Lima Barreto
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A obra do Sr. José Saturnino de Brito já é digna de exame. Entre pequenos e maiores, ela já conta cerca de Oito trabalhos, que são: Socialismo progressivo, A cooperação é um Estado, A pirataria em paroxismo, A Escravidão dos pequenos lavradores e Socialismo pátrio, além das peças: Amor, vence! e Entre neblinas.
Esta última, que foi publicada há dois anos, é deveras interessante, por vários motivos, e muito poeticamente se passa nas Paineiras. O melhor é darmos a palavra ao autor, a fim de que ele mesmo descreva o cenário:
“Stélio se acha no terraço das Paineiras. Escreve, sentado a uma mesa. Vê-se uma parte do hotel, o pavilhão envidraçado à E.. um trecho de bosque à D. O fundo de cena é todo neblina.”
Stélio, que é poeta, artista e revolucionário, escreve e lê isto, depois de escrito:
“A hipocrisia dos que me acolheram entre lisonjas, me julgando rico, correu parelhas com a difamação promovida pelos perversos e o silêncio pretensioso dos falsos críticos; foices de salafrários, por entre a dentuça, expeliram sobre mim o insulto soez, abrindo-se no meu caminho como cloacas humanas.. A esse sonhador solitário, cujo desespero, anunciado no trecho acima, não tardará em transformar-se em desânimo, felizmente, em tão perturbado momento, surge a seus olhos uma verdadeira visão de divindade florestal; e isso ela o é já pela beleza que há de por força ter (o que é sempre indispensável em deuses e deusas seja de que religião for), já pelo mistério do aparecimento.
É Ema que adivinha o sonhador, naquele desconhecido; e pergunta-lhe o que faz.
Pensa nos homens, responde; por isso acodem-lhe maus pensamentos… nesta cavalgata de sombras do abismo social. Ser homem, é bem doloroso!
O tormento do Sr. Saturnino vem daí; isto é, sabe bem qual é a armadura que nos pode proteger; mas sabe também que é daquelas armaduras divinas ou infernais dos romanos de cavalaria que os gênios bons e maus davam aos seus protegidos mas que estes não sabiam forjá-las e nem qualquer outro mortal. Vem de não saber forrar-se de egoísmo; e ei-lo a ceder à fatalidade do seu temperamento, pregando, em prol dos outros, imprecando, amaldiçoando e maldizendo, em nome de um sonho que não toma corpo, que entrevê rapidamente e logo se esvai entre neblinas.
Ele, porém, não cessa de sonhar, de imprecar, de exortar. A sua obra é de profeta da Bíblia e ninguém como ele obedece ao clamor que a injustiça do nosso estado social provoca da indignação dos bons corações.
Surpreendido em colóquio com a druideza, pelo pai desta, o herói do Sr. Saturnino de Brito, ao ancião, que, segundo a filha, “foi simplesmente o terror dos maus que dominam a Beócia”, dá-se a conhecer pela seguinte forma arrebatada:
“Mestre, pertenço ao número dos teus mais veneradores discípulos, aqui, e só me basta a honra de o ser sinceramente. Os apóstolos da regeneração, por meio da educação racional das massas mourejantes e da propaganda geral contra os preconceitos e os abusos do bronco capitalismo, aliado à política de rapina, tiveram também a sua influência entre nós. No teu olhar, no teu gesto, vibra e arde o ideal rubro, o ideal do sangue que só palpita pela Liberdade culta nesse gelo da Sibéria social cm que farejam os lôbos monetários e vaidosos… Aqui as feras que devoram as vítimas do trabalho fecundo são também inúmeras e de todos os matizes…”
Todos os trabalhos do Sr. Saturnino de Brito têm sido dominados por esse pensamento que ele põe na boca do seu Stélio. É só lê-los para o verificar.
O ardor do seu gênio não lhe permite que as suas produções tenham a serenidade de expor fatos, de ordená-los artisticamente, de modo que digam ao leitor mais do que dizem. O autor se apaixona, declama e abandona-se à eloqüência. Ama a metáfora e a alegoria; e não tem o dom da ironia e da sátira.
Tanto nas suas obras de ficção como nas de propaganda, a sua paixão não procura diques; ao contrário, como que se compraz em extravasar por todos os lados. Inunda tudo.
Será defeito; mas também é denúncia da sua qualidade superior de escritor: a sua sinceridade.
O real, como já disse alguém, o aborrece; e, no seu ideal, é que ele vive e faz viver os seus personagens. O mundo dele e das suas criaturas não é este; é um muito outro que se entrevê entre névoas.
Querendo baixar até nós, o Sr. Saturnino fica prosaico e mostra-se logo o escritor que não pode falar em tom familiar e em coisas familiares.
Nesta coletânea de contos, que é a sua última obra e a que intitulou Da Volúpia ao Ideal, o autor do Socialismo Progressivo afirma completamente as tendências principais e superiores da sua atividade intelectual.
Continua a ser o apóstolo disfarçado no literato; e prega com força e eloqüência o seu credo.
O seu sonho grandioso de cooperativismo destinado a melhorar as condições de nossa vida; as afirmações de sua obra – A Cooperativa é um estado – vêm diluídas nas suas novelas a todo o propósito.
O seu conto “Ana”, embora outros também o denunciem, delata poderosamente essa feição primordial do artista que, enquanto dotado esplendidamente de outros dotes, não pode nunca esquecer a sua missão de sociólogo e apóstolo social.
O Sr. Saturnino de Brito, tão enamorado da natureza como é, não ama as almas pelas almas, não se deleita unicamente com o choque de umas nas outras; ele quer contribuir um pouco para encher de esperança os que sofrem e não podem, e convencer os poderosos de que devem trabalhar, para que essa esperança seja um fato, e o mundo, longe de ser a geena que é hoje, venha a ser uma festa perene.
Bendito seja tão nobre e desinteressado escritor! Ele vale pelo que vale o seu pensamento, e este é grande, e é belo!
A.B.C., 5-2-1921
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