A Mão no Ombro

Lygia Fagundes Telles

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O homem estranhou aquele céu verde-cinza com a lua de cera coroada por um fino galho de árvore, as folhas se desenhando nas minúcias sobre o fundo opaco. Era uma lua ou um sol apagado? Difícil saber se estava anoitecendo ou se já era manhã no jardim que tinha a luminosidade fosca de uma antiga moeda de cobre. Estranhou o perfume úmido de ervas. E o silêncio cristalizado como num quadro, com um homem (ele próprio) fazendo parte do cenário. Foi andando pela alameda atapetada de folhas cor de brasa mas não era outono. Nem primavera porque faltava às flores o hálito doce avisando as borboletas, não viu borboletas. Nem pássaros. Abriu a mão no tronco da figueira viva mas fria: um tronco sem formigas e sem resina, não sabia por que motivo esperava encontrar a resina vidrada nas gretas, não era verão. Nem inverno, embora a frialdade limosa das pedras o fizesse pensar no sobretudo que deixou no cabide do escritório. Um jardim fora do tempo mas dentro do meu tempo, pensou.

O húmus que subia do chão impregnava do mesmo torpor da paisagem. Sentiu-se oco, a sensação de leveza se misturando ao sentimento inquietante de um ser sem raízes: se abrisse as veias não sairia nenhuma gota de sangue, não sairia nada. Apanhou um folha. Mas que jardim era esse? Nunca estivera ali nem sabia como o encontrara. Mas sabia – e com que força – que a rotina fora quebrada porque alguma coisa ia acontecer, o quê?! Sentiu o coração disparar. Habituara-se tanto ao cotidiano sem imprevistos, sem mistério. E agora, a loucura desse jardim atravessado em seu caminho. E com estátuas, aquilo não era uma estátua?

Aproximou-se da mocinha de mármore arregaçando graciosamente o vestido para não molhar nem a saia nem os pés descalços. Uma mocinha medrosamente fútil no centro do tanque seco, pisando com cuidado, escolhendo as pedras amontoadas em redor. Mas os pés delicados tinham os vãos dos dedos corroídos por uma época em que a água chegava até eles. Uma estria negra lhe descia do alto da cabeça, deslizava pela face e se perdia ondulante no rego dos seios meio descobertos pelo corpete desatado. Notou que a estria marcara mais profundamente a face, devorando-lhe a asa esquerda do nariz, mas por que a chuva se concentrara só naquele percurso numa obstinação de goteira? Ficou olhando a cabeça encaracolada, os anéis se despencando na nuca que pedia carícia. Me dá sua mão que eu ajudo, ele disse e recuou: um inseto penugento, num enrodilhamento de aranhas, foi saindo de dentro da pequenina orelha.

Deixou cair a folha seca, enfurnou as mãos nos bolsos e seguiu pisando com a mesma prudência da estátua. Contornou o tufo de begônias, e vacilou entre os dois ciprestes (mas o que significava essa estátua?) e enveredou por uma alameda que lhe pareceu menos sombria. Um jardim inocente. E inquietante como o jogo de quebra-cabeça que o pai gostava de jogar com ele: no caprichoso desenho de um bosque estava o caçador escondido, tinha que achá-lo depressa para não perder a partida, vamos, filho, procura nas nuvens, na árvore, não está ele enfolhado naquele ramo? No chão, veja no chão, não forma um boné a curva ali do regato?

Está na escada, ele respondeu. Esse caçador singularmente familiar que viria por detrás, na direção do banco de pedra onde ia se sentar, logo ali adiante tinha um banco. Para não me surpreender desprevenido (detestava surpresas) discretamente ele dará algum sinal antes de pousar a mão no meu ombro. Então eu me viro para ver. Estacou. A revelação o fez cambalear, esvaído numa vertigem: agora joelhos no chão. Seria como uma folha tombando em seu ombro mas se olhasse para trás, se atendesse o chamado. Foi endireitando o corpo. Passou as mãos nos cabelos. Sentia-se observado pelo jardim, julgado até pela roseira de rosas miúdas sorrindo reticente logo adiante. Envergonhou-se. Meu Deus, murmurou num tom de quem pede desculpas por ter entrado em pânico assim com essa facilidade, meu Deus, que papel miserável, e se for um amigo? Simplesmente um amigo? Começou a assobiar e as primeiras notas da melodia o transportaram ao menino antigo com sua roupa de Senhor dos Passos na procissão da Sexta-feira Santa. O Cristo cresceu no esquife de vidro, oscilando suspenso sobre as cabeças, me levanta, mãe, quero ver! Mas continuava alto demais tanto na procissão como depois, lá na igreja, deposto no estrado de panos roxos, fora do esquife para o beija-mão. O remorso velando as caras. O medo atrofiando a marcha dos pés tímidos atrás do Filho de Deus, o que nos espera se até Ele?!… A vontade de que o pesadelo passasse logo e amanhecesse sábado, ressuscitar no sábado! Mas a hora ainda era a da banda de batas pretas. Das tochas. Dos turíbulos atirados para os lados, vupt! vupt! até o extremo das correntes. Falta muito, mãe? A vontade de evasão de tudo quanto era grave e profundo certamente vinha dessa noite: os planos de fuga na primeira esquina, desvencilhar-se da coroa de falsos espinhos, da capa vermelha, fugir do Morto tão divino, mas morto~A procissão seguiu por ruas determinadas, era fácil se desviar dela, descobriu mais tarde. O que continuava difícil era fugir de si mesmo. No fundo secreto, fonte de ansiedade, era sempre noite – os espinhos verdadeiros lhe espetando a carne, ô! por que não amanhece? Quero amanhecer!

Sentou-se no banco verde de musgo, tudo em redor mais quieto e mais úmido agora que chegara ao âmago do jardim. Correu as pontas dos dedos no musgo e achou-o sensível como se lhe brotasse da própria boca. Examinou as unhas. E abaixou-se para tirar a teia de aranha que se colara despedaçada à bainha da calça: o trapezista de malha branca (foi na estréia do circo?) despencou do trapézio lá em cima, varou a rede e se estatelou no picadeiro. A tia tapou-lhe depressa os olhos, não olha, querido! mas por entre os dedos enluvados viu o corpo se debater sob a rede que foi arrastada na queda. As controsões se espaçaram até a imobilidade, só a perna de inseto vibrando ainda. Quando a tia o carregou para fora do circo, o pé em ponta escapava pela rede estraçalhada num último estremecimento. Olhou para o próprio pé adormecido, tentou movê-lo. Mas a dormência já subia até o joelho. Solidário, o braço esquerdo adormeceu em seguida, um pobre braço de chumbo, pensou enternecido com a lembrança de quando aprendera que alquimia era transformar metais vis em ouro, o chumbo era vil? Com a mão direita, recolheu o braço que pendia, avulso. Bondosamente colocou-o sobre os joelhos: já não podia fugir. E fugir para onde se tudo naquele jardim parecia dar na escada? Por ela viria o caçador de boné, eterno habitante de um jardim eterno, só ele mortal. A exceção. E se cheguei até aqui é porque vou morrer. Já? horrorizou-se olhando para os lados mas evitando olhar para trás. A vertigem o fez fechar de novo os olhos. Equilibrou-se tentando se agarrar ao banco, não quero! gritou. Agora não, meu Deus, espera um pouco, ainda não estou preparado! Calou-se, ouvindo os passos que desciam tranqüilamente a escada. Mais tênue do que a brisa um sopro pareceu reavivar a alameda. Agora está nas minhas costas, ele pensou e sentiu o braço se estender na direção do seu ombro. Ouviu a mão ir baixando numa crispação de quem (familiar e contudo cerimonioso) dá um sinal, sou eu. O toque manso. Preciso acordar, ordenou se contraindo inteiro, isto é apenas um sonho! Preciso acordar! acordar. Acordar, ficou repetindo. Abriu os olhos.

Demorou um pouco para reconhecer o travesseiro que apertava contra o peito. Limpou a baba morna que lhe escorria pelo queixo e puxou o cobertor até os ombros. Que sonho! Murmurou abrindo e fechando a mão esquerda, formigante, pesada. Estendeu a perna e quis contar-lhe o sonho do jardim com a morte vindo por detrás: sonhei que ia morrer. Mas ela podia gracejar, a novidade não seria sonhar o contrário? Viou-se para a parede. Não queria nenhum tipo de resposta do gênero bem humorado, como era irritante quando ela exibia seu humor. Gostava de se divertir à custa dos outros mas se encrespava quando se divertiam à sua custa. Massageou o braço dolorido e deu uma vaga resposta quando ela lhe perguntou que gravata queria usar, estava um dia lindo. Era dia ou noite no jardim? Tantas vezes pensara na morte dos outros, entrara mesmo na intimidade de algumas dessas mortes e jamais imaginou que pudesse lhe acontecer o mesmo, jamais. Um dia, quem sabe? Um dia lá longe, mas tão longe que a vista não alcançava essa lonjura, ele próprio se perdendo na poeira de uma velhice remota, diluído no esquecimento. No nada. E agora, nem cinqüenta anos. Examinou o braço. Os dedos. Levantou-se molemente, vestiu o chambre, não era estranho? Isso de não ter pensado em fugir do jardim. Voltou-se para a janela e estendeu a mão para o Sol. Pensei, é claro, mas a perna desatarraxada e o braço advertindo que não podia escapar porque todos os caminhos iam dar na escada, que não havia nada a fazer senão ficar ali no banco, esperando o chamado que viria por detrás, de uma delicadeza implacável. E então? Perguntou-lhe a mulher. Assustou-se. Então o quê?! Ela passava creme na cara, fiscalizando-o através do espelho, mas ele não ia fazer sua ginástica? Hoje não, disse massageando de leve a nuca, chega de ginástica. Chega também de banho? ela perguntou enquando dava tapinhas no queixo. Ele calçou os chinelos: se não estivesse tão cansado, poderia odiá-la. E como desafina! (agora ela cantarolava), nunca teve bom ouvido, a boz até que é agradável mas se não tem bom ouvido… Parou no meio do quarto: o inseto saindo do ouvido da estátua não seria um sinal? Só o inseto se movimentando no jardim parado. O inseto e a morte. Apanhou o maço de cigarro mas deixou-o, hoje fumaria menos. Abriu os braços: esse dolorimento na gaiola do peito era real ou memória do sonho?

Tive um sonho, ele disse passando por detrás da mulher e tocando-lhe o ombro. Ela afetou curiosidade no leve arquear das sobrancelhas, um sonho? e recomeçou a espalhar o creme em torno dos olhos, preocupada demais com a própria beleza para pensar em qualquer coisa que não tivesse ligação com essa beleza. Que já está perdendo o viço, ele resmungou ao entrar no banheiro. Examinou-se no espelho: estava mais magro ou essa imagem era apenas um eco multiplicador do jardim?

Cumpriu a rotina da manhã com uma curiosidade comovida, atento aos menores gestos, os gestos que sempre repetiu automaticamente e que agora analisava, fragmentando-os em câmera lenta, como se fosse a primeira vez que abria uma torneira. Podia também ser a última. Fechou-a, mas que sentimento era esse? Despedia-se e estava chegando. Ligou o aparelho de barbear, examinou-o através do espelho e num movimento caricioso aproximou-o da face: não sabia que amava assim a vida. Essa vida da qual falava com tamanho sarcasmo, com tamanho desprezo. Acho que ainda não estou preparado, foi o que tentei dizer, não estou preparado. Seria uma morte repentina, coisa do coração – mas não é o que eu detesto? O imprevisto, a mudança dos planos. Enxugou-se com indulgente ironia: exatamente isso era o que todos diziam. Os que iam morrer. E nunca pensaram sequer em se preparar, até o avô velhíssimo, quase cem anos e alarmado com a chegada do padre, mas está na hora? Já?

Tomou o café em goles miúdos, como era gostoso o primeiro café. A manteiga se derretendo no pão aquecido. O perfume das maçãs de prazeres. Baixou o olhar para a mesa posta: os pequeninos objetos. Ao entregar-lhe o jornal, a mulher lembrou que tinham dois compromissos para a noite, um coquetel e um jantar, e se emendássemos? Ela sugeriu. Sim, emendar, ele disse. Mas não era o que faziam durante anos e anos, sem interrupção? O brilhante fio mundano era desenrolado infinitamente, dia após dia, sim, emendaremos, repetiu. E afastou o jornal: mais importante do que todos os jornais do mundo era agora o raio de sol entrando pela janela até respassar as uvas do prato. Colheu um bago cor de mel e pensou que se houvesse uma abelha no jardim do sonho, ao menos uma abelha, podia ter esperança. Olhou para a mulher que passava geléia de laranja na torrada, uma gota amarelo-ouro escorrendo-lhe pelo dedo e ela rindo e lambendo o dedo, há quanto tempo tinha acabado o amor? Ficara esse jogo. Essa acomodada representação já em decadência por desfastio, preguiça. Estendeu a mão para acariciar-lhe a cabeça, que pena, disse. Ela voltou-se, pena por quê? Ele demorou o olhar nos seus cabelos encaracolados, como os da estátua: uma pena aquele inseto, disse. E a perna ficar metálica na metamorfose final, não se importe, estou delirando. Serviu-se de mais café. Mas estremceu quando ela lhe perguntou se por acaso não estava atrasado.

último? Beijou o filho de uniforme azul, entretido em arrumar a pasta do colégio, exatamente como fizera na véspera. Como se não souvesse que naquela manhã (ou noite?) o pai quase olhara a morte nos olhos. Mais um pouco e dou de cara com ela, segredou ao menino que não ouviu, conversava com o copeiro. Se não acordo antes, disse num tom forte e a mulher se debruçou na jenala para avisar ao motorista que tirasse o carro. Vestiu o paletó: podia dizer o que quisesse, ninguém se interessava. E por acaso eu me interesso pelo que dizem ou fazem? Afagou o cachorro que veio saudá-lo com uma alegria tão cheia de saudade que se comoveu, não era extraordinário? A mulher, o filho, os empregados – todos continuavam impermeáveis, só o cachorro pressentira o perigo com seu faro visionário. Acendeu o cigarro, atento à chama do palito queimando até o fim. Vagamente, de algum cômodo da casa, veio a voz do locutor de rádio na previsão do tempo. Quando se levantou, a mulher e o filho já tinham saído. Ficou olhando o café esfriando no fundo da xícara. O beijo que lhe deram foi tão automático que nem sequer se lembrava de ter sido beijado. Telefone para o senhor, o copeiro veio avisar. Encarou-o: há mais de três anos aquele homem trabalhava ali ao lado e quase nada sabia sobre ele. Baixou a cabeça, fez um gesto de quem se recusa e se desculpa. Tanta pressa nas relações dentro de casa. Lá fora, um empresário de sucesso casado com uma mulher na moda. A outra fora igualmente ambiciosa mas não tinha charme e era preciso charme para investir nas festas, nas roupas. Investir no corpo, a gente tem que se preparar como se todos os dias tivesse um encontro de amor, ela repetiu mais de uma vez, olha aí, não me distraio, nenhum sinal de barriga! A distração era de outro gênero. O doce distraimento de quem tem a vida pela frente, mas não tenho? Deixou cair o cigarro dentro da xícara: agora, não mais. O sonho interrompera o fluxo da sua vida no corte do jardim. O incrível sonho fluindo tão natural apesar da escada com seus degraus esburacados de tão gastos. Apesar dos passos do caçador embutido, pisando na areia da malícia fina até o toque no ombro: vamos?

Entrou no carro, ligou o contato. O pé esquerdo resvalou para o lado, recusando-se a obedecer. Repetiu o comando com mais energia e o pé resistindo. Tentou mais vezes. Não perder a calma, não se afobar, foi repetindo enquanto desligava a chave. Fechou o vidro. O silêncio. A quietude. De onde vinha esse perfume de ervas úmidas? Descansou no assento as mãos desinteressadas. A paisagem foi se aproximando numa aura de cobre velho, estava clareando ou escurecia? Levantou a cabeça para o céu esverdinhado, com a lua de calva exposta, coroada de folhas. Vacilou na alameda bordejada pela folhagem escura, mas o que é isso, estou no jardim? De novo? E agora, acordado, espantou-se, examinando a gravata que ela escolhera para esse dia. Tocou na figueira, sim, outra vez a figueira. Enveredou pela alameda: um pouco mais e chegaria ao tanque seco. A moça dos pés cariados ainda estava em suspenso, sem se decidir, com medo de molhar os pés. Como ele mesmo, tanto cuidado em não se comprometer nunca, em não assumir a não ser as superfícies. Uma vela para Deus, outra para o Diabo. Sorriu das próprias mãos abertas, se oferecendo. Passei a vida asism, pensou, mergulhando-as nos bolsos num desesperado impulso de aprofundamento. Afastou-se antes que o inseto fofo irrompesse de dentro da pequenina orelha, não era absurdo? Isso da realidade imitar o sonho num jogo onde a memória se sujeitava ao planificado. Planificado por quem? Assobiou e o Cristo da procissão foi se esboçando no esquife indevassável, tão alto. A mãe enrolou-0 depressa no xale, a roupa do Senhor dos Passos era leve e tinha esfriado, está com frio, filho? Tudo se passava mais rápido ou era apenas impressão? A marcha funeral se precipitou em meio das tochas e correntes soprando fumaça e brasa. E se eu tivesse mais uma chance? gritou. Tarde porque o Cristo já ia longe.

O banco no centro do jardim. Afastou a teia despedaçada e entre os dedos musgosos como o banco, vislumbrou o corpo do antigo trapezista enredado nos fios da rede, só a perna viva. Fez-lhe um afago e a perna não reagiu. Sentiu o braço tombar, metálico, como era a alquimia? Se não fosse o chumbo derretido que lhe atingia o peito, sairia rodopiando pela alameda, descobri! Descobri. A alegria era quase insuportável: da primeira vez, escapei acordando. Agora, vou escapar dormindo. Não era simples? Recostou a cabeça no espaldar do banco, mas não era sutil? Enganar assim a morte saindo pela porta do sono. Preciso dormir, murmurou fechando os olhos. Por entre a sonolência verde-cinza viu que retomava o sonho no ponto exato em que fora interrompido. A escada. Os passos. Sentiu o ombro tocado de leve. Voltou-se.

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