A Obra do Criador de Jeca-Tatu

Lima Barreto

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O criador de Jeca-Tatu é um caso muito curioso nas nossas letras. Tendo uma forte capacidade de trabalho propriamente literário, ele é ainda por cima um administrador excelente, um editor avisado, um ativo diretor de uma revista sem igual no Brasil de hoje, de ontem e não sei se de amanhã.

Não sofro da horrível mania da certeza, de que falava Renan; mas, com reservas, admito que, sejam quais forem as transformações políticas e sociais que o mundo venha a passar, a expressão político-administrativa – Brasil – por muito tempo não subsistirá.

Supondo por absurdo, que as coisas continuem no pé em que estão, a inabilidade, os crimes, as concussões, a falta de escrúpulos de toda a ordem dos nossos dirigentes de norte a sul do país – tudo isto leva a prever para nossa organização política, e isto num lapso de tempo bem curto, um desastre irremediável.

Dizia eu, porém, que o Sr. Monteiro Lobato, o criador de Jeca-Tatu, sabia como ninguém aliar a uma atividade literária pouco comum, um espírito comercial, no bom sentido, dirigindo com sucesso uma revista sem igual na nossa terra.

Ela se publica na cidade de São Paulo e é a Revista do Brasil, já bem conhecida aqui, no Rio de Janeiro.

Com uma clarividência difícil de se encontrar em brasileiro, o Sr. Monteiro Lobato conseguiu atrair para ela a atenção de todas as atividades intelectuais deste vasto país, como diz a canção patriótica, e fazê-la prosperar, como prospera.

Não está no seu primeiro ano, não está no terceiro; está no quinto de sua útil existência – coisa rara entre nós.

Publicando há dois ou três anos um volume de contos – Urupês, o Sr. Lobato, em bem pouco tempo, sem favor algum, logrou ver o seu nome conhecido no Brasil todo e as edições de sua obra se esgotarem umas sobre as outras.

A criação principal de um dos seus contos, aquele que dá o nome ao livro, o famoso Jeca-Tatu, que o uso, e ele mesmo o sancionou, fez Jeca-Tatu andar, pelo menos de nome, em todas as bocas, enquanto o personagem propriamente assanhou a crítica dos quatro pontos cardeais destas terras de Santa Cruz.

Quiseram ver nela o símbolo do nosso roceiro, do nosso sertanejo – “o caboclo” – como se diz por eufemismo, porquanto nele há, de fato, muito de índio, mas há, em compensação, alguma coisa mais. Daí a celeuma. Surgiram contraditores de toda a parte e os mais notáveis, daqueles que conheço e tenho notícia, foram o Sr. Leônidas de Loiola, do Paraná, e o Sr. Ildefonso Albano, do Ceará.

Li o Sr. Loiola, mas não li a contradita do Sr. Albano, que se intitula, se não me falha a memória, Mané Chique-Chique. Creio, porém, que esses senhores se sangraram em saúde. Não acredito absolutamente nas miríficas virtudes dos sertanejos do norte, nem de outra parte do Brasil.

Todos os nortistas, especialmente os cearenses, estão dispostos a fazer deles, senão esforçados “preux”, ao menos tipos de uma energia excepcional, de uma capacidade de trabalho extraordinária e não sei o que mais.

Citam, então, o Acre, criação do cearense exul. Não me convence. Julgo que haveria tenacidade, energia no trabalho, não na emigração, no êxodo, mas na constância em lutar com o flagelo climatérico que assola aquele Estado e os circunvizinhos.

Essa energia, essa tenacidade se faria constante, se, de fato, existissem, para aproveitar os bons anos de chuvas, construindo obras ditadas pela própria iniciativa daquelas gentes, de modo a captar as águas meteóricas e outras, para os anos maus. Mas tal não se dá; e, quando chegam as secas, encontram as populações desarmadas.

A secura dos desertos da Ásia Central fez descer para as margens do mar Negro e outras paragens hordas e hordas; mas o holandês, no seu charco desafiou, com a sua tenacidade e diques, as fúrias do mar do Norte.

De resto, o Sr. Monteiro Lobato não quis simbolizar em Jeca-Tatu, nem o sertanejo, nem coisa alguma.

Ele não tem pretensões simbolistas, como nunca tiveram os grandes mestres da literatura. Tais pretensões são cabíveis nos transcendentes autores que ninguém lê. Ao que me parece, pois só epistolarmente conheço o autor do Urupês, o Sr. Lobato viveu ou nasceu na região a que chamam “norte paulista”, o vale da parte de São Paulo do Paraíba do Sul. É ela que ele descreve com tanta ternura e emoção contida nos seus livros de ficção. Ele viu a sua decadência; ele relembra seu esplendor passado. Certamente, quando menino, brincou lá com aqueles Jecas; e é a sua saudade, é a sua simpatia, é a sua mágoa por não vê-los prósperos, que fez pintá-los como pintou. Isto está a ver-se nas suas Cidades Mortas, livro seu, talvez mais curioso que o famoso Urupês, que tanto escandalizou o patriotismo indígena.

No seu último livro – Negrinha – há um conto – “O jardineiro Timóteo” – que denuncia bem esse seu feitio de sentir.

Deve-se lê-lo para bem perceber o pensamento geral que domina a produção do autor da Bucólica.

Trata-se de um preto, o Timóteo, que era jardineiro de uma fazenda daquelas regiões; aos poucos, esta vai decaindo, por isso ou por aquilo, e, com ela, os antigos senhores e patrões. Timóteo não dá por isto e continua a plantar as suas flores humildes e modestas: esporinhas, flores-de-noiva, amores-perfeitos, sempre-vivas, palmas-de-santa-rita etc.

Os azares da fortuna dos seus proprietários determinam a venda da propriedade agrícola a pessoas da cidade; e os novos donos implicam com as “esporinhas”e “perpétuas” do Timóteo.

Mandam destruir o jardim, pois querem nele flores raras e caras: camélias, crisandálias, crisântemos, etc. O humilde negro despede-se e deixa-se morrer na porteira da fazenda, amaldiçoando aqueles bárbaros: “deixa estar”!

O que o Sr. Monteiro Lobato vê e sente é o seu Taubaté, o seu Guaratinguetá; ele não tem a pretensão de encaixar no seu Jeca-Tatu, Rolandos de Uruburetama, nem Reinaldos bororós, e mais filhos d’Aymon das gestas tupaicas.

Toda a sua obra é simples e boa, animada pela poesia da sua terra, seja ela pobre ou farta, seja agreste ou risonha: mas é cheia de sadia verdade a sua literatura.

A sua visualidade artística e literária, apesar da limitação do campo, abrange um arco de horizonte muito mais amplo do que o do comum dos nossos escritores.

O que se evola de suas palavras não é ódio, não é rancor, não é desprezo, apesar da ironia e da troça; é amor, é piedade, é tristeza de não ver o Jeca em condições melhores.

Basta ler este conto – Negrinha – com que intitula o seu último livro, para nos impregnarmos da sua alma compassiva, descobrir a sua entranhada afeição pelos que sofrem e pensam neste mundo.

Não há no Sr. Monteiro Lobato nenhuma das exterioridades habituais dos escritores: pompa de forma, transbordamentos de vocabulário e de imagens; há um grande sonho íntimo de obter a harmonia entre todos os homens e destes com a Terra, nossa mãe comum.

E, se a Arte, como quer Hegel, é a idéia que se procura, que se acha e que se vai além dela, Monteiro Lobato é um grande e nobre artista.

Gazeta de Noticias, 1 1-5-1921

 

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