele ainda está
vivo!’ “‘Você, Clara, quando quer, sabe dizer as maiores crueldades!’,
disse Gustavo pondo-se ainda mais lívido.
“‘Você também! Acho mesmo que foi com você que aprendiisso
e muitas outras coisas mais!’, retrucou Clara no mesmo tom. `De qualquer maneira,
para mim e para você, e até para Sinésio, caso ele volte
um dia, será a mesma coisa, tanto faz que eu seja noiva ou não!
Casada ou solteira, casada com Sinésio ou com qualquer outro, eu só
daria a ele, ou a esse outro, o amor coríntio, que é puro e
casto e que, portanto, pode ser dividido, sem magoar ou ferir ninguém!’
“Gustavo olhou para Clara sem dizer nada, Senhor Corregedor. Estava ainda
muito pálido e a mão que conduzia a bengala continuava contraída
como uma garra, sobre o castão de prata. Ele inclinou a cabeça,
como num assentimento, mas não disse mais nada. Ficou com o rosto voltado
para fora, olhando a desolada e áspera paisagem do Seridó, coberta
de pedras, galhos secos e cardos. A paisagem corria ante seus olhos, com a
velocidade do automóvel. E, naquele mesmo instante, Sinésio
entrava na rua, montado em seu cavalo branco.”
FOLHETO LXVIII
O Caso do Cachorro Malcomportado Quando acabei de contar isso, o Corregedor
estava me ouvindo com uma cara meio dura. Perguntou: – Dom Pedro Diniz Quaderna,
isso tudo o que o senhor contou agora é verdade, mesmo, ou é
“estilo régio”? – Bem, Senhor Corregedor, como eu já
disse, soube de todas essas histórias por intermédio de terceiros,
e, “como dizia a vaca quando começou a correr atrás de
Mestre Alfredo, quem conta um conto aumenta um ponto”. Assim, não
seria nada demais que eu, por minha vez, aumentasse meu ponto, pois é,
mesmo, uma característica das Epopéias essa de seu fogo vir
sempre coberto de fumaça. Mas, como “não há fumaça
sem fogo”, o senhor tenha paciência, “compre cinco tostões
de cá-te-espero” e, no fim, com a argúcia jurídica
e gaviônica que todos lhe reconhecem, poderá decifrar, com os
elementos que estou lhe fornecendo, a estranha Desaventura de Sinésio,
o Alumioso e Quaderna, o Decifrador, na Demanda Novelosa do Reino do Sertão!
Uma explicação, porém, preciso lhe dar. Já lhe
contei que meu Pai me transmitiu sua enorme admiração por José
de Alencar. Foi exatamente quando eu começava a aprender com meu Padrinho,
João Melchíades, a “Arte da Poesia”. Eu já
estava furiosamente entregue à leitura dos folhetos, quando li O Guarani.
Por isso, entendi logo que, na história de José de Alencar,
havia um Rei, Dom Antônio de Mariz, acastelado no seu Solar do Paquequer;
uma Princesa loura chamada Ceci; outra morena, chamada Isabel; havia um escudeiro
e uma guarda de Doze Pares de França -do Cordão Azul, comandada
por Álvaro de Sá. Havia um Príncipe mouro-vermelho, Peri,
e os Tapuias-aimorés eram uma espécie de Cavaleiros descalços
e Arqueiros, pertencentes ao Cordão Encarnado. Depois, instruído
por Clemente e Samuel, vi Joaquim Nabuco escrever sobre José de Alencar,
dizendo: “Cecília é um tipo mal esboçado, uma criança
que devia fechar melhor a janela à noite (para não estar atraindo
a sensualidade brutal de Peri e Loredano com seus encantos). Ninguém
sabe se ela amou, ou não, Álvaro de Sá, nem por que amou
Peri. Esse Anjo está muito perto de ser um monstro, apesar de seus
grandes olhos azuis. Cecília tinha dezoito anos quando se resolveu
a acompanhar o Tapuia de tez de cobre para viver com ele no Deserto. Todos
querem saber o que vai ser da filha de Fidalgos que se abandona assim a um
selvagem, apesar de todo o rubor que lhe tinge de uns longes cor-de-rosa as
linhas puras do colo acetinado. Sua prima Isabel tem mais pudor, talvez, mas
é de uma sensualidade desenfreada. Mesmo quando ela tinha somente na
fisionomia a alma do amor, era já de uma sensibilidade tal que o leve
roçar da espiguilha no seu colo aveludado (o da outra era acetinado!)
causava-lhe sensações voluptuosas. Isabel é uma bacante.
O Senhor José de Alencar só pensou, ao criar essas duas, em
formar esse eterno contraste de suas heroínas, as morenas e as louras”.
Joaquim Nabuco dizia, ainda, que, na obra inteira de José de Alencar
só se via era essa eterna e cansativa oposição, “o
Corpo com seus instintos de Fera, e a Alma, com sua castidade. O Jumento e
o Anjo alternam-se a cada instante, as duas naturezas, a animal e a divina”.
Depois que li tudo isso, Senhor Corregedor, tive uma iluminação!
Vi que, na história de Sinésio, havia uma Princesa loura como
Ceci, que era Clara, e outra morena como Isabel, que era Genoveva Moraes.
E tomei conhecimento doutra Princesa cuja biografia é narrada também
por José de Alencar: é Lúcia, ou Lucíola. O maior
encanto, o maior enigma dessa mulher é que ela tem duas naturezas separadas,
a de Anjo casto e a de Jumenta no cio. Quando se revelava, nela, a natureza
de Anjo, diz José de Alencar que “tudo era branco e resplandecente
como sua fronte serena: por vestes, trazia somente cassas e rendas, por jóias,
somente pérolas; nem uma fita, nem um aro dourado manchava essa nítida
e cândida imagem”. Mas, quando aparecia a natureza de Jumenta no
cio, tudo era diferente. O narrador de sua história, que a possuiu
uma vez, fala disso assim: “O penteador de veludo voou pelos ares, as
tranças luxuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros, arrufando-se
ao contato da pele veludosa, e eu vi aparecer aos meus olhos pasmos, nadando
em ondas de luz, no esplendor de sua completa nudez, a mais formosa bacante
que esmagara outrora, com o pé lascivo, as uvas de Corinto. A posse
foi delírio, convulsão de prazer tão vivo que, através
do imenso deleite, traspassava-me uma sensação dolorosa, como
se eu me revolvesse no meio de um sono opiado sobre um leito de espinhos.
O prazer a estorcia em cãibras pungentes. Todo o vinho tinha lhe passado
pelos lábios. Agitando as longas tranças negras, retraiu os
rins num requebro sensual, imitando os mistérios de Lesbos e o rito
afrodisíaco das virgens de Pafos. Mas seu amor era como certas plantas
vorazes – a urze das paixões, o cacto selvagem dos nossos campos”.
Está vendo, Senhor Corregedor? Além disso, José de Alencar
esclarece que, quando estava assim, como Asna selvagem no cio, as roupas de
Lucíola eram inteiramente diferentes da cassa virginal e branca. Usava
ela “um vestido escarlate, com largos folhos de renda preta, bastante
decotado para deixar ver as suas belas espáduas. Júbilo satânico
dava a essa estranha criatura ares fantásticos entre as roupas de negro
e escarlate”. Ora, apesar de toda a genialidade de José de Alencar,
Joaquim Nabuco descobriu nele um grave defeito. Diz Nabuco, a respeito dessa
contradição de Lucíola, que José de Alencar não
tinha “o direito de dar uma vida independente, florescente de sensualidade,
ao corpo, e uma outra, de virgindade e pureza, à alma”. Foi aí
que eu vi que podia ganhar minha luta com José de Alencar, porque,
com a história de Sinésio, eu poderia ser muito mais completo
do que ele, por causa de Heliana, Clara era como Cecília, Genoveva
como Isabel: uma, loura e angélica, a outra, morena, ardente e no cio.
Mas Heliana juntava tudo isso, não em contradição e separadamente,
Senhor Corregedor, e sim em unidade, unindo a Verbena, a urze, a urtiga, o
Vinho, o mel das abelhas, e o amor felino da Onça jovem e fêmea,
isto é, o negro-escarlate da Paixão e a cassa da Pureza, ambas
ardentes. De fato, pelo que pude ver e adivinhar de seu amor por Sinésio,
assim era Heliana! E eu, tendo conhecido Heliana como meninae-moça
e, depois, como moça e mulher, poderia dizer dela tudo o que José
de Alencar disse de tantas outras, sempre separando em muitas o que, em Heliana,
era espanto e unidade, fogo e canto do sangue. É que, quando eu e Sinésio
vimos pela primeira vez aquela que seria a Dama e princesa de sua vida, ela
estava com doze anos, a mesma idade da irmã de Lucíola. Era
um fruto verde, como a Emília de Diva. Depois, “aveludada pela
pubescência”, despertava nela a mulher, na “atitude da corça
arisca”, assim como Gustavo pôde vê-Ia naquele dia, perto
do Mar. O cabelo dela, era como se tivesse sido formado somando-se o louro
de Ceci e Clara com o escuro de Lucíola e Isabel, para dar num cabelo
castanho-claro, fino, macio, dourado. Seu amor era “vinho, fruto e chamas
embebidas em mel” e era daí que se originava também a penugem
macia e rara que lhe dourava as coxas “alvas mas amorenadas pelo Sol”.
Assim, tudo o que lhe disse é verdade e pode ficar documentado em seu
inquérito. Mas é, também, estilo régio, e vai
me servir, na minha Epopéia, para eu ser mais completo, modelar e de
primeira classe do que José de Alencar! – Muito bem! Vá, então,
adiante, a respeito dos outros acontecimentos importantes daquele dia! Continuei:
– Bom, para contar o que aconteceu ainda de mais importante naquela Véspera
de Pentecostes de 1935, devo agora seguir os passos de Arésio desde
o momento em que ele soube da chegada de seu irmão Sinésio na
Vila. Como já disse, Arésio, desde a noite de Sexta-Feira, estava
desaparecido, ausente da casa dos Moraes, onde se hospedara. Ninguém
sabia onde ele se encontrava, o que, aliás, era comum suceder com ele,
de modo que ninguém estranhou isso, a princípio. Arésio
às vezes metia-se no mato durante dias e dias, caçando, o que
fazia com uma obstinação e uma ferocidade terríveis.
Às vezes, viajava repentinamente, a cavalo, ou então de carro
ou na carruagem que fora de seu Pai e que ele, estranhamente, conservava em
uso, quando já ninguém andava mais assim, aqui na Vila. Nesse
último caso, quando a viagem era feita de carruagem, podia-se, porém,
saber que ele ia para uma velha casa arruinada, situada num cercado solitário
e selvagem da fazenda dos Garcia-Barrettos. Outras vezes, em saídas
que davam o que falar, na rua, durante dias e dias, Arésio organizava
grandes “festas saturnais e orgiáticas” na minha “Estalagem
à Távola Redonda”. As “saturnais” tinham sido
batizadas assim pelo Doutor Samuel Wan d’Ernes, que sempre participava delas
para beber vinho às custas de Arésio, o qual, nessas ocasiões,
entregava-se às fantasias mais desvairadas, às liberalidades
mais extravagantes, às mais “enlouquecidas e delirantes dissipações”,
como dizia o genial Bardo brasileiro, Álvares de Azevedo. Era perigoso
contrariá-lo nesses momentos. Não era aconselhável nem
ao menos ficar nas suas proximidades, porque Arésio, inesperadamente
e sem motivo, agredia, às vezes, o primeiro que aparecia, simplesmente
porque não tinha gostado de um olhar insistente e curioso ou interpretara
mal um gesto inocente e descuidado da pessoa. Mais de uma vez, Senhor Corregedor,
eu o vi quebrar os móveis da “Távola Redonda”, atirando-os
contra as pessoas ou contra as paredes! – E o senhor não protestava
não? – Não senhor! Primeiro, porque seria arriscado. Mesmo gostando
de mim como gostava, lá à maneira dele, num momento como esses
Arésio podia me desconhecer, e eu estaria gravemente ferido ou morto
em dois tempos! Depois, ele pagava sempre em dobro, generosamente, todos os
prejuízos que me dava. Finalmente, como, mesmo nos dias de “saturnal”
comum e sem quebra de móveis, ele gastasse à larga, dando-me
bons lucros, eu não me incomodava absolutamente com suas violências.
Margarida cochichou qualquer coisa no ouvido do Corregedor que se voltou
para mim, dizendo: – Dona Margarida está falando, aqui, que foi por
intermédio de Arésio que o senhor montou essa casa-de-recurso
e tavolagem! É verdade? – É, sim senhor! Arésio sempre
demonstrou por mini, em todos os dias de sua vida, uma estima inalterável,
uma estima que ele, estranhamente e diferentemente de tudo o que se esperava
dele, não me retirava, nem mesmo quando eu cometia certos atos e tomava
certas posições que, em outro qualquer, ele consideraria crimes
imperdoáveis. Ele sempre achou graça em mim, que fui seu companheiro
mais velho, na “Onça Malhada”.
– É verdade que, depois de aparecer o dissídio entre Arésio
e o Pai dele, o senhor tomou o partido de Sinésio contra o do irmão
mais velho? – É, sim senhor, e esse foi um dos tais atos de que falei
há pouco. Arésio tinha uma profunda aversão, um ódio
cerrado, intenso e irreconciliável pelo Pai e pelo irmão mais
moço! Naquele Sábado, com o sol já descambando para o
poente, enquanto o Povo sertanejo, sarapantado com tudo o que acontecera,
começara a se aglomerar diante da velha casa dos Garcia-Barrettos onde
Sinésio se fechara depois do incidente do cabra, o Bispo de Cajazeiras,
Dom Ezequiel Veras, entrou em nossa Vila, passando, porém, quase despercebida
a sua chegada, por causa do tumulto que dominava a rua. Chegou o Bispo e dirigiu-se
logo para a Casa Paroquial, entrando pelos fundos da moradia do nosso velho
Vigário, Padre Renato, varão encanecido e endurecido, desses
de virtude antiga, implacável e sem contemplações. O
Padre, que tinha mandado um mensageiro esperar o Bispo, a fim de que este
já entrasse na Vila sabendo tudo o que estava acontecendo, trancou-se
logo com Dom Ezequiel, a quem narrou, agora com todos os pormenores, o que
sucedera até aquele momento. A entrevista do Vigário com Dom
Ezequiel, foi secreta, não assistindo a ela nenhum dos Padres da comitiva
do Bispo nem os dois Padres jovens que ajudavam o nosso virtuoso Pároco
em seu trabalho entre nós, isto é, o Padre Daniel e o Padre
Marcelo – É verdade que o Padre Renato tinha dificuldade de se entender
bem com esses dois auxiliares dele? – É, sim senhor! – De qual dos
dois ele gostava menos? – Acho que era do Padre Daniel, que era o mais cheio
de idéias, o mais agitado, pelo menos no começo! – Anote isso,
Dona Margarida, é muito importante! Pode continuar, Dom Pedro! – disse
o Corregedor, já denotando uma familiaridade que me desagradou por
um lado, mas que por outro me mostrou com o “Dom” já se tornara
corriqueiro para ele, ligado ao meu nome.
Continuei: – O Bispo e o Padre Renato combinaram, então, que só
fossem avisadas da chegada de Dom Ezequiel “as pessoas ricas, mais esclarecidas
e mais responsáveis, da Vila”. De uma em uma, cuidadosamente,
a fim de não se chamar a atenção do Povo, deveriam elas
ser convocadas para a Casa Paroquial. Foram logo encarregados dessa missão
delicada o Sacristão, José Deda, e Siá Maria Cabocla,
uma mulher que, por seu agarrado com os Padres da nossa Vila, era chamada
zombeteiramente, ora de “A Padreca”, ora de “A Sacristã”.
Passando da maneira menos notada que fosse possível, o Sacristão
e a Padreca deveriam ir às casas escolhidas e determinadas por Padre
Renato, recomendando às pessoas convocadas que viessem de uma em uma,
pelos lados da Rua de São José e da Praça da Feira, de
modo a evitar as proximidades da Rua Álvaro Machado e da Praça
das Cavalhadas onde se encontrava Sinésio. Como o senhor pode imaginar,
para a Aristocracia e a Burguesia urbana taperoaenses a chegada de Dom Ezequiel
foi um desafogo. Todos, agora, sentiam-se meio protegidos, e a sensação
geral de alívio foi resumida e expressa pelo Comendador Basílio
Monteiro com a frase de que “O barco, com um bom timoneiro à proa,
significava meio caminho andado, principalmente agora, quando todos pressentiam
que havia, já, quem velasse nas trevas e indicasse, pela antiga lanterna
da autoridade, a entrada segura para o porto”. Assim, Senhor Corregedor,
com as maiores cautelas, escondidas do Povo, foram se reunindo na Casa Paroquial
as pessoas mais poderosas da nossa terra. Chegou o Comendador Basílio
Monteiro, que tirara suas vestes suntuosas de Presidente da Irmandade das
Almas para ser menos notado. Chegou a nossa querida Dona Carmem Gutierrez
Torres Martins, ainda com as roupas de Presidenta Perpétua da “Vidacasta”,
acompanhada por seu marido, o velhinho Severo Torres Martins, e aqui por nossa
cara Secretária, Margarida, filha dela, que bem pode contar essa parte
da reunião.
O Corregedor voltou-se para Margarida e indagou: – É verdade, isso?
A senhora compareceu, mesmo, a essa reunião? – Compareci, Doutor! –
disse Margarida, baixando os olhos e pondo-se vermelha, pois já sabia
que eu ia contar ao Corregedor tudo o que se passara com o Pai e a Mãe
dela na Casa Paroquial.
O Corregedor voltou-se de novo para mim: – Está bem! Mas, mesmo Dona
Margarida tendo ido lá, continue contando, você mesmo! Quero
saber de tudo é através de suas versões e opiniões!
Depois, se eu achar necessário, vou acareá-lo com as outras
pessoas implicadas ou citadas no inquérito! Respondi, seguro: – Quem
não deve, não teme, Senhor Corregedor! O que eu estou lhe contando
é a pura expressão da verdade, e, desta vez, nem Margarida pode
me desmentir nem duvidar do que digo, porque foi a Mãe dela quem me
contou tudo! Mas, como eu vinha dizendo: chegou o Coronel Francisco Bezerra,
homem pertencente a uma das mais antigas e fidalgas linhagens do Sertão
do Seridó do Rio Grande do Norte. Chegou o Coronel Francisco Fernandes
Pimenta, homem também pertencente a poderosa e grande família,
espalhada pelos sertões do Sabugi e do Cariri. Chegou o Coronel Júlio
Motta, da antiga linhagem dos Mortas, de Limoeiro. Chegou o Coronel Pedro
de Farias Castro. Chegou o Coronel Joaquim Coura, de família pertencente
às hostes do velho Partido Liberal, do tempo da Monarquia. Chegou o
Coronel José Carneiro de Queiroz, com seu irmão, Manuel, ambos
correligionários políticos do Coronel Coura. Chegou o Coronel
Liberalino Cavalcanti de Albuquerque, parente de Clara e Heliana pelo lado
materno. Chegou o Coronel Jocelino Villar de Carvalho, Chefe das antigas hostes
monarquistas do Partido Conservador. Chegou o Coronel Deusdedit Villar de
Carvalho, primo do outro, Deusdedit Villar de Araújo, mas seu adversário
politico e mais conhecido, na rua, pelo nome de sua fazenda – Deusdedit do
SeteEstrelo. E outros e outros, que seria fastidioso citar. Vossa Excelência,
porém, não estranhe que, na lista, eu tenha deixado de me referir
ao Prefeito Abdias Campos, ao Presidente do Conselho Alípio da Costa
Villar, ao Professor Clemente e ao Doutor Samuel: apesar de poderosos, eram,
todos quatro, meio suspeitos ao Padre Renato, uns por “anticlericalismo”,
outros por “indiferença religiosa” e outros, ainda, por “demasiada
estranheza nos modos e no comportamento”. À medida que chegavam,
o Padre Renato, seus auxiliares e os Padres da comitiva do Bispo, iam atendendo
a um e a outro como podiam, dentro das acomodações, meio monacais,
meio “casa de solteiro”, da Casa Paroquial. Esperava-se a chegada
do último convidado, que tardava um pouco porque era o que morava mais
longe. Enquanto o esperavam, estabelecera-se, na sala, aquele tipo de conversação,
meio abafada mas animada, que precede o momento realmente importante das reuniões
– casamentos, enterros, etc. Num desvão de janela, conversavam Dona
Carmem Gutierrez Torres Martins e o Comendador Basílio Monteiro.
Margarida levantou os dedos da máquina, e falou com voz opressa:
– Doutor, o senhor proíba esse homem de continuar falando! O Corregedor,
surpreso, voltou-se para ela: – Parar? Por quê? – Isso que ele quer
contar, agora, não tem interesse nenhum, para o inquérito! –
Ah, não! – protestei. – Tem interesse, e muito! Se eu não contar
tudo, depois o Doutor, aí, vai dizer que eu estou malintencionado,
escondendo leite, feito vaca sem-vergonha! Não senhora, de jeito nenhum!
Ou eu conto tudo, ou tomam nota de tudo, ou eu não assino meu depoimento,
não tem que me faça! Doutor, eu tenho ou não direito
de contar tudo o que considere importante? – Tem! – disse o Corregedor. –
De que se trata, Dona Margarida? É algo inconveniente? Quer que eu
chame outra pessoa para anotar o inquérito? Margarida curvou-se, vencida:
– Não senhor, deixe! É melhor, mesmo, que seja eu quem ouça
e anote tudo! – Pois então continue, Bibliotecário Quaderna!
Quanto à senhora, Dona Margarida, não se incomode não:
vou apurar tudo o todas as contas dessa gente vão ser ajustadas! Vá,
fale, Senhor Quaderna! – disse o Corregedor, voltando ao tom cortante do início
e tirando-me o título de “Dom” que já tinha se acostumado
tanto a me conceder.
Continuei, com um suspiro: – O marido de Dona Carmem e Pai, aqui, da nossa
Margarida, isto é, Severo Torres Martins, o velhinho arrumadinho e
bonitinho de quem já falei a Vossa Excelência, estava perto da
mulher dele e do Comendador Basílio Monteiro, mas não prestava
atenção nenhuma ao que os dois diziam. Limitava-se a babar,
lançando, de vez em quando, um olhar impaciente para os bolos o doces
que estavam na saleta anexa, preparados desde a manhã, pelas mãos
das beatas, para a chegada do Bispo. O velhinho não estava interessado
em nada, a não ser nesses doces. Esperava, contido mas meio indócil,
desde o meio-dia, que acabassem com aquela maçada de Cavalhadas, festejos,
discursos e conversas inúteis, para que então ele se lançasse
ao que verdadeiramente importava. Segundo Dona Carmem me contou depois, aqui
a nossa Margarida, junto dele, vigiava-o com expressão ansiosa e atenta,
temerosa que estava de que ele praticasse alguma coisa “que talvez cobrisse
a família inteira de vergonha”.
Aliás, aproveito a oportunidade para assegurar a Margarida que não
havia razão nenhuma para esses temores dela de que o Pai “fizesse
vergonhas à família”: aqui na Vila, todos nós gostávamos
muito do velhinho Severo Torres Martins, e contávamos, uns aos outros,
as graças dele, mais ou menos como Pais afetuosos ou irmãos
mais velhos contam as traquinagens do caçula. Afinal de contas, Senhor
Corregedor, todos nós conhecíamos a situação surgida
entre ele e a mulher! Dona Carmern Gutierrez era filha de um rico “corretor
de açúcar” da Paraíba, homem que, depois de uma
juventude rica e ociosa, entrara em decadência financeira. O casamento
de Dona Carmem com o rico Fazendeiro sertanejo Severo Torres Martins – naquele
tempo com quarenta e cinco anos e trinta anos mais velho do que ela – tinha
sido a única solução encontrada para a ruína familiar
dos Gutierrez. Dona Carmem, agora, em 1935, era mulher de quarenta anos. Usava,
ainda, as modas e os atavios do tempo em que fora moça. Sra magra,
de pernas finas e arqueadas. Usava uma franja que lhe vinha até os
olhos. O resto dos cabelos, pretos e estirados, cortados à nazarena,
ladeavam-lhe o rosto formando dois arcos negros que, partindo do alto da cabeça
– onde se repartiam por uma risca – vinham até o meio das bochechas.
Tinha o rosto e todo o corpo finos e magros, os olhos grandes, pretos e meio
aboticados. E, como os braços eram, também, finos e arqueados,
ladeando o busto magro, Dom Eusébio Monturo, homem de língua
solta e irreverente, dizia que o enorme medalhão que Dona Carmem fazia
pender sempre do pescoço de uma longa corrente de prata destinava-se
a indicar às pessoas se ela estava de frente ou de costas. Eusébio
costumava acrescentar: “Aquela mulher é toda entre parênteses!
Tem a cara entre parênteses, por causa do cabelo. Tem o corpo entre
parênteses, por causa dos braços de macaco raquítico.
E, por causa das pernas finas, cabeludas e meio arqueadas para dentro, tem,
até, a perseguida entre parênteses!” O Corregedor deu um
salto da cadeira e, meio estuporado, sem ‘saber bem o que dizia, gritou para
Margarida: – Pra cadeia! Preso! Está preso! Margarida assombrou-se
um pouco, pensando que aquilo era com ela. Perguntou, cautelosa: – Pra cadeia?
Preso? Quem? – Ele, é claro! – rugiu o Corregedor. – Ele, o “Dom”!
Está preso! Vá chamar os soldados, Dona Margarida! Apesar dessas
palavras ameaçadoras do Corregedor, eu estava tranqüilo. Sabia
que Margarida não suportava a Mãe, motivo pelo qual não
ficaria verdadeiramente ofendida pelo que eu dissera.
Por outro lado, quanto ao Pai, ela quereria evitar escândalos maiores.
Eu calculara exatamente até onde podia ir, e, de fato, não me
enganei. Sem demonstrar aversão maior nem menor do que aquela que tinha
comumente por mim, ela interveio: – Deixe isso pra lá, Doutor! Se esse
homem for preso, vai haver escândalo, e, mesmo, como eu já disse,
essas coisas não me atingem! O que eu quero saber é se isso
que ele disse interessa para o inquérito ou não, se eu anoto
ou não! – Anote, anote! Serve, pelo menos, para dar uma idéia
do caráter desse homem! – Do meu, não! – protestei. – Do de
Dom Eusébio Monturo, que foi quem disse esses disparates! Eu, por mim,
nunca falei mal de Dona Carmem, que era minha amiga e também nossa
companheira, nas reuniões e cavaqueiras literárias da Biblioteca,
assim como colaboradora da página literária e charadística
que eu mantenho na Gazeta de Taperoá! – É verdade isso, Dona
Margarida? – perguntou o Corregedor.
– Isso, o quê? – Isso de sua Mãe ser intelectual e colaboradora
do jornal desse sujeito! – É, Doutor juiz! Minha Mãe tinha essas
manias literárias, que trouxe da Paraíba, e alguns espíritos
perversos daqui exploravam essa fraqueza dela! – O depoente era um desses?
– Era o Chefe! – disse Margarida com ar feroz.
– Não se incomode não, que o café dele está
se coando! – falou o Corregedor, com ar de quem assumia um compromisso sagrado,
e apesar do ditado que deixara escapar. – Pode continuar, Senhor Pedro Dinis
Quaderna! – Muito bem, Excelência! Como eu ia dizendo: apesar desses
atributos físicos a que já me referi, Dona Carmem usava aquele
tipo de saia curta e blusa folgada na cintura e apertada nos quadris, ao modo
de 1920. Costumava usar, também, um decote generoso que descobria o
começo e o meio do busto magro, sempre protegido, em parte, pelo enorme
medalhão do qual falava Dom Eusébio Monturo e que pendia da
corrente de prata, pousando no lugar em que, normalmente, estaria começando
o rego dos peitos, caso isso, nela, existisse um pouco mais. Era, talvez,
por causa dessas roupas “ousadas” que lhe aconteciam tantas aventuras,
ou melhor, que ela sempre escapava por um triz de ser vítima de alguma
armada. Raro era o dia em que, saindo às ruas da nossa Vila, tão
pacatas para as outras mulheres, Dona Carmem não chegasse em casa,
ou na Biblioteca, contando um caso terrível que “quase” lhe
sucedera. Aparecia sempre algum desconhecido, algum sertanejo bronco ou homem
de maus costumes que a seguira e teria, mesmo, atentado contra seu pudor se
ela não tivesse “tomado, a tempo, providências tão
enérgicas”. Outra característica importante da personalidade
de Dona Carmem é que ela, aí por 1919 ou 20, fizera, com seu
marido, pela Europa, uma viagem que, segundo o Professor Clemente, “não
havia jeito de prescrever”. A todo momento, essa viagem à Europa
era invocada como apoio para as opiniões de Dona Carmem em casos de
bom gosto, de teatro, de música, de moda e de literatura`. Pois bem:
naquela noite, ela conversava com o Comendador Basílio Monteiro. De
vez em quando, curvava-se profundamente, num gesto que lhe era habitual e
que, conforme a necessidade, indicava, ora a profunda dor de que ela estava
possuída ante uma comunicação dolorosa feita pelo interlocutor;
ora um espanto enorme e mudo; ora uma vênia de respeito apesar das discordâncias
que ela se reservava sobre as opiniões de quem falava; ora o riso ante
uma “saída de espírito”, um riso tão forte
e convulsivo que ela não tinha forças para suportá-lo
na posição vertical. Nesses momentos, os homens que tinham o
privilégio de fruir da companhia de Dona Carmem costumavam, por mera
curiosidade científica, espichar o pescoço e os olhos, tentando
ver alguma coisa do que existia – ou não existia – abaixo do decote,
pois, em tais momentos, é claro, o vestido se afastava do busto, deixando
ver as profundezas. Infelizmente, porém, no momento exato, Dona Carmem
costumava apertar o medalhão contra o peito com a mão espalmada,
num gesto que parecia um mea culpa de Padre, em hora de Missa, de modo que,
assim, ocultava da vista dos curiosos todas as surpresas que o vestido cobria.
– Deixe esses pormenores de lado e volte à história – disse
o Corregedor severamente.
Obedeci: – Quem falava, agora, ali, na sala de visitas da Casa Paroquial,
era o Comendador Basílio Monteiro, e o assunto era, como não
podia deixar de ser, o importantíssimo sucesso da chegada, à
nossa Vila, de Sinésio, ressuscitado e montado em seu cavalo branco.
`Eu nunca esperaria um acontecimento daqueles, minha cara Dona Carmem!’,
dizia o Comendador. `Confesso à senhora que, apesar de ser o homem
ponderado que a senhora sabe, estive a ponto de ter um delíquio! Vou
lhe dizer uma coisa: coisas como essas, só acontecem aqui, porque,
infelizmente, este nosso Brasil é um País desgraçado!
Num País decente, num País civilizado, como a Alemanha ou os
Estados Unidos, uma coisa dessas não acontece, porque o Governo proíbe
e toma, logo, todas as providências!’ “`Sim, foi tudo tão
inesperado!, disse Dona Carmem, acentuando a frase com o tom intelectual da
revista Fronteira, curvando o peito e quase mostrando os ditos, daquela vez.
“`Qual foi a reação da senhora?’, perguntou o Comendador,
espichando os olhos no momento exato em que Dona Carmem interpunha o medalhão
entre os caroços magros do peito e o rosto do homem, ansioso de curiosidade
frustrada.
“`Ah, Comendador, não lhe conto! O senhor ainda não soube
de nada?’ “`Não!’ “`É possível? Como se explica
isso? Não lhe contaram a desagradável aventura que se passou
comigo não?’ “`Não senhora, Dona Carmem! Eu não
soube de nada, absolutamente de nada!’ “`Pois vai saber agora mesmo,
meu caro Comendador! Eu estava, como o senhor sabe, no Palanque, quando aqueles
homens . esquisitos soltaram as feras enjauladas no meio da Praça e
começou o rebuliço! Senti uma fraqueza nas pernas, mas vi que,
se desmaiasse, as Onças me comeriam, pelo que resolvi não desmaiar!
Daí por diante, não sei mais, com exatidão, como as coisas
se passaram: não sei se me tiraram do Palanque, meio desmaiada, não
sei se saí sozinha, não sei se corri, não sei se me empurraram
por causa do pânico geral. O que eu sei é que, quando dei acordo
de mim, estava no beco que sai da Praça, parada, perturbada, imobilizada
pelo terror, como acontece nos pesadelos, e sem saber que providência
tomasse para escapar do perigo. De repente, eu me senti agarrada por trás,
na altura dos quadris, ou, melhor, pela cintura e por mãos que, habituada
como sou a essas tentativas, vi logo que não podiam ser de homem! Aliás,
para ser mais precisa, vi logo que aquilo não era, de jeito nenhum,
mão de gente! Apavorada, me virei para trás. Sabe o que era
que estava me agarrando?’ “‘Era uma Onça!’, disse o Comendador,
com os olhos brilhando pela excitação da história.
“`Não, não era não, Comendador, e foi disso que
me admirei! Naquele momento, ali, naquele lugar, a dois passos do local onde
tinham soltado os bichos, o lógico, o natural, era que fosse uma Onça.
Mas não era não, era um cachorro! Um cachorro grande, pardo,
esquisito, mas um cachorro! Fiquei apavorada e não sei, mesmo, se acharei
palavras para lhe contar o que se passou daí em diante!’ “`Não,
conte! Fique à vontade, Dona Carmem, a senhora está em casa!
O que foi que aconteceu? O cachorro tentou mordê-la?’ “`Não,
ele não tentou me morder! Foi tudo muito esquisito, uma coisa muito
estranha! Quando eu me virei, o cachorro tinha se agarrado em minha cintura
com as patas dianteiras. As patas traseiras estavam no chão, e o senhor
não imagina a situação embaraçosa em que fiquei
quando, de repente, ele começou á fazer, com as ancas, uns movimentos
estranhos em direção às minhas pernas e aos meus quadris!
Ficou assim um bom pedaço de tempo, sem me soltar mas também
sem me morder, e eu não sabia quais eram, na verdade, as intenções
dele, ali, com aquela posição e aqueles movimentos estranhos!
O pior é que, apavorada, eu não conseguia reagir nem me mover
do lugar! Só depois que ele me soltou por sua própria vontade
é que consegui reunir forças para fugir!’ “`E o cachorro
absolutamente não mordeu a senhora, Dona Carmem?’, perguntou o Comendador,
curioso.
“`Não, não me mordeu! Olhe, Comendador, eu lhe digo uma
coisa: já tenho tido que tomar providências enérgicas
contra várias tentativas estranhas de homens de vários tipos,
porque não sei o que é que eu tenho que sou um verdadeiro visgo
para atrair ousadias dessa gente! Mas, de todos esses momentos desagradáveis,
confesso que este de hoje foi o mais estranho e embaraçoso de todos!
A coisa foi a tal ponto que, quando ele me soltou, meu primeiro pensamento
foi: “Atrevido desse jeito, esse cachorro não pode ser daqui,
de jeito nenhum!”‘ “`Aí é que a senhora se engana,
Dona Carmem!’, contestou o Comendador. `A senhora fala assim, mas é
porque ainda está pensando nos cachorros sertanejos do nosso tempo,
uns cachorros mais educados e respeitosos do que esses cachorros perdidos,
de hoje! Tudo, agora, é um fim de mundo, minha senhora Dona Carmem,
e os cachorros de hoje em dia não respeitam mais ninguém, são,
todos, influenciados pelo comunismo! A senhora não se admire mais de
nada, porque, do jeito que as coisas vão, daqui a pouco até
os cachorros sertanejos menos conceituados vão andar por aqui no maior
dos atrevimentos! Se ainda fosse um cachorro de respeito, um cachorro civilizado,
como os da Alemanha, ainda ia! Mas um cachorro reles desses, um cachorro qualquer,
de pé-de-serra, sentir-se no direito de se escanchar nas cadeiras das
senhoras, aí não, é demais! E a senhora vai ver, isso
é somente o começo! Dagora em diante, tudo vai caminhar de mal
a pior! Com esse impostor perigoso que chegou aqui, hoje, com essa ciganagam,
com essa negralhada ladrona que lhe serve de acompanhamento, a desordem vai
ter tal impulso, vai aumentar tanto, que daqui a pouco, uma senhora de respeito
não vai mais poder sair para a rua sem que os cachorros atrevidos faltem
com o respeito devido a ela! Isso, com os cachorros: das pessoas então,
não quero nem falar! A senhora sabe que o molecório da Vila
está todo assanhado? Soube o que se passou, hoje à tarde, com
o nosso fotógrafo, Seu Siqueira, logo depois da chegada desse rapaz
perigoso que ninguém sabe quem é, mas que está cercado
pela negralhada cigana?’ “`Não, não soube de nada!’, disse
Dona Carmem, aboticando ainda mais os olhos aboticados, para demonstrar interesse.
“`Pois eu lhe conto! Não sei se a senhora soube que, logo depois
da chegada do impostor, apareceu na rua, puxado em cima de um carrinho, o
tal do Nazário Moura, um velho doido que o pessoal ignorante daqui
tem como Profeta e que começou, logo, a gritar disparates, aumentando
a agitação! Mal ele acabou de gritar suas sandices – e de ouvir
outras tantas de Pedro Cego – foi empurrado de volta, para fora da Praça,
por sua filha, Dina-meDói, que é quem serve de cireneu ao Profeta!
Quando eles chegaram perto da venda de Bino, o tal do Profeta Nazário
Moura mandou a filha comprar fumo de rolo para seus cigarros. Aí, um
bando de desocupados, assanhados pela chegada desse perigoso rapaz e chefiados
por Piolho, um ajudante de padaria, empurrou o carro de ladeira abaixo. Seu
Siqueira estava, naquela hora, tirando um retrato da velha viúva, Dona
Francisquinha Gabão, que estava vestida de preto, de chapéu
preto e de véu preto, com sombrinha preta fincada no chão e
sentada, muito tesa e bem-composta, diante da máquina-de-retrato, na
sala da frente da casa de Seu Siqueira que, como a senhora sabe, serve de
oficina a ele. A senhora conhece tanto Dona Francisquinha como Seu Siqueira.
Sabe que todos dois são muito moucos, de modo que não se espantará
pelo fato de, naquele instante, eles estarem ainda inteiramente alheios à
agitação e à balbúrdia que tomou conta da nossa
Vila! Seu Siqueira é homem sério e ponderado, e tem, como todos
nós, horror a esse ambiente que está subvertendo até
os costumes dos cachorros sertanejos! Pois bem: naquele momento, Seu Siqueira
estava, já, com a cabeça enfiada dentro da máquina de
fole, equilibrada no tripé. As chapas e o foco estavam, já,
quase prontos, e ele estava coberto com aquele pano preto dos fotógrafos.
Foi exatamente nesse instante que o carro, impelido furiosamente de ladeira
abaixo, ganhando velocidade e conduzindo o Profeta que vinha aos gritos, pedindo
socorro, bateu no meiofio da calçada e projetou violentamente o tal
do Nazário Moura para dentro da oficina de Seu Siqueira. O Profeta
caiu com o corpo em cima da máquina e com os pés na cara do
nosso honrado correligionário, que caiu no chão com a violência
da pancada. Com as pernas reviradas para o ar, numa situação
muito desagradável para se ficar diante de uma senhora de respeito,
Seu Siqueira, sufocado pela indignação e pelo pano preto, gritou:
“Chuva de aleijado! É o comunismo! Até agora, Dona Francisquinha,
ainda suportei essas campanhas do comunismo contra os cidadãos pacatos,
mas chuva de aleijado é demais! Vou me mudar”. E eu soube, de
fontes fidedignas, que a resolução dele é mesmo inabalável:
vai se mudar para Patos, onde o comunismo também já está
causando desordens, mas pelo menos ainda não chegou a esse extremo
de jogar chuva de aleijados na cabeça dos cidadãos ordeiros
e produtivos da sociedade! Agora, veja a senhora, Dona Carmem, se tenho razão
ou não tenho, quando digo que, com essa negralhada e esses impostores
que invadiram a nossa Vila, isso aqui vai ficar, mesmo, um fim de mundo!”‘
FOLHETO LXIX
A Estranha Aventura do Cavalo Concertante Nesse momento, Senhor Corregedor,
o marido de Dona Carmem e pai, aqui, da nossa Margarida, o velhinho Severo
Torres Martins, que tinha deixado passar, aparentemente sem ouvi-las, a história
do fotógrafo e a aventura desagradável vivida por sua mulher,
conseguiu iludir a vigilância da filha. Marcou carreira para a mesa
dos doces e, chegando lá, antes que pudessem impedi-lo, enfiou a mão
no bolo maior, que estava pousado no centro da mesa. Tirou, assim, um grande
punhado do açúcar que confeitava o bolo, encheu a boca e, ao
mesmo tempo, com a maior destreza, meteu outro punhado de bolinhos menores
e pastéis-denata no bolso. A nossa Margarida, com medo de escândalo
maior, achou melhor, talvez, deixá-lo assim mesmo, de modo que o velhinho
ficou na maior das felicidades, junto da mesa, de boca cheia, mastigando e
lambendo os beiços, com a cara branca de açúcar. Coincidiu
que, naquele momento, o Bispo foi passando por perto de Dona Carmem, que aproveitou
a deixa. Outra das fraquezas dela era apresentar sempre o marido elogiando
“o aprumo e a lucidez perfeita em que ele se encontrava, nos seus setenta
anos fortes e espigados”. Assim, ela falou para o Bispo: “`Dom Ezequiel,
permita que eu beije a sua mão!’, disse Dona Carmem, começando
a se ajoelhar.
-Não, não se ajoelhe não, minha filha!’, foi dizendo
Dom Ezequiel.
“`Ah, não, de modo nenhum! Ajoelhada, faço questão
da hierarquia e das genuflexões! Vossa Excelência certamente
não se lembra de mim, sendo o homem ocupado que é e vendo tantas
caras novas! Sou Carmem Gutierrez Torres Martins, Presidenta Perpétua
das Virtuosas Damas do Cálice Sagrado de Taperoá, a Vida-Casta,
como nós chamamos! Estive com Vossa Excelência em Patos, numa
visita que o senhor fez lá. Fui a Patos naquela ocasião, chefiando
a ala feminina da comitiva de Taperoá, que lhe foi prestar as devidas
homenagens.’ “`Ah sim, lembro-me perfeitamente da visita a Patos!’, disse
o Bispo, sem desmentir Dona Carmem, mas também sem se comprometer.
`Como vai a senhora?’ “`Vou muito bem, Excelência, e agradeço
a Vossa Excelência o seu interesse, e a gentileza de se lembrar! Lembrou-se
de mim nas suas orações, como lhe pedi? Não, não
responda, é uma indiscrição minha perguntar isso, só
agora me apercebo! Mas Vossa Excelência não conhece meu marido,
Severo Torres Martins! Olhe, é este aqui! É um homem admirável,
Dom Ezequiel, permita que eu tenha a corujice de falar assim! Severo está
com setenta anos, mas faz gosto! Aprumado, duro, forte que é uma beleza!
E, o que é mais importante, inteiramente lúcido! Severo, filhinho,
fale aqui com Dom Ezequiel!’ “`Ezequiel? Conheço! Não é
o vaqueiro de Antônio Villar?’, disse o velhinho, aproximando-se, lambendo
os beiços sujos de açúcar e com os bolsos atulhados de
sequilhos.
“`Filhinho, esse aqui é Dom Ezequiel! Dom Ezequiel, este é
meu marido, Severo Torres Martins!’, disse Dona Carmem, procurando não
tomar conhecimento do equívoco do marido.
“`Muito prazer! Seu criado!’, disse Severo estendendo educadamente
a mão ao Bispo, de modo correto, se bem que um tanto ensinado.
“`Severo, beije a mão de Dom Ezequiel!’, disse Dona Carmem,
tornando-se mais animada à medida que via o marido se sair bem.
“Eu? beijar mão desse vulto? Por quê? Beijo nada!’, falou
Severo, com um tom displicente mas firme, inteiramente inesperado ante os
modos do começo. E acrescentou: `Meu Pai já morreu: por que
é que eu iria, agora, beijar mão de barbado? Só beijo
se ele me der um doce!’, concluiu ele, querendo logo aproveitar a oportunidade
de aumentar sua provisão de sequilhos. e pastéis.
“O Bispo, Senhor Corregedor, que já estava começando
a ficar meio intrigado, riu aliviado, julgando que Severo estava gracejando
com o ditado popular, “não faço isso nem que você
me dê um doce’. Dona Carmem, ou se iludiu também ou quis aproveitar
o engano do Bispo para disfarçar e bater em retirada: “`Ah, Severo!’,
disse ela. `Já está você com suas brincadeiras, filhinho!
Severo é assifn, Dom Ezequiel, não repare os modos dele não!
Nos primeiros momentos de cerimônia, ele fica calado, mas depois, principalmente
se simpatiza com a pessoa a quem está sendo apresentado, não
se cala!’ “Foi pior, Senhor Corregedor! Severo, pensando de novo nos
bolos, deixara de prestar atenção ao sentido, de modo que só
ouvia, agora, o zumbido das palavras da mulher. As duas últimas soaram
em seus ouvidos como uma palavra só, sicala, uma palavra que, tocando
em certas coisas, despertou, nele, uma porção de recordações
misturadas, umas do Sertão, mas a maioria ligada à célebre
viagem que ele e Dona Carmem tinham feito à Europa: “`Sicala?’,
indagou ele, pondo-se novamente alerta e vivo. ‘Conheci, era um cavalo! Sicala
era o cavalo de sela do Coronel Queiroga, de Pombal! E o que eu achei mais
esquisito era ele ser, ao mesmo tempo, um cavalo e um teatro! Digo isso porque
depois, quando a gente viajou para a Europa, eu e Carminha, a gente passou
numa cidade da Itália, e o cavalo do Coronel Queiroga estava lá,
com o nome de Sicala de Milão! Eu não me lembro direito como
era não, porque, ali na Europa, a confusão é grande!
Mas me lembro que era uma coisa assim: ou era o cavalo que tinha se virado
num teatro, ou era o teatro que era um cavalo que cantava! Sei não,
a misturada era grande! Mas eu me lembro bem que Sicala estava lá:
não me lembro se tinha cabeça e rabo, mas tinha frente e fundo,
isso tinha! O pessoal entrava pela frente e saía pelo fundo do cavalo,
e eu só me admirava era de que um homem sério e sisudo, como
o Coronel Queiroga, de Pombal, deixasse aquele pessoal estrangeiro tomar essas
liberdades com o cavalo de sela dele! Digo isso porque, comigo, a coisa é
outra! Por fundo de cavalo meu, eu não deixo nem entrar nem sair galego
de qualidade nenhuma!’ -Filhinho, que brincadeiras disparatadas são
essas?’, disse Dona Carmem, aflita, já arrependida de ter mexido naquela
casa de maribondos. `Você, tão respeitoso, tão sério,
tão lúcido, vir com essas conversas para o nosso Bispo?’ “`Bicho?’,
perguntou Severo, intrigado. ‘E esse vulto preto, aí, é um bicho?
Que bicho é esse, Carminha? É um dos bichos que soltaram da
jaula, agora de tarde? Se é, que diabo de qualidade de bicho é
essa, que usa saia preta? Será uma burra preta que fala, como Sicala
cantava? Ou é um macacão-de-cheiro, vestido de saia?’ “`Filhinho,
pelo amor de Deus!’, disse Dona Carmem, mais morta do que viva.
“`Ah, já sei o que ele é!’, continuou Severo, sem dar
importância à interrupção e provando que estivera
mais atento do que se pensara à conversa de sua mulher com o Comendador.
`Já sei que qualidade de bicho é esse, aí! É um
cachorro, um cachorro de circo, desses que aparecem de saia, nos Circos, pulando
fogo! Uma vez, passou um Circo aqui, e lá eu vi um cachorrão
grande, vestido de saia, engraçado, que pulava uns arames de fogo!
Você se lembra, Carminha? E era um cachorro grande, de saia, quase do
tamanho desse tal Ezequiel, aí! Agora, uma coisa eu lhe digo, Carminha:
abra o olho com esse cachorro de saia preta, porque esses cachorros de Circo
são espertos e safados como o Diabo! Não vá ser esse,
aí, o cachorro que fudeu você, no beco, hoje de tarde!”‘
Aproveitando os dois segundos de estupefação do Corregedor,
nobres Senhores e belas Damas que me ouvem, eu disparei, falando na carreira,
para evitar a repreensão e mesmo a Cadeia que, infalivelmente, se seguiria,
caso eu desse oportunidade a que o espanto acabasse, começando a indignação:
– Como Vossa Excelência vê, Senhor Corregedor, o Pai aqui da nossa
Margarida tinha voltado ao estado de inocência da infância e era
isso o que o tornava tão estimado de todos nós, nenhuma pessoa
daqui levando a mal ou estranhando nele aquilo que, noutros, seria inconveniente.
O Bispo Dom Ezequiel, que era uma pessoa boníssima, parece que entendeu
tudo, também; e, não querendo deixar Dona Carmem mais aflita
do que já estava, aproveitou a entrada dos dois últimos convocados
que vinham chegando, e afastou-se discretamente. O pessoal, pressentindo que
a reunião, mesmo, ia enfim começar, fez logo um silêncio
cheio de tensão. O Bispo colocou-se na cabeceira da grande mesa oval
que servia para as reuniões da Irmandade, tendo, à direita,
o Padre Renato e o Padre Marcelo, e, à esquerda, o Padre Daniel e o
Comendador Basílio Monteiro que, na qualidade de Presidente da Irmandade
das Almas, tinha o privilégio de iniciar, junto aos Padres, o grupo
dos leigos. Aliás, como Presidente da Irmandade, o Comendador estava
se sentindo ali como uma espécie de anfitrião; foi explicando
isso que começou suas palavras nos seguintes termos “`Excelentíssimo
e Reverendíssimo Senhor Bispo, Reverendos Padres, minhas senhoras,
meus senhores! Na qualidade de Presidente da Irmandade das Almas e como filho
natural da nossa Vila, sinto-me no dever de iniciar a reunião, como
pessoa humilde que recebe, em sua casa, pessoas ilustres e importantes! Acontecimentos
da mais alta gravidade sucederam-se e estão acontecendo ainda, em nossa
Vila. E, parece que por um decreto emanado das profundezas insondáveis
da Providência Divina, acontece tudo isso, por sorte nossa, no mesmo
dia em que devia chegar aqui essa figura de Pastor e Prelado que é
o Bispo Dom Ezequiel, figura exemplar de antístite paraibano. Não
preciso dizer a todos
que a situação do nosso País é gravíssima.
O Comunismo, lobo disfarçado de ovelha, prepara seu assalto às
instituições, e somente os cegos é que não viram,
ainda, o perigo que nos cerca por todos os lados, ameaçando retirar Deus
dos altares, a Pátria do convívio das nações e a
Família de sua posição inabalável de centro da sociedade.
O Chefe escolhido e confesso desta, agitação é aquele mesmo
homem nefasto, já conhecido de todos nós desde que, em 1926, passou
pelo Sertão da nossa pequenina e gloriosa Paraíba, ensangüentando
o solo sagrado da nossa terra com o sangue dos mártires, dos Sacerdotes,
das pessoas ordeiras e pacatas. Que o diga o sangue do Padre Aristides Ferreira
Leite, degolado em Piancó pela “Coluna Prestes”, juntamente
com outros heróicos defensores da honra sertaneja. Mas, naquele ano de
1926, o nefando Luís Carlos Prestes agitava o Brasil não ainda
em nome do Comunismo, mas sim movido por um ideal de certa forma elogiável,
aquele mesmo ideal que veio a se corporificar e legitimar, depois, na gloriosa
e vitoriosa Revolução de 1930′.
“Levado pelo som de suas palavras, Senhor Corregedor, o Comendador
Basílio Monteiro tinha ido um pouco mais longe do que desejava, uma
vez que a maioria dos presentes era pouco entusiasta da `gloriosa Revolução
de 1930’. Mas ‘o fogo sagrado do ideal e da eloqüência’ se apossara,
mesmo, do Comendador, de modo que ele continuou no mesmo tom: -Depois, porém,
Luís Carlos Prestes abandonou, pelo Comunismo, a trilha que tinha seguido
até ali! A bandeira que ele sustentava e conduzia caiu-lhe das mãos
e veio recair nos braços do grande Herói paraibano que, hoje,
passados cinco anos de sua morte, todos nós ainda choramos, o Presidente
João Pessoa, o maior dos Brasileiros, “o incrível João
Pessoa” – para usar a expressão do genial escritor Adhemar Vidal
– o Mártir que ungiu com seu sangue as liberdades republicanas do Brasil!’
-Muito bem!’, disseram fracamente duas ou três vozes discretas, um pouco
discretamente demais para o que esperava e desejava o orador, o qual, começando
a se aperceber de que devia abandonar aquele terreno polêmico, voltou
ao assunto principal: -Meus senhores! Todo mundo sabe que Luís Carlos
Prestes, exilado do Brasil desde 1927, foi procurado pelos revolucionários,
nas vésperas de 1930, para se colocar novamente à frente da
insurreição que se preparava. Mas ele repeliu aqueles que o
convidavam, porque, segundo suas próprias palavras, se convertera ao
Credo vermelho e só acreditava, daí por diante, numa Revolução
inspirada pelo Comunismo ateu, regime que ele faria tudo para implantar em
nossa Pátria! Prestes não teve escrúpulos, então,
de se apropriar de vultosa quantia em dinheiro que os revoltosos de 1930 tinham
lhe entregue; e, desde aquela data, não houve um só dia em que
ele não conspirasse e tramasse o assalto ao Poder. Todo mundo sabe
que ele, vestido de Padre e com um passaporte falso, entrou novamente no Brasil,
sob o nome de Antônio Villar. Todo mundo sabe que ele e seus companheiros
estão conspirando na sombra, preparando uma Revolução
para, talvez ainda neste nosso ano de 1935, tomar o Poder e instaurar uma
República soviética em nossa Pátria. O fantasma vermelho
do Comunismo ameaça-nos por todos os lados. Os cidadãos pacatos
não podem mais trabalhar, porque os Comunistas e revoltados de toda
natureza inventam, a toda hora, greves, picuinhas, agressões e atentados
de todos os tipos, para perturbar o progresso e o trabalho produtivo e ordeiro.
Hoje, mesmo, o honrado fotógrafo de nossa Vila, homem remediado e de
boa família, sofreu um desses atentados; o mesmo, quase, pode-se dizer
de uma das Damas mais ilustres da nossa sociedade. E por que se atrevem a
tanto, os agitadores? – pergunto. Porque estamos invadidos e ameaçados,
com os nossos campos talados e nossa Vila assaltada pela agitação.
Sim, meus caros conterrâneos! Hoje entrou aqui, na nossa querida Vila
de Taperoá, um grupo armado, que introduziu em nossa terra a desordem
e o morticínio, ameaçando a vida dos Pais de família
e a honra de suas filhas e esposas. Segundo os primeiros boatos, trata-se
de uma tribo de Ciganos. Mas serão Ciganos, mesmo? Como se explica,
então, o atrevimento com que se comportaram diante das autoridades?
Os ciganos são gente matreira e sem confiança; mas são,
também, subservientes, procurando sempre tratar bem as autoridades
a fim de não serem compelidos a abandonar sua vida de vagabundagem
e ladroeira! E, caso a versão seja verdadeira, todo mundo sabe que
o Cigano Praxedes é homem perigoso, que já andou envolvido em
mais de um caso misterioso, em mais de um crime, em mais de um atentado a
bala. Digamos que são Ciganos: como se explica, então, que viesse
com eles um Sacerdote, um Frade, um homem de Deus, quando todos nós
sabemos que não se pode confiar na religião dos Ciganos? E além
disso todo esse pessoal que chefia a tribo é, perdoem-me o vigor da
expressão estranho e suspeito. Quem será esse tal Doutor Pedro
Gouveia? Quem será esse Frei Simão, ou melhor, quem é
o lobo vestido de ovelha que se esconde por trás desse nome, quando
todos nós sabemos que não é o hábito que faz o
Monge? E chego ao ponto nevrálgico da questão: quem será,
na verdade, este rapaz que se apresenta hoje, aqui, com o nome daquele moço
infortunado que morreu há três anos, em 1932, coroando, sua morte,
a série de infortúnios e tragédias que se abateu sobre
a ilustre família GarciaBarretto? Quem terá sido o homem que
atirou nesse rapaz, morrendo logo em seguida, a tiro, de maneira tão
misteriosa? A meu ver, esse atentado, ou melhor, esse simulacro de atentado,
não passou de uma outra farsa, com a qual os Comunistas pretendem jogar
areia e uma cortina de fumaça diante dos olhos das pessoas respeitáveis.
A situação é grave, meus Senhores! Nosso País
está dividido entre dois extremismos. A meu ver e salvo melhor juízo,
um deles é mais perigoso, de modo que, apesar do conhecido equilíbrio
das minhas posições, chego quase a dar razão aos que
se ergueram na defesa de Deus, da Pátria e da Família. Mas,
de qualquer modo, o fato é que os dois são, entre si, adversários
implacáveis, assim como, para nós, inimigos irreconciliáveis
das nossas instituições. O que sucedeu hoje, aqui, é,
portanto, muito claro. Quem quiser formar sobre os acontecimentos de hoje
uma idéia segura, basta verificar de que lado ficou, logo, a ralé,
esse Povo indisciplinado, mal-educado e analfabeto que é a mancha vergonhosa
da face do nosso Brasil. Na Inglaterra ou nos Estados Unidos, um fato desses
não aconteceria! Pergunto: de que lado ficou esse Povo, ignorante,
fanático e miserável? Do lado daqueles que invadiram nossa Vila
nas caladas da noite! Logo, estes, e não os outros, é que são
os revolucionários, e seus adversários ‘devem receber todo nosso
apoio! Ouçam meu brado dê alerta! Sim, porque o pior aqui, hoje,
é a cegueira daqueles que, entre nós, deveriam ser as colunas,
os sustentáculos da sociedade! Ninguém quer ver o perigo! A
continuarmos assim, quando cuidarmos, estaremos com o inimigo dentro das nossas
muralhas, com os cidadãos mais conspícuos da Pátria sendo
fuzilados! Certamente acham que eu exagero! Mas pergunto-e repito: o Padre
Aristides não foi fuzilado e sangrado em Piancó, em 1926, por
essa mesma gente que agita e subverte, hoje, o nosso País? Assim, ninguém
tenha dúvida! O que aconteceu hoje, aqui, é algo de muito grave!
A Coluna suspeita que entrou em nossa Vila é um grupo Comunista armado,
e o atentado cometido contra aquele que parece ser o Chefe deles só
pode ter duas explicações: ou foi cometido por grupos extremistas
adversários, ou, o que me parece mais provável, foi somente
uma farsa, destinada a mascarar alguma dissensão interna, alguma condenação
imposta por algum secreto Tribunal Revolucionário ao homem que morreu.
É preciso colocar de sobreaviso os olhos que não querem ver
e os ouvidos que não querem ouvir. Pouco antes da nossa reunião,
ouvi algumas opiniões, colhidas aqui entre as melhores pessoas da nossa
sociedade, a maioria achando que o acontecimento de hoje nada tem a ver com
os Comunistas e a Revolução, que é somente uma briga
de família. Todos sabem que fui, durante toda a minha vida, um seguidor
da família Pessoa e do Partido Epitacista, herdeiro de Venâncio
Neiva e do velho Partido Conservador, da Monarquia. Assim, fui sempre adversário
da nobre família Garcia-Barretto. Mas adversário leal e sincero!
Nada tenho a ver com os dramas que persegui ram essa ilustre família.
O que me preocupa, portanto, nos acontecimentos de hoje, é tudo o que
está oculto por trás deles. Dizem que a Coluna rebelde que invadiu
hoje a nossa Vila nada tem a ver com a Revolução preparada pelos
Comunistas. Dizem isso baseados no fato de que ela vem acompanhada por um
Frade. Respondo, em contrapartida: assim como Luís Carlos Prestes entrou
no Brasil vestido de Padre e com o nome de Antônio Villar, um dos seus
homens de confiança pode ter vindo para o Sertão da Paraíba,
vestido de Frade e com o nome de Frei Simão do Coração
de Jesus. Além disso, mesmo que esse Frade fosse um verdadeiro Sacerdote,
ungido e consagrado, de que garantia pode isso nos servir, num tempo em que
o próprio Clero está infiltrado de revolucionários, principalmente
entre os Padres jovens?’ “Aqui, Senhor Corregedor, o Comendador Basílio
Monteiro lançou um olhar fuzilante e denunciador contra o Padre Marcelo
o o Padre Daniel. Segundo Dona Carmem me disse depois, notava-se. seu desejo
de que esse olhar fosse anotado e sublinhado pelo Bispo. Dom Ezequiel, porém,
era homem prudente e conciliador: ficou impassível, por não
entender, por não ouvir, ou então por achar que a denúncia
não era tão grave quanto o Comendador julgava. Este continuou:
“`Pergunto, ainda, o seguinte: os Senhores não acham estranho
que o rapaz, Chefe dessa Coluna que nos invadiu hoje, tenha indagado ao homem
do atentado onde é que poderia encontrar Antônio Villar? Objetam-me
que, aqui em Taperoá, na sua pacata fazenda “Panati”, existe
um fazendeiro com este mesmo nome, o nosso honrado Antônio Dantas Villar
que, por sua posição social o por suas tradições
de família, está acima de qualquer suspeita de Comunismo. Mas
o nosso, o Antônio Villar que todos nós conhecemos, qualquer
pessoa poderia tê-lo indicado ao rapaz do cavalo branco! Assim, não
se explica que o homem que morreu tenha respondido que não sabia onde
o tal Antônio Villar se encontrava! Indagam, ainda, os incrédulos:
– Que interesse existe, para os Comunistas, em invadir e ocupar uma Vilazinha
perdida e isolada no Sertão da Paraíba? Respondo, em primeiro
lugar, que nossa Vila não é tão perdida assim, e nem
o será nunca, a não ser que os Comunistas a botem a perder,
de vez! Em segundo lugar, pergunto: – Que interesse havia, para Luís
Carlos Prestes, em atacar Piancó, em 1926? Piancó é uma
Vila mais longínqua, mais isolada e menos importante ainda, do ponto
de vista estratégico, do que a nossa gloriosa Vila de Taperoá!
Lembrem-se de que o nosso Cariri paraibano está situado a meio caminho,
numa posição central e portanto estratégica, em relação
aos dois maiores o mais importantes focos Comunistas do nosso Brasil, isto
é, Natal, Capital do Rio Grande do Norte, e Recife, Capital do progressista
Estado de Pernambuco! Em Natal e no Recife, o Exército está
minado pela Revolução! Ao contrário, todos sabem que
o Batalhão sediado na Capital da Paraíba, o nosso glorioso e
invicto 22.11 Batalhão de Caçadores, é legalista e tradicionalmente
fiel às instituições! Eis aí, então, o
verdadeiro motivo de os Comunistas procurarem apoio, não na Capital
paraibana, e sim no Sertão do nosso Estado. Dir-me-ão que, neste
caso, seria mais lógico que eles escolhessem, para invadir, a Cidade
de Campina Grande, a Rainha da Serra da Borborema, a mais progressista e importante
do Sertão. Mas eu explico também, facilmente, o motivo de não
terem, eles, agido assim: é que, havendo em Campina um Quartel e um
Batalhão da Polícia Paraibana, a repressão seria imediata
e violenta! Assim, era muito melhor fazer o que eles fizeram, atacando e invadindo
uma Cidade menor, que provavelmente se entregaria sem luta, como de fato se
entregou, podendo, agora, servir de base para o ataque, a Campina Grande primeiro,
e à Capital depois! Não foi assim que agiu, em 1912, a Coluna
revolucionária dos Chefes sertanejos, o Doutor Dantas e o Bacharel
Santa Cruz? Está ainda em nossa memória a lembrança das
cenas de saque, de sangue, de violência contra a vida e a propriedade,
de assaltos à honra e ao pudor, cenas levadas a cabo aqui, em nossa
Vila, pela Coluna dos revoltosos daquele ano, comandados pelo Negro Vicente,
por Seu Hino, por Germano, Severino Mãezinha e outros Chefetes de grupo,
a mando de dois Chefes sertanejos que não se envergonharam de manchar
seus títulos de raça e ilustração, assaltando
e tomando seis cidades sertanejas. Lembrem-se de que esses dois Chefes levantaram
oitocentos homens de armas, assaltando e tomando Monteiro, São Tomé,
Taperoá, Patos, Soledade e Santa Luzia do Sabugi. Assaltaram, ainda,
a sétima, a Vila Real de São João do Cariri, preparando,
assim, a tomada de Campina Grande, quando o Exército interveio e os
revolucionários de 1912 foram desbaratados. Lembrem-se de que essas
coisas não são episódios isolados, pois, na “Guerra
de Doze”, fazia sua estréia nas lutas e insurreições
sertanejas, o filho de um dos Chefes, João Duarte Dantas, aquele mesmo
que depois, em 1930, mataria o Presidente João Pessoa, cometendo o
magnicidio que deflagrou a Revolução de 1930! Sei que aqui,
nesta ilustre Assembléia, existem pessoas inatacáveis, que foram
correligionárias desses dois Chefes revoltados! Não me refiro
aos presentes, que sempre estiveram ao lado da Lei e não aprovaram
a Revolução de 1912!’ “‘O senhor está enganado!’,
disse o Coronel Joaquim Coura, imediatamente. `O senhor falou, aí,
que foi, sempre, correligionário dos Pessoas. Eu, ao contrário,
fui sempre adversário deles.
Aqui, na Vila, segui sempre os Garcia-Barrettos, desde muito moço,
desde o Barão do Cariri, Pai do nosso Chefe, Pedro Se bastião
Garcia-Barretto, degolado em 1930 pelos agentes do Governo da Paraíba!
Quanto à Revolução de 1912, tenho muito orgulho de ter
tomado parte nela! Assim como tenho orgulho de ter tomando parte na “Guerra
de Princesa”, sempre ao lado dos Dantas, do Coronel José Pereira
e dos Garcia-Barrettos!’ -Eu também! Eu também!’, ecoaram várias
vozes, já num tom meio hostil.
“`Deixemos, então, esse terreno, pois não é a
Guerra de Doze nem a de Trinta o que me preocupa agora!’, disse o Comendador.
`Passo a um exemplo tirado do Estado do Ceará: não foi assim
que agiram os romeiros revoltados do Padre Cícero, quando saíram
do Juazeiro, invadindo e tomando todas as Vilas e Cidades sertanejas, e chegando,
assim, até as portas de Fortaleza, a Capital do Estado, que eles tomaram
e saquearam, em 1913? Pois foi de modo semelhante, pela mesma razão,
com a mesma astúcia e tática, que agiram os rebeldes que invadiram,
hoje, a nossa Vila, sob o disfarce de uma tribo de Ciganos, Ciganos armados?
Ciganos que, segundo corre na rua, reagiram a bala contra uma emboscada na
estrada? E está provado que o plano deles deu certo! Tanto assim que
a Polícia fugiu, deixando os nossos lares e as nossas casas de comércio
expostas à sanha dos salteadores! A essa altura, estamos à mercê
deles! Não existem mais autoridades constituídas, não
existe mais Prefeito, não existe mais Delegado, não existe mais
Polícia, não existe mais Juiz de Direito, não existe
mais nada! O nosso Prefeito, agora, é Luís do Triângulo!
O Delegado é o Cigano Praxedes! O Juiz de Direito é o Doutor
Pedro Gouveia! A nossa Lei é a do trabuco dos Cangaceiros! Uma República
comunista está instaurada em Taperoá! E eu diria, mesmo, que
o nosso Pastor agora é Frei Simão, se não nos restasse,
aqui, a figura do nosso Bispo, que, como um raio de luz ferindo as trevas,
chegou no momento exato, apontando ao nosso barco o caminho do porto que nos
servirá de abrigo seguro. Esse é o motivo da nossa reunião.
Esperamos, agora, a palavra de Sua Excelência Reverendíssima,
para seguir cegamente a sua orientação, o roteiro que ele tem
a nos oferecer e cujas linhas certamente já concebeu nos escaninhos
de seu privilegiado espírito e no escrínio do seu coração
paternal!'”
FOLHETO LXX
O Carneiro Cabeludo
O Comendador sentou-se, Senhor Corregedor, e, sob expectativa geral, Dom Ezequiel
ergueu-se para nos apontar “o caminho do porto”. Infelizmente, porém,
se ele tinha mesmo, como dissera
o Comendador, “um roteiro seguro”, concebido “nos escaninhos
do espírito e no escrínio do seu coração paternal”,
nunca . nós viemos a saber qual era. Porque, quando ele ia começar
a traçá-lo, ouviu-se um violento estrondo na porta da frente
da Casa Paroquial, que até aquele momento permanecera fechada à
chave. Com a violência da pancada dada por fora, a fechadura saltou
longe, arrancada juntamente com um pedaço da madeira, que se lascara.
Aí, as pessoas que estavam na sala, todas já com os nervos tensos
pelo que vinha acontecendo na Vila e agora tomadas de surpresa
o espanto pelo estrondo, avistaram Arésio Garcia-Barretto, ainda meio
desequilibrado pelo pontapé que dera com o solado de sua meia-bota
na folha de madeira da porta, arrombando-a como acabo de. contar. Com o impulso
que dera, o pé dele já pousou no chão na parte de dentro
da sala. A folha de madeira da pesada porta bateu na parede e voltava violentamente.
Ele segurou-a com a mão, recuperou o equip brio e entrou de vez na
sala, tendo estampada no rosto uma expressão que apavorou logo todos
aqueles que
o conheciam. “Estava inteiramente desvairado!”, dizia-me, depois,
o Comendador, ainda assombrado com a violência, a quase demência
do ato insano e brutal que Arésio cometeu. Devo, porém, ao senhor,
umas palavras de explicação que esclarecem, embora não
justifiquem, tudo o que ele fez. O filho mais velho de meu Padrinho era naquele
ano, Senhor Corregedor, um homem de trinta
o cinco anos, mais alto. do que baixo. Mas era tão “ossudo, membrudo
e fortalezado”, que sua estatura alta ficava equilibrada pela robustez,
dando a impressão de que ele era de altura só muito pouco acima
da mediana. Qualquer pessoa que punha os olhos em cima dele, via logo que
era um homem dotado de extraordinária força física, uma
força que se tornava ainda maior e mais perigosa pela ferocidade de
seu temperamento intratável, sujeito a impulsos estranhos e indomáveis,
a desequilíbrios perigosos e desconhecidos em sua natureza total. Era
moreno e carrancudo, de cabelos bastos, negros e encaracolados. Tinha a barba
negra e cerrada. Não fina, como a de Gustavo, mas dura, grossa e crespa,
sempre raspada, com exceção do bigode, preto e quase retangular,
aparado domesmo tamanho da boca e cobrindo todo o lábio superior. Suas
sobrancelhas também eram bastas e cerradas, negríssimas, e o
sobrecenho, contraído e fechado, contribuía para aumentar ainda
mais a impressão de ferocidade do rosto inteiro. Vestia naquele instante
uma roupa de casimira cinzenta, e, sob os punhos limpíssimos da camisa
branca, viam-se seus pulsos grossos, peludos e nodosos, terminando pela mão
quadrada e grande, de dorso também coberto de pêlos, larga e
grossa. Dom Eusébio Monturo, que tinha o hábito de fazer comparações
disparatadas e que não suportava Arésio, costumava dizer que
ele parecia “um cruzamento de Jumenta com carro preto”, ou então
“de um Carneiro preto, lanzudo e criminoso com uma Diaba fêmea
que tivesse trepado com
o Carneiro sob forma de Cabra”. Apesar dos exageros e da língua
solta de Dom Eusébio Monturo, um Mestre em -Astrologia como eu saberia
logo que, ao dizer isso, ele estava mais perto da verdade do que os outros
talvez pensassem. De fato, Arésio, nascido a 22 de Março de
1900, tinha recebido, ao nascer, os influxos malfazejos do Planeta Marte,
e pertencia, exatamente, ao signo do Carneiro, o que talvez explicasse a expressão
de “cruzamento de Carneiro com Diaba fêmea” que Dom Eusébio
usava em relação a ele. Como Vossa Excelência deve saber,
Marte, Planeta ubicado no quinto Céu, é astro ardente, seco,
do fogo, noturno e de ca- ‘ ráter masculino. Os nascidos sob seu influxo
têm estatura média
o alta, cabelos negros ou vermelhos, às vezes lisos, às vezes
encaracolados, “mas sempre curtos, duros e com aparência de escova”,
segundo nos ensina o Lunário Perpétuo.-O corpo dos “marcianos”
acusa brutalidade: a cabeça é forte, o tronco é quadrado
e peludo, os olhos são penetrantes e de expressão fixa, a voz
é forte e metálica. São sempre corajosos, mas rudes e
agressivos, com tendência à irascibilidade, ao ódio e
à crueldade. Impõem seu comando
o são impelidos, pelo sangue de seu Planeta, a satisfazer as exigências
de seus sentidos violentos e implacáveis, isto de modo brutal e em
tudo – no jogo, nos prazeres do amor, nas bebidas e, eventualmente, nas orgias
a que se entregam. A comida preferida deles é a carne sangrenta e meio
crua, principalmente a carne de caça, assim como todos os demais pratos
preparados com condimentos fortes. Nos casos benéficos, saem do contingente
“marciano” da Humanidade os grandes Guerreiros, os Soldados e, aqui
no Sertão, os grandes Cangaceiros. Nos casos em que o influxo de Marte
pega uma alma pequena e uma compleição mesquinha surgida de
outras circunstâncias, nascem os ferreiros e os açougueiros,
que vão satisfazer, no exercício destas profissões, o
gosto marciano pelo sangue, pelos metais e pelos instrumentos cortantes. Por
outro lado, Senhor Corregedor, no caso de Arésio, o influxo de Marte
se agravava, porque o signo em que ele é mais poderoso é
exatamente o do Carneiro, cujo elemento é o Fogo, cuja pedra é
o Rubi – pedra vermelha e cálida – cujos metais são o Ferro,
o ímã, o Azougue e o Aço, e cuja cor é o Vermelho-Sangue.
Assim, quem combina o Signo do Carneiro com alguma conjunção
maligna de Planetas hostis, tem disposições incontroláveis
para a violência, o egoísmo, os perigos, a sensualidade e a lascívia,
para as rixas violentas e para as orgias, podendo praticar os maiores excessos,
e chegar até aos crimes de ‘sangue. E que o Signo do Carneiro impressiona
o fel, o sangue, os rins e as partes genitais, sendo sua influência
sobretudo violenta dentro da primeira Década
o “crítica” quando se dá “em trono e exaltação
de Marte”, o que sucede, exatamente, a 22 de Março, dia do nascimento
astroso e fatídico de meu primo Dom Arésio Garcia-Barretto,
o Príncipe Cáprico desta minha fatídica e astrosa Epopéia!
Foi somente, pois, por não serem Mestres em Astrologia que as pessoas
da sala ficaram espantadas com a brutalidade do gesto, para eles inesperado
o absurdo, de Arésio. Todos os que estavam na reunião eram favoráveis
– ou pelo menos manifestavam uma indiferença benevolente – a ele, no
seu conflito com o Pai e com o irmão mais moço por causa da
herança da “Onça Malhada”. Por outro lado,
o Bispo Dom Ezequiel, ancião de caráter tranqüilo e bondoso,
entrado suavemente numa velhice compreensiva e cheia de mansidão, era
estimado no Sertão inteiro, como um modelo de virtude. Pois foi exatamente
para o Bispo que Arésio marchou depois de entrar na sala, com os olhos
meio alheados, como se não visse mais ninguém. Os olhares de
todos, esses estavam fixados nele e somente nele, como não poderia
deixar de ser. Personagem visadíssimo, profundamente afetado pelos
acontecimentos da tarde e pela chegada de Sinésio, aparecia ele agora
em público daquela maneira violenta depois de se manter desaparecido
desde a véspera, e irrompia inesperadamente na reunião para
a qual não tinha sido convidado, primeiro porque ninguém sabia
onde ele se encontrava, depois porque todos o temiam. Encaminhando-se para
Dom Ezequiel, Arésio olhava-o fixamente nos olhos, e, segundo todos
disseram depois, mantinha uma posição estranha enquanto andava,
com o braço esquerdo erguido quase à altura do ombro e estirado
para a frente, e com mão aberta, espalmada, em direção
ao Bispo. Quando ele chegou junto de Dom Ezequiel, este estendeu-lhe a mão,
como para dar a beijar o anel episcopal, isto apesar de que a mão com
que Arésio parecia lhe solicitar isso fosse a esquerda, e não
a direita, como manda o protocolo. E foi aí que tudo se precipitou.
Quando Dom Ezequiel estendeu benevolamente a mão direita para ele,
Arésio segurou-a com a mão esquerda e deu um puxão no
Bispo que, perdendo o equilíbrio, foi como que caindo em sua direção.
Mas Arésio, em vez de ampará-lo, soltou-lhe a mão, e,
com o punho direito cerrado, deu-lhe um violento soco no rosto. Dom Ezequiel
rolou no chão, com o rosto banhado em sangue, saído do nariz
e de um corte que se abrira embaixo de seu olho. Todos ficaram imóveis,
boquiabertos, paralisados pela vio1lacia e pelo inesperado do gesto insensato.
Os Padres, primeiros
psair do estupor, correram para o Bispo e começaram a lhe restar o
primeiro socorro. Quanto a Arésio, olhou um momento & Cena, como
se não tivesse nada a ver com aquilo. Depois deu nieia.volta, e, sem
trocar palavra com ninguém, sem dar nenhuma explicação
sobre o que fizera, tomou de novo o caminho da porta
o saiu da sala, perdendo-se na meia escuridão que já tinha comea
cobrir a Vila naquele momento.
FOLHETO LXXI
0 Caso do Jaguar Sarnento
Quando acabei de contar essa parte da história, o Corregedor ficou
um momento pensativo, mas logo, sacudindo a cabeça, voltou ao ataque:
Muito bem, Dom Pedro Dinis Quaderna! – disse ele. – O senhor me contou vários
acontecimentos sucedidos naquele dia. Deixou, porém, de se referir
ao personagem mais importante de todos!
– Quem é, Senhor Corregedor?
– O senhor, Dom Pedro Dinis! Chegou, portanto, a sua hora, e eu quero saber,
antes de mais nada, se é verdade mesmo, como diz a carta de denúncia,
que o senhor estava no lajedo perto do qual dispararam o tiro!
– E verdade, sim, Senhor Corregedor! Enquanto, aqui na rua, se desenrolavam
esses acontecimentos espantosos, eu, o Profeta
o Astrólogo-Épico que os previra e que os tinha esperado, confiantemente,
durante os cinco anos que tinham se passado entre a morte de meu Padrinho
e a ressurreição de Sinésio, estava ausente, alheio a
tudo! Não é estranho? Estava fora, e impossibilitado, portanto,
de participar de coisas que seriam decisivas para a vida de todos nós
e, sobretudo, para a Epopéia que eu sonhava escrever há tanto
tempo! O senhor perguntará: “Por que você estava fora?”
A resposta é simples: é que, naquele dia, eu tinha resolvido
almoçar no meu Lajedo sagrado!
– De fato, não deixa de ser estranho! Almoçar num Lajedo, quando
o senhor tem tantos lugares abrigados para fazer suas refeições!
Qual foi o motivo dessa decisão sua?
– De vez em quando, sinto vontade disso, Senhor Corregedor! É sempre
como numa espécie de pressentimento; me vem aquela vontade e eu digo
para mim mesmo: “Hoje, preciso almoçar no meu Lajedo!” Naquele
dia, aconteceu isso, não sei por quê! Comecei corn aquela vontade,
aquela vontade, e de repente senti que não devia ficar na Vila. De
manhã, saí com Samuel e Clemente, para visitar uma Capela e
a Gruta do Olho-d’Agua do Pedro. Nós nos perdemos na Catinga, na volta.
Mas depois, ajudados pelo velho João Melchíades Ferreira, achamos
de novo o caminho. Clemente e Samuel vieram para a Vila, e eu, que já
saíra com meus alforjes preparados, fui almoçar no Lajedo, mesmo
sabendo que, ao fazer isso, iria deixar de tomar meu lugar de Chefe na Cavalhada
que eu mesmo tinha preparado com tanto cuidado para as duas horas da tarde.
– O senhor costuma faltar às Cavalhadas que organiza?
– Não senhor! Acho que aquela foi a primeira vez, e acho também
que será a última! Digo isso porque chefiar Cavalhadas é
uma das maiores glórias da minha vida! É um dos momentos em
que me sinto como Carlos Magno chefiando seus Doze Pares de França;
ou melhor, para ser mais patriota, como Dom Pedro I chefiando os Dragões
da Independência, conforme aparece esse Usurpador da Coroa dos Quadernas
no monumental quadro O Grito do I piranga, pintado pelo genial Pintor paraibano
Pedro Américo de Figueiredo e Mello, Barão do Avaí, Cavaleiro
da Ordem da Rosa e Grande do Império do Brasil!
– Quer dizer: o senhor confessa que nunca tinha faltado a Cavalhada nenhuma!
Confessa que foi para o lugar de onde atiraram no cabra! E o único
motivo que dá como explicação de tudo isso é uma
espécie de “pressentimento” que lhe deu?
Vi que estava me desgraçando cada vez mais, de maneira que o único
caminho que me restava era o de abrir mais meu jogo a fim de mostrar boa-fé.
Resolvi ir adiante em minhas confissões e avancei:
– Senhor Corregedor, conhecendo, como conheço, os Enigmas e os fins
ocultos de tudo o que se passou nessa história; conhecendo os fios
secretos que ligavam todos os acontecimentos; conhecendo, ainda, o papel que
tinha e tenho a desempenhar na “Guerra do Reino” e na “Demanda
Novelosa do Reino do Sertão”, só posso atribuir, mesmo,
minha ausência da Vila naquele instante a uma disposição
oculta da Providência Divina! Isto é tanto mais evidente porque,
como-já disse, aquela era a primeira vez que eu me atrevia a faltar
á uma Cavalhada! Eu tivera, aliás, o cuidado de prevenir meus
irmãos, que faziam o papel de Rei Mouro do
Cordão Encarnado e de Rei Cristão do Cordão Azul, para
que, em seus movimentos a cavalo, não fizessem nenhuma mesura que pudesse
ser interpretada como preito de vassalagem ao Prefeito e ao Presidente do
Conselho! Conheço muito bem a Humanidade,
o sabia que, ao primeiro sinal de fraqueza da família Quaderna, o prefeito,
o Presidente do Conselho ou qualquer outro “RicoHomem” da Vila começaria
logo a conspirar, iniciando seu trabalho de sapa para usurpar o Trono do Cariri,
trono que, desde a morte de meu Padrinho, eu venho acumulando com os outros
de Gênio da Raça Brasileira, Rei do Quinto Império do
Sertão, Imperador do Divino e do Sete-Estrelo do Escorpião e
com a dignidade de Profeta e Sumo-Pontífice da Igreja Católico-Sertaneja.
É por isso que, como já disse, o pessoal, na hora de saudação,
não se voltou para o Palanque. Tranqüilizado eu, portanto, por
essas providências que tinha determinado, achei-me no direito de atender
a meu pressentimento, indo almoçar no Lajedo que se encontra no lado
direito de quem segue pela Estrada de Estaca Zero, Soledade e Campina Grande
e que segue, daí, para o Mar, “o Mar, o Mar livre”, como
dizia Ruy Barbosa! Ora, Senhor Corregedor, se eu saía da rua em ocasião
tão importante, foi, primeiro, por aquele desígnio secreto da
Providência, e, depois, porque a Véspera de Pentecostes era e
é um dia importantíssimo na Liturgia do meu Catolicismo sertanejo,
uma data decisiva nos rituais astrológicos, zodiacais, mouro-cruzados
e negro-vermelhos que o
integram!
– Bem, esse tal Catolicismo Sertanejo me interessa muito, porque, a meu ver,
sua Igreja está estreitamente ligada, por seus rituais, com a morte
do Rei Degolado, seu Padrinho, e com a ressurreição do tal Príncipe
Alumioso da Bandeira do Sertão! Como foi que o senhor chegou à
formulação dessa nova seita religiosa?
– Senhor Corregedor, a criação da minha Igreja Sertaneja foi
muito parecida com a da minha Poesia-Epopéica! Foi uma questão,
ao mesmo tempo, de fé, de sangue, de ciência, de estro e de planeta!
Tudo surgiu a partir da minha herança do sangue da Pedra do Reino,
de uma crise de Fé, de uma visagem que tive
o do cruzamento dos Astros zodiacais com as vicissitudes da minha vida-errante,
extraviada e perdida por tudo quanto foi caminho
o descaminho deste nosso Sertão velho da Paraíba do Norte! Não
sei se já contei a Vossa Excelência que fui destinado, por meu
Pai, a ser o Padre da família Quaderna!
– Já, mas não entrou em maiores detalhes! – disse o Corregedor.
– Cheguei a fazer vários anos do Seminário, Senhor Corregedor!
Mas, depois, descobri que não tinha vocação e saí!
– Consta, por aqui, na rua, que o senhor foi expulso do Seminário!
– Sim, e foi exatamente isso que me obrigou a descobrir que não tinha
vocação e a sair do Seminário! Mas o que eu queria dizer
é que, enquanto fui Seminarista, eu viajava daqui até Campina,
a cavalo, para lá, tomar o trem da Paraíba! Me diga uma coisa,
Senhor Corregedor: o senhor já leu o folheto chamado
O Estudante Que se Vendeu ao Diabo?
– Não!
– Lino Pedra-Verde versou, um dia, essa história, fazendo
o “romance” que eu imprimi e passei a vender aqui, na feira! É
uma beleza, só o senhor vendo! Passa-se tudo na Espanha:
o Estudante vai para a Universidade de Salamanca, e, na estrada,
o Diabo dá a ele um Espelho, em troca da sua alma! Desde que li essa
história, eu fiquei sabendo que os espelhos eram objetos ligados ao
Diabo, às transações diabólicas e à posse
diabólica das coisas boas da vida, isto é, o Poder, o dinheiro,
as mulheres, as Coroas, os cavalos encantados, os tesouros, etc. Desde aí,
também, nunca mais deixei de carregar um espelho comigo, principalmente
quando ando nas estradas do Sertão!
O Corregedor deu outro bote para meu lado:
– O quê? – falou ele, arregalando os olhos. – Quer dizer que o senhor
carrega sempre um espelho no bolso?
– Carrego, sim senhor! – disse eu, espantado.
– O senhor não disse que os sinais de sol que atraíram o cabra
para a morte foram feitos com um espelho?
– Disse, sim senhor! – falei de novo, boquiaberto, porque era outra coincidência
fatal que nunca tinha me ocorrido.
– Bem, então o senhor não há de reparar que isso me impressione!
Foi de perto do Lajedo que saíram os sinais de sol feitos com um espelho,
e o senhor estava no Lajedo, com um espelho no bolso… Anote, Dona Margarida!
Muito bem! Agora, Dom Pedro Dinis, pode continuar a narração
da sua visagem!
Sentindo a sensação de aperto no estômago se agravar,
continuei:
– Senhor Corregedor, como eu vinha dizendo, posso garantir que o venerável
e vetusto Seminário da Paraíba, instalado no velho Convento
franciscano do século XVIII e situado perto da Casa da Pólvora
onde Sinésio foi achado morto, foi minha Universidade, a Universidade
de Salamanca da minha vida! Naquele tempo em que eu o freqüentava, lá
um dia eu ia viajando pela estrada quando, cansado, parei junto de um serrote
de pedras, para repousar e almoçar. O serrote ficava junto de uma encruzilhada.
Era já perto do meio-dia e o sol estava de lascar! Fiquei debaixo de
um pé de Imburana que havia ali, sombreando as
pedras, e resolvi esfriar um pouco o corpo, antes de almoçar. Momentos
antes, quando estava tirando a sela do meu cavalo, eu tinha ouvido um tinido
de metal dentro do bolso da carona. Meti a mão ali, e vi, então,
que o pacote em que eu conduzia meus materiais de fazer a barba tinha-se aberto.
Tirei para fora esses materiais, sentei-me perto do tronco da Imburana, encostei
o espelho nele e, enquanto esfriava o corpo, peguei a navalha e comecei a
afiá-la no afiador de couro que é o meu. Aí, Senhor Corregedor,
por azar e fatalidade, juntaram-se quatro coisas perigosas e invocativas:
encruzilhada de estrada sertaneja, metal de navalha, espelho de aço
e cristal e, finalmente, couro com esmeril. Eu, na minha cegueira incauta,
continuava passando e repassando a navalha de aço no afiador. Num certo
momento, meus olhos pousaram, por acaso, no espelho que permanecia ali, em
minha frente, em pé, encostado ao tronco. No mesmo instante, dei um
salto e um grito de terror: refletido no espelho, estava o vulto de uma Onça,
na estrada! Virando-me, aterrorizado, para o lugar em que, pela posição
da imagem refletida, a Fera deveria estar, não vi nada! Onde estaria
a Onça? Será que eu teria me enganado? Olhei de novo, rapidamente,
para o espelho: lá estava, de novo, a Onça! Voltei-me para trás,
pela segunda vez: nada! Ah, Senhor Corregedor, foi um dos momentos mais graves
da minha vida! Só depois, já no curso da minha viagem com Sinésio,
foi que pude avaliar, em toda extensão, o poder e a força diabólica
do Espelho, o que depois contarei, quando narrar a Vossa Excelência
a nossa incursão infernal pelo Reino Perigoso do Ladrido. Naquele dia,
porém, vi logo que a Onça que eu avistava era uma típica
“visagem de Espelho”, parecida com aquela que o Diabo tinha proporcionado
ao Estudante de Salamanca nas estradas poeirentas da Castela espanhola! Fiz
das tripas coração, tomei coragem, resolvi desafiar o Destino
e examinar a visagem. Iria me arrepender amargamente desta resolução!
Olhei de novo a Onça, agora com cuidado. O que mais me aterrorizava
é que ela não tinha o contorno preciso das Onças comuns.
Não era, de modo nenhum, uma Onça que vagasse pela estrada ou
pelas veredas, entre as pedras, as Catingas e os espinhos do Sertão!
O que acontecia era o seguinte: ou a Onça crescera
o se tornara imprecisa no intervalo que decorreu entre a minha primeira olhada
e a outra, ou então ela já era imprecisa, mesmo,
o eu não me apercebera no primeiro momento. O fato, porém, é
que, agora, eu via que a Onça era, mesmo, era formada pelas pedras,
o mato, as estradas, o Sol, de modo que, refletida no Espelho diabólico,
eu estava envolvido por ela, colocado no próprio campo de pêlos
de seu dorso. Me* diga uma coisa, Senhor Corregedor: quando o senhor era pequeno,
alguém lhe contou a história do Bicho Homem e do Bicho Mundo?
– Não!
– Tia Filipa me contou, várias vezes! Dizem que, no começo,
quando Deus tinha acabado de faze-lo, o Bicho Homem vinha por uma estrada,
quando encontrou o Bicho Mundo e atreveu-se a enfrentá-lo. No meio
do combate foi que ele se apercebeu de que, de fato, o Bicho era fêmea,
o que tornava a luta perigosa e desigual para o Homem. Mas era tarde! Com
os poderes de encantação fêmea que tinha, a Bicha envolveu
o Homem, encantou-o, diminuiu ele de tamanho até transformá-lo
num homem e então, quando ele estava do tamanho de um piolho em relação
a ela, soltou-o entre seus pêlos, para ele viver ali agarrado, como
um carrapato. É por isso que todos nós, agora, vivemos assim,
agarrados, chupando o sangue do mundo e errando por entre seus pêlos.
Contei essa história a meu Padrinho de crisma, o Cantador João
Melchíades, e ele escreveu sobre isso uns versos que diziam assim:
“Foi no começo da Tinha,
da Peste, ao combate Louco: Deus foi, distraiu-se um pouco, perdeu o Fio da
Linha! O Homem, divino, vinha na Estrada do Sol do Mundo. Na luz do Sol moribundo
bateu-se com a Bicha Estranha,
o a feiticeira Castanha
o encantou, no Profundo!
Agora, encantado a fundo, erra entre os pêlos da Sonsa
que é Fêmea, que é Parda, é Onça, que ele
não vê porque é baixo
o que, julgando que é Macho, ungiu com o nome de Mundo!”
– A propósito de quê, essa versalhada? – indagou o Corregedor.
– Ora, Senhor Corregedor, é claro! É que, ali na estrada, era
isso que eu estava vendo pela primeira vez, graças ao aço e
ao azougue diabólico do Espelho! Só agora eu via que, de fato,
eu não passava de um piolho, de um carrapato chupa-sangue e pardo,
errante entre os pêlos da Onça! O pior, porém, é
que não se tratava nem de uma Onça digna, uma Onça Malhada
como aquela que o Profeta Nazário e Pedro Cego tinha visto! Era uma
Onça enorme e mal definida, leprosa, desdentada, sarnenta e escarninha,
uma Entidade malfazeja que, ao mesmo tempo que me envolvia e tragava, era
tragada, também, aos poucos, por um Buraco perigoso,
oco e vazio, cheio de cinza. Enquanto era devorada pelo Buraco, cia erguia
o rosto cego e maldoso contra a face do Tempo, que a crestava cada vez mais,
encarquilhando e desfazendo em Pó, em cinza e em sarna, o que ainda
lhe restava de sua vida demente
o sem grandeza! Por entre os pêlos e chagas sarnentas dessa Onçaparda,
eu não via agora, mas sabia, com certeza, que errava a Raça
piolhosa dos homens, raça também sarnenta e sem grandeza, coçando-se
idiotamente como um bando de macacos diante da Ventania crestadora, enquanto
espera a Morte à qual está, de véspera, condenada!
Eu já tinha terminado a narração da minha visagem. Mas
o Corregedor, parece que esperava alguma coisa de sensacional, para
o fim, porque perguntou:
– E então?
– Foi só isso! – confessei.
– Só?
– Bem, se eu quisesse impressionar o senhor, poderia inventar um final mais
grandioso, mas não estou aqui para lhe mentir, de modo que devo confessar
que não sucedeu. mais nada! Nem sequer desmaiei, como Pedro Cego, quando
viu a visagem dele! Acho mesmo que prosaicamente cochilei um pouco, pois tinha
me espichado no chão para meditar sobre o que vira, o sono veio e adormeci.
Mas, de qualquer forma, foi um acontecimento decisivo para mim, porque, a
partir daí, nunca mais a imagem da OnçaParda se desligou, para
mim, da imagem do Mundo. A cara da Onça, mesmo, eu nunca mais vi, como
naquele dia: mas, de vez em quando, uma paisagem sertaneja, tornada mais peluda,
parda
o espinhosa por ser coberta de Facheiros, me lembra o couro sarnento dela!
Eu já lhe disse que Samuel e Clemente me consideram absolutamente incapaz
de ser o Gênio da Raça Brasileira?
– Mais ou menos!
– Mas acho que não lhe disse o motivo principal da opinião deles!
– Acho que não!
– Dizem eles que sou incapaz de escrever qualquer coisa que se áproveite
porque, em contato com os folhetos e romances de safadeza eu contraí
três defeitos gravíssimos, o “desvio heróico”,
o “desvio obsceno” e a “galhofa demoníaca”. Eu
fiquei realmente impressionado com isso, Senhor Corregedor, porque, por um
motivo ou por outro, de fato, foi nisso que me tornei, num safado galopeiro
e galhofeiro. Eu ria de tudo, em tudo o Diabo me mostrava
o me mostra seu Espelho danado de mil faces. Pensam que eu rio por alegria,
ou então, só por escárnio e deboche. Mas que alegria
posso ter, sem ser Imperador do Brasil e sabendo que meu riso provém
de uma tentação? Meu riso também não era de
desespero: é apenas que eu vejo a Danada em todos os seus aspectos!
Foi, felizmente, nesse tempo, que me caiu nas mãos um livro do genial
escritor paraibano Humberto Nóbrega a respeito de Augusto dos Anjos.
Li, nesse livro, que os Poetas que têm “a preocupação
de cantar a Dor universal” têm uma espécie de face bifronte:
por um lado, são “facetos, êmulos de Gregório de
Mattos na arte de chasquear”; por outro, vêem “na alegria
uma doença e na tristeza a sua única saúde”. Um
Poeta desse tipo é, segundo Humberto Nóbrega, ao mesmo tempo
“patético, trágico, burlesco e espirituoso”; é
um “fescenino e irreverente” e também um “hipocondríaco
que padece de melancolia”.
– Que é que isso tem a ver com a Onça que o senhor viu? – perguntou
o Corregedor.
– É que, mesmo tendo eu tomado precauções, nunca mais
permitindo que se juntassem perto de mim aqueles quatro elementos diabólicos,
aquela visagem me jogou, de uma vez para sempre, no buraco cheio de cinza,
na descoberta de que o mundo era um Bicho sarnento e os homens os piolhos
e carrapatos chupasangue que erram por entre seus pêlos pardos, sobre
seu couro chagado, escarificado e feridento, marcado de cicatrizes e peladuras,
e queimado a fogo lento pelo Sol calcinante e pela ventania abrasadora do
Sertão. Aliás, acho que estou exagerando um pouco: não
foi propriamente no desespero que caí, foi numa espécie de vazio
cego e meio insano. Naquele dia, quando acordei do meu cochilo dormido embaixo
da Imburana, fiquei um momento me coçando, olhando em torno e procurando
sentir com as idéias aquilo que já pensara com o sangue. Sentia
que algo de decisivo me acontecera. Sabia que, por mais que eu tentasse me
distrair daí para a frente, eu mesmo estava, como a Onça, sendo
calcinado por aquela ventania do Inferno. Tudo aquilo que eu possuía
de sangue e de vida, estava, aos poucos, sendo queimado, calcinado, transformado
em cinza, em sarna e em pó. Quisesse ou não quisesse, eu tinha
nascido do sangue da Onça-Parda, da Onça cega e sarnenta do
Mundo. Assim, não admirava que meu destino e meu sangue estivessem
ligados ao sangue e ao destino dela, daquela Onça que procurava, penosamente,
indignamente, se manter de pé, com as quatro patas em cima da terra
dura e seca do mundo, exposta à ventania de fogo e cinza quente que
a crestava, atraindo-a para o centro do buraco cego de onde era soprada. Lembro-me
de que, enquanto me coçava, com um terror desanimado e sem grandeza,
o pensamento que me dominava era o de que eu só tinha, para opor à
visagem malfazeja que o espelho me mostrara traçada nas pedras e espinhos
do Sertão, aquelas quatro ou cinco idéias abstratas que tinham
me fornecido no velho Convento franciscano que servira ao Arcebispo da Paraíba,
Dom
Adauto Aurélio de Miranda Henriques, para instalar o Seminário
o Paraíba, minha pobre e – descobrira eu agora! – impotente Universidade
de Salamanca! Só uma voz eu ouvira, lá, e que tinha força
para, talvez, se contrapor ao buraco cego e vazio da Visagem, soprada pelo
vento seco e quente da Morte: era a voz daqueles Cantadores que, como os nossos,
do Deserto do Sertão, tinham cantado, no Deserto judaico, chefiados
pela voz rouca e cheia de brasas de Isaías e Ezequiel. Mas esses, Profetas
parecidos com
o nosso Nazário Moura – e a terminar com os dois últimos e mais
danados deles, João e Emanuel – exigiam, em troca da força e
do exorcismo que me dessem, que eu fosse sóbrio, casto e humilde. Ora,
o senhor já sabe que meu maior desejo, desde que nós, os Quadernas,
perdemos a terra e a Coroa, era exatamente conseguir nova oportunidade de
Trono, para, com isso, me entregar à gula, ao vinho, às mulheres
e aos combates guerreiros, tornandome um homem poderoso, desejado e temido.
Eu não queria me tornar um rico vulgar e sem imaginação,
como o Comendador Basílio Monteiro, porque, com meu sangue fidalgo,
nunca dei para Burguês. Meu sonho sempre foi o de ser um daqueles grandes
Senhores, Cangaceiros e Príncipes que apareciam nos folhetos. Era arriscado.
Mas, se eu me tornasse Gênio da Raça Brasileira, poderia alcançar
tudo isso sem matar ninguém e também sem ter a garganta cortada,
destino de todo Guerreiro que se preza. Foi aí: que li Sonho de Gigante,
um livro de J. A. Nogueira, que Samuel me emprestou. Falava-se, lá,
na possibilidade de um Brasileiro escrever um livro bifronte, tendo, por um
lado, o “arremesso patriótico e épico” e, por outro,
a “gargalhada vergalhante”; um livro que aliasse “a hilaridade
a um fundo mais ou menos visível
o amargas preocupações e escura melancolia”, com “uma
face de sonhos lunares e amor ao Absoluto, e outra solar, heróica”.
Vi, então, que, mesmo com aquelas contradições e mais
com a obsessão
o cinza que a visagem da Onça tinha instilado em meu sangue, talvez
por aí eu conseguisse instaurar, no meu sangue, a unidade,
o na Arte a mais alta nobreza do “estilo régio”. Dos folhetos,
havia dois que me impressionavam muito: eram a História de Carlos Magno
e os Doze Pares de França e O Rei Orgulhoso na Hora da Refeição.
Pela leitura deles, eu via que os Heróis parece que só faziam
três coisas, na vida: porque, quando não estavam na mesa, comendo
e bebendo vinho, estavam, ou na estrada, brigando, montados a cavalo, armados
de espadas e com bandeiras desfraldadas ao vento, ou então na cama,
montados em alguma Dama, trepando senhoras e donzelas desassistidas. Vida
era aquela, a vida dos Cangaceiros medievais como Roberto do Diabo, ou dos
Guerreiros sertanejos como Jesuíno Brilhante, homens vestidos de Armaduras
de couro, armados de espadas compradas em Damasco ou no Pajeú, bebendo
vinho de Jurema e Manacá, vencendo mil batalhas e sempre aptos a possuir
mil mulheres. Estas, mesmo quando não gostavam disso no começo,
terminavam gostando no fim: primeiro, por causa da fama deles; depois porque,
como me dizia uma recém-casada sertaneja em meu “Consultório
Sentimental e Astrológico”, “esse negócio de fuder
no começo é um pouco incomodatício, mas depois até
entrete”. Estava eu, pois, nesses impasses, quando descobri aquilo que
minha família escondia cuidadosamente de todos nós: nossa descendência
do Rei Dom João Ferreira-Quaderna, o Execrável, em cruzamento
com a Princesa Isabel, prima dele!
– Ah, e sua família escondia isso de vocês?
– Escondia, sim senhor! Aquele meu bisavó de sangue godo, o Padre Wanderley,
Pai da minha avó, Bruna Wanderley, cortara do nosso nome o Ferreira
e só deixara o Quaderna, que meu bisavô, o Execrável,
usava pouco e ficara praticamente desconhecido. Meu Pai, Dom Pedro Justino
Quaderna, sabia de tudo, porque o Pai dele, Dom Pedro Alexandre lhe contara.
Mas, depois de casado com minha Mãe, uma moça fidalga se bem
que bastarda, filha do Barão do Cariri e irmã de Dom Pedro Sebastião
GarciaBarretto, resolvera “sepultar aquelas histórias todas no
olvido e no passado”, como dizia ele, no seu estilo almanáquico,
e já prenunciando o Poeta que eu iria ser, por herdar a “ciência”
dele – bebida no Lunário Perpétuo e no Livro de São Cipriano.
Além disso, meu Pai era lido e relido no Dicionário Corográ
f ico do Estado da Paraíba, de Coriolano de Medeiros, e nas Datas e
Notas para a História da Paraíba, do genial Irineu Pinto. Daí
em diante, meu Pai se tornou, além de redator do Almanaque do Cariri,
um pouco médico, com as receitas do Lunário, um pouco Poeta,
um pouco orador, e um pouco historiador e Genealogista. O Professor Clemente
e o Doutor Samuel, quando morávamos na “Casa-Forte da Torre da
Onça Malhada”, costumavam ridicularizar meu Pai, a quem chamavam
“o Fidalgote Raizeiro”. Raizeiro, por causa das receitas do Lunário
e dos- chás de ervas, e Fidalgote porque meu
Pai, não sei como, descobrira que nós, Quadernas, éramos
descendentes do Rei Dom Dinis, o Lavrador. Esse foi, aliás, o motivo
de meu nome: lendo, não sei onde, que um bisneto, por linha bastarda,
de El-Rei Dom João II, de Portugal, tinha recebido o nome de Dom Pedro
Dinis de Lencastre, resolveu “seguir também essa tradição
da família” e me botar o nome de Dom Pedro Dinis Quaderna. O que
foi, de fato, para mim, um traçado régio dos Astros: primeiro,
por causa do nome Pedro – pedra e Dom Pedro I – e depois porque Dom Dinis
era, como eu, ao mesmo tempo Rei e Cantador, o que indicava coisas muito sérias
na minha pretensão de ser Rei e Gênio da Raça, isto é,
Poeta, Deci
frador, e Cantador nacional do Brasil. Apesar, porém, de todas as precauções
de meu Pai, meu Padrinho de crisma, João Melchíades Ferreira,
o Cantador da Borborema, me revelou tudo sobre a Pedra do Reino – a história
das degolas, o Vinho encantado, as noivas que meu bisavô dispensava
na noite de núpcias e antes dos maridos, etc. Vi que meu bisavô
fora Rei, mas fora, também, Profeta de um Catolicismo que Pereira da
Costa chamava de “particular”, sertanejo. Vi também que aquele
era o Catolicismo que me convinha, uma religião que, a um só
tempo, me permitia ser Rei e Santo Profeta, permitindo-me ter tantas mulheres
quantas eu pudesse, comer as carnes que quisesse em qualquer dia da semana
e beber tanto vinho quanto me desse na veneta, incluindo-se entre estes o
Vinho sagrado da Pedra do Reino, que nos mostrava o Tesouro antes mesmo que
ele fosse desencantado e descoberto. Era, em suma, uma religião que
me salvava a alma e, ao mesmo tempo, permitia que eu mantivesse meu bom comer,
meu bom beber e meu bom fuder, coisas com as quais afastava a tentação
da visagem da Onça e da Cinza. Ao mesmo tempo, eu tomava, por caminhos
de acaso, conhecimentos dos “escritos” deixados pelo Profeta e santo
Peregrino do Sertão, o Regente do Império do Belo Monte de Canudos,
Santo Antônio Conselheiro. Na Astrologia, eu já fora iniciado
por meu Pai que, como redator do Almanaque do Cariri, era Mestre nos Arcanos
do Taro e dono da Chave da Cabala. Assim que tomei conhecimentos dessas coisas,
fundi num fogo só esses elementos dispersos, e descobri imediatamente
que a nova Religião fundada por mim, o Catolicismo Sertanejo, estava
em harmonia absoluta com o programa da minha vida, influenciada, como sempre
e em tudo, por Samuel e Clemente. Como Catolicismo, era uma religião
bastante monárquica, cruzada e ibérica para satisfazer o primeiro;
e como Sertaneja, era suficientemente popular e negro-tapuia para ser considerada
com simpatia pelo segundo. Posso, então, concluir, dizendo a Vossa
Excelência que foram esses os acontecimentos que me trouxeram à
minha atual condição de Profeta da Igreja Católico-Sertaneja
e Príncipe de Sangue do Trono do Sertão do Brasil!- Entendo!
– disse o Corregedor.
– Então, já pode entender também por que a Véspera
de Pentecostes era, naquele ano de 1935, tão importante para mim, a
ponto de me tirar da Vila no momento em que ia se realizar uma Cavalhada!
Do ponto de vista litúrgico, político e guerreiro, começaria,
no dia seguinte, o tempo do Fogo pentecostal. Por outro lado, do ponto de
vista astrológico e zodiacal, naquele ano o Tempo de Pentecostes coincidia
com a força total do Signo de Gêmeos, que é o meu. Por
isso, naquela manhã, antes de sair a cavalo com Clemente e Samuel,
fui para a minha “Estalagem à Távola Re465
donda”. Os vinte e quatro Cavaleiros que iam tomar parte na Cavalhada
esperavam, lá, por mim, para receber ordens – incluindo-se entre eles,
é claro, meus irmãos que iam ser Cavaleiros e Reis, à
tarde. Entreguei a todos as roupas, os mantos, as selas, as lanças
e demais arreios e apetrechos-de-boniteza para a festa. Dei ordem para que
fosse servido a eles, na “Távola Redonda”, um almoço
que eu extorquira – e pago a peso de ouro – da Prefeitura. Dei a meus irmãos
as últimas instruções. Ensinei como deviam se portar
com as bandeiras e estandartes, diante do Palanque, para não mostrar
nem vassalagem nem subserviência diante daquelas autoridades da República.
Lamentava não poder presidir ao almoço daqueles Cavaleiros da
“Távola Redonda”, mas tinha minhas obrigações
litúrgicas noutro ponto. Comecei, por minha vez, a fazer meus preparativos
para almoçar no Lajedo, onde iria cumprir alguns rituais altamente
importantes e eficazes da Igreja Católico-Sertaneja. Para isso eu teria
de cumprir certas obrigações litúrgicas, vestindo-me
de modo especial: calça e camisa “gandola” cáquis,
alpercatas de rabicho e chapéu de couro estrelado de metal à
cabeça, com signo-de-salomão e tudo. Tinha, ainda, o manto,
é verdade. Mas este, eu o coloquei, dobrado, no bolso direito da carona
de “Pedra-Lispe”, primeiro porque ia sair acompanhado de meus dois
Mestres, e depois porque eu só tenho coragem de vesti-lo na estrada,
já longe dos olhares dos indiscretos da Vila. Maria Safira, amante
minha, tinha saído. Mas, antes de sair, ordenara a Dina-me-Dói
– a filha do Profeta Nazário, que morava conosco na “Távola
Redonda” – que me preparasse um farnel com paçoca, rapadura e
queijo de coalho. Havia, ainda, um chaguer de couro, cheio d’água bem
friinha, e um pichel, também de couro de bode, cheio, até o
gargalo de madeira, com meu famoso “Vinho Tinto da Malhada”. Tomando
tudo isso, e mais umas cajaranas que Lino Pedra-Verde tinha me mandado de
Estaca Zero, coloquei comidas e bebidas no bolso esquerdo da carona. Voltei
ao interior da “Távola Redonda”, fui ao meu quarto e, abrindo
meu cofre de segredo, peguei meu “anel de pedra amarela, de topázio”,
meu “anel de pedra verde, de esmeralda”, e meu “anel de pedra
vermelha, de rubi”, assim como meu lenço de cambraia, perfumado
a benjoim e capim-sândalo. Peguei também o manuscrito do Caminho
Místico do Peregrino do Sertão, e o Caderno de Anotações
Astrológicas e Genealógicas que tinha sido de meu Pai. Fechei
o cofre, voltei à rua, desamarrei “Pedra-Lispe” do pé-de-tambor,
e, montado, fui me juntar a meus dois Mestres, com quem saí para a
Catinga. Como já disse, perdemo-nos no mato, mas terminamos encontrando
o caminho da volta, já ao meio-dia, graças a meu Padrinho, João
Melchíades, que nos guiou até a Estrada Real. Aí, Clemente
e Samuel seguiram com ele para a rua. Assim que os três dobraram na
primeira curva da Estrada, olhei em torno, certifiquei-me de que estava realmente
só. Então, tirei do bolso da carona o Manto litúrgico.
Explico isso, porque tenho outro, o régio, feito de pedaços
costurados de couro de Onça e GatoMaracajá. Mas aquele era o
Manto profético, feito de pano vermelho, cortado por uma Cruz de ouro
e tendo quatro crescentes, também de ouro, colocados nos quatro quadriláteros
vermelhos formados pelos braços da Cruz. Tinha escolhido esse Manto,
primeiro porque o Vermelho é a cor litúrgica de Pentecostes,
e depois porque, num tempo que eu julgava próximo, por causa do “Século
do Reino”, aquela seria, aproximadamente, a forma e a cor dos nossos
Estandartes, das bandeiras de nossas tropas, para a “Guerra do Reino
do Sertão do Brasil”!
FOLHETO LXXII
0 Almoço do Profeta Ah, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos!
Vejam como é perigoso a gente se deixar possuir pelo fogo sagrado do
sonho e da Poesia! Quando eu vi, tinha deixado, já, escapar essa confissão
tremenda! O Corregedor, por outro lado, foi implacável. Como um Gavião,
frechou sobre a presa que eu lhe oferecia, e, de dedo em riste, falou para
Margarida: – Anote! Esse pormenor é importantíssimo para o inquérito!
Aterrorizado, fiquei um momento em silêncio, olhando para ele, magnetizado
por seus olhos de cobra, enquanto Margarida, impassível, anotava tudo,
ao teleco-teco da máquina de escrever. Quando ela acabou, ainda meio
atarantado, vi, porém, que o jeito era continuar no mesmo tom, como
se aquilo que eu tinha dito fosse coisa sem gravidade e perigo maior. Assim,
falei: – Além do manto de Cavaleiro, eu trouxera, também, minhas
outras insígnias imperiais e proféticas. O senhor já
ouviu falar num Rei de Portugal chamado Dom Henrique? – Dom Henrique, o Navegador?
Já! – Não senhor, não é esse não! É
outro, um velhinho, tio de Dom Sebastião. Ele era Cardeal, e, quando
Dom Sebastião morreu na Batalha de Alcácer-Quibir, o velhinho
subiu ao Trono. Ora, além dele ser Cardeal, estava velho e senil que
era uma coisa demais! Portugal precisava de um herdeiro para o Trono que,
sem isso, iria cair nas mãos de Felipe II, da Espanha, que era, também,
tio de Dom Sebastião. Aí, o velhinho se animou. Conseguiu uma
licença da Santa Sé para gerar um herdeiro para a Dinastia.
Acontece, porém, que se a Santa Sé podia dar a licença
não podia fazer o milagre que tornaria a licença eficaz. Pois
bem: o velhinho já estava tão senil e caduco que meteram várias
idéias na cabeça dele. Uma dessas, foi a de mamar nos peitos
de uma Ama jovem para ver se, assim, recuperaria a virilidade, gerando um
filho para o Trono. Conto isso somente para ilustração: porque,
a mim, o que interessa em Dom Henrique é que eu sou, como ele, uma
espécie de Cardeal-Rei, ou melhor, de Imperador e Profeta, sendo este
o motivo das minhas insígnias. Naquele dia, como já disse, meu
rifle “Seridó” já ia amarrado no arção
da sela. A minha legendária espada “Pajeú” já
estava pendurada à minha cintura. Assim, empunhei meu Ferrão
sagrado e real, isto é, minha legendária lança “Cariri”,
a aguilhada sertaneja que me serve, ao mesmo tempo, de Cetro real, de Báculo
profético e de Lança guerreira. E como já estava com
meu chapéu de couro estrelado à cabeça, completei-o com
a parte superior de metal, formando, assim, a legendária Coroa de couro
e prata do Sertão. Agora, eu, Dom Pedro Dinis Quaderna, o Decifrador,
podia me considerar legitimamente e liturgicamente vestido com as roupagens
e insígnias indicadoras da minha qualidade de soberano, profeta e grão-mestre
da “Ordem do Reino”. Como o senhor vê, o meu é um posto
que nada deve ao do meu antepassado Dom Dinis, o Lavrador, aquele outro Rei,
de Portugal, que, sendo Poeta e Cantador como eu, tinha sido também,
no seu tempo, grão-mestre da “Ordem de Cristo”. Então,
assim como lhe digo, de Coroa de couro e prata à cabeça, de
manto vermelho às costas e empunhando a Lança com a mão
direita, sustentei as rédeas com a esquerda e, pinicando “PedraLispe”
no cachorro-da-espora, esquipei cerca de quilômetro e meio pela estrada,
em direção à Vila, depois de dar tempo suficiente para
que João Melchíades, Clemente e Samuel se adiantassem a mim.
Cheguei, então, ao lugar que procurava. Apeei-me, puxei “Pedra-Lispe”
para fora da estrada, amarrei-o pelo cabresto num pé de marmeleiro,
e, a pé, comecei a subir o terreno ladeiroso, espinhento e empinado
que leva a meu Lajedo. O cheiro do mato, ali, era, agora, um cheiro de folhas
de marmeleiro machucadas, cheiro que se misturava a outro, mais longínquo,
de madeiras resinosas mal queimadas. Não muito longe, alguém
devia estar queimando alguma coivara e era o cheiro dela que se misturava
ao das folhas de marmeleiro pisadas e acumuladas na sombra. Desde que eu era
menino, Senhor Corregedor, que aquele lugar era sagrado para mim. Uma vez,
errando por ali ao acaso e à aventura, eu encontrara um ninho de Juriti,
pousado numa forquilha de marmeleiro. Havia, nele, dois ovos pequenos, lindos,
brancos, puros,reluzindo sobre a penugem fofa e ainda quente, do calor da
fêmea que voara, espantada por meus passos. Naquele Sábado de
1935, como para me advertir dos acontecimentos que iriam suceder, houve também
uma aparição-de-pássaro. Não foi uma Juriti: foi
uma Codorniz que levantou vôo de repente, quase de cima dos meus pés,
assustando-me e encantando-me. Acho que o senhor, homem da Capital, nunca
passou por isso, e portanto não pode saber como é! A gente vai
andando no mato, e, de repente, um Tejo enterra os pés de bem perto,
fazendo um estrupício danado! O coração da gente fica
batendo com o susto e a excitação, principalmente quando se
traz, por acaso, a espingarda. Mas, o melhor de tudo, é ouvir, logo
depois que o bicho correu ou voou e tudo está calmo de novo, o silêncio
e os barulhos normais do mato. Pois bem: naquele dia, a Providência
e os astros enviaram a Codorniz para me avisar, e eu, homem cego e pecador,
não entendi logo a advertência. Pelo contrário: como se
aquele fosse um dia normal de Lajedo, comecei a subir o serrote que leva à
minha pedra-de-ara, picando-me nos espinhos dos cactos e queimando-me nos
acúleos cáusticos das Favelas e das folhas de Urtiga. Quando
cheguei ao pé do Lajedo, já tinha levado uma furada de espinho
de Mandacaru um pouco acima do joelho, e uma queimadura de Urtiga na mão.
Isso, porém, não poderia ser considerado aviso especial da Providência,
pois estava dentro do cabedal de acontecimentos normais daquela excursão.
Mas o que veio logo depois, isso foi aviso, e aviso claro. A subida do Lajedo
é facilitada por alguns blocos que tinham se destacado de cima, lascados
pelo calor ou pelos raios, assim como por saliências, furnas e outras
lascas menores, o que formava uma espécie de escada irregular e complicada,
até o topo da pedra grande. Comecei a subir. Quando já estava
perto da parte de cima, numa última volta que a subida dava, senti,
de repente, uma dor terrível no pescoço, como se algum Demônio
tivesse me picado com uma agulha envenenada: um Maribondo-Caboclo,’ cuja casa
eu tinha assanhado sem ver, dera-me uma ferroada. Novamente a Providência
me dava um aviso, e eu insistia em continuar, inteiramente cego aos recados
divinos! Cheguei à parte de cima da grande e alta pedra. Ia respirando
fundo, coberto de suor e meio tonto, tanto pela dor como pelo veneno cáustico
do terrível Maribondo vermelho, de duas polegadas de tamanho. A medida,
porém, que a dor ia aliviando um pouco mais, o suor e o calor começaram
a se dissipar, ante a ventania que soprava ali, no alto, ainda fresca e pura
por estarmos no mês de junho, o mais agradável aqui do Sertão.
Fiquei então sentado uma porção de tempo, recuperando-me
ali, em cima da pedra, ao abrigo da folhagem de três árvores
grandes que cercam meu Lajedo e cujas frondes ficam situadas acima do seu
topo. São uma Braúna, um Angico e um pé de Tambor. A
dor ia desaparecendo aos poucos, pelo menos em sua primeira fase. É
verdade que, provavelmente, daí a pouco, eu começaria a sentir
frio, febre e dor de cabeça, com os gânglios do pescoço
e dos sovacos inchados. Mas como, felizmente, esses sintomas ainda não
tinham aparecido, fiquei ali um bom pedaço de tempo sem fazer nada,
a não ser devanear e sonhar, olhando a maçaranduba do Tempo
e vendo, por entre os galhos do pé de Tambor, os telhados das casas
da Vila, que podem ser avistados dali. Não todos, mas os da Rua da
Usina o os da Rua do Chafariz, os telhados castanhos, batidos de Sol.
– A Rua da Usina é a rua da qual o cabra baixou para o leito seco
do Rio Taperoá, sendo morto então, não é isso?
– É, sim senhor! Mas isso não tem grande importância!
O que interessa é que estava chegando a hora do almoço e eu
precisava cumprir meus rituais da Ordem da Pedra do Reino.
– O quê, homem? – disse o Corregedor, com uma expressão cheia
de segundas-intenções. – Os rituais da Pedra do Reino? Não
me diga que você degolou algum cachorro ou mesmo algum menino! – Não
senhor, o que fiz foi coisa muito mais importante do que isso! Ergui-me da
ponta de pedra em que estava sentado, tirei o chapéu de couro, que
coloquei a um lado. Forrei uma saliência chata do Lajedo, que me servia
de Altar, com o Lenço de cambraia. Pendurei no pescoço, por
uma corrente longa, o anel amarelo de Topázio. Coloquei no anular esquerdo
o anel de Rubi vermelho, e, no direito, o anel verde de Esmeralda. Assim preparado,
num dos lados do Altar de pedra, abri o Caminho Místico, do Santo Peregrino
do Sertão, isto é, Santo Antônio Conselheiro de Canudos.
Do outro, abri o Caderno Astrológico que meu Pai me legara, copiado
cuidadosamente pelo próprio punho dele, com tinta negra e vermelha,
herança inestimável para minha carreira de Poeta de sangue,
de ciência e de planeta, de Decifrador e Mestre dos Arcanos do Taro.
Coloquei também sobre o altar o pichel de vinho, o farnel com paçoca
e queijo de coalho, o então comecei a cerimônia. Sim, Senhor
Corregedor, a cerimônia. Porque na Igreja Católico-Sertaneja,
o almoço não é somente uma refeição, não:
é um nobre e litúrgico ritual, cuidadosamente planejado para
servir ao mesmo tempo ao prazer, ao espírito e ao sangue dos nossos
Fiéis! Modéstia à parte, não existe, no mundo,
religião mais completa do que a minha! Nela, o almoço, principalmente
quando organizado à base de paçoca com carne-de-sol o queijo
de coalho, e também a bebida de vinho e a posse das mulheres, tudo
isso é colocado a serviço da edificação da alma
dos meus adeptos e seguidores! Veja o senhor: o judaísmo e o Cristianismo
dos santos, mártires e profetas, levam ao Céu, mas são
religiões severas e incômodas como o Diabo! O Maometanismo, pelo
contrário, é uma religião deleitosa: permite que a gente
mate os inimigos e tenha muitas mulheres, que coma e beba o que quiser. Em
compensação, é danada para levar ao Inferno! A Igreja
Católico-Sertaneja é a única religião do mundo
que é bastante “judaica e cristã” para levar ao Céu
e, ao mesmo tempo, bastante “moura” para nos permitir, aqui logo,
os maiores e melhores prazeres que podemos gozar nesse mundo velho de meu
Deus! Aliás, Vossa Excelência já deve ter notado isso,
quando ouviu, há pouco, a história da Pedra do Reino que eu
li para o senhor, porque tudo aquilo que aconteceu por lá eram os rituais
executados por meus antepassados em sua extraordinária Desaventura
trágico-epopéica. A carne-de-sol, o queijo de cabra, o vinho,
as sobremesas de rapadura do Ceará ou de goiabada de Arcoverde, as
mulheres – tudo isso faz parte dos rituais religiosos com que prestamos nosso
culto à Divindade Sertaneja! – Divindade sertaneja? E existe uma, especial?
Quem é? Não é Deus, não? – Conforme, Senhor Corregedor!
Como o senhor sabe, essas coisas de religião são difíceis
e complicadas. Isso, no geral. No que se refere ao Catolicismo Sertanejo,
ele é, muito mais do que o Romano, povoado de coisas astrosas e fatídicas
que o senhor só irá entendendo melhor aos poucos! Por enquanto,
basta que eu lhe diga que a nossa Divindade Sertaneja é o mesmo Deus
judaico e católico, se bem que seja mais parecido com aquele Deus do
Deserto do que com o Deus que o Padre Renato nos apresenta na Missa. O nosso
Deus é mais parecido com aquele que queimava a boca dos Profetas com
uma brasa e que aparecia no Sertão da Judéia “vestido de
coivara”! – “Vestido de coivara”? – disse o Corregedor, intrigado.
– Eu digo desse jeito por “patriotismo sertanejo e brasileiro”!
Mas, se o senhor prefere, pode dizer de um jeito mais estrangeiro. Nesse caso,
o senhor se referirá ao Deus que aparecia no Deserto judaico “sob
a forma de uma Sarça ardente!” Além disso, o senhor precisa
saber de outras diferenças. Por exemplo: a Santíssima Trindade
católica, comum, é formada por três pessoas. A nossa Santíssima
Trindade tem cinco, e é sempre figurada através do animal heráldico
e armorial brasileiro por excelência, a Onça Malhada. É
por isso que, naquele dia, como eu vinha contando, eu me voltei, primeiro,
para a direção do Pajeú, onde estão as duas Torres
de pedra do nosso Reino. E, abrindo o Livro escrito pelo Peregrino do Sertão,
comecei a recitar, em tom de salmodia, minha primeira invocação
a Adonai, a terrível Divindade sertaneja e oncística que atende,
também, pelo nome de AureadugW – Pelo nome de quê? – perguntou
o Corregedor, novamente espantado.
– De Aureadugo, Excelência. “Adugo” é o nome tapuio
da Onça Malhada. “Aureadugo” é o nome formado pela
contração do artigo “áureo”, isto é,
“de ouro”, parte direitista e tapirista de Deus, com a preposição
“adugo”. O “Aureadugo” é, portanto, a Onça
Malhada e de Ouro do Divino. É o mesmo Adonai judaico e esses são
os nomes mais terríveis do-Deus sertanejo do Deserto da Judéia.
Por isso, naquele dia, voltando-me na direção do Pajeú,
falei assim: “Ó Adonai! Ó meu Deus judaico-tapuia e mouro-sertanejo!
Considerai que qualquer coisa é bastante para me tirar a vida! Uma
gota de salmoura que desça ao coração entupindo uma artéria,
uma veia importante que se rompa em meu peito, uma sufocação
de tosse, uma forte opressão interna, um fluxo impetuoso do meu sangue,
uma Cobra-Coral que me morda, uma febre, uma picada, um corisco de pedra-lispe
incendiada, um raio, uma pedrinha de areia nos rins, um inimigo audacioso,
uma pedra que se despenque de um serrote – tudo isso e qualquer coisa pode
me coalhar o Fel e me cortar o Nó do sangue, roubando-me a vida em
dois tempos! Por isso, Senhor, não leveis a mal que, enquanto estou
aqui no Mundo, capaz de gozar esta vida que Vós mesmo engendrastes
– juntando o barro da terra sertaneja com o Sol e o furor dos vossos lombos
– eu vos preste as homenagens deleitosas que devo à Divindade e que
as inicie bebendo uma boa lapada do meu Vinho Tinto e Sertanejo da Onça
Malhada!” Dizendo estas palavras, Senhor Corregedor, peguei o pichel
de couro de bode, tirei-lhe a tampa de madeira e, levando o gargalo à
boca, ergui a cara para o céu e tomei a primeira grande lapada de vinho.
Um doce calor e um suave formigamento começaram logo a me percorrer
o sangue, aliviando mais a dor da ferroada do maribondo e convidando-me logo
a me espichar em cima do Lajedo, para cochilar. Mas, nessas coisas de religião,
eu sou duro e fiel: havia, ainda, várias partes do ritual a cumprir
de modo que reagi e não me deitei. Eu lera estas palavras que acabo
de ler de novo para o senhor, no Livro do Peregrino do Sertão. Voltei
a página, molhando o dedo na língua, exatamente como via o Padre
Renato fazer com o Missal, nas missas dos Domingos. Aí, li de novo,
em voz alta: “Ó Adonai, ó Adugo, 6 Jaguar Sertanejo do
Terrível! Considerai que sou um pecador, eu, bocado de terra parda
e sertaneja amassada no sangue e no Sol! Por isso, em terra brevemente me
vou de novo a converter! Lembrai-vos de quantas vezes, contra minha vontade,
já me vi metido nas correrias, guerras e emboscadas do Sertão!
Posso, de novo sem querer, me ver metido noutra e ser assassinado, com meu
corpo deixado ao Sol, na estrada empoei rada, para ser comido pelos Carcarás!
E mesmo que eu tenha a sorte de morrer na cama, ainda assim nada muda: serei
sepultado na terra dura, quente e seca do Sertão, para ser pasto de
animais cegos e salamandras de fogo, de pele luzidia! Sim, porque o General
Dantas Barretto já adverte “todos nós de que, no chão
sertanejo, os raios do Sol candente batem em cheio, com intensidade destruidora,
e o solo abre as entranhas por grandes fendas em que se precipitam répteis
famintos, à procura de alimentos que não encontram à
superfície de fogo. Assim, este corpo, que agora me dá tantos
estremeços de prazer com Maria Safira, há de apodrecer. Minha
cara, minha boca, meus cabelos, hão de cair aos pedaços. Meus
olhos vão ser comidos pelos Gaviões! Meu corpo se tornará
um esqueleto, a princípio fétido e medonho; depois, embranquecidos
pelo Sol, meus ossos hão de separar-se uns dos outros! Minha cabeça
há de se apartar do tronco, como aconteceu com a de meu bisavô
na Pedra do Reino! Assim, já que vou ser comido pelos Gaviões
e Carcarás, pelos Urubus e Cachorros-do-Mato errantes no Sertão,
6 Senhor, não leveis a mal que agora, enquanto estou vivo, eu me deleite
comendo a carne dos bichos que cacei e matei, principalmente agora essa carnede-paçoca
e esses nacos de carne-de-sol assada, tirados do lombo e do patim do Bode
que sangrei ontem, em vossa homenagem!” Voltei então as costas
para meu Altar, Senhor Corregedor, e, numa trempe de pedras que já
havia lá, suja de cinza por outros rituais semelhantes que eu celebrara
noutros dias, acendi fogo. Usei, para isso, folhas secas e gravetos, que incendiei
tirando, com uma placa de aço, faíscas na pedra do meu corrimboque.
Tirando uma panela, que escondera, há muito tempo, já, numa
pequena loca da pedra, coloquei e esquentei nela minha cheirosa e gostosa
carne-de-sol com paçoca que a endemoninhada Maria Safira tinha preparado.
Essa parte de comer carne assada, é, aliás, Senhor Corregedor,
um dos rituais que eu cumpro com mais prazer e gosto no meu Catolicismo Sertanejo.
Principalmente quando, como naquele dia, a paçoca está enriquecida
com ovos cozidos, cebolas e toicinho-de-terreiro, tudo bem torrado, bem adubado
e bem salgadinho! Comecei então, como vinha dizendo, a comer ritualmente
os nacos de carne-de-sol, misturando-os com a paçoca e evitando os
entalos e engasgos da comida seca e salgada, gostosíssima, com deliciosos
e grandes goles do meu Vinho Sertanejo da — Malhada. Quando me fartei de
carne assada e paçoca, terminando outra parte do ritual, voltei ao
Altar, folheei o Livro do Peregrino do Sertão e o Almanaque Astrológico,
Zodiacal e Genealógico do Cariri, salmodiando de novo, nos seguintes
termos: “Ó Adonai! O Onça Tapuia, Negra e Malhada do Divino
do Sertão! Esta República dominada por Burgueses gordos é,
sem dúvida, um grande mal para o Império do Sertão do
Brasil! Ela pretende minar e desmoralizar o Povo da Onça Castanha e
o nosso Catolicismo Sertanejo, esta obra-prima de Deus, religião mais
perfeita e mais antiga do que o Catolicismo Romano! Este tem somente vinte
séculos, enquanto a nossa sagrada Religião da Pedra do Reino
foi fundada no Deserto sertanejo da Judéia, junto às Pedras
do Reino do Sinai e do Tabor! O Presidente da República, seus cupinchas
o os gordos ricos, entendem que podem governar, trair e vender o Império
do Brasil a seu bel-prazer! No entanto, o Brasil está predestinado
para o Monarca Castanho do Povo, aquele que foi legitimamente constituído
por Deus para fazer o bem e a grandeza do Povo Brasileiro! Quanta injustiça
nós, Católicos Sertanejos, contemplamos amargurados! O poder
do Presidente não é legítimo, a República não
é legítima! Todo poder legítimo é uma emanação
da Onipotência eterna do Deus Sertanejo através do Povo, e portanto
está sujeito à regra divina da nossa Santa Igreja da Pedra do
Reino, tanto na ordem temporal como na espiritual! Todos os Brasileiros deveriam
estar obedecendo a Quaderna, Príncipe, Pai e Profeta, porque, obedecendo
a ele, é a Deus que todos obedecem! É evidente, para todas as
pessoas de bem, que esta República permanece sob um princípio
falso e só traz o mal, para o Povo Brasileiro! Ainda, porém,
que ela trouxesse algum bem, ainda assim é má por si mesma,
porque contraria a Lei sagrada do Povo e do Sertão! Quem não
sabe que o digno Príncipe, o Senhor Dom Pedro Dinis Quaderna, deveria,
logo, ser coroado como Dom Pedro IV, o Decifrador, Rei do Sertão, Imperador
do Brasil e Sumo Pontífice da Igreja Católico-Sertaneja, sendo,
como tal, reconhecido pelas Nações? Negar estas verdades, seria
o mesmo que dizer que o Sol não é divino e não descobre
sempre um novo dia, aos raios de seu fogo de Ouro! É erro, e erro grave,
dizer que a família real dos Quadernas não deve mais governar
o Brasil, como fez há um século, na Pedra do Reino do Sertão
do Brasil! Uma coisa é o Sertão, outra é o Mundo! Se
o Mundo fosse divino e absoluto, ainda se poderia duvidar. Mas o Sertão
é que é divino, e o Sertão só jura e pune pelo
sangue real dos Quadernas! Por isso, esta República da iniqüidade
cairá por terra e, mais cedo ou mais tarde, Deus fará a devida
justiça! A República se acaba breve: é princípio
de Espinhos! O Príncipe é o verdadeiro dono do Brasil! Das ondas
do Mar, Dom Sinésio Sebastião sairá com todo o seu Exército.
Tira a todos, no fio da Espada, desse papel da República, e o sangue
há de ir até a junta grossa. Quem for Republicano, mude-se para
os Estados Unidos! O Tempo está chegando, o Século vem vindo!
É preciso que Deus e o Povo não deixem em silêncio a causa
verdadeira e a origem de todos os obstáculos que o Presidente da República
e jseus cupinchas levantam, para impedir que a Família imperial dos
Quadernas chegue de novo ao Trono do Brasil: é o medo, é o horror
de que todos ficaram possuídos, ao saber que, na Pedra do Reino, há
um século, Dom João II, o Execrável, mandou sacrificar
sete mil Cachorros que, se o Reino ‘tivesse continuado, teriam ressuscitado
como indômitos Dragões, para devorar os poderosos e confirmar
o Império, acabando a escravidão do Povo, & traição
ao Brasil, e instaurando, de uma vez para sempre, a ustiça e a monarquia
do Povo, através da Coroa de couro e prata da Onça Malhada do
Sertão!” – De onde o senhor tirou toda essa lengalenga disparatada?
perguntou o Corregedor, irritado.
g- A maior parte das minhas palavras, Senhor Corregedor, era tirada das
lições e escritos do Peregrino do Sertão. Mas o senhor
compreende que eu tinha que acrescentar e adaptar certas coisas, para tudo
ficar mais claro para o Povo Brasileiro, não é mesmo? Por exemplo:
Santo Antônio Conselheiro diz, de fato, é que ‘o digno Príncipe,
o Senhor Dom Pedro III, tem poder legitimamente constituído por Deus
para governar o Brasil”. Mas eu substituí Dom Pedro III por Dom
Pedro IV. Por outro lado, sempre que falo na Família Imperial, tenho
o cuidado de esclarecer que estou falando dos Quadernas, senão daqui
a pouco os Braganças vão logo ficar assanhados, pensando que
minha referência ë a eles. Eu estava, Senhor Corregedor, vivendo
um tempo de randes esperanças! Minha família tinha reinado sobre
o Brasil etatamente de 1835 a 1838, de modo que o Século do Reino vinha
chegando, e era tudo isso que se refletia nas minhas preces e invocações,
no Lajedo. Terminada, então, aquela que acabo de contar, entrei pela
parte da comida de queijo de coalho, que comecei a comer aos pedaços,
com pão bem manteigado, ainda sempre acompanhando os bocados com meu
Vinho Tinto da MaIhada. Depois de terminar o queijo com pão – parte
das mais litúrgicas, porque, como o senhor sabe, o pão e o vinho
tinto são coisas muito sérias – voltei ao meu Altar e, segurando
em direção ao Céu o meu anel de pedra-amarela de Topázio,
falei assim: `Ó meu Planeta! Ó Sol de Mercúrio! O Espada
mercúrio-solar que o Zodíaco me destinou! O Lâmina astral
de dois Gumes! Cobri-me com vossos raios, em exaltação, sob
o influxo do meu duplo Signo Gêmeo e Arqueiro! Garanti minhas qualidades
para as Artes e as Ciências Ocultas! Garanti-me meu Vinho, meu Reino,
meu Poder, os Bodes para os sacrifícios, a Coroa e o Cetro no Trono
da Pedra do Reino! Ó meu astroso e fatídico Planeta! Livrai-me
da atual Mulher, mercuriana e endemoninhada que se apossou do meu sangue,
e fazei aparecer diante de mim a Outra, a Venusiana de signo louro-cabrum
com que sonho há tanto tempo! Dai-me aquela a quem seu Planeta, regando
o órgão feminino da geração, coloque, no centro
mesmo do seu corpo um ponto sagrado de Reino e Sangue, firme e seguro para
mim, tanto na esfera espiritual como na esfera sexual!” Ao recitar essa
parte, não deixei de lançar um rabo de olho para Margarida,
para ver se ela tinha entendido meu apelo oculto. Mas Margarida, revelando,
mais uma vez, sua natureza cruel, indiferente a mim, não me deu a menor
importância, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos! Então,
dando um suspiro, voltei-me novamente para o Corregedor e continuei a narração:
– Terminada essa reza-forte, e acabado o queijo de coalho com pão,
fui à carona, que levara comigo para o alto da pedra, a fim de retirar,
do seu bolso, uns Umbus e Cajaranas que tinha trazido, assim como o pacote
com os tacos de rapadura que seriam minha sobremesa naquele dia. No momento
em que, enfiando a mão, tinha pegado tudo e já ia retirá-la,
senti de novo uma violentíssima picada na ponta do dedo médio
da mão direita: tinha sido picado por um Lacrau, ou melhor, por uma
Lacraia, porque era uma bicha enorme, aurivermelha, uma bicha que eu, louco
de dor e de raiva, consegui fazer sair do esconderijo e esmagar com a sola
das alpercatas, em cima do Lajedo. Lembrei-me logo de que entre os versos
de um Epigrama que eu tinha feito, aqui, contra um Poeta escalavrado, havia
uma estrofe que dizia: “O Bode fede a Vida mas a Lacraia pica e traz
a Morte. Vida é carne sentida: é Sina mal cumprida entre Clarões
de má Cegueira e Sorte”.
– O que é que o senhor quer dizer com isso? – perguntou o Corregedor.
– Sei não senhor! Eu estava comendo carne de bode e bebendo vinho,
e agora, picado por uma lacraia, era como se o Bode fosse um signo da Vida,
e a Lacraia envenenada um signo armorial da Morte! Era mais um aviso dos astros
e da Providência! O que eu sei é que, se não caí
logo morto, ali, estatelado, foi porque já estava ficando vacinado
aos poucos com a espinhada do Mandacaru, as queimadelas de Urtiga e com o
veneno do Maribondo-Caboclo. Acho também que o Vinho tinto ajudava,
espalhando o sangue, sendo esse o motivo de eu não ter morrido! Sentei-me,
esperei um bocado para que a dor aliviasse mais, e só então
comecei a comer os Umbus e as Cajaranas, cujo suco, por sorte, como todo mundo
sabe, é ótimo para veneno de Lacraia fêmea. Estava, agora,
chegando ao fim da refeição ritual, de modo que tinha de me
apressar nas preces, voltando a me dirigir de novo diretamente à Onça
Malhada do Divino. Terminando de comer as frutinhas, fui novamente ao Altar
e falei para a Divindade assim: “Quando chegar o Século do Reino,
e for anunciada a Vigília de fogo, o Senhor enviará a Coluna
de brasas sobre o acampamento e o território dos estrangeiros e dos
criminosos e poderosos aliados seus. A Onça de fogo do Sertão
destruirá seus Exércitos, despedaçando as rodas dos carros-de-combate,
e todos os traidores serão arrojados do Sertão para o fundo
do Mar. Dirão assim os Estrangeiros: `Fujamos dos Brasileiros e outros
Latinos, porque o Deus de Fogo peleja a favor deles e contra nós!’
E o Deus de Fogo dirá a Quaderna: `Estende a tua Mão desde a
Pedra do Reino até o Mar, para que as águas de Sal se voltem
contra os Estrangeiros e corroam seus Carros diabólicos, suas máquinas
de fogo e sua cavalaria de engenhos de chamas!’ E assim será! Quando
Quaderna estender sua mão, quando o Rei brandir o seu Cetro e o Profeta
seu Báculo, o Príncipe do Povo, o Moço do Cavalo Branco
será suscitado e o Mar fará soçobrar os traidores, refluindo
depois, ao amanhecer, para o lugar que ocupava. Naqueles dias, o Rei escreverá
um Canto para o ensinar ao Povo do Brasil, aos filhos do Sertão do
Mundo. E depois de suscitado o Príncipe pelo Canto, o Senhor do Fogo
ordenará a Sinésio, filho de Dom Pedro Sebastião, dizendo:
`Anima-te, sê forte e tem coragem, porque tu farás entrar os
Filhos do Sertão no Reino que lhes prometi, e eu estarei com o Povo’.
Como de fato: logo que Quaderna acabar as palavras deste Canto e desta Lei
no seu Livro, ordenará aos Sertanejos que levem a Arca de Pedra da
Aliança do Senhor do Fogo, dizendo: `Tomai este Livro e enterrai-o
ao pé das Torres de pedra da Catedral encantada do Reino, para que
ele sirva de fundamento e pedra-angular para o Império do Brasil’.
E quando os Estrangeiros fugirem, desbaratados, juntamente com os traidores
que os apóiam, encontrar-se-á o sagrado Deserto do Sertão
com as Aguas salgadas e sagradas do Mar. Assim, naquele dia, o Senhor do Fogo
livrará o Sertão, e o Povo verá seus inimigos mortos
na Praia do Mar, pelo castigo que a mão poderosa da Divindade executará
contra eles, contra sua injustiça, sua dureza e sua iniqüidade.
Então Quaderna, subindo à sua Pedra, entoará com o Povo
o sagrado Canto que o mesmo Quaderna fez, dizendo: `Cantemos ao Deus de Fogo
do Sertão, porque ele manifestou gloriosamente seu poder, precipitando
no Mar as máquinas e as empresas, os engenhos infernais dos Estrangeiros
e traidores, castigando a força e o opróbrio dos Poderosos que
nos oprimiam e exaltando o Sertão, com sua coragem, suas pedras, seus
espinhos, seus cavalos e seus Cavaleiros!'” Persignando-me então,
Senhor Corregedor, dei as costas ao Altar pela última vez, e comecei
a comer tacos e tacos de rapadura, sendo que, agora, não os acompanhava
mais com Vinho e sim com gostosos goles d’água, bebidos no gargalo
do meu chaguer de couro. Este, deixando rever um pouco de umidade, tinha esfriado
a água de dentro que, derretendo a rapadura dentro da boca, chegava
mesmo na hora e estava uma delícia, principalmente com a sede que tinham
me deixado o Sol, o sal da carne e o Vinho do pichel. E, chegando ao fim dessa
parte, foi erguendo a água sacrifical para Deus que lhe dirigi minha
última súplica, dizendo: “Meu Deus Sertanejo! Minha Onça
Malhada, meu divino jaguar de sangue, fogo e pedras preciosas! Eu não
creio em nada! Vinde inflamar meu sangue com aquele dom de fogo chamado a
fé, mesmo que vossa Fé venha a me queimar com a ventania deste
meu Reino sagrado e sangrado, o Espinhara, o `sertão’ incendiário
e abrasador! Esta ventania de fogo queima e maltrata, mas cura e cicatriza,
e é, portanto, o começo da Salvação. Õ
Onça-Vermelha do Pai! Ó Onça Negra do Diabo! Ó
Onça-Parda e Castanha do Filho! O Corça Branca! O Gavião
de Ouro do Sol do Espírito Santo! É preciso que a Onça
do Mundo – sarnenta, chagada e purulenta – se transfigure na Onça de
Ouro Malhado, assentada, não mais sobre o Buraco vazio, devorador e
cego da cinza, mas sim sobre o Lajedo firme e forte do Divino! Só assim,
meu Reino será verdade, só assim meu sangue e meus ossos serão
verdade, só assim será verdade a Furna do Mundo e a Furna sagrada
para onde todos nós caminhamos e que sagra a Onça da Vida pela
Onça da Morte, realizando sua união final com a Onça
Sagrada do Senhor de Fogo! É isso o que espero de Vós, Senhor,
agora e por todos os séculos dos séculos. Amém!”
FOLHETO LXXIII
Cavalhadas de São João na Judéia Saciado da fome que
vinha sentindo desde que tinha me perdido na Catinga, Senhor Corregedor, e
religiosamente dessedentado da sede espiritual do Deserto Sertanejo, espichei-me
então à sombra do pé de Braúna que ficava à
direita do Lajedo. Deitado meio de lado, com a cabeça sobre uma pedra
sobre a qual eu colocara o manto enrolado, à guisa de travesseiro,
comecei a olhar o Tabuleiro que ali, naquela hora, centelhava para todo lado,
sob o Sol violentíssimo do meio-dia sertanejo. Meus olhos, treinados
como os dos Gatos-Maracajás, percorriam os lugares importantes em que
naquele momento estavam, ou deviam estar ao que eu presumia, os personagens
mais importantes da terrível história de sangue, de amor e de
cavalarias bandeirosas, ligada ao nome e à pessoa de Dom Pedro Sebastião,
o Rei Degolado que fora meu tio, cunhado e Padrinho. Note Vossa Excelência
que, naquele momento, mais ou menos à uma hora da tarde, Sinésio,
o Alumioso ainda não tinha chegado ali, de modo que não deixa
de ser um sinal astroso e fatídico que, sem qualquer causa aparente,
eu estivesse me lembrando dele e do Pai. É verdade que eu pensava em
escrever um Romance-Epopéico tendo como centro de enigma o de-crime-e-sangue,
a morte de meu Padrinho. Mas por que me lembrava disso exatamente agora? Eu
evocava o velho Rei barbado e profético em Canudos, em 1897. Na Pedra
do Reino do Pajeú, para onde ele viajara uma vez comigo, na célebre
viagem ligada ao Tesouro e seu roteiro. Evocava-o na “Guerra de Doze”,
travada no Sertão da Paraíba, em 1912. Também em 1930,
quando ele, vestindo seu famoso Gibão medalhado de guerra, lutara contra
o famoso “Batalhão Provisório” do Presidente João
Pessoa. Via-o ao lado de seu filho predileto, o mais moço, Sinésio,
nas coroações de Imperador do Divino Espírito Santo.
E finalmente via-o mais uma vez deitado no chão da “Torre da Casa-Forte
da Onça Malhada”, ensangüentado e degolado, na mesma posição
em que, ainda sem fôlego pela subida da escada e pelo arrombamento da
porta, eu o tinha avistado, começando a gritar desatinado, pelo terror,
pelo choque e pelo desespero. Agora, deitado ali sobre meu Lajedo, eu estava
começando a sentir mais os efeitos do vinho, dos signos e dos rituais
astrológicos da Igreja CatólicoSertaneja. A grande vantagem
dos Zodíacos, cartas de Baralho, bandeiras, Brasões, mantos
com Cruzes e Crescentes, estrelas de Prata, Lanças e outras insígnias
régias da minha Igreja e da minha Monarquia, era que, com eles, eu
enchia o Buraco cego e vazio do Mundo e o Deserto-Assírio da minha
alma. Sentindo meu sangue pulsar com violência, não havia mais
como duvidar de mim. Meu sangue me garantia a existência do meu corpo,
e o corpo, a da minha Alma. Por sua vez, o Mundo tomava outro aspecto. Além
de, agora, divinamente embriagado, eu ter certeza de que eu mesmo existia,
olhava para o lugar onde, pouco antes, tinha visto o Pardo Mundo – Onçccedil;a
sarnenta, assentada sobre o abismo da Cinza – e não via mais esse animal
tinhoso, e sim uma Onça Malhada, bela, reluzente e gloriosa, gigantesca,
de pêlo cor de ouro e malhas pardo-avermelhadas. A Raça piolhosa
dos Homens e os Lacraus peçonhentos que eram os animais, apareciam-me,
agora, como uma Cavalgada muito bem organizada, realizada por Reis, Valetes,
Rainhas, Damas e Bispos, montados a cavalo, uma Cavalgada bela, gloriosa,
cheia de espadas e bandeiras. Sua caminhada pela tez de fera do Mundo, não
me parecia mais uma agitação covarde e mesquinha, como uma tentativa
ignominiosa e inútil de fuga realizada por inapeláveis condenados
à Morte, mas sim uma Cavalhada como as que eu fazia aqui na rua e que
eram, também, rituais do meu Catolicismo – as minhas Procissões.
Essa Cavalhada do Mundo – da qual Deus era o Chefe e Rei-Mouro-e-Cruzado (como
eu era das minhas) – não se arrastava mais, acovardada e feia, em direção
do Reino de Cinza da Morte, mas sim galopava valentemente em direção
ao Sol Divino, ao Sol do Terrível. Por isso, o Mundo não me
aparecia mais como um animal doente e leproso, como um lugar sarnento e pardo,
nascido do Acaso, mas sim como um Sertão glorioso,fundado na Pedra,
ao mesmo tempo harmonioso e ardente. Do mesmo modo, a parte deste Mundo que
me fora dada – o Sertão não era mais somente o sertão”
que tanta gente via, mas o Reino com o qual eu sonhava, cheio de cavalos e
Cavaleiros, de frutas vermelhas de Mandacaru reluzentes como estrelas, bicadas
pelas flechas aurinegras dos Concrizes e respondendo às cintilaç$es
prateadas de outras estrelas – as estrelas dos peitos das Damas, as estrelas
negro-vermelhas dos sexos femininos, as estrelas de metal ostentadas nos estandartes
das Cavalhadas ou nos chapéus de couro usados pelos Tangerinos, Vaqueiros
e CangaCeiros, os Fidalgos da minha Casa Real com suas coroas de couro de
Barão. O próprio Deus não era mais aquele sopro tênue
das outras religiões: aparecia-me como a Santíssima Trindade
Sertaneja, um Sol ardente e glorioso, formado por cinco animais num só.
Era a Onça Malhada do Divino, formada por cinco bichos: a Onça-Vermelha,
a Onça Negra, a Onça-Parda, a Corça Branca e o Gavião
de Ouro, ou seja, o Pai, o Diabo, o Filho, a Compadecida e o Espírito
Santo.
– Dom Pedro Dinis Quaderna, já notei, duas vezes, que, na sua religião,
o Diabo faz parte da Santíssima Trindade e o Espírito Santo
é sempre representado por um Gavião. Por que é isso?
– perguntou o Corregedor.
– Bem, Excelência, tudo isso aparece aí, primeiro, porque é
verdade, depois por causa da influência de Samuel, de Clemente e, de
certa forma, do Padre Daniel. O Diabo é um revoltado do Partido Negro-Vermelho,
e portanto precisa ser reabilitado e integrado na Divindade. Depois, no meu
Catolicismo, os bichos que servem de insígnia ao Divino são
todos rigorosamente brasileiros e sertanejos. Por exemplo: na minha linguagem,
nunca entram leões ou águias, bichos estrangeiros, mas sim Onças
e Gaviões. Ora, além dessa fidelidade brasileira e sertaneja,
sempre achei essa história de representar o Espírito Santo por
uma pombinha, meio afrescalhada. Fique logo claro que o Espírito Santo
não tem nada com isso: a culpa é de quem inventou! Essa história
da “pombinha” não tem nada de Profecia-Sertaneja, é
frescura desses Profetas aveadados do estrangeiro! É por isso que,
no meu Catolicismo Sertanejo, o Espírito Santo é um Gavião,
bicho macho e sangrador, e não essa pombinha que sempre me pareceu
meio suspeita. Segundo nossas crenças, Senhor Corregedor, foi a Onça
Malhada do Sol Divino que nos fez, a mim e ao Mundo, segundo sua própria
imagem. Assim, não admira que o jaguar divino fizesse em relação
ao Mundo o mesmo que eu, como Rei, faço com o Sertão. Por isso
é que Deus pegou o Campo azul e incendiado da bandeira do Céu,
dispondo nele as peças de ouro e prata de seu Brasão, coruscante
de sóis e estrelas, com o Cruzeiro, o Sol e o Escorpião. Até
mesmo a Morte, Senhor Corregedor, era, agora, para mim, uma sagração
bela e heráldica, armorial. Aparecia-me como uma gigantesca Cobra-Coral,
enroscada no Céu à nossa espreita. Era negra de “sable”,
branca de “prata” e vermelha de “goles”, com asas de Gavião,
com dentes e garras de Onça – uma Cobra cujo veneno passava a ser,
para nós, o óleo sagrado, necessário para ungir-nos,
indispensável à sagração sem a qual não
podemos unir-nos ao Divino para identificarmo-nos com ele, para nos tornarmos
também divinos. Bem, Senhor Corregedor: então, naquele dia,
os sonhos do vinho tinto e os sonhos zodiacais e embandeirados do Catolicismo
Sertanejo começaram a se juntar com as cintilações que
o Sol ia tirando aqui e ali em pontas de pedra, em lascas de quartzo e em
cristais de malacachetas, e, de repente, quando menos eu esperava, tive uma
“viração”.
– Uma “viração”? O que é isso? De que “viração”
o senhor está falando? É, por acaso, à brisa sertaneja
que o senhor quer se referir? – Não senhor! Aliás, não
lhe faltando com o respeito, o senhor está revelando pouco conhecimento
dessa questão das ventanias sertanejas! Senhor Corregedor, aqui no
Sertão – terra espinhenta, parda, pobre e pedregosa da Esquerda – absolutamente
não existe nenhuma “brisa”, que é uma ventaniazinha
romântica, besta e da Direita, muito freqüente no estrangeiro,
e que no máximo, pode aparecer aqui no Brasil, uma vez ou outra, só
na Zona da Mata! O vento daqui do Sertão, ou é o cariri noturno,
ou o espinhara, o vento abrasador do meio-dia e das tardes da Catinga! Quando
eu digo “viração”, refiro-me a outra coisa muito diferente.
As “virações” são uns acessos apocalípticos
que me assaltam de vez em quando, atacado que sou do “mal sagrado”
dos Vates, dos Poetas escumejantes e dos Profetas. Sofriam -disso, também,
Dom Pedro I, Machado de Assis e dois Profetas sertanejos que viveram no Deserto
Judaico! – Quem eram? Antônio Conselheiro e seu bisavô? – Não
senhor, o Profeta Ezequiel e o Profeta João de Patmos, mais conhecido
como São João, O Evangelista, assim como meu bisavô era
conhecido por Dom João, o Execrável. Ezequiel era sujeito a
“virações”. Digo isso porque o Padre Renato, aqui,
um dia, numa Missa, leu um trecho da Crônica-Epopéica que ele
escreveu. O Profeta conta, nesse trecho, que, estando um dia olhando um Deserto
cheio de ossos – que deviam ser esses esqueletos, caveiras e costelas de boi
que a gente encontra aqui, às dúzias, no Sertão – teve,
de repente, uma visagem. Os ossos se juntavam aos poucos, iam se reunindo
até completarem os esqueletos, e lá vinha uma ventania de fogo,
e os esqueletos dançando, e começavam a aparecer umas grandes
pedras preciosas se incendiando em cima daquilo tudo, e surgia uma Safira
enorme, o um Crisólito, tudo incendiado pela luz do fogo, e Carros
de chamas, e Querubins armados de espadas reluzentes, com asas de ouro e prata,
e o Anjo, e o Touro com asas, e a Onça e o Gavião… Era um
negócio terrível, Excelência, um verso mortuário,
cheio de ossamentas e, ao mesmo tempo, glorioso, prateado, cheio de cravações
de pedras estreladas. Não sei se já disse a Vossa Excelência
que eu, Samuel e Clemente temos, todos três, nossos “jogos políticos
e de Partido” …
– Não, não disse não! Jogos políticos? Isso
me interessa muito! O que é que o senhor chama de “jogos políticos”?
São as tramas que tecem para conseguir seus objetivos? – Não
senhor, são os jogos, os jogos mesmo! Clemente, que só vê,
no Mundo, a realidade parda e afoscada dos famintos o miseráveis, escolheu
como jogo preferido dele, o “jogo da Dama”, que, “sendo pobre
e despojado, feito de pedras negras e pedras brancas, é bem a figura
e imagem da luta dos Povos negros contra os brancos e ricos do Mundo”.
Samuel, que só vê a parte sonhadora e brasonada do Mundo, com
seus Fidalgos, escudos e bandeiras, escolheu o “jogo do Xadrez”,
por ser povoado “de Reis, Rainhas e Bispos, que governam os Peões,
montados em Cavalos e protegidos por Torres fidalgas e guerreiras de combate”.
Eu, sem ter mais o que escolher, resolvi, como sempre, unir as duas idéias
opostas deles num jogo só, o do Baralho, conciliando os naipes aurinegros
do Povo, isto é, Paus e Espadas, com os naipes aurivermelhos da Fidalguia
brasileira, Copas e Ouro. Assim, em vez de rebaixar o Povo, o que eu faço
é erguer o Povo aurinegro e os Reis aurivermelhos a uma Fidalguia só,
com os Reis negros de Paus e Espada conquistando as Damas aurirrubras de Copas
e de Ouro. É que, tendo sofrido a influência concomitante de
Clemente e Samuel, tanto acho belas as partes esquerdistas e despojadas da
realidade sertaneja – fosca, parda, pedregosa, empoeirada, faminta, miserável,
cheia de ossamentas de Vacas, Cabras e jumentas mortas – como acho belo o
Sonho de prata e joiaria que, às vezes, vem se juntar a ela para transfigurá-la.
Muitas vezes já me aconteceu isso, quando, nas tardes de muito sol,
estou, por acaso, em cima do meu Lajedo. Estou ali, em cima, olhando o Mundo
sertanejo, fosco e empoeirado, porém já se animando de uma Coroa
gloriosa que o Cobre e o Ouro do sol-poente vai lhe emprestando. Se, nesse
momento, sucede passar por ali um Cigano, montado num cavalo cujos arreios
estão enfeitados de moedas e medalhas, e o Sol começa a tirar
faíscas nesses metais ou nas malacachetas incrustadas nas pedras, na
mesma hora dá-se, em mim, uma “viração”; meu
sangue e minha cabeça se incendeiam, e a realidade parda e afoscada
se funde ao fogo do Sol e dos diamantes do sonho. O Sertão selvagem,
duro o pedregoso vira o “Reino da Pedra do Reino”, e enche-se de
Condes calamitosos e Princesas encantadas, eles vestidos de Pares de França
das Cavalhadas, e elas de Rainhas do Auto dos Guerreiros. O pobre “tabuleiro
sertanejo” vira um enorme Tabuleiro de Xadrez ou Mesa de Baralho, dourado
pelo Sol glorioso e ardente. Assim, Senhor Corregedor, não é
querendo ser orgulhoso não, mas esse fenômeno da “viração”
a que eu sou sujeito, é coisa muito venerável, uma vez que sucedia
àquele outro Apóstolo o Profeta Sertanejo que foi São
João de Patmos, o Evangelista. Acontecia, também, a todos aqueles
outros Profetas sertanejos que contaram a história do Cristo. O senhor
já leu o Evangelho?
– Li uns pedaços, todo não! – Devia ler, Senhor Corregedor,
é uma das melhores crônicas epopéicas que já se
escreveram, com a queda do trono, coroas e monarquias do Cristo-Rei, com a
catástrofe sangrenta da morte dele, com a degolação de
João Batista, etc. Pois bem: no Evangelho, Mateus, Marcos e Lucas contam
que, lá um dia, aquele rapaz, a princípio simples e pobre, chamado
Manuel Jesus e filho de um Carpinteiro sertanejo, subiu a um serrote, a um
Lajedo pedregoso e espinhento como os daqui. João, Tiago e Pedro estavam
olhando para ele quando, de repente, tiveram uma “viração”.
O rosto daquele rapaz comum começou a ficar refulgente como o Sol e
suas vestiduras pegaram a resplandecer. A partir daí, nunca mais aquele
rapaz foi o mesmo: aquele donzel-errante, aquele joão-sem-direção
do Deserto judaico, “virou-se” na figura do Terrível, o Cristo-Rei,
um homem de palavras de fogo, um corisco a quem passaram a perseguir como
um Cachorra danado e a quem terminaram vestindo com um Manto vermelho e coroando
com uma Coroa real de espinhos, um Rei de Copas e Espada, de coração
sangrento, sustendo nas mãos um Cetro de madeira que ele molhava com
seu próprio sangue, como insígnia de sua realeza. E se estas
visagens deixaram de acontecer a Pedro e a Tiago – não sei! – o certo
é que nunca mais deixaram de acontecer a João. Tanto assim que,
numa de suas visões – ou visagens, que é a mesma coisa – ele
estava, um dia, olhando quatro Cavaleiros judaico-sertanejos que passavam,
montados em cavalos magros, feios e comuns, quando, de repente, cavalos e
Cavaleiros “se viraram” em cavalos e homens de Cavalhadas, sonhosos,
heróicos o medalhados! – Como é? – disse o Corregedor, fazendo
uma careta. – E lá na Judéia também havia Cavalhadas?
– Havia, exatamente como aqui no Reino do Sertão e no Reino da Normandia,
Senhor Corregedor. Ah, quanto a isso não tenha a menor dúvida,
porque está lá, contado num livro consa484 grado. João
conta que viu o Cordeiro abrir quatro selos e de cada selo sair um Cavalo,
um branco, um vermelho, um preto e um amarelo, todos montados por Cavaleiros
que traziam Arcos na mão e Coroas na cabeça, do mesmo jeito
que, aqui nas Cavalhadas sertanejas, trazem lanças e capacetes. Como
o senhor vê, com isso fica provado que na Judéia havia Cavalhadas.
Com uma diferença somente para as daqui: nas Cavalhadas e Pastorais
sertanejos, os cordões são somente dois, o Azul e o Encarnado.
Nas Cavalhadas judaicas, organizadas pelo Cristo, como se vê por essas
palavras de São João, havia quatro: o Branco, o Negro, o Encarnado
o o Amarelo. Sabe quem teve, aqui no Brasil, uma “viração”
parecida com aquela da Transfiguração do Cristo, Senhor Corregedor?
– Não! – Euclydes da Cunha! Este, como um dos Profetas das terras desérticas
de Canudos, viu Santo Antônio Conselheiro morrer do jejum de protesto
e dos efeitos de um ferimento de bala. Como visionário e Profeta que
era, viu, esticado no chão, o Santo o Profeta de todos nós,
Sertanejos. Teve, aí, uma viração, e viu o Conselheiro
transfigurado e exaltado, ressurreto “entre ‘ milhões de Arcanjos
descendo – gládios flamívomos, coruscando na altura – numa revoada”.
É por tudo isso, Senhor Corregedor, que eu digo que Ezequiel e João
eram os Conselheiros judaicos! É por isso que eu disse que, no dia
em que chegou aqui o nosso Príncipe do Cavalo Branco, estreando sua
grande Marcha desaventurosa de calamidades, vinha cercado por legiões
de Arcanjos e Demônios perigosos! – Entendi! Pode continuar! – Tudo
aquilo era muito importante para mim, Senhor Corregedor. Primeiro, por causa
da “aventura da visagem da Onça”, que já lhe contei.
Depois por causa de outra, a “aventura da visão do Lajedo”
que me sucedeu e que passo a lhe contar. Até hoje eu não sei
direito como foi aquilo. Eu tinha me perdido na Catinga. Não sei se
me sentei em dado momento, tendo adormecido e acordado depois. Acho que foi
o que aconteceu, porque de repente dei comigo deitado, todo gafo, todo coberto
de gafeiras, apodrecendo como um lázaro, ao pé de um enorme
Lajedo, alto e inacessível. Aparecia-me a figura da Morte Caetana com
sua CobraCoral e seus Gaviões. Sem falar, só olhando para mim,
ela me fazia saber que unicamente escalando aquele rochedo, erguido verticalmente
e cheio de Urtigas, é que eu cicatrizaria minhas gafas feridentas,
unindo-me ao Divino. Eu começava a subir como num sonho, num pesadelo.
Cortando-me e ferindo-me nas lascas, com a sola dos pés caindo ao contato
com a pedra fumegante, conseguia chegar ao cimo. E aí, milagre dos
milagres! eu desco485 bria, afinal, ou melhor, eu sentia com meu sangue, que
tudo era divino: a Vida e a Morte, o sexo e a secura desértica, a podridão
e o sangue. O Lajedo parecia com a Pedra do Reino, a do chuvisco prateado,
e eu sabia, com o sangue, que, se conseguisse escalá-lo, experimentaria,
no alto, de uma vez só, o gozo do Amor, o poder do Reino, a fruição
da Beleza e a união com a Divindade, os quatro êxtases que lembram
ao homem que, nesta Terra-Desértica, neste Sertão assírio
e judaico, ele tem que se sobrepor à Esmeralda verde-lodo da Terrestre,
ao Rubi vermelho e sangrento da Paixão, para atingir, assim, o Topázio
de ouro da Hierosólima. Era uma coisa tão importante, Senhor
Corregedor, que o senhor acredite: naquele dia, quando acordei realmente deitado
perto dum Lajedo, tive uma decepção ao ver que não estava
gafo e feridento conforme sonhara. Mas, daí em diante, tudo isso se
incorporou às visagens e rituais da minha Igreja. Agora, ali, bêbado
de vinho e de sonhos, meu Lajedo começou, também, a se povoar,
mas não de cavalos, e sim de Mulheres, que logo começaram a
me acariciar de maneira mais excitante que o senhor possa imaginar. Enquanto
elas faziam isso, outra Mulher, nua, espichava-se deitada, em cima da pedra,
ao meu lado, chamando-me para cima dela. Embaixo, no Tabuleiro pedregoso do
Xadrez sertanejo, é que estavam, mesmo, as Damas, Cavaleiros e Peões
do meu Reino, com Castelos pra todo canto, rios de prata serpeando pra todo
lado, e punhais e diamantes cintilando no ar, com tropéis de cavalos
e Bandeiras amarelas e vermelhas desfraldadas ao vento. De certo modo, é
explicável que eu visse aquilo, também, porque, tendo sido criado
por meu Pai, eu herdara dele a condição de Mestre nos arcanos
das Três Astrologias. De fato, o que me aparecia agora, ali, era uma
visagem de todo o Império do Sete-Estrelo do Escorpião, com
seus Sete pontos-cardeais e seus Doze lugares sagrados – seis do Mar e seis
do Sertão – governados pelos sete Planetas e pelos doze Signos do Zodíaco.
Essa foi, aliás, a minha última visagem, enquanto acordado.
Porque, imediatamente depois dela, amodorrado na madorna da saciedade, da
embriaguez, do mormaço e da sombra, peguei no sono. A “viração”,
porém, continuou, agora agravada por todas essas coisas dementes que
o sonho costuma nos trazer. Não havia, mais, aquela oposição
entre a Mulher nua, que me tentava em cima do Lajedo, e o Reino do Sertão
que se agitava e me deslumbrava lá embaixo. Agora, tudo era uma coisa
só, pois o Reino me aparecia, ao mesmo tempo, como uma cena de Batalha
bandeirosa e como uma bela Mulher nua, estendida e deitada sobre a grande
cascata de ouro de seus próprios cabelos, com o corpo perfeito também
dourado pelo Sol. Por esse “Reino da Princesa da Pedra Fina” que
era ela, por essa ‘Terra-Encantada, povoada de grutas e colinas, errava eu,
também encantado e enfeitiçado, descobrindo, acariciando, tocando,
descerrando, e logo, assolando, invadindo, bebendo, penetrando, mordendo,
despeduçando – espichado sobre fontes umbrosas e regatos, em cujo musgo
e a cujo remanso, na sombra esverdeada e fresca, reluziam frutes entreabertas
e corolas – as corolas encarnadas das RosasVermelhas, as macias e brancas
da flor do jasmim-cambraia, todas brilhando entre lianas coleantes que envolviam
meu tronco e meu pescoço, acariciando-me as costas e buscando também
avidamente o que morder e apertar. E foi chegando o momento em que tudo aquilo
começou a se reunir numa sensação de tanto gozo e glória,
que os cascos do Cavalo começaram a galopar em meu peito e nas minhas
têmporas, pulsando e estremecendo ao ritmo do meu sangue. E eram cargas
e tropéis, Guerreiras estranhas em desfiles o combates-mouros, ao som
amarelo e vermelho dos Clarins, tudo se confundindo com o galope dos cavalos,
com os gemidos da Mulher que estava chegando ao cume do Reino juntamente comigo,
o finalmente com o tiro amarelo e ensolasado de um mosquete holandês
que, ao mesmo tempo que partia de mim, me atingia no sangue, nos olhos e no
centro de mim mesmo, com o estralejar e a fulguração do Cobre
incendiado.
FOLHETO LXXIV
A Astrosa Desaventura dos Gaviões Cegadores – Creio, Senhor Corregedor,
que umas duas horas tinham se passado. Eram, mais ou menos, de duas para duas
e meia da tarde. Naquele instante, já tinha acontecido aquela cena
entre Antônio Moraes e Genoveva, e estava se desenrolando a conversa
entre Gustavo e Clara, no automóvel. Eu comecei a acordar. Somente
então verifiquei que aquele “sonho de joiaria e safadeza”
que eu vinha sonhando, tinha, de fato, algumas ligações com
a “realidade raposa e afoscada”, ali constituída pela Estrada
e pelo Tabuleiro, lá embaixo. Realmente, fora essa realidade que provocara
pelo menos a parte final do meu sonho, pois a Estrada que passava a cerca
de uns cem metros do Lajedo, estava, de fato, naquele instante, povoada por
um tropel ruidoso de carretas, miados de animais selvagens, piados metálicos
de Gaviões e gritos de almocreves tangendo burros. Sem saber direito
do que se tratava, pois estava ainda adormecido quando aquilo começara,
era talvez isso o que eu vinha ouvindo em sonho, aqueles cascos de cavalos,
o tinir dos estribos batendo nas esporas de metal dos Cavaleiros, o chiar
das rodas das carretas, os gritos surdos dos cargueiros que conduziam os animais
enjaulados e as bagagens. Só mais tarde, já mais perto do crepúsculo
– e enquanto Arésio dava no Bispo aquele soco terrível que o
prostrou, ensangüentado – é que eu viria a saber, aqui na Vila,
que aquela era a cavalgada que nos trazia de volta a figura alumiosa do nosso
Prinspo da Bandeira do Divino do Sertão. Mesmo que o soubesse, porém,
eu não poderia ter observado nada naquele instante, porque a outra
parte do sonho, a do tiro do mosquete em meus olhos, tinha também sua
razão de ser, como descobri imediatamente, por mal dos meus pecados.
Sucede que eu tinha me deitado à sombra da Braúna. Mas, enquanto
eu dormia, o Sol tinha caminhado um bom pedaço, de modo que tinha me
atingido a cara. Mesmo com os olhos ainda fechados, sua luz violenta tinha
me encantado completamente. Possivelmente fora essa luminosidade que, no sonho,
“se virara” num tifo amarelo de mosquete holandês, semelhante
àqueles que tinham sido disparados contra os Brasileiros durante a
“Batalha dos Guararapes”, no século XVII, como Samuel e Clemente
não se cansavam de me dizer desde que eu era menino. Isto, quanto aos
olhos somente, graças a Deus. Porque, felizmente, no outro “centro
vital” que eu sentira explodir no sonho, quem me atingira não
fora galego safado de qualidade nenhuma, mas sim a bela Galega que eu tivera
a sorte de encontrar naquele dia, nua e deitada, evocada e invocada pelo Vinho
e por meus rituais astrológicos de encantação. Quanto
aos olhos, porém, Senhor Corregedor, logo acontecia algo que ia agravar
minha situação: no momento em que eu ia acordando, não
tomei consciência imediata de que o Sol já chegara a meu rosto,
de modo que, sem tomar precaução nenhuma, abri os olhos diretamente
para ele. Fui imediatamente deslumbrado por uma luz fulgurante, que me deixou,
desta vez, completamente encandeado, durando isso o tempo exatamente necessário
para me impedir de ver claramente a cavalgada de Sinésio, o Alumioso,
que ia passando pela estrada, em procura da Vila, onde entraria daquele modo
aciganado, glorioso e epopéico que já lhe contei. A impressão
do círculo do Sol, em meus olhos, enchera minha vista obscurecida de
fantasmagorias e cosmoramas luminosos, nos quais eu via o enorme globo fulgurante
boiar numa espécie de vasto fogo feito de chumbo derretido, por entre
velas, Barcos o bandeiras, Esferas de ouro e frutos incendiados. Minha fronte
começou a latejar de dor-de-cabeça, como se realmente tivesse
sido atingida de raspão por uma bala incandescente. Para atrapalhar
ainda mais minha vista, acontece que a cavalgada de Sinésio estava
levantando uma poeiragem enorme, na estrada. O pó pardo-vermelho, dourado
pelo Sol, envolvia os Cavaleiros, que passavam, numa nuvem de imagens tão
“alumiosas e encobertas” quanto o próprio Príncipe
que ali vinha. A dor, agora, dava-me a sensação de um anel de
ferro quente ou de um cinturão de fogo que apertasse impiedosamente
minha fronte. E como, ao mesmo tempo, eu começasse a ouvir mu som de
trompa – provavelmente a mesma buzina de caça que Sinésio tocaria
logo depois, na Praça – o fogo sagrado da Epopéia começou
a me agitar, soprado pelas cordas da Tiorba do genial Bardo brasileiro, Dom
Raymundo Correa. Insensivelmente e involuntariamente, começaram a se
agitar e estremecer dentro de mim, queimando-me o sangue e a cabeça,
aqueles seus versos proféticos, nos quais, já prevendo a chegada
de Dom Sinésio Sebastião, o Alumioso, ao Reino pedregoso do
Sertão, acompanhado de Fidalgos cangaceiros e aciganados pela estrada,
Raymundo Correa cantara assim, uns quarenta anos antes do fato:
“O Sol requeima a solitária Estrada. Silêncio. Mas, além,
já chega o Bando: o trom dos Cascos vem se aproximando do galopar d’A
Estranha Cavalgada!
São Ciganos, fiéis da Onça-Parda: castanhos-encantados,
vão passando! o as Trompas, a soar, vão agitando o aurirrubro
da Tarde Ensolarada.
o a Catinga se queima e se estremece: da Cavalgada o estrépito que
aumenta cega-se ao Gume e às pedras desta Serra!
o Silêncio, outra vez, Fogoso, desce: o Sol sagra, do Rei, a Voz Poenta,
o O Alumioso ao sol-dos-mortos erra!” – Assim, Senhor Corregedor, encandeado
como estou lhe dizendo e evocando os versos de Raymundo Correa, ouvi o tropel
que passava e se afastava cada vez mais. Não tinha visto, claramente,
nada, e julgava, em minha momentânea cegueira profética, que
fosse algum Circo ou tribo comum de Ciganos que se dirigia para a feira, aqui
na Vila. Permaneci ali, ainda algum tempo,
em cima do Lajedo, de costas para a rua e com o rosto voltado para a estrada,
com as mãos colocadas sobre os olhos para fechálos, protege-los
e para ver se assim o encandeamento melhorava mais depressa e eu recuperava
a claridade da vista. Mas não havia jeito. Mal eu entreabria os olhos,
para experimentar, voltavam as bolas de fogo, os pontos luminosos, as manchas
de chumbo derre489 tido que, tornando-se insuportáveis quando eu insistia
em manter os olhos abertos, permaneciam, mais atenuadas e vistas ao contrário,
quando eu os fechava de novo. Deve ter sido enquanto fiquei ali, tentando melhorar
meus olhos, que a cavalgada de Sinésio entrou na Vila, soltando os animais
enjaulados e provocando todos aqueles acontecimentos que contei, incluindo-se
entre eles a “visagem” do Profeta Nazário e de Pedro Cego.
– Uma pergunta, Dom Pedro Dinis Quaderna! Noto que essas “visagens”
do Profeta Nazário e de Pedro Cego têm estreita correlação
com seu Catolicismo Sertanejo. Eles eram seus discípulos? – De certo
modo, eram, Senhor Corregedor! Ouviam, todo ano, a leitura do Almanaque do
Cariri, uqe eu continuava a publicar depois da morte de meu Pai, e conheciam
todos os “folhetos” que eu imprimia e vendia na feira, principalmente
o da Pedra do Reino, porque da divulgação dele eu fazia questão,
por ser isso muito importante para o proselitismo da minha Seita! – Anote
isso, Dona Margarida! É um pormenor importantíssimo para a solução
do caso! Pode continuar, Dom Pedro Quaderna! – O fato, Senhor Corregedor,
é que, como eu vinha dizendo, foi mais ou menos na mesma hora da libertação
das Onças que eu recuperei a claridade dos olhos. Mais do que isso,
aliás: como um dom sagrado mas passageiro que eu tivesse recebido e
que desejasse se despedir, mais forte, no último instante em que morava
em mim, minha visão não voltou, simplesmente “normal”,
como era antes – exceto nos momentos de “viração”.
De repente, fiquei dotado de uma vidência-visageira fora do comum, uma
vidência profética e astrológica como nunca eu tinha tido.
Ai de mim, Senhor Corregedor! Mal sabia eu, naquele momento, que essa vidência
régio-zodiacal me fora dada por um instante apenas, só para
que eu, imediatamente, caísse, de uma vez para sempre, nas intermitências
de uma cegueira cruel, profética também, mas dura e terrível
de suportar! – Uma cegueira? E o senhor cegou? Está cego? – Estou,
sim senhor! Além de epilético, cego! Já viu que coisa
mais dolorosa para um pobre Epopeieta? O que me consola nessa tragédia
é que isso de ser cego fica muito bem para um “Gênio da
Raça” como eu! Homero também era cego, o senhor sabia?
– Então, o senhor está cego! – disse o Corregedor, balançando
a cabeça. — E cegou exatamente na hora em que, perto do senhor e do
Lajedo onde o senhor estava, dispararam o tiro que impediu, talvez, que se
apurasse essa história toda! Sabe que essa cegueira sua chegou mesmo
na hora, Dom Pedro Dinis Qua490 tierna? Cego, o senhor vai me dizer que não
viu nada! Cego, o senhor torna-se objeto de compaixão! Cego, o senhor
não poderá identificar os assassinos, nem mesmo que nós
venhamos a descobri-los! Olhe, Senhor Quaderna, não quero ser indelicado
não, mas não deixa de ser estranho que o senhor tenha escolhido
exatamente essa hora, para cegar! E, depois, que cegueira mais estranha é
essa sua! O senhor veio aqui para a Cadeia sem guia, subiu a escada sem tatear,
acertou facilmente com os degraus, sentou-se numa cadeira que lhe mostrei
com um gesto há pouco, viu que eu estava vestido com uma toga negra
e vermelha… Que é que ~tignifica isso? – Senhor Corregedor, de fato,
é uma cegueira muito estranha, essa que me assaltou os olhos, naquele
dia. A meu ver, ela é parenta próxima da epilepsia-genial que
também me atacou, como lhe disse. Deixaram-me, as duas, numa espécie
de vidência-penumbrosa, na qual o Mundo me aparece como um Sertão,
um Desertão, o De-Sertão de que falavam os geniais escritores
Manoel de Oliveira Lima e Afrânio Peixoto, repetindo velhos cronistas
brasileiros do tempo dos Conquistadores, segundo me contaram Clemente e Samuel.
É aí que o Sertão me aparece como o Reino da Pedra Fina
do qual já lhe falei. Há pouco, quando eu vinha chegando aqui
para a Cadeia, tive essa idéia-vista de que o próprio Sertão
era uma Cadeia enorme, cercada de pedras e sombras, de lajedos fantásticos
e solitários, parecidos com Lagartos venenosos, cinzentos e empoeirados
que dormissem numa Terra Desolada. Ou então parecidos com as ruínas,
os esqueletos gigantescos e queimados de uma Cidade de pedra, incendiada.
Ora, acontece que eu, como discípulo de Samuel, sou Católico;
mas, como aluno de Clemente, sou, também, um devoto da Mitologia NegroTapuia
do Brasil. Foi, aliás, plasmando esses dois elementos que eu construí
o esqueleto central do Catolicismo Sertanejo. Ora, segundo Clemente, o nosso
Sertão é a terra mais antiga do Mundo, é o berço
da Raça Humana. Diz ele que nós, Sertanejos, somos descendentes
diretos do Tapuia, do “Homem Castanho Inicial”, brotado da terra
parada do Sertão num dia em que ela estava umedecida, e, depois, errante
por entre os espinhos e as muralhas de pedras sertanejas. Aliás, acho
essa idéia- de Clemente mais lógica do que as idéias
de outras Mitologias estrangeiras. É muito mais lógico que o
Homem-Castanho, emigrado daqui para a Africa, tenha se tornado negro, lá,
pelo calor, tornando-se branco, pelo frio, na Europa, e permanecendo castanho
no Egito ou na índia. Outra coisa que irrita Clemente é a preferência
inteiramente arbitrária que dão, no Mundo, ao que ele chama
“a Mitologia biológica inglesa”. Ele indaga, indignado: “Por
que afirmar que o homem descende do Macaco? É muito mais lógico
que tenha sido de outros bichos, principalmente a Onça!” Isso,
ele diz nos momentos de raiva. Mas, nos momentos de maior calma, explica que
o Homem não descende de bicho nenhum e que a Mitologia Negro-Tapuia
está muito mais perto da verdade científica do que essas outras
Mitologias saxônias, tão arbitrárias quanto qualquer outra
e com o agravante de serem pretensiosas. Olhe, Senhor Corregedor, sempre que
vou dizer alguma coisa sobre a Catinga sertaneja, valho-me de três geniais
escritores brasileiros, o General Dantas Barretto, o Tenente-Coronel Durval
de Aguiar e o Capitão Euclydes da Cunha – este, segundo Samuel, useiro
e vezeiro em plagiar os dois anteriores. Dou sempre preferência ao General
Dantas Barretto, primeiro por ser o mais graduado de todos, na hierarquia
militar, depois por ser escritor tão admirável que só
chamava o trem de “a rugidora Serpente mecânica”. Aqui, porém,
para o que tenho a dizer, devo lançar mão do Tenente-Coronel
Durval de Aguiar. O senhor já leu alguma coisa dele? – Não,
nem nunca, nem ao menos, ouvi falar desse escritor! – É pena! Ele e
o General Dantas Barretto exerceram, em relação a Euclydes da
Cunha, o mesmo papel que Samuel e Clemente exerceram em relação
a mim! Descrevendo a Pedra do Reino do Sertão, diz o Tenente-Coronel
Durval de Aguiar que essa terra é constituída, toda, de “serras
de pedra, naturalmente sobrepostas, formando Fortalezas e redutos inexpugnáveis”.
Euclydes da Cunha, plagiando o Tenente-Coronel, descreve também o Sertão
e fala em “alinhamentos de penedias, caprichosamente repartidos”,
que semelham, “de fato, grandes cidades mortas”, cidades ante as
quais o Sertanejo passa “sem desfitar a espora dos ilhais do cavalo em
disparada, imaginando lá dentro uma população silenciosa
e trágica de almas do outro mundo”. E é aí que eu
vejo que Euclydes da Cunha absolutamente não pode ter sido o “Gênio
da Raça Brasileira”. Veja que leviandade, a dele! “Imaginando!”
Imaginando, uma porra! Tem, mesmo! Essa população de almas do
outro mundo, existe, mesmo, aqui, em nossas pedras, de noite, de dia e no
pino do meio-dia! Bastariam as Onças, os Gaviões, os Carcarás,
os Veados, os Bodes, as Cobras o os Morcegos sertanejos, para provar que o
nosso Reino amuralhado de pedras está povoado de Deuses e Demônios,
de Anjos o Divindades! Como me explicou Clemente, Senhor Corregedor, foi das
trepadas das Divindades solares entre si que nasceram a Terra e a Agua, mijadas
por eles. Depois, daí em diante, o mais foi fácil: pingos de
gala de Deuses machos ou pingos de boi de Deusas fêmeas que caiam no
barro da Terra, fazem nascer ou bichos ou plantas. Se um Deus qualquer, depois
daí, trepa com uma Veada, ou se uma Deusa se deixa cobrir por um Pavão
ou um Gavião, nasce um homem ou uma mulher, conforme o Foi, portanto,
dessas trepadas das Divindades tapuias com Onças, os Gaviões,
os Bodes, as Cabras, os Veados e outros tichos, que nasceram os Tapuios castanhos,
antepassados diretos s Sertanejos e indiretos de todos os outros homens. É
por isso ,fie o Sertão, nos meus momentos de maior cegueira profética,
me aparece como esse Reino pedregoso-de que lhe falei, Reino por onde erro
eu, agora, como o Valente Vilela, mas também destroçado, processado,
vagabundo, perdido, extraviado e cego, incapaz de ver outra coisa a não
ser esses Lajedos, essas Catingas espinhosas, esses morros descalvados, essa
Raça Sertaneja e esses os, semelhantes aos que, às vezes, aparecem
em nossos pesadelos. Minha sorte, porém, é que a cegueira que
me assaltou ,,4s olhos é intermitente! Cego como estou, às vezes,
quando menos Opero, sem qualquer prenúncio que me avise, um raio fende
p, escuro-penumbroso em que vivo mergulhado, e então eu vejo, a’ que
atribuo, também, ao “mal sagrado” dos Gênios, de que
acabo de ser acometido em sua presença. Aí, nesses momentos,
eu vejo mesmo, vejo pra valer! O que eu avisto, o que eu enxergo etttão,
nesses momentos de “raio de pedra-lispe” e de “corisco e fulminação”,
é visto em zonas interrompidas, mas deslumbrantes, de claridade enceguecedora,
é visto como nenhuma coisa foi vista até agora pelo comum dos
mortais! – Pelo comum dos mortais? E o que é o senhor? Algum iluminado,
ou alguma Divindade tapuio-sertaneja, por acaso? – disse o Corregedor, irônico.
– Eu não chegaria a dizer tanto, por modéstia e humildade
cristã! No máximo, o que me aconteceu foi um decreto insondável
da Providência Divina, que não podia permitir que o “Gênio
da Raça Brasileira” fosse inferior, em nada, ao “gênio
da raça grega”! Minha cegueira seria muito parecida com a cegueira
poética e profética de Homero, caso tivesse existido, mesmo,
esse mavioso e distinto Poeta, autor das traduções gregas da
Ilíada e da Odisséia – o que digo porque, como Samuel já
provou, o autor, de fato, dos originais brasileiros dessas duas obras foi
o genial Bardo nordestino, Doutor Manoel Odorico Mendes. Acredito, também,
que foi mais ou menos no estado de cegueira e iluminação em
que me encontro que Ezequiel, o renomado Poeta judaico-sertanejo de que lhe
falei há pouco, teve aquela sua “visagem do campo de ossos”
e aquela outra, precursora da Mitologia Negro-Tapuia, na qual lhe apareceram
umas águias, uns grifos e uns touros, sustentando o trono do Divino,
visagem que eu tive logo o cuidado de assertanejar mais, transformando as
águias em Gaviões, os grifos em cruzamentos de Onça com
Seriema, e o leão do Divino na Onça do Divino! – O senhor, com
coisas tão estranhas no pensamento, deve ter uma cabeça bastante
aperreada do juízo, Dom Pedro Dinis Quaderna! – disse o Corregedor,
falando como se fosse para mim, mas, de fato, para ser apreciado por Margarida.
Eu, me fazendo de inocente, concordei: – É verdade, e tenho mesmo,
Excelência! Durante toda a vida, sofri a influência da Esquerda
clementina, influência que é clássica e despojada, por
ser luz-matinal, popular, do rubi, celeste e do Sol. Sofri, também,
por outro lado, a da Direita samuélica, que é romântica,
por ser noturna, lunar-satúrnica, fidalga, da esmeralda, inférnica,
verde-lodo e da Lua. Somando-se o elemento clementino ao samuélico,
temos o quadernesco. É por isso que eu, sendo da tarde, do topázio,
do purgatório, de mercúrio e do Sol, sou, ao mesmo tempo, clássico
e romântico, isto é, “completo, genial, modelar e régio”.
Eu, Senhor Corregedor, tendo nascido com dois olhos sertanejos, solares e
clássicos, sofri depois, no Seminário, a influência romântica
e profética do genial Bardo alagoano e judaico, o Padre Ferreira de
Andrade, ficando daí em diante, no mundo, com um olho cego – queimado
pela demência romântica do Deserto judaico e sertanejo assim como
pela asa de fogo e navalha da Musa do genial Poeta paraibano Augusto dos Anjos.
O outro olho permaneceu clássico e popular, como nascera. O que é
mais curioso, porém, é que o olho romântico e queimado,
que é o direito, depende do olho clássico e vidente, que é
o esquerdo! E vice-versa! Porque, se o Gavião romântico e fogosodesértico
não tivesse queimado e despedaçado um dos meus olhos, o outro
não teria obtido o privilégio de ver, na realidade parda o afoscada,
essas Cavalhadas e batalhas, cheias de bandeiras, essas Estrelas e moedas
que vejo de vez em quando coroando as frontes dos Cavaleiros sertanejos. Também,
se eu não gastasse toda a prata e todo o Sol do meu sangue com o olho
clássico e vidente, o outro não seria capaz de enxergar o sofrimento
e a miséria, a feiúra desdentada e barriguda das pessoas, os
morcegos, os urubus o as corujas das Furnas sertanejas, onde moram as Divindades
infernais, satúrnicas e subterrâneas do meu Mundo astrológico
e zodiacal! – Entendi! Continue, então, a narrar os acontecimentos
do dia 1 de junho de 1935, em cima do seu Lajedo.
– Depois de me manter, um bom pedaço, com os olhos fechados, como
contei a Vossa Excelência, achei que já passara tempo suficiente
para me recuperar e abri os olhos. Eu tinha me voltado, novamente, para o
lado da Vila, de modo que os telhados da rua me apareceram subitamente diante
de mim. O que é curioso é que eu via tudo, agora, mais nitidamente
do que antes. Três casas se destacavam na minha visagem profética:
o antigo ao da família Villar, mais perto de mim do que as outras;
a dos Garcia-Barrettos e o casarão das pinhas, perto do qual
va o “cabra” que atirou em Sinésio. Ora, essas eram aquelas
onde se encontravam, como já disse, personagens dos mais rtantes, no
caso. E acredite Vossa- Excelência que eu “vi”
aquilo num repente, como nunca antes vira coisa alguma,
minha vida! Parecia que o Mundo me revelava, pelo menos sua parte sertaneja,
“não suas aparências, mas sew próprio e, suas entranhas
pardas, a alma felina e estranha que gerou a”, como diz Clemente sempre
que me explica a “Introdução lógica Negro-Tapuia”
de sua célebre “Filosofia do Penetral”.
aquilo foi só um instante, Senhor Corregedor! Primeiro,
parque a enorme bola de chumbo derretido que o Sol imprimira pa minha visão
não tinha propriamente se desvanecido. Parecia, ~as, ter se destacado
dos meus olhos e adquirido vida própria,
Pois começou a boiar à meia altura, no horizonte, entre o Lajedo
e a Vila. Depois, porque foi então que sucedeu, mesmo, a catástrofe
irreparável e definitiva: essa mesma bola incandescente de chumbo,
rme, mais alta do que um homem, fendeu-se pelo meio, sur¡indo de dentro
dela dois Gaviões, um macho e outro fêmea, os quais, como duas
flechas, cortaram os ares na direção do meu o, desferindo seus
piados, ásperos como um som de metal. Gaviões seriam esses,
Senhor Corregedor? Seriam dois daqueque tinham vindo com Sinésio e
que estavam sendo, naquele ~te, soltos na Praça? Seriam Gaviões
comuns, do Sertão, apappridos ali por acaso? Seriam os dois Gaviões
pertencentes à Moça Lana, a jovem e cruel Divindade negro-vermelha
da morte setaneja? Seriam enviados da Fatalidade astrosa, resolvidos a ~r
minha fronte com aquilo que o genial Poeta brasileiro Fagundes Varela chamava
“o sigilo do Gênio”? Não sei! Eu pensava que, assim
que eles me avistassem, iriam se desviar do Lajedo e de mim, como normalmente
acontece com os Gaviões, de modo que não tomei precaução
nenhuma para me proteger; e foi isso o que me desgraçou, Excelência,
porque foram eles que me cegaram, despedaçando e ferindo meus olhos
para sempre! – Dom Pedro Dinis Quaderna, não vou discutir se o senhor
está cego ou não. Mas uma coisa eu garanto, porque estou vendo:
teus olhos não estão despedaçados não, estão
aí, inteiros e limpos que fazem gosto! – Pode ser, Senhor Corregedor!
Para falar com exatidão, não lei, realmente, como foi que os
Gaviões agiram! Não sei se eles usaram o bico, as garras, ou
,se, apenas, se limitaram a encostar nos meus olhos, um em cada olho, o eu
de cada um, incendiado e flamejante! O que eu sei, porque ainda cheguei a
ver isso, é que eles fenderam os ares em minha direção
e, aproximando-se
com terrível rapidez, logo chegavam junto à minha cabeça,
em torno da qual começaram a esvoejar, como sempre acontece nos meus
ataques do “mal sagrado”. Apavorado, ouvi os estalos, os golpes
secos das suas asas que me arrodeavam a cabeça, cada vez girando com
mais velocidade. Tonteei, senti um calor estranho cercando minha cabeça
e a testa. Os olhos começaram a esquentar o doer, de modo insuportável.
Uma ventania de fogo soprou na minha cara. E alguma coisa eles devem ter feito,
porque, de repente, meus olhos estalaram, como milho no fogo, ou como se tivessem
sido chocados pela fornalha do Inferno. Foi a derradeira coisa que enxerguei,
Senhor Corregedor: ceguei imediatamente, com o sangue e as lágrimas
escorrendo, misturadas ao humor vital o salgado dos meus olhos despedaçados!
FOLHETO LXXV
O Ajudante de Profeta Com um grito de dor e desespero, ajoelhei-me na Pedra
o fiquei por ali, durante um bom pedaço de tempo, acariciando com as
duas mãos, do modo mais suave que me era possível, a região
que cercava meus pobres olhos dilacerados. Minha sensação era
de desespero total, convencido como estava de que meus olhos estavam irremediavelmente
cegos. E a influência dos Poetas brasileiros, principalmente a dos Acadêmicos,
é tão poderosa em mim que, na minha desgraça, as palavras
que me ocorriam para nomeá-la eram aqueles célebres versos do
genial pernambucano Eustáquio Gomes, que dizem: “A Cegueira é
o Inquilino dos Olhos, como a Ignorância é o locatário
de todas as Paixões malévolas”.
– Bonito! – disse o Corregedor.
– Também acho! – concordei. – Mas, mesmo assim, minha preocupação
era terrível! Seria que, cego, iria me tornar um ignorante, com a Ignorância,
locatária das Paixões malévolas, tornada inquilina da
minha cabeça através dos olhos inúteis? Será que
isso não iria me impossibilitar, burrificando-me, de ver realizado
o grande sonho da minha vida, o de me tornar “Gênio da Raça
Brasileira”? Eu sentia na boca um gosto estranho de metal salgado, que
devia ser o gosto ferrujoso do sangue e do sal das lágrimas
a escorrer dos olhos para a boca. Esse gosto fazia-me entender, ,,agora, o motivo
pelo qual os olhos dos Cegos sempre me tinham parecido, até então,
como que feitos de prata cegada ao Sol. É que eu sentia agora, em minha
própria Face cega, que meus olhos tinham sido transformados, pela Ave
de rapina do Sol sagrado, em dois globos de Prata derretida, globos que logo
se endureceriam, tornando-se opacos para sempre. Eu sabia, agora, que aquela
bola de chumbo derretido que povoara meus últimos instantes de visão,
e que acompanhava atualmente minha cegueira singular, nunca mais me abandonaria,
permanecendo comigo, pelo contrário, até o fim da minha vida.
– E o senhor ficou no Lajedo até a noite? – Não senhor! Enfim,
ficar ali é que não resolveria meu problema! Melhor, seria tentar
regressar aqui à Vila, para procurar o médico. Assim, tateando
e arrastando-me, queimando-me de novo nas Urtigas e ferindo-me nas arestas
da minha Pedra sagrada, comecei a descer o Lajedo, a fim de empreender meu
primeiro caminho de Cego, de volta para casa. Arranhando-me, magoandome de
todas as maneiras imagináveis, gemendo, imprecando em brados enfurecidos
contra a catástrofe divina e diabólica que desabara sobre mim,
consegui, finalmente, descer a Pedra, cruzar o pedaço de Tabuleiro
ladeiroso que fica entre ela e a estrada, e chegar, depois, ao lugar onde
se encontrava meu fiel cavalo “Pedra-Lispe”. Assaltava-me uma terrível
sensação de insegurança, agora que conseguira descer
do Lajedo, mas estava ali, inerme, no Tabuleiro. Era como se todos os perigos
do Mato sertanejo me rondassem. Tinha medo de encontrar uma Onça, uma
Cobra grande que me engolisse como engoliu Pedro Ventania, algum Novilho desgarrado,
selvagem e enfurecido que despedaçasse minhas tripas com as pontas
aceradas de suas aspas, ou alguma CobraCoral que, picando-me o tornozelo,
conseguisse injetar o sangue da Moça Caetana na corrente do meu sangue
real, através da figura, também real e mortal, dos Cristais
de seu veneno. Ouvi, então, “Pedra-Lispe” dar o ligeiro nitrido
com que sempre saúda minha aproximação. Seguindo a direção
desse som, consegui chegar até ele, abraçando-me então
com o nobre animal, em cujo pescoço, chorando, encostei a testa escaldante,
ainda furnegosa do fogo gaviônico que me cegara. Aí, Senhor Corregedor,
minha Divindade sertaneja deu-me um sinal, indicando que começava a
se amercear de mim. Ouvi uma voz que se aproximava, cantando pela Estrada,
como quem vinha da Vila de Estaca Zero para a Ribeira do Taperoaá.
A voz era fanhosa, rouca e áspera, e pareceu-me logo familiar. O que
mais me impressionou, porém, foi que ela vinha acompanhada pelos toques
prateados de uma Viola. Foram, novamente, os Cegos sertanejos que vieram à
minha imaginação, Senhor Corregedor. Agora, eu sabia, não
por fora, mas de dentro mesmo do sangue, por que é que a voz e a Viola
das pessoas que são cegas sempre me pareciam mais “de Prata”
do que as dos Cantadores comuns. Aí, já próxima a voz
deu um grito-de-guerra, dizendo: “Corre, meu Povo! Corre que o Alumioso
chegou e a Guerra do Reino vai começar!” E então entoou
uma estrofe corrida, que não me deixou mais nenhuma dúvida sobre
quem era o Cantador que vinha chegando. Os versos eram os seguintes: “Eu
sou Lino Pedra-Verde, sou Besouro de ferrão, eu sou a Tirana-Bóia,
perigo deste Sertão. Pra brigar no Ferro frio, não sirvo, não
presto não. Mas, solto aqui nesta Terra, com uma Viola-na mão,
eu sou Onça comedeira, Tigre e Rei do meu Brasão, sou Punhal,
bala de Prata, sangue de Cobra e Leão!” – Muito bem, Dom Pedro
Dinis Quaderna! – comentou o Corregedor. – De todas as suas charadas em verso,
esta é a mais fácil de decifrar, pelo menos para nós,
não é, Dona Margarida? Pelos versos, entendo que o Cantador
que vinha chegando era o tal do Lino Pedra-Verde, não é isso?
– É isso mesmo, Excelência, e dou ao senhor os meus parabéns
pela familiaridade que está começando a ter com meu estilo enigmático
e régio! – O senhor sabe que, segundo todo mundo fala, aqui na rua,
esse Lino Pedra-Verde, além de intermediário seu em vários
negócios escusos, é o elemento de ligação entre
o senhor e os fanáticos, tolos e ignorantes que o senhor conseguiu
aliciar para a tal Ordem da Pedra do Reino? Sabe disso? – Sei, sim senhor!
– E o senhor, sabendo disso, confessa que teve um encontro com Lino Pedra-Verde
na mesma hora em que mataram o “cabra”, a dois passos do lugar de
onde partiu o tiro? – Confesso, sim senhor, porque é a pura verdade
e eu sou incapaz de mentir, mesmo que isso me prejudique! – O encontro do
senhor com ele foi, mesmo, casual, como você deu a entender? Ou será
que houve alguma combinação prévia entre o senhor e Lino?
– O encontro foi casual, Senhor Corregedor! – Foi mesmo? Me diga uma coisa:
o senhor sabia que Lino Pedra-Verde devia vir à Vila, naquele Sábado?
– Sabia, sim senhor, porque ele não perde feira, aqui, e ora dia de
feira! – E sabia, também, que a Estrada por onde ele devia vir era
aquela? – Sabia, sim senhor! – Muito bem! Anote tudo isso, Dona Margarida,
é um dado fundamental para a decifração do caso! Pode
continuar, Dom Pedro Dinis Quaderna! – Os passos de Lino se aproximaram, Senhor
Corregedor. Eu não via nada, extraviado na cegueira! Aí, Lino
parou, o que sei porque-seus passos pararam, e houve um momento de silêncio,
durante o qual imagino que ele ficou me olhando estupefato, aterrorizado pelo
aspecto, na certa terrivelmente impressionador, do meu rosto manchado pelo
sangue e pelos humores que escorriam dos meus olhos dilacerados. Então,
após esse momento de silêncio e espanto, Lino Pedra-Verde falou:
“‘Dom Pedro Dinis Quaderna, meu Rei e meu Senhor! Que é que você
está fazendo aí, sozinho, parado no meio da Estrada? Estás
querendo dar parte de doido, Dinis?'” – Senhor Quaderna, quando fizer
a sua Epopéia, tenha cuidado com os pronomes de tratamento. Agora mesmo,
aí na frase de Lino, o senhor usou um tratamento todo solene no começo,
depois passou para “você” e finalmente para “tu”!
Cuidado, porque isso é um descuido grave, num Epopeieta! – Não
senhor, não foi descuido não, o senhor está enganado!
Os pronomes de tratamento que venho empregando são escolhidos com todo
cuidado! Para que o senhor entenda bem certas particularidades que Lino usava
no seu tratamento para comigo, é preciso que eu lhe explique certas
coisas. Primeiro, eu tinha procurado ensinar aos Cavaleiros da Ordem da Pedra
do Reino algumas fórmulas cerimoniosas tiradas dos romances de José
de Alencar e de Zeferino Galvão, este sendo um genial escritor pernambucano
e sertanejo, da Vila de Pesqueira, autor de O Mosteiro de Nimes e de Heloísa
d’Arlemont. Aquele “Dom Pedro Dinis Quaderna, meu Rei e meu Senhor”
que Lino me dera no começo vinha daí. Mas, ao mesmo tempo, meus
familiares ‘me tratavam por Dinis. Ora, Lino tinha sido meu companheiro na
“Onça Malhada” e meu colega na “Escola de Cantoria”
de João Melchfades, de modo que, ora usava o tom cerimonioso e régio,
ora o familiar. Aliás, essa mistura de tratamentos era e é tradição
da nossa Casa. Na Pedra do Reino, os súditos de meu bisavô Dom
João II, o Execrável, ora o tratavam de “Rei e Majestade”,
ora o chamavam “simplesmente de Joca”, segundo está escrito
na Crônica epopéica de Antônio Áttico de Souza Leite.
Assim, quando Lino se dirigiu a mim daquele modo, perguntando se eu estava
doido, absolutamente não estranhei a familiaridade dele. Limitei-me
a responder:-Você pergunta o que eu estou fazendo aqui, só, parado
na estrada? Estou aqui, me arrastando como posso, Lino, tentando voltar para
casa. É Lino, mesmo, que está aí, não é?”`É
ele mesmo, Dom Pedro Dinis Quaderna!’, disse Lino, convicto. `Estou indo aqui,
em demanda do Taperoá, porque vai haver lá, a maior confusão.
Vai se abrir um boi-de-fogo danado, lá, agora, e eu quero estar na
rua para entrar de cu-de-boi adentro! Quero logo lhe avisar que estou com
a gota-serena, ouviu?’ ” – Com a gota-serena? – estranhou o Corregedor.
– É verdade, Senhor Corregedor, e, para falar a verdade, não
teria sido necessário que ele dissesse isso, para eu -saber. Pelo acento
delirante e arrebatado de sua voz, eu já tinha conhecido, desde a chegada
dele, que Lino tinha tomado uma ou duas lapadas do “vinho encantado e
sagrado” da Pedra do Reino. Assim, o que me espantava, não era
ele “estar com a gota-serena” e com a “molesta dos cachorros”,
pois é assim que o Vinho sagrado nos deixa sempre. O que me admirava
era ele não demonstrar nenhuma estranheza por me ver ali, cego, com
o rosto todo ensangüentado. Resolvi então chamar a atenção
dele para isso: -Você deve estar espantado, Lino, por me ver assim,
com o rosto cheio de sangue!’, disse.
-Você, Dinis? Que nada! Sua cara está limpa como o Sol!’ “`O
quê, Lino?’, estranhei, espantado. `Que é que você está
me dizendo?’ -Eu é que pergunto o que você está me dizendo,
Dom Pedro Dinis! Você parece que tomou, também, e mais do que
eu, umas lapadas do nosso Vinho? Ou foi a aparição da pantarma
do Prinspo que endoidou você? Aí, na sua cara, não tem
sangue de qualidade nenhuma, Dinis!’ “‘E meus olhos, Lino? Não
está saindo sangue deles, não?’ -Está nada, meu Senhor
Dom Dinis! Por que você pergunta isso?’ -É que estou cego, Lino!
Ceguei dos dois olhos de uma vez!’ -Coitado do Rei! Coitado de Quaderna!’,
disse Lino, cuspindo
de banda e acrescentando, enquanto eu ouvia o som de suas
mandíbulas mastigando a `erva-moura’ da Pedra do Reino, que eu
lhe ensinara a mascar: `Como foi que o senhor cegou? Faz tempo?’
-Faz muito não, Lino! Foi agora mesmo, ali, em cima do
meu Lajedo sagrado! Mas o que eu estou admirado é de meu rosto não
estar cheio de sangue, porque senti perfeitamente quando o sangue escorreu
dos meus olhos.’ ” `Ah, e o sangue correu dos seus olhos, foi, Dinis?
Como foi isso? Você estuporou, foi?’ “‘Sei não, Lino! Sei
que almocei, comi carne-de-sol com paçoca, tomei umas lapadas do Vinho
Tinto da Malhada, dormi, e, quando acordei, foi com o Sol na cara e nos olhos!
Com isso, comecei a avistar umas coisas esquisitas, lá por cima da
casa de meu Padrinho, Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, que a gente
avista daqui, como você sabe. De repente, comecei a ouvir e ver, na
Estrada, umas coisas esquisitas também – uns miados de Onça,
uns esturros, uns piados de Gavião, batidas de cascos de cavalos e
chiados de rodas de carreta. Aí, dois Gaviões me atacaram, esvoaçando
e batendo as asas em redor da minha cabeça. Daí em diante, não
sei mais o que foi que aconteceu não, Lino. Sei é que, de repente,
meus. olhos começaram a esquentar, senti aquela dor desadorada, eles
chocaram, estalaram, e eu ceguei!’ “‘Jesus, minha Nossa Senhora! Então
você ouviu essas coisas passando na estrada, foi? Era ele, não
era?’, indagou Lino, em delírio, sem ligar muito para o que me acontecera
e pensando, só, no rapaz do cavalo branco.
“‘Ele, quem?’, perguntei espantado, porque, com os olhos daquele jeito,
a lembrança de Sinésio não me ocorrera, absolutamente,
depois do aparecimento dos Gaviões.
“‘Era o nosso Prinspo, Dom Sinésio, o Alumioso, que voltou,
Dinis!’, gritou Lino? Que é que você está dizendo?’, perguntei,
“`O quê, Lírio? Que é que você está
dizendo?’, perguntei, incrédulo, e atribuindo sua exaltação
a uma doideira causada pelo Vinho da Pedra do Reino.
“`Bem que você nos dizia, meu Rei Dom Pedro Dinis Quaderna!’,
continuou Lino, exaltando-se cada vez mais. `Bem que você profetizou,
para a era entre 35 e 38, o aparecimento do rapaz do cavalo branco, no Almanaque
do Cariri! Venha, venha comigo! Vamos pra Taperoá, porque o Prinspo
do Cavalo Branco ressuscitou e vai começar a tribuzana, o boi-de-fogo
da Guerra do Reino do Sertão!’ “‘Lino, deixe de conversa!’, adverti-o.
`A gente está falando numa coisa e você vem com outra! Falei
que apareceram umas coisas em cima da casa de meu Padrinho, mas não
era sobre Sinésio que eú estava falando não! Escute o
que estou lhe dizendo, homem! Estou. cego, e estou é espantado porque
você não vê sangue na minhã cara! Como é
que você não está vendo isso, se eu senti o gosto da água-dos-olhos
misturada com sangue, na minha boca? Senti perfeitamente quando meus olhos
se rasgaram, deixando escorrer para baixo a água-da-vista! Tenho certeza,
porque ainda estou sentindo, inclusive, o gosto de metal enferrujado que tudo
isso deixou na minha boca!’ `Bem, Dom Pedro Dinis, disso aí eu não
me espanto não, porque, quando eu apareci ali, naquela curva da Estrada,
você estava aqui, parado no meio do tempo, feito doido, com sua faca-de-ponta
atravessada na boca!’ “`A faca? Na boca?’, falei eu, meio apalermado.
“`Sim!’, insistiu Lino. `Quando eu apareci, você estava mordendo
a faca, feito doido! Eu lhe digo mais uma coisa: eu quase corro, com medo,
porque, do jeito que você estava, de alpercatas de rabicho, roupa parda
e chapéu de couro na cabeça, com a faca assim na boca, feito
um cachorro da molesta, parecia uma assombração de Cangaceiro,
aparecida e visageada no meio do Mundo! Deve ter sido a faca-de-ponta que
lhe deu esse gosto de metal e ferrugem na boca! Você estava com ar de
leso, mordendo a bicha o passando a língua nela! Quando eu fui chegando,
você, certamente, sem se sentir, tirou a faca da boca e ficou com ela
na mão!”‘ – E era verdade isso que ele dizia? – indagou o Corregedor.
– Era, sim senhor! – Anote isso, Dona Margarida, é importante! O
senhor estava com a faca na mão, não foi isso que o senhor disse?
– Foi, sim senhor! Só quando Lino disse aquilo foi que eu notei que
estava, de fato, com a faca ainda na mão! Eu me lembrei então,
vagamente, de que, quando tinha começado a descer o Lajedo, tinha tirado
a faca da cintura, colocando- travessada na boca para o caso de precisar dela.
Enfiadíssimo, envergonhado diante daquele meu súdito e seguidor
que me surpreendera numa leseira daquela, meti de novo a faca na bainha e
falei para Lino, ainda duvidoso: “`Quer dizer que meus olhos estão
inteiros, Lino?’ “`Estão, Dinis velho!’, respondeu ele, com segurança.
“`Então como é que se explica que eu esteja cego, cego
de guia? Não estou vendo você não! Não estou vendo
nem a claridade do Sol! Quando olho para ele, só vejo é aquela
bola de prata, boiando no fogo!’ ” `Então vá ver que o
que você fez foi estuporar mesmo, como eu tinha pensado, Dinis! Também,
você é doido e extravagante que só a peste! Que extravagância
mais desadorada essa sua! Comer carne-de-sol, assim, tomar vinho e se espichar
em cima do lajedo, o coisa conhecida, é danado pra estuporar! É
morte ou cegueira certa, e cegueira dessas da gota-serena! Vou lhe dizer uma
coisa, meu Rei velho de guerra: você ainda teve sorte! Podia ter estuporado
por um lugar menos sadio, e aí era morte certa! Assim, estuporando
pelos olhos, felizmente não morreu, só fez foi cegar! Quer que
eu lhe sirva de guia até a rua?’ “`Quero, Lino, me faça,
esse favor!’ “`Pois então chegue aqui, venha montar no “Pedra-Lispe”!
Eu lhe ajudo!’ “Não, espere! Deixe, primeiro, eu tirar o manto
da Ordem de Distinção da Pedra do Reino!’ “`Não,
não!’, protestou Lino. `Tirar o manto pra quê? Logo agora, numa
hora dessas, quando o Prinspo Alumioso ressuscita o volta, é que o
Rei quer tirar o manto? Dom Pedro Dinis, não me diga que você
perdeu a fé! Não me diga que sua Profecia estava errada! Não
me diga que não foi o nosso santo Alumioso que voltou!'” O Corregedor
interrompeu: – Ele fez, mesmo, essa referência, clara assim, ao rapaz
do cavalo branco? – Fez, sim senhor! Eu, porém, no centro da catástrofe
que me ferira, não tinha dado, até ali, às palavras estranhas
de Lino, a atenção que elas mereciam. O que me chegara até
ao juízo, por entre a poeira e o sol do meu desgosto, eu tinha atribuído
ao vinho e à erva-moura do Reino. Agora, porém, já ia,
aos poucos, me acostumando à desgraça e começava a voltar,
mais, à realidade. Por outro lado, ele falara, agora, de modo tão
claro, que comecei a suspeitar de que alguma coisa de terrível importância
estava sucedendo ou começando a acontecer. Já montado em “Pedra
Lispe”, que Lino segurara pelo cabresto e ia puxando, falei para ele:
“‘Lino, que história é essa que você está
dizendo aí? Você falou na ressurreição do Príncipe
do Cavalo Branco, foi? Que história é essa?’ `Que história
é essa? Que história é essa, uma porra! Você, Dom
Pedro Dinis, você que é nosso Rei e Profeta, está duvidando?
Até nem parece que foi você quem sustentou a Fé da gente,
durante esses cinco anos! Olhe, Dinis, vou lhe dizer uma coisa: aconteceu
hoje, aqui na Estrada, ainda agora, a coisa mais sagrada que podia nos acontecer!
Eu estava em Estaca Zero. Saí para um roçado, e tive uma visagem,
no caminho, uma coisa horrorosa, um Cavaleiro do Inferno que depois lhe conto!
Voltei para a rua, o encontrei lá o maior cu-de-boi que se possa imaginar!
Parecia que o mundo estava se acabando: era menino chorando, era grito de
mulher tendo ataque, era o Diabo! Vendo que a gritaria era maior do que um
estrupício comum, perguntei o que tinha acontecido. Me disseram que
tinha passado uma Cavalhada, toda luzida, com um Frade e uma bandeira na frente,
e com um rapaz no meio, montado num cavalo branco! Aí, Dinis, fui eu
que fiquei feito doido! E não era para menos, porque isso era o que
você e o Profeta Nazário tinham profetizado todo ano, desde 1930,
no Almanaque do Cariri, desde que roubaram e mataram o filho mais moço
do nosso Rei Degolado, Dom Pedro Sebastião! É o nosso Prinspo
Alumioso do Cavalo Branco, que voltou ressuscitado, para fazer a desgraça
dos ricos e a felicidade dos pobres aqui do Sertão! Ah, meu velho Dinis,
você não imagina o burburinho que aquele Povo todo estava fazendo,
na Estaca Zero! Estava tudo com ar de doido, e eu só ouvia era os gritos!
Um dizia: “O Prinspo da Pedra do Reino voltou e passou aqui pela estrada,
em procura de Taperoá! ” Outro gritava: “Vou ver se tenho
a sorte dele me aceitar pr’a Guerra do Reino, porque então ressuscito
com ele e nunca mais morro!” O pessoal da Cavalhada do Prinspo, Dinis,
tinha passado por Estaca Zero sem parar, galopando, de modo que o Povo, meio
ourado, não tinha tido a idéia de seguir atrás dela.
Eu, por mim, como lhe disse, tinha chegado atrasado. Assim, só quase
uma hora depois que passou a Cavalhada, foi que o primeiro devoto meteu o
pé na Estrada, mas, agora, já está tudo quanto é
de gente vindo de Estaca Zero, a pé, por aí, de Estrada afora!
Eu tive a sorte de amorcegar um caminhão, que me deixou no Cosme Pinto!
Pelo pessoal do caminhão, soube que o primeiro tiroteio da Guerra do
Reino já aconteceu, perto dum Lajedo, entre Cosme Pinto e Estaca Zero.
Venho, por isso, na frente do pessoal da minha rua, mas de qualquer modo,
me atrasei da Cavalhada do nosso Prinspo. Agora, vou chegando a Taperoá,
e, se Deus quiser, a Guerra do Reino vai começar comigo já dentro
dela! Agora, eu lhe pergunto uma coisa: você, que estava aqui na Estrada,
viu passar por ela o nosso Prinspo? E se esse rapaz que veio por aí,
montado num cavalo branco, for, mesmo, o nosso Alumioso, você conhece
ele?’ “`Eu sei lá, Lino Pedra-Verde! Se fosse antes, eu conhecia!
Mas assim como estou, cego, sei lá!’ “`É mesmo, isso é
o Diabo! Isso era, lá, hora de cegar, Dom Pedro Dinis Quaderna! Sem
você, sem uma pessoa filantrópica como você – que é
entendido no Lunário e em outras coisas litúrgicas – o nosso
Reino não vai de jeito nenhum! Só você é capaz
de decifrar esse entrançado! O que foi que você disse que viu
aqui na Estrada, antes de eu chegar?’ “`Não posso lhe dizer direito
ainda não, Lino, porque foi tudo muito confuso! O que eu posso lhe
garantir é que, pouco antes de cegar, eu vi passar, ou melhor, eu ouvi
passar pela Estrada, uma tropa de Cavaleiros, com as rodas das carretas chiando
e com uns miados que pareciam de bichos de Circo enjaulados! Na verdade, não
posso dizer que vi nada, porque estava já, naquela hora, com os olhos
encandeados e magoados pelo Sol! Mas, se l não cheguei a ver, mesmo,
os cavalos e os Cavaleiros, vi as imagens deles, projetadas na poeira, iluminada
pelo Sol!’ “`Ave Maria!’, gritou Lino, entusiasmado. ‘E como é
que, tendo visto uma coisa dessas, você, meu Rei, ainda tem coragem
de dizer que não viu nada? Viu, você viu! Viu, e vamos embora
logo, para a rua, porque é ele! Ah, Seu Dom Pedro Dinis Quaderna, está
esquecido daquilo que você mesmo escreveu, na Profecia do começo
deste ano, no Almanaque? Vamos pra Taperoá, porque essas imagens que
você viu é a lanterna-mágica do Sol, é o Cosmorama
da Pantasmagoria que Frei Simão, e a Velha do Badalo profetizaram para
a volta do nosso Prinspo, Dom Sinésio Sebastião, o Alumioso!
“‘ – A Velha do Badalo? – estranhou o Corregedor. – Também é
Profetisa? – É, sim senhor, se bem que seja, mais, do tipo de Profeta
de folheto! O “Badalo” é uma terra que tem, aqui em Taperoá,
e que só dá doido! A velha Maria Galdina é de lá,
e vive cantando umas modas-antigas, umas cantigas-velhas, do tempo do ronca
e de Dom Pedro Cipó-Pau! No Almanaque do Cariri do ano de 35 eu tinha
publicado uma dessas cantigas, e Lino, agora, pelo que eu via, estava achando
que essa cantiga se referia era à chegada de Sinésio! – Entendi!
– disse o Corregedor, cortante. – Estou entendendo tudo, Dom Pedro Dinis Quaderna,
e o papel que você desempenhou nisso tudo está cada vez mais
claro para mim! Pode continuar! Ah, nobres Senhores e belas Damas! Eu sentia,
perfeitamente, que estava me enredando cada vez mais no novelo-de-cobras que
o Destino tinha fiado para mim. Mas o que é que podia fazer? Continuei:
– Lino continuava falando na maior exaltação, Senhor Corregedor,
já agora ligando minha cegueira à reaparição de
Sinésio. Dizia ele: `Sabe duma coisa, Dinis? É bem possível
que não tenha sido estuporamento! Vá ver que foi a Visão
da Pantasmagoria do Prinspo que cegou você! Você, Dinis, apesar
de Rei e Profeta, é homem safado e pecador! Talvez esteja com algum
pecado cabeludo nessa sua consciência preta, e foi por isso que não
teve o direito de avistar o nosso Prinspo Alumioso da Bandeira do Divino!
Você mesmo escreveu na sua Profecia deste ano que o nosso rapaz santo
teria de voltar como Criatura pura e limpa de toda mancha! Ora, é claro,
claríssimo, que uma Criatura assim não pode ser avistada por
um sacana como você! Mas, por outro lado, pecador ou não pecador,
de consciência limpa ou podre, está escrito que o Reino só
vai para o Prinspo pela mão daquele que é o Rei e o Profeta
da Pedra do Reino! É por isso que, se você não foi capaz
de ver o Prinspo, pôde, pelo menos ver o Cosmorama dele! E basta! Tendo
visto isso, sua obrigação, Dinis, é reunir o Povo lá
em Taperdá, contando para todos como vai começar a Guerra do
Reino do Sertão do Brasil! Vamos embora, Dom Pedro Dinis Quaderna!
Vamos, que o Sol está se chegando para o poente, e eu quero chegar
na Vila com ele ainda de fora, com luz que dê para eu ver a cara alumiada
do nosso Prinspo!'”
Livro V – A Demanda do Sangral
A Gruta Sumeriana do Deserto Sertanejo – Quando chegamos aqui à Vila,
Senhor Corregedor, encontramos a rua subvertida pelo grande acontecimento!
Os Burgueses e os “senhores feudais da Aristocracia rural” – como
chama Clemente – certos de que a Revolução Comunista tinha começado,
tinham se trancado a sete chaves e, depois, ido para a reunião com
o Bispo, como já contei. Mas a rua estava cheia de gente do Povo, de
modo que, à medida que eu passava, se não via nada, ia ouvindo
os gritos, os choros e as imprecações “da Plebe sertaneja,
suja, mal-lavada, malcheirosa e fanática”, como diz Samuel. Pedi
a Lino Pedra-Verde que me levasse diretamente para minha casa, aquela que
é pegada à Biblioteca, e que, depois, voltasse à rua,
para se informar, o mais discretamente possível, do que acontecera,
para, assim, me fazer uma narração segura de tudo. Arriei na
minha espreguiçadeira e Lino saiu para cumprir o meu mandado. Daí
a pouco voltava ele, ainda mais excitado. Narrou-me tudo: a chegada de Sinésio,
a emboscada do lajedo, o atentado da rua, a morte do “cabra”, e
a visagem do Profeta Nazário, devidamente completada pela de Pedro
Cego. Eu vi, logo, imediatamente, que estava diante de acontecimentos decisivos
para o meu Destino. Eram acontecimentos zodiacais e astrológicos, que
interessavam não somente à sorte do Brasil, mas à Obra,
ao Castelo Sertanejo que estava para ser edificado pelo Gênio da Raça
Brasileira – o Assinalado que estava predestinado a cantar aquela sorte e
aquele Prinspo. Pedi então a Lino que fosse procurar Clemente e Samuel,
avisando-os da desgraça que se abatera sobre mim e solicitando a presença
urgente deles, pois eu tinha gravíssimos assuntos a discutir com os
dois. Lino Pedra-Verde foi encontrá-los reunidos, na casa de Clemente,
que era a mais próxima, pegada à minha. Estavam agarrados numa
discussão ardorosa, motivada, como não podia deixar de ser,
pela reaparição milagrosa e enigmática de Sinésio,
e pelas visagens que Nazário e Pedro Cego tinham comunicado à
multidão, assim como, principalmente, pelo verdadeiro sentido político
daquilo tudo e das repercussões que estavam tendo perante o Povo. Como
a casa de Clemente era bem perto, eles não demoraram a chegar, conduzidos
por Lino Pedra-Verde, para a sala da frente, pegada à Biblioteca, onde
eu me encontrava. Ambos estavam, ainda, com as roupas de cerimônia com
as quais tinham comparecido ao Palanque, e foi assim, de togas sobrepostas,
que entraram na sala onde eu, acariciando a testa em torno dos olhos irremediavelmente
despedaçados, continuava sentado na espreguiçadeira, imerso
no maior desespero, na maior desolação que se possa imaginar.
Meus dois Mestres estavam profundamente perturbados. Não com minha
cegueira, mas com a ressurreição de Sinésio. De fato,
a nossa situação diante da família de meu Padrinho levava
a isso. Eu, parente, agregado e protegido, era mais velho do que Arésio
somente três anos, e treze mais do que meu sobrinho e primo Sinésio.
Eu, Clemente e Samuel tínhamos morado muito tempo na “Onça
Malhada”, na casa do velho Rei Degolado, Dom Pedro Sebastião.
Clemente e Samuel, porém, eram bastante mais velhos, de modo que tinham
assistido, já como adultos, o nascimento de Arésio e Sinésio,
assim como o do outro filho de meu Padrinho, o bastardo Silvestre. Tinham
sido, mesmo, como que os preceptores e pedagogos nossos, meu e, mais especialmente,
dos três Príncipes, Arésio, o Proscrito, Silvestre, o
Bastardo e Sinésio, o Alumioso. Até aquele dia, ambos tinham
como certa a morte de Sinésio. Agora, de repente, daquela maneira miraculosa,
aparecia o Mancebo ressuscitado, para reivindicar seus direitos à herança
e à vingança do Pai. Sim, porque essa era a opinião unânime
do Povo: chegara o justiceiro, o vingador esperado. O fato é que, talvez
por causa disso, nem Samuel nem Clemente se dignaram dar importância
à minha cegueira. Talvez fosse por causa da inumanidade que caracteriza
sempre os grandes homens, que não costumam descer de suas altas preocupações
para dar importância a coisas de pouca monta como a simples desgraça
individual de um ser humano. Talvez fosse porque nunca me levavam realmente
a sério, considerando-me um ex-discípulo que, para vergonha
sua, tinha se tornado apenas um charadista e Decifrador, indigno das preocupações
e da compaixão deles.
– Será que eles se aperceberam, logo, de que o senhor estava cego?
– indagou o Corregedor.
– Se aperceberam, Senhor Corregedor! A princípio, imaginei que Lino
não dissera nada e eles ignoravam o fato, apesar de que, como eu vim
a saber depois, o Cantador caolho dera com a língua nos dentes inclusive
na rua, onde a notícia logo se espalhou no meio do Povo, como uma faísca
elétrica. Mas, além disso, Lino tinha contado tudo diretamente
aos dois. Mesmo assim, quando pies entraram na sala, ignoraram minha catástrofe.
Dirigiram-se a mim, mas foi para continuar a conversa que Lino interrompera
e para comentar o estranho caso da ressurreição de Sinésio,
com as profecias e tudo. O mais animado, -no momento, era Clemente. Samuel,
apesar de todos os esforços que fazia para esconder isso, estava inquieto
com a possibilidade de aquilo ser, mesmo, uma Coluna comunista. “Se assim
for”, dizia ele, “isso significará meu fuzilamento sumário
pela Canalha.” As dúvidas, porém, permaneciam de parte
a parte, a Esquerda também estava inquieta, porque Clemente, por sua
vez, não estava ainda muito seguro sobre “a verdadeira orientação
ideológica” daquele estranho grupo de Ciganos. Notei, mesmo, que
meus dois Mestres estavam se tratando mutuamente com grande cortesia, o que
absolutamente não era comum. Depois é que eu entenderia o motivo
disso: tinham feito uma espécie de pacto de garantia mútua.
Se a Coluna fosse da Esquerda – como pensava o Comendador Basílio Monteiro
– Clemente protegeria e esconderia Samuel, que faria o ,Mesmo com o rival,
caso o grupo de Luís do Triângulo e do Cigano se revelasse como
da Direita. Eu, vendo que eles, absolutamente, não tomavam conhecimento
da minha desgraça, arrisquei timidamente, na primeira pausa, uma informação
e uma queixa a respeito da catástrofe-trágica que introduzira
a Cegueira entre os inquilinos de meus olhos, entre as minhas Paixões
malévolas, “entre as vicissitudes da minha atribulada existência”.
Os dois mal conseguiram fingir um interesse distraído pelo fato. Samuel
veio logo com as Literaturas direitistas dele, para me consolar: “`Olhe,
Quaderna’, disse ele, sério, `isso que, à primeira vista, parece
uma desgraça, pode até ser uma coisa benéfica, pelo menos
para você, que deseja ser um Poeta épico e fazedor de romances,
como nos confessou hoje! Aliás, só lhe dou essas informações
porque minhas idéias são outras e o fato de você fazer
um romance não me causa prejuízo nenhum. Já lhe disse
que, na minha opinião, a Obra da Raça Brasileira será
um livro de poemas cifrados, um livro que só um Poeta, aqui, é
capaz de fazer!’, disse ele, com um tom presunçoso que me irritou ainda
mais. E acrescentou: `Mas você tem outro pensamento, acha que deve escrever
algo no gênero épico. Pois siga esse caminho. Dou-lhe, de graça,
um conselho: por que você não escreve uma espécie de “romance
brasileiro e medieval de cavalaria”, parecido com os do- genial escritor
pernambucano de Pesqueira, Zeferino Galvão, aproveitando para isso
a Crônica da família Garcia-Barretto? Você deveria partir
não de seu Padrinho, mas da ressurreição maravilhosa
desse rapaz do cavalo branco! Mesmo pertencendo a essa Aristocracia bárbara,
bastarda e corrompida do Sertão, Sinésio é um Barretto,
um descendente, portanto, da ilustre estirpe pernambucana dos Morgados do
Cabo. Assim, se você contar a história dele, pode, através
disso, reintegrar, nela, o Brasil em seu verdadeiro caminho, no caminho ibérico-flamengo!
Note que o genial Zeferino Galvão, apesar de nunca ter saído
de Pesqueira, só escrevia seus romances com ação passada
na Provença, dando, com isso, uma grande prova de fidelidade às
raízes da nossa fidalga Raça! Ele escreveu uma trilogia chamada
Heloísa d’Arlemont, composta de três obras geniais, A Corte de
Provença, O Mosteiro de Nímes e A Guerra dos Camisardos. Na
minha opinião, a Obra da Raça deve ser escrita em versos e por
um Poeta. Mas já que você deseja ser Poeta épico, escolha,
para escrever sobre o rapaz do cavalo branco, um romance de cavalaria, ibérico-flamengo
e brasileiro, como os de Zeferino Galvão, ou mesmo, de certa forma,
como os desse romancista para adolescentes, José de Alencar, que você
tanto admira, com seus gostos de leitor de almanaques!’ “Na mesma hora,
Senhor Corregedor, Clemente começou a protestar, querendo levar Zeferino
Galvão no ridículo, atrevimento do qual só recuou quando
soube que o grande escritor da Vila de Pesqueira tinha sido membro do Instituto
Arqueológico de Pernambuco e, portanto, um escritor acadêmico,
consagrado e indiscutível. Mas, mesmo recuando nessa parte, continuou
discordando de Samuel: “‘Olhe, Samuel’, disse ele, ‘não quero
ser indelicado com você, principalmente tendo nosso pacto em vista.
Mas discordo de uma porção de coisas, aí no que você
disse. Em primeiro lugar, a Obra da Raça Brasileira tem de ser um livro
filosófico-revolucionário, escrito em Prosa e por um Filósofo,
um homem mergulhado pelo sangue e pela cultura na realidade social do nosso
País. Mas, mesmo que a Obra da Raça devesse ser épica,
como pensa Quaderna, não poderia, de modo nenhum, ser um ridículo
romance de cavalaria ibérico; flamengo! Deveria ser, sim, um romance
picaresco, satírico e popular, como já provei hoje pela manhã,
um romance sem herói individual – coisa ultrapassada e reacionária
– e cujo personagem fosse um homem-povo, um símbolo da fome e da miséria,
enfrentando os Poderosos pela astúcia, errante e mal-andante pelas
Estradas sertanejas! Esse Zeferino Galvão, genial como fosse, era um
traidor do Brasil!’ “‘De jeito nenhum, Clemente, desculpe o que lhe digo!’,
tornou Samuel, sempre procurando ser delicado, por causa do pacto. ‘Acho perfeitamente
legítimo que um escritor brasileiro, desgostoso com os plebeísmos
e misturas que corromperam o início fidalgo da nossa Raça, escreva
sobre outro tempo e outro lugar, como fazia Zeferino Galvão com a Provença
do século XVII. Que culpa tinha esse pernambucano ilustre de que a
realidade atual do Brasil não esteja à altura dos nossos sonhos
de Poetas fidalgos? Acho que essa escolha de Zeferino Galvão é
até uma prova de bom gosto, porque, quando a gente deixa a realidade
mesquinha e vulgar, pode exilar das nossas Obras a vida grosseira e manchada,
deixando lugar somente para a imaginação, a Legenda e o sonho!’
“`Olhe, Samuel’, objetou Clemente, `entenda que minha crítica
não é feita por Zeferino Galvão ter saído das
fronteiras convencionais do Brasil, não! O que eu critico é
que, ao sair dessas fronteiras, ele não tenha seguido o caminho mouro
e etiópico, caminho que, este sim, reconduziria o Brasil a suas verdadeiras
raízes!’
“‘Nada disso!’, insistiu Samuel. ‘Zeferino Galvão só não
acertou inteiramente porque, ao deixar essa terra de Cafres e gaforinhas em
que se tornou o Brasil, escolheu a Provença, terra que, sendo ainda
meio ibérica, é ainda meio morena! De gente moreno-ibérica,
já nos bastam o sangue português e o espanhol, que vieram a princípio
mas que, depois, com a negralhada que se meteu, foi se perdendo e abastardando.
O que é necessário agora, para recuperarmos o sangue da Raça,
é um bom contingente de sangue nórdico, para fundir assim, no
nobre cadinho brasileiro, a raça de Fidalgos brasileiros dos nossos
sonhos!”‘ O Corregedor interrompeu, observando: – Noto, Dom Pedro Dinis
Quaderna, que havia certa semelhança de idéias e de palavras
entre o Doutor Samuel e Gustavo Moraes.
– É verdade, Senhor Corregedor. Para ser justo, devo dizer que Samuel
já tinha muitas dessas idéias, esboçadas há muito
tempo. Mas depois que Plínio Salgado passou aqui, no Sertão
do Cariri, e principalmente depois que Gustavo Moraes veio do Recife para
cá, essas idéias receberam grande impulso e uma nova formulação.
Havia, aqui na Paraíba, no grupo do jornal A União, três
escritores que influenciavam Samuel nessas fidalguias ibéricas, isso
antes do Integralismo: eram Carlos Dias Fernandes, Eudes Barros e Ademar Vidal.
Pois foi na linha de tudo isso que ele concluiu, naquele dia, dizendo: “Zeferino
Galvão, a meu ver, deveria ter escolhido a Flandres, ou talvez, melhor,
a Borgonha, que, ficando a meio caminho entre a Ibéria e a Flandres
e tendo tido um mestiço de nórdico-português, Carlos,
o Temerário, como seu último Duque, serviria melhor para auscultar
os ritmos do sangue da nossa Raça, o que digo de dentro do problema
e por experiência própria, porque, como legítimo Wan d’Ernes
que sou, ! sou um legítimo Fidalgo ibérico-flamengo e brasileiro
Assim falou Samuel, Senhor Corregedor, e meu sonho de ser o Gênio da
Raça Brasileira me tornava de tal modo possesso da Literatura, que,
a despeito de toda a minha desgraça, aquelas conversas estavam, já,
começando a incendiar minha cabeça. Meu objetivo secreto era
erguer, eu mesmo, o meu Castelo, conciliando aquelas opiniões, irredutivelmente
contrárias e incompletas, de Samuel e Clemente. Eu escreveria uma Obra
em prosa, como queria Clemente. Mas essa Obra em prosa seria animada pelo
fogo subterrâneo da Poesia o pelo galope do Sonho, como queria Samuel.
Seria escrita por um Poeta de sangue, de ciência e de planeta, toda
entremeada de versos e nela se uniriam, pela primeira vez, a Literatura sertaneja
de beira-de-estrada – na linha do Compêndio Narrativo do Peregrino da
América Latina – e a Literatura fidalga da Zona da Mata – na linha
de A Corte de Provença, de Zeferino Galvão. Por isso, já
começando a me esquecer um pouco da cegueira e também sem abrir
muito meu jogo para não esclarecer meus rivais, falei: `Olhem, para
mim, o problema não será, propriamente, descobrir como escrever
a história de Sinésio. Para mim, o que é, mesmo, indispensável,
é assistir a todos os acontecimentos, até o fim, para, assim,
saber de tudo e ter o que escrever! Como vocês já me provaram
muitas vezes, não tenho imaginação para inventar, só
sei contar o que vi. Ora, sei tudo o que se passou cóm os Garcia-Barrettos
até o dia de hoje. Daqui por diante, nessa questão o nessa guerra
que, pelo visto, vai se travar entre Arésio e Sinésio, o problema
fundamental é o do Testamento e o do Tesouro que o Pai deles deixou.
Pelo que estou entendendo, o Advogado do rapaz do cavalo branco, esse tal
Doutor Pedro Gouveia da Câmara Pereira Monteiro, sabe disso melhor do
que nós. Assim, será à busca do Testamento e do Tesouro
que ele encaminhará Sinésio. Pois bem: nessa história
toda, houve um acontecimento que, a meu ver, precisa ser bem interpretado,
porque pode ser a chave de muita coisa que já aconteceu e ainda vai
acontecer daqui por diante. Sabem o que é? É essa visagem que
o Profeta Nazário teve o que Pedro Cego completou. Você ouviu
a história deles, Clemente?’ “`Ouvi!’, disse o Filósofo,
com olhos acesos.
“`Qual é sua opinião sobre a visagem? Acha que é
coisa de pouca importância?’ “`Vamos em termos e por partes!’,
disse Clemente, cauteloso. `Acho, com você, que a visagem do Profeta
Nazário é coisa da mais alta importância. O que ela não
é, é visagem! Nada daquilo foi inventado, Quaderna. Nazário
e Pedro Cego devem ter visto alguma coisa que pareceu a eles tão estranha,
que eles falam disso em tom místico, reacionário e obscurantista.
Me digam uma coisa: eu já contei a vocês a aventura que me sucedeu,
certa vez, numa Catinga sertaneja e no decorrer da qual fiz uma descoberta
arqueológica da mais alta importância para o Brasil?’ “‘Não!’,
disse eu, acendendo, por minha vez, olhos rebrilhantes de curiosidade.
“`É verdade! Estou falando disso pela primeira vez, porque,
dada a importância da descoberta, eu queria guardá-la para o
meu Tratado da Filosofia do Penetra[. Mas, com os acontecimentos de hoje,
vou revelar tudo, desde que vocês me garantam segredo absoluto sobre
o que vão ouvir. Vocês garantem?’ “`Garantimos, Clemente!’,
dissemos eu e Samuel ao mesmo tempo.
“`Vocês já ouviram, alguma vez, alguma referência
à legendária Cidade cário-asteca, fenício-incaica
e egípcio-tapuia, soterrada aqui e ali no Sertão brasileiro?’
“‘Já ouvi algumas referências vagas!’, disse Samuel. ‘Sempre
pensei, porém, que essas histórias de inscrições
petrográficas fenecias, aqui, fossem intrujices de desocupados.’ q”‘Pois
você está enganado, Samuel!’, falou Clemente com ar grave. ‘Estudei
detidamente o assunto e posso lhe .garantir, hoje, ue os cário-troianos,
os astecas, os incas, os tapuias, os sumerianos, os egípcios, os fenícios
e os ciganos, tudo isso é uma coisa só! Aí por 1924 ou
1925, não me lembro direito, passou aqui pelo Sertão da Paraíba,
um sábio estrangeiro a quem os Sertanejos chamavam Ludovico Chovenágua.
Ele foi recomendado a nós pelo próprio Presidente daquele tempo
e eu tive oportunidade de lhe servir de guia, dando-lhe várias informações
que ele considerou preciosas e que transcreveu em seu livro, o safado, sem
comunicar a fonte em que bebera. Vou dar algumas indicações
que vão fazer vocês ficarem de queixo caído. Primeiro:
vocês sabem que as inscrições e desenhos petrográficos
brasileiros e sertanejos são feitos com “letras do alfabeto fenício
e da escrita demócrita do Egito?” Sabiam que existem, aqui no
Sertão, inscrições com “caracteres da antiga escrita
babilônica, chamada sumeriana?” Temos, também, alguns “escritos
com hieróglifos egípcios”, outros cretenses, alguns da
Cária – povo aliado dos Troianos, na Guerra de Tróia – da Ibéria
e da Etrúria. Um antigo funcionário da Comissão Brasileira
Demarcadora de Limites, encontrou, no Sertão, ruínas de uma
Cidade, que julgou “ser de origem fenícia”. E existem outros
dados. Os Fenícios, quando andaram por aqui, construíram vários
estaleiros, alguns com aterros e subterrâneos, e a maior parte deles
no Litoral do Estado do Rio Grande do Norte – em Maracu, no Lago Verde e no
Açu, assim como um, perto de Touros. Varnhagen conta como os Cários
e os Troianos, depois de derrotados pelos Gregos, na “Guerra de Tróia”,
emigraram para o Brasil, e cita inúmeras palavras comuns aos Tapuias,
Egípcios,Sumerianos e Cário-Troianos. Aliás, depois da
“Guerra de Tróia”, os povos aliados e confederados contra
os Gregos, fundaram várias cidades em homenagem a Tróia. Assim,
houve uma Tróia, perto de Veneza, outra no Lácio; houve uma
Tróia etrusca, outra na costa atlântica da Ibéria. A nós,
porém, interessa mais é o resto: à medida que todos esses
Povos contornavam a Africa e se dirigiam para o Brasil, não faziam
mais do que sentir o fascínio das origens e o desejo de regresso às
raízes Tapuias de que se originavam. Foi assim que se fundaram duas
Tróias no litoral brasileiro, uma no Rio Grande do Norte – cujo nome
virou, depois, Touros – e outra na Bahia – que virou Torre. Os Cários,
por sua vez, fundavam, no Sertão, a cidade de Carnatum, cujo nome,
com o decorrer do tempo, se corrompeu em Canudos. Sim, porque foi no Nordeste,
segundo afirma Ludovico Chovenágua, entre os Rios Tocantins e São
Francisco, que os Cários se estabeleceram. Vejam quantas coincidências
estranhas! Os Fenícios tiveram estaleiros no Litoral do Rio Grande
do Norte, sendo essa, talvez, a origem dos subterrâneos e aterros que
o gringo Edmundo Swendson encontrou na Fortaleza de São Joaquim. Por
outro lado, Canudos, o local da “Tróia Sertaneja”, foi fundada
pelos Cário-Troianos! Não é uma coisa maravilhosa? Pois
bem: mais maravilhoso ainda é o que me aconteceu. Durante as minhas
investigações arqueológicas e paleográficas, eu
me perdi, um dia, na Catinga sertaneja do Seridó, do Rio Grande do
Norte. Vocês sabem que essas inscrições o ruínas
encontram-se sempre em grandes aglomerados de pedras o lajedos. Pois bem.
Extraviado, encontrei, de repente, um amontoado de pedras com um buraco, que
parecia a entrada de uma gruta. Havia morcegos e maribondos, que espantei,
fazendo um facho de marmeleiro. Com essa tocha me servindo de lanterna, entrei
nó buraco, cheguei ao fundo, segui por um corredor lateral que era,
evidentemente, construído pela mão do homem, e assim, cheguei
ao fim do corredor, onde me encontrei numa vasta sala escavada na pedra. As
paredes eram recobertas por murais, com guerreiros sumerianos, sacerdotes
astecas, reis incas, sacerdotisas cárias nuas – estas com os peitos
desnudos pintados de amarelo, com o ventre, os braços e o rosto pintados
de vermelho. O mais estranho é que havia uma semelhança completa,
não só nos tipos físicos representados, como nos ornamentos
e roupas dos personagens. Da sala, saíam corredores e compartimentos
menores. Num deles, encontrei diversas múmias, deitadas no chão,
arrumadas umas ao lado das outras. Perto delas, havia enormes discos de pedra,
divididos em doze setores uns, em dezesseis, outros, cada setor com um signo
particular. Todos tinham semelhança com os chamados “relógios
astecas” a que Alexandre Borghine depois fez referência em seu
livro, publicado em 1923. O mais importante, porém, é que havia,
numa sala cujas paredes de pedra eram decoradas com animais – Onças,
corças, Gaviões, seriemas, emas, etc. – um tesouro incalculável,
de cintos, colares, coroas e jóias, tudo incrustado de diamantes, topázios
e águas-marinhas!’ “E você tirou alguma coisa, Clemente?’,
perguntei de ventas e olhos acesos de excitação, apesar de sentir
nas palavras graves do Filósofo um cheiro de intrujice muito meu conhecido.
“Não, estava tudo encaixotado, em caixotes pesadíssimos!
Por outro lado, eu estava apavorado, com medo de me perder. Voltei na carreira,
sal da Furna, e voltei para o campo raso, a fim de procurar, de novo, o caminho
de volta. No outro dia, sem dizer nada a ninguém, voltei com um Vaqueiro
experimentado ao local em que pensava ter me perdido, mas não houve
jeito de achar mais a entrada. Todos os aglomerados de pedra se pareciam uns
com os outros, de modo que terminei desistindo. Enfim, o importante é
que, de fato, Nazário e Pedro Cego podem ter achado ou esse lugar ou
outro parecido, deixado, também, pelos Cário-Tapuias e Fenícios.
A maneira como eles contaram a história, é meio mística
e reacionária. Mas, de fato, se nós conseguíssemos reencontrar
uma Furna dessas, o achado e a revelação do Tesouro podem ser
da mais alta importância, tanto para minha visão-filosófica
do Mundo, como para a nossa Cultura e, sobretudo, para os fundamentos da Revolução
Brasileira!'” – Quando Clemente concluiu a narração de
sua aventura extraordinária, voltei-me para Samuel e indaguei: “E
você, Samuel? Nas suas aventuras e desaventuras de Fidalgo, andando
pelos Engenhos pernambucanos, fez alguma descoberta sonhosa e legendária
dessas? ‘”Quaderna’, disse o Fidalgo, `eu não preciso ter um dia
fora do comum para viver essas coisas, porque toda a minha vida foi e é,
a cada instante, um Sonho e uma Legenda gloriosa! Eu, derradeiro varão
da minha Casa, vivo eternamente numa Gruta Encantada, muito superior, em sonhos
e tesouros, à que esses dois Profetas sertanejos, Nazário e
Clemente, viram!’, disse ele, sorrindo superiormente e já meio esquecido
do pacto. E acrescentou: `Vocês sabem que eu tenho horror a esse fúnebre
Poeta paraibanoaqui de vocês, Augusto dos Anjos. Mas, no meio de toda
a obra dele, há um só poema que me toca. Com ele eu posso repetir:
“Meu Coração tem catedrais imensas, templos de priscas
e longínquas datas, onde um Nume de amor, em serenatas, canta a Aleluia
virginal das Crenças.
Na ogiva fúlgida e nas Colunatas vertem Lustrais radiações
intensas cintilações de Lâmpadas suspensas e as Ametistas,
e os Florões e as Pratas.”
“‘Sim, Samuel!’, falei. `Mas vocé acha que a visagem de Nazário
tem algum fundamento? Isso é o que importa saber, agora! Que é
que você acha? O que foi que Nazário viu?’ “`O que Nazário
teve, Quaderna, foi uma visão graálica, de natureza poético-extática,
um pouco bárbara, como tudo o que é do Sertão, mas que,
bem interpretada e corrigida por um verdadeiro Poeta, bem pode ser encaminhada
a seu verdadeiro sentido: o do Quinto Império, sonhado por todos os
nossos visionários, Profetas e iluminados, desde Antônio Vieira
até Gustavo Barroso! Agora, que entusiasmo eu posso ter por uma visão
comunicada, aí, no meio dessa canalha sertaneja, maltrapilha e malcheirosa,
numa cena tipicamente plebéia, oncística e Clementina? A única
coisa que me encanta nisso tudo é o aparecimento desse Donzel, quem
quer que seja ele, montado num cavalo branco! Ah se isso tivesse acontecido
na Zona da Mata! Aí, não haveria dúvida: saberíamos
logo que era o jovem Fidalgo, signo e insignia da Raça, ardente, puro
e casto, o nosso Encoberto, o nosso Encantado, predestinado a realizar o novo
Império da Ibéria, o eldorado e cordiforme Brasão da
América Latina!’ “‘Está bem, Samuel!’, disse eu, `concordo
e aceito. Menos numa afirmativa sua, aí! Vocé disse que o rapaz
do cavalo branco era puro e casto. Pois, se é, será de maneira
bem diferente da castidade do Rei Dom Sebastião, porque, segundo Lino
me contou, ele vinha, na estrada, com o retrato de uma Moça no escudo!’
“`Isso não indica nada contra a castidade dele!’, retrucou Samuel.
`Em primeiro lugar, aquela pode ser, apenas, a figura mítica da Dama
que os Cavaleiros sempre têm. Mas, provavelmente, o que aquele retrato
é, mesmo, é uma alusão à Rainha e Luz do Céu,
à Lumen Coeli Regina. Quem sabe o que terá acontecido, mesmo,
ao rapaz do cavalo branco? Talvez ele tenha visto a Senhora do Céu
num éxtase místico e guerreiro, votando-se, daí por diante,
à busca do Divino e à solidão do Deserto! Sim, é
isso!
Deve ser isso! Essa seria a única causa de um Donzel tão puro
e tão heráldico ter vindo buscar esse bárbaro Deserto
Sertanejo! Quem sabe se ele não é “o Cavaleiro Pobre”,
o jovem Cavaleiro ardente, violento e casto, fanático e possuído
pela Divindade, cantado pelo genial Poeta militarista, fidalgo e tradicionalista
que foi Olavo Bilac? Vocês conhecem o poema de Bilac, pelo menos através
da reinterpretação tapirista e ibérico-armorial que fiz
dele. A história é uma maravilha: é a de um Cavaleiro
que, um dia, teve uma visão dessas. Depois daí, colocou no Escudo
a face da Dama Celeste, radiosa e pura. O mundo passou a lhe parecer um vasto
e inútil Mausoléu. Enquanto os outros viviam, gozavam e amavam,
ele vivia devorado pelo Fogo do Divino, pois somente o Divino, depois que
ele o vira, seria capaz de saciá-lo e purificá-lo, mesmo que
fizesse isso pelo fogo e pela Destruição. Então, depois
de procurar a Morte mil vezes, nos prélios da Fé, o jovem Cavaleiro
retirou-se para o Deserto, onde terminou seus dias, envelhecido, louco, com
os olhos em brasa, rouco, devorado e destruido pelo Terrível que vira
e por seu próprio coração incendiado. Você se lembra,
Quaderna? O poema que eu fiz a partir do de Bilac é mais ou menos assim:
“Ninguém sabe quem era o Cavaleiro Pobre, que viveu solitário
e morreu sem falar. Era simples e sóbrio, era valente e Nobre e pálido
como o Luar.
Antes de se entregar às fadigas da Guerra dizem que um dia viu qualquer
coisa do Céu: e achou tudo vazio! e pareceu-lhe a Terra
um vasto e inútil Mausoléu! Desde então, uma atroz, devoradora
Chama calcinou-lhe o Desejo e o reduziu a Pó! E nunca mais o Pobre olhou
uma só Dama, nem uma só! nem uma só! Conservou, desde então,
a Viseira abaixada, e, fiel à Visão, e, ao seu Amor, fiel, trazia
uma Inscrição de trés letras, gravada a fogo e sangue no
Broquel.
Foi aos prélios da Fé. Na Terra-Santa, quando, no ardor do
seu guerreiro e piedoso Mister, cada filho da Cruz se batia, invocando um
nome caro de Mulher, Ele, rouco, brandindo a Espada no ar, clamava: – `Lumen
Coeli Regina!’ – e, ao clamor desta Voz, nas hostes dos Incréus como
uma Fúria entrava, irresistível e feroz! Mil vezes, sem morrer,
viu a Morte de perto, mas negou-lhe o Destino essa sorte melhor! Foi viver
no Deserto! e era imenso o Deserto, mas o seu Sonho era maior! E um dia, a
se estorcer, só e despedaçado, louco, velho, feroz, naquela
Solidão, morreu, mudo, rilhando os Dentes, devorado pelo Fogo do próprio
Coração!”‘
“`Quando Samuel acabou de recitar isso, Senhor Corregedor, Clemente
não pôde se impedir de protestar: “‘Samuel, nem esse poema
foi você quem fez, nem o original e de Bilac: é de um poeta estrangeiro,
não me lembro qual!’ “Clemente’, retrucou Samuel, `já lhe
disse isso não sei quantas vezes! O poema é meu, porque eu colaborei
nele! Por exemplo: ali, onde eu falo em espada, Bilac colocou pique – “brandindo
o pique no ar!” Do jeito que eu botei, é muito mais bonito! Quanto
à outra observação sua, quero lhe explicar que, quando
um Poeta brasileiro ou português traduz uma obra estrangeira, para mim,
o original fica sendo o trabalho dele. Sou nacionalista, e, podendo, pilho
os estrangeiros o mais que posso! Para mim, Manoel Odorico Mendes é
o autor dos originais da Ilíada e da Eneida Brasileira: Homero e Virgílio
são, apenas, os tradutores grego e latino dessas obras dele! Castilho
é o autor do Fausto e do Dom Quixote, assim como José Pedro
Xavier Pinheiro é o verdadeiro autor da Divina Comédia que Dante
traduziu para o italiano!’ “`Está bem!’, disse eu, interrompendo.
`Entendi, mais ou menos, a posição de vocês. Cabe-me,
agora, a vez de explicar a minha. A meu ver, Sinésio vai ter que organizar
uma expedição para procurar o Testamento extraviado e o tesouro
escondido! Sim, porque, seja na furna visageada por Nazário, ou na
outra, cientificamente descoberta por Clemente, o fato é que o tesouro
deixado pelo velho Rei Degolado do Cariri está enterrado por aí,
numa furna sertaneja qualquer. Das pessoas que integraram a comitiva de meu
Padrinho quando ele partiu para enterrar o testamento, a única ainda
viva sou eu. Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto tinha me nomeado testamenteiro,
e me prometera que, depois de enterrado o documento nessa furna, ele, quando
se sentisse perto da morte, me revelaria o lugar. Ora, para Sinésio,
a descoberta desse testamento é fundamental. Assim, o rapaz do cavalo
branco o seus dois protetores – o Doutor e o Frade – terão que meter
o pé no mundo, para encontrá-lo. Eu sou, portanto, pessoa indispensável
à expedição, terei que ir, como guia dela. Por outro
lado, essa ida é, para mim, indispensável, porque, se eu não
pre520 senciar todos os acontecimentos, não poderei contá-los
depois, na Epopéia. Picaresca ou de cavalaria, minha Obra terá
que se passar na estrada, no oco empoeirado e aberto do Mundo, no centro da
maçaranduba do Tempo, e isso só será possível
se eu acompanhar Sinésio, o Doutor e o Frade em sua expedição
aventurosa à procura do testamento. Aí é que surge um
problema importantíssimo: como é que vamos arranjar os meios
para fazer a viagem? Nessas coisas de dinheiro, nunca ninguém fala,
mas, sem dinheiro, pouca coisa se faz! Pois bem: desde que cheguei à
conclusão de que terei de ir, venho pensando em organizar um Circo,
para empreendermos a viagem. Sempre tive vontade de ter um Circo, e a hora
é essa! Nós contaríamos com a ajuda de meus irmãos,
que têm, todos, algumas habilidades. Alguns deles são tocadores
de rabeca o pífano: será a orquestra! Se a tropa que veio com
Sinésio é mesmo de Ciganos, alguns devem saber fazer piruetas
e proezas em cima de cavalos. Outros, deitarão cartas. Das partes de
dramas, comédias e tragédias, eu me encarrego, com o “cavalo
marinho”, o “mamulengo”, a “nau-catarineta”, etc.
Comprometo-me também a levar um “pastoril”, formado com as
mulheres-damas do RóiCouro que freqüentam a minha Távola
Redonda. Assim, poderemos viajar de graça, divertindo-nos e, ainda
por cima, tendo algum lucro, com acomodações para todo mundo
e fazendo todas as expedições necessárias ao encontro
do testamento. Sim, porque, na minha opinião, a história da
furna do Profeta Nazário pode ter sido é uma revelação
de botija referente ao tesouro e ao testamento do Rei Degolado! Agora, pergunto
a vocês: caso o Doutor Pedro Gouveia me contrate para a expedição,
vocês concordariam em viajar conosco, no meu Circo?’ “Os olhos
dos dois se acenderam, Senhor Corregedor. Mas, amarrados e seguros como eram,
começaram logo a tomar precauções. Clemente falou primeiro:
“`Bem, Quaderna’, disse ele, `é claro que a proposta nos interessa.
Mas existem vários pontos que precisam ser aclarados e estabelecidos
desde já, principalmente quanto à parte financeira! Em primeiro
lugar, me diga: nós seríamos convidados, como hóspedes,
com todos os privilégios e honrarias, no Circo?’ “`Claro que sim!’
concordei, alegre, vendo que eles estavam inclinados a aceitar. `Além
da amizade que tenho a vocês preciso demais dos conselhos literários
e politicos dos dois!’ “`Teríamos comida, bebida e dormida de
graça?’ “Teriam, sim! Inclusive, dentro das acomodações
sempre meio precárias de um Circo, eu conseguiria o melhor possível,
com camarins especiais para vocês dois!’ “E, no caso de encontrarmos
o Tesouro?’, perguntou Samuel. `Teríamos parte na divisão dele?’
“Bem, isso aí, eu só posso responder depois de conversarmos
com o Doutor Pedro Gouveia. Isso, porém, não demora, tenho certeza.
Modéstia à parte, desse tipo de coisas eu entendo. Posso até
apostar: daqui a pouco, chega alguém, da parte do Doutor, para nos
procurar!’ “Então, essa parte fica para ser decidida na presença
do Doutor!’, disse Clemente. `Sobretudo, é preciso ver quem é,
mesmo, esse rapaz do cavalo branco e quais são suas verdadeiras intenções,
os verdadeiros objetivos de sua aparição, aqui. Eu e Samuel
somos funcionários públicos. Mas, se houver vantagem, trataremos
de conseguir licenças para seguir na viagem e acompanhar, inclusive
como profissionais – eu como Advogado e ele como Promotor – o caso do testamento
e da herança desse rapaz. Quanto a mim, como Filósofo, terei,
ao mesmo tempo, oportunidade de realizar uma Viagem Filosófica, como
aquela que o sábio brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira realizou
no século XVIII, antecipando-se a todas as viagens de naturalistas
estrangeiros pelo Novo Mundo!’ “Pois, para mim’, interveio Samuel, `essa
expedição será uma viagem aventurosa e de sonho, como
aquela que meu antepassado Sigmundt Wan d’Ernes realizou, em companhia do
Poeta-Fidalgo e Soldado-Flamengo que foi Elias Herckman, quando viajaram ambos,
no século XVII, em demanda, pelo Sertão da Paraíba, na
busca desaventurosa exatamente de um Tesouro e de minas de prata, coisa que
só pode, mesmo, tocar muito na imaginação de um Poeta
e Fidalgo como eu!’ “Eu não esclareci nada a eles, naquele momento,
Senhor Corregedor, para não revelar minhas verdadeiras intenções.
Mas para mim, de fato, a viagem ia ser era as duas coisas ao mesmo tempo!
Seria uma Demanda novelosa e zodiacal, uma Viagem católicosertaneja
e sagrada em busca da Furna do Terrível e na qual, ainda por cima,
talvez tivéssemos a sorte de encontrar o Tesouro da Pedra do Reino,
identificado por mim, nas minhas elucubrações botijais e filosofais,
com o tesouro de El-Rei Dom Sebastião. E já estava com o coração
alvoroçado de esperanças, quando, de repente, me lembrei, ne
novo, da catástrofe que despedaçara meus olhos, e dei um gemido
trágico: “Ai, ai de mim! Só agora me recordo! Não
adianta nem eu sonhar, com o Circo e com a viagem aventurosa e desaventurosa
que vocês estão planejando! Como poderei ir, se estou cego?’
“`Ora, Quaderna, isso é nada!’, disse Samuel, com a maior naturalidade.
`Isso é nada, para um homem como você! Seja forte, seja homem,
homem! Como eu estava dizendo há pouco, esse fato de estar cego, que,
à primeira vista, parece uma desgraça, no seu caso pode até
vir a ser um bem para você, uma vez que seu sonho é se tornar
um Poeta épico! Não sei se você sabe disto, mas Joaquim
Nabuco considerava a cegueira e o infortúnio como ingredientes indispensáveis
para o sangue de um autor de Epopéias! Ora, Nabuco era um Barretto:
não um_ Barretto como você e os outros Barrettos sertanejos,
que são bastardos e corrompidos, mas um Barretto da familia do Morgado
do Cabo e, portanto, um legítimo e puro Fidalgo pernambucano, de modo
que era da Direita e a palavra dele merece toda fé. Diz Nabuco que
Camões só passou de Poeta lírico a Poeta épico
depois que cegou. Acha ele, ao que parece, que, para Camões, isso foi
um bem, afirmação da qual discordo, porque, como você
sabe, considero os Poetas épicos como prosadores disfarçados
– vulgares e enfadonhos como todos os prosadores. Mas, com as idéias
que você professa, Quaderna, e com o sonho de se tornar Epopeieta, como
diz você, sua opinião deve ser igual à de Nabuco: para
você, Camões progrediu, quando passou de Poeta ‘lírico
a épico! Olhe, console-se, porque é coisa ungida e consagrada,
dentro de sua ordem de idéias. Está aqui, na genial conferência
que Nabuco escreveu sobre Os Lusíadas!’, -disse ele, levantando-se
e indo buscar, na estante, o livro a que se referira e do qual leu o seguinte
trecho, que depois copiei e guardei, como documento: “Alguma indiscrição
em matéria de amores, motivou a exclusão de Camões da
Corte real, e, depois, o seu alistamento para combater os Mouros, na Africa,
onde ele foi ferido, perdendo um olho. Esse ferimento marca uma época,
na Literatura Portuguesa. Dissiparam-se, por causa dele, as esperanças
de Camões como cortesão, e desfaleceu-lhe o orgulho de amante,
vindo a sentir-se à mercê de quem lhe olhasse o semblante desfigurado.
Sem a cegueira de Milton, o Paraíso Perdido teria sido bem outra composição.
Sem o desfiguramento de Camões, de outro gênero teria sido a
sua Obra poética. Foi essa disformidade que fez Camões renunciar,
em desespero, ao Amor, à vida na Corte, a Lisboa, a Portugal, e desferir
seu vôo rumo a Os Lusíadas. A meia-cegueira converteu-lhe o Amor,
que nele foi sempre uma obsessão sensual, no sentido do Divino. Transformou-lhe
a Lâmina envenenada que só Ihe servia, antes, para torturar-se
a si próprio – no Cinzel que deveria talhar o Poema nacional português.”‘”
FOLHETO LXXVIII
A Cegueira Epopeica
– Quando Samuel terminou de ler esse espantoso texto-profético – demonstrando
inteira insensibilidade ante a parte humana e não-literária
do meu sofrimento, eu gemi queixoso: “Mas é possível que
vocês ainda não tenham se apercebido da extensão da minha
desgraça? Estou cego, cego de guia. Clemente! A gente cego, e Samuel
vindo com Literatura!’ “Coitado de você, Quaderna!’, disse Clemente,
tentando parecer menos insensível do que o rival. `Capaz de você
perder o emprego na Biblioteca, ou de ser aposentado co~n vencimentos ínfimos!
Em qualquer caso, porém, seja você demitido ou aposentado, isso
será muito menos prejudicial para você do que para mim e para
Samuel! Olhe que pode vir, para a Biblioteca, um Diretor novo, que não
tenha, conosco, as mesmas deferências que você tem! Além
disso as tertúlias literárias da nossa Aleserpa se realizam
na Biblioteca e vão ser muito prejudicadas com isso!'” — Aleserpa?
– disse o Corregedor. – Que é isso? Que é a Aleserpa? Alguma
associação comunista, na certa! – Não senhor! Aleserpa
é o endereço telegráfico do nosso sodalício sertanejo,
a Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba que
nós fundamos e que tem sede aqui em Taperoá, na Biblioteca!
– Ah, bem! E quantos são os Acadêmicos? – Três: eu, Clemente
e Samuel! – Está bem, pode continuar.
– Ouvindo Clemente falar daquela maneira, eu não queria acreditar
que estava ouvindo certo. Seria possível alguém ser tão
egoísta? E manifestei nl~nha estranheza: “Como é, Clemente?
Você tem coragem de achar que minha cegueira prejudica vocês mais
do que a mim?’ “`É isso mesmo, e não se admire não’,
insistiu o Filósofo. `Você, sendo um Charadista, um Decifrador
profissional, um homem que se dedica a resolver e armar Enigmas e logogrifos,
será até beneficiado pela cegueira! Lembre-se de que o patrono
do Suplemento anual do Almanaque Charadistico e Literário LusoBrasileiro
é Édipo, que terminou seus dias cego. Sendo assim, você
não pode se queixar de que o mesmo tenha acontecido com você,
obrigado, agora, a seguir os passos trôpegos de seu Patrono pela estrada
da cegueira. Como cego, quem sabe se você não irá, agora,
receber, como compensação, a lucidez de Édipo? Édipo,
tendo decifrado o “enigma do homem ante a Esfinge”, tornou-se, depois
de cego, um Decifrador tão eficiente, que teve a honra de ser escolhido
como Patrono de todos os Charadistas do mundo. Pelo que me contou, aqui, o
nosso Cantador caolho, Lino Pedra-Verde, foram dois Gaviões, um macho
e outro fêmea, que cegaram você, não é verdade?’
“E!’, respondi de má cara.
“Pois você pode ficar certo, Quaderna, de que, dagora em diante,
você vai ser o único homem, no Mundo, capaz, ao mesmo tempo,
de ver as coisas machamente e ferreamente, o que, sem dúvida, é
uma grande vantagem para o Decifrador e Epopeieta que você sempre quis
ser! Na minha opinião, Édipo, quando moço e bom dos olhos,
avistava coisas demais, motivo pelo qual não via nada! Só depois
de cego foi que ele recebeu a lucidez esfingética e pôde se aperceber
de que o Mundo e a vida são, como dizia o genial Tobias Barretto, “uma
integridade espantosa”. Creio que é por isso que os Professores
alemães de Filosofia costumam afirmar que Édipo, como cego,
tinha um olho a mais!’ “E claro que tinha, era o olho do cu!’, disse
eu, que, a essa altura, já estava encolerizado por ver as filosofias
com que aqueles sujeitos encaravam a desgraça no meu couro. E acrescentei:
`E eu acho que é por isso que os Professores brasileiros de Filosofia
aqui da rua dizem que pimenta no cu dos outros é refresco!’ “`Não
seja vulgar, Quaderna, não seja mesquinho!’, disse Clemente, severo.
`Como é que você pode se preocupar com essas questões
de cegueira ou não-cegueira sua, uma questão meramente pessoal
e de importância secundária, quando acontecimentos talvez de
grande importância para o Brasil estão tendo início, como
é o caso da chegada dessa Coluna, comandada pelo rapaz do cavalo branco?
Nesse momento, a verdadeira questão, aquela que deve merecer o melhor
de nossos pensamentos e das nossas ações, é essa! Quem
sabe se esse acontecimento não marca o início da Revolução
que vai estabelecer a República Popular do Brasil, a primeira da América
Latina?” – Anote esse pormenor, é muito importante, Dona Margarida!
– disse o Corregedor.
Margarida obedeceu, e o Corregedor voltou-se de novo para mim; – Muito bem!
E o que foi que o Professor Clemente disse mais? Ainda falou nessa Revolução?
– Parece que ele ainda ia falar, Senhor Corregedor. Mas, aí, foi interrompido
por Lino Pedra-Verde, que tinha sido meu colega na escola da “Onça
Malhada” e também aluno de João Melchíades, de modo
que conhecia vários versos “de caráter fatídico
e político”, todos muito populares “entre a puerícia
e a juventude das escolas brasileiras”. Lino continuava mascando a erva-moura,
de modo que tinha baixado, nele, o espírito da profecia e da sapiência.
Em tais momentos, ele dava para falar difícil, mania que pegara com
João Melchíades, e foi assim que se dirigiu a nós: “`Senhores
Doutores, desculpem eu me intrometer na conversa de pessoas tão esfilantrópicas,
mas tudo isso que estão dizendo me impressionou demais, porque tudo
o que disseram é verdade e muito importante, de uma importancia cachorra
da molesta! Não pensem que eu, por não ser pessoa formada, por
ser um ignorante, seja aí um berdoega ou um filho da puta qualquer!
Dom Pedro Dinis Quaderna, aí, me conhece, e pode me fornecer um atestado
de conduta, dado pela autoridade! Além disso, fui aluno de Vossas Senhorias.
Deixei os estudos e passei afastado muito tempo de Vossas Mercês, mas
não por sacanagem e falta de caráter! De modos que, de maneiras
tais que entendi tudo o que Vossas Excelências disseram! Apesar de ser
apenasmente um simples Cantador de fama nacional, conheço muito bém
o distinto Poeta português Luís de Camões, autor dos “Lusíadas
de Luís de Camões!” Aliás, Camões usava três
palavras que eu também gosto de usar muito nos meus folhetos – porém,
carregada e todavia! Por isso entendi o que disseram sobre o olho cego de
Camões: é tudo verdade, verdade da boa! E tanto é verdade
que Portugal e o Brasil são muito maiores e mais importantes do que
a França e a Turquia juntas. Daí, a gente recitar, como recitava
no tempo da escola: “Camões, poeta Caolho, grande Vate português,
enxergava mais com um olho do que nós todos com três.
Na França, tudo é errado, na França, tudo anda a esmo,
na França, pescoço é cu, no Brasil, cu é cu mesmo!”
” ‘Está vendo, Quaderna?’, indagou Clemente, escarninho. `Ouça
a voz da sabedoria, aqui representada por esse digno Bardo de chapéu
de couro, seu condiscípulo e correligionário. Ouça e
console-se de sua cegueira! Édipo, enquanto teve vista, foi apenas
um tirante, igual a muitos outros, na Grécia. Mas, depois
de cego, tornou-se um Decifrador, como você, Lino Pedra-Verde e Euclydes
Villar. Camões, enquanto tinha dois olhos, era apenasum Poeta lírico,
chorão e cortesão. Cegando de um olho, tornou-se Epopeieta, e
só foi épico de segunda grandeza, imitador de Virgílio,
por ser apenas meio-cego e não cego inteiro. Chega-se à conclusão
de que o Gênio de um Epopeieta é tanto maior quanto mais olhos
cegos ele tenha, sendo essa, provavelmente, a causa profunda de Homero ser considerado
o maior de todos pelo Doutor Amorico Carvalho, Retórico de Dom Pedro
II. Coragem, portanto, Quaderna! Quem sabe se agora você, cego dos dois
olhos e com este magnífico Rapsodo e vate sertanejo lhe servindo de guia,
não virá a ser o Camões da charada sertaneja, ou, melhor
ainda, o Homero do Enigma Brasileiro?’ “O senhor acredite, Senhor Corregedor:
apesar da maldade e das ironias que me apunhalavam nas palavras de Clemente,
aquilo foi o começo do meu consolo. Para ser o Gênio da Raça
Brasileira, eu era capaz de fazer qualquer acordo e se o preço era a
cegueira eu o pagaria com gosto. Se o fato de não ser cego significava
alguma desvantagem em relação ao desgraçado do Grego Homero,
a inferioridade estava, agora, sanada, graças às divindades de
rapina da Morte Caetana. A contagem de pontos até subira muito em meu
favor, porque Homero era cego, mas não existira nem tinha sido completo.
Eu, além de existir e ser completo, genial e régio, agora não
deixara mais um flanco sequer aberto a meu adversário, pois até
cego dos dois olhos conseguira me tornar! A ardente alegria que começava
a experimentar por minha cegueira não me tirou, porém, o rancor
contra Clemente e Samuel. Resolvi fazer aos dois algumas ameaças, coisa
de que só lançava mão em casos extremos e que sempre surtia
efeito. Por causa das vicissitudes que eu tinha passado sempre em minha `atribulada
existência’, eu era muito relacionado entre o Povo – cabras-dorifle, Cangaceiros,
tangerinos, Vaqueiros, Mulheres-Damas, Cantadores, etc. Aqueles dois, apesar
de viverem falando e filosofando sobre o Povo, viviam eternamente fechados entre
o mofo das suas respectivas casas, a poeira e as teias de aranha da Biblioteca,
enfim, no “mofo dos capões intelectuais”, como costumava dizer
meu primo Arésio Garcia-Barretto. Não sabiam nem como falar com
a gente do Povo e tinham um secreto pavor e um secreto mal-estar diante de tudo
o que ao Povo era ligado. Parecia, até, que eram separados por uma linha
invisível, linha que eu tinha cruzado à força, muitos anos
antes, quando, por várias circunstancias, tinha sido expulso do meio
em que tinha vivido desde pequeno. Além disso, meus irmãos bastardos,
que viviam do outro lado da linha, eram um elemento de ligação
valioso, que eu não deixava de aproveitar. Era por isso que, de vez em
quando, Samuell e Clemente me davam indiretas, falando nos `parentes desclassificados
e acangaceirados de Quaderna’. Pelo mesmo motivo, davam-se ao luxo de me fazer
certas picuinhas, mas mantinham sempre uma boa margem de recuo, porque, nem
sabiam nunca como eu iria reagir, nem tinham desejo nenhum de renunciar à
possível proteção que eu lhes daria em caso de perigo,
com eles eventualmente ameaçados pelo pessoal `do outro lado da linha’.
E, finalmente, como eu, a despeito de mim mesmo e dentro das minhas aventuras
de `Covarde Sortudo’, tinha participado das correrias, emboscadas, guerras e
tiroteios desencadeados pela vida de meu Padrinho, Dom Pedro Sebastião
– eu, dizia, apesar de covarde, tinha granjeado, na rua e principalmente para
meus antigos Mestres, uma certa reputação de “malvado e assassino”
que não deixava de me ser útil em certas ocasiões. Naquele
dia, foi disso que me vali, dizendo: “‘e, vocês dois estão
af, fazendo galhofa com a minha cegueira! A esperança de cada um é
que essa Coluna e o rapaz do cavalo branco tenham vindo favorecer a Esquerda
ou a Direita! O fato, porém, é que a Polícia fugiu, e a
nossa Vila está à mercê da Coluna! Vocês não
se esqueçam de que Sinésio, a.ém de Garcia-Barretto é
um Quaderna! É meu primo e meu sobrinho, de modo que, da Esquerda ou
da Direita, contra mim é que a Coluna dele não vai ficar! Não
se esqueçam também de que Sinésio, sendo um Quaderna, é
descendente, como eu, da família que, além de dominar o Sertão
na Serra do Rodeador e na Pedra do Reino, fez, no espaço de três
dias, uma carnificina das mais eficazes, o que, afinal, não deve preocupar
vocês dois, porque são, ambos, partidários do banho de sangue!
Vocês já viram como o Povo está assanhado? Já, e
todos dois babem como o Povo sertanejo é imprevisível nessas coisas:
pode tomar o lado da Aristocracia rural e pode tomar outro rumo, completamente
oposto! Agora, eu pergunto a vocês: e se a “Guerra do Reino”
começar, mesmo, com Sinésio ordenando, agora de noite ou amanhã
de manhã, o fuzilamento de tudo quanto é gente poderosa, aqui?
Vocês pensam que, sem uma palavra minha, o Advogado e o Promotor da nossa
Vila vão escapar ao fuzil?” – Um momento, Dom Pedro Dinis Quaderna!
– disse o Corregedor, jubiloso. – Pare, porque tudo isso é importantíssimo!
Anote, Dona Margarida! Isto! Agora, o senhor pode continuar! Novamente eu tinha
me deixado levar pelo entusiasmo cavaleiroso e régio, nobres Senhores
da Academia e do Supremo, e nobres Damas de peito brando! Minha situação
tornava-se cada vez mais perigosa. Mas como o que já acontecera era irreversível
e o mal praticado quase irremediável, joguei-me para a frente e continuei:
– Quando eu disse aquilo, Senhor Corregedor, Samuel e Clemente empalideceram.
Lino Pedra-Verde, porém, saltou, como se tivesse sido atingido por um
raio: “O Rodeador? Você falou af, Dinis, foi na Serra do Rodeador
e na Pedra do Reino? Isso sim, é importante! O resto do que vocês
disseram é bom, mas importante mesmo foi e é a Guerra do Reino!
Sim, é isso! Doutor Samuel e Professor Clemente, o que é que os
senhores me dizem disso?’ “‘Não sei, Lino!’, respondeu Samuel pelos
dois. `Não me recuso a tratar do assunto porque Varnhagen era um grande
historiador brasileiro da Direita e falou sobre esses movimentos sertanejos,
pelo menos em sua primeira fase, a da Serra do Rodeador. Mas, depois, surgiram
tantas invencionices a esse respeito, que o assunto perdeu a seriedade. Aliás,
parece que Varnhagen já previa que isso ia acontecer porque disse: “O
acontecimento não deixará, no futuro, de prestar fértil
e curioso assunto à imaginação de Poetas e romancistas”.
“Foi a minha vez de saltar, Senhor Corregedor, porque aquilo me tocava
demais no meu sonho de ser Gênio da Raça escrevendo um romance-epopéico
sobre minha família. Além do mais, Varnhagen, sendo Visconde
e católico, trazia uma boa contribuição monárquica
para minhas idéias e minha genealogia. Por isso perguntei a Samuel:
“‘Mas Samuel, como é que você sabe de uma coisa honrosa
dessas e não me avisa, durante todos esses anos?’ “‘Quaderna,
você já é tão pretensioso sem isso, que avalio
como não vai ficar depois que eu lhe mostrar na História Geral
do Brasil uma referência expressa a sua família! Mas, de qualquer
modo, está lá e eu vou lhe mostrar onde. Diz Varnhagen: “Dediquemos
um parágrafo a dar uma sucinta Notícia de certa ocorrência
que teve lugar na Serra do Rodeador, no distrito do Sertão de Bonito,
Província de Pernambuco em princípios de 1820. Da crença
de que no alto desta Serra havia um Lajedo, de baixo do qual saiam Vozes,
se aproveitou um certo Silvestre José dos Santos para contar muitos
Prodígios, espalhando Revelações feitas por Imagens aparecidas
entre Luzes, prometendo constante Vitória e muitas Fortunas aos que
se alistassem por elas. Movidos por curiosidade e superstição
uns, levados outros por ambição e cobiça, se foram aí
ajuntando dentro de pouco tempo umas quatrocentas pessoas. Mandados dissipar,
não obedeceram. Pelo contrário: resistiram valorosamente aos
primeiros Milicianos armados. Mas, por fim, foram submetidos pela Tropa, caindo
prisioneiros muitos, aos quais El-Rei perdoou como a Ilusos, mandando-os restituir
a seus lares”.
“Assim que Samuel leu isso, Clemente, apesar de toda a perturbação
em que se encontrava pelos acontecimentos recentes, sentiu ferver seu sangue
esquerdista. Jogou fora o constrangimento causado pelo pacto, e, pulando da
cadeira, gritou: “Ve-se logo, e bem, a reacionarice e safadeza desse
Visconde direitista, cheira-cu de Dom Pedro II! Em primeiro lugar, Varnhagen
omite o significado de reivindicação política e econômica
que houve no movimento da Serra do Rodeador! Depois, deixa de se referir,
propositadamente, ao massacre que as tropas do Rei Dom João VI, a mando
do Governador reacionário Luís do Rego, fizeram contra aqueles
pobres Camponeses indefesos e iludidos pelo obscurantismo demente dos parentes
de Quaderna! Está vendo como são as coisas, Quaderna? E é
Samuel, esse Fidalgo de merda, que vive, aí, arrotando patrioteirismo,
quem subscreve as palavras de Varnhagen, desrespeitando a Independência
do Brasil!’ “Eu?’, protestou Samuel, espantado. `Em que foi que eu desrespeitei
a Independência do Brasil? O que é que os parentes fanáticos
de Quaderna, sejam os da Serra do Rodeador, sejam os da Pedra do Reino, têm
a ver com a Independência d9 Brasil?’ “Olhe, Samuel’, explicou
Clemente, `você sabe que eu faço restrições serüssimas
a esses movimentos sem qualquer coerência e conteúdo ideológico.
Mas, mesmo assim, você em vez de estar aí, espalhando as interpretações
reacionárias de Varnhagen, devia ler eram as palavras do Comendador
Francisco Benício das Chagas, escritor muito mais sério e genial
do que Varnhagen! É verdade que o Comendador, não sendo iniciado
na minha Filosofia do Penetra!, não tinha suficiente lucidez política
para saber que a “independência do Brasil”, a farsa de 7 de
setembro de 1822, foi uma impostura. O Brasil só será de fato
independente quando derrotar o imperialismo, lá fora, e a reação,
aqui dentro! De qualquer modo, porém, o Comendador ouviu cantar o galo,
nesse assunto. E até o sem-vergonha do nosso primeiro Imperador, Dom
Pedro I, chegou a se referir ao significado politico do episódio, dizendo,
no seu “Manifesto aos Brasileiros”: “Lembrai-vos das fogueiras
do Sertão do Bonito!” Com isso, Dom Pedro I mostrou, não
só que estava a par dos movimentos sertanejos, mas que tinha consciência
dos desígnios políticos implícitos neles, apesar de todas
as incoerências!’ “Mas o quê, Professor Clemente!’, interrompeu
Lino, novamente estupefato. `É verdade, isso que o senhor está
dizendo aí? O Imperador Dom Pedro I tinha noticias da Serra do Rodeador,
da Pedra do Reino e das tribuzanas todas da família de Dom Pedro Dinis
Quaderna? Chegou a falar nisso, por escrito, coisa documentada, garantida
e do Governo?’ “E verdade, Lino!’, confirmou Clemente.
“Tá, af só dizendo como , nosso Mestre João Melchfades:
que coisa filantrópica! Que coisa mais litúrgica para a família
do nosso Rei, não é, Dinis? O senhor pode me dizer, Professor
Clemente, onde é que estão as palavras desse tal Comendador?’
“Posso, pois não, Lino!’, disse Clemente, satisfeito por estar
acertando a conversar com um homem do Povo. `Olhe aqui!’, acrescentou ele,
tirando o volume da estante e lendo para nós o seguinte trecho do genial
escritor pernambucano, Comendador Francisco Benício das Chagas: J”`áOs
tristes e lamentáveis acontecimentos dados na Pedra do Rodeador, pelos
fins de 1819, mediando entre a Revolução de 1817 – que fora
sufocada pelo Poder Absoluto – e a de 1821, que vingou na invicta Vila de
Goiana, foram como que o prenúncio da nossa Independência, que
se proclamou no memorável dia 7 de Setembro de 1822. Mostram eles,
bem claramente, que a reunião dos Povos, na Pedra do Rodeador, nesses
tempos calamitosos, tinha fins verdadeiramente políticos. O Chefe do
tal movimento, Silvestre osé dos Santos – Dom Silvestre I – alcunhado
Mestre Quiou, que quer dizer o Maioral, na língua dos Indios, não
era um simples aventureiro, um impostor e salteador, como se propalou então,
durante o Governo violento e despótico do General Luís do Rego
Barretto. Silvestre não era um impostor, quando ensinava aos Reunidos
que uma Santa ia falar, da Pedra, para mostrar-lhes o que convinha adotar
para melhorar a sorte de um Povo sofredor. Foi isso explicado, depois da Independência,
pelos Patriotas bonitenses que estiveram em maior contato com o mesmo Silvestre.
E qual era essa Santa que ia falar, apontando muitas coisas úteis que
o Povo sofredor devia adotar? Era, certamente, a Santa Liberdade, era a Independência
do Brasil! A reunião de gente na Pedra do Rodeador deu-se da seguinte
maneira: pelo meio do ano até o fim de 1819, apareceu naquele lugar
um Misterioso, dizendo ser seu nome Silvestre, e cuja Missão era escolher
um Sitio…”‘ “O quê?’, gritou Lino, escumando pela boca e
esbugalhando os olhos. ‘Al está escrito assim mesmo, Doutor? Diz um
Misterioso, é? É assim que está aí?’ “E,
Lino!’, disse Clemente, meio surpreso. ‘Deve ter sido erro de tipografia!
Provavelmente o que o Comendador escreveu foi um homem misterioso!’ “Isso
é sua opinião, isso diz o senhor!’, comentou Lino. `Mas deve
ter sido é um Misterioso, mesmo, que o Doutor escreveu! Porque essas
pessoas da Santíssima Trindade sertaneja, essas pessas pessoas como
Padre Cícero e Silvestre, são sempre umas capacidades danadas
de misteriosas! E como é que fala, aí, da Missão que
Silvestre Quiou, o Enviado, tinha? Diz aí que ele tinha de escolher
um sitio, é? Me diga uma coisa: o que é um sítio? Não
é um cerco, como o que houve em 1930, na Guerra de Princesa? E, eu
sei que é, porque vi no jornal, e está escrito também
assim no Almanaque do Cariri, publicado aqui pelo nosso Rei, Dom Pedro Dinis
Quaderna! Hoje eu sei perfeitamente que Princesa, Canudos, a Serra do Rodeador,
a Pedra do Reino, tudo aquilo foi um sítio da molesta, um cerco danado,
uma Tróia só!’ “`Sim, Lino, mas sítio, além
de cerco, significa também, lugar, local!’, explicou Clemente que,
na sua qualidade de homem de Esquerda, achava-se sempre na obrigação
de esclarecer o Povo. `Mas vamos continuar a leitura do texto do Comendador:
“`”Dias depois, soube-se no Povoado que esse Silvestre escolhera
um Rochedo conhecido por Pedra do Rodeãdor, e aí estava reunindo
gente para que, em tempo oportuno, ouvisse a uma Santa que ia falar, indicando
o bom caminho que o Povo devia seguir. Dentro de vinte dias, o número
dos Reunidos aumentou consideravelmente. O Comandante do Destacamento Policial
ordenou, por um Ofício dirigido ao Chefe Silvestre, que fizesse dispersar
aquela gente sem perda de tempo, pois que, se não o fizesse, por ele,
Comandante, seria tomada a providencia necessária, a fim de ser desmanchada
aquela ilícita reunião. Nenhum efeito produ~au, no ânimo
de Silvestre, a intimativa, e o número de pessoas do Povo crescia de
mais a mais, a ponto tal de formar um Arraial. Silvestre, não dispondo
de recursos para sustentar as pessoas pobres que o acompanhavam, mandou intimar
aos Proprietários que lhe mandassem Gado, farinha, milho, feijão,
etc., sob pena de, à força de Armas, serem satisfeitas suas
requisições. Com isso, conseguiu ser atendido. Esse fato chegou
ao conhecimento do Governador Luís do Rego, pois o mesmo Governador
mandou, tendo como Chefe da diligencia, o Tenente-Coronel Madureira, uma Força
para dar um assalto à Pedra do Rodeador. Madureira, saindo do Recife
à frente de um corpo de linha, chegou a Vitória de Santo Antão,
e aí recebeu outro corpo de Milicianos, declarando que seu destino
era Pajeú de Flores. A tropa saiu como se fosse para lá, mas,
ao aproximar-se de Bonito, Madureira fez uma negaça. Munido de bons
guias, internou-se pelos matos em direção à Pedra do
Rodeador, onde chegou às tres horas e meia da madrugada, dividindo
a tropa em dois corpos, um de linha, sob seu comando, e outro dos Milicianos
de Vitória de Santo Antão, comandado por um Capitão.
Um destes corpos entrou pelo lado oriental do Rochedo, e o outro pelo lado
ocidental, nas quebradas do qual estava o Arraial fortificado do Rei e Profeta
Silvestre. O Chefe miliciano chegou ao Arraial primeiro que Madureira. Houve
grande tiroteio, ao qual, acudindo o Tenente-Coronel a passo de marchemarche
e intervindo no conflito, houve grande carnificina. A grande população
não teria sofrido tanto se os Soldados não tivessem incendiado
as habitações do Arraial, fazendo vitimas das chamas muitos
homens, mulheres e crianças, aprisionando e conduzindo para o Recife
as mulheres e os meninos que escaparam e que foram soltos depois, porque se
reconheceu não haver neles crime algum. O Chefe Silvestre foi, depois,
visto em Goiana, fazendo parte do Exército dos Independentes, que tinham
seus Chefes na cidade do Recife e em outros pontos. Silvestre era de cor morena,
representando uns quarenta anos de idade. Sabia ler e escrever, era ativo,
perspicaz e severo em suas deliberações. Nunca disse a ninguém
onde nascera, que profissão tinha nem do que vivia”.” – Acho,
Senhor Corregedor, que Lino Pedra-Verde ia comentar qualquer coisa a respeito
dessas últimas palavras, tão proféticas, do Comendador.
Mas, nesse momento exato, fomos interrompidos pela entrada de Piolho, uma
figura que morava na “Távola Redonda” – onde era meu assalariado
– e que é personagem muito importante da minha história. Moreno,
magro, de estatura mais ou menos média, com os cabelos imundos, crescidos
e encaracolados, vestia sempre uma velha e esburacada camisa de meia, preta
e encarnada, com listras horizontais largas. Tinha um amigo e companheiro
inseparável, o gordo Adauto, tão sujo quanto ele, mas cuja camisa,
também velha e esburacada, era de listras horizontais azuis e amarelas.
Eram as camisas dos dois Clubes de futebol da nossa Vila, o “Taperoá
Futebol Clube” e o “Esporte Clube Nordeste”, esquadrões
famosos no Sertão e heróis de de jornadas heróicas que,
a seu tempo, serão contadas. Piolho era noivo oficial, constante e
eterno de Dina-me-Dói, filha do Profeta Nazário e Dama de companhia
de Maria Sátira ,assim como o noivo era meu Pajem e estribeiro. Ele
entrou, dirigindo-se a mim: “‘Seu Quaderna, tenho dois recados pr’o senhor.
Um, é do tal Doutor Pedro Gouveia, que veio com o rapaz do cavalo branco:
ele quer falar com o senhor, com o Doutor Samuel e com o Professor Clemente.
Disse que os senhores fossem lá no casarão dos Garcia-Barrettos,
que ele quer ter um particular com os tres. Mas eu, se fosse o senhor, atendia
primeiro era ao outro recado. Este, é para o senhor, só: Seu
Arésio está lá na Tava, conversando com Seu Adalberto
Coura, e mandou dizer que o senhor desse um pulo lá que ele tem um
negócio urgente para falar com o senhor!’ “`Piolho’, disse eu,
meio severo, `eu já lhe ensinei, não sei quantas vezes, como
se dirigir a nós, e voce não toma jeito! Não custa nada
você me tratar por Dom Pedro Dinis Quaderna, e Arésio por Dom
Arésio Garcia-Barretto! Esse negócio de Seu é feio pra
burro! E, além disso, o nome é Távola Redonda, e não
Tava, como vote diz!’ ” ‘Está certo, Seu Quaderna, mas nem o senhor
é Bispo, pra eu estar chamando o senhor de Dom, e tanto faz dizer Tava
como Tava! Mesmo eu falando desse jeito, o senhor não me entende? Então,
é melhor o senhor deixar dessas conversas semiconfláuticas e
vir logo pr’a Tava, porque aquele Seu Arésio, do jeito que está,
é um perigo!”‘
FOLHETO LXXIX
O Emissário do Cordão Encarnado
– Samuel e Clemente estavam curiosíssimos, profundamente excitados
com a perspectiva de terem acesso ao centro, mesmo, dos acontecimentos. Ao
mesmo tempo, porém, estavam com medo de ir, principalmente por terem
de atravessar todo aquele Povo reunido. Informaram-se cuidadosamente com Lino
Pedra-Verde sobre “as disposições em que estava aquela
gente”, indagando, chios de precauções, se “não
havia alguma possibilidade de serem massacrados, caso aparecessem na rua,
sem garantias”. Lino tranqüilizou-os, aconselhando-os a se aproximarem
da casa dos GarciaBarrettos pela parte de trás. Assim, poderiam passar
despercebidos, porque a multidão estava toda aglomerada na parte da
frente. Piolho confirmou que o Doutor Pedro Gouveia estava esperando por nós
no muro do quintal, com o portão traseiro trancado mas com gente à
nossa espera por trás dele. Combinamos então que Clemente e
Samuel iriam, na frente, para a casa dos Garcia-Barrettos. Eu iria conversar
com Arésio e Adalberto Coura, saindo depois da “Távola
Redonda” diretamente para encontrá-los. Saímos então;
os dois para pegar a Rua do Chafariz e eu para o fim da Chã da Bala,
onde numa casa afastada, sombreada por um grande Pé-de-Tambor, ficava
a minha “Estalagem à Távola Redonda”. Todo mundo estava
na Praça, diante da Casa dos Garcia-Barrettos, de modo que a Chã
da Bala estava deserta, e eu pércorri o caminho da “Távola”
sem que ninguém me perturbasse. Sempre com Lino Pedra-Verde me servindo
de guia, cheguei assim à porta de casa e entrei. No primeiro momento,
não vimos ninguém. A “Távola” estava deserta,
com a mesa do bilhar abandonada, as cadeiras trepadas em cima das mesas e
sem ninguém para atender. Nem Dina nem Maria Safira estavam lá,
e o próprio Piolho tinha ido também, com o Gordo Adauto, se
reunir ao Povo, depois que me dera o recado. Chegando na saleta onde ficava
a escada que levava ao sótão, ouvimos duas vozes de homem, lá
em cima. Só então me lembrei de que Arésio devia estar,
mesmo, era fazendo companhia a Adalberto Coura na água-furtada em que
este morava. Esta expressão era de Samuel, que odiava Adalberto Coura
e que nos explicara que as pessoas como ele sempre moravam em águasfurtadas,
lugares altamente próprios, acrescenfava Samuel, “para todos esses
Lacraus e piolhos-de-cobra sediciosos, inimigos do gênero humano, esconderem
seus pensamentos e projetos endemoninhados”. Subi a escada, com Lino
me puxando à frente, e cheguei, assim, ao quarto de Adalberto Coura,
aposento dividido por tabuados, de telhado baixo, empoeirado e desarrumado.
Apesar da treva em que estava mergulhado por minha recente e estranha cegueira,
notei logo que, além de Adalberto Coura e Arésio, havia, no
quarto, uma terceira pessoa, que só depois iríamos saber quem
era. Essa pessoa estava na sombra formada pelo telhado baixo e inclinado em
declive, do sótão, e Lino Pedra-Verde, como me esclareceria
depois, logo viu, pelos cabelos compridos, que era uma mulher. No momento
em que entrei, Adalberto Coura, falando exaltadamente como era hábito
seu, dirigia-se a Arésio, num tom em que se misturavam as súplicas
e as ameaças. Era um rapaz magro, alvo, com cabelos pretos, franzino,
ardente, com os olhos que luziam como olhos de febre. Era bem moço
ainda. Vestia calça escura, camisa branca, sem colarinho mas abotoada
até o pescoço, meias e alpercatas de frade, o que lhe dava um
aspecto de noviço na cela ou de jovem frade renegado.
– Muito ‘bem! – interrompeu o Corregedor. – Seja, agora, o mais exato possível,
porque este Adalberto Coura pode ser a chave de tudo o que aconteceu naquele
dia. O que é que ele estava dizendo a seu primo Arésio? Você
é capaz de repetir exatamente as palavras que ele estava dizendo quando
você entrou? – Sou sim senhor, porque me lembro como se fosse hoje!
Ele estava dizendo: “Vá, Arésio, não recue diante
de nada! Faça tudo, mas não deixe de se apossar desse dinheiro,
porque só com ele na mão é que a coisa poderá
caminhar!” – Anote, Dona Margarida, isso é muito importante! –
disse o Corregedor.
– Arésio retrucou assim: “E quem disse a você, Adalberto,
que eu quero que a coisa caminhe?” Nesse momento, foi que ele se apercebeu
da minha chegada, e falou para mim, dizendo: “Ah, Dinis, você chegou!
Entre e sente-se. Ouvi dizer que você cegou! ( verdade?” “E,
Arésio!’, respondi.
“‘Esse Dinis enxerga mais longe do que se pensa e é um sabidão!’,
disse ele, sem que eu entendesse bem o sentido de suas palavras. `Fique aqui,
meu caro Dinis, estou precisando muito de você. O nosso Profetazinho
politico, aqui, mandou me chamar para me dar um conselho do qual eu não
precisava absolutamente, o de me apossar do meu dinheiro, de qualquer maneira!
Fique descansado, Adalberto, porque, de minha parte, estou decidido a tudo
para não perdé-lo, e quem se intrometer na minha frente para
impedir isso, será esmagado como um percevejo!’, concluiu ele com uma
expressão sombria.
“`Sim, eu confio em sua violência e sei que você é
capaz de esmagar qualquer um!’, disse Adalberto com estranho fervor e com
um rubor de febre subindo ao rosto pálido.
“‘Foi por acreditar nisso que você mandou me chamar?’, perguntou
Arésio.
“`Foi!’, confirmou Adalberto. `Não me envergonho de dizer que
não tenho as qualidades que você tem e que serão indispensáveis
quando chegar a hora de vingar todos os escorraçados, fazendo justiça
aos oprimidos!’ “E quem foi que meteu na sua cabeça a idéia
de que eu quero fazer justiça aos escorraçados?’, perguntou
Arésio, sem esconder um certo desprezo.
“Ninguém meteu isso na minha cabeça, fui eu mesmo que
me convenci!’, falou Adalberto. ‘Você pensa que me engana, Arésio?
Eu sei que você é solidário com os escorraçados
porque você mesmo é um escorraçado, e tenho certeza de
que como escorraçado que você se sente porque eu mesmo sou um
escorraçado e sei reconhecer meus iguais! Não é vergonha
ser um escorraçado, vergonha é a dos que nos escorraçaram!
Vergonha nossa seria deixar que a humilhação nos corrompesse!
O que é necessário é lutar, colocando nossa humilhação,
nosso ressentimento, a serviço da Verdade e da Justiça!’ “Bonito,
a verdade e a justiça!’, disse Arésio com expressão de
mofa. ‘O que é que eu tenho a ver com a verdade e a justiça?
Foi por me julgar um apaixonado pela justiça que você me mandou
chamar?’ “Foi!’, repetiu Adalberto com a mesma expressão de fervor.
“O Bispo morreu, Dinis?’, indagou Arésio, voltando-se para mim
e aparentemente sem muita ligação com o rumo da conversa.
“Não!’, respondi. `Pelo menos, não tinha morrido até
quando vim para cá. Dizem que ficou muito mal, desacordado, com o rosto
inchado e sangrando, porque parece que houve, inclusive, uma hemorragia interna,
que ficou enchendo a garganta e o nariz dele de sangue. Mas conseguiram estancar!’
“Está ouvindo, Adalberto?’, perguntou Arésio. ‘Eu quase
mato um ancião indefeso! E é a um homem desses que você
vem falar em verdade e justiça?’ “E, sim!’, insistiu Adalberto
Coura. ‘Eu sei que existem homens que, sendo interiormente mansos e bondosos,
têm que se esquecer disso em nome da justiça e da violência
revolucionária!’ “‘E indo, nesse caminho, até a crueldade?’,
perguntou ainda Mésio.
“‘Sim, indo até a crueldade, porque a crueldade é necessária!
O gesto que você praticou hoje contra o Bispo teve um sentido e, para
mim, foi a prova definitiva de que você tem todas as qualidades indispensáveis
a um revolucionário! Acho que os outros ficaram perplexos, mas eu entendi
o que você quis dizer e mandei chamá-lo para lhe dizer: cheguei,
também, à conclusão de que está na hora do rompimento
e da violência! Por enquanto, não existem ainda entre nós
as condições para a luta revolucionária organizada. Só
depois que o Sul e o Recife se levantem é que poderemos nos levantar
de vez. Mas temos que criar imediatamente o ambiente de ódios e ressentimentos
que hão de favorecer a insurreição, e foi isso que sua
agressão ao Bispo começou!’ “Você se refere aos atos
de terrorismo? O assassinato, inclusive?’ “‘Sim, por que não?
Na Rússia, não foi assim que tudo começou? Uma certa
tolerância, a paz dos charcos, é programa de todos os grupos
que detêm o Poder. A Paz, em certos momentos, só serve para favorecer
a Ordem constituída, o que, em nosso caso, significa a manutenção
da injustiça e do Mal! Por isso, é preciso começar a
matar. Aliás, as mortes já começaram entre nós,
com o assassinato do Sacristão, o do Padre…’ ” … E o do seu
irmão também!’, concluiu Arésio. ‘Foi você quem
matou os três, por acaso?’ “‘Não!’, disse Adalberto, ficando
ainda mais pálido. ‘Mas fui eu que escrevi as cartas anônimas
interpretando essas mortes em seu verdadeiro sentido! No nosso caso, os assassinatos
estão moralmente justificados, porque já são um revide
a tudo o que os poderosos têm feito contra o fracos! Além disso,
do ponto de vista tático, os atos violentos despertarão reações
ainda mais violentas, e se esse ambiente perdurar por uns três anos,
já teremos ressentidos e vingadores em número suficiente para
dar consistência iì Revolução. Vamos aproveitar
a confusão da rua: você indo comigo, terei coragem de matar o
Juiz, o Prefeito e o Padre!’ “E o que é que virá depois?’,
indagou Arésio, curioso, a despeito de si mesmo e como se estivesse
simplesmente a fazer uma análise do caráter que tinha diante
de si.
“O que virá depois’, disse Adalberto quase delirando, ‘será
o banho de sangue purificador, e a instauração do sol da Justiça
para todos!’ Ergueu-se da cama onde se mantivera meio deitado até aí
e acrescentou: ‘No nosso caso particular, o que virá é mais
do que isso ainda, porque só depois desse banho de sangue é
que começaremos, mesmo, a ser uma Nação! Uma Nação
unificada o forte, capaz de enfrentar e derrotar a Besta Loura que vive sugando
o nosso sangue!’ “‘Ah, já estava tardando essa expressão!’,
disse Arésio com ironia. ‘Essa você me desculpe, Adalberto, mas
foi diretamente bebida nas idéias e conversas dos Mestres de todos
nós, dos dois Capões, Clemente e Samuel, nossos Mestres amados
e nunca esquecidos!” – Os dois Capões? Foi assim que ele se referiu
ao Promotor o ao Advogado? – estranhou o Corregedor.
– Foi, Excelência! – expliquei. – Era sempre assim que Arésio
se referia aos nossos Mestres. Adalberto, como todos nós, tinha sofrido
a influência deles, e era disso que Arésio agora escarnecia.
Mas o ardoroso e doentio revolucionário não se desconcertou.
Disse, com a mesma veemência: “‘E que importância tem que
minhas expressões venham da influência dos dois Capões,
como você chama, se pelo menos nisso eles estão certos? É
preciso somente ajustar e radicalizar o que eles vivem papagueando inconscientemente
e inofensivamente para os Poderosos, para aqueles que é preciso esmagar!
E você mesmo, Arésio, apesar de escarnecer assim dessa influência,
já sustentou também tudo isso, ensinado e entusiasmado por eles!’
“Sim!’, disse Arésio, em tom evocativo. ‘Era aí por 1924
ou 1925, quando começaram a chegar aqui uns livros nacionalistas, vindos
de São Paulo! Samuel enchia nossas cabeças com eles, e eu e
Dinis sonhávamos com a fundação da Falange Nacionalista
Latino-Americana, ampliando nossos sonhos para o Continente inteiro, que nós
queríamos ver unido num País só, o Ariel Ibérico
sonhado pelo uruguaio Rodó e que nós queríamos levar
ainda mais adiante dos seus sonhos! Lembra-se, Dinis? Tudo isso são
velhas idéias! Eu ainda não me tinha posto inteiramente adulto
o não sabia ainda, com a cabeça, o que queria, se bem que, na
ação e com o sangue, eu já praticasse tudo o que desejava.
Como era o nome daquele livro que Samuel lia para nós naquele tempo,
Dinis?’ “‘Não sei, ele lia tantos! Seria o Sonho de Gigante, Arésio?’,
sugeri.
“‘Sim, Sonho de Gigante, era isso! O “Gigante” era, naturalmente,
o Brasil, País fatídico ao qual estava confiado o papel vertiginoso
de organizador da União Latino-Americana! Dinis, coitado, sonhava tanto,
que chegou a criar, na cabeça, o Partido político que iria realizar
esse sonho. Era a Falange Nacionalista da América Latina – FANAL -,
nome bem escolhido, porque dava idéia de farol luzindo nas trevas,
dizia ele. Como, de fato, nessas coisas, ele se interessa, mesmo, é
pelas insígnias, chegou até a imaginar, junto com o irmão
pintor, uma camisa para o Partido, camisa azul com uma Onça de ouro,
malhada de pingos negros e vermelhos, a Onça ou Leopardo ibérico
com as malhas simbolizando o sangue dos Negros e Indios!’ “‘Isso cheira
a Fascismo italiano, Integralismo português e Falange espanhola!’, disse
Adalberto. ‘Além disso, tudo não passa de sonho!’ “E é
proibido sonhar?’, protestei logo. ‘Antes de ser uma Nação,
o Brasil foi um sonho na cabeça de uma porção de gente.
Assim, deixem-me sonhar, desde agora, com uma das maiores Nações
do mundo, pegando do México à Patagônia! E quem sabe se
daqui a muitos anos a Etiópia, a Angola, a Africa, a India, Portugal
e a Espanha não vão querer se juntar a nós, realizando,
do Mundo, o sonho da Rainha do Meio-Dia?’ “‘Sim!’, confirmou Arésio.
‘Nós, os Latino-Americanos, “católicos e cavalheirescos,
amigos da pompa e da Arte, seduzidos por todas as belezas – desde a plástica
sensual até as mais elevadas manifestações do ritmo moral”,
como dizia o livro, seríamos os legítimos herdeiros do espírito
mediterrâneo. Por isso, seríamos o Povo indicado para se opor
à sacrílega, subalterna e desumana Cruzada industrial dos Americanos,
herdeiros da brutalidade fanática e puritana dos Nórdicos, do
egoísmo e do apego ao dinheiro dos anglo-saxoes. Mas, como eu lhe dizia,
tudo isso passou. Hoje, essa é uma idéia que pode seduzir o
capão Samuel Wan d’Ernes, o capão Gustavo Moraes e o patrono
de todos eles, o capão Joaquim Nabuco! Para mim, esses sonhos são
insuficientes, não matam a sede do meu sangue! Sabe por quê,
Adalberto? Porque a solução apresentada por esse pessoal todo
é a solução do espírito, o que é o mesmo
que dizer a solução dos castrados! O tal J. A. Nogueira chegava
a dizer, se não me engano, que o Brasil terminaria ganhando a luta
surda, já travada entre ele e os anglo-saxoes do Norte, porque a vitória
final cabe sempre, não aos mais fortes, como Aquiles, porém
sim aos mais cultos, aos mais espirituais e sagazes como Ulisses!’ “Para
mim, que sou um Decifrador, isso não está mal!’, confessei.
“Pois eu concordo é com Arésio!’, disse Adalberto, exaltandose
cada vez mais. ‘Eu, Arésio, talvez não passe de um fraco, de
um espiritual e sagaz, como você diz. É por isso, exatamente,
que preciso de você!’ “Para que eu sirva de braço ao sopro
do Espírito?’, perguntou Arésio.
“‘Exatamente! Você é corajoso e violento e, se se encaminhar
no rumo certo, poderá colocar a violência de seu sangue a serviço
da Justiça. E por isso que, se eu confesso que preciso de você,
você precisa entender que precisa também de mim!’ “‘Para
quê?’, disse Arésio, rebelando-se um pouco.
“Para iluminar seu caminho com o fogo do espírito, porque isso
eu tenho! Você, com as idéias do Doutor Samuel e do Professor
Clemente, só viu a primeira metade da estrada, é preciso ver
a segunda, Arésio! A primeira parte, consiste, realmente, em enxergar
o inimigo, a Besta Loura Calibã que precisamos enfrentar e derrotar,
aqui! Para isso, todos nós estamos de acordo em realizar a união
da América Latina! Entretanto, mesmo entre nós que pensamos
assim, existe, e deve se acentuar mais ainda, uma cisão, duas facções
opostas, representadas, no século XIX brasileiro, por Joaquim Nabuco,
de um lado, e Sylvio Romero, do outro, como o livro de J. A. Nogueira, aliás,
explicava, mas tomando o partido errado, o de Nabuco! Para Joaquim Nabuco
e seus seguidores, o Brasil é, e deve se esforçar por ser cada
vez mais, um prolongamento da Península Ibérica. No fundo, todos
esses são traidores da nossa luta, saudosos da Europa, exilados e desenraizados
aqui! Nosso caminho deve ser outro. Temos que aprofundar e ampliar a picada
aberta por Sylvio Romero e Euclydes da Cunha. Sim, Arésio, na luta
que inevitavelmente se vai travar entre os Latinos e os Nórdicos, deveremos
ficar, primeiro, fiéis a nossas raízes ibéricas. É
o primeiro passo, com o qual estamos todos de acordo. Mas não devemos
esquecer, também, que todos os Povos submetidos e explorados do mundo
são Negros, qualquer que seja a sua cor. Daí, a solidariedade
que deve haver entre nós, Latino-americanos, os Negros e os Asiáticos!’
“‘Olhe, Adalberto’, disse Arésio, pondo-se sério de repente,
‘não tenho nada a ver com sua vida, mas de uma coisa preciso adverti-lo.
Ou melhor, de duas! A primeira, é que essa última parte de suas
idéias vem do capão Clemente. Por isso, como acontece com todas
as idéias de capão, está cheia de lugares-comuns o fórmulas.
Para Clemente, que nisso tem uma viseira, tudo se passa de acordo com esquemas
preestabelecidos. Um desses, é que o Povo brasileiro, descendente de
Negros e Indios e pobre, terá sempre um inimigo na casta dos Senhores,
esta representada sempre pelos proprietários de terra e pelos Soldados.
Quem sabe se o caminho da América Latina não surpreenderá
todo mundo? Uma das idiotices do capão Clemente é subestimar
o papel das Forças Armadas e da Igreja, na América Latina. A
outra advertência que tenho a lhe fazer é esta: cuidado com os
Mestres e Senhores que ocupam a cúpula de seu Partido. Talvez eles
não aprovem suas idéias, e podem entregar sua cabeça
à Polícia com a maior sem-cerimônia! Você morrendo,
representará, para eles, uma dupla vantagem: livram-se de um correligionário
heterodoxo e perigoso, e criam um mártir para a luta!’ “‘Eu não
tenho nem Mestres, nem Senhores, Arésio!’, disse Adalberto. ‘Na minha
luta, não conto com ninguém! E com quem eu poderia contar? Mais
ainda: com qúem nós poderíamos contar, nós, Latino-Americanos,
Negros e Asiáticos? Com os Russos? Os Russos já desempenharam
seu papel e não nos entenderão. Veja esse problema do qual eu
falava há pouco: na Revolução, os Russos se aproveitaram
de todas as cargas de ódios e ressentimentos surgidos pelos assassinatos,
pelas bombas, pelas punhaladas, pelas execuções e fuzilamentos,
e assim podem se dar hoje ao luxo de condenar o terrorismo. A mesma coisa
eles farão no plano mais amplo, não reconhecendo, na luta travada
pelos Povos negros do mundo, uma luta parecida com a deles em 1917! Quanto
à minha cabeça, não me incomodo se a cortarem! Pode ser
que, assim, minha família se torne ressentida e queira vingar a minha
morte, nem que seja por espírito de vingança sertaneja. Aí,
serão mais trinta ou quarenta ressentidos vivos em troca de um só
morto, trinta ou quarenta ressentidos que serão trinta ou quarenta
revolucionários em potencial!’ “Está bem!’, disse Arésio.
‘Mas eu tenho, ainda, uma objeção a fazer a suas palavras. Você
falou como se fosse um igual dos Negros e pobres do mundo. Mas você
tem que reconhecer que, queira ou não queira, é branco e de
família poderosa!’ “‘Eu sei, e você é igual a mim.
Eu não teria fé nenhuma, nem em mim nem em você, se não
tivesse ocorrido conosco o mesmo incidente – a expulsão realizada pela
família, a velha história do Pai, do filho, do homem, do anjo
e da espada à porta! Isso nos tornou proscritos, expulsos, escorraçados
e ressentidos, aproximando-nos dos Negros e pobres do mundo pela humilhação.
Olhe, Arésio: no Brasil, a situação é a mesma
de toda a América Latina, porque, como dizia o livrinho de Nogueira,
os Andes não separam duas culturas diversas e todos nós somos
herdeiros da Península Ibérica. De modo que eu só penso
em termos de América Latina, porque nosso caminho é o da união.
Ora, acontece que, entre nós, os Conquistadores ibéricos dominaram
os Povos negros o vermelhos, e foi sobre o extermínio ou sobre a escravatura
que se fundaram esses arremedos de Nações que somos nós.
Veja como o problema é grave: separadamente, nenhum de nós é
ainda um País, e só unidos é que seremos, no Mundo, a
Nação que temos o direito de ser. Mas vamos adiante: dentro
de cada um dos nossos arremedos de Nação, qualquer que seja
a cor de um Brasileiro ou Mexicano pobre, ele é um Negro, submetido
e escravizado. Por mais estranho que lhe pareça, nosso destino peculiar
de herdeiros dos Ibéricos só poderá se realizar na medida
em que caminharmos na direção do Povo, isto é, dos Negros!
Sim, porque os descendentes dos Conquistadores ibéricos que não
fizerem isso, terminarão traindo. Subornados pela riqueza e pela tentação
vulgar do conforto, fazem o jogo da Besta Loura e escravizam o Povo, vendendo
a Nação em troca de uma pequena participação nos
despojos, participação humilhantemente consentida por seus patrões
da Besta Loura! O Brasil só será uma Nação quando
reparar essa injustiça, acabando essa dualidade. Só assim, Arésio:
acabando, pelo banho de sangue da pureza revolucionária, essa separação
entre Brancos-Ricos e Negros-Pobres, e tornando-nos, todos nós, orgulhosamente
Negros, Vermelhos e Brasileiros!’ “‘A Onça amarela, com malhas
negras e vermelhas, a Onça Castanha de Quaderna!’, disse Arésio
sorrindo.
“`Vá lá, se você prefere chamar assim!’, disse
Adalberto erguendo os ombros.
“Olhe, Adalberto, não nego que tenha simpatia por você!’,
disse Arésio, pesando bem suas palavras, como se temesse mentir involuntariamente.
`Acontece, porém, que, como eu disse, para mim, tudo isso são
idéias mortas e passadas! Veja bem que não digo idéias
erradas ou mortas para todo mundo. Mas são idéias mortas para
mim, porque, há muito tempo, deixei de me interessar pelo que pode
ser certo ou que pode ser errado. Acho que essa busca incessante para distinguir
o certo e o errado é coisa do espírito e não do sangue.
Mas, de qualquer modo, a título de informação para você,
vou lhe dizer uma idéia que me h correu, a mim que tenho muito poucas.
É que eu, nós, nada temos a ver com a sorte do Povo. A questão
não é de justiça, não, é de Poder. Se o
Povo puder conquistar o poder, conquiste. Por enquanto, só existem
dois tipos de Governo: o dos opressores do Povo e o dos exploradores do Povo.
O primeiro, é o dos Tiranos, o segundo é o dos Comerciantes.
No primeiro tipo, o Povo é submetido e esmagado em nome da grandeza;
no segundo é explorado em nome da Liberdade. Pois bem: ao contrário
de vocês, que colocam suas opções em termos abstratos
de Justiça, Verdade, Liberdade, etc., eu coloco as minhas num plano
puramente pessoal e concreto, o plano do Poder. Não nego que, em outros
tempos, eu tenha me deixado seduzir por esses problemas que os dois capões
colocavam diante de nós, a respeito do Brasil, do Povo brasileiro,
da União Latino-Americana, da Cultura Ibérica e de todas ‘essas
palavras sonoras que eles são mestres em inventar! Mas mesmo quando
eu fazia isso, era por um motivo puramente pessoal: era por ter nascido aqui,
por ser também, como diz você, um Ibérico transplantado,
um meio-negro, de modo que, de certa forma, esse era o caminho para que eu,
inconscientemente, aumentasse meu valor e poder pessoal de homem! Por isso,
interessava-me indiretamente a grandeza da América Latina, para que
eu mesmo também crescesse, porque sou também um de vocês,
com tudo o que isso implica de qualidades e defeitos, e orgulhando-me tanto
das qualidades quanto dos defeitos!’ “‘Sim!’, concordou Adalberto. `E
eu me lembro de um dia em que você teve, comigo, uma conversa importantíssima,
e me disse algumas palavras que, para mim, foram o começo de tudo!
Eu era quase um menino, e estava muito orgulhoso de você conversar comigo
daquela maneira. Depois, quando você já tinha ido embora, eu
não conseguia dormir. Peguei um caderno, e reproduzi o que você
tinha me dito. Guardo sempre comigo a cópia dessas palavras, Arésio,
e vou repeti-las para você. Eu copiei tudo à noite, depressa,
com o pensamento correndo adiante da mão, pois estava com medo de me
esquecer de alguma coisa mais importante. Posso ter cometido algum engano
quanto às palavras, mas o pensamento, a essência do que você
disse, creio que está aí, inteiramente fiel. E mesmo as palavras,
acredito que sejam as suas. Eu ouvia você com tal fervor, que acho muito
difícil ter me esquecido de alguma coisa. Em todo caso, ouça
e seja você mesmo o juiz!’, concluiu ele, tirando um papel do bolso
e lendo as seguintes palavras, das quais lhe pedi cópia e que anexo,
agora, ao inquérito, porque é uma peça importante para
esclarecimento do caso: “”‘Ah, esses negociantes e usurários
do mundo! Querem nos moldar à imagem deles, a nós, Povos morenos
dos países quentes, nós, os ardentes, os que ainda temos a capacidade
de ser felizes, de fruir a vida, num mundo em que isso vai ficando cada vez
mais raro! Eu gostaria que eles nos deixassem fruir da nossa Vida, que eles
consideram suja, e enfrentar a nossa Morte, que consideram irracional! Ficassem
para lá, com sua riqueza amontoada por séculos de trabalho estúpido
e tenaz, com seu poderio acumulado em máquinas e dinheiro, com seus
ideais puritanos de higiene e virtude! Mas não! Eles precisam nos vender
seus produtos, para acumular mais dinheiro! Então, procuram nos corromper
para nos dominar, sob o pretexto de que somos uns adolescentes bárbaros,
encantadores mas irresponsáveis, que é preciso conter e domar
com rédea curta, senão atrapalham e sujam a ordem do Mundo!
A prova que apresentam disso é que nós, principalmente os do
Povo, os mais pobres, os que mais deviam pensar no dia de amanhã, somos
incapazes de amealhar. Deixamo-nos comer, de bom grado, pela fome e pelas
doenças, contanto que possamos cantar e dançar imprevidentemente
sob o Sol violento das nossas terras quentes e iluminadas. Então, a
pretexto de salvar-nos dessa vida de ignomínia e dessa morte desonrosa,
vêm nos corromper e nos roubar. Vendem-nos, ao mesmo tempo, os produtos
para a nossa higiene e os ideais de um mundo organizado à base da poupança
burguesa, da mealha, do trabalho duro, desumano e organizado. Mas tudo o que
eles possuem e querem nos passar são os frutos apodrecidos da impotência
para o prazer, para a alegria, para a felicidade animal e selvagem. Esses
Povos de comerciantes, os mais tristes do mundo, nascidos e criados entre
o frio, o escuro o a severa infelicidade dos ideais puritanos, querem impingir
suas receitas de vida a nós, Povos morenos, criados ao Sol! Como é
que poderão, nunca, nos entender? Esse Negro que se veste de Rei no
Auto dos Guerreiros sabe que gastou quase tudo o que possuía para comprar
o Manto e a Coroa, mas acha que a alegria de vesti-lo é compensação
muito maior do que o preço pago. Aquele Caboclo, cassaco da cana-de-açúcar,
sabe que o rio, contaminado, está cheio de doenças mortais que
vão inchá-lo por fora o comer suas entranhas por dentro, entupindo
seu coração de depósitos calcários de bichos estranhos
ao sangue humano. Ele sabe de tudo isso, porque, todo dia, vé seus
companheiros inchando e morrendo assim. Mas acha que, na sua vida miserável
o sem perspectivas, primeiro só acha o que comer entrando no rio; e
depois sabe que tem poucas alegrias iguais ao puro e selvagem prazer do banho
de rio ao meio-dia, estando ele cansado o suado do calor do Sol. Aquele outro,
que é Sertanejo, sabe que será morto, se escolher a vida livre
das Catingas, as correrias do Cangaço. Mas sabe, também, que,
enfrentando essa vida incerta o essa morte certa, terá direito ao que
nunca teve: uma vida sem dono, uma vida de Senhor e sem trabalho escravo.
Por isso nao se importa de viver perseguido como um cachorro mordido. Sabe
que esse é o preço que terá de pagar para poder possuir
mulheres com as quais, antes, não poderia nem sonhar, as filhas da
gente poderosa, lindas e orgulhosas, que passeavam os olhos por ele sem nem
ao menos o avistarem, como se ele não existisse, e que agora o vêem,
com espanto, terror e perturbação, vestido com sua Armadura
de couro e com as insígnias de prata de sua realeza, aparecendo diante
delas não mais como um ser ignorado e desprezado, mas como o temeroso
Senhor da sua honra e de seu destino, o Emissário de uma vida cruel,
selvagem, errante e guerreira, fascinadora e terrificante. Todos esses são
homens de Raça fidalga, degredados e degradados numa vida de ignominia,
inferior a eles. Quem teria o direito de acusá-los e incriminá-los,
se se revoltam o procuram uma outra vida, mais de acordo com os impulsos e
a raça do seu sangue? Quem teria o direito de reprovar a escolha que
eles fazem, condenando-os em nome dos ideais desses Povos tristes e duros
de Burgueses dominicais, apavorados pelos Pastores, pela opinião, pela
filantropia das sociedades protetoras de animais o pela higiene? Como é
que esses paroquianos podem entender a selvagem alegria de uma briga de touros
ou de galos, com o prazer e o encanto da luta, das apostas, do jogo, da festa,
da sagração da vida inocente e cruel? Eles jamais entenderão
que a morte cruel de um touro ou de um galo vale a alegria de um punhado de
homens; não aceitam isso porque prezam mais suas regras e fórmulas
filantrópicas do que a alegria dos homens. Nós não precisaremos
nunca de inventar uma imagem falsa da Vida para poder amá-la. Porque,
na dureza e sob o Sol, nós aprendemos à força a amá-la,
com o que ela tem de ardente e glorioso, mas também com o que possui
de degradado, sangrento e sujo. O que é cruel e sujo também
faz parte da vida, e terá que ser enfrentado com as armas do sangue,
do riso, e da luta, com a valente tenacidade do homem diante do que a Vida
tem de mais desordenado – o sofrimento, a humilhação e a Morte”.”
– Quando Adalberto terminou de ler essas palavras, Senhor Corregedor, Arésio
falou com uma estranha e inesperada entonação de melancolia
na voz: “Sim’, disse ele, `era assim que eu falava naquele tempo!’ “Eu
não lhe disse?’, falou Adalberto. `Lembro-me de tudo! Eu escutei atentamente!
No outro dia, viajei para o Recife, e foi a partir dessas palavras suas e
da minha viagem que se iniciou aquilo que você, há pouco, antes
de Quaderna chegar, chamou ironicamente de minha instrução revolucionária.
Agora, eu lhe pergunto: você acreditava, mesmo, em tudo aquilo que me
disse?’ “`Acreditava sim, Adalberto! E acredite que, se falei com alguma
ironia quando me referi à sua instrução revolucionária,
a ironia foi mais dirigida contra mim do que contra você!’ “Então,
por que é que se recusa a iniciar sua instrução revolucionária,
assim como a apoiar e ajudar a minha?’ “Creio que a explicação
disso está nas minhas palavras, que você guardou e repetiu tão
bem. Você, seduzido por uma parte, parece que deixou de prestar atenção
à outra. Acho que você não anotou isso af, devidamente,
porque, sem querer, guardou mais o que correspondia a seus sonhos e seus desejos.
Creio que seus amigos, mestres e companheiros do Recife não aceitam,
de modo nenhum, minhas idéias. Não falo nem dessas de hoje,
mas das daquele tempo, mesmo! Todos eles pensam por esquemas, e como as minhas
idéias não cabem nos esquemas preestabelecidos por eles, nem
sequer as examinam. Por exemplo: seus amigos são incapazes de ver que
o Exército e a Igreja são, na América Latina, os únicos
Partidos organizados, disciplinados e verdadeiramente existentes. São
incapazes de ver que a hostilidade com que eles tratam esse dois Partidos
é uma estupidez, que só favorece os nossos inimigos de fora.
Sim, porque enquanto nós nos dilaceramos aqui em divisões estéreis,
eles vão entrando, corrompendo, furtando e se apossando à vontade
de tudo o que desejam. A união da América Latina tem que se
fazer através dos nossos Exércitos, e para isso, temos que forjar
um pensamento novo, uma nova Teoria do Poder, original, resultante das nossas
qualidades e defeitos, das nossas peculiaridades e singularidades. Mas vocês
ficam papagueando as idéias feitas que nos vêm de fora. O liberalismo
é uma delas. Vocês não vêem que o liberalismo só
interessa, aqui, aos que querem nos roubar? É por isso que, lá
fora, de vez em quando, começam a sair ataques contra o que os galegos
chamam o caudilhismo latino-americano, o militarismo latino-americano, os
golpes latino-americanos, as ditaduras militares latino-americanas. Os galegos
sabem, muito bem, que se aparecer um verdadeiro Soldado, que reúna
as qualidades do Caudilho e do Rei, nós levantaremos a cabeça.
O Brasil primeiro, porque é maior; depois toda a América Latina,
que formará um País de duzentos milhões de habitantes.
É isso o que eles não querem, e vem daí toda a propaganda
que fazem para nos impingir, de cima e por fora, o regime da Inglaterra vitoriana
ou dos Estados Unidos puritanos, cruéis e avarentos. Pronto, já
falei demais: af está uma idéia de capão, que ofereço
a você e a Dinis, para se aproveitarem dela como quiserem. Mas tenho
que lhe lembrar, ainda, algumas coisas que eu dizia, mesmo naqueles meus tempos
de entusiasmo. Não sei se você se lembra, mas eu dizia, também,
que não poderia nunca aceitar a igualdade como ideal, porque, sendo
também filho desse sangue LatinoAmericano, do sangue que dá
os Cangaceiros, profetas e Caudilhos, eu sei que cada um de nós tem
de realizar a seu modo a glória ardente da sua Vida, e enfrentar, também
a seu modo, a sujeira e o sangue da Morte, ambas diante do Sol. Sim, porque
diante dessas coisas, a Vida e a Morte, cada um tem de se atar sozinho, pois
ficamos sempre inteiramente sós diante delas!’ “`Sim!’, insistiu
Adalberto, como se teimasse em só ouvir uma parte das palavras de Arésio.
`Sim, eu sei! É preciso corrigir e ajustar o que existe ainda de desviado
em seu pensamento, porque você dá alguns erros graves de interpretação.
Há pouco, por exemplo, você disse que só existiram até
hoje, no mundo, dois tipos de Governo, o dos comerciantes que exploram o Povo,
e o dos tiranos que oprimem o Povo. Dou certa razão a você. Quanto
ao Governo dos comerciantes, estou inteiramente de acordo. Acho, mesmo, que
uma das tarefas do pensamento Latino-Americano é desmascarar as imposturas
da Democracia liberal-burguesa, o regime dos comerciantes, como você
chama. Aliás, nós temos tudo para isso, porque nossa tradição
política não é essa, da Democracia burguesa. Entenda
bem o que estou dizendo, para não torcer meu pensamento depois, Quaderna!
Eu pessoalmente, talvez pelo fato de termos sido súditos de Filipe
II, tenho mais simpatia por aquela Autocracia total que, no século
XVI, determinava até o modo de vestir dos vassalos, do que pela impostura
da Democracia dos comerciantes ingleses, que nos foi imposta artificialmente,
por ideais superpostos, que não correspondem à nossa vida e
à nossa formação. No século XVI, Arésio,
a opção era entre a Autocracia coroada e meio teocrática
de Filipe II e a República de comerciantes, da Holanda ou da Inglaterra.
Hoje em dià, os Estados Unidos são uma espécie de Holanda
em ponto grande – um Povo de comerciantes farisaicos e puritanos – organizado
na mais poderosa das imposturas que já se fizeram em torno do Bezerro
de Ouro!’ “E qual será, hoje, a Autocracia total e meio-teocrática
que se opõe aos Estados Unidos? A Rússia?’, indagou Arésio,
novamente irônico.
“‘Sim, é a Rússia, por que não?’, retrucou Adalberto,
com o mesmo fervor de antes. `É a Rússia, com tudo o que o Comunismo
tem de teocrático e de apocalíptico, de inquisitorial e escatológico,
o que digo, não de modo pejorativo, e sim como LatinoAmericano e herdeiro
da tradição autocrática de Filipe II! Mas o que eu ia
dizer, mesmo, era que você esqueceu, nas suas palavras, de fazer uma
distinção importante: existem, de fato, somente dois tipos de
governo, o dos que exploram e o dos que oprimem o Povo. Mas, entre os que
oprimem, existem, também, dois tipos: os que oprimem em nome da grandeza,
como Filipe II, e os que oprimem para realizar a justiça, como Lénin!’
“‘E qual é a diferença, para o Povo que é oprimido?’,
indagou Arésio, meio impaciente.
“‘A diferença é que os que oprimem em nome da justiça
esperam instaurar a felicidade para todos!’, disse Adalberto no mesmo tom
de fervor doentio.
“‘Ah, a felicidade!’, disse Arésio, com desprezo. `Esse é
um ideal mesquinho, no plano individual, e um sonho de capões quando
passa para o coletivo!’ “`Um ideal mesquinho?’, disse Adalberto, admirado.
`Não, é o ideal de todos! Todo mundo procura a felicidade, a
tranqüilidade, a alegria e a paz!’ Todo mundo?’, insistiu Arésio.
`Todo mundo, não! Das pessoas que estão aqui, quantas procuram
a felicidade? Você, procura o sofrimento e um castigo, que, não
sei por quê, deseja, desde que o conheci!’ “`Isto são frases!’,
rebateu Adalberto. `E mesmo que fosse verdade a meu respeito, Quaderna é
alegre e procura a felicidade! Talvez até já tenha achado a
tranqüilidade, a paz e a alegria, se bem que eu não concorde com
os métodos que ele empregou para isso!’ “A verdadeira alegria,
Adalberto, a alegria ardorosa e pura que nós somente pressentimos,
é impossível para o homem, assim como a paz e a felicidade são
os ideais mesquinhos dos frívolos, covardes e superficiais. Isso, no
plano individual, como eu dizia. Se você pensa em todos os homens, esse
ideal mesquinho de felicidade e paz se amplia, em tamanho e estupidez, no
ideal da justiça. O mais que o homem verdadeiro procura, em seu conflito
com o mundo, é colocar uma precária ordem em sua vida e um certo
estilo em sua melancolia, em seu destino, que é, por natureza, despedaçado,
triste, falhado, enigmático e trágico. Para isso, o homem tem
duas fontes, duas raízes de defesa – o choro e o riso. Mas o choro
e o riso verdadeiros, aqueles fincados profundamente o cujo ritmo se alimenta
de sangue e de subterrâneo. Dinis Quaderna não é alegre,
Adalberto. Quem passou o que ele passou e viu o que ele viu, não pode
ser alegre. Os subterrâneos do sangue dele são como os meus,
povoados de mortos sangrentos que flutuam no rio da desordem. Apenas, enquanto
eu resolvo meu conflito pelo choro e pelo suor do sangue e da violência,
ele resolve o seu pelo riso; mas eu não sei qual o mais despedaçado,
se o meu sangue ou se o riso dele!’ “Pois reajam!’, gritou Adalberto.
`Reajam e lutem, porque, como eu estava dizendo, existem os que oprimem de
início, sonhando com uma justiça mais alta, com uma sociedade
nova, com uma vida em que ninguém, principalmente os pobres que estão
sós, tenha que enfrentar mais, sozinho, a sujeira e a desordem da vida!
É por isso que eu acredito na América Latina! Quando nós
não nos envergonharmos mais da nossa tendência para o caudilhismo,
a guerrilha e o cangaço, quando nós provarmos que a nossa vocação
autocrática pode ser orientada e inclinada para a organização
de um verdadeiro Estado, aí sim, teremos todas as qualidades do nosso
Povo retificadas e unificadas pela verdade. Ficará claro que só
num verdadeiro Estado, organizado à base da verdade e da justiça,
é que o homem pode realizar sua inclinação natural para
o bem, a mansidão, a fraternidade, a generosidade, o tudo mais que
nos afasta da animalidade, do egoísmo e da crueldade. Suas idéias,
Arésio, deixarão de ser uma faca de dois gumes, e os mansos
e misericordiosos não terão mais que se dilacerar na violência
justa e na crueldade necessária, porque, pela primeira vez na História,
a justiça e a misericórdia estarão reunidas o unificadas
numa coisa só!’ “E um belo sonho!’, disse Arésio. `Infelizmente,
nosso tempo não permite mais esses sonhos! O nosso tempo estala, Adalberto,
é um tempo trágico!’ “O mais trágico, nele, Arésio,
não é que o vício e a maldade tenham aumentado, como
dizem os superficiais, que acham, sempre, que, no tempo passado, no tempo
deles, tudo ia melhor. O pior, agora, é que a ordem e as virtudes antigas
não são mais suficientes. É por isso que, entre outras
coisas, a noção de liberdade e de justiça das democracias
liberais perderam a força de ação e reivindicação
que possuíam no século XVIII. A tal ponto, que, hoje, essas
noções não entusiasmam mais ninguém, a não
ser os membros das Academias e dos clubes filantrópicos de comerciantes.
Hoje, todos nós estamos exigindo, pedidas por nosso sangue e formuladas
por nosso pensamento, uma liberdade mais violenta e uma justiça implacável,
para que o homem abra seu caminho em direção àquilo que
os religiosos chamam o Divino e que nós chamamos o mais elevado e o
mais nobre do humano!’ “`Meu caro Adalberto’, disse Arésio, `você
é, e será sempre, um professor! Abra o olho, senão termina
ficando como os dois capões! Isso é, aliás, a mesma coisa
que eu vivo dizendo aqui ao nosso Dom Pedro Dinis Quaderna! Mas Quaderna,
sendo meu primo, tem um pouco do meu sangue e é, pelo menos, um Poeta
a cavalo, como diz o Padrinho dele, João Melchíades. Quaderna
caça, anda e corre a cavalo pelas estradas, enquanto você fica
aqui, trancado entre essas quatro paredes, pensando, sonhando e falando só!
Cuidado com o mofo e as teias de aranha!’ “Eu sei que estou correndo
esse perigo, Arésio!’, concordou Adalberto. `Foi por isso, aliás,
que mandei chamá-lo aqui: tenho confiança em você, assim
como, de certa forma, também ainda espero alguma coisa de Quaderna!
Mas como é que poderemos agir indiscriminadamente, agir sem pensar?
E como pensar sem nos isolarmos entre quatro paredes? É ainda a injustiça,
a desordem do mundo em que nasci, que está me tornando um monstro mental
e moral, como transforma em monstros físicos os barrigudos, inchados
de vermes e amarelos de fome, que você viu na Zona da Mata e dos quais
falávamos há pouco! Pois bem: aceito sua crítica a respeito
do meu mofo e recebo de bom grado as suas ironias, contanto que você
me ouça também, refletindo e pesando suas decisões. Talvez
você até vá sentir desprezo pelo que vou lhe dizer agora,
mas vou ainda mais longe nas minhas confissões. Você estava falando
há pouco, em tom de zombaria, do livro de J. A. Nogueira. Pois olhe,
está aqui: eu também fiz essa coisa ridícula, escrevi
um livro, que mandei imprimir por minha conta, em Campina, e que contém
o fruto dos meus pensamentos. Ou, se você preferir, que contém
as teias de aranha e o mofo dos sonhos que sonhei durante os cinco anos em
que estive ausente daqui. Você terá paciência de ouvir
o resumo do que escrevi?’ “Claro, estou até curioso, dependendo
do assunto. E você, Dinis?’ “Eu concordei que também queria
ouvir, Senhor Corregedor.’
“Então Adalberto Coura tirou de sob o colchão da cama
uma pequena brochura suja, com o título de Pensamentos sobre o Estado.
O livro tinha algumas indicações que fizeram Arésio sorrir,
porque indicavam a extrema juventude em que ainda se achava o autor. Em primeiro
lugar, na capa, anunciava-se logo que aquela era a primeira edição,
indicando-se, assim, que o autor esperava tal demanda do público que
logo se seguiria outra. Depois, na folha de rosto do livro, via-se escrito
`Coleção Livros Eternos – 1.0 Volume’. Em terceiro lugar, a
brochura era enfaticamente dedicada ‘à figura indelével de meu
tio, Josué Coura, vagabundo, escorraçado e revoltado nas estradas
do Sertão’. Ora, Senhor Corregedor, o tio de Adalberto, Josué,
filho de uma das nossas melhores e mais importantes famílias, era um
excêntrico, meio doido, atacado da mania religiosa das peregrinações,
um homem que vivia esmolambado e solitário, errando de estrada em estrada,
ninguém sabe à procura ou à espera de quê. Finalmente,
o livro tinha uma introdução, tão breve e minúscula
quanto ele, mas não menos enfática, e que dizia textualmente:
`Este livro está dividido em três partes. Das duas primeiras
– ou seja, das partes sobre a Vida e sobre a Verdade – decorre a última,
a parte sobre o Estado, a mais importante de todas, principalmente por anunciar
a realização, no mundo, do verdadeiro Estado, num futuro de
cuja chegada as atuais experiencias e êxitos do Socialismo são
os primeiros arautos. E embora os pensamentos nele contidos não expressem
com fidelidade o alto esforço mental que exigiram do autor, o leitor
perceberá que eles encerram a mais elevada Filosofia’. Quando Adalberto
Coura leu isso para nós, Arésio não pôde deixar
de sorrir. A conversa se encarniçou então, em torno dos setenta
e dois aforismos que o livrinho continha, e que, elaborados pelo ‘alto esforço
mental do autor’, revelavam, segundo sua própria opinião, ‘a
mais elevada Filosofia’, rival, portanto, da ‘Filosofia do Penetrai’, de Clemente.
Aliás, os aforismos mostravam uma mistura daquelas idéias que
Adalberto, muito moço aindá, ouvira de Clemente, de Samuel e
do próprio Arésio, ou que bebera depois, em leituras desordenadas,
feitas na nossa Biblioteca, em Campina Grande e no Recife. O ponto de partida
do novo rumo tomado pela discussão, foi o título dado por Adalberto
Coura as três partes do livrinho, principalmente as duas primeiras,
que versavam sobre a vida e sobre a verdade. Arésio, agora com mais
energia, voltava a afirmar o direito à disputa e à violência.
Dizia que todas essas afirmações a respeito da bondade e da
justiça eram hipocrisias e disfarces para a fraqueza. O homem era,
naturalmente, cruel e ávido, e a vontade de poder era a verdadeira
mola de todos os nossos atos. Adalberto, fervorosamente, concordou com ele:
“‘Mas eu estou de acordo com você, Arésio. A vontade de
poder é a lei da vida, que é a luta para satisfazer suas necessidades
o impulsos naturais! Agora, o que acontece é que o Estado deve existir,
cada vez mais sólido e forte, exatamente para que todos os homens possam
satisfazer, com perfeição e em segurança, suas necessidades
e sua vontade de poder!’ “`Pois abra o olho com seus Mestres e patrões,
aviso novamente, porque essa é uma parte de seu pensamento que não
será tolerada nos esquemas deles!’ “Isso não e comigo!
Não tenho culpa de que eles não tenham inteligência ágil
para entender que nós, Latino-Americanos, não podemos pensar
como os filósofos alemães do século XIX! É preciso
reconhecer que nossos adversários têm razão em certas
coisas. Toda alegria e toda felicidade provém da consciência
de algum poder. No atual estado de coisas, é impossível uma
felicidade atingir todos os indivíduos, porque o poder alcançado
por um o que produz sua felicidade e sempre o poder perdido por outro. Nossos
adversários viram isso, mas tomaram o caminho errado, ficando do lado
da desordem. E preciso mostrar que o diagnóstico está correto,
mas que o único remédio é a instauração
do verdadeiro Estado, ou Estado do Futuro, onde o interesse de um será
o de todos.’ “E a verdade?’, disse Arésio.
“Ah, a pergunta de Pilatos!’, disse Adalberto sem sorrir. ‘Chama-se
verdade, Arésio, uma afirmação com a qual mais de um
homem concorda. Quanto maior o número desses homens, maior a importância
dessa verdade. O resto, é confusão e sonho dos idealistas! Assim
como não existe Verdade em si, também não existe falsidade
em si. Uma falsidade é somente e sempre um choque de verdades. Daí
eu dizer, no meu livro, que quanto mais verdades sociais e menos verdades
individuais existirem, mais haverá progresso, compreensão e
felicidade entre os homens.’ “‘Mas então, as afirmações
do seu livrinho, sendo puramente individuais, estão sujeitas a todas
as contestações!’, ponderou Arésio.
“‘Al é que você se engana, Arésio. As afirmações
do meu livro – entre as quais a mais importante talvez seja essa da verdade
como coisa estabelecida socialmente pela maioria – são incontestáveis,
porque o testemunho de todos os homens comprova que, no tempo da selvageria,
havia um número de verdades infinitamente inferior ao de agora, com
a Civilização e o seu desenvolvimento. E isso era de esperar:
porque é a organização econômica total e absoluta
que produz a organização das verdades parciais num todo indiscutível.
Será da organização e da semelhança de todas as
verdades num todo comum que decorrerá a paz entre todos. Essa, aliás,
é a razão do sucesso sem precedentes que o Socialismo, todo
baseado no fundo econômico, vem tendo na Rússia, por mais que
você zombe dela!’ “`Não, eu não zombei coisa nenhuma!
Estou somente verificando que sua Autocracia, sua Teocracia é bem mais
violenta e unificada do que a de Filipe II, que inclusive não teve
êxito! Agora, eu lhe pergunto, não por mim, mas por causa, aqui,
do nosso Quaderna: e Deus? O que é que sua Teocracia vai fazer sem
essa idéia central de todas as Teocracias?’ “‘Como tudo mais,
Arésio, a existencia de Deus é relativa. Na América Latina,
eu não posso deixar de examinar esse problema. Deus existe por enquanto,
porque os homens Latino-Americanos, que são aqueles com os quais terei
que lidar, fazem perguntas a esse respeito. Mas, de fato, são os grandes
Estados que instituem as grandes verdades; só um Estado total pode
nos tirar do beco sem saída das verdades particulares, cujo choque
produz a desordem atual. Sim, porque se verdade é a afirmação
feita por um conjunto de homens, o Estado é um conjunto organizado
de verdades. Da vida, surge a verdade, e de ambas surge o Estado!’ ”
‘Mas Adalberto, parece até que você sonha com um mundo em que
todo mundo agisse e pensasse da mesma maneira!’ “Sim, e por que não
haveria de sonhar com isso, se as diferenças até hoje só
causaram sofrimento e desordem? Aliás, todo mundo sonha com isso, mas
não tem coragem de confessar! Eu tenho essa coragem! No verdadeiro
Estado, não haverá nenhum enigma, nenhum mistério, e
todas as perguntas filosóficas terão respostas, absolutamente
idênticas por parte de todos os indivíduos. Ah, Arésio,
não acredito que você não sonhe com isso, imaginando quanto
será boa a vida num verdadeiro Estado, onde não exista a mais
leve sombra de desordem, de oposições e choques. E vou mais
longe ainda: digo-lhe que, no futuro, a concepção do Estado
deverá substituir a concepção do Universo.’ “E como
você espera instaurar essa ordem perfeita do verdadeiro Estado? Através
da violência e da desordem da Revolução?’ “Sim, pelo
menos no começo! A construção do verdadeiro Estado terá
que ser feita pela Revolução, mas sua continuação
e solidificação será tarefa da Educação,
de uma Educação total. Esta será tão perfeita,
que cada pessoa de uma determinada idade pensará absolutamente do mesmo
modo que outra de idade semelhante.’ “E os choques de geração?’
“`Não ocorrerá nada disso, porque cada faixa de idade será
aproveitada em setores de trabalho independente.’ “E os sonhos e pensamentos
extravagantes de cada indivíduo?’ “Também não haverá
nada disso. Todos os pensamentos de todos os indivíduos girarão
em torno das coisas e interesses do Estado, uma vez que, fora disso, nada
será verdadeiro. Queira você ou não queira, Arésio,
o mundo marcha para o Socialismo em grau cada vez mais elevado. Vai chegar
o dia em que, de uma forma ou de outra, a organização total
do Estado triunfará, o próprio Capitalismo marchando também
para isso. Haverá então leis para o pensamento, para as ações,
para os sentimentos, para as alegrias, para os julgamentos, para as individualidades
e até para as surpresas. Você está fazendo cara feia,
mas foi porque eu falei em leis. Talvez você veja que eu não
estou divagando, se eu substituir a palavra e disser que haverá uma
conduta estabelecida e determinada para cada situação. Não
é esse o sonho do homem, há tanto tempo? Por que é que
existem os ritos religiosos e sociais, se não para organizar um pouco
a desordem da vida? Quando morre um parente nosso, todo mundo nos dá
pêsames, para ter alguma coisa a dizer. Assim acontece em tudo, e a
melhor sociedade ‘será aquela que não deixar nada ao acaso e
à invenção individual. É inegável, portanto,
que o progresso da Humanidade está na transposição das
pequenas para as grandes Verdades, das verdades e interesses dos grupos para
os do Estado. É por isso que eu digo, sempre, que o nome de Humanidade
é dado a alguma coisa que ainda não existe. O primeiro momento
de existência real da Humanidade surgirá somente quando aparecer
a primeira verdade que não receba contestação de nenhum
homem. Daí em diante, a verdade irá se estendendo e tudo terminará
sendo integralmente aceito por todos, pois tudo o que existir será
unanimemente reconhecido como sendo uma única coisa, já que
o pensamento de um será o pensamento de todos, será o pensamento
do Estado.'” Terminando de contar essa parte da história ao Corregedor
– o que fiz valendo-me do exemplar da brochura de Adalberto Coura que tinha
guardado comigo – passei-lhe esta, que ele mandou anexar aos autos do inquérito,
e então comentei: – Naquele dia, Senhor Corregedor, já no escuro
da noite, Adalberto disse e leu essas coisas tremendas para nós. Quando
repetiu a última frase, estava, segundo disse Arésio, com uma
expressão sonhosa e exaltada, no rosto pálido e magro de jovem
Profeta, recém-saído da adolescência e ainda mal habituado
ao desconforto em que tinha sido jogado depois que fora expulso de casa, exatamente
por causa daquelas idéias que acabara de nos expor. Quando ele acabou,
Arésio fez esse comentário a que acabo de me referir e então
falou: “`Muito bem, meu caro Adalberto, ouvi e entendi tudo. Se não
simpatizasse com você, diria três ou quatro palavras conven cionais
e ficaria por aí. Como simpatizo, digo-lhe que tudo isso são
lugares-comuns, é a linguagem comum do rebanho em que você anda
metido. Mas isso não vem ao caso. O que me interessa, agora, é
satisfazer uma curiosidade, talvez para você inesperada. É que
me interessa, demais, saber a opinião que Quaderna tem de tudo isso.
Você também acha que tudo isso é lugar-comum, Dinis?’
“`Acho não, Arésio!’, disse eu com sinceridade. `Não
sei se é porque sou menos lido e menos bem-informado do que vocês,
mas confesso que, pelo contrário, estou é assombrado com tanta
coisa nova. Nunca pensei que essas coisas fossem nem sequer pensadas!’ “`Está
vendo, Adalberto? Anime-se, porque o proselitismo ainda é possível
e você pode conseguir adeptos. Mas ainda quero saber uma coisa, Dinis:
já que você se impressionou tanto, me diga, por favor, qual foi
o pensamento, que deixou você mais espantado nisso tudo.’ “”O
pensamento? Mas o pensamento de quê? Você se refere ao que Adalberto
disse ou ao que ele leu no livrinho?’ “”A tudo.’ “`Bem, de
tudo, entre o que ele disse e o que nos mostrou no livrinho, o que mais me
impressionou foram certas partes parecidas com as profecias do meu santo Peregrino,
Santo Antônio Conselheiro de Canudos. Por exemplo: gostei muito de uma
frase que está escrita no livrinho e que diz: “É impossível
existir um mundo sem vida ou a vida sem mundo”. Essa frase foi a que
mais me impressionou. Primeiro, porque parece com aquelas do Conselheiro:
“Em 1897 haverá muitos chapéus e poucas cabeças”,
etc. E depois, a frase me causou uma impressão danada porque eu não
entendi patavina, dela!’ “`Isso, gostei de ver!’, disse Arésio,
rindo. `Pois a mim, Adalberto, o que me impressionou mais, em tudo, foi o
absolutismo de seu pensamento. Você ficou ainda mais simpático,
para mim, pelo fato de se parecer mais com os Profetas que anunciaram a Revolução
do que com os razoáveis de hoje, que jamais aceitariam seu sonho do
verdadeiro Estado, do Estado total!’ “`Quer dizer que você aceita
o fundamental do meu pensamento?’, perguntou Adalberto soerguendo-se de novo
e com tal expressão de ansiedade que se fez um silêncio meio
embaraçoso no quarto, depois que ele se calou. Arésio, porém,
foi duro: “`Não, não aceito!’, disse ele, com firmeza.
‘Eu disse que admirava seu absolutismo, mas não que concordava com
seu verdadeiro Estado.’ “”E por que não concorda? Você
não acha que só assim é que poderemos sonhar com a Verdade
absoluta, a Justiça absoluta?’ “”E quem disse a você
que eu sonho com a Justiça, Adalberto? Olhe, não quero enganar
você, de modo que vou lhe dizer o que resolvi, de uma vez por todas,
a esse respeito. Como aconteceu com todos nós, aqui, um dia eu me vi
diante dessas idéias de verdade e justiça, idéias que
os dois capões não cessavam de discutir e que o Padre Renato
também agitava de vez em quando, nos aecmões dele. Sim, porque,
no fundo, todos eles são, entre si, mais parecidos uns com os outros
do que julgam. Eles podem discordar pobre o modo de realizar a Justiça,
mas estão de acordo em que a Justiça e o bem devem ser procurados
e realizados. No fundo, Ho todos uns capões e hipócritas, essa
é que é a verdade! Eu tenho sangue forte, Adalberto, e por isso
tenho horror à hipocrisia. IA um dia, comecei a me rebelar contra todas
essas teias de aranha, que se erguiam como obstáculos à satisfação
dos impulsos do meu.sangue. Tive a coragem de fazer uma pergunta: Por que
seria eu obrigado a procurar ser bom? Por que seria eu forçado a contrariar
meu sangue, impedindo-me de ser cruel, de desejar o Poder, de exercitar minha
violência, de desejar e possuir todas as mulheres que desejasse e que
tivesse à minha disposição? Eu tenho ódio a esses
hipócritas que se dizem partidários do bem e da justiça,
da verdade e da bondade, e no entanto se envilecem no conforto, envilecendo
também os filhos, que se habituam a adotar a humildade por covardia,
a bondade por fraqueza, e o amor à pobreza por incapacidade de assaltar
o Poder e o dinheiro! Não, Adalberto, nessa ordem de coisas, ou se
é um santo ou um impostor. Eu tenho ódio à impostura
e, por outro lado, meu sangue não permite que eu seja um santo – o
que também confesso que não quero! Foi por isso que resolvi
abandonar de vez todas essas idéias de justiça, verdade, bondade
e bem, sendp pelo menos sincero com meus impulsos de maldade, desejo e violência.’
“`Quer dizer que não posso contar com você?’, indagou Adalberto,
com a mesma ansiedade.
“Não, você não pode contar comigo para seus sonhos
de justiça, revolucionária ou não! O que eu fiz com o
Bispo, hoje, não foi, como você parece ter pensado, nenhum atentado
terrorista, nenhum ato revolucionário, nenhum ato de reparação
das injustiças feitas pelos ricos e poderosos com o Povo! Foi um ato
inteiramente arbitrário e pessoal.’ ‘”Inteiramente pessoal? Qual
era seu objetivo, então?’ “Não sei!’, disse Arésio,
desviando a vista. `Para falar a verdade, quando entrei na sala não
tinha a menor idéia de dar um soco no Bispo. Dei porque, de repente,
me veio essa vontade, sem que eu soubesse por quê. Por isso, é
melhor que você procure outro parceiro. Já lhe aconselhei a procurar
os Padres e os Soldados. Você, obsedado pelos esquemas, continua a ver
neles um grupo de inimigos. Pois seja, não tenho nada a ver com seus
equívocos! Mas já que você quer continuar com esses enganos,
procure pelo menos o Padre Daniel, que é quase da sua idade e, sendo
um Padre marginal, divisionista, é um dos seus iguais, um jovem Profeta
ardente, desejoso de justiça para todos e ansioso por ser martirizado
por seus ideais.’ “A religião e nossa adversária, é
o ópio do Povo e eu não quero aliança com padre de qualidade
nenhuma!’, disse Adalberto um tanto infantilmente, a se levar em conta a advertência
sobre os esquemas que Arésio acabara de fazer.
“`Isso é um mal-entendido que surgiu entre vocês não
sei por quê, pois, no fundo, você e o Padre Daniel querem é
a mesma coisa. Você mesmo disse, aqui, que era um Latino-Americano típico.
Siga, portanto, as linhas peculiares da luta política da América
Latina. A meu ver, vocês que sonham ainda com a independência
e a justiça na América Latina deveriam se juntar todos – padres,
soldados e jovens intelectuais como você. Você acha que não:
paciência! Por mim, não perco nada, porque não é
com a grandeza da América Latina nem com a justiça para os pobres
que eu me preocupo. Mas, já que você tem outras idéias,
não se esqueça de que na Revolução de 1817, Frei
Caneca e o Padre João Ribeiro, dois profetas e mártires que
queriam a justiça e tiveram a coragem de morrer por ela, se aliaram
a outros revolucionários que não eram padres, tentando, todos,
instaurar, pela violência, o Estado justo, aquilo que para eles, naquele
tempo, era o verdadeiro Estado. Está chegando novamente o tempo em
que, na América Latina, vão se unir os negros de todo tipo,
como você diz – os escorraçados, os humilhados, os doentes, os
ressentidos – para, sob o comando de Padres sectários, marginais, divisionistas,
e de ardentes revolucionários doentios como você, tentarem outra
Revolução. Tenha a coragem e a astúcia de sair na frente,
Adalberto! Convide o Padre Daniel e partam, vocês dois, para os atos
de terrorismo. Aliás, eu tinha mais respeito a vocês dois, porque
pensava que vocês já tinham entrado nisso e que essas mortes
misteriosas que surgiram aqui tinham alguma coisa a ver com vocês. Sim,
vocês dois já deviam ter se aliado. Que imporia que, no grupo
dos revolucionários, existam alguns que tenham fé em Deus e
outros não? Não é aa justiça teocrática
e total, a ordem pura e o hem, que todos vocês querem instaurar? Por
outro lado, você mesmo não disse que o Divino, dos religiosos,
é o mesmo Humano mais elevado dos revolucionários? Quanto a
mim, não gosto de imposturas, e digo aqui, claramente, que pretendo
esgotar até o fim a sujeira, a glória e o sangue da vida, como
qualquer revoltado. Veja bem: revoltado, e não revolucionário.
Revoltado em proveito do sangue de sua própria vida, e não revolucionário
pnhando com a justiça, o bem e outros ideais abstratos, os ideais elevados
da Humanidade, como você diz tão infantilmente em seu livrinho!’
” Mas se você tem ódio à impostura’, insistiu Adalberto,
“deve acompanhar-nos, porque o nosso é o único caminho
para acabar com ela!’ “`Não, não é, meu querido
Adalberto. Seu caminho é uma impostura, como é uma impostura
o caminho do Padre Renato e do Padre Daniel. E, por mais estranho que isso
lhe pareça, até mesmo você é um impostor!’ “`Eu?
Por que você diz isso?’, disse Adalberto, espantado, como se fosse aquilo
uma coisa que ele nunca tivesse esperado. Arésio começou a cerrar
a cara: “‘Digo isso, porque você é um padreco igual aos
outros. Até esse lugar que você arranjou na casa de Quaderna,
cheira a padre a dez léguas de distância. E você, com esses
pés finos e brancos, al metidos em alpercatas, com essa camisa sem
colarinho e esse corpo fino e magro, é mesmo um fradeco hipócrita,
como todo frade que se preza! Você quer ver eu provar como você
é um impostor, Adalberto? Então vou lhe fazer uma pergunta:
você sabe quem é essa moça que está aí e
que você chamou para cá unicamente para que ela ouvisse suas
conversas e visse você brilhar diante de nós?’ ” `É
claro que sei’, disse Adalberto, cada vez mais espantado. `Essa moça
se chama Maria Inominata e é minha noiva!’ “Ouvi falar desse noivado.
Soube, mesmo, que seu noivado com ela, filha de um simples morador, foi uma
das causas de sua expulsão de casa, não foi isso? Você
sabe que ela morava nas terras que foram de meu Pai?’ “Sei, ela me contou!’,
disse Adalberto.
“Mas provavelmente você não sabe por que ela saiu de lá:
essas coisas, nunca ninguém diz aos interessados! Você contou
a ele, Maria, por que saiu da “Onça Malhada”?’ “Não!’,
ouvi a voz de Maria Inominata responder num sopro e logo acrescentar, de modo
quase inaudível: `Pelo amor de Deus!’ “Confesso, Senhor Corregedor,
que meu coração se confrangeu, porque eu também sabia
de tudo, e o tom de Arésio revelava que ele estava entrando’de novo
naquela perigosa disposição de espírito que todos temiam
nele. Indiferente ao temor e à súplica da moça, Arésio
explicou então: “Ela saiu de lá, Adalberto, por minha causa!
Um dia, passei diante da casa dela. Maria estava na porta e me olhou de um
modo estranho! Ah, Adalberto, você tem razão quando diz, no livrinho,
que o impulso sexual é um dos mais intensos! Há certos olhares
que as mulheres nunca deviam lançar a homem nenhum! Maria Inominata
é linda, como você também, apesar de tudo, há de
ter notado! Ela é muito atraente, com essa cor morena, esses cabelos
castanhos e lisos que vão até a cintura, com esse busto não
muito desenvolvido de adolescente, mas com as ancas e as coxas fortes, lisas,
duras e bem-feitas. Eu ia partir para possuí-la ali mesmo, porque o
olhar que ela me lançara significava que eu não seria repelido.
Mas, nesse momento, saiu de dentro da casa, com uma foice na mão, o
irmão dela, Amaro Inominato, um sujeito que, pela cara, a gente conhece
que é perigoso. Eu estava desarmado, de modo que disfarcei e continuei
meu caminho. Mas Maria e Amaro, apesar de eu não ter dito nada nem
chegado a esboçar nenhum gesto, tinham entendido tudo. O Pai dela,
o velho Manuel Inominato, é desses moradores antigos que, não
tendo lido seu livrinho, Adalberto, julgam que podem manter uma vida digna,
no meio da sujeição e da submissão. Ele era muito amigo
de meu Pai e, não querendo ver a filha prostituída pelo filho
do dono das terras, foi pedir proteção ao nosso inimigo, Antônio
Moraes. Foram todos morar lá, nos Angicos, e nunca mais eu tinha visto
Maria até hoje!’ “E o que é que você quer me dizer
com isso?’, indagou Adalberto, mais admirado e ainda não ofendido,
porque se julgava na obrigação de se revelar compreensivo, por
filosofia e pelas idéias progressistas que professava.
“Quero lhe falar disso para lhe mostrar sua impostura!’, disse Arésio,
cada vez mais cheio de dureza. `Você, mesmo sabendo, talvez, o que se
passara comigo e ela, resolveu noivar com Maria, primeiro para exibir seu
senso de igualdade; depois, para reparar a honra de Maria, que você
julgava ofendida; e finalmente porque, no fundo, você tinha consciência
de que só de uma moça como ela, inferior a você socialmente,
é que você teria coragem de se acercar. Os covardes e fracos
como você, Adalberto, sentem-se mais seguros assim: ficam certos de
ser aceitos por gratidão. No seu caso, quaisquer que fossem suas poucas
qualidades viris, de homem, você poderia estar seguro de que iria deslumbrar
Maria, pelo fato de um rapaz pertencente à classe superior desejá-la,
não para amante, e sim para mulher! Mas, mesmo assim, tudo isso não
bastou: você quis que hoje, aqui, ela visse você brilhando, como
professor, diante de mim e de Quaderna! É por isso que lhe dou razão
quando você escreveu no livrinho que todo desinteresse aparente é,
no fundo, um interesse real, e que a pessoa só consente em diminuir
seu poderio, ou em troca de um prazer, ou julgando que o está fazendo
crescer. Pois bem, Adalberto, vou aceitar seu jogo: vou competir com você
diante de Maria e usando ss mesmas armas. Em primeiro lugar, quero também
brilhar como ofessor diante dela, de você e de Quaderna. Digo a você
que !do existe unidade nenhuma em seu pensamento. Se o ponto de tida dele
foram, como você disse, aquelas idéias sobre o Povo, o Brasil,
a América Latina, a India e a Africa, não vejo como ligar tudo
isso ao verdadeiro Estado, ao Estado total dos seus fonhos. Para lhe ser franco,
seu pensamento me deu a impressão de um monstro de duas cabeças,
uma bela e outra demoníaca, não precisando dizer que a cabeça
demoníaca, feia e monstruosa é a Bo verdadeiro Estado, e a bela
é a da Rainha do Meio-Dia, como diziam os capões. A cabeça
monstruosa surgiu quando eu menos esperava, não como uma conclusão
harmoniosa, mas sim como úm reverso monstruoso da medalha da outra.
Para mim, isso não tem a menor importância, porque, coma lhe
disse, estou ainda ao estágio primitivo, aquele no qual, como diz seu
livrinho, bem o que satisfaz os impulsos do meu sangue, e mal é o que
os ioapede. Mas você quer realizar a justiça, é um homem
dedicado aos outros e não a si mesmo. Cuidado, então, com as
contradições do seu pensamento. Cuidado para que sua exaltação
do humano, féita a partir dos Povos negros do mundo, não caia
numa espécie de negação total do nosso humanismo Latino-Americano,
do nosso amor quase pagão pela vida, do nosso modo de fruir do mundo
como se soubéssemos que a nossa vida e o mundo foram feitos para ser
dissipados!’ “‘Você está querendo me ofender, Arésio,
mas não julgue que está falando com uma pessoa comum!’, disse
Adalberto, numa voz surda que desmentia um pouco suas palavras. `Eu já
tinha conhecimento de que a família de Maria saíra da “Onça
Malhada” por sua causa! Que é que me importa isso, se nao houve
nada entre você e ela? Quanto ao que você disse sobre meu pensamento,
acusando-me de criar um monstro de duas cabeças, você está
completamente errado! Eu tive o cuidado de pensar em tudo, Arésio.
Foi por isso que falei, de propósito, na Autocracia teocrática
e total de Filipe II, que nos governou. A tradição LatinoAmericana
em política é exatamente essa, a de um Governo poderoso governando
súditos ferozmente livres. Como pessoas, nós, os Negros do mundo,
não damos grande importância ao Governo, porque, sendo todos
nós verdadeiras comunidades de Fidalgos cobertos de andrajos, sabemos
ser ferozmente livres e felizes de modo selvagem e independente! O verdadeiro
Estado, então, cuidará de que não haja injustiça
nem fome. Oprimirá e esmagará, até que os burgueses,
envilecidos pelo conforto e pela traição, não tenham
mais ambiente para continuar sugando sua riqueza e seu poder às custas
da miséria e da doença do Povo. Quanto ao mais, o nosso próprio
Povo se encarregará de faze-lo. Sua imagem do monstro de duas cabeças
também precisa ser retificada, porque, atualmente, o monstro que nos
rodeia tem três cabeças, e não duas. A primeira, é
a cabeça de ouro dos ricos, a segunda é a do Poder armado, e
a terceira é a do Povo, a da miséria extrema. As duas primeiras
são aliadas, porque os comerciantes montaram seu aparelho de repressão
armada, juntando-se, para isso, aos Soldados. É preciso que o Povo,
rebelando-se, corte a cabeça de ouro, porque aí o Monstro deixará
de ser monstro. -Das duas cabeças de ignomínia, a dos comerciantes
desaparecerá, cortada, e a do Povo perderá sua feiúra
e sua humilhação, saindo da miséria. Com isso, o Exército
passará a ser uma Milícia ligada ao Povo, identificada com o
Povo. O Monstro será transformado num animal harmonioso, com duas cabeças,
não mais contraditórias e sim aliadas num perfeito entendimento,
a do Povo livre e feliz, e a do Poder armado total, livre das imposturas da
democracia dos comerciantes e colocada a serviço da justiça!
É por isso que eu acredito ser o Brasil, a América Latina, o
País destinado a realizar a mais bela forma de Socialismo já
surgida no mundo! Viu agora, Arésio, como o verdadeiro Estado é
a conclusão lógica, e não a contradição,
das nossas idéias sobre a América Latina e os outros Povos negros.
do mundo?’ “`Não, mas não vou perder mais tempo discutindo,
não, porque parece que, nessa história de lógica, você
ganha, mesmo, para mim, meu querido Professor de justiça!’, disse Arésio,
com uma violência cada vez mais concentrada. `Mas você se esquece
de que, em mim, a parte mais importante é a outra, a do sangue! Eu
nunca renuncio a um prazer do sangue. Naquele dia, fui impedido, mas, agora,
vou levar Maria Inominata comigo, porque Amaro está longe e você,
como homem, não representa nem um décimo dele! Quero ver se
você ainda quererá Maria depois, por filosofia, ou se é
um impostor como eu estou julgando!’ “`Arésio, não faça
isso não, sou eu quem lhe peço!’, intervim eu, aterrorizado
e confrangido, sabendo quanto sofrimento aquilo iria causar a tantas pessoas,
inclusive a ele mesmo, mas sabendo também, de antemão, que era
inútil qualquer pedido.
“`Eu estou desarmado!’, disse Adalberto, como se isso tivesse algum
efeito sobre o inexistente senso de lealdade de Arésio em tais ocasiões.
“‘Tanto melhor para mim, porque, quanto a mim, eu estou armado!’, disse
ele erguendo-se e marchando para Maria, a quem segurou pelo braço.
“`Largue Maria!’, gritou Adalberto, aproximando-se dele e com um furor
inusitado na voz.
“Aí, Senhor Corregedor, tudo se precipitou. Arésio, puxando
o revólver, deu com ele uma pancada violenta na cabeça de Adalberto,
que caiu tonteado. A outra mão dele continuava fechada, como um anel
de ferro, em torno do braço de Maria Inominata. Com uma torção,
ele a impeliu em direção à escada, enquanto guardava
o revólver na bainha. Ao chegar junto de mim, tirou a carteira cheia
de dinheiro e me entregou tudo, dizendo: “Olhe aí, dono de pensão:
esse dinheiro é pelo aluguel do quarto onde consegui essa moça.
Quando o professorzinho acordar, lembre a ele aquelas palavras de Santo Agostinho
que o capão Samuel leu para nós, um dia. Você ainda se
lembra? Os rapazes pagãos violavam as moças e mulheres cristãs
que, habituadas à morna castidade dos maridos e noivos, também
cristãos, ficavam terrivelmente perturbadas diante daquela sensualidade
poderosa e brutal, tão cheia de novidades e tão sem escrúpulos.
Iam, então, depois de violadas e possuídas de todos os modos,
procurar o Santo, com remorso por terem gozado daquela maneira nunca antes
experimentada e nunca tão intensa. Santo Agostinho absolvia todas elas,
dizendo que não tinham culpa de que o corpo estremecesse involuntariamente
e barbaramente ao ser solicitado, de modo tão violento e acariciador,
no que tinha de mais íntimo. Pois você diga isso ao professorzinho.
Hoje, a noiva dele talvez não chegue a sentir muito o que confessar,
porque o sofrimento da primeira vez talvez impeça o prazer, se bem
que eu esteja disposto a fazer tudo para que isso não aconteça.
Mas como pretendo guarda-la comigo ainda por uma semana, telegrafarei depois
a ele, para que Santo Adalberto absolva Maria de seus estremeços!’
“Então, Senhor Corregedor, Arésio desceu a escada, impelindo
Maria Inominata na frente dele e desaparecendo das nossas vistas. Assim que
ele saiu, eu e Lino corremos para junto de Adalberto. Lino Pedra-Verde pegou
uma quartinha d’água que estava em cima da mesa-de-cabeceira, e, molhando
um lenço, começou a passá-lo na testa de Adalberto, que
continuava de olhos fechados. Eu também me ajoelhara junto dele, e,
tanto eu como Lino, julgávamos que o rapaz continuava desmaiado. De
repente, com uma sensação misturada de constrangimento e compaixão,
nós dois notamos, ao mesmo tempo, que Adalberto estava chorando. `Vão-se
embora, pelo amor de Deus!’, disse ele, com ambas as mãos cobrindo
o rosto. Nós vimos que, no momento, era o que havia de melhor a fazer.
E como tínhamos combinado ir ao encontro de Samuel e Clemente para
a entrevista com o Doutor Pedro Gouveia, descemos a escada e saímos
também.”
FOLHETO LXXX
0 Roteiro do Tesouro – Um esclarecimento só, antes de contar o resto,
Dom Pedro Dinis Quaderna! – disse o Corregedor. – O senhor aceitou o dinheiro
que Arésio Garcia-Barretto lhe deu naquela noite? – Aceitei, Senhor
Corregedor! Em primeiro lugar, eu precisava e ainda preciso viver. Depois,
o que é que adiantaria a Adalberto ou a Maria Inominata que eu recusasse
o dinheiro? – Está bem: anote esse pormenor, Dona Margarida! Agora,
pode continuar! – Ao chegar embaixo, tomamos o caminho da Rua do Chafariz,
encaminhando-nos para a parte dos fundos do casarão dos Garcia-Barrettos:
ali se daria a minha entrevista com o Doutor Pedro Gouveia, a mais decisiva,
talvez, em todo aquele dia. Aproveitando o mais possível o escuro da
rua, passamos despercebidos e chegamos ao portão traseiro que procurávamos
e diante do qual não havia ninguém, pois todo mundo estava aglomerado
diante da parte da frente da casa, na Praça. Bati discretamente e de
fato, segundo o que fora combinado, o portão foi aberto imediatamente.
Vimo-nos diante de um dos Ciganos que tinham vindo na comitiva de Sinésio,
um rapagote que, segundo soubemos depois, chamava-se Manuel Briante. Estava
armado de rifle e perguntou quem éramos. Ao ouvir meu nome, deixou
que passássemos. Recomendei porém a Lino que me esperasse fora,
porque pressentia que, para o Doutor Pedro, quanto menos pessoas houvesse
na entrevista, melhor. Eu era velho familiar também daquela casa, de
modo que ninguém precisava me guiar. Cruzei o quintal, o terraço
traseiro que ladeava a cozinha, entrei na sala de jantar e, passando pelo
corredor, cheguei à sala de visitas onde estavam Samuel, Clemente o
o Doutor Pedro Gouveia. Não estavam lá nem Frei Simão,
nem Sinésio, e eu imaginei que os dois estavam no pavimento superior:
o Doutor Pedro Gouveia só nos deixaria ter uma entrevista com Sinésio
depois de tudo estabelecido entre nós, disso eu tinha certeza. Agora,
eu iria travar conhecimento imediato, pela primeira vez, era com as astúcias
e cortesias do Doutor Pedro Gouveia, o homem mais gentil e cheio de habilidades
que eu tive oportunidade de conhecer, Senhor Corregedor. Acho que, de todas
as pessoas que conheci, a convivência com o Doutor Pedro Gouveia foi,
para mim, a mais proveitosa e cheia de ensini’mentos úteis.
– Mais do que a do Professor Clemente e a do Doutor Samuel? – No que se
refere a coisas práticas, sim, Senhor Corregedor! A influência
de Clemente e Samuel foi mais lítero-política, mas s convivência
com o Doutor Pedro iria, por um lado, me confirmar t certas descobertas de
astúcias que eu já fizera sozinho, e por outro me abrir inúmeras
perspectivas novas – chaves e caminhos que iriam me pondo ao alcance um número
cada vez maior de Ardis e defesas novas, coisas de valor inestimável
para a vida prática! Assim que eu entrei, ele se levantou, pressuroso
mas sem espalhafato. E falou, dando-me a primeira lição: “‘Este
é um dos grandes momentos da minha vida, o dia em que travo conhecimento
com três dos mais distintos intelectuais o acadêmicos residentes
na Paraíba, três grandes homens dos quais um é sertanejo
de Taperoá e os outros dois, vindos de fora, foram desapropriados para
nós, de modo que os três, hoje, honram a nossa pequena e heróica
Paraíba. Senhor Pedro Dinis Quaderna: com o Doutor Samuel Wan d’Ernes
e com o Professor Clemente Hará de Ravasco Anvérsio já
travei conhecimento há alguns instantes. Agora, tenho a honra de conhecê-lo.
Estava esperando o momento de sua chegada para iniciar nossa conversa, entrando
no assunto principal que me levou a ter a ousadia de pedir que viessem aqui.
Mas sente-se, sente-se. Precisamos conversar!’ “O Doutor Pedro Gouveia,
Quaderna’, explicou Samuel, `tem um assunto da mais alta importância
para conversar conosco.’ “‘Para ser mais exato, dois assuntos!’, acrescentou
o Doutor Pedro. `Mas esses dois assuntos se entrelaçam de tal maneira
que terminam sendo um só. A primeira coisa que devo comunicar para
começar nossa conversa é que o Excelentíssimo e Reverendíssimo
Senhor Arcebispo da Paraíba fez-me a honra de me nomear Vidama do Cariri,
Condestável e Rei d’Armas da Venerável Ordem do Templo de São
Sebastião.’ “Como é?’, indaguei, espantado, e já
enxergando o perigo que aquele homem’ bem-educado, e ainda por cima Doutor,
representava para minhas grandezas e monarquias.
“Não me admira o seu espanto!’, disse o Doutor Pedro. `Não
me admira, porque eu mesmo me espantei a princípio. O senhor sabe o
que é um Vidama?’ “`Não!’ “O Vidama é o representante
temporal e senhor dos feudos hereditários de um Bispado. O Vidama,
além disso, comanda eventualmente as tropas armadas que o Bispo porventura
mantenha. Sendo assim, o Senhor Arcebispo da Parafba deu-me a grande e imerecida
honra de me escolher para Vidama do Cariri, isto é, para encarregado
dos bens temporais e Comandante das tropas do Arcebispado aqui no Cariri da
Paraíba.’ “Ah, quer dizer que esses Cangaceiros ciganos que vieram
com o senhor são as tropas armadas do Arcebispo da Paraíba?’,
perguntei, cada vez mais inquieto.
“`Não exatamente, se bem que, de certa forma, se possa entender
assim! Mas as verdadeiras tropas do Senhor Arcebispo serão organizadas
proximamente aqui na Paraíba, num sentido mais espiritual do que temporal
e de uma forma que os senhores logo entenderão. Acontece que o Senhor
Arcebispo está empenhado numa campanha para a reforma ou construção
de templos em todas as cidades principais do Estado. Para isso, precisa angariar
fundos, e instituiu três Ordens honoríficas na Paraíba,
sendo que a do Cariri foi colocada sob a invocação de São
Sebastião. No nosso caso, dadas as ligações de São
Sebastião e d’El-Rei Dom Sebastião com a família Garcia-Barretto,
acho que essa coincidéncia teve algo de verdadeiramente miraculoso!’,
disse ele, mostrando-se cada vez mais bem informado. E continuou: `Existe
uma Ordem para o Litoral e o Brejo, uma para o Cariri e outra para o Alto
Sertão, os sertões da Espinhara e do Rio do Peixe. É
claro que o GrãoMestre de todas elas é o Senhor Arcebispo, mas
ele houve por bem me conceder plenos poderes no Cariri, sendo este o motivo
de minha humilde pessoa carregar hoje, esta Cruz aqui, pendurada ao meu pescoço
pelo colar. Mas, para encurtar a conversa e para que não haja dúvidas
sobre meus títulos e minhas atribuições, aqui está
o pergaminho da minha nomeação.’ “Então, Senhor
Corregedor, diante de nós todos, que estávamos ali fascinados,
com os olhos reluzindo, o Doutor exibiu-nos um pergaminho, cuja cópia
peço que seja anexada aos autos e que era assim: `Dom Adauto Aurélio
de Miranda Henriques, Arcebispo da Paraíba, usando das atribuições
que lhe confere o Direito Canônico, invocando o Espírito Santo
e as bénçãos de Deus para todos os que contribuam, de
alguma forma, para a reforma e a construção de Templos dignos
das nossas tradições de Fé, resolve: Artigo 1.0 – Fica
instituída a Venerável Ordem do Templo de São Sebastião,
que se destina a perpetuar nossa gratidão a todos aqueles que prestarem
relevante colaboração para a construção de templos
na Paraíba.
Artigo 2° – Cada Ordem terá jurisdição sobre determinada
parte do Estado, sendo este, em particular, o regimento da Venerável
Ordem do Templo de São Sebastião do Cariri.
Artigo 3o0 – A insígnia da Ordem será uma Cruz semelhante
à da Ordem de Cristo, que foi como que uma insígnia gloriosa
de fé nos tempos do Descobrimento e da Conquista do Brasil. Para diferençá-la,
porém, da Cruz da Ordem de Cristo, os esmaltes serão gravados
em ouro e goles.
Artigo 4.° – A Ordem conferirá condecorações, que
se distribuem nos graus de Grã-Cruz, Comendador e Cavaleiro.
Artigo 5° – A Grã-Cruz será pendente de uma fita amarela
o branca – as cores de Sua Santidade o Papa – pendente, em linha direita,
do pescoço para o peito, e será usada, nas ocasiões solenes,
com uma faixa das mesmas cores, passada a tiracolo, da direita para a esquerda.
Artigo 6° – Para cada uma das Ordens, é nomeado um Vidama e Condestável,
sendo as nomeações lavradas por Decreto nosso, em nossa qualidade
de Grão-Mestre.
Artigo 7 ° – Mediante proposta encaminhada pelo Conselho das Ordens,
havemos por bem nomear Vidama e Condestável da Venerável Ordem
do Templo de São Sebastião do Cariri ao Doutor Pedro Gouveia
da Câmara Pereira Monteiro, a quem agraciamos desde já com a
Grã-Cruz da Ordem.
Artigo 8.° – Ao Vidama e Condestável compete distribuir títulos
e condecorações por serviços prestados, sendo os nomes
dos agraciados inscritos no Livro de Ouro e Nobiliário da Ordem, livro
que, depois de aprovado e encerrado, será recolhido aos arquivos da
Arquidiocese ad perpetuam rei memoriam.
Artigo 9 ° – O lançamento no Nobiliário será feito
em ordem cronológica, dele constando, além do nome do agraciado,
sua nacionalidade, profissão, dados biográficos, títulos
e condecorações.
Artigo 10° – O Vidama e Condestável está autorizado, além
disso, a mandar fazer pergaminhos contendo as Cartas Patentes e de Agraciamento,
o que deve ser feito de modo artístico e seguindo o padrão anexo.
Artigo 11° – Em casos especiais, o Vidama e Condestável está
autorizado a agraciar e passar pergaminhos gratuitamente, considerando os
méritos e serviços relevantes de pessoas escolhidas.
Artigo 12° – Os casos omissos serão resolvidos pelo Vidama o
Condestável e comunicados ao Arcebispo para sanção, rogando-se
aqui aos Senhores Párocos e Vigários que seja dada toda assistência
o ajuda ao Condestável e membros da Ordem.
Dado e passado neste Paço Arquiepiscopal da Paraíba, a 20
de janeiro de 1935, dia do glorioso mártir São Sebastião.
Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques, Conde Romano o Arcebispo
da Paraíba.” – Tal era o extraordinário documento, diante
do qual, Senhor Corregedor, nossa imaginação imediatamente pegou
fogo. Pelo menos a minha pegou, e tenho certeza de que a de Samuel também.
O Arcebispo Dom Adauto, além de Príncipe da Igreja, era de uma
das famílias mais fidalgas da Paraíba. Samuel lembrou imediatamente
que, em 1757, o Rei Dom José I tinha enviado para cá uma Carta
Patente na qual se dizia que, atendendo aos serviços e merecimentos
de Francisco Xavier de Miranda Henriques, Cavaleiro professo da Ordem de Cristo
e Moço Fidalgo da Casa de Sua Majestade, era ele nomeado Capitão-Mor
da Capitania da Paraíba. O nosso Arcebispo e toda a grei dos Miranda
Henriques descendiam desse antepassado ilustre, o que conferia uma autoridade
fidalga toda especial à Ordem agora instituída. Eu, porém,
apesar de tão fascinado quanto Samuel, estava muito cismado com aquela
história toda, assim como achando horrível aquele título
de Vidama. Foi o meu pretexto para abrir as hostilidades. Falei: “‘Está
tudo muito bom, Doutor, mas uma coisa eu lhe digo: esse negócio de
seu título ser de Vidama vai dar em galhofa, aqui em Taperoá!’
“`Nada disso!’, interveio Samuel. `Não há motivo nenhum
para galhofa, a não ser por parte dos ignorantes de sua marca, Quaderna!
O título foi muito bem escolhido e está heraldicamente correto!’
* ‘Pode estar correto como esteja, mas eu conheço o Povo e sei que
a primeira coisa que eles vão fazer é transformar o título.
Vão dizer a Vidama do Cariri, ou a Mulher-Dama do Cariri ou coisa pior
ainda! Por isso, por segurança, acho melhor, ou o senhor publicar o
nome como o Vidamo, ou então usar somente o nome de Condestável!’
“‘Magnífica idéia!’, disse o Doutor Pedro, mostrando, desde
logo, como era homem de acordos. `Vou usar só o título de Condestável!’
“Havia porém ainda um problema que teria de ser resolvido logo,
Senhor Corregedor: era o do choque entre a minha soberania e as atribuições
do Doutor Pedro. Eu não era idiota para conseguir uma posição
durante anos e anos de lutas e idéias e, de repente, deixar que ela
me fosse arrebatada em dois minutos, de modo nenhum! Comumente, eu não
falava em público das minhas realezas, nem reivindicava nada que pudesse
ferir e chocar os outros, para não angariar inimigos. Entretanto, mesmo
na vida dos políticos, feita de astúcias e transigencias, há
uns dois ou três momentos cruciais de choque grave em que as decisões
têm de ser tomadas e os caminhos escolhidos, momentos nos quais a astúcia
tem de ser deixada de lado. Ali, agora, eu via que estava diante de um desses
momentos decisivos. Tudo tinha qye ser resolvido de uma vez para sempre, antes
que fosse tarde. Assim, preparando-me para uma luta de vida ou de morte, falei:
“`Existe, porém, um outro problema, Doutor Pedro, e ele precisa
ser resolvido logo, antes de passarmos adiante. E que existem, aqui no Cariri,
ligadas à família Garcia-Barretto, umas certas particularidades
heráldicas e monárquicas, que não sei se são do
seu conhecimento…’ “‘O senhor se refere, naturalmente, à Ordem
de Distinção do Reino do Cariri, da qual seu falecido tio, Dom
Pedro Sebastião Garcia-Barretto, era o Grão-Mestre e o senhor
o Rei d’Armas… Estou inteiramente a par disso. A par e de acordo, pois ninguém
melhor do que eu reconhece a legitimidade dos seus títulos, Senhor
Pedro Dinis Quaderna. Aliás, quero lhe declarar que o Senhor Arcebispo
está a par também de tudo, e, de cera forma, foi a Ordem de
Distinção do Reino do Cariri que inspirou a criação
da Ordem do Templo de São Sebastião. Quero então, logo
de início, esclarecer-lhe duas coisas: primeiro, é que a nossa
Ordem é uma Ordem Arquiepiscopal e só, não se estendendo
sua jurisdição absolutamente ao campo político e temporal!
Eu sou Condestável, Heraldo e Rei de Armas somente dessa Ordem, e nada
mais reivindico nem poderia reivindicar! A segunda é que eu não
poderia nem deveria, nunca, objetar coisa alguma à Ordem de Distinção
do Reino do Cariri, uma vez que todas as pretensões’ do meu protegido
e pupilo Dom Sinésio Sebastião Garcia-Barretto se estribam nessas
legitimidades: ou o pessoal da Ordem apóia Sinésio ou ele estará
só! Quero lhe dizer assim, desde logo, que, não só reconheço
a legitimidade da Ordem e a qualidade de Rei de Armas do senhor, como vou
reivindicar, eu mesmo, minha inscrição nela, como agraciado,
nem que seja no grau mais humilde e modesto, o grau de Cavaleiro!’ “Que
grande homem era aquele! Com uma penada só, ele afastava todos os meus
receios! Não haveria briga nenhuma dele comigo: os horizontes se aclararam
e, sem eu me sentir, um largo sorriso de felicidade e beatitude se estampou
no meu rosto. Era a primeira vez que um homem nobre, de nobreza tão
indiscutível ou mais indiscutível do que a de Samuel – pois
era reconhecida e declarada oficialmente por um Príncipe da Igreja
– reconhecia publicamente minhas grandezas e monarquias! Clemente e Samuel,
preocupadíssimos, olharam-me com o maior despeito deste mundo e houve
um instante de grande silêncio e constrangimento. Então Samuel,
não suportando mais aquilo, venceu a cerimônia que ainda tinha
com o Doutor Pedro e falou: “‘Mas Doutor Pedro Gouveia, a seriedade dessa
Ordem Arquiepiscopal, assim como a importancia dos seus títulos, que
eu reconheço, não permitem que o senhor, assim sem maiores exames
– desculpe o que lhe digo – reconheça essas coisas caricatas de Quaderna
como heraldicamente e fidalgamente legítimas!’ “`O senhor está
enganado, Doutor Samuel!’, disse gravemente o Doutor Pedro Gouveia. `Estou
perfeitamente informado a respeito de tudo o que se passa aqui e sobre as
pessoas realmente importantes da muito nobre e leal Vila Real da Ribeira do
Taperoá. É por isso que tomei informações sobre
cada um e todos, sobre as famílias, sobre as qualidades de raça,
etc., porque, se bem que a Ordem seja mais de natureza espiritual, raça
é uma coisa importante, importantíssima! Por isso tomei informações,
e posso hoje declarar, com segurança, quais serão as pessoas
realmente dignas de figurar entre os agraciados por um Príncipe da
Igreja como Dom Adauto! Posso também dizer que posso ter encontrado
alguém a sua altura, Doutor Samuel, mas ninguém que o excedesse
em títulos de linhagem e sangue!’ “‘O senhor se informou sobre
mim também?’, indagou Samuel, curioso.
“‘Sobre o senhor também, é claro! Creio, mesmo, que vou
revelar hoje, aqui, sobre sua ilustre família, particularidades que
nem o senhor mesmo conhece!’ “‘O quê? É possível?’,
disse Samuel, espantando-se.
“‘E possível, o senhor verá!’, confirmou o Doutor. `Olhe,
Doutor Samuel: em Pernambuco, voces têm a Nobiliarquia Pernambucana,
de Borges da Fonseca. Aqui na Paraíba a nossa Nobiliarquia, o nosso
Gotha, são as Datas e Notas para a História da Paraíba,
de Irineu Pinto, e sobretudo os Apontamentos para a História Territorial
da Paraíba, do genial João de Lyra Tavares. Sim, porque os Senhores
de datas e sesmarias concedidas pelos Reis, foram, nos séculos XVI,
XVII e XVIII, os troncos de nossa Aristocracia territorial e feudal. Pois
bem: segundo informação de Irineu Pinto, em 1719 um certo Diogo
Vandernes governou a Paraíba, formando uma Junta de homens nobres,
com João de Moraes Valcáçar, Feliciano Coelho de Barros,
Francisco Souto Maior, Jerônimo Coelho de Alvarenga e Eugênio
Cavalcanti de Albuquerque. Ora, como o senhor sabe, nessas Juntas governativas
só entrava gente da mais alta fidalguia, escolhida entre os homensbons
dos da governança da terra, como dizem os vélhos documentos,
o que prova, mais uma vez, a ilustração e a aristocracia do
nobre sangue dos Wan d’Ernes, de Pernambuco, que são os mesmos Vandernes
da Paraíba.’ “‘Mas como é que se escreve o sobrenome desse
tal Diogo?’, indagou Samuel, querendo acreditar, mas ainda cauteloso.
“‘O nome dele se escreve pegado, com v no começo e s no fim,
mas a famflia é a mesma, sem dúvida nenhuma! Tanto assim que,
a 16 de Fevereiro de 1759, aparece um filho de Diogo, Cosme Fernandes Vandernez,
requerendo, na Paraíba, terras a El-Rei. Este escreve Wan d’Ernes ainda
pegado e como v, mas com z no fim. As diferenças são causadas
unicamente pelo desleixo e pela ortografia arbitrária do século
XVIII, principalmente no que toca a nomes próprios. De qualquer maneira,
fiz minhas pesquisas e posso atestar que a família do nobre e ilustre
Sigmundt Wan d’Ernes, companheiro e familiar do Conde João Maurício,
Príncipe de Nassau-Siegen, deitou raízes em Pernambuco – onde
seus descendentes mantiveram o nome como ele sempre usou – mas passou, depois,
ã Paraíba, para onde veio um descendeñte seu, pai daquele
Diogo e avô do Cosme que requereu terras em 1759. Daí para cá,
não se encontram mais referências a nenhum Wan d’Ernes, o que
me leva a crer que a família tenha se extinguido aqui na Paraíba!’
“Bem, pode ser!’, disse Samuel, lisonjeado. `Talvez esse parente nosso
tenha traduzido o nome para evitar complicações políticas,
quem sabe? Há, também, a possibilidade de ter sido ele um bastardo.
Esses Wan d’Ernes antigos eram uns danados! Talvez algum deles tenha tido
um filho bastardo, a quem não autorizou usar o nome legítimo,
tendo-o traduzido e aportuguesado assim. Quem sabe? É possível!
Mas o que eu quero saber é com que finalidade o senhor perdeu seu precioso
tempo fazendo essas pesquisas!’ “Fiz essas pesquisas porque na Ordem
do Templo de São Sebastião há graus e graus de nobreza.
Era preciso fazer distinções, porque, quando fôssemos
inscrever os agraciados no Nobiliário, não iríamos igualar
um comerciante qualquer, af, com um legítimo Wan d’Ernes!’ “Quer
dizer que o senhor pensa em me agraciar como Cavaleiro da Ordem?’, perguntou
Samuel, meio incrédulo a despeito de si.
“`Mas como, Doutor Samuel? O senhor indaga se eu penso em agraciá-lo
como Cavaleiro? Não, não, seria muito pouco para um Wan d’Ernes!
Se entrarmos em entendimento, o senhor será Comendador da Ordem do
Templo de São Sebastião!’ “Se entrarmos em entendimento?
Que é que o senhor quer dizer com isso? Terei que pagar alguma coisa
para entrar na Ordem?’, perguntou Samuel, que, apesar de fidalgo, tinha horror
a gastar dinheiro fosse com que fosse.
“‘O senhor não terá que pagar nada, é claro!’,
tranqüilizou-o o Doutor Pedro. `Isso de pagar, fica para os comerciantes.
O senhor é uma daquelas pessoas de mérito excepcional a que
se refere o Decreto Arquiepiscopal, e como tal será considerado. Assim,
a única dúvida que ainda tenho a seu respeito nisso tudo, é
a respeito do nome das terras a que será ligado seu título de
Barão!’ “Barão? Eu? Eu serei Barão?’, disse Samuel,
quase sem voz.
“Mas é claro que será, e, nisso, nem a Arquidiocese,
nem a nossa Ordem, fazem favor nenhum ao senhor, cuja nobreza absolutamente
não precisa dessas coisas! A única coisa que vamos fazer é
outorgar-Ihe um título de nobreza que reconhece, formal
ESCUDO DE ARMAS DO DOUTOR SAMUEL WAN D’ERNES
mente, o senhorio feudal e a linhagem ilustre do nobre sangue dos Wan d’Ernes!
Que o senhor tem direito ao título de Barão e ao correspondente
Escudo de Armas, que lhe será passado juntamente com a Carta de Brasão,
isso é incontestável. O que quero saber é que terras
escolheremos para ligar ao baronato! Isto, é o senhor quem vai decidir.
Se quer ligá-lo às terras dos Wan d’Ernes na Paraíba,
será Barão do Riacho do Jacu, pois essa foi a sesmaria de Cosine
Vandernez. Se prefere as de Pernambuco, será Barão do Guarupá.
Qual é o nome de sua preferência?’ “O de Barão do
Guarupá, é claro: é nome pernambucano, é o senhorio
de terras mais antigo da família e finalmente não tem essa horrível
conotação sertaneja e bárbara de Riacho dos Jacus!’ “`E
qual será o brasão de Samuel?’, perguntei, despeitado, mas fazendo
todos os esforços para me mostrar superior e sereno. O Doutor respondeu:
“Bem, não é preciso criar nada de novo nem gastar os miolos
procurando: o escudo terá que ser composto com o velho brasão
dos Wan d’Ernes.’ ” `E os Wan d’Ernes têm brasão?’, perguntei,
desconfiado, porque Samuel nunca tinha nos falado disso, o que não
deixava de ser estranhável.
“‘Claro que os Wan d’Ernes têm brasão!’, insistiu o Doutor.
`Existe até uma carta do Conde João Maurício de Nassau
reconhecendo isso! O brasão é esquartelado por uma cruz de filetes
de ouro. O primeiro quartel é de goles, ou vermelho, com uma cruz de
lisonjas de azul coticadas de ouro. O segundo, é de verde, com cinco
pombas volantes de prata, armadas de vermelho e postas em aspa, e assim os
contrários. O timbre, é uma Anta, de sua cor.’ “Cinco pombas
volantes em campo verde?’, interrompeu Clemente rindo, e achando finalmente
um motivo para extravasar seu despeito, dez vezes maior do que o meu, porque
o dele era complicado por questões políticas. `Está bom,
o brasão, está ótimo para esse galinha-verde, esse integralista
de segunda ordem, lambe-cu de Plínio Salgado! Primeiro, porque o campo
é verde, e verde é a cor dos integralistas. E depois porque,
quem diz cinco pombas volantes, diz cinco caralhos voadores, que é
a mesma coisa!’ “`Prezado Professor Clemente’, disse o Doutor Pedro cortesmente
mas com firmeza, `eu, se fosse o senhor, moderaria as expressões sobre
a nossa Ordem e sua Heráldica! Porque se o senhor não reconhece
a validade de ambas, está, ipso facto, desmoralizando a sua linhagem
e os títulos de nobreza que Sua Excelência Revendíssima,
o Senhor Arcebispo da Paraíba, me autorizou expressamente a lhe outorgar!’
“O quê?’, gaguejou Clemente. `E o Arcebispo me conhece? “‘Conhece,
sim, e aprovou seu nome para a Ordem!’ “‘Digno Antístite!’, comentou
Clemente. `Não sabia que ele já tinha ouvido falar de mim!’
“`Quem é que, na Paraíba, não conhece o senhor,
pelo menos de fama? Um Filósofo, um professor, um jurista que honra
a cultura brasileira!’ “‘Mas Clemente é negro e comunista!’, disse
Samuel, desesperando-se ao ver que o cafre iria ser igualado, talvez, a ele.
“‘A nossa Ordem não tem conotações políticas,
Doutor Samuel!’, disse o Doutor. `Mérito é mérito! Além
disso, o Professor Clemente é bisneto do Visconde de Caicó’
“‘As noticias que correm aqui são muito diferentes!’, teimou Samuel.
`Consta que Clemente é bastardo. O avô dele, fazendeiro, teve
sua filha raptada por um almocreve negro que, depois de seduzi-la e engravidá-la,
foi capado pelos irmãos da moça!’ ” `Isso e verdade, mas
absolutamente não invalida minhas palavras, porque esse fazendeiro,
avô do Professor Clemente, era exatamente filho do Visconde de Caicó.
Outra coisa: nos cartórios de Caicó, Rio Grande do Norte, encontrei
documentos que provam que o avô do Professor Clemente terminou consentindo,
afinal, no casamento da filha, o que torna a descendência perfeitamente
legítima. Isso, porém, não seria nada se os ascendentes
do Professor Clemente não estivessem no nosso Gotha Sertanejo, como
fidalgos possuidores de terras. Mas estão: a 13 de Março de
1615, Pedro Hará de Ravasco requer e obtém do Rei, na Paraíba
e no Rio Grande do Norte, terras da Ribeira do Curajá. Esse Pedro Hará
de Ravasco é ascendente direto do Visconde de Caicó, bisavô
do Professor Clemente, que, como Comendador da nossa Ordem, terá somente
que escolher seu título: ou Barão do Curajá, ou Visconde
de Caicó, à sua escolha!’ “`Prefiro o de Visconde de Caicó!’,
falou Clemente para surpresa minha. Eu julgava, Senhor Corregedor, que ele
ia recusar asperamente tanto o título quanto a versão de sua
descendência do fazendeiro, da qual ele tinha tanta raiva e que lhe
atribuía sangue branco ao lado do negro e do tapuia dos quais ele tanto
se dizia orgulhoso. Mas não, o desgraçado aceitou! Seu rosto
exultava: pela primeira vez ele se via colocado em pé de igualdade
nobiliárquica com o Fidalgo dos engenhos pernambucanos. Havia muita
diferença em ser neto de um fazendeiro comum e ser bisneto de Visconde.
Para ser Visconde, ele faria o acordo, para nunca mais ter que discutir seus
olhos agateados e as marcas de sangue negro que havia em todo o seu corpo.
Eu, danado da vida, joguei tudo isso na cara de Clemente, exprobrando-lhe,
inclusive, a traição que ele fazia ao Sertão dele e a
suas idéias de tantos anos. Mas o Doutor Pedro rebateu minhas palavras,
vindo em socorro de Clemente. Disse: “Não há nada de estranho
em o Professor Clemente ser Visconde! Os Cavalcantis de Arbuquerque têm
sangue tapuia, e o Barão de Cotejipe tinha sangue negro!’ “Eu
esperava que Samuel, diante disso, viesse com suas galhofas habituais sobre
a nobreza bastarda, a nobreza cafre, castanha, etc. Mas ele estava tão
temeroso de desmoralizar a Ordem que o ia agraciar, tão envolvido pelo
Doutor Pedro Gouveia, que não se atrevia mais a criticar nada. Então
eu mesmo resolvi lutar. Intervim, indagando: “E Clemente terá
brasão, também?’ “Sim, é claro!’, respondeu o Doutor.
`O brasão dele é de ouro, com os dois cachorros negros dos leais,
passantes e armados de vermelho, e com uma orla de goles, carregada de sete
estrelas de prata. O timbre é uma Onça vermelha, passante, com
os cachorros do escudo.’ “Cachorro preto, está muito bem escolhido
como animal heráldico de Clemente!’, não pôde se impedir
de observar Samuel. `Mas veja que coincidência, Doutor: no meu brasão,
existe uma Anta, e meu movimento literário é exatamente o Tapirismo;
no de Clemente, existe uma Onça, e o dele é o Oncismo! Agora,
tem uma coisa: nós chamamos Quaderna, comumente, de Quaderna, o Castanho!
Não me diga que Quaderna também terá brasão e
que no dele existe um Cavalo castanho!’ “Existe, sim!’, disse o Doutor
Pedro, e meu coração deu um pulo no peito. `Existe um Cavalo
castanho, sim. Não no escudo, propriamente, mas sim no timbre. O escudo
dos Quadernas é esquartelado. No primeiro quartel, há, em campo
de ouro, um veado negro vilenado, inscrito numa quaderna de quatro crescentes
vermelhos. No segundo, em campo vermelho, cinco floresde-lis de ouro, postas
em santor, ou aspa, e assim os contrários. O timbre é um cavalo
castanho, com asas, com as patas dianteiras levantadas e as traseiras pousadas,
entre chamas de fogo!’ “Valha-me Deus, Doutor Pedro!’, disse Samuel.
`Não é possível! Existem, aqui, duas versões sobre
a família de Quaderna. Segundo a primeira, Quaderna descende daqueles
fanáticos, assassinos e bárbaros, que se coroaram como Reis
do Brasil, na Pedra do Reino. Mas o Pai dele, Pedro Justin Quaderna, um raizeiro
e parasita dos Garcia-Barrettos, vivia espalhando outra versão, segundo
a qual os Quadernas eram descendentés do Rei Dom Dinis de Portugal.
Não me diga que o senhor se deu ao trabalho de pesquisar, também,
a genealogia de Quaderna!’ “`Pesquisei, sim! Aliás, é meu
intento fundar, aqui, um certo Instituto Genealógico e Histórico
do Cariri, exatamente para institucionalizar e codificar essas pesquisas,
ordinariamente deixadas ao acaso, aqui na Paraíba.’
tucionalizar e codificar essas pesquisas, ordinariamente deixadas ao acaso,
aqui na Paraíba.’
” `Você teria razão, meu caro Quaderna, se o veado não
fosse vilenado como é! Você sabe o que significa vilenado, em
Heráldica?’ “Sei não!’, confessei.
‘”Vilenado quer dizer com o sexo à mostra e de esmalte diferente
do resto do corpo do animal. O veado de seu escudo é negro, mas tem
o sexo à mostra e pintado de vermelho!’ ” `Bem, se é assim,
a coisa muda de figura!’, falei. `Se o veado do meu brasão tem o pau
vermelho à mostra, eu posso provar a quem vier com graças que
o nosso é um veado sério, um veado macho, e não aveadado,
como poderia parecer. Entretanto, por segurança, e já que cautela
e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, vamos mudar, no
meu escudo, o veado negro por uma Onça-Preta, macha e vilenada de vermelho.
Ou pode ser, também, a Onça castanha e a quaderna de crescentes
pretos. Sei não, depois a gente decide! Agora, outra coisa, Doutor:
mesmo que o senhor me dé esse direito, eu não quero ser Comendador,
não. Prefiro ser Cavaleiro!’ “Deixe de ser burro, Quaderna!’,
falou Samuel. `O título de Comendador é muito mais importante!’
” `Mas o de Cavaleiro é mais bonito!’, teimei. `Sempre desejei
ser declarado oficialmente, episcopalmente, regiamente, Cavaleiro, e minha
oportunidade é essa: não quero ser Comendador não, quero
ser é Cavaleiro!’ “Pois será Cavaleiro da Ordem do Templo
de São Sebastião!’, disse o Doutor Pedro Gouveia, com solenidade
que me arrepiou. `E seu título? Não tem curiosidade de saber
alguma coisa a esse respeito não?’ “Fiquei numa entaladela, Senhor
Corregedor. Tudo indicava que meu título deveria ser o de Conde da
Pedra do Reino. Mas, se eu aceitasse esse título não estaria
renunciando, implicitamente, à Coroa real? Cóm as maiores cautelas
do mundo indaguei isso, como se se tratasse de uma consulta inteiramente impessoal.
A Providência Divina e os astros estavam, porém, decididamente
a meu favor, nisso: o Doutor Pedro me deu informações seguras
que me garantiam eu poder assumir, sem riscos, o belíssimo título
de Décimo Segundo Conde e Sétimo Rei da Pedra do Reino. Até
os números, 12 e 7, eram fatídicos, astrosos e gloriosos, e
fiquei um momento a sonhar, com as mais exaltadas esperanças. Logo,
porém, o Doutor Pedro nos chamava de volta à realidade. Disse:
“Bem, senhores, as cartas estão na mesa e o que vamos decidir
agora é se o jogo se trava e continua, mesmo, ou tem que ser interrompido
definitivamente, de uma vez por todas! Nós não somos crianças
e todos já devem ter entendido que, se eu aceno com possibilidades
tão honrosas, é que tenho que pedir alguma coisa em troca. Como
já expliquei, no caso de vocês três não se trata
das exigências que seriam feitas às pessoas comuns. O que quero,
dos três, é o apoio decidido e total à causa de Sinésio
Garcia-Barretto, causa que hoje se inicia aqui!’ qp”Bem, Doutor Pedro,
vamos examinar tudo cuidadosamente!’, disse Samuel. ‘O problema não
é tão fácil como o senhor parece ensar. A grande dúvida
é: será que o rapaz do cavalo branco ue chegou hoje aqui com
o senhor é o mesmo Sinésio Garcia-Baritetto desaparecido em
1930? Se é, como foi que ele ressuscitou? E preciso ve-lo, é
preciso provar que ele não morreu, etc.’ ” `Tudo isso será
provado e esclarecido a seu tempo!’, disse o Doutor Pedro com firmeza. ‘Mas
também não vou fazer a exigência absurda de que tomem
uma decisão imediata. Hoje, infelizmente, o rapaz do cavalo branco
não pode se deixar ver. Amanhã, porém, garanto que facilitarei
um encontro dele com os três. Assim, a questão do agraciamento
e das cartas de brasão fica em suspenso pté a decisão
de vocês. Uma coisa, porém, eu digo logo: o ponto fundamental
de toda a questão é o problema do testamento e dos bens deixados
por Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto. Algum dos presentes poderia
me dar as informações iniciais a esse respeito?’ “Eu posso!’,
avancei. ‘Vou revelar agora, ao senhor, o que nunca revelei a ninguém
a esse respeito. Faço isso porque, de minha parte, já tomei
minha decisão, Doutor Pedro. Meu sangue me garante que o rapaz do cavalo
branco é Sinésio, meu primo e sobrinho, o Príncipe Aluminoso
da Bandeira do Divino do Sertão. Estou do lado dele, para o que der
e vier!’ “Dou-lhe os meus parabéns, nobre Conde da Pedra do Reino!’,
disse o Doutor Pedro passando imediatamente a me tratar por meu título.
‘Dou-lhe os meus parabéns, porque a decisão que o senhor tomou
foi nobre e acertada, o senhor não se arrependerá! Amanhã
combinaremos o que falta sobre seu brasão, e o senhor receberá
o pergaminho e a carta que lhe reconhecem o título que acaba de conquistar
neste momento, o de Cavaleiro professo na Ordem do Templo de São Sebastião
e Conde da Pedra do Reino!’ “Registro e agradeço!’ disse eu, modéstia
à parte com alguma majestade. `Agora, vou então comunicar ao
senhor tudo o que sei sobre o testamento e o tesouro!” – Comecei então
a contar ao Doutor Pedro Gouveia tudo o que sabia a esse respeito. Meu Padrinho
fora casado com Dona Maria da Purificação, mãe de Arésio,
sob o regime de separação de bens, e com minha irmã,
Joana Quaderna, sob o de comunhão. Além disso, sabia-se como
certo que ele deixara um testamento do tudo aquilo de que podia dispor a Sinésio.
Assim, Arésio ia praticamente reduzido à miséria, caso
se achasse o testa to e se provasse que o rapaz do cavalo branco era, mesmo,
¿sio. Constava que o testamento estava em poder do gringo m Edmundo
Swendson, pai de Clara e Heliana. Dizia-se que teu Padrinho confiara ao gringo
o testamento, que estava na maleza de São Joaquim da Pedra, trancado
a sete chaves, e que ta de ser encontrado e retomado à força,
uma vez que Dom undo Swendson, tendo rompido com meu Padrinho, era agora do
dos Moraes, e tinha interesse, portanto, em favorecer Arésio, prestes
a oficializar seu noivado com Genoveva. O mais impor * nte, porém,
em tudo, ainda não era o testamento: era o tesouro,
que, se fosse encontrado pelo pessoal de Sinésio, daria o poder ao
rapaz do cavalo branco com ou sem testamento, com legitimidade
ou ilegitimidade de suas pretensões a filho de meu Padrinho.
Desfiei, então, como vinha dizendo, tudo isso perante o Doutor
redro Gouveia, que ia anotando as informações mais importantes
enquanto eu falava. Aí, terminada essa primeira parte referente
sio testamento, comecei minha narrativa sobre o tesouro. Disse: “Foi
entre 1920 e 1930 que ouvi falar com mais exatidão sobre esse fabuloso
tesouro dos Garcia-Barrettos. Vou contar, primeiro, a parte que o pessoal
considera mais real e de fato, e depois a parte da legenda, que, a meu ver,
é mais segura do que a primeira. Ocorre que, desde 1907 ou 1908, o
comportamento de meu Padrinho começou a ficar meio estranho. Ele sempre
fora um homem trancado, ríspido e autoritário, austero e religioso.
De repente, deu para ficar meio fanático, atacado de mania religiosa,
o que coméçou a perturbar suas relações com a
primeira mulher. Passou a freqüentar as procissões da Vila, não
normalmente, como tinham feito seu Pai, seu Avô e ele mesmo, a principio,
mas sim vestido de opa roxa e de balandrau à mão. Na Quaresma,
deu para cobrir a cabeça com sacos, polvilhando-se inteiramente de
cinza dos pés à cabeça. Entregava-se então a terríveis
jejuns o penitências. Começou, também, a preparar o túmulo
no qual pretendia ser sepultado. Escolhera, para isso, não o Cemitério
da nossa Vila, mas um lajedo enorme que ele mandou escavar e no qual começaram
a trabalhar todos os canteiros daqui, homens habituados a lidar com a construção
das amuralhadas cercas-depedra sertanejas. Depois, comecei a freqüentar
o Seminário. Habituei-me então a organizar aqui as festas anuais
dedicadas ao Divino Espírito Santo. Meu Padrinho consentiu em aparecer
nessas festas para ser coroado Imperador do Divino. Comparecia a elas acompanhado
por seu filho mais moço, Sinésio, que, muito novo ainda, era
coroado Príncipe no mesmo palanque que o Pai. Seguiam-se Cavalhadas,
desfiles, Naus-Catarinetas, cortejos, Procissoes, tudo ao som da Música
de rabecas, violas, pífanos e tambores. Parece que tudo isso ia subindo
à cabeça de Dom Pedro Sebastião sem que nós suspeitássemos
de nada. E o tempo foi passando. Morreu Dona Maria da Purificação,
veio 1912 com todos os aperreies e inquietações da Guerra de
Doze. Em 1921 ou 22, mais ou menos, Dom Pedro Sebastião começou
a empregar uma fortuna na compra de terras na Maturéia, em Itapetim,
Brejinho, Piancó, Princesa, Monteiro e Picuí, isto é,
em todos os lugares em que constava haver ouro ou prata, na Paraíba.
Aí, começaram a correr aqui as mais estranhas notícias.
Como o ouro e a prata extraídos por meu Padrinho não apareciam,
começaram a espalhar, aos cochichos, que as enormes quantidades encontradas
por ele desses metais preciosos estavam sendo fundidas em barras que eram
enterradas numa furna de pedra que só meu Padrinho sabia onde se encontrava.
Dizia-se que as pessoas que conduziam as barras eram, depois, assassinadas
para não revelarem o segredo. Por outro’ lado, como Dom Pedro Sebastião
começasse também a trabalhar nas minas de topázio e água-marinha
de Picuí, começou a correr o boato de que pedras preciosas e
diamantes estavam também sendo enterrados com o ouro e a prata. Corria
também a notícia de que aquele antepassado de meu Padrinho,
aquele velho Dom Sebastião Garcia-Barretto que morrera flechado pelos
Tapuias, viera ao Sertão, pela primeira vez, para enterrar um tesouro,
o Tesouro do Reino, caixas e caixas de madeira atulhadas de ducados e dobrões
de ouro e de prata. Falava-se ainda numa versão estranha: esse mesmo
velho antepassado nosso, o segundo Dom Sebastião, achara a decifração
do velho enigma das Minas de Prata, que tantos Conquistadores e sertanistas
antigos tinham procurado em vão. Deixara a seus descendentes uma caixa
contendo velhos pergaminhos, mapas e roteiros. Essa caixa, deixada ao abandono
durante muito tempo, fora encontrada por Dom Pedro Sebastião, e era
este o motivo de ter sido ele o Garcia-Barretto destinado a tocar na fabulosa
fortuna. Dizia-se que o motivo principal de todos aqueles que tinham procurado
as fabulosas Minas de Prata de Robério Dias terem errado o roteiro
fora o fato de que eles interpretavam mal certos topônimos fundamentais,
o que os levara a pensar que a prata, o ouro e os diamantes estavam na Bahia.
Dom Sebastião Garcia-Barretto decifrara certas inscrições
e legendas tapuio-fenícias e chegara a conclusão de que o tesouro
se encontrava era na Paraíba. Por exemplo: certos velhos documentos,
conhecidos de todos, falavam em Itabaiana e no Serrote da Prata. O pessoal
pensava que a referência era feita a Itabaiana de Sergipe. Ora, todo
mundo sabe que existe uma Itabaiana na Paraíba, e que, no nosso município
de Monteiro, existe um lugar chamado o Serrote Agudo da Prata. Falava-se ainda
em florins holandesesresultantes’ do apresamento e naufrágio de uma
frota e em velhas moedas portuguesas e espanholas. E começaram a se
misturar essas Qersóes todas, como sempre acontece nestes casos. Começou
a correr um boato de que a furna do tesouro era a mesma do jazigo de Dom Pedro
Sebastião, do túmulo cavado no interior do lajedo e que formava,
segundo as notícias, uma enorme cova subterrânea. O ouro, a prata,
as moedas e as pedras preciosas estariam sendo carreados em segredo, a noite,
em lombos de burros, e trancados ho jazigo de pedra para serem sepultados
com o dono. Esse seria o motivo, diziam, de Dom Pedro Sebastião manter
sempre, em torno de seu futuro túmulo, uma porção de
cabras armados. Aí, chegou 1926. Aconteceram os combates, emboscadas,
correrias e tiroteios da “Guerra da Coluna”. Durante essa guerra,
meu Padrinho ficou muito agitado. Ele tomou parte ativa nela, de modo que
toda aquela agitação meio febril dele me parecia, um pouco,
resultado da paixão política. Mas era que seu caráter
já se encaminhava aos poucos da excentricidade para a demência.
Deu para sair às vezes da “Onça Malhada” a noite,
inesperadamente, só, passando dias e dias fora de casa. Ao voltar,
não falava com ninguém sobre a viagem, nem permitia a ninguém
nenhuma referência sobre ela. De uma feita, chamou um grupo de homens
de sua confiança, ordenando a eles e a mim que o acompanhássemos.
Partimos de madrugada, com meu Padrinho a frente e armados até os dentes,
como ele recomendara. Galopamos até as nove horas da manhã,
mais ou menos, indo acampar finalmente perto de umas pedras que ficam mais
ou menos a meio caminho entre Taperoá e Teixeira. Dom Pedro Sebastião
mandou que nós nos escondêssemos, em grupos de dois ou três,
por trás das pedras, lajedos e serrotes que margeiam a estrada. Eu,
covarde como sempre fui, estava aterrorizado, julgando que se reacendera a
“Guerra da Coluna” e que íamos agora era emboscar alguma
tropa inimiga que passaria por ali. Maldisse a minha pouca sorte, que, depois
de ter permitido que eu escapasse das empreitadas da Guerra, ia agora me lançar
noutra, inteiramente inesperada. Pensei em correr, em desertar, como tinha
visto tanta gente fazer em 1912 e 1926. Mas, se eu tinha medo da guerra, tinha
ainda mais de meu Padrinho, de modo que fiz das tripas coração
e fiquei. Esperamos, esperamos e nada. O suor corria em bicas da minha testa.
Ao meio-dia, o Rei do Cariri permitiu que comêssemos alguma coisa. E
ali ficamos até as seis horas da’noite, quando ele nos ordenou que
voltássemos para casa, o que fizemos com ele a frente, num mutismo
absoluto. E foi a partir daí que tudo começou a se agravar.
Deixo de contar tudo com pormenores porque, para mim, tudo aquilo era de uma
tristeza terrível. Conto apenas, porque é mais importante, que
lá um dia, ele convocou aquele grupo de doze Cavaleiros que ele chamava
de os Doze Cavaleiros de Doze…'” – Dom Pedro Dinis Quaderna – interrompeu
o Corregedor – consta, aqui, que foi o senhor o principal responsável
pela loucura religiosa e monárquica de seu Padrinho. Dizem, inclusive,
que foi o senhor quem meteu na cabeça dele essa história dos
Doze Cavaleiros que tinham tomado parte na tal “Guerra de Doze”,
e que formariam, para ele, uma espécie de Guarda de Honra, de Doze
Pares de França. Pelo que já sei do senhor, vê-se que
é verdade. O senhor confirma isso? – A parte dos Cavaleiros é
verdade, foi idéia minha. Mas o resto, não; eu me limitava a
cumprir as ordens que meu Padrinho mesmo me dava. Mas naquele dia, ninguém
me interrompeu, e continuei a contar a história do tesouro ao Doutor
Pedro Gouveia. Falei: “Meu Padrinho convocou os Doze Cavaleiros, que
se reuniram na grande sala da frente da Casa-Forte da Onça Malhada.
Dom Pedro Sebastião estava com Sinésio ao lado, porque Arésio
se retirara em sinal de protesto. Arésio detestava as fantásticas
estranhezas do Pai, pressentindo, com seu orgulho, que elas atraíam
desconsiderações para toda a família Garcia-Barretto,
desconsideração que a maioria dos próprios Doze Cavaleiros
mal podia disfarçar. O homem que, nos bons tempos da Onça Malhada,
era o encarregado de reunir os cachorros para as caçadas, tocou na
buzina de chifre. Selaram-se os cavalos e partimos todos, em demanda, para
uma serra que havia no meio das terras dos GarciaBarrettos, um lugar ermo
e áspero, no qual se subia aos poucos, levando, porém, para
um serrote pedregoso de onde o chão caía a pique sobre a planície
da Espinhara, lá embaixo. Esqueci-me de dizer que meu Padrinho e Sinésio
estavam todos dois de gibão. Meu Padrinho tinha ganho, dado por um
Presidente sertanejo que estava então no governo da Paraíba,
um gibão de honra e boniteza, feito de duas qualidades de couro – couro
castanho de vaqueta e couro amarelo de veado. Amedalhara-se também
o gibão com moedas de prata, e Dom Pedro Sebastião mandara fazer
um igual para Sinésio, que estava, então, com dezesseis anos
e, ao contrário de Arésio, acompanhava o Pai em tudo. Caminhamos
uma porção de tempo, com meu Padrinho e Sinésio à
frente. Os cavalos começaram a subir com mais dificuldade a encosta
que, suave a princípio, ia se tornando cada vez mais íngreme
e pedregosa. Finalmente, depois de horas de caminhada difícil, por
entre enormes blocos de pedra que pareciam ter sido despedaçados dos
enormes lajedos de cima por raios ou pelo Sol, chegamos ao topo da serra,
encimado pelo grande serrote. A um sinal de Dom edro Sebastião, nós
nos detivemos a uma certa distancia, disponnos em semicírculo. Quanto
ao Senhor da Onça Malhada, meteu cavalo mais para cima, ladeando, com
risco de vida, um despedeiro de quase cem metros de pedra a pique. Sempre
acornado por Sinésio, grimpou, montado, a parte inferior do grande
serrote. Daí se descortinava quase toda a chapada que vai de lTaperoá
até o Pico do Jabre, no Teixeira. Meu Padrinho ficou urante uma boa
porção de tempo montado, olhando a nua e bela sagem, embaixo.
Depois, puxou da cintura a buzina de chifre que tinha pedido ao homem dos
cachorros, desferindo, nela, um toque áspero, belo, rouco e castanho
como o som deste meu Canto. Sinésio olhava tudo isso sem dizer palavra.
Quando o som morreu nas quebradas da serra, Dom Pedro Sebastião colocou
a mão direita em concha no ouvido, como se esperasse ouvir uma resposta,
enquanto seus olhos esquadrinhavam o vasto Tabuleiro que se perdia em sua
vista, lá embaixo. Depois de repetir isso várias vezes, pareceu,
de repente, que ele obtivera o resultado que aguardava, pois seu rosto se
iluminou. Gritou para nós que, embaixo, o olhávamos espantados
mas silenciosos, sem ousar fazer nenhum comentário: “É
ele, é ele! Eu não disse?” E, cravando na terra deserta
e nua, no chapadão coberto de cactos e pedras que cintilavam ao sol
violento do me;o-dia, seus olhos de visionário, gritou para lá:
“Deus o salve, meu Senhor, Deus o salve!” Quem seria? O terrível
Senhor de todas as coisas? O Rei? Nunca se soube! O olhar dele pareceu acompanhar
a passagem de Alguém que cruzava, a cavalo, a chapada, lá embaixo.
Digo a cavalo porque pela rapidez com que seus olhos acompanhavam o Cavaleiro
invisível, não podia ser pessoa que estivesse passando a pé.
O Lato é que, quando o Cavaleiro já se perdia no horizonte,
nós ouvimos Dom Pedro Sebastião dizer ainda, como numa bénção
ou numa despedida: “Deus o leve e o traga de novo, em paz!” Então,
persignou-se e voltamos todos para a “Onça Malhada”. Eu me
lembrava daqueles versos de Alvares de Azevedo que dizem: “Cavaleiro
das armas brilhantes, onde vais, nos Sertões chamejantes, com a Espada
Sangrenta na mão? Por que brilham teus Olhos ardentes e esses Gritos
nos lábios frementes vertem Fogo do teu Coração? Cavaleiro,
quem és? O Remorso? Do Corcel te debruças no dorso e galopas,
chapada através.
Oh! da Estrada acordando as poeiras não escutas luzirem Caveiras
e o Profeta da Pedra a teus pés? Onde vais na Catinga flamante, Cavaleiro
das armas brilhantes, doido e ardente, qual Morto na tumba? Não escutas?
Na Pétrea Montanha meu tropel teu Galope acompanha e um clamor de Vingança
retumba! Cavaleiro, quem és? Que mistério? Quem te força,
na Morte, no Império, pela Tarde assombrada a vagar? – Sou o Sonho
da tua Esperança, tua Febre que nunca descansa, o Delírio que
te há de matar! ” “A essa primeira saída, seguiram-se
outras, sempre com as mesmas vestes de Vaqueiro, as mesmas armas, os mesmos
toques da buzina de chifre, as mesmas palavras e a mesma passagem do Cavaleiro
no chapadão, enquanto nós, na serra, nada víamos. Entretanto,
impressionáveis como são os Sertanejos, apareceram logo algumas
pessoas declarando que, realmente não viam nada, mas ouviam o galope
do cavalo, primeiro chegando, cruzando a chapada e perdendo-se depois, na
distância. Um dia, ousei fazer perguntas a meu Padrinho sobre sua visagem,
sobre a identidade do Cavaleiro e sobre o sentido que tudo aquilo tinha para
ele. Dom Pedro Sebastião fechou a cara, mas disse: “É um
Cavaleiro que eu vou encontrar e que vejo na chapada, lá embaixo”.
“E quem é ele?”, indaguei. “Não sei! “,
cortou meu Padrinho, com o ar obstinado de quem se recusa a passar adiante
num assunto pessoal. Insisti: “Mas ele passa, mesmo, a cavalo, como estão
dizendo? Alguns dos nossos já estão começando a ouvir
o galope de um cavalo!” “Ah, já estão ouvindo!”,
comentou Dom Pedro Sebastião entre irônico e vitorioso. “Pois
têm toda razão, porque é mesmo a cavalo que ele passa!
Sim, a cavalo pela chapada, entre os raios do Sol e nuvens de fogo, coberto
de mantos e pedrarias, epilético e generoso, por entre os bodes e as
pedras, que ele roça com suas esporas, tirando faíscas nelas.
No dia em que ele vem, eu já acordo com o ouvido fino de quem foi mordido
de cobra. Quando ele vem muito longe, ainda, muito antes de todos, começo
a ouvir os cascos de seu cavalo, tirando fogo nas pedras. É então
que me visto, pego as armas e convoco os Doze Cavaleiros com a buzina que
antes me servia para a caça e agora serve para tocarcom suas esporas,
tirando faíscas nelas. No dia em que ele vem, eu já acordo com
o ouvido fino de quem foi mordido de cobra. Quando ele vem muito longe, ainda,
muito antes de todos, começo a ouvir os cascos de seu cavalo, tirando
fogo nas pedras. É então que me visto, pego as armas e convoco
os Doze Cavaleiros com a buzina que antes me servia para a caça e agora
serve para tocar- “Um dia, porém”, continuei, “meu Padrinho
se vestiu do mesmo jeito, e, sem convocar os Doze nem Sinésio, me mandou
que o acompanhasse. Era, para mim, uma honra inaudita. O Barão do Guarupá
e o Visconde de Caicó, aqui presentes, já tinham se insinuado
várias vezes para conseguir um convite desses, tendo porém esbarrado
sempre com a taciturnidade glacial de Dom Pedro Sebastião, que cortava
toda vez as insinuações. Ele me entregou, e mandou que eu conduzisse,
um velhíssimo e pequeno baú de couro, todo tauxiado e que eu
nunca vira. Montou no seu cavalo, o alazão chamado `Medalha’, e partimos
em direção a serra. Desta vez, porém, não houve
nem buzina nem passagem do Cavaleiro. Quando chegamos lá, meu Padrinho
desceu do cavalo e mandou que eu fizesse o mesmo. Ficou durante alguns momentos
olhando a planície áspera e quente, lá embaixo, murmurando,
aqui e ali algumas palavras inaudíveis. Depois, voltando-se bruscamente
para mim, disse: `Não trouxe Sinésio para não arriscá-lo,
você é quem vai ser o Guarda do Selo dos Tesouros. O tesouro!
Eles falam, falam, mas não sabem da missa nem a metade! É Belchior
Moréia, é Robério Dias, é Dom Sebastião,
é a Bahia… Nada disso, é a Paraíba, é Taperoá,
é a Pedra do Reino e a Onça Malhada, com a data dó Coraçá!
Vou lhe dizer uma coisa: do jeito que as coisas vão com o tesouro,
antes a sociedade com o homem dos navios na Fortaleza de São Joaquim
da Pedra! Os navios! Você devia vê-los, Dinis! São enormes,
bonitos, pintados de amarelo e de vermelho, com serpentes, dragôes e
cabeças de cavalo e cachorro nas proas. Tem o “Narciso”,
o “Upanema”, o “Pedra Verde”, o “Garça Cor-de-Rosa”,
mas o mais bonito de todos é o “Estrela-da-Manhã”.
As velas são brancas, mas quando eles passam em Penedo, nas Alagoas,
desviam-se da coroa de areia vermelha onde estão os martins-pescadores
flechando peixes, e onde está o rio todo cheio de barcaças com
velas coloridas – azuis, vermelhas, amarelas, pretas com listras de ouro,
etc. Eles carregam açúcar, carvão, sal de Macau e sobretudo
carregam pedras – o topázio, a esmeralda, o sol, a lua; sim, porque
existe a pedra chamada olho-de-gato, e outra chamada olho-de-tigre, e a pedrada-lua
e a pedra-do-sol, e tudo isso vai sendo encontrado e sepultado na pedra, com
o ouro e a prata que servirá para os engastes. Você vai com Sinésio
ver os navios: são muitos, viajam do Sertão para o Mar, e depois
de deixarem o São Francisco e o Sertão das Piranhas, bordejam
a costa pelo Mar, passando na Fortaleza de Nazaré do Cabo, em Pernambuco,
e vindo até a de São Joaquim da Pedra. Vocês vão
lá e não se arrependerão, porque é bonito e bom
de ver!’, disse ele, passando a mão pelo rosto e pela barba, como para
dissipar um pouco o emaranhado dos sonhos. Depois, com ar mais razoável,
disse: `Tome aqui essa chave e abra o baú!’ Eu obedeci, com os olhos
reluzindo e as mãos tremendo de curiosidade. Havia, lá, uma
porção de velhos pergaminhos, muito estragados pelo tempo, escritos
num Português bastante antigo. Naquele dia, meu Padrinho me deu tudo
aquilo. O primeiro estava escrito assim: “Instrucção q.
deo o Padre Antonio Pereyra o da Torre de Garcia d’Avila a João Calhelha
do anuo da Graça de N. Sñor. Jesu Christo de hum mil seis centos
& cincoenta & sinquo annos.
Na Serra &tc. na mais alta das Pontas delia pondose hum homem da banda
do Sul ahi está o Haver & a ponta vae inclinada ao Leste o&
debaxo desta Ponta ao Leste bem abaxo quãdo faz grandes ynvernadas
leva hurra Beta & e se esta enorme Beta he de Prata ou de Ouro Deos o
sabe & quando forem ao Taboleiro em sima, pondose da parte do Sul, hão
de achar muytos Crystaes & da banda do Sul para o Norte outras Pedras
e muytas q. me parecem de consideração & donde morreo Gabriel
Soares está hurra Serra por nome Itaiuperá q. he de Xumbo mas
anuncia o haver do Tesouro & tomem a Ribeyra donde nasce o rio chamado
em tapuia Ubatuba & corram por ela abaxo & não fique Grota
q. não vejam”.
“Os outros documentos eram todos escritos no mesmo Português antigo.
Decifrei tudo cuidadosamente, tirando uma cópia que é esta que
apresento aqui, pela primeira vez. Havia uma carta de Dom Sebastião
Garcia-Barretto, o antigo, dizendo que, tendo realizado uma entrada que partira
do Pilar, se metera pelo Rio Paraíba e pelo Taperoá adentro.
Dizia que o nosso antepassado, aquele Dom Sebastião Barretto que afirmavam
ser o Rei Dom Sebastião, viera para o Brasil trazendo “o haver
do Reino e dos Mouros”. Dizia que Gabriel Soares, e Belchior Dias Moréia
e Afonso de Albuquerque Maranhão tinham encontrado traços do
tesouro e tinham deixado tudo em linguagem cifrada, dando pistas falsas para
que pensassem que aquela fortuna incalculável se”Assento do Coronel
Belchior da Fonseca Saraiva Dias Moréia, Muribeca. = No ano da graça
de 1675, governando este Estado Brasil o Ilustríssimo Senhor Dom Roque
da Costa Barretto, andou El-Rei Nosso Senhor a Dom Rodrigo de Castelo Branco
que fizesse averiguar as Minas de Itabaiana a Itaperuá, pelas Qotícias
e tradições de Belchior Dias Moréia. E foi o dito Dom
Rodrigo ao Serrote Agudo, mas terminou se retirando, ambicioso das notícias
que então corriam das esmeraldas, do ouro e da prata, e o mataram,
deixando ele o Tenente-General seu Cunhado para ir examinar as Minas. No ano
de 1675, fui eu, com Jorge Soares, uma das pessoas que Sua Alteza mandou a
ver se eram de minas as Serras. Achamos um índio Cariri, velho de cem
anos, que nos levou pelo campo frio, ao norte do Salitre, cortando muitas
léguas de mato e Catinga, sem água nem gravará que a
tivesse. Mas, com raízes de umbu e mandacaru, remediou-se a penúria
da gente que abriu o caminho. O velho mostrou o caminho e o lugar onde Belchior
Dias, meu bisavô, achou o que buscava. O índio disse que outro
homem de sua nação fora quem levara ali a meu bisavô,
dando-lhe umas Pedras que muito o tinham alegrado. Achamos sinais certíssimos
de haver estado gente branca ali: foram o dito Belchior Dias e seu sobrinho
Francisco Dias Dávila, o primeiro, no ano de 1628, e o segundo, depois.
Mas não descobriram a Mina, porque não conheciam o que nós
agora conhecemos, porque Belchior Dias lhes ordenara não mostrar nunca
a branco nenhum aquele lugar, porque os Flamengos terminariam sabendo e viriam
tomar a sua terra. Por isso, ele nunca quisera falar nem mostrar o caminho.
Se descobrirem essa incalculável riqueza que a terra do Brasil tem
sonegado há tantos anos dos olhos dos cegos, Sua Majestade porá
um freio ao Turco e sopeará os potentados da Europa. Mas por não
haver quem reconheça os sinais e as duas Pedras, que estão incógnitas,
Deus as descobrirá quando for servido. Há o papel que o Padre
Antônio Pereira da Torre deu a João, o Calhelha, e a seus irmãos,
mas não deram em nada porque as serras são muitas, difíceis
os sinais das Pedras e eles ignorantes de minas, roteiros e metais”.
“‘Havia outro documento, importantíssimo, que dizia assim:
“A Sua Excelência o Mui Alto Senhor Conde de Sabugosa, Vice-Rei
do Estado no Brasil = Da parte do Coronel Pedro Barbosa Leal. = Muito alto
Senhor: Nos primeiros anos da povoação, entrou pelo Rio Itaperoá
o Tenente-Coronel Sebastião
contrava na Bahia. Mas não vou transcrever tudo em Português ttgo,
para não dificultar a leitura. Havia o seguinte: Garcia-Barretto, ao
qual, vindo naquela diligência, lhe trouxe o gentio do Sertão uma
pedra cravada de ouro. O filho dele fez seu caminho até a ponta da Serra,
onde fez uma Casa-Forte. O Alferes João Martins Torres, com quem falei
depois no Sertão do Taperoá, homem velho e de bom crédito,
me assegurou que vira a Casa-Forte e estivera assentado sobre uma peça
de campanha que ali se achava. Seguiu então, aquele, a sua rota, e descobriu
o que acusa o Roteiro, que é de Dom Sebastião. Foi à Pedra
Furada, passou a Serra Branca. E como a este tempo se sabia já do Roteiro,
resolvi entrar pelo mesmo caminho do Sertão, mas mesmo fazendo várias
diligências, não descobri o tesouro. Mas é sem dúvida
que a Serra é a das Pedras, porque ali esteve o Garcia-Barretto e cheguei
a achar três letras de pedra postas a mão, a saber, um P, um D
e um Q, e entrelaçadas com estas, um A, um V, e um S, de um lado, e do
outro, um S, um G e um B, tudo a pouca distância, com uma cruz sobre uma
Laje. Segui a rota, atravessando setenta léguas de Catinga em que perdi
vinte e oito cavalos, mas como me faltava o Roteiro, não pude encontrar.
Perto das Serras, nos campos do Coraçá, depois do Sítio
do Curral do Meio, vi e passei pelo Serrote de pedras ametistas e me garantiu
o Principal daqueles Cariris que, perto daquele Morro, achava-se outro, todo
de pedras amarelas. A Serra é a que chamam da Pedra Furada, porque I
quer dizer água, ta é pedra, e tudo significa Agua da Pedra Furada.
Isto mesmo se acha na Pedra, diz-se ao Reino, porque do centro dela sai uma
ribeira de água por um Canal de pedra que entra de serra adentro sem
se lhe ver o começo. Mandei entrarem cinco homens com fachos de cera
acesos, e entrando eles cerca de três ou quatro braças, ainda continuava
aquele canal de pedra para o centro da Serra. Os sinais do Roteiro são
uma grande árvore de Sucupira, as duas Pedras, o capão de canas
bravas a que chamam Tabocas e a grande árvore ainda hoje cravada de balas,
do tempo da Conquista. Falta descobrir a Beta que vem referida no Roteiro, pois
o homem chegou a afirmar que o haver do Rei e o ouro e a prata e as pedras são
tantas quanto é muito o ferro em Bilbao. Queira Deus que no tempo do
governo de Vossa Excelencia se logre esta felicidade e que para dirigir e franquear
este assunto, guarde Deus a Vossa Excelencia por muitos anos. Aos vinte e dois
de novembro de 1725. Pedro Barbosa Leal”.
“‘Quando terminei de ler isso, meu Padrinho me mostrou uma porção
de velhas escrituras referentes às terras dos Garcia-Barrettos na Paraíba
e no Pajeú de Pernambuco, todas com referencias ao Coraçá,
à Pedra Furada, à Lagoa do Meio, ao Serrote Agudo da Prata,
etc. Depois me disse que o problema era o Roteiro, mas que o Roteiro ele tinha.
Mostrou-me então um velho mapa do Nordeste, um daqueles mapas dos séculos
XVI, XVII ou XVIII, cheio de emblemas, brasões, bandeiras, rosas-dos-ventos,
serpentes marinhas, peixes com asas, onças e caravelas. No pergaminho,
abaixo do mapa, havia uma espécie de explicação cifrada
de tudo, escrita pelo próprio punho de meu Padrinho, Dom Pedro Sebastião
Garcia-Barretto. Era a seguinte: “Na encruzilhada das Onças, a
32 passos, o Cavo de pedra com a Abada de ouro, ao ‘poente do Poderoso. Perto
do padrão de pedra que fica mais ao Sul, dentro do Penedo brocado,
os dois tesouros do grande Poder. Na testa da Casa de Pedra, o boi de ouro
sem armas, e a 45 passos daí, o Cavalo de prata, rompido do lado direito
e cheio de moedas velhas. No pino do Sol, o belo Haver mestiço de peças
de ouro. No caminho da galeria subterrânea do Castelo de Pedra, o balde
de cobre cheio de medalhas e diamantes. Na torre da Casa-Forte, as palagranas
do Rei, cozidas em barro negro, com as Custódias de ouro e as caixas
de diamantes. Embaixo do púlpito ou Trono, o Labrusco de ferro com
um número incontável de Moedas latinas. Sob o Cruzeiro, dentro
do chão, no rumo da Pedra incrustada, as 12 Armaduras de ouro e o ídolo
de prata dos Reis Mouros de Castela. Para o lado das Covas, as alfaias do
Bispo Negro com as caixas de diamantes da Sacerdotisa vermelha. Aos pés
do ninho do Gavião, a Cancela e as cainças de Ouro que vieram
de Alcácer. A 21 passos do Rochedo Espalmo, no leito das Areias negras,
o tabuado de madeira, e, debaixo dele a Cova cheia de moedas de prata com
a efígie do Castanho. No meio dos dois Castelos, o haver de prata guardado
pelo Bezerro: se quereis o haver, não toqueis no Bezerro. Perto, dentro
do Leopardo de prata, estão as valias do Temível. Ao pé
da Onça de Pedra da entrada, os diamantes do Antigo. A tres passos
das Urtigas e do lasco dos Peranhos, a entrada para o canal de pedra e para
‘as 12 salas de Ouro, lavrada por desconhecidos. No fim da galeria, na Fonte,
o legado do Restaurador, todo de ouro, debaixo do cascalho, ao bater do Sol
na ponta de pedra, quando chega a hora sétima. A oito passos da corrente
forte, a estátua da Moura, enorme, de prata e bronze, com um peito
de rubi e outro de esmeralda, e tendo no ventre baixo a caixa de topázio
amarelo e pêlos de ouro: ao pé da Estátua, está
o peso dela em diamantes. Ao pé do Rochedo de dois bicos, o sangue
dos Guerreiros mortos. Na guarda da Porta subterrânea, os 12 homens
esculpidos em pedra, com as letras púnicas no alizar do mármore.
No escoamento, a Espada de copos de prata e pegadouro de brilhantes: ouvi
o som, é som garcia dos barros e barrettes que af chegaram. Na sobrefinca,
as riquezas da Renegada, embaixo do terceiro arco. Na canga de pedra, as 7
000 dobras de ouro: ao pino do meio-dia, bate-lhe o Sol na linha direita do
Serrote Agudo. Guardai o roteiro e lembrai-vos da sua chave que está
nas letras e no mapa: três do lado direito, três do lado esquerdo
e a Onça no meio, no coração do coração
dos três. Achada a entrada o resto será fácil: na primeira
Sala da furna de pedra, está a primeira Urna de prata, e dentro dela,
a Onça Malhada de ouro. Na segunda, uma Corça de prata, guardada
por um enorme Gavião de ouro, com as asas de diamante. Na terceira,
a Onça negra de diamante e carbúnculo, sustida pela Onça
castanha de ouro. Guardai bem tudo isso, pois os dois picos de pedra guardam
o todo do Terrível. Com o esconjuro do Sinal-da-Cruz e a Sagrada Pedra
Cristalina. Amém.” “Quando meu Padrinho terminou de me mostrar
isso, eu disse que tudo me parecia cheio de sentidos ocultos, mas que me era
impossível decifrá-lo. Ele me disse que ocultara, de propósito,
a decifração, para que o roteiro e o tesouro não caíssem
em mãos estranhas. Disse-me que, chegado o momento, me comunicaria
a chave do enigma e tudo me pareceria tão claro que eu me espantaria
de não ter atinado com ela no mesmo instante. E verdade que, de vez
em quando, tudo aquilo me pareciam referências à Pedra do Reino
e aos dois rochedos gêmeos que eram as torres do nosso Castelo. Mas
como meu Padrinho me prometia a revelação de tudo para depois,
conformei-me na hora e voltamos para casa. Passou 1927, passou 1928, passou
1929. Começou o terrível ano de 1930 e novamente Dom Pedro Sebastião
se viu metido nas lutas políticas da Paraíba. Começou
a Guerra de Princesa. Um dia, em 1930, procurei meu Padrinho e pedi-lhe que
me fornecesse a chave para a decifração do roteiro, porque,
com aquelas lutas, combates e emboscadas em que ele andava metido, podia morrer
a qualquer momento, e Sinésio ficaria sem saber o que importava. Ele
concordou. Mandou que eu trouxesse o roteiro o o mapa e ficou horas e horas
olhando. Depois, espantado, olhou para mim e disse que tinha se esquecido
totalmente da decifração! Simplesmente: tinha se esquecido!
Aquilo que era claro como água, antes, estava emaranhado e enigmático
como um labirinto! Disse, porém, que eu não desanimasse. Ele
iria se esforçar e, assim que se lembrasse, me diria tudo, para que
eu, como Guarda do Tesouro, fizesse chegar tudo às mãos do seu
filho mais moço, Sinésio. Assim foi o tempo passando, até
que chegamos ao fatídico dia 24 de Agosto de 1930. Nesse dia, pela
manhã, meu Padrinho me comunicou que estava a ponto de decifrar tudo.
Disse-me que subiria para a torre da CasaoForte e que desceria de lá
com a chave do roteiro pronta, porque encontrara o caminho da memória
o agora iria até ‘o fim. Subiu para a torre, e foi a última
vez que o vi vivo: porque daí a umas duas ou três horas, quando
sentimos falta dele, fomos encontrá-lo degolado, daquela maneira que
todos conhecem. Perto dele, estavam o mapa e essa última parte do roteiro
que acabo de comunicar-lhes. Ninguém deu importância a tudo aquilo.
Apanhei o papel, guardei-o e é por isso que o tenho aqui, agora!’ “Exibi
então, Senhor Corregedor, ao Doutor Pedro Gouveia, a Clemente e a Samuel,
o mapa e o roteiro manchados do sangue do velho Rei do Cariri. Os três
estavam siderados. O Doutor Pedro falou, afinal: “‘E depois disso, ninguém
lhe falou mais do tesouro?’ “‘Não! Agora, o que me impressionou
hoje, demais, foram as visagens de Nazário e Pedro Cego, porque tudo
indica que a furna da Onça que eles viram é a mesma do Tesouro.
Seja este um tesouro ibérico de dobrões espanhóis e portugueses
trazidos por Dom Sebastião – como eu acho que pensa Samuel – ou seja
um tesouro fenício-tapuia como aquele que foi visto por Clemente, o
fato é que o tesouro existe e eu acredito que a entrada da furna é
na Pedra do Reino. Minha idéia, portanto, é que eu, o senhor,
Clemente, Samuel, Frei Simão, os ciganos e, naturalmente, Sinésio,
organizemos uma expedição sob forma de Circo. Iremos à
Pedra do Reino, seguindo, passo a passo, os topônimos dos documentos
deixados pelo velho Dom Sebastião Garcia-Barretto. São setenta
léguas de Catinga desértica. No caminho, eu e o senhor iremos
estudando o mapa e o roteiro, tentando encontrar a chave final da Charada
enigmática que o velho Rei não pôde matar, tendo sido,
talvez, assassinado por causa disso. Porque, uma coisa eu lhe digo: o tesouro
é a riqueza mais incalculável que já terá sido
dada a um mortal!’ “‘Poderíamos fazer, com ele, a Revolução,
a grande revolução brasileira com que vivo sonhando!’, disse
Clemente, com olhar perdido e nostálgico.
“‘O Brasil poderia ficar mais importante do que o Império de
Filipe II, realizando nós, aqui, o Quinto Império profetizado
por Antônio Vieira!’, disse Samuel com o mesmo ar melancólico
do outro.
“Nada disso, meus caros!’, falou de lá o Doutor Pedro Gouveia,
com ar prático. ‘Tesouro é tesouro: não tem dono e pertence
a quem o achar! Se nós acharmos o tesouro, ele será nosso, isto
é, de vocês, meu e do rapaz do cavalo branco, naturalmente.
Estão de acordo?’ “Estamos, sim, é claro!’, ecoamos nós
três, descobrindo, mais uma vez, como aquele homem era hábil
e precioso.
“Pois então, ficamos de acordo!’, disse ele, como se nos despedisse.
‘Amanhã, vocês terão a entrevista com Sinésio.
Tomarão suas decisões a respeito da Ordem e da viagem e, se
Deus quiser, sairá tudo pelo melhor!’ “Nós nos erguemos,
Senhor Corregedor. Despedimo-nos e saímos de novo pelo portão
dos fundos, onde Lino me aguardava fielmente. Com ele à frente, tomamos
o caminho da Praça, onde estavam se desenrolando fatos da maior importância.”
– Quando nós chegamos diante do casarão dos Garcia-Barrettos,
a confusão estava a maior do mundo, e nós nos misturamos à
multidão. A parte da frente da casa estava completamente fechada e
o Povo se mantinha ali à espera, numa atmosfera de tensão religiosa
fora do comum. Notei logo que o dedo de meus irmãos bastardos andava
por ali, porque na calçada, de cada lado do portão, estava uma
figura esculpida em madeira por aquele que era santeiro e imaginário,
Matias Quaderna. A primeira era um torso do Cristo, enorme, brutal, esculpido
num só tronco de baraúna, com a cabeça coroada por raios
estrelados e folhagens, e com quatro figuras entalhadas na parte de trás,
como se tivessem sido geradas por seu lombo – uma onça, um touro alado,
um anjo e um gavião. A outra era uma Nossa Senhora, também enorme,
com chapéu de couro, estrelado de doze estrelas, à cabeça,
com os pés sobre a serpente e com as duas mãos apoiadas, uma
num cervo, a outra numa Onça. Pendurados ao muro e perto das gigantescas
imagens de madeira, estavam dois outros objetos que me indicavam a presença,
ali, de meu irmão Antônio Papacunha Quaderna, o tocador de pífano
e pintor de bandeiras de todas as procissões de Taperoá. Eram
dois modelos, pintados em papel, para as bandeiras de procissões recentes.
O primeiro representava, no centro, uma árvore em cujos galhos viam-se
umas Onças; embaixo da árvore, havia um Vaqueiro a cavalo e
outro tangendo um boi. O segundo era uma representação do Cristo
crucificado. O corpo do Cristo era coberto de ferimentos que reluziam e que
o faziam semelhante a um Leopardo ferido, coberto de malhas sangrentas: do
lado direito, montado a cavalo, estava um Vaqueiro, ainda sustendo a lança
que transfixara o peito do Crucificado; do lado esquerdo da cruz, estava uma
Nossa Senhora vestida de cangaceira e com o peito traspassado por sete punhaiscompridos;
um enorme galho de mandacaru pendia dos braços da cruz, parecendo uma
enorme ampliação da coroa de espinhos, o uma chuva de pingos
de sangue caía do alto, formando, embaixo, um mar de sangue vermelho,
preto e amarelo. Aliás, meus irmãos Antônio, Sílvio
e Virgolino – tocadores respectivamente de rabeca, pífano e viola –
estavam no meio da multidão, com outros tocadores seus companheiros
e prontos para o que desse e viesse, como logo depois eu iria verificar. Por
enquanto, porém, e dentro de certos limites, o Povo ainda estava sossegado,
e resolvi tomar o sintoma do ambiente para auscultar as opiniões. Assim,
avistando um grupo de mendigos que se mantinha meio afastado e relativamente
em silêncio, no meio da multidão exaltada, pedi a Lino que me
levasse até lá. Esses mendigos não moravam na rua, mas
sim em tudo quanto era biboca e pé de serra, só aparecendo na
Vila nos dias de feira. Usavam, todos eles, uns camisões sujos o remendados,
cajados e longas barbas proféticas e grisalhas, destacando-se entre
eles a figura patriarcal do velho Misael Cascão, uma espécie
de chefe e Rei que sempre julguei ter vindo ao mundo sem ajuda de pai e mãe,
brotado das pedras e da terra parda do Sertão. Apesar de ter querido
passár ó mais despercebido possível, eu era uma figura
muito conhecida e muito ligada a todos aqueles acontecimentos para não
ser notado. De modo que, quando me dirigia para lá, fui descoberto,
graças a Deus por pouca gente, e minha passagem, agarrado ao bastão
de cego que Lino me improvisara, causou certa sensação: “E
Seu Pedro Dinis Quaderna!. É o Profeta da Pedra do Reino! Bem que ele
tinha profetizado a vinda do nosso Prinspo!’, eram estas as frases que eu
ia ouvindo à medida que me encaminhava para o grupo de mendigos.”
– E é verdade que você tinha profetizado tudo aquilo, Dom Pedro
Dinis Quaderna? – perguntou o Corregedor.
– Para falar a verdade, Senhor Corregedor, desde 1930 que eu esperava e
profetizava, todo ano, a volta do meu sobrinho e primo Sinésio. Naquele
dia, porém, esquecida de todos os anos em que eu errara a profecia,
aquela gente só se lembrava da última, a que eu tinha publicado
no Almanaque do Cariri para 1935. De qualquer modo, com certa dificuldade,
consegui chegar junto ao velho Misael Cascão, no momento exato em que,
também com certa sensação, o Povo começou a notar
a chegada de Samuel e Clemente, que tinham vindo comigo e que estavam ainda
com roupas de cerimônia, de toga e tudo. Os mendigos estavam sentados
na calçada, formando um meio-círculo, no meio do qual, sentada
também na calçada, mas encostada com as costas à parede
da casa dos Garcia-Barrettos, estava a Velha do Badalo, com seu rosto de bronze
e pedra, engelhado e roído pelo tempo. Somente então entendi
por qual motivo os mendigos .se mantinham como que alheados ao esvozear da
Praça, num silencio atento e fascinado. É que a Velha não
se calava um só instante, desde várias horas – ao que me disseram
– falando e dizendo coisas estranhas, num murmúrio contínuo
que só podia -ser decifrado com grande dificuldade. Qual seria o teor
desses murmúrios eu pude avaliar pelo que se seguiu. Porque, assim
que cheguei à roda, ela de repente começou a cantar, com uma
voz que parecia sair do bronze e da pedra do seu corpo e de seu sangue. Cantou
uma daquelas cantigas velhas e sepultadas, que somente ela e Tia Filipa ainda
conheciam, na Vila. A música, a solfa dessa cantiga, nunca mais me
saiu da cabeça, Senhor Corregedor, porque, assim que ela começou
a cantar, eu me lembrei de que Tia Filipa também cantava aquilo às
vezes, me botando pra dormir. Era assim: “Nosso Prinspo se perdeu nas
terras do Malpassar. Deitam sortes à Ventura quem o havia de buscar.
O Cavaleiro escolhido não se cansa de chorar: vai andando, vai andando,
sem nunca desanimar, até que encontrou um Mouro num Areal, a velar.
– Por Deus te peço, bom Mouro, me digas, sem me enganar, Cavaleiro
de armas brancas se o viste aqui passar. – Desse Cavaleiro, amigo, dite-me,
lá, os sinais. – Brancas eram suas Armas, seu cavalo é `Tremedal’.
Na ponta de sua Lança levava um branco Senda! que lhe bordou sua Noiva,
bordado a ponto real. – Esse Cavaleiro, amigo, morto está, neste Praga!,
com as pernas dentro d’água e o corpo no Areal. Sete feridas no peito,
cada uma mais mortal: por uma, lhe entra o Sol, por outra, entra o Luar, pela
mais pequena delas um Gavião a voar! Mas é mentira do Mouro,
seu desejo é me enganar: o nosso Prinspo encantou-se nas terras do
Malpassar e, um dia, no seu Cavalo, ao Sertão há de voltar!”
– Quando a Velha do Badalo terminou de cantar esse romance, meio-cavalariano,
meio-profético – inclusive porque já trazia uma referência
ao nome do cavalo de Sinésio – um homem que estava no meio do Povo
me avistou e gritou de lá: “`Seu Quaderna, é verdade que
esse rapaz do cavalo branco veio para começar a Guerra do Reino? Ele
é, mesmo, o nosso Prinspo Dom Sinésio Sebastião, o alumioso
que apareceu de novo pra fazer a felicidade de nós?’ “Não
sei!’, respondi com a voz soturna que a cegueira agora me emprestava. `Como
é que eu posso saber isso, se estou cego? De tarde, eu estava bonzinho
dos meus olhos, ali perto da estrada de Campina, sentado em cima de uma pedra.
Estava bonzinho, com os olhos perfeitos que Deus me deu e que eu sempre tive!
De repente, passou pela estrada a tropa de Cavaleiros e carretas que vinha
com o rapaz do cavalo branco: na mesma hora, dois Gaviões desceram
do Sol e me cegaram! Estou ceguinho, cego de guia!’ “`Valha-me Deus!
Ave Maria! Nossa Senhora!’, gritou a mesma voz que tinha falado antes. `Já
vi que o rapaz do cavalo branco é nosso Prinspo, mesmo! Vocês
estão vendo o que eu dizia? É verdade ou não é?
Cadê aquele cego que estava aqui, ainda agora?’ “Que cego? Pedro-Cego?’,
indagaram algumas vozes.
“Não, o outro que chegou depois e ficou por aqui, com a gente!’
” ‘Estão dizendo, por aí, que ele foi curado da cegueira,
por milagre!’, explicou outra voz. `Depois que atiraram no rapaz do cavalo
branco, dizem que o cego chegou pra perto do nosso Prinspo, tocou na roupa
dele e ficou bom da vista!’ “Pois ele ficou bom na mesma hora em que
eu ceguei!’, disse eu, assombrado.
“Meu Jesus Cristo! Minha Nossa Senhora!’, gritou, de novo, a mesma
voz que falara primeiro. `Acho que foi por isso que o cego daqui ficou curado!
Na certa, tem sempre a mesma conta de cegos, no mundo: como o daqui foi curado
por ter tocado na roupa do Prinspo, Seu Quaderna ficou cego no lugar dele!’
“Ai, meu Deus!’, gritou uma mulher ainda jovem, sobrinha da Velha do
Badalo e tão doida quanto ela, caindo redondamente no chão,
torcendo-se e escumando pela boca como se tivesse sido mordida de cachorro
da molesta.
“Meu Jesus! Minha Nossa Senhora!’, começou a gritar a multidão,
tocada pela faísca, pelo raio de corisco e pedra-lispe que sempre lhe
dá nesses momentos.
“Acresce, Senhor Corregedor, que, como acabo de lhe dizer, por entre
aquela sertanejada toda, reunida, tinham aparecido tocadores de viola, de
rabeca, de pífanos e tambores, todos vindos para a Cavalhada e agora
ajuntados ali como se tivesse havido uma combinação entre meus
irmãos e eles. Logo quando foi da nossa chegada, segundo nos disse
Samuel, algumas pessoas, junto dele, tinham começado `a tocar e cantar
uns hinos bárbaros, umas músicas arrepiadoras, algumas sem letra,
outras cujas palavras enigmáticas disparatadas parece que viviam no
sangue daquela doida gente sertaneja’. Uma dessas músicas eu a conhecia
bem, era O Piado do Cachorro, uma música que se tocava em rabecas e
pífanos, com tambores acompanhando. De repente, Lino PedraVerde, enervado
pela erva-moura e pelo vinho-sagrado da Pedra do Reino, gritou para o Povo:
“`Minha gente, vamos cantar o nosso sagrado Hino da Santa Pedra do Reino!’,
e ele mesmo, por conta própria, começou a entoar a música,
com a voz fanhosa, insistente e áspera dos Cantadores. Além
de meus irmãos, havia, na Praça, vários músicos
que eram da nossa Ordem dos Cavaleiros da Pedra do Reino. Esses, conheciam
perfeitamente o bino e logo começaram a acompanhar o canto de Lino
Pedra-Verde com seus instrumentos.” – Um pormenor, Dom Pedro Dinis Quaderna!
– interrompeu, de novo, o Corregedor. – O senhor também cantou? – Não
senhor! Sempre me abstive, prudentemente, de fazer essas coisas em público!
– Por quê? – Em primeiro lugar, por acanhamento, e depois para não
ser mal interpretado pelas autoridades constituídas! Porque, repito
mais uma vez a Vossa Excelencia, minha política monárquica da
Pedra do Reino sempre foi inteiramente pacífica e inocente! Mas como
eu ia dizendo: então os inumeráveis Cavaleiros da Pedra do Reino
que estavam por ali, maltrapilhos mas fidalgos, disseminados entre a multidão
da qual faziam parte, todos eles começaram a cantar, repetindo várias
vezes as duas estrofes do nosso Hino, de modo que, daí a pouco, todo
o Povo, impressionado e magnetizado, cantava também! – Anote a senhora
aí, Dona Margarida, que o nosso Dom Pedro Dinis Quaderna confessa que,
naquele ano de 1935, os seus adeptos já eram inumeráveis, e
que, no dia da chegada do rapaz do cavalo branco, todo o Povo cantava o tal
Hino da Pedra do Reino! Margarida anotou mais aquele fato terrivelmente comprometedor
que eu deixara escapar, nobres Senhores e belas Damas. Quando ela terminou
de anotar, o Corregedor voltou-se de novo para mim, dizendo: – Agora, repita
hem devagar, para que Dona Margarida também anote, as palavras textuais
do_ Hino da Pedra do Reino! – É fácil, Senhor Corregedor – disse
eu. – É fácil, porque ainda agora, aqui neste momento, já
passados três anos, parece que eu estou vendo a cara que Lino Pedra-Verde
fazia naquela noite, enquanto cantava! – Vendo? – espantou-se o Corregedor.
– E o senhor não estava cego? Aliás, quero lhe dizer que notei
várias contradições a esse respeito em suas palavras,
e só deixei passar todas elas porque queria que ficasse tudo registrado
e documentado no inquérito! O senhor, além de ter visto várias
coisas no quarto de Adalberto Coura, avistou as esculturas e quadros de seus
irmãos o o grupo de mendigos na calçada, reunido em torno da
Velha do Badalo! – Sim, é verdade, não deixa de ser verdade!
– disse eu, balbuciando. – Mas Vossa Excelência não se esqueça
de que minha cegueira logo iria se revelar como uma cegueira toda especial,
criada pela Providência exclusivamente para favorecer o Gênio
da Raça Brasileira em seu cotejo com Homero! Depois, estou apenas usando
uma imagem, como outra que Samuel usa freqüentemente: assim como ele
diz muitas vezes que foi assassinado moralmente pela calúnia, eu estava
vendo tudo naquele momento era com os olhos da alma! Mas continuo: Lino Pedra-Verde,
com o ar mordido que o vinho sagrado tinha dado a ele, cantou, impressionando
terrivelmente a multidão: “A Onça, por ser esperta, já
começa o seu caminho. Fez da sua Furna o ninho o esturra que está
alerta! Será a Cadeia aberta! Quanto ao Porco, é muito certo:
fugirá para o Deserto, o a Onça, com seu bramido, libertará
O Ferido, o nosso Prinspo-Encoberto! – Como lhe disse, Senhor Corregedor,
depois da quarta ou quinta vez que Lino e os outros Cavaleiros da Pedra do
Reino cantaram isso, a multidão, como se um sopro de insânia
sagrada tivesse passado por ali, começou a repetir as estrofes, dizendo
as palavras trocadas, estropiadas e do jeito que Deus era servido. Era uma
coisa tão impressionante que eu mesmo comecei a ficar arrepiado. Mas
Samuel e Clemente, aqueles homens incréus e ímpios, mesmo com
as novas disposições em que se encontravam por causa da Ordem
do Templo de São Sebastião, permaneciam frios. Samuel, aproveitando
um momento em que Lino, cansado, parara de cantar um pouco, interrogou-o:
* ‘Lino, que disparates mais descabelados são esses? É terra
do Malpassar, é onça, é porco, e prinspo, é espora!
Que diabo de confusão é tudo isso?’ “E o senhor não
sabe o que são essas coisas não?’, perguntou Lino, espantado
de que ainda houvesse, no mundo, gente capaz de ignorar fatos tão importantes
e claros. `Tá, Doutor Samuel, eu me admiro é que o senhor, um
homem tão filantrópico e litúrgico, como diz o nosso
Mestre, João Melchfades, um homem formado, que vive tão perto
do nosso Dom Pedro Dinis Quaderna, ainda não tenha entendido a história
toda, acontecida desde o começo, com o nosso Prinspo do cavalo branco!
Quaderna é homem monárquico, profético e astrológico,
e pode muito bem explicar ao senhor que o nosso Donzelo da pedra sagrada é
o mesmo Prinspo da Bandeira do Divino e da Pedra do Reino do Sertão.
Eu mesmo ouvi Vossas Senhorias falando sobre isso, A Onça vai esturrando
atrás do Porco-Selvagem: matá-lo-á na passagem, com nosso
Prinspo ajudando! o Rei vai ressuscitando no Prinspo, sua Criança.
o a Espora da remonstrança, Pedra do Reino e da Prata, no sangue
desta Escarlata, no sertão desta Vingança!” inda agora,
e é por isso que me admiro que o senhor agora esteja estranhando tanta
coisa! Nosso Prinspo apareceu na Serra do Rodeador, no tempo do ronca, no
tempo de Dom João Pamparra o de Dom Pedro Cipó-Pau. Estava escondido
na Casa da Pedra de onde a Santa falava, no soterranho! O nome do nosso Prinspo
varia, ora é Dom Sebastião, ora é São Sebastião,
conforme a necessidade! Ali, na Serra do Rodeador, mataram o nosso Prinspo
o mataram também o Profeta dele, Silvestre José dos Santos,
o homem dos santos, também chamado dè Mestre Quiou, o Enviado.
Era o Profeta montado em seii alazão, e o Prinspo no cavalo branco!
Mas o Prinspo ressuscitou, e apareceu de novo, na Pedra do Reino do Pajeú,
sustentado pelos quatro Reis, os bisavós, aqui, do nosso Rei e Profeta
atual, Dom Pedro Dinis Quaderna. Tem gente que fala em três Reis, mas
eu sei, de fonte segura, que eram quatro: Dom João I, chamado também
Dom João Antônio; Dom Pedro I, ou Dom Pedro Antônio; Dom
João II, ou Dom João Ferreira-Quaderna, casado com a Princesa
Isabel; o Dom Sebastião Barbosa, que era o mesmo Rei Dom Sebastião,
escondido e encoberto na pedra, como sempre!’ “O qué, Lino?’,
interrompi eu, pois esse quarto Rei era novidade até para mim mesmo.
`E havia um quarto Rei, chamado Dom Sebastião Barbosa, na Pedra do
Reino?’ “Havia, sim! É coisa segura, porque este ainda chegou
a ser conhecido pelo Major Optato Gueiros, da Polícia de Pernambuco!
Que valha a palavra dele, já que eu sou um ignaro e, comparado com
Vossas Senhorias, não passo de um batráquio contemplando as
três estrelas do Escorpião! Mas o certo é que, ignaro
ou não ignaro, tenho também alguns estudos filantrópicos
que fiz com João Melchíades e aqui com meu companheiro na Arte
da Poesia, Dom Pedro Dinis Quaderna, o Decifrador! Eu li o Lunário
Perpétuo e o Chernovix, assim como o Taro Adivinhaticio, de modo que
conheço certas coisas bastante misteriosas o capacitárias, coisas
que dão pr’o gasto! Por exemplo: eu sei, de fonte segura, que na Pedra
do Reino mataram de novo o nosso Prinspo, que estava no sacrário, trancado,
escondido e encoberto pelo encantamento! O folheto que o nosso Quaderna, aqui,
publicou sobre o assunto explica tudo: dessa vez, foram os Pereiras, a família
de Sinhô Pereira! Não sei se Vossas Senhorias conheceram Sinhô
Pereira, mas eu e Quaderna chegamos a conhecer: era um homem de família
ilustre, um homem forte, valente como uma Onça e brabo que só
uma Caninana! O nome dele era nome sagrado, porque Dom Sebastião. Pereira
era como ele se chamava! Foi por isso que, na força do nome dele, os
Pereiras conseguiram vencer os quatro Imperadores da Pedra do Reino! E sabem
quem era o pai de Sinhô Pereira? Era oBarão do Pajeú!
O Barão tinha filhos legítimos, como Sinhô, e a um filho-da-puta,
filho dele e de uma Cigana, o tal do Cigano Pereira! Esse pessoal todo, junto,
deu um fogo na Pedra xr do Reino! Atiraram no sacrilégio das Torres
encantadas, e, para vencer o sangue, cobriram a terra de sãngue – sangue
que ficou iii, vermelho, ensopando a poeira e queimado pelo Sol! Aí,
o nosso Prinspo morreu de novo. Mas ressuscitou outra vez, agora no Império
do Belo-Monte de Canudos, em 1897, já no tempo do reinado do nosso
Dom Pedro III, mais conhecido como Pedro ustino Quaderna, pai aqui do nosso
Dom Pedro IV! É por isso que, no Belo-Monte de Canudos, o nosso santo
Conselheiro dizia: “Quem não sabe que o digno Príncipe,
o Senhor Dom Pedro III, tem poder legitimamente constituído por Deus
para governar o Brasil?” O pessoal pensava que ele estava falando era
do filho de Dom Pedro II, mas como podia ser . isso, se Dom Pedro II não
tinha filho? 1 claro: o Conselheiro estava falando era do nosso Dom Pedro
Justin Quaderna, porque no Reino é sempre assim que as coisas se passam:
é um Rei castanho, no seu alazão, servindo de Profeta e sustança
para o Prinspo do Cavalo Branco! E o fato é que ali em Canudos foi
aquela guerra desadorada, aquela Tróia, tudo quanto foi de Polícia
e Exército de todas as Turquias do mundo, lutando contra o sagrado
Império do BeloMonte! Para despistar, eles diziam que a raiva deles
era contra o pessoal guerreiro que apareceu brigando na Guerra. Mas era mentira!
A luta daqueles turcos do Diabo não era nem contra o Conselheiro, nem
contra Pajeú, nem contra Pedrão, nem contra o Major Sariema,
nem contra nenhum daqueles Chefes guerreiros de Canudos! Toda aquela guerra,
foi porque o Governo de turcos tem medo e raiva do nosso Prinspo, do Príncipe
do Povo! Sim, porque ele estava lá, como sempre, trancado no Sacrário.
O pessoal de fora, cego, só via Aquele que aparecia, o Descoberto,
o nosso Santo Peregrino Antônio Conselheiro. Mas está aí
o nosso Quaderna, que é bisneto dos Imperadores da Pedra do Reino e
que sabe disso muito melhor do que eu. O que o Conselheiro fazia era somente
cumprir as ordens do Prinspo, que vivia escondido o encoberto, dentro do Santuário,
por trás de um véu bordado com o Sol, a Lua e as estrelas! Aí,
pressentindo o perigo, mandaram para lá um Herodes, o Corta-Cabeças
que tinha sido Imperador de Roma, o Coronel Moreira César, o mesmo
César que tinha mandado as onças comerem os Cristãos
no circo de Roma e que lá, na Roma deles, tinha também mandado
matar São Sebastião. E aí é que se vê, mesmo,
o motivo do medo deles: é que São Sebastião é
o mesmo São Jorge montado no cavalo branco e matando o Dragão,
e e o mesmo Dom Sebastião, que liberta a Onça castanha o manda
ela matar o Porco branco que vem do estrangeiro! E é o mesmo Dom Pedro
Sebastião, pai de Dom Sinésio Sebastião e que foi degolado!
Todos esses são uma pessoa só, a Onça da Ressurreição!
É por isso que, na Pedra do Reino, o nosso Rei Dom João Ferreira-Quaderna
ensinava que, além dos meninos e das mulheres, era preciso degolar
os cachorros, que terminariam ressuscitados sob o comando da Onça,
para acabar com os que maltratam o Povo! Então o Governo adivinhou
que o nosso Prinspo estava vivo de novo, e mandaram o Coronel César,
Imperador de Roma, para acabar a Guerra do Reino que o Povo sertanejo ia ganhar
de vez, revirando essa merda toda numa tribuzana macha! O certo é que,
ganha aqui, fode-se ali, terminaram matando de novo o nosso Prinspo! Mas aí
chegava o nosso tempo e a vez desse Cariri velho do inferno das pedras! E
apareceu o nosso velho Rei, Dom Pedro Sebastião, e lá ele mandava
chamar para morar com ele o nosso Dom Pedro III! E lá Dom Pedro Justino
se casava com Dona Maria Sulpfcia, e lá nascia o nosso Dinis, o nosso
Dom Pedro IV! E era tudo esperando o nascimento do Prinspo, porque, como Dom
Pedro III tinha explicado no Almanaque do Cariri, Dom Pedro Sebastião
Garcia-Barretto era o mesmo Dom Sebastião da Pedra do Reino, era o
mesmo que matou o Porco para libertar a Onça, na Africa! Primeiro,
nasceu o primeiro Prinspo, Arésio, que era contra o Povo. Era preciso,
então, que o velho Rei emprenhasse outras mulheres, pra ver se nascia
o Desejado! Ele emprenhou Maria Todo-Mundo, e lá nasceu, ressuscitado,
o nosso Silvestre, ou melhor, Mestre Quiou, o Enviado, Profeta da Serrado
Rodeador. Aí, Dom Pedro Sebastião casou com Joana, filha de
Dom Pedro III, porque era preciso que o Prinspo tivesse o sangue do pessoal
Quaderna, da Pedra do Reino! Tudo isso foi sendo explicado aos poucos, no
Almanaque! E aí, em 1910, nascia o nosso Prinspo, vindo do Sol, montado
num cavalo de . asas e trazido pelo cometa! Era, afinal, o nosso Dom Sinésio
Sebastião, o filho de São Sebastião – santo do cavalo
branco. E lá começou, de novo, a tribuzana da Guerra do Reino!
Primeiro, foi em 1912, com a Guerra de Doze, com o nosso Rei Dom Pedro Sebastião
montado no cavalo alazão dele, com o Negro Vicente, com Seu Hino, Germano,
Severino, Miezinha e aquela cangaceirada toda! E veio a Guerra do Santo Pad
e do Juazeiro em 1913, e a Guerra da Coluna, em 1926, com Luís Carlos
Prestes e a Guarda dos Doze que tinha ficado da outra guerra! E aí,
em 1930, veio a Guerra de Trinta, a Guerra de Princesa, com o Governo já
de novo pressentindo o perigo. Sabiam que o Povo ia terminar ganhando a briga,
atrás do cavalo alazão do Rei e do cavalo branco do Prinspo!
Aí, para que isso não acontecesse, mataram o nosso Rei Dom Pedro
Sebastião, que foi degolado pelo Corta-Cabeças da Roma de Canudos,
aquele desaçado! No mesmo dia, roubaram o filho dele, o rapaz santo
e tem mancha, o Prinspo do Povo. Enterraram o coitado com uma Xorrente amarrada
no pé, lá longe, perto da Turquia, já perto da beira
do Mundo e pra lá do inferno das quengas três dias de viagem!
Aí, no buraco debaixo da terra, deixaram o Prinspo morrer de fome,
pra ver se, assim, ele ficava sepultado de uma vez e nunca mais ressuscitava!
E ele morreu mesmo, coitado, de fome e desespero, sem Pai, sem Mãe
e sem ninguém para punir por ele, sofrendo tudo quanto foi de maltrato
e judiaria sem dizer malcriação nenhuma contra aqueles homens
ruins! Mas não adiantou nada, essa maldade: porque, assim que se passou
o prazo de um ano e um dia, o nosso Prinspo ressuscitou e reapareceu, tendo
achado numa estrada por Frei Simão. Vinha vestido de uma túnica
branca, com uma corda prendendo a cintura e com duas flores na mão,
uma de Pau-D’arco amarelo e outra de Coralina encarnada – o Ouro e o Sangue!
Estava esquecido de tudo, pelos sofrimentos que tinha passado, mas Frei Simão
e o Doutor Pedro ensinaram tudo de novo a ele! Ele montou no cavalo branco
e voltou para o Cariri, para fazer a felicidade do Povo sertanejo! Como foi
que ele apareceu, saindo de novo de debaixo da terra? Ninguém sabe!
O que se sabe é que ele apareceu e entrou hoje aqui, porque Dom Sinésio,
o Alumioso, Prinspo da Bandeira do Divino, é o filho de São
Sebastião, Rei do Brasil e da Pedra do Reino do Sertão!’ “Quando
Lino Pedra-Verde terminou essa magistral explicação, Senhor
Corregedor, estava com os olhos cheios de lágrimas, um pouco pela emoção
e um pouco por embriaguez. Julguei que aqueles dois homens empedernidos iriam
se abalar e finalmente, abandonando a vida ímpia que tinham levado
até então, se converter à nossa santa Fé católico-sertaneja!
Mas qual! Continuaram na mesma obstinação, na mesma quizila
de sempre, duvidando de tudo o que é sagrado, e, o que é pior
ainda, tentando explicar a chegada de Sinésio e dos Cavaleiros que
o acompanhavam como um episódio dos movimentos subversivos de cada
um dos dois. Samuel veio logo com as implicâncias direitistas dele contra
o Sertão. Disse: “`Olhe, Lino, tudo isso que você está
dizendo é uma confusão terrível, que só podia
partir, mesmo, da cabeça de um Cantador sertanejo instruído
por Quaderna, como você! Não nego que, de certa forma, até
simpatizo, em bloco, com o que você diz, mas é preciso esclarecer
tudo bem direitinho, senão o resultado é péssimo! Confundir,
por exemplo, um Rei cruzado, católico e cavaleiresco, um Rei fatídico
como foi Dom Sebastião, com essas barbaridades sertanejas da Pedra
do Reino e de Canudos,Mé coisa que devia ser proibida na Constituição!
O Sebastianismo, Lino, foi a coroa e a rosa da Raça Latina! Foi fruto
do sangue português e superior a tudo o que a própria Espanha
pôde conceber nessa linha, porque Dom Sebastião foi uma pessoa
que existiu mesmo e se transcendeu em Mito; enquanto que na Espanha, o máximo
que se conseguiu, no mesmo estilo, foi uma criação meramente
literária. E espúria, ainda por cima, porque foi saída
não do sonho da Cavalaria, mas do escárnio, do “carnaval
fantástico da Cavalaria”, como disse Tobias Barretto num de seus
poucos acessos de inteligência! E outra coisa, Lino: não confunda
São Sebastião, o santo que foi morto em Roma, com Dom Sebastião,
o Rei de Portugal que morreu na Africa, na Batalha de AlcácerQuibir!
São Sebastião foi um, Dom Sebastião foi outro!’ “Não
sei, Doutor, não sei!’, disse Lino, com ar duvidoso o cético,
coçando a cabeça ante a necessidade em que se via de discordar
de uma pessoa formada como Samuel. ‘Mas, como o senhor é pessoa ilustre,
até que pode ser que tenha razão! Mas uma coisa eu lhe digo,
Doutor Samuel: ande com cuidado, porque todos esses assuntos são muito
misteriosos. Não pense que o senhor, por ser formado, resolve todos
eles assim, com uma penada só, não! A gente fala assim de oitiva
dessas coisas, mas o fato é que o Prinspo Alumioso e a Guerra do Reino
do Sertão são coisas sérias demais, Doutor! O senhor
falou, aí, em São Sebastião, não foi? Pois me
diga uma coisa: o que é que o senhor sabe sobre a morte dele? Não
quero saber coisa ouvida de oitiva não, quero é coisa garantida,
coisa litúrgica e séria, aprendida nos livros! Como foi que
São Sebastião morreu?’ “Olhe, Lino’, disse Samuel, hesitante,
‘é muito difícil dizer somente coisas sérias, aprendidas
nos livros, sobre um assunto como esse! Para mim, porém, para mim que
acredito no Sonho e na Legenda, para mim, derradeiro Fidalgo desta pátria
prosaica, a Legenda e o Real são uma coisa só! Assim, posso
lhe dizer que foi o Imperador quem mandou flechar São Sebastião.’
“O Imperador?’, disse Lino, aboticando os olhos. ‘Oi, foi o Imperador?
Que Imperador? César?’ “Bem, tanto faz dizer César como
dizer o Imperador.’ “Ah, tanto faz, e? E então por que é
que o senhor vem com conversa fiada pra meu lado, dizendo que tudo o que eu
disse está errado? Esse Imperador não morava em Roma? O nome
dele não era Moreira César? Ele não era Coronel do Exército?
Não era amigo do Marechal Floriano Peixoto? Não foi ele quem
jurou que ia cortar a cabeça do Prinspo do Cavalo Branco, em Canudos?’
“Lino, tenha paciência, mas Canudos foi outra coisa! A morte de
São Sebastião, ordenada pelo Imperador, foi em Roma o aconteceu
há muito tempo!’ “Doutor Samuel, tenha paciência também,
mas por isso não! Por isso não, porque a Tróia do Conselheiro
também aconteceu há muito tempo, e tanto faz Roma como Canudos,
tudo aquilo foi uma Tróia só, está aí Dom Pedro
Dinis Quaderna que o diga! Está lá tudo isso, escrito no folheto
de Jota Sara! E tem mais: o senhor não disse, aí, que flecharan
São Sebastião?’ “Flecharam, sim, mas dizem que ele não
chegou a morrer com essas flechadas! Foi deixado no mato, como morto, mas
sobreviveu e foi encontrado por umas santas mulheres, que o levaram para Byblus
e ungiram o corpo dele, estancando o sangue das feridas, de modo que ele sobreviveu
e escapou!’ “Está vendo?’, disse Lino, vitorioso: ‘E o senhor
ainda vem duvidar! Queriam matar São Sebastião, mas ele escapou
e ressuscitou. E não sou eu quem diz isso não, é o senhor
mesmo, pessoa formada e ilustre! Então, está provado: o Coronel
Moreira César, Imperador de Roma, do Marechal Floriano Peixoto e do
General Deodoro da Fonseca, quis matar São Sebastião, mas ele
escapou, o tudo isso se passou foi em Canudos, aquela Tróia! O senhor
disse, aí, que ele foi deixado como morto mas que, de fato, estava
vivo. Está certo, eu até compreendo que o senhor faça
assim: o senhor é homem formado e fica com vergonha de acreditar em
certas coisas. Mas eu, que sou homem ignaro, tenho direito de não ter
vergonha de acreditar na verdade. Por isso lhe digo: quando essas mulheres
encontraram São Sebastião ele estava era morto mesmo – morto,
ungido e consagrado! Agora, o que acontece é que o Prinspo do Cavalo
Branco é um despropósito, para ressuscitar: o Governo facilitou,
ele ressuscita! E me diga outra coisa, Doutor Samuel: depois que São
Sebastião morreu das flechadas e ressuscitou, ficou vivo de vez ou
morreu de novo?’ “‘Olhe, Lino, o que vou lhe dizer é o que li
no Missal: o Imperador mandou prendé-lo de novo, em Byblus. Arrancaram-no
da mão das santas mulheres e o mataram a cacetadas. As mulheres, em
pranto, colocaram-no num catafalco de ébano e ouro, e assim ele foi
enterrado!’ “Não sei, Doutor Samuel, não sei!’, disse Lino
com o mesmo ar duvidoso. ‘Mas se o senhor garante que leu isso no Missal,
deve ser verdade! Esse tal de Seu Missal deve ser pessoa sagrada o litúrgica.
Mas eu confesso ao senhor que as notícias que tenho são muito
outras, e foram dadas por pessoas tão filantrópicas quanto o
senhor e Seu Missal! O senhor tem certeza de que o caixão onde enterraram
o santo era de ouro? Ouvi falar que era de pedra e que é por isso que
São Sebastião foi sepultado nas duas torres de pedra da Catedral
da Pedra do Reino, no Sertão do Pajeú! Mas me conte, aí,
mais cinco tostões dessa história! Me diga uma coisa: antes
dessa morte por flechadas, não houve, com São Sebastião,
umas tribuzanas brabas, uns barulhos danados de guerra na Africa? Não
foi uma batalha contra os turcos? E São Sebastião não
estava na batalha, montado no cavalo branco de São Jorge?’ “Lino,
pelo amor de Deus, entenda!’, disse Samuel, já impaciente. `Aí,
agora, nessa batalha, já era, mesmo, Dom Sebastião, Rei de Portugal!
É aquele Rei que queria transferir a sede da monarquia portuguesa para
o Brasil!’
“‘Então é ele mesmo, eu estava certo, Doutor! Está
vendo, Dinis? Está vendo, Professor Clemente? Foi ele em Canudos e
foi ele na Pedra do Reino, porque aquilo ali, na Pedra do Reino, foi um despropósito,
uma monarquia da gota-serena, com guerras, coroas, confusões e tudo!
Além disso, no Sertão é que está enterrada a Monarquia
do Brasil! É por isso que eu estava dizendo: tudo isso é uma
coisa só, e a Monarquia de Dom Sebastião, do Brasil, do Sertão,
de Portugal, da Africa e do Império da Pedra do Reino! Me diga uma
coisa, Doutor Samuel: eu não ouvi o senhor dizer, uma vez, que Dom
Sebastião lutou, e pelejou pra vencer, com a mouraria dos Ciganos,
na Africa?’ “Ouviu sim, Lino!’ ” E ele não estava montado
num cavalo branco?’ “‘Estava, porque cederam um cavalo dessa cor a ele.’
“`Oi, cederam? Quem cedeu? Quem era o dono do cavalo?’ “‘Era Jorge
de Albuquerque Coelho, fidalgo dos engenhos, Senhor e Conde de Pernambuco!’
“`Está vendo, Doutor Samuel? É o senhor mesmo quem confessa
que o dono do cavalo branco se chamava Jorge e morava num Engenho, ali para
os lados do Pajeó, no Sertão de Pernambuco! O que eu me admiro
é que o senhor, sabendo todas essas coisas, ainda se meta a duvidar!
Ave Maria, só mesmo quem quer ir para o Inferno! É claro, Doutor,
que quem deu o cavalo branco ao Rei era o mesmo São Jorge que apareceu
no Pajeú! É o São Sebastião que apareceu na Pedra
do Reino, que é o mesmo Dom Sebastião que apareceu naquela Tróia,
naquela Africa que foi o Império de Canudos!’ “‘Bem, por isso
não, porque há quem diga que esse problemático cavalo
branco de Dom Sebastião pertencia, não a Jorge de Albuquerque
Coelho, e sim a Dom Antônio, Prior do Crato!’, disse Clemente.
“`O quê, Doutor Clemente?’, gritou Lino, dando um salto. `O senhor
disse Dom António, foi? E disse que ele era do Crato, foi? Do Crato,
ali no Sertão do Ceará, perto do Juazeiro do Padre Cícero?
Está vendo, Doutor Samuel? Um dos Reis da Pedra do Reino chamava-se
João Antonio, e terminou indo para o Crato, no Sertão do Ceará.
E se esse tal Dom Antônio que deu o cavalo a Dom Sebastião era
Prior do Crato, vá ver que lera ele quem estava na Batalha da Africa
– o nosso Rei da Pedra do Reino, João Antonio, Prior do Crato! E é
isso mesmo, porque todos esses são uma pessoa só – Dom Sebastião
Barbosa, São Sebastião, Dom Antônio Galarraz, Dom João
Quaderna, Dom Antonio Conselheiro, Dom Pedro I -, todo esse pessoal santo
e guerreiro, as sete pessoas da Santíssima Trindade! Ali, na Africa,
o pau cantou, eram os Mouros contra os Cristãos, e o cavalo branco,
e as lanças da Cavalhada, e o Cordão Azul e o Encarnado… A
briga foi feia, e não admira que o Prinspo mude de nome, aqui e ali,
para despistar a Polícia! Cada vez que ele aparece, adota um nome diferente,
de acordo com as necessidades e perigos da Guerra do Reino! É Dom Sebastião,
é Dom Pedro, é Dom Pedro Sebastião, é Dom Antônio
Conselheiro, é Dom Pedro Antonio, é Antonio Mariz, é
Antonio Peri, é Peri-val, é Persival, é Antonio Gala-Foice,
é Antônio Galarraz, é Sinésio Sebastião,
filho de Dom Pedro Sebastião, e por aí vai! Quem foi que acabou
com o nosso Rei Silvestre Quiou, no Rodeador, Professor Clemente?’ “`Foi
o Governador Luís do Rego, que enviou uma Divisão do exército
régio, comandada pelo Marechal Luís Antônio Moscoso e
que tinha como Ajudante principal o Major Madureira.’ “‘Ouvi falar, ouvi
falar! Sei, de fonte segura, que esses homens malvados que acabaram com o
Reino da Pedra do Rodeador foram os mesmos que botaram Dom Pedro II pra fora,
foram o Marechal Floriano Moscoso e o General Deodoro Madureira! Mas o fato
é que o nosso Silvestre foi passado a fio de espada, mas terminou ressuscitando,
em Goiana, e aparecendo depois, de novo, na Pedra do Reino, com o nome de
Dom Sebastião Barbosa!’ “‘Meu Jesus, que misturada mais danada!’,
disse Samuel, com um suspiro. `É pior do que as do Mestre dele, Quaderna!
Que Dom Sebastião Barbosa que nada, Lino! Que vocé fale em Dom
Sebastião como presente na Pedra do Reino, ainda vá! Mas que
use, para ele, um sobrenome qualquer aí, como se ele fosse um almocreve
sertanejo, isso é que me dói, porque é um disparate completo!’
“Que disparate que nada, Doutor Samuel! O senhor veja que o Major Optato
Cueiros é homem ilustre, Major da Polícia e’ protestante, homem
sério, incapaz de mentir! Lutou contra Lampião, brigou no Ceará,
perto do Crato do Prior do Crato, de modos que, de maneiras tais, que está
muito escolado nessas Tróias todas! Pois o Major jura, pela Hóstia
e pelo cálice, que o nome do Prinspo encoberto da Pedra do Reino era
Dom Sebastião Barbosa! É claro que estou falando do Rei Coberto
no sacrário das pedras, porque os Reis que apareciam eram os bisavós,
aqui, do nosso Dom Pedro Dinis Quaderna! E o senhor não se espante
não, porque é mesmo assim que essas coisas são. É
como eu dizia num verso que escrevi: “Com o C também soletro:
Canudos, Cebastião, Cinésio, Çofrive, Certo, Cilvestre,
Cristo e Certão.
Morrem uns a bem dos outros: e é assim que as coisas são!”
“E por isso’, continuou Lino, `que eu digo que tudo isso é uma
coisa só: porque, quando o nosso Santo Antônio Conselheiro de
Canudos disse que a monarquia da Revolução e da Guerra do Reino
ia se dar era no Sertão, é porque já sabia que Dom Sinésio
Sebastião, o Alumioso, filho de Dom Sebastião, o Degolado, ia
ser Prinspo da Guerra, aqui no Cariri! O Conselheiro, Doutor, esse éra
homem sagrado e foi por isso que teve força para levar à frente
a tribuzana macha de Canudos!’ “O que não impediu que acabassem
com ele e com sua guerra do Sertão, Lino!’, disse Clemente, com ar
pensativo.
“Não sei, Professor Clemente, não sei!’, repetiu Lino,
como sempre. `O senhor é quem está dizendo, mas será
que o Governo acabou, mesmo, aquela guerra? Ali em Canudos foi uma tróia,
um despropósito! O senhor conhece os versos que meu colega Jota Sara
fez com a história de Canudos?’ “Não, Lino!’ “`São
versos muito importantes! Quaderna tem o folheto, que eu decorei para cantar
na feira. Começa assim:
“O Leitor já viu contar a história do Conselheiro? Foi
um simples Penitente que assombrou o mundo inteiro: modesto, honesto e valente,
que fascinou muita gente neste Sertão brasileiro!
Sua Arma era uma verga na espécie de bastão. Era o tipo de
Moisés pregando pelo Sertão: imitava-o no Sinai’ o o Povo o
tinha por Pai o autor da Redenção! A Nação gastou
dinheiro o cinco mil Oficiais! Nos pelados de Canudos estão seus restos
mortais! Os ossos petrificados: veio gente dos Estados que não voltou
nunca mais!
Reuniu-se aquela gente pr’o dia da Redenção, esperando o Salvador
o o Rei Dom Sebastião! Gente fazia fileira: foi a Tróia Brasileira
nos carrascais do Sertão!” “`Está ouvindo, Samuel?’,
gritou .logo Clemente, com ar triunfante. `Está ouvindo você
também, Quaderna? Estão vendo a simpatia com que o Cantador
fala do Povo,. opondo-o aos Oficiais do Exército? E vocês dois
insistindo, um nessa porcaria da Direita, o outro nessa bosta confusa de Monarquia
da Esquerda!’ “`Eu nunca duvidei de que esses Cantadores e Cangaceiros
sertanejos fossem da Esquerda!’, retrucou Samuel. `Como podia ser de outra
forma, se são da Plebe e brotados dessa sociedade bárbara de
Almocreves que é a de vocês? O que eu sempre disse foi que, no
dia em que o Povo brasileiro vier a conhecer seus verdadeiros Senhores, deixará
essas barbaridades e fanatismos e entrará pelo caminho católico,
cruzado, flamengo-ibérico e fidalgo do Brasil! De modo que você,
Clemente, dirija suas críticas aí para o outro lado, porque
quem adota essas misturadas de Povo sertanejo, Tróia, Canudos, soldados
e monarquias da Pedra do Reino é Quaderna!’
“`Pois então Quaderna deve estar muito desgostoso, ouvindo agora,
por intermédio, aqui, de seu discípulo, que o Povo sertanejo pode
sofrer alguns desvios ideológicos, às vezes, mas, no fundo, é
a favor da Esquerda, da Esquerda pura, da Esquerda verdadeira, e não
dessa doidice de Esquerda com coroas, reinos, tronos, brasões, bandeiras,
cavalos e não sei que mais!’, disse Clemente, voltando-se para mim.
“Eu, que não estava para acordos, principalmente naquela hora,
tão importante para nós, voltei-me para Lino Pedra-Verde e,
por entre os gritos e lamentações da multidão, que continuava
com seus brados e vozerios, chamando pela presença do Alumioso, disse:
” ‘Lino, vamos mostrar, de uma vez para sempre, a verdade a esses dois
teimosos! Repita aqui, para esses dois ímpios que vivem querendo tapar
o Sol com peneira, aqueles dois versos do romance de Jota Sara que falam desta
República de traidores do Brasil como se fosse uma safadeza, e que
elogiam o Império do Impostor Pedro II, que, apesar de usurpador, pelo
menos era Rei, usava coroa e ficou a favor do Conselheiro!’ “Lino, sem
se fazer de rogado, cantou as seguintes estrofes:
`Denunciaram pr’o Rio ao Governo Imperial. Dom Pedro II disse: – Esse homem
não faz mal! Mudaram, então, de estilo: queriam mandar pr’o
Asilo, Manicômio ou Hospital.
No ano de 93 fizeram grandes asneiras: deram vivas à República,
cobraram imposto nas Feiras. Era insulto ao Conselheiro! E seu Povo estava
ordeiro para ser posto às carreiras!
O Conselheiro montou no seu fiel Alazão.
Com mulheres e crianças foi, caminho do Sertão! A tarde, seguiu
a Cruz: dando vivas ao Bom Jesus rasgaram as Leis na mão!'” ”
‘E!’, falou Clemente, suspirando. `A gente vai ter uma certa esperança
no espírito revolucionário dessa gente, termina sempre sendo
traído! Esse Povo brasileiro é mesmo uma desgraça! O
peste do Cantador ia até bem, no começo: mas já começou
a dizer besteira!’ “Besteira? Besteira uns cus!’, disse Lino, com a exaltação
que lhe era comunicada pelo Catolicismo Sertanejo, pelas salmodias da multidão
e pelo Vinho sagrado da Pedra do Reino. `O que é importante e eu quero
que me digam é o seguinte: o nome é Peri, Perival ou Persival?
Dom Antônio Mariz, o homem do livro que Quaderna me emprestou, é
o mesmo Dom Antônio, Prior do Crato? Onde foi a Demanda do Sangrai,
feita por Dom Antônio Galarraz e Perival? Foi no Crato, perto do Juazeiro
de Padre Cícero
e terra do Prior do Crato, ou foi aqui no Cariri, na Espinhara, no Pajeú
e no Seridó, entre o mar do Rio Grande do Norte e o sertão do
Rio São Francisco?’ “`O quê, Lino? Que confusão é
essa?’, perguntou Samuel, espantado.
“`Confusão? Confusão, uma porra!’, disse Lino, escumando
pela boca. `O senhor, Doutor Samuel, conhece o Romance da Demanda do San gral,
que se canta aqui na Espinhara, no Sertão da Paraíba?’ “`Não!’
“Pois escute! Escute, que, com essa, o senhor vai amarelar, vai ficar
empenado e vendo como tudo isso é uma coisa só, porque esta,
além de ser a história astrológica do rapaz do cavalo
branco, é uma história da gota-serena, uma história mordida
de cachorro, Dom Pedro Dinis, af, que o diga!’ “E Lino, aboticando os
olhos, começou a recitar os seguintes versos, que já tinha cantado
diversas vezes para mim:
`São cento e cinqüenta Homens à procura do Sangrai, rubi
vermelho do Sangue na esmeralda do Grial! De todos os Cavaleiros que o puderam
avistar, tem . um ruim, que é Dom Gaivão, sangue negro e luz
do Mal. Este monta um Corcel negro que tem nome de “Punhal” e deseja,
como os outros, apossar-se do Sangrai.
Todos viram o Santo Cálice mas só um o reverá. É
nosso Prinspo sagrado: seu nome, quem saberá? R Sinésio? E Galarraz?
Sebastião? Persival? Por vinte anos e um dia na Catinga ele errará,
montado em seu Poldro branco que se chama “Tremedal”, de Gibão,
chapéu e esporas – cabo de ouro em seu punhal! São três
vezes sete anos pelo Sertão a vagar.
o um dia, junto a uma Pedra – a Rocha do Escalará – Dom Gaivão
ataca o Príncipe e este consegue o matar.
o Prinspo vence e a vitória nunca mais se esquecerá. Porém
o sangue do morto nosso Prinspo embeberá: Desde então, ferve
em dois sangues: Sol do bem e luz do Mal. Desde então, tem dois Cavalos
e os dois passa cavalgar: monta em “Tremedal” de dia e, de noite,
no “Punhal” monta o branco sob o Sol e o negro sob o Luar.
Quem, agora, gosta dele? Que mulher o quererá? A Dama dos olhos verdes,,
a cansada de sonhar! Então, na Pedra da Soçte, de tanto assim
o escalar, o sangue vermelho pôde ao sangue negro limpar. E, após
o dia do Fogo – Rosa, brasa, Sol-Lunar – junto à Laje da Aspersão,
entre o Sertão e o Mar, clariando a escuridade o Prinspo viu o Grial,
chama rubra do Sertão o chama verde do Mar, sangue vermelho do Cálice,
taça de Jaspe lunar! Desde então, não mais se ouviu na
Demanda se falar, nem daqueles que viviam para o Sangrai encontrar: uns dizem
que se mataram pra ir o Sol habitar, outros, que eles se abrasaram no Fogo
que os foi sagrar.
Quanto ao Pinspo e à Sonhosa, nada se pôde apurar! Diz um Cego
que se uniram sob a Pedra a coruscar, no Reino Estranho que havia numa Furna,
a se ocultar, entre Frutos capitosos o a Romã do divinal.
Porém jura um Cantador que um Anjo os veio raptar, nesse Reino consagrado
do Sertão à beira-mar, entre balas, ladainhas, o espadas a flamejar,
enquanto chamas e Arcanjos, em torno, vinham cantar, esvoaçando e encobrindo
a Sagração do casal.
O certo é que se encantaram, na Terra do Alumiar, cavalos e Cavaleiros
que buscavam o Sangrai, o o Prinspo ardente do Sol, é a Dama e garça
do Mar!” O Vinho da Pedra do Reino
– Outra charada de versos enigmáticos! – comentou o Corregedor.
– Foi exatamente isso o que o Doutor Samuel disse a Lino naquela noite,
Senhor Corregedor! – expliquei. – Quando Lino acabou de recitar esse logogrifo
em forma de romance, o Fidalgo pernambucano falou: “Ah, meu Deus, essa
bárbara Civilização do couro estraga tudo! Parece que
é a história ibérica e nobre da Demanda do Santo Graal,
mas inteiramente deturpada! Os nomes aparecem todos errados, e lá vem
a Catinga, e um cavalo chamado Punhal, o um Cavaleiro vestido de gibão
e chapéu de couro, e lá aparece o Sertão metido onde
nunca esteve, e lá aparece uma Mulher, de olhos verdes e parecida com
uma garça, estragando, com sua presença, a idéia de castidade
absoluta que se deve ligar à imagem do Cavaleiro que deveria ser um
misto de Guerreiro e monge… Que mau gosto desgraçado! E falta. tudo
o que, na história ibérica, existe de mais belo! Falta a roupa
do jovem Cavaleiro, do casto Galaaz, roupa que deveria constar de loriga,
brafoneiras, elmo, guarnacha e sobre-sinais de eixâmete vermelho! Não
aparece nenhum alfâmbar, nem cálices esculpidos em esmeraldas
verdes e contendo o sangue precioso do Cristo! Não aparece, sobretudo,
aquela espada que, retirada da bainha pelo Cavaleiro maldito, sai toda molhada
de sangue, de um sangue tão quente e vermelho como se a tivessem sacado
há pouco do corpo de um homem ferido de morte! De maneira, Lino, que,
na sua cantiga, só existem duas coisas que se podem considerar verdadeiramente
herdadas da tradição ibérico-brasileira: a presença
do Cavaleiro maldito e oos cento e cinqüenta homens que empreendem a
Demanda!’ “‘Bem, Samuel’, interrompi eu. `De qualquer maneira, você
mesmo reconhece que alguma coisa ficou! E, se é assim, você pode
entender que a viagem que vamos empreender com o rapaz do cavalo branco é
uma Demanda novelosa e fidalga! Pode nos dar o seu apoio, ganhando suas armas
e seu título de Barão e, ao mesmo tempo, me ajudar, para que
eu tente desencantar o tesouro o assistir aos acontecimentos, para ter assunto
para minha Epopéia!’ “Quaderna, sua receita literária é
tão ruim, que absolutamente não tenho medo de que você
passe na minha frente, na parte lítero-poética! Quanto à
outra parte, a heráldica, estou de acordo: vou empenhar com o Condestável
Pedro Gouveia, minha palavra de Fidalgo!’ “Meus parabéns, Barão!’,
disse eu, imitando o Doutor Pedro. `E você, Clemente?’ “‘Digo o
mesmo que Samuel disse, porque, quanto à parte literária, não
tenho medo de nenhum dos dois. -Quanto à outra parte, também
vou! Não porque tenha resolvido trair minhas idéias, mas porque
é necessário não dar argumentos à Direita contra
o Filósofo do Povo!’ “‘Pois ótimo para todos nós!’,
falei, contente. `Quanto a mim, verei tudo, gravarei tudo na cabeça
e no sangue, e vou escrever uma Epopéia sobre a viagem do rapaz do
cavalo branco!’ “`Isto, Quaderna!’, concordou Lino Pedra-Verde. `Vamos
meter o pé na estrada e, com a guerra do Prinspo, você escreve
um romance dos bons, que é para a gente imprimir e fazer um folheto!
Mas não escreva coisa besta, não: quero uma história
litúrgica, epopéia, lunária, astrológica, solar,
risadeira, de putaria, bandeirosa e cavalariana, tendo como centro a Demanda
Novelosa da Guerra do Reino, que a gente vai fazer!’ “Tanto eu como meus
dois Mestres, Senhor Corregedor, tínhamos, ainda, alguma coisa a falar,
mas nesse momento o esvozear da multidão subiu um pouco e vimos que
a porta da casa dos Garcia-Barrettos tinha se aberto, com o Doutor Pedro Gouveia
da Câmara Pereira Monteiro aparecendo no limiar. De cima do velho batente
de pedra, ele dominou a multidão com sua presença e falou: “‘Meu
Povo, meus filhos! Vão embora, por favor! O nosso Sinésio está
cansado e não pode mais aparecer a votes hoje, de jeito nenhum! Fiquem
descansados em suas casas, porque a nossa causa será vitoriosa! Ainda
existem juízes em nossa terra, e confiamos em Deus e no nosso Direito.
Mas não causem confusões com as autoridades não, porque
isso pode, inclusive, nos prejudicar! Digo isso em beneficio do nosso Sinésio,
do rapaz do cavalo branco, desse Esperado, tão querido, tão
amado pelo Povo do Sertão do Cariri!'” O Corregedor me interrompeu,
perguntando: – A seu ver, Dom Pedro Dinis, a que era que o Doutor Pedro estava
se referindo quando falou nessa causa? Ao problema do testamento e da herança,
ou à tal Guerra do Reino? – Não sei, Senhor Corregedor! – respondi
prudentemente. – O que eu sei é que, quando ele falou nisso e disse
que Sinésio era o Esperado, eu vi, mais uma vez, que aquele Doutor
Pedro era um homem com quem eu iria aprender muita coisa, num campo em que,
até aquele dia, eu tinha sido único, aqui na Vila. O que era
ruim era aquela minha situação de cego, que me impedia de vê-lo
e de ver outras coisas tão importantes para mim, agora. Queixei-me
disso a Lino, que me retrucou: “‘Por que você não experimenta
o Vinho sagrado da Pedra do Reino pra ver se melhora da cegueira? O vinho,
que já fez tantos milagres, pode até fazer mais esse!’ “E
mesmo, Lino! Como é que não me lembrei disso, antes? Eu, o Rei
e Profeta da Pedra do Reino, não ter me lembrado, logo, das virtudes
do Vinho cuja receita secreta foi encontrada por minha família! Não
é danado? Chega a parecer coisa do Cão!'” – Um momento!
– interrompeu o Corregedor. – Preciso saber uma coisa: esse Vinho, parece
tão importante em sua vida e na história toda, que preciso de
alguns esclarecimentos sobre ele. Se não me engano, de acordo com Pereira
da Costa, trata-se de uma mistura de jurema e manacá, não é
isso? – Existem outros ingredientes, Senhor Corregedor, mas esses outros,
o senhor pode me prender, pode até mandar me matar, mas eu não
revelo quais são, de jeito nenhum! – Por quê? – Primeiro, porque
é segredo de família e sustentáculo principal da nossa
Casa Real Sertaneja, e depois porque é ele o segredo do meu estilo
genial, ou régio! Minha sorte foi que os outros escritores que escreveram
antes sobre meu assunto – como Euclydes da Cunha, Antônio Attico de
Souza Leite, José de Alencar e o Comendador Francisco Benício
das Chagas – só descobriram, da receita integral, uma pequena parte,
a da jurema e do manacá! Se algum deles tivesse descoberto o resto,
teria feito e bebido o vinho, tornando-se assim o Gênio da Raça
Brasileira, caso em que eu estaria perdido! Graças a Deus, porém,
só descobriram aquela parte, e lascaram-se! Eu, com mais sorte e sendo
da família, consegui tudo! Meu Pai era raizeiro e guardou a receita
das tradições da nossa Casa. Eu herdei os cadernos astrológicos
dele, e foi assim que acrescentei, à jurema e ao manacá, o cumaru,
a erva-moura, a raspa de entrecasco de quixabeira, a catuaba e o resto que
não posso revelar, porque foi o Vinho completo que terminou sendo minha
salvação como Poeta e como homem! – Sua salvação
como homem? Por quê? – E que eu, em vida de meu Pai, tinha sido destinado
para Padre, como já lhe contei. Ora, para isso, eu precisava de mais
inteligência, porque, em menino, minha cabeça era dura, aterrada
que só cabeça de tejo! Então meu Pai, vendo que, de outra
maneira, eu nunca seria aprovado nos exames do Seminário, me deu, para
beber, um chá de cardina. A cardina realmente abriu minha cabeça,
tornando-me uma das capacidades mais misteriosas que já passaram pelo
Seminário! – Você pode me conseguir um chá desses, para
que eu também possa progredir em minha carreira de Magistrado? – disse
o Corregedor, sorrindo superiormente para Margarida.
– Bem, poder, posso, mas não aconselho o senhor a tomar o chá
não! – Por quê? – Porque a cardina dá, de fato, à
pessoa, uma inteligência danada, mas, ao mesmo tempo, apaga a homência
do sujeito! – Vote! – disse o Corregedor, que, tomado de surpresa, não
tinha tido tempo de se lembrar da presença de Margarida e saiu-se com
aquela vulgaridade. – E você perdeu a sua? – indagou ele, curioso.
– Perdi, sim senhor, foi o começo da minha tragédia! No começo,
isso não chegou a ser um problema, porque eu ia ser Padre, e padre
não precisa da chamada sustança dos países-baixos! JMas
eu fui expulso do Seminário, com as artimanhas de Maria Safira. E agora,
como é que ia ser, eu sem homência? Só me restava o caminho
e a consolação da Poesia, que eu aprendera com oão Melchíades!
Resolvi ser Poeta! Mas logo aí, surgiria outro problema. João
Melchíades tinha me explicado que havia seis tipos de Poeta e que os
grandes, os grandes de verdade, eram os que reuniam as seis qualidades. Poeta
de ciência, eu era, sem nenhuma dúvida, por causa da cardina.
Mas eu teria que ser, também e principalmente, poeta de estro. Isso
me era afirmado tanto por João Melchíades, como pelo Doutor
Amorico Carvalho, Retórico do Impostor Pedro II, que escrevera, na
página 49 de seu livro: “A imaginação e a inspiração,
tais são os dois elementos do gênio, ou estro poético.
O que, sobretudo, se prefere nas produções do gênio é
a criação do assunto, é o fogo da imaginação,
é o sopro da inspiração”. Fui ao Dicionário
Prático Ilustrado, e, lá, encontrei que estro era sinônimo
de “inspiração, engenho poético, fogo da imaginação,
desejo sexual, cia, cavalgação e reinaço”! Não
havia mais dúvida: era o Dicionário – livro consagrado, indiscutível
e oficial – que me garantia que os verdadeiros Poetas-Reis, os Poetas de reinaço,
eram os que possuíam, como uma coisa só, o fogo da inspiração
zodiacal, a ciência do engenho poético e o cio da homência
do sangue, no sol astrológico dos Planetas! Fiquei desesperado: porque,
agora, além de não poder mais fazer cavalgação
em cima de mulher nenhuma, não poderia mais reinar no meu Reino e Castelo
sertanejo, fazendo meu romance de cavalgação, bandeiras, reinaço
e cavalarias! Cheguei a pensar em dar um tiro na cabeça. Foi Lino quem
me salvou, falando-me pela primeira vez do vinho que, escondido de nós,
meu Pai fabricava e vendia secretamente e cuja receita deveria estar nos cadernos
que ele tinha deixado. Encontrei a receita, e o vinho me restituiu minha homência,
fazendo de mim, ao mesmo tempo, o único Poeta completo, genial e régio
que existe no Mundo! É que, modéstia à parte, Senhor
Corregedor, nosso Vinho da Pedra do Reino é a beberagem do Poder, da
Fortuna, do Dom-Profético e do Amor! – Tudo isso? – Tudo isso e mais
alguma coisa, Senhor Corregedor. Porque, por exemplo: essa fortuna que o vinho
nos dá, não é a fortuna sem imaginação
dos Burgueses ricos, nem o Dom é o simples dom dos poetas só
de ciência. Também o Amor que ele dá, não é
o amor lírico e fraco do qual falava Joaquim Nabuco. É, tudo,
o Poder do reino e dos tesouros guerreiros, o engenho poético-fogoso
e zodiacal do sangue, e o amor de cavalgação e reinaço.
Meu bisavô, o Rei Dom João Ferreira-Quaderna, era através
dessa beberagem que revelava os tesouros e propiciava a posse das mulheres
desejadas, a si e a seus súditos! – E Euclydes da Cunha? E José
de Alencar? – perguntou o Corregedor, como indagando o que é que tinham
a ver corn aquilo dois consagrados escritores brasileiros.
Não me dei por achado e respondi: – Euclydes da Cunha fala da jurema
como sendo a árvore predileta dos Sertanejos, por ser o seu haxixe
capitoso, que lhes fornece inestimável beberagem que os revigora, feito
um filtro mágico. Quanto a José de Alencar, é num bosque
de juremas que Iracema dá a Martim umas gotas de estranho e verde licor
que era exatamente o vinho verde de jurema – um dos ingredientes do Vinho
total. Pois bem: mesmo com a receita incompletíssima de José
de Alencar e Euclydes da Cunha, só por beberem eles essa parte do Vinho,
entre Martim e Iracema as safadezas que grassam são as maiores do mundo!
Diz José de Alencar que, depois de beber vinho de jurema, Iracema começou
a ficar feito uma Onça no cio, desejando abrigar Martim contra todos
os perigos e recolhê-lo em si como num asilo impenetrável. Mas,
se Iracema era, mesmo, um asilo impenetrável, era para os outros, porque,
para Martim, ela era mais do que penetrável, era penetrabilíssima!
Martim é que parece que era meio afracado, meio arriado dos quartos,
como eu no tempo da cardina. Iracema, já completamente tarada pelo
vinho, vê que o jeito é dar o licor a Martim também. Então,
Martim bebe o licor verde de jurema. A coisa melhora e conta lá o nosso
fidalguíssimo cearense: “Os braços de Iracema cingiam a
cabeça do Guerreiro e a apertavam ao seio. O Cristão sorri,
a Virgem palpita. Como o saí fascinado pela serpente, ela vai declinando
o lascivo talhe, que se debruça enfim sobre o peito do Guerreiro. Já
o estrangeiro a preme ao seio e o lábio ávido busca o lábio
que o espera, para celebrar nesse Adito agreste, reservado aos mistérios
do Rito bárbaro, o himeneu do Amor. Martim libou as gotas do verde
e amargo licor. Agora, podia viver com Iracema e colher em seus lábios
o beijo que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor.
Podia amá-la, o sugar desse amor o mel e o perfume. O gozo era vida,
pois o sentia mais forte e intenso. A juriti que divaga pela Catinga, ouve
o terno arrulho do macho: bate as asas e voa, a conchegar-se ao tépido
ninho. Assim a virgem do Sertão aninhou-se nos braços do Guerreiro.
Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual
borboleta que dormiu no seio de formoso Cacto”. Está vendo, Senhor
Corregedor? – Estou vendo, o quê? – O que eu quero mostrar é
que, por esse trecho, a gente vê que, tanto Euclydes da Cunha como José
de Alencar não se limitaram a falar, somente, do Vinho de jurema: ambos
devem tê-lo bebido! Se não fosse assim, eles não escreveriam
como escreveram – meio bêbados, escumando pela boca e vendo visagens
como esta, umas safadas, como as de Iracema, outras heróicas, como
as de Canudos! A gente vê, perfeitamente, que é José de
Alencar que, sob o disfarce de Martim, entra no bosque sagrado de Iracema,
suga o mel da corola da flor e depois faz penetrar a cobra no tépido
ninho-de-juriti dela! E é assim mesmo que acontece, Senhor Corregedor.
Quem toma meu Vinho, mesmo na receita incompleta dos outros escritores, consegue,
na vida, a fortuna, o poder e o amor, e, na Poesia, aquela mistura de zodíaco
e real que é o gênio. E tem outra vantagem, mais: os filtros
mágicos comuns conseguem essas coisas boas para nós, mas perdem
infalivelmente a nossa alma. O Vinho da Pedra do Reino, não: sendo
completo, arranja tudo e ainda salva a alma, permitindo que a gente, ainda
vivo e aqui no mundo, circule dentro do sangue da visagem felina do Divino
– aquela mesma que meus antepassados reais mostravam a seus devotos, momentos
antes de cortarem suas gargantas. Todo escritor, portanto, que queira escrever
sobre o Reino sagrado do Sertão – único assunto digno do gênio,
como provou Fagundes Varela – tem que beber desse Vinho, nem que seja na fórmula
incompleta de Alencar, Euclydes da Cunha e Antônio Attico deSouza Leite.
Quando um não bebe e se mete a escrever, a gente conhece logo: ele
não escreve escumando, e tudo o que sai de sua pena é falso,
infiel às pedras, aos espinhos o ao sangue do Sertão! Quanto
às qualidades de cio, cavalgação o reinaço do
vinho, também são indiscutíveis, porque são afiançadas
por outro genial escritor brasileiro, o qual, além de Acadêmico,
era um grande Médico, perfeitamente autorizado, portanto, para fornecer
esse tipo de atestados! – Quem era ele? – Afrânio Peixoto. Conta ele,
num romance que fez, que um rapaz e uma donzela, que não se amavam,
tomaram desse vinho juntos, sem saberem do que se tratava. Na mesma hora,
a Urtiga sangrenta, venenosa, espinhenta e deleitosa do amor envolveu os dois
e eles ficaram enredados de paixão para o resto da vida. Isso me interessa
muito, Senhor Corregedor, porque foi a mesma coisa que sucedeu, depois, entre
Sinésio e sua jovem Dama, a bela Heliana, a moça sonhosa dos
olhos verdes. Sim, porque o nosso Vinho e realmente assim: se o senhor o beber
sozinho, pensando numa mulher, ela se entrega, na visagem, e o senhor pode
gozá-la como quiser. A coisa não passa disso e, quando o senhor
acorda, está livre e desimpedido – a mulher não sofreu nada
nem soube de nada também. Mas se um homem o uma mulher bebem o Vinho
juntos, af ficam eternamente enredados, de um amor terrível, um amor
ao mesmo tempo espiritual e sensual, sexual e divino, que passa a alimentar
com o sangue dos dois amantes o sarçal de Urtigas e favelas do Terrível,
floridas mas causticantes, as Urtigas espinhentas e queimosas do Amor. Diz
Afránio Peixoto que, assim que os dois beberam o vinho, pareceu ao
rapaz que um arbusto de espinhos agudos e flores odorantes aprofundara as
raízes no sangue do seu coração, e ele, com os braços
fortes, se enlaçava ao belo corpo de sua amada, ao mesmo tempo que
o sarçal enleava os dois para sempre, seu corpo, seu pensamento, seu
sangue e seu desejo. Por isso, eu nunca bebi meu vinho junto com mulher nenhuma,
porque não quero me enredar definitivamente com mulher nenhuma. Mas
já o bebi sozinho várias vezes, botando o sentido da minha homéncia
nas moças aqui da Vila. Assim, consegui ter minhas visagens amorosas
com todas as que desejei. Principalmente com as louras e pertencentes à
nossa Aristocracia, porque eu, sendo moreno e tendo essa cara enafrruscada
que parece feita de pedra, sou tarado por galegas alouradas! Ao dizer isso,
olhei para Margarida, que, sendo loura e da Aristocracia, aumentou a cara
de aversão que fazia sempre para meu lado. Mas ela se mantece calada,
para não me dar liberdade e eu continuei, falando para o Corregedor:
– Posso garantir a Vossa Excelência que, na mesma hora em que a gente
bebe o Vinho da Pedra do Reino, entra num bosque, sertanejo, sagrado e deleitoso,
feito de juremas, angicos, braúnas, urtigas e favelas. Ah, o licor
verde-vermelho pinga de todas as frondes, como gotas de esmeralda e rubi incendiadas
pelo topázio do Sol. É um bosque cheio de mel e abelhas cor
de ouro, espanejando luz e pólen fecundante. Um bosque onde esvoaçam
concrizes aurinegros e saíras que parecem jóias. Um bosque povoado
de cascavéis e cobras-corais, assim como de mulheres de longos cabelos.
Em todo canto, há corolas vermelhas e odorantes, cactos e urtigas,
lianas coleantes e cheias de espinhos, favelas eriçadas de folhas causticantes
e espinhosas, coralinas e mulungus de flores vermelhas, canafístulas
e paus-d’arco de flores amarelas.
Tudo isso nos impele, rendidos e embriagados, para o seio e o ninho de mulheres
viçosas, macias e enleantes, mulheres cujo corpo é, ele mesmo,
como um bosque, com as colinas rijas e suaves dos peitos, e o escuro concriz
negro-vermelho pregado de asas abertas na entrada da fonte, com a casa-das-abelhas
e o mel e a corola – mulheres que nós possuímos na sombra verde
e umbrosa das árvores e moitas, salpicados como estamos pelo orvalho,
deitados na areia fina e cheia de cristais, ouvindo o som da água que
corre sobre os seixos e vendo em cima, nas frondes agitadas suavemente pela
verde ventania, pomos e pomas que reluzem, à brasa incendiada e coada
entre os ramos da luz do Sol! Quando terminei de dizer isso, tanto o Corregedor
como Margarida estavam meio estatelados, respirando forte e com os olhos aboticados
pra minha banda. Infelizmente, porém, essa era uma das partes que eu
tinha escrito e decorado de antemão, para, depois, versá-la
e incluí-la em minha Epopéia. O trecho decorado terminava aí,
de modo que minha eloqüência se esgotou. Os dois sacudiram-se,
como para afastar o quebranto, e o Doutor Joaquim Cabeça-de-Porco voltou
à sua perigosa impassibilidade habitual: – Dom Pedro Dinis Quaderna
– falou ele, já de novo com seu jeito cortante – me diga então
uma coisa: os ataques que o senhor tem e que atribui ao mal sagrado dos gênios,
não terão alguma coisa a ver com esse vinho não? – Pode
ser, Senhor Corregedor! Não posso lhe responder assim com segurança
porque nunca fiz investigações científicas maiores a
esse respeito! – disse eu com o tom mais cándido e honesto que pude
arranjar.
– Antes de vir para cá, você não terá, por acaso,
bebido o vinho? – Bebi, sim senhor! Tomei umas duas ou três lapadas,
para tomar coragem e melhorar a vista! – Está bem, anote tudo isso,
Dona Margarida! Agora, continue a narração dos acontecimentos
daquela noite, no dia da chegada de Sinésio! – O senhor escolhe um
bom momento, do ponto de vista literário, Doutor! As Postilas de Gramática
e Retórica recomendam, sempre, um certo encadeamento, nas Epopéias.
Ora, estávamos falando do vinho: pois foi exatamente naquela noite
que eu, graças a Lino Pedra-Verde, descobri que o vinho exercia uma
forte ação modificadora na minha cegueira, o que foi de grande
conforto para mim! Lino estava com o pichel de couro amarrado na cintura,
e me aconselhou a tomar umas talagadas, o que fiz imediatamente, tomando uns
dez ou vinte goles. Imediatamente, meu sangue começou a correr melhor,
da cabeça aos . pés, e uma certa claridade alumiou, um pouco,
o campo de visagem diante de meus olhos. Vi, então, que a noite já
ia alta, mas que o Povo improvisara tochas e lanternas, que se juntavam à
pouca luz da nossa gloriosa Vila, dando à reunião da Praça,
como disse Samuel, “um aspecto de reunião de catacumbas e de marcha
flamejante”. Enquanto eu bebia, porém, o Doutor Pedro Gouveia
continuava a responder às indagações ansiosas e ardentes
que algumas pessoas do Povo lhe faziam sobre Sinésio. Voltei-me na
direção dele, tentando avistá-lo melhor, por entre as
névoas incandescidas que ainda emaranhavam minha visão, ou,
melhor, “por entre a névoa que a pupila trêmula embaciava”,
como dizia aquele genial folheto que é A Última Corrida de Toiros
em SalvaTerra. Nesse momento exato, alguém gritou para o Bacharel Pedro
Gouveia: “‘Doutor Pedro, é verdade que o senhor encontrou o rapaz
do cavalo branco, nuzinho, andando por uma estrada, sem se lembrar de ninguém,
sem saber de onde tinha vindo e sem saber até mesmo como era o nome
dele?’ “`Por que você pergunta isso, meu filho?’, indagou o Doutor
Pedro, que não batia prego sem estopa nem andava sem saber onde estava
pisando.
“Pergunto isso, Doutor, porque a discussão sobre isso, aqui
na rua, está a maior do mundo! Uns dizem que o rapaz foi encontrado
nu, e, outros, que ele vinha vestido numa espécie de camisolão
branco, tendo na mão esquerda duas flores – uma amarela e outra encarnada
– e segurando, na mão direita, uma bandeira! Qual é a história
verdadeira, Doutor?’ “`Todas duas, meu filho!’, explicou solenemente
o Doutor, e eu, mais uma vez, vi que tinha muito a aprender com aquele homem.
`As duas versões são verdadeiras, não criem divisões
entre os nossos! Eu encontrei Sinésio perdido, extraviado, nu como
Deus o criou, coitado, e trazendo, como você disse, numa mão
as duas flores – a amarela e a vermelha – e na outra mão a bandeira
do Divino! Sem uma roupa para dar a ele naquela hora, improvisamos, com um
lençol, a túnica branca da qual voces ouviram falar! Ele estava,
além disso, um pouco perturbado pelos sofrimentos que passou. Mas,
com todo cuidado, nós tratamos de reeducá-lo e de lembrar a
ele os fatos mais importantes de sua vida, de modo que ele, hoje, já
está quase inteiramente recuperado! Mas amanhã é que
tudo isso será melhor esclarecido, para conhecimento de todos! Vão
embora, saiam, vão para suas casas! Dispersem-se, que, amanhã,
eu prometo que o nosso Sinésio falará com todos voces e até
os olhos dos cegos se esclarecerão!’, concluiu ele.”
FOLHETO LXXXIV
O Enviado do Divino
– Eram já quase onze horas da noite, Senhor Corregedor, e meus olhos
se clareavam cada vez mais. Pedi novamente a Lino Pedra-Verde a borracha-de-couro
e tomei outra Tapada de Vinho, maior ainda do que a primeira. A terrível
e milagreira bebedice da Pedra do Reino começou a me subir, de vez,
do sangue para a cabeça. Visagens de coroas e coriscos dançavam
nos meus olhos, misturadas com tudo o que eu tinha visto e ouvido desde a
manhã. Então, como eu olhasse casualmente para os lados da Rua
Grande, vi que, por ali, vinha chegando o Frade do burel branco, vestido ainda
daquela maneira que tinha impressionado tanto a sertanejada. Trazia, na mão,
a bandeira do Divino e vinha a cavalo, regressando da Igreja Nova onde se
mantivera rezando durante todo aquele tempo, sempre de mosquetão cruzado
nas costas pela correia à bandoleira. Chegando na entrada da Praça,
o Frade apeou-se do cavalo e encaminhou-se para o Palanque, que não
fora desarmado. Contornou-o, subiu por uma das escadas laterais e passeou,
de cima, o olhar pela multidão. O Povo, porém, de costas para
ele e de olhos fixos no casarão onde devia estar Sinésio, não
tinha se apercebido de sua chegada nem de sua subida ao Palanque. Somente
eu o olhava e, para mim, era visível que o Frade queria se dirigir
ao pessoal. Logo ele confirmou minha impressão, porque, curvando um
pouco o torso hercúleo e encostando a bandeira do Divino a uma das
colunas, apoiou-se com ambas as mãos na balaustrada. Assim, projetou-se
um pouco para a frente e gritou: “`Amados filhos em Nosso Senhor Jesus
Cristo!’ “O Povo, porém, sempre fascinado pela casa dos GarciaBarrettos,
não deu a menor atenção ao apelo. Aliás, mesmo
que quisesse ter dado, ninguém poderia tê-lo ouvido, porque,
após a intervenção do Doutor Pedro Gouveia alguém
tinha tido a magnífica idéia de puxar uma ladainha, que, agora,
estava sendo rezada por uns e cantada por outros, mas, de modo geral, gritada
por todos. Irritado, o Frade tirou o mosquetão das costas, deu um tiro
para o ar, e, no silêncio que se seguiu imediatamente ao tiro, gritou
com voz trovejante: “`Silêncio, cambada de filhos da puta! Não
estão ouvindo o ministro do Senhor falar não?’ “Imediatamente,
todos se voltaram para o Palanque, e um silêncio tumular reinou na Praça.
Al o Frade, voltando ao apostólico tom anterior, falou assim: “Amados
filhos em Nosso Senhor Jesus Cristo! Vocês estão todos reunidos
aqui, como que à espera de um grande acontecimento! E têm razão
de proceder assim, porque tudo o que é ligado à Fé é
grande. Ora, essa atitude de vocês vem da Fé: logo, tem grandeza
e é um grande acontecimento. Assim, voces não precisam mais
procurar e esperar, porque o grande acontecimento já sucedeu. A nossa
chegada, o fato miraculoso de termos escapado à emboscada que pessoas
de coração mau nos armaram na estrada, o milagre de ter falhado
o tiro que foi disparado contra o rapaz do cavalo branco, tudo isso são
acontecimentos por demais sagrados para serem explicados sem a intervenção
de Deus! Na emboscada, amados filhos em Nosso Senhor, vários tiros
foram disparados contra mim: miraculosamente, as balas batiam no meu hábito
branco e, por causa da proteção do Divino Coração
de Jesus, calam inofensivamente dentro do cano das minhas botas e nos bolsos
da batina. Olhem!’
“E o Frade, tirando dos bolsos as cápsulas que tinha apanhado
na estrada, deixou-as cair, aos punhados, do Palanque embaixo. Vendo que tinha
causado bastante efeito com a revelação desse fato, continuou
ele: “‘Mas será que ainda vem outro acontecimento, maior do que
esses que já aconteceram? Virá? Não virá? São
perguntas, essas, que inquietam a todos nós! Uma coisa, porém,
repito, já é, por si, um grande sinal, um grande milagre: é
o aparecimento do rapaz do cavalo branco, com sua Bandeira na mão,
isto exatamente na Vigília de Pentecostes! É preciso, portanto,
que todos vocês, que todos nós, nos tornemos dignos de tudo o
que aconteceu e de tudo o que está ainda para vir. Estão ouvindo?
O sino começou a tocar! Fui eu que mandei tocá-lo, porque está
chegando a meianoite, e, com ela, estão chegando os primeiros momentos
da madrugada do dia sagrado de Pentecostes! Esses toques de sino anunciam,
portanto, a todos nós que, por mais escura que seja a noite, dentro
de alguns instantes o Sertão vai ser alumiado e queimado pelo fogo
de Pentecostes! Está lá, escrito no Evangelho, o livro santo,
que não pode errar: “E quando se completavam os dias de Pentecostes,
estavam os Doze todos juntos, num mesmo lugar, e, de repente, veio do Céu
um estrondo, como de uma ventania que soprasse com grande violencia, enchendo
toda a casa onde eles estavam assentados. Então, apareceram a eles,
repartidas, umas espécies de línguas ou chamas de Fogo, que
repousaram sobre cada um dos Doze, e todos ficaram cheios do Espírito
Santo”. Entenderam estas palavras sagradas, amados filhos em Nosso Senhor?
Esta bandeira que trago aqui, comigo, e que nunca mais abandonei desde o dia
em que assumi minha missão junto ao nosso Príncipe, é
a Bandeira de Pentecostes, a bandeira da Coroa, do Sol e das chamas de Fogo
do Divino Espírito Santo. Ela comemora o dia no qual o fogo de Pentecostes
incendiou para sempre a nossa carne grosseira e o nosso sangue pagão,
ferrando-nos com o sinete divino, sinal que há de lembrar, até
o fim dos tempos, que é um simples desterro, um mero exílio,
esta nossa passagem pela terra parda deste Sertão, por esta segre imensa
que é o Mundo! O Pai veio para criar, para castigar e expulsar. O’
Filho veio para remir e perdoar. O Espírito Santo vem para reinar e
incendiar! O Reino do Pai se encerrou, e já estamos chegando ao fim
do Reino do Filho. Vai começar o Reino do Espírito Santo, o
ai daquele que for encontrado com mancha de pecado no sangue! Este Sertão
nosso é o Reino sagrado e misterioso, que foi predito por um dos grandes
Profetas da nossa terra, Frei Antonio do Rosário, filho da Capucha
de Santo Antônio do Brasil, o qual, “vendo nas Aves do Ceo tantos
exemplos de vida austera & penitente, dizia que era passam solitario,
Ave do Monte & Pellicano da soledade! ” É o Reino sagrado,
cortado pelos rios que secam o se enchem misteriosamente, rios dos quais dizia
aquele mesmo Profeta, Frei Antonio: “Rios sagrados, rios mysteriosos,
por representardes os quinze rios do mar do Rosario, Rios da terra que o Ceo
ameaçou com os ays do Apocalipse! Ay, ay, ay, tres vezes ay! “,
gritou o Frade. E logo o Povo todo, Senhor Corregedor, começou a chorar
e a se lamentar, repetindo com ele as suas lamentações, agora
meio salmodiadas: “Ay, ay, ay! Ay dos pensamentos, ay das palavras, ay
das obras que habitam na terra de que sou composto! Ay das tres potencias
d’alma, tam mal empregadas nos moradores da terra! Ay do entendimento perdido,
ay da vontade cega, ay da memoria desencaminhada, ay dos habitadores da terra
que se não lembram que são terra! Quem tem pecado, se arrependa,
quem tem mancha, que me procure! Estão vocês dispostos, amados
filhos em Nosso Senhor, a se alistar debaixo da bandeira do Divino Espírito
Santo?” “Estamos, Santo Pai, estamos! A gente não trai a
Bandeira do Divino, de jeito nenhum!’, foram os gritos que partiram de todos
os lados, por entre os cantos, as pragas, os juramentos e as imprecações.
“Seu Frade, me desculpe eu perguntar, mas a gente precisa saber, pra
se garantir!’, gritou, perto de nós, o Cantador caolho, Lino Pedra-Verde.
`O senhor é Frei Simão, o frade santo da Serra do Rodeador e
da Pedra do Reino? O rapaz que veio com o senhor é o nosso Prinspo,
o Santo do cavalo branco, que vem comandar os Sertanejos para a nossa Guerra
do Reino? É verdade que ele veio para vingar o Pai, provar que é
o Filho e, ao mesmo tempo, trazer o fogo do Espirito Santo para acabar com
as injustiças e os sofrimentos do mundo?’ “O Frade, Senhor Corregedor,
vendo que o momento era bom, pegou a bandeira vermelha do Divino e aprestou-se
para descer do Palanque. Já na escada, falou, respondendo à
pergunta de Lino: “‘Vocês perguntam se o rapaz é o Príncipe…
Quem sou eu para responder? Pode ser e pode não ser! Tudo se esclarecerá,
e a Justiça é quem dará a palavra definitiva e final!
Será que esse rapaz é Sinésio, filho do fazendeiro degolado
aqui, em 1930? Pode ser e pode não ser, e vocês mesmos avaliarão,
pelo que acontecer daqui por diante, se ele é ou não é
o que vocês esperam. Uma coisa, porém, eu digo e garanto a vocês,
meus filhos: é que o muito tem vergonha de dar pouco e, se a justiça
humana falhar, a Justiça divina absolutamente não falhará!’,
concluiu ele com ar majestoso e começando a descer os degraus.
“Frei Simão, meu Povo, é Frei Simão! Só
pode ser Frei Simão!’, gritou Lino Pedra-Verde com ar de doido, escumando
pela boca e revirando os olhos. `Vamos beijar a mão dele, meu Povo,
porque é mão sagrada, é mão que esteve com Silvestre,
O Enviado, com o nosso Conselheiro e com os Imperadores da Pedra do Reino!’
“O Povo, Senhor Corregedor, também com ar de doido e tanto mais
impressionado porque entendera muito pouco das palavras do Frade, começou
a beijar as mãos e a fímbria do hábito branco de Frei
Simão, que, mansamente, os afastava, dizendo com exemplar modéstia:
“‘Que é isso, meus filhos? Que doidice é essa? Guardem
seus respeitos para Deus e para aquela criatura limpa e santa que veio conosco,
montado em seu cavalo branco! Guardem seus respeitos para ele, porque eu,
eu sou um pecador! Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa!’ “‘ um santo!
E um santo! E Frei Simão! É o nosso Conselheiro que voltou,
para o desencantamento e a Guerra do Reino do Sertão!’, gritava o Povo
endoidecido.
“Vossa Excelência, Senhor Corregedor, com seu faro de Decifrador,
já deve ter pressentido que estou chegando ao fim da minha narração.
Há de compreender, então, que, depois disso, depois desse discurso
de Frei Simão, só um milagre pode sustentar, ao mesmo tempo,
a situação do rapaz do cavalo branco e um tom genial e régio
que permaneça à altura de um Cantar epopéico como este.
Pois, graças a Deus, foi o que aconteceu. Posso dizer que tudo começou
quando eu senti dentro de mim um troço estranho, umacoisa fervendo,
que era, ao mesmo tempo, uma viração e uma iluminação.
O sagrado Vinho da Pedra do Reinotinha subido completamente à minha
cabeça e eu recuperara, já, toda a minha visão. Aquelas
visagens que, desde há pouco, dançavam no meu sangue e nos meus
olhos, começaram de repente a me arrastar, a me impelir como um ridimunho.
Acho que meu desejo era me dirigir também ao Póvo, como fizera
Frei Simão, mas foi aí também que os acontecimentos’
se precipitaram, impedindo meu impulso inicial. Quando dei acordo de mim,
meus doze irmãos Cavaleiros estavam bem perto de nós, seis do
Azul e seis do Encarnado, os dois da frente segurando o meu cavalo `Pedra-Lispe’.
Montei nele, sustentando a Bandeira azul e vermelha, separada por um traço
amarelo, bandeira que eu carregava sempre à frente das Cavalhadas.
Meu chapéu de couro já estava à cabeça, o manto
foi-me pendurado aos ombros. O que vou contar dagora por diante, Senhor Corregedor,
é baseado no que Clemente, Samuel e Lino Pedra-Verde me narraram depois:
por mim, eu não poderia contar nada com exatidão. Estava me
sentindo realmente possesso, num arrebatamento divino-diabólico que
eu herdara, certamente, do sangue da Pedra do Reino, mas que, agora, tinha
sido despertado e exacerbado por tudo aquilo. Mas mesmo as outras pessoas
eram mais ou menos confusas e contraditórias no relatar do fato milagroso,
prestes a suceder daí a pouco. Por uma sorte que os incréus
atribuirão ao acaso e que eu atribuo aos astros e à Providência
Divina, meus irmãos tinham trazido, também, a égua vermelha
de Clemente, `Coluna’, e o corcel negro de Samuel, `Temerário’, assim
como outro cavalo selado, desocupado, que nos seria providencial daí
a pouco. Mas como eu vinha dizendo: algumas pessoas que tinham estado na Praça,
diziam que o milagre começara com os toques de sino. ( verdade que
Frei Simão mandara tocar os sinos da Igreja Nova, mas agora era o sino
da Igreja Velha, á de São Sebastião, que ficava na Praça,
pegada à casa dos Garcia-Barrettos, que começava a tocar a rebate,
com repiques tão violentos e misteriosos que racharam a maioria das
vidraças e ecoaram no Sertão inteiro. Outros, discordavam dessa
opinião, dizendo que o som de bronze só pegara uma parte do
Sertão, isto é, o nosso velho e sagrado Reino do Sertão
dos Cariris Velhos da Paraíba do Norte. Todos, porém, eram unânimes
quanto ao resto: no mesmo instante em que o sino começava a tocar freneticamente,
eletrizando a multidão, por cima da velha Casa ancestral dos Garcia-Barrettes
o espaço se fendeu, revelando algo de muito grande, estranho e cheio
de fogo. Por entre chamas, resplendores e estalos de raio, apareceu no Céu
uma gigantesca Onça Malhada, de pêlos cor de ouro, cabeça
negra e malhas vermelhas. Acima dela, via-se o enorme Gavião Real,
afiando asas e criando, com isso, uma ventania de fogo, parecida com as ventanias
incendiárias da Catinga. Abaixo dela, na primeira linha, estavam duas
outras Onças, uma negra e outra vermelha, e, abaixo destas, sozinha,
uma Corça parda. A Onça tinha o corpo ferido e resplandecente
de chagas e malhas, e tudo estava banhado, como na bandeira desenhada por
meu irmão, por uma chuva de gotas de sangue, que eram recolhidas embaixó
por um enorme cálice de ouro em forma de Taça. Circundando tudo
isso, via-se tudo aquilo que o nosso Povo costumava e costuma ver sobre os
paços dos Reis mais estimados – línguas de fogo, griais, esferas
de ouro, cavalos, clarins, eixâmetes vermelhos, ataúdes de prata
incendiada, catervas de Mouros, freires e combates de Paladinos nas alturas
– o sangue e as visagens antecessoras da Pedra do Reino. A visão causava
em todos, como devia ter causado, outrora, ao Cavaleiro Pobre referido por
Olavo Bilac, uma sensação ao mesmo tempo de terror e plenitude,
de gozo sexual perfeito – com o gosto obsceno da Morte e o gosto sumarento
do fruto da Vida, uma sensação que deixou todas as pessoas que
a experimentaram saciadas ali e sedentas para o resto da existência,
insatisfeitas com o mundo e com a vida porque pressentiam que a vida e o mundo
eram `o vasto Mausoléu calcinado’ do Cavaleiro Pobre, por serem incapazes
de oferecer a mesma coisa que todos, agora, estavam experimentando. E foi
então que veio a segunda parte do milagre, a parte sangrenta, bandeirosa
e cavalariana. Porque, enquanto todo mundo permanecia assombrado, todos olhando
uns para os outros na comunicação beatificada e muda do que
estavam sentindo no sangue da alma, a tropa de Cangaceiros, comandada pelo
Capitão Ludugero Cobra-Preta desembocou na Praça, atirando por
cima do Povo e assolando tudo a patas de cavalo. Levantou-se uma gritaria
terrível, se bem que ninguém tivesse sofrido ferimentos graves
naquele primeiro momento. Parece que o Capitão Ludugero, homem bravo
e generoso, dera ordem a seus cabras para atirarem por cima das cabeças,
apenas para causar pânico e dispersar a multidão, pois o que
ele queria, mesmo, era pegar o rapaz do cavalo branco, e não atirar
naquele pessoal inerme. Meus irmãos e eu estávamos desarmados
de armas de fogo. Ainda assim, Malaquias e os outros puxaram os punhais de
Cavalhada com que estavam, e postaram-se em torno de mim para me defender.
A coisa, porém, evidentemente .não era conosco. Os Cangaceiros
procuravam era afastar a multidão, para entrar na casa dos GarciaBarrettos,
de onde o Doutor Pedro se sumira, ninguém vira como. Aconteceu, porém,
o que o Capitão não esperara: o Povo, em vez de correr da Praça,
afluiu e se concentrou todo diante da casa, formando uma barreira difícil
de ser transposta. Os Cangaceiros, vendo isso, começaram a impelir
os cavalos para a multidão, a fim de afugentá-la. Quando a primeira
pessoa foi mais atingida pelo peito de um cavalo e caiu, um homem do Povo
destacou-sedo meio dos outros e meteu um facho aceso na cara do Cangaceiro
que a derrubara. Eu conhecia esse homem: chamava-se Chico Dionísio,
mas era mais conhecido por Chico da Marcação. Era um sujeito
enorme, vermelho de sol e louro, com os cabelos de estopa o com a testa muito
grande e muito branca, no lugar em que o chapéu de couro – que ele
tirava raramente – protegia a pele contra os raios do Sol. Chico Dionísio
era uma onça, de valente: tinha punhos grossos e mãos enormes,
cobertas de pêlos amarelos. Quando ele meteu o facho aceso na cara do
Cangaceiro, deu um berro enorme, como se fosse ele, e não o outro,
o ferido. Mas muito maior foi o berro do Cangaceiro, que levou as duas mãos
à cara queimada e caiu do cavalo, sendo imediatamente apunhalado. Então
o Capitão Ludugero puxou o revólver e atirou em Chico Dionísio.
A bala pegou-o em plena testa, ele largou o facho o tombou morto. A visagem
da Onça Malhada desaparecera: campeavam a violência e a chacina,
e o Gavião de ouro do Divino foi substituído pelo cruel Gavião
da morte, que pairou um momento sobre Chico Dionísio e o Cangaceiro
que ele matara, bebendo o sangue de todos dois. Ouvi a voz do Doutor Pedro
Gouveia gritando: `Calma! Calma, pessoal!’ Mas a violência e o sangue
tinham se desencadeado, era muito difícil que força humana fosse
ainda capaz de detê-los. Eu estava farejando sangue, muito sangue por
todo lado. Tiros estalavam, por entre gritos e os repiques do sino que não
tinha parado de tocar. Outro homem dos nossos, Dinis Vitorino, deu uma foiçada
num Cangaceiro. A foice ia atingir a cabeça do homem, mas, antes disso,
foi detida por seu braço, que levou um corte terrível. Com o
outro braço, porém, o Cangaceiro enfiou um longo punhal no ventre
de Dinis, que caiu estripado, e ficou nó chão, nos estremeços
da morte. Aí, Ludugero, contaminado pela violência, arregaçou
os dentes e gritou para os seus: `Atirem pra matar, nesses cachorros!’ E ele
próprio tirou o mosquetão das costas, dando o primeiro tiro,
para abrir caminho em direção à casa. O pessoal dele
começou a atirar indiscriminadamente contra a multidão, que
urrava. Abriam-se claros, vários corpos já estavam caídos,
embebendo de sangue a poeira da Praça. Ouviam-se gritos, pragas e imprecações.
Um homem fortíssimo, chamado Marino Quelê Pimenta, que fora da
Guarda dos Doze de meu Padrinho e que fizera prodígios na Guerra da
Coluna, pôde chegar junto dum Cangaceiro montado. Pegando-o pelos braços,
conseguiu puxá-lo da sela. Derrubou-o no chão, agarrou-o pela
garganta e estrarígulou-o brutalmente. Aí, no meio do tumulto,
ouvi alguém se dirigir a mim, de bem perto, dizendo: `Quaderna, vamos
para o Tabuleiro que fica perto do Cemitério!’ Era o Doutor Pedro Gouveia,
a pé, ali a dois passos, e acompanhado por uma pessoa a cavalo em quem
tive dificuldade de reconhecer Frei Simão, pois ele tirara o hábito
para não ser distinguido. ‘E o rapaz do cavalo branco?’, perguntei
ao Doutor Pedro, espantado de que ele abandonasse assim aquele que era o centro
e motivo de todo o barulho. Mas eu estava subestimando o Doutor, que, montando
lestamente o cavalo que meus irmãos tinham trazido, disse-me calmamente:
‘O rapaz está lá, no Tabuleiro, com o Cigano Praxedes e Luís
do Triângulo! Eu, com medo de alguma traição, como esta,
mandei que ele saísse pelos fundos da casa, escondido, e fosse dormir
numa tenda do acampamento!’ Vi, então, que o melhor era seguir sua
sugestão. Disse a Lino que, assim que partíssemos, ele, aos
poucos, espalhasse entre o Povo a ordem de reunião no Tabuleiro do
Cemitério. Gritei, então, para meus irmãos: ‘Vamos, todos,
para o acampamento dos Ciganos! Protejam Clemente e Samuel!’ Esta última
recomendação era, aliás, desnecessária, pois meus
dois Mestres, lentos em todos os momentos de ação, eram rapidíssimos
nas fugas. Estavam já montados, abraçados aos pescoços
dos cavalos, tão encolhidos, tão unidos aos corpos dos animais
que montavam que era difícil dizer ali quem era gente o quem era cavalo.
Começamos, assim, a sair da Praça: nem muito devagar, para não
nos arriscarmos muito, nem muito depressa, para não chamar atenção.
Mas os Cangaceiros não nos impediram, julgando que aquele movimento
nosso era uma retirada que facilitaria a tomada da casa. Assim, pudemos sair
e tomamos o caminho do alto e pedregoso Tabuleiro, já agora com o Doutor
Pedro à frente, para não sermos detidos ou feridos pelas sentinelas,
dispostas desde a saída da rua até o alto. Era, portanto, o
próprio Destino que nos impelia a todos, obrigando-nos a tomar partido
ao lado do rapaz do cavalo branco. Chegando ao acampamento, fomos acolhidos
a tendas especiais que os Ciganos tinham preparado para os dois Chefes, Frei
Simão e o Doutor Pedro. Vi então que todas as disposições
guerreiras estavam tomadas: as tropas de Luís do Triângulo estavam
disseminadas por trás de tudo quanto era pedra o grota que havia no
Tabuleiro, prontas para o que desse e viesse. Mas os Cangaceiros não
vieram naquela noite. Depois é que soubemos o que houvera na Praça:
o Povo, guiado por Lino PedraVerde e vendo que nós nos encaminhávamos
para o alto Tabuleiro situado fora da Vila, compreendeu, instintivamente,
que para lá é que se deviam dirigir todos os que fossem partidários
do rapaz do cavalo branco. Assim, afastaram-se da casa dos Garcia-Barrettos,
abrindo passagem aos Cangaceiros, que, encontrando aberta a porta que assim
fora deixada pelo Doutor Pedro Gouveia, entraram, varejaram tudo e, não
encontrando ninguém, saíram e abandonaram a Vila, conduzindo
seus mortos e feridos. O mesmo fez o Povo que, conduzindo os corpos dos companheiros
que tinham ficado estendidos na Praça, começou a subir o Tabuleiro,
indo se juntar a nós. Assim ‘passamos a noite.: de vez em quando, chegava
um homem do Povo, armado de foice, de espingarda e querendo alistar-se debaixo
da Bandeira do Divino. Da minha tenda, eu ouvia gritos de desafio, por entre
os cantos das excelências rezadas pelos que tinham morrido. Assim, eu
via que, quisesse ou não quisesse, ia, mais uma vez, me ver envolvido
nas lutas da família do velho Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto.
Estavam já delimitados os dois campos, com os partidários de
Arésio na rua, e os de Sinésio no alto Tabuleiro que dominava
a Vila. Ia se travar a luta. Houvera a primeira fase, cuja crispação
mais sangrenta fora o assassinato do velho e austero Rei, morto por degola.
Surgia, agora, outra fase, a daquele enigmático Valete de Copas brotado
do sangue dele e que abria a nova rodada do jogo. Encerrava-se a fase do Crime,
ia começar a da Vingança implacável.”
FOLHETO LXXXV
A Sagração do Gênio Brasileiro Desconhecido
Como Vossas Excelências podem ver pelo tom das minhas palavras finais,
nobres Senhores e belas Damas de peitos macios, eu chegara ao fim do meu depoimento.
Falara durante quatro horas seguidas. O Corregedor notou isso de repente e,
vendo que a noite tinha caído, sentiu-se com o direito de ficar cansado.
Estirou-se, torceu os braços, bocejou, sorriu, pediu desculpas a Margarida
e disse: – Muito bem, a noite já começou! Já está
escuro e é melhor ficarmos por aqui! – É verdade, Excelência!
– concordei. – Além do mais, creio que já falei o suficiente
para demonstrar minha inocência, de modo que peço ao senhor que
me libere de outras sessões de depoimento, principalmente tendo em
vista o meu estado de saúde, que, como o senhor viu, não é
dos melhores.
– O quê, Dom Pedro Dinis Quaderna? – admirou-se o Corregedor, com
ar falso e num tom exagerado de propósito. – É possível?
O senhor quer me deixar, assim, de vez? Nós não concordamos
absolutamente com isso, não é, Dona Margarida? Logo agora, que
tudo está ficando realmente interessante, é que o senhor quer
nos deixar? Coloque o caso em si, Dom Pedro Dinis Qua632 derna! Suponha que
você fosse o Juiz e eu o depoente e acusado.
o senhor chega aqui na Cadeia e ve-se diante da história de um homem
que foi degolado perto de mim. Eu sou um dos herdeiros desse homem e servi
de Conselheiro a ele durante toda a sua vida. No mesmo dia da morte dele,
seu filho mais moço desaparece e depois é encontrado morto.
Desde então, eu passo a profetizar, todo ano, a ressurreição
e a volta desse rapaz, meu primo e sobrinho. Nas vésperas da Revolução
comunista de 1935, aparece, aqui na Vila, uma coluna de Ciganos, chefiada
por dois homens estranhos, que vêm trazendo de volta um rapaz que eles
encontraram na estrada, meio esquecido das coisas, e que, segundo esses homens,
é o filho mais moço daquele homem, filho agora ressuscitado,
como eu tinha predito. Alguém tenta matar o rapaz. O tiro falha, e
o capanga é assassinado, com outro tiro, partido do lugar em que eu
me encontro no momento. Aí, eu volto para a cidade. A luta entre o
rapaz e o irmão mais velho começa, e eu tomo o partido do ressuscitado:
no meio de um tiroteio violento, saio com os Chefes da coluna para o acampamento
de suas tropas, momento que, segundo minhas próprias palavras, encerra
a fase do Crime e inicia a da Vingança. Me diga uma coisa: o que é
que o senhor faria num caso como esse? Fale francamente, Dom Pedro Dinis Quaderna!
Você encerraria o caso, permitindo que eu abandonasse, aí, o
depoimento, ou quereria ouvir ó resto? – Não sei, Senhor Corregedor!
– disse eu, baixando a cabeça, intimidado. – Eu nunca fui Juiz! Por
isso, sou capaz de achar que podia ficar tudo como está, porque talvez
fosse melhor para todos nós! – Ah, não! Que é isso? Coragem,
Dom Pedro Dinis Quaderna! Quer encerrar os depoimentos antes de terminar a
história? Veja que, assim, sem as certidões e por causa do cotoso,
você nunca conseguirá escrever sua Epopéia! – Isso não
significaria grande coisa não, Senhor Corregedor! o até uma
tradição dos Romances epopéicos sertanejos, isso de ficarem
incompletos! Na obra de meu precursor José de Alencar, por exemplo,
é assim que acontece com as Epopéias! O Sertanejo termina sem
acabar, com o mistério da vida do velho Jó sem conclusão
e sem se resolver o amor de Arnaldo Louredo por Dona Flor. O autor, aliás,
está consciente disso, porque termina dizendo assim: “Aqui termina
a história a que dei o título de O Sertanejo.
o mistério que envolve o passado de Jó só depois veio
a revelar-se.
o como esses acontecimentos se prendem intimamente à vida de Arnaldo,
guardo-me para referi-los mais tarde, quando escrever o fim do destemido sertanejo,
cujas proezas foram, por muitos anos, naqueles gerais, o entretenimento dos
Vaqueiros, nos longos serões passados ao relento, durante as noites
de inverno”. Mas José de Alencar morreu antes de contar essa parte
que prometia: nem por isso O Sertanejo deixou de ficar valendo. Ora, Vossa
Excelência há de se lembrar de que o velho Jó era um típico
Profeta sertanejo, barbado e meio doido, como meu Padrinho, enquanto que Arnaldo
Louredo era um perfeito Príncipe sertanejo – jovem, valente e vestido
de gibão, como Sinésio. Assim, não vejo nada de mais
no fato de eu alinhar todos estes acontecimentos que lhe narrei numa ordem
epopéica e depois parar aqui, sem contar o desfecho do amor de Sinésio
e Heliana, a decifração do Crime inexpiável de que foi
vítima o velho Rei Degolado, e a épica Demanda novelosa que
empreendemos, afrontando os perigos e as incertezas do Mar e as emboscadas
e vinditas da áspera e pedregosa Catinga sertaneja. Lembre-se, também,
de que, com O Guarani, sucede coisa parecida: a história termina com
Peri e Ceci agarrados numa palmeira que desce o rio aos trambolhóes,
flutuando ao sabor de uma correnteza furiosa e que se some no horizonte. Muitas
vezes refleti sobre esse fim de romance-epopéico, perguntando a mim
mesmo, aflito: os dois escaparam? Morreram afogados? Depois pensei melhor
e vi que estava colocando mal o problema. Se o caso fosse de estilo raso,
Peri e Ceci morreram de qualquer modo. Se não morreram ali, na hora,
afógados, já estão mortos e enterrados, de velhos, agora,
pois a história deles se passa no século XVI e não tem
quem viva tanto, no mundo. Eles morreram, então, velhos, feios e desdentados,
coisa com a qual não me conformo de jeito nenhum. Mas se o caso é
de estilo régio, então eles não morreram, nem lá,
nem depois. Consumaram aquele amor meio espiritual e meio tarado que tinham
um pelo outro, e permanecem ali, possuindo-se um ao outro no embalo da palmeira,
num amor de divindades, vivos para sempre e eternamente jovens, imortalizados
naquele epopéico momento de romance que é sempre o mesmo, sempre
renovado a cada leitura. Ora, uma vez, li no Almanaque Charadístico
que, entre outras qualidades, o gênio deve ter a da originalidade. O
senhor não vai negar que haveria certa originalidade em eu propor tudo
isso que propus com minha narração, em colocar o pessoal todo
naquela expectativa, com a brigada iniciada, os partidários de Sinésio
dum lado, os de Arésio noutro, e depois deixar tudo aí, em suspenso,
como no fim dos romances de Joséacute; de Alencar. Outra coisa: já
que o senhor mandou que eu supusesse ser o Juiz, peço ao senhor, também,
para supor que eu morra por acaso, antes de lhe dar outro depoimento. Não
haveria nada de estranhável nisso: José de Alencar não
morreu antes de contar o resto da sua história? Meu depoimento teria
que ficar encerrado aqui, mas nem por isso o senhor deixaria de utilizá-lo
no inquérito, não e isso? Quanto à Epopéia, ficaria,
como eu disse, uma história pelo menos original, com essa história
toda iniciada, mas sem conclusão nenhuma, como sucedeu com a história
de Peri e Ceci e como sucede sempre, aliás, na vida! O Corregedor olhou-me
com seus astutos olhos de porco. Quando falou, foi para me dar um bote seguro,
pegando-me pelo meu fraco: – Sim – disse ele – mas aí é que
entraria, mesmo, o senhor, com suas obrigações de Epopeieta,
Gênio da Raça Brasileira e Gênio Máximo da Humanidade!
Se o senhor não for adiante de José de Alencar e de Homero,
que foram geniais mas incompletos, não poderá ultrapassá-los!
Que é isso? Está arricando? Quer perder a briga para esses dois?
Veja que você mesmo foi quem disse que uma Obra, para ser de gênio,
precisa ser régia, modelar, de primeira classe e, sobretudo, completa!
Se o senhor não contar o resto, não poderá obter certidões
sobre tudo, e sua Epopéia ficará original, é certo, mas
incompleta! Aquele homem era mesmo que o Cão! Eu estava encostado à
parede. Falei: – O senhor tem razão; mas é que estou vendo,
Senhor Corregedor, que, para contar tudo, eu vou terminar arriscando o pescoço!
– O destino dos gênios é esse mesmo, Dom Pedro Dinis Quaderna!
A História está cheia da narração dos infortúnios
deles! São, todos, uns infortunados! Principalmente os que carregam
a História de suas pátrias no sangue e nos ombros, como uma
cruz. Aliás, a própria História não passa de uma
narrativa sombria, enigmática e sangrenta, para usar as palavras que
o senhor usou em relação à morte do velho Rei e à
vida de seu sobrinho Sinésio, o rapaz do cavalo branco! Passe uma vista
pela História do Brasil: são massacres, infortúnios,
incestos, morticínios, guerras, calamidades e desgraças de todo
tipo! Toda coroa é manchada de sangue, como o senhor mesmo disse. E
se você aspira, mesmo, a essa coroa de Poeta nacional do Brasil, tem
de jogar sua sorte, e arriscar sua cabeça, juntamente com a sorte do
Brasil! – Está bem! – disse eu, resignado, e, ao mesmo tempo, fatidicamente
impressionado com aquelas palavras agoureiras que o Corregedor ia alinhavando
com ironia, imitando, aqui e ali, meu tom de voz e posando assim de arguto
e espirituoso para Margarida. – Vossa Excelência exige que eu volte…
Se eu não morrer, como José de Alencar morreu, voltarei! – ótimo!
Teremos, então, oportunidade de continuar, aqui, esta nossa conversa,
tão interessante, tão cheia de sugestões e revelações!
O inquérito continua aberto e em suspenso, de modo que, pelo menos
por enquanto, sua Obra ficará assim, em suspenso e aberta, dependendo
sempre de novos depoimentos que o senhor nos prestar. Talvez, até,
ela dure o resto de sua vida e nunca chegue a terminar, de acordo com o teor
do que o senhor tiver para nos dizer! – disse ele com um sorriso cruel, que
me deixou terrificado. – Até amanhã, então! Espero o
senhor aqui, na mesma hora! E, para seu próprio bem, não fale
nada do que eu lhe perguntei, nem do que o senhor me disse, a pessoa nenhuma!
Escute o que estou lhe dizendo: se eu souber que você, de qualquer maneira
que seja, delatou qualquer coisa do que se passou aqui, o senhor será
imediatamente demitido e preso! Até amanhã! – Até amanhã,
Senhor Corregedor! Até amanhã, Margarida! – despedi-me eu, com
ar terno, da moça, que não se dignou responder-me.
Então, nobres Senhores e belas Damas, sal da Cadeia, encaminhando-me
para casa. Com os olhos ainda dotados da estranha vidência que o Vinho
da Pedra do Reino me dera, olhei para os lados da casa do Capitão Clodoveu
Torres Villar, para ver se descobria o dono ou a dona dos olhos amaldiçoados
que tinham causado minha vertigem. Mas não vi ninguém. Teria
sido uma visagem minha? Era impossível descobrir com certeza.
As sombras da noite caíam sobre nossa heróica Vila, trazendo
uma ventania que refrescava cada vez mais e que, daí a pouco, esfriaria
o mundo com o sopro noturno do cariri. Por isso, um cheiro de jasmins e bogaris
já embalsamava o ar, diante dos jardins, das grades e dos portões
por onde eu ia passando, ouvindo vozes o murmúrios no interior das
casas, vendo luzes que se acendiam e barulhos de pratos e talheres, todos
esses rumores familiares que, nessa hora do anoitecer, sempre me dão
um sentimento de exílio o nostalgia. Por outro lado, apesar de tudo
o que me acontecera, de todos os perigos que me ameaçavam, de tudo
o que eu contara de comprometedor, tanta é a força das confissões
que eu estava me sentindo descarregado e purificado – e tudo isso, junto,
me dava uma sensação de solene e nostálgica melancolia.
Como eu não quisesse falar com meus dois rivais e mestres, em vez
de vir diretamente pela Rua Grande, cruzei o Beco dos Villares, de modo a
entrar em minha casa pelo fundo do quintal, que dava para o Chafariz. Também
não fui para a “Estalagem à Távola Redonda”,
onde poderia ter uma refeição melhor, preparada por Maria Safira,
mas onde ficaria muito exposto ao convívio o às perguntagens
dos outros: eu queria ficar só, para pensar melhor em tudo o que me
acontecera.
Consegui passar despercebido e entrar em casa sem ser notado. Chegando,
fui logo para o armário. Peguei uma garrafa do meu Vinho tinto da Malhada,
um bom pedaço de pão, manteiga “de gado” e queijo
de coalho do Cariri, o melhor queijo de cabra quepexiste no mundo, como todos
sabem. Então, assim provido, sentei-me numa espreguiçadeira
e fiquei a repassar muitas coisas na cabeça. Eram lembranças
poéticas e legendárias, que me traziam uma estranha saudade.
Todos aqueles sonhosos acontecimentos – meus amores, os combates e andanças
sertanejas em que me vira metido durante tanto tempo ao lado do velho Rei
demente e degolado da Legenda Ensangüentada do Sertão – desfilavam
diante de mim. Eu via, principalmente, toda a Desaventura novelosa, a Demanda
guerreira e enigmática que tínhamos empreendido, por terra e
por mar, seguindo Sinésio, o Alumioso, e que terminara acabando daquela
maneira cruel e terrível que todo o Sertão conhece. Pensava
também, inquieto, no estranho Processo no qual estava mais uma vez
envolvido. Parecia que meu destino era ser sempre implicado nos casos de crime
e herança daquela minha ilustre e poderosa família materna dos
Garcia-Barrettos. Era como se a Justiça, sem ter condições
de envolver em suas malhas os membros mais importantes daquela Casa real sertaneja,
resolvesse se encarniçar sobre o outro, o legítimo, o Quaderna,
o verdadeiro Rei e Profeta, por saber que eu, arruinado, não tinha
condições para me defender, isto apesar de meus méritos
de Poeta, Astrólogo e Decifrador, e apesar da Raça real do meu
sangue da dra do Reino.
Imperceptivelmente, sem que eu quisesse ou notasse isso, o aspecto real
e político de todos aqueles acontecimentos foi ficando de lado e cedendo
passo ao aspecto poético-literário, muito mais real e embandeirado
do que o outro. Coisas grandiosas, guerreiras e cavalarianas misturavam-se,
insensivelmente, com amores – poéticos e legendários no caso
solar de Sinésio e Heliana, esverdeados e lunares no de Gustavo e Clara,
tigrinos, satúrnicos e subterrâneos no de Arésio e Genoveva.
Na minha cabeça e no meu sangue, amalgamava-se tudo aquilo, de modo
cada vez mais confuso, belo e glorioso. A agradável sensação
do queijo, do pão com manteiga e do vinho – que eu ia engolindo em
grandes nacos e goles – espalhava-se em minhas veias, causando-me um calor,
um torpor e um formigamento no corpo, o que era tanto mais gostoso porquanto,
por fora, eu começava a ser envolvido, já, pelo frio da noite
do velho Sertão do Cariri.
Foi nesse momento que devo ter adormecido, pois a última sensação
mais ou menos lógica que me lembro de ter experimentado foi a de avistar,
em torno da luz baça, da lâmpada suja de poeira e de teias de
aranha, algumas mariposas que esvoaçavam. “Vai chover amanhã,
e o inverno, este ano, parece que vai ser bom!”, pensei comigo mesmo.
E então, adormeci na espreguiçadeira.
Tudo o que eu vinha pensando na minha doce embriaguez se juntou, então,
num sonho só. Eu terminara minha Epopéia, minha Obra de pedra
e cal, edificando, no meio do Reino, o Castelo e Marco sertanejo que tinha
sido o sonho de toda a minha vida. O Reino do Sertão se estendia, agora,
sob um Sol acobreado de crepúsculo, esbraseado, cercado de nuvens cor
de chumbo e orladas de fogo, um Sol que dourava as pedras e muralhas do Chapadão
pedregoso, áspero e solitário, formigante de Peões, bispos,
Rainhas, Reis, torres, cavalos e Cavaleiros – rudes Cavaleiros vestidos com
armaduras de couro medalhadas, gibões, guardapeitos e chapéus
de couro estrelados, e acompanhados pelas belas Damas de copas e espadas que
os amavam. No meio do Reino, fincada sobre uma serra pedregosa e situada entre
os dois rochedos iguais que lhe servia n de torres, a Catedral e castelo da
minha Raça reluzia seus muros afortalezados, a que o Sol dava também
reflexos acobreados, batendo nas pedras esquadrejadas, unidas com a argamassa
do meu sangue.
A obra estava finda, motivo pelo qual ia haver uma cerimônia régia.
A Academia Brasileira de Letras, que não era senão uma espécie
de meu Conselho da Coroa, era formada por Doze Pares do Cordão Encarnado
e outros Doze do Cordão Azul, conforme sua Literatura fosse mais aproximada
ou mais afastada do Povo. Integrava ela, assim, aquele grupo zodiacal e astrológico
de vinte e quatro Anciões, que meu velho e demente companheiro, o Cantador
judaico-sertanejo João de Patmos, tinha visageado na sua Epopéia-Enigmática
e logogrífica, vulgarmente conhecida como “O Apocalipse”.
Era o dia da minha coroação, e lembro-me bem de que a minha
maior alegria era causada pela vitória alcançada sobre meus
dois rivais, o Doutor Samuel Wan d’Ernes e o Bacharel Clemente Hará
de Ravasco Anvérsio. Meus méritos e minha superioridade eram,
agora, indiscutíveis. Saíra da minha condição
inferior de charadista, passando a respirar os ares puros do alto daquela
Serra pedregosa, escarpada e sagrada, que só os gênios são
capazes de escalar e dominar. Eles veriam agora, pela primeira vez em sua
real importáncia, as dimensões e o significado desta Onça,
desta Cobra-Coral que eles tinham caído na tolice de criar, aguçando
meu sangue e meu veneno com suas conversas, suas idéias, seus sonhos,
seus remoques e seus desafios.
E chegava a última Embaixada que ainda estavam aguardando, a delegação
de Doze membros do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano,
os quais, vestidos de Embaixadores mouros da “Nau Catarineta” e
chefiados por Carlos Dias Fernandes e José Rodrigues de Carvalho, tinham
solicitado a honra de, como conterrâneos, me levarem, como Guarda de
Honra, ao recinto do Conselho da Coroa, onde o Arcebispo da Paraíba
iria me coroar. Magnificamente ves638 tido de Rei do “Auto dos Guerreiros”,
eu me punha à frente dos Doze Pares do Reino da Paraíba, e era
assim que fazia minha entrada triunfal na Academia, onde já estavam
os vinte e quatro Anciões, vestidos de Príncipes do “Bomba-meu-Boi”.
O Arcebispo o Paraíba, com um enorme chapéu de Guerreiro – um
chapéu que parecia um templo asiático e era todo enfeitado de
espelhos e de bolas de vidro coloridas -.- vestia uma Opa amarela, semeada
o cruzes azuis e sobre a qual pendia, para suas costas, um manto vermelho,
com Cruz e crescentes de ouro. Ele pegava uma Coroa de louros, cujas folhas
eram de prata. Ia me coroar com ela, quando Rodrigues de Carvalho e Sylvio
Romero – que eram estranhamente parecidos com João Melchíades
e Lino Pedra-Verde – interrompiam, dizendo: – Em nome dos Cantadores e do
Reino, conjuro todos a coroar o nosso Rei com a Coroa de couro e prata do
Sertão, trançada de espinhos de mandacaru e medalhada com folhas
de ouro de Angico, Braúna e Pau-Brasil! O Arcebispo da Paraíba
consultava o Mestre-de-Cerimônias, que não era outro senão
Joaquim Nabuco, sempre amaneirado, diplomatado e~entendido nessas coisas cortesãs.
Joaquim Nabuco, um pouco a contragosto e contrariado em seu cosmopolitismo,
tinha que concordar, “porque essa fora, também, a vontade manifestada
pelo Rei”. Então, acolitado por Dom José de Alencar – Fidalgo
sertanejo da Direita – e por Dom Euclydes da Cunha – Fidalgo sertanejo da
Esquerda – o Arcebispo da Paraíba me coroava finalmente como Rei da
Távola Redonda da Literatura do Brasil, ante a alegria delirante do
Povo Brasileiro e ao som de uma Música sertaneja de tambores, pífanos,
triângulos, violas e rabecas. Eram galopes e repentes-esporeados; o
principal chamavase A Pedra do Reino e era estranhamente parecido com aquele
áspero Piado do Cachorro que tinham tocado no dia da chegada de Sinésio.
Todos os Condes e fidalgos ali reunidos cantavam, com essa música,
uns versos de autoria do genial Vate paraibano Antônio da Cruz Cordeiro
Júnior, versos nos quais, já antevendo a minha Coroação,
ele escrevera, no século XIX:
“De onde vem esse Bardo Peregrino o esse Canto de fogo e do Divino,
de Arcanjos, pedra e Luz? Ante o Genio da Raça o Povo anseia O a grande
Pátria sua Vóz alteia pois o Gênio reluz! Quaderna, perdoa!
Esse delírio quer dizer que teu Genio, aí do Empíreo,
adeja sobre nós!
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