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I – Advertência
Desde a página 126, até o final, as provas deste livro não
foram revistas pelo autor, arrebatado pela morte antes de haver dado a esta
parte da sua escrita aquela última demão, em que habitualmente
ele punha a diligência mais perseverante e mais admiravelmente lúcida.
Aquele dos seus amigos e companheiro de letras, a quem foi confiado o trabalho
delicado e piedoso de tocar no manuscrito póstumo de Eça de
Queirós, ao concluir o desempenho de tal missão, beija com o
mais enternecido e saudoso respeito a mão, para todo o sempre imobilizada,
que traçou estas páginas encantadoras; e faz votos pôr
que a revisão de que se incumbiu não deslustre muito grosseiramente
a imortal auréola com que resplandecendo na literatura portuguesa este
livro, em que o espírito do grande escritor parece exalar-se da vida
num terno suspiro de doçura, de paz, e de puro amor à terra
da sua pátria.
24 de abril de 1901.
I
O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de
renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.
No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes
ondulando pôr e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas,
delimitavam os campos desta velha família agrícola que já
entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei d.Dinis. A sua
Quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo douro, cobriam uma serra. Entre
o Tua e o Tinhela, pôr cinco fartas léguas, todo o torrão
lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até
ao mar de âncora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde
sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios, nº.202.
Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem
chamavam em Lisboa o D.Galião, descendo uma tarde pela travessa da
Trabuqueta, rente dum muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou
numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía
nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão
verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil,
levantou o enorme Jacinto – até lhe apanhou a bengala de castão
de ouro que rolara para o lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos
e pretos:
– Ó Jacinto Galião, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar
pelas pedras?
E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o sr. Infante D. Miguel!
Desde essa tarde amou aquele bom Infante como nunca amara, apesar de tão
guloso, o seu ventre, e apesar de tão devoto o seu Deus! Na sala nobre
da sua casa (à Pampulha) pendurou sobre os damascos o retrato do “seu
Salvador”, enfeitado de palmitos como um retábulo e, pôr
baixo a bengala que as magnânimas mãos reais tinham erguido do
lixo. Enquanto o adorável, desejado Infante penou no desterro de Viena,
o barrigudo senhor corria, sacudido na sua sege amarela, do botequim do Zé
Maria em Belém à botica do Plácido nos Algibebes, a gemer
as saudades do anjinho, a tramar o regresso do anjinho. No dia, entre todos
benedito, em que a Pérola apareceu à barra com o Messias, engrinaldou
a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papelão e lona onde D.
Miguel, tornado S. Miguel, branco, de auréola e asas de Arcanjo, furava
de cima do seu corcel de Alter o Dragão do Liberalismo, que se estorcia
vomitando a Carta. Durante a guerra com o “outro, com o pedreiro-livre”
mandava recoveiros a Santo Tirso, a S.Gens, levar ao Rei fiambres, caixas
de doce, garrafas do seu vinho de Tarrafal, e bolsas de retrós atochadas
de peças que ele ensaboava para lhes avivar o ouro. E quando soube
que o sr. Miguel, com dois velhos baús amarrados sobre um macho, tomara
o caminho de Sines e do final desterro – Jacinto Galião correu pela
casa, fechou todas as janelas como num luto, berrando furiosamente:
– Também cá não fico! Também cá não
fico!
Não, não queria ficar na terra perversa de onde partia, esbulhado
e escorraçado, aquele Rei de Portugal que levantava na rua os Jacintos!
Embarcou para França com a mulher, a Srª. D. Angelina Fafes (da
tão falada casa dos Fafes da Avelã); com o filho, o Cintinho,
menino amarelinho, molezinho, coberto de caroços e leicenços;
com a aia e com o moleque. Nas costas da Cantábria o paquete encontrou
tão rijos mares que a Srª. D. Angelina, esguedelhada, de joelhos
na enxerga do beliche, prometeu ao Senhor dos Passos de Alcântara uma
coroa de espinhos, de ouro, com as gotas de sangue em rubis do Pegu. Em Baiona,
onde arribaram, Cintinho teve icterícia. Na estrada de Orleães,
numa noite agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam partiu, e o nédio
senhor, a delicada senhora da casa da Avelã, o menino, marcharam três
horas na chuva e na lama do exílio até uma aldeia, onde, depois
de baterem como mendigos a portas mudas, dormiam nos bancos duma taberna.
No “Hotel dos Santos Padres”, em Paris, sofreram os terrores dum
fogo que rebentara na cavalariça, sob o quarto de D.Galião,
e o digno fidalgo, rebolando pelas escadas em camisa, até ao pátio,
enterrou o pé nu numa lasca de vidro. Então ergueu amargamente
ao Céu o punho cabeludo, e rugiu:
– Irra! É demais!
Logo nessa semana, sem escolher, Jacinto Galião comprou a um príncipe
polaco, que depois da tomada de Varsóvia se metera frade cartuxo, aquele
palacete dos Campos Elísios, nº.202. E sob o pesado ouro dos seus
estuques, entre as suas ramalhudas sedas se enconchou, descansando de tantas
agitações, numa vida de pachorra e de boa mesa, com alguns companheiros
de emigração (o desembargador Nuno Velho, o conde de Rabacena,
outros menores), até que morreu de indigestão, duma lampreia
de escabeche que mandara o seu procurador em Montemor. Os amigos pensavam
que a Srª. D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a boa senhora temia
a jornada, os mares, as caleças que racham. E não se queria
separar do seu Confessor, nem do seu Médico, que tão bem lhe
compreendiam os escrúpulos e a asma.
– Eu, pôr mim, aqui fico no 202 (declarara ela), ainda que me faz falta
a boa água de Alcolena…
O Cintinho, esse, em crescendo, que decida.
O Cintinho crescera. Era um moço mais esguio e lívido que um
círio, de longos cabelos corredios, narigudo, silencioso, encafuado
em roupas pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, pôr causa
da tosse e de sufocações, errava em camisa com uma lamparina
através do 202; e os criados na copa sempre lhe chamavam a Sombra.
Nessa sua mudez e indecisão de sombra surdira, ao fim do luto do papá,
o gosto muito vivo de tornear madeiras ao torno; depois, mais tarde, com a
medida flor dos seus vinte anos, brotou nele outro sentimento, de desejo e
de pasmo, pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma
rola, educada num convento de Paris, e tão habilidosa que esmaltava,
dourava, consertava relógios e fabricava chapéus de feltro.
No Outono de 1851, quando já se desfolhavam os castanheiros dos Campos
Elísios, o Cintinho cuspilhou sangue. O médico acarinhando o
queixo e com uma ruga séria na testa imensa, aconselhou que o menino
abalasse para o golfo Juan ou para as tépidas areias de Arcachon.
Cintinho, porém, no seu aferro de sombra, não se quis arredar
da Teresinha Velho, de quem se tornara, através de Paris, a muda, tardonha
sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu um
resto de sangue; e passou, como uma sombra.
Três meses e três dias depois do seu enterro o meu Jacinto nasceu.
Desde o berço, onde a avó espalhava funcho e âmbar para
afugentar a Sorte-Ruim, Jacinto medrou com a segurança, a rijeza, a
seiva rica dum pinheiro das dunas.
Não teve sarampo e não teve lombrigas. As letras, a Tabuada,
o Latim entraram pôr ele tão facilmente como o sol pôr
uma vidraça. Entre os camaradas, nos pátios dos colégios,
erguendo a sua espada de lata e lançando um brado de comando, foi logo
o vencedor, o Rei que se adula, e a quem se cede a fruta das merendas. Na
idade em que se lê Balzac e Musset nunca atravessou os tormentos da
sensibilidade; – nem crepúsculos quentes o retiveram na solidão
duma janela, padecendo dum desejo sem forma e sem nome. Todos os seus amigos
(éramos três, contando o seu velho escudeiro preto, o Grilo)
lhe conservaram sempre amizades puras e certas – sem que jamais a participação
do seu luxo as avivasse ou fossem desanimadas pelas evidências do seu
egoísmo. Sem coração bastante forte para conceber um
amor forte, e contente com esta incapacidade que o libertava, do amor só
experimentou o mel – esse mel que o amor reserva aos que o recolhem, à
maneira das abelhas, com ligeireza, mobilidade e cantando. Rijo, rico, indiferente
ao Estado e ao Governo do Homens, nunca lhe conhecemos outra ambição
além de compreender bem as Idéias Gerais; e a sua inteligência,
nos anos alegres de escolas e controvérsias, circulava dentro das Filosofias
mais densas como enguia lustrosa na água limpa dum tanque. O seu valor,
genuíno, de fino quilate, nunca foi desconhecido, nem desaparecido;
e toda a opinião, ou mera facécia que lançasse, logo
encontrava uma aragem de simpatia e concordância que a erguia, a mantinha
embalada e rebrilhando nas alturas. Era servido pelas coisas com docilidade
e carinho; – e não recordo que jamais lhe estalasse um botão
da camisa, ou que um papel maliciosamente se escondesse dos seus olhos, ou
que ante a sua vivacidade e pressa uma gaveta pérfida emperrasse. Quando
um dia, rindo com descrido riso da Fortuna e da sua roda, comprou a um sacristão
espanhol um Décimo de Lotaria, logo a Fortuna, ligeira e ridente sobre
a sua roda, correu num fulgor, para lhe trazer quatrocentas mil pesetas. E
no céu as Nuvens, pejadas e lentas se avistavam Jacinto sem guarda-chuva,
retinham com reverência as suas águas até que ele passasse…
Ah! O âmbar e o funcho da Srª.D. Angelina tinham escorraçado
do seu destino, bem triunfalmente e para sempre, a Sorte-Ruim! A amorável
avó (que eu conheci obesa, com barba) costumava citar um soneto natalício
do desembargador Nunes Velho contendo um verso de boa lição:
Sabei, senhora que esta vida é um rio….
Pois um rio de Verão, manso, translúcido, harmoniosamente estendido
sobre uma areia macia e alva, pôr entre arvoredos fragrantes e ditosas
aldeias, não ofereceria àquele que o descesse num barco de cedro,
bem toldado e bem almofadado, com frutas e Champanhe a refrescar em gelo,
um Anjo governando ao leme, outros Anjos puxando à sirga, mais segurança
e doçura do que a Vida oferecia ao meu amigo Jacinto.
Pôr isso nós lhe chamávamos “o Príncipe
da Grã-Ventura”!
Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos
em Paris, nas Escolas do Bairro Latino – para onde me mandara meu bom tio
Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, quando aqueles malvados me riscaram
da Universidade pôr eu ter esborrachado, numa tarde de procissão,
na Sofia, a cara sórdida do dr. Pais Pita. Ora nesse tempo Jacinto
concebera uma idéia… Este Príncipe concebera a idéia
de que o “homem só é superiormente feliz quando é
superiormente civilizado”. E pôr homem civilizado o meu camarada
entendia aquele que, robustecendo a sua força pensante com todas as
noções adquiridas desde Aristóteles, e multiplicando
a potência corporal dos seus órgãos com todos os mecanismos
inventados desde Terâmenes, criador da roda, se torna um magnífico
Adão, quase onipotente, quase onisciente, e apto portanto a recolher
dentro duma sociedade, e nos limites do Progresso (tal) como ele se comportava
em 1875) todos os gozos e todos os proveitos que resultam de Saber e Poder…
Pelo menos assim Jacinto formulava copiosamente a sua idéia, quando
conversávamos de fins e destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos,
sob o toldo das cervejarias filosóficas, no Boulevard Saint-Michel.
Este conceito de Jacinto impressionara os nossos camaradas de cenáculo,
que tendo surgido para a vida intelectual, de 1866 a 1875, entre a batalha
de Sadova e a batalha de Sedan e ouvindo constantemente, desde então,
aos técnicos e aos filósofos, que fora a Espingarda-de-agulha
que vencera em Sadova e fora o Mestre-de-escola quem vencera em Sedan, estavam
largamente preparados a acreditar que a felicidade dos indivíduos,
como a das nações, se realiza pelo ilimitado desenvolvimento
da Mecânica e da erudição. Um desses moços mesmo,
o nosso inventivo Jorge Carlande, reduzira a teoria de Jacinto, para lhe facilitar
a circulação e lhe condensar o brilho, a uma forma algébrica:
Suma ciência
X = Suma felicidade
Suma potência
E durante dias, do Odeon à Sorbona, foi louvada pela mocidade positiva
a Equação Metafísica de Jacinto.
Para Jacinto, porém, o seu conceito não era meramente metafísico
e lançado pelo gozo elegante de exercer a razão especulativa:
– mas constituía uma regra, toda de realidade e de utilidade, determinando
a conduta, modalizando a vida. E já a esse tempo, em concordância
com o seu preceito – ele se surtira da Pequena Enciclopédia dos Conhecimentos
Universais em setenta e cinco volumes e instalara, sobre os telhados do 202,
num mirante envidraçado, um telescópio. Justamente com esse
telescópio me tornou ele palpável a sua idéia, numa noite
de Agosto, de mole e dormente calor. Nos céus remotos lampejavam relâmpagos
lânguidos. Pela Avenida dos Campos Elísios, os fiacres rolavam
para as frescuras do Bosque, lentos, abertos, cansados, transbordando de vestidos
claros.
– Aqui tens tu, Zé Fernandes (começou Jacinto, encostado à
janela do mirante), a teoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos
que recebemos da Madre natureza, lestos e sãos, nós podemos
apenas distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma
vidraça alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus olhos juntar
os dois vidros simples dum binóculo de corridas, percebo, pôr
trás da vidraça, presuntos, queijos, boiões de geléia
e caixas de ameixa seca. Concluo portanto que é uma mercearia. Obtive
uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês
só o luzir da vidraça, uma vantagem positiva. Se agora, em vez
destes vidros simples, eu usasse os do meu telescópio, de composição
mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os
mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia dum astro
que circula a milhares de léguas dos Campos Elísios. É
outra noção, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo, o
da Natureza, elevado pela Civilização à sua máxima
potência de visão. E desde já, pelo lado do olho portanto,
eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades
do Universo que ele não suspeita e de que está privado. Aplica
esta prova a todos os órgãos e compreenderás o meu princípio.
Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira
pela incansável acumulação das noções,
só te peço que compares Renan e o Grilo… Claro é portanto
que nos devemos cercar da Civilização na máximas proporções
para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver.
Agora concordas, Zé Fernandes?
– Não me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz
que o Grilo; nem eu percebia que vantagem espiritual ou temporal se colha
em distinguir através do espaço manchas num astro, ou através
da Avenida dos Campos Elísios presuntos numa vidraça. Mas concordei,
porque sou bom, e nunca desalojarei um espírito do conceito onde ele
encontra segurança, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o colete,
e lançando um gesto para o lado do café e das luzes:
– Vamos então beber, nas máximas proporções,
brandy and soda, com gelo?
Pôr uma conclusão bem natural, a idéia de Civilização,
para Jacinto, não se separava da imagem de Cidade, duma enorme Cidade,
com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem
este meu supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos
pôr três mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergéis
e lezírias de trinta províncias; e de Bancos em que retine o
ouro universal; e de Fábricas fumegando com ânsia, inventando
com ânsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos
séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, pôr baixo e pôr
cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases,
de canos de fezes; e da fila atroante dos ônibus, tramas, carroças,
velocípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões
duma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar, através da Polícia,
na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo – o homem do século
XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver!
Quando Jacinto, no seu quarto do 202, com as varandas abertas sobre os lilases,
me desenrolava estas imagens, todo ele crescia, iluminado. Que criação
augusta, a da Cidade! Só pôr ela, Zé Fernandes, só
pôr ela, pode o homem soberbamente afirmar a sua alma!…
– Ó Jacinto, e a religião? Pois a religião não
prova a alma?
Ele encolhia os ombros. A religião! A religião é o desenvolvimento
suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror. Um
cão lambendo a mão do dono, de quem lhe vem o osso ou o chicote,
já constitui toscamente um devoto, o consciente devoto, prostrado em
rezas ante o Deus que distribui o Céu ou o Inferno!… Mas o telefone!
O fonógrafo!
– Aí tens tu, o fonógrafo, Zé Fernandes, me faz verdadeiramente
sentir a minha superioridade de se pensante e me separa do bicho. Acredita,
não há senão a Cidade, Zé Fernandes, não
há senão a Cidade!
E depois (acrescentava) só a Cidade lhe dava a sensação,
tão necessária à vida como o calor, da solidariedade
humana. E no 202, quando considerava em redor, nas densas massas do casario
de Paris, dois milhões de seres arquejando na obra da Civilização
(para manter na natureza o domínio dos Jacintos!), sentia um sossego,
um conchego, só comparáveis ao do peregrino, que, ao atravessar
o deserto, se ergue no seu dromedário, e avista a longa fila da caravana
marchando, cheia de lumes e de armas…
Eu murmurava, impresionado:
-Caramba!
Ao contrário no campo, entre a inconsciência e a impassibilidade
da Natureza, ele tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solidão.
Estava aí como perdido num mundo que lhe não fosse fraternal;
nenhum silvado encolheria os espinhos para que ele passasse; se gemesse com
fome nenhuma árvore, pôr mais carregada, lhe estenderia o seu
fruto na ponta compassiva dum ramo. Depois, em meio da Natureza, ele assistia
à súbita e humilhante inutilização de todas as
suas faculdades superiores. De que servia, entre plantas e bichos – ser um
Gênio ou ser um Santo? As searas não compreendem as Geórgicas,
e fora necessário o socorro ansioso de Deus, e a inversão de
todas as leis naturais, e um violento milagre para que o lobo de Agubio não
devorasse S. Francisco de Assis, que lhe sorria e lhe estendia os braços
e lhe chamava “meu irmão lobo!” Toda a intelectualidade,
nos campos, se esteriliza, e só resta a bestialidade. Nesses reinos
crassos do Vegetal e do animal duas únicas funções se
mantêm vivas, a nutritiva e a procriadora. Isolada, sem ocupação,
entre focinhos e raízes que não cessam de sugar e de pastar,
sufocando no cálido bafo da universal fecundação, a sua
pobre alma toda se engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fagulhazinha
espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria; e nessa
matéria dois instintos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar
e o de gerar. Ao cabo duma semana rural, de todo o seu ser tão nobremente
composto só restava um estômago e pôr baixo um falo! A
alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na Cidade, mergulhar
nas ondas lustrais da Civilização, para largar nelas a crosta
vegetativa, e ressurgir reumanizado, de novo espiritual e Jacíntico!
E estas requintadas metáforas do meu amigo exprimiam sentimentos reais
– que eu testemunhei, que muito me divertiram, no único passeio que
fizemos ao campo, à bem amável e bem sociável floresta
de Montmorency. Ó delícias de entremez, Jacinto entre a Natureza!
Logo que se afastava dos pavimentos de madeira, do macadame, qualquer chão
que os seus pés calcassem o enchia de desconfiança e terror.
Toda a relva, pôr mais crestada, lhe parecia ressumar uma umidade mortal.
De sob cada torrão, da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus,
de víboras, de formas rastejantes e viscosas. No silêncio do
bosque sentia um lúgubre despovoamento do Universo. Não tolerava
a familiaridade dos galhos que lhe roçassem a manga ou a face. Saltar
uma sebe era para ele um ato degradante que o retrogradava ao macaco inicial.
Todas as flores que não tivesse já encontrado em jardins, domesticadas
pôr longos séculos de servidão ornamental, o inquietavam
como venenosas. E considerava duma melancolia funambulesca certos modos e
formas do Ser inanimado, a pressa espeta e vã dos regatinhos, a careca
dos rochedos, todas as contorções do arvoredo e o seu resmungar
solene e tonto.
Depois duma hora, naquele honesto bosque de Montmorency, o meu pobre amigo
abafava, apavorado, experimentando já esse lento minguar e sumir de
alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desanuviou quando
penetramos no lajedo e no gás de Paris – e a nossa vitória quase
se despedaçou contra um ônibus retumbante, atulhado de cidadãos.
Mandou descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade,
aquela materialização em que sentia a cabeça pesada e
vaga como a dum boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao teatro das Variedades
para sacudir, com os estribilhos da Femme à Papa, o rumor importuno
que lhe ficara dos melros cantando nos choupos altos.
Este delicioso Jacinto fizera então vinte e três anos, e era
um soberbo moço em quem reaparecera a força dos velhos Jacintos
rurais. Só pelo nariz, afilado, como narinas quase transparentes, duma
mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia às
delicadezas do século XIX. O cabelo ainda se conservava, ao modo das
eras rudes, crespo e quase lanígero; e o bigode, como o dum Celta,
caía em fios sedosos, que ele necessitava aparar e frisar. Todo o seu
fato, as espessas gravatas de cetim escuro que uma pérola prendia,
as luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes
de cedro; e usava sempre ao peito uma flor, não natural, mas composta
destramente pela sua ramalheira com pétala de flores dessemelhantes,
cravo, azálea, orquídea ou tulipa, fundidas na mesma haste entre
uma leve folhagem de funcho.
Em 1880, em Fevereiro, numa cinzenta e arrepiada manhã de chuva, recebi
uma carta de meu bom tio Afonso Fernandes, em que, depois de lamentações
sobre os seus setenta anos, os seus males hemorroidais, e a pesada gerência
dos seus bens “que pedia homem mais novo, com pernas mais rijas”
– me ordenava que recolhesse à nossa casa de Guiães, no Douro!
Encostado ao mármore partido do fogão, onde na véspera
a minha Nini deixara um espartilho embrulhado no Jornal dos Debates, censurei
severamente meu tio que assim cortava em botão, antes de desabrochar,
a flor do meu Saber Jurídico. Depois num Pós-Escrito ele acrescentava:
– “ O tempo aqui está lindo, o que se pode chamar de rosas, e
tua santa tia muito se recomenda, que anda lá pela cozinha, porque
vai hoje em trinta e seis anos que casamos, temos cá o abade e o Quintais
a jantar, e ela quis fazer uma sopa dourada”.
Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da
tia Vicência. Há quantos anos não a provava, nem o leitão
assado, nem o arroz de forno da nossa casa! Com o tempo assim tão lindo,
já as mimosas do nosso pátio vergariam sob os seus grandes cachos
amarelos. Um pedaço de céu azul, do azul de Guiães, que
outro não há tão lustroso e macio, entrou pelo quarto,
alumiou, sobre a puída tristeza do tapete, relvas, ribeirinhos, malmequeres
e flores de trevo de que meus olhos andavam aguados. E, pôr entre as
bambinelas de sarja, passou um ar fino e forte e cheiroso de serra e de pinheiral.
Assobiando o fado meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e meti
solicitamente entre calças e peúgas um Tratado de direito civil,
para aprender enfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as leis
que regem os homens. Depois, nessa tarde, anunciei a Jacinto que partia para
Guiães. O meu camarada recuou com um surdo gemido de espanto e piedade:
-Para Guiães!…Ó Zé Fernandes, que horror!
E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me deveria
prover para que pudesse conservar, nos ermos silvestres, tão longe
da Cidade, uma pouca de alma dentro dum pouco de corpo. “Leva uma poltrona!
Leva a Enciclopédia Geral! Leva caixas de aspargos!…”
Mas para o meu Jacinto, desde que assim me arrancavam da Cidade, eu era
arbusto desarraigado que não reviverá. A mágoa com que
me acompanhou ao comboio conviria excelentemente ao meu funeral. E quando
fechou sobre mim a portinhola, gravemente, supremamente, como se cerra uma
grade de sepultura, eu quase solucei – com saudades minhas.
Cheguei a Guiães. Ainda restavam flores nas mimosas do nosso pátio;
comi com delícias a sopa dourada da tia Vicência; de tamancos
nos pés assisti à ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras,
crestando ao sol das eiras, caçando a perdiz nos matos geados, rachando
a melancia fresca na poeira dos arraiais, arranchando a magustos, serandandoà
candeia, atiçando fogueiras de S.João, enfeitando presépios
de Natal, pôr ali me passaram docemente sete anos, tão atarefados
que nunca logrei abrir o Tratado de Direito Civil, e tão singelos que
apenas me recordo quando, em vésperas de S.Nicolau, o abade caiu da
égua à porta do Brás das Cortes. De Jacinto só
recebia raramente algumas linhas, escrevinhadas à pressa pôr
entre tumulto da Civilização. Depois, num Setembro muito quente,
ao lidar da vindima, meu bom tio Afonso Fernandes, morreu, tão quietamente,
Deus seja louvado pôr esta graça, como se cala um passarinho
ao fim do seu bem cantado e bem voado dia. Acabei pela aldeia a roupa de luto.
A minha afilhada Joaninha casou na matança do porco. Andaram obras
no nosso telhado. Voltei a Paris.
Capítulo II
Era de novo fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu
desci os Campos Elísios em demanda do 202. Adiante de mim caminhava,
levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até às
abas recurvas do chapéu de onde fugiam anéis dum cabelo crespo,
ressumava elegância e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos,
cruzadas atrás das costas, calçadas de anta branca, sustentava
uma bengala grossa com castão de cristal. E só quando ele parou
ao portão do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode corredios
e sedosos.
-Ó Jacinto!
-Ó Zé Fernandes!
O abraço que nos enlaçou foi tão alvoroçado que
o meu chapéu rolou na lama. E ambos murmurávamos, comovidos,
entrando a grade:
-Há sete anos!…
E, todavia, nada mudara durante esses sete anos no jardim do 202! Ainda entre
as duas áleas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e varrida
que a lã dum tapete. No meio o vaso coríntico esperava Abril
para resplandecer com tulipas e depois Junho para transbordar de margaridas.
E ao lado das escadas limiares, que uma vidraçaria toldava, as duas
magras Deusas de pedra, do tempo de D. Galião, sustentavam as antigas
lâmpadas de globos foscos, onde já silvava o gás.
Mas dentro, no peristilo, logo me surpreendeu um elevador instalado pôr
Jacinto – apesar do 202 ter somente dois andares, e ligados pôr uma
escadaria tão doce que nunca ofendera a asma da Srª. D. Angelina!
Espaçoso, tapetado, ele oferecia, para aquela jornada de sete segundos,
confortos numerosos, um divã, uma pele de urso, um roteiro das ruas
de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na antecâmera,
onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia e tépida duma tarde
de Maio, em Guiães. Um criado, mais atento ao termômetro que
um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do calorífero.
E perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de Benares,
esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente umedecendo aquele ar delicado
e superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado ser:
-Eis a Civilização!
Jacinto empurrou uma porta, penetramos numa nave cheia de majestade e sombra,
onde reconheci a Biblioteca pôr tropeçar numa pilha monstruosa
de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma
coroa de lumes elétricos, refulgindo entre os lavores do teto, alumiou
as estantes monumentais, todas de ébano. Nelas repousavam mais de trinta
mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques
de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num concílio.
Não contive a minha admiração:
-Ó Jacinto! Que depósito!
Ele murmurou, num sorriso descorado:
-Há que ler, há que ler…
Reparei então que o meu amigo emagrecera: e que o nariz se lhe afilara
mais entre duas rugas muito fundas, como as dum comediante cansado. Os anéis
do seu cabelo lanígero rareavam sobre a testa, que perdera a antiga
serenidade de mármore bem polido. Não frisava agora o bigode,
murcho, caído em fios pensativos. Também notei que corcovava.
Ele erguera uma tapeçaria – entramos no seu gabinete de trabalho,
que me inquietou. Sobre a espessura dos tapetes sombrios os nossos passos
perderam logo o som, e como a realidade. O damasco das paredes, os divãs,
as madeiras, eram verdes, dum verde profundo de folha de louro. Sedas verdes
envolviam as luzes elétricas, dispersas em lâmpadas tão
baixas que lembravam estrelas caídas pôr cima das mesas, acabando
de arrefecer e morrer: só uma rebrilhava, nua e clara, no alto duma
estante quadrada, esguia, solitária como uma torre numa planície,
e de que o lume parecia ser o farol melancólico. Um biombo de laca
verde, fresco de verde de relva, resguardava a chaminé de mármore
verde, verde de mar sombrio, onde esmoreciam as brasas duma lenha aromática.
E entre aqueles verdes reluzia, pôr sobre peanhas e pedestais, toda
uma Mecânica suntuosa, aparelhos, lâminas, rodas, tubos, engrenagens,
hastes, friezas, rigidezas de metais….
Mas Jacinto batia nas almofadas do divã, onde se enterrara com um
modo cansado que eu não lhe conhecia:
-Para aqui, Zé Fernandes, para aqui! È necessário reatarmos
estas nossas vidas, tão apartadas há sete anos!… em Guiães,
sete anos!
-E tu, que tens feito, Jacinto?
O meu amigo encolheu molemente os ombros. Vivera – cumprira com serenidade
todas as funções, as que pertencem à matéria e
as que pertencem ao espírito…
-E acumulaste civilização, Jacinto! Santo Deus… Está
tremendo, o 202!
Ele espalhou em torno um olhar onde já não faiscava a antiga
vivacidade:
-Sim, há confortos… Mas falta muito! A humanidade ainda está
mal apetrechada, Zé Fernandes… E a vida conserva resistências.
Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telefone. E enquanto o meu
amigo, curvado sobre a placa, murmurava impaciente “Está lá?
– Está lá?”, examinei curiosamente, sobre a sua imensa
mesa de trabalho, uma estranha e miúda legião de instrumentozinhos
de níquel, de aço, de cobre, de ferro, com gumes, com argolas,
com tenazes, com ganchos, com dentes, expressivos todos, de utilidades misteriosas.
Tomei um que tentei manejar – e logo uma ponta malévola me picou um
dedo. Nesse instante rompeu de outro canto um tiquetique açodado, quase
ansioso. Jacinto acudiu, com a face no telefone:
-Vê aí o telégrafo!… Ao pé do divã. Uma
tira de papel que deve estar a correr.
-E, com efeito, duma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um aparelho
esperto e diligente, escorria para o tapete como uma tênia, a longa
tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras, apanhei,
maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo Jacinto
que a fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria!
Já ele abandonara o telefone. Desejei saber, inquieto, se o prejudicava
diretamente aquela avaria da Azoff.
-Da Azoff?… A avaria? A mim?… Não! É uma notícia.
Depois, consultando um relógio monumental que, ao fundo da Biblioteca,
marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os Planetas:
-Eu preciso escrever uma carta, seis linhas… Tu esperas, não, Zé
Fernandes? Tens aí os jornais de Paris, da noite; e os de Londres,
desta manhã. As ilustrações além, naquela pasta
de couro com ferragens.
Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava à minha profanidade
serrana todos os gostos duma iniciação. Aos lados da cadeira
de Jacinto pendiam gordos tubos acústicos, pôr onde ele decerto
soprava as suas ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões
túmidos e moles, coleando sobre o tapete, corriam para os recantos
de sombra à maneira de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e refletida
no seu verniz como na água dum poço, pousava uma Máquina
de escrever; e adiante era uma imensa Máquina de calcular, com fileiras
de buracos de onde espreitavam, esperando, números rígidos e
de ferro. Depois parei em frente da estante que me preocupava, assim solitária,
à maneira duma torre numa planície, com o seu alto farol. Toda
uma das suas faces estava repleta de Dicionários; a outra de Manuais;
a outra de Atlas; a última de Guias, e entre eles, abrindo um fólio,
encontrei o Guia das ruas de Samarcanda. Que maciça torre de informação!
Sobre prateleiras admirei aparelhos que não compreendia: – um composto
de lâminas de gelatina, onde desmaiavam, meio chupadas, as linhas duma
carta, talvez amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como
para o decepar, um cutelo funesto; outro avançando a boca duma tuba
toda aberta para as vozes do invisível. Cingidos aos umbrais, liados
às cimalhas, luziam arames, que fugiam através do teto, para
o espaço. Todos mergulhavam em forças universais, todos transmitiam
forças universais. A Natureza convergia disciplinada ao serviço
do meu amigo e entrara na sua domesticidade!…
Jacinto atirou uma exclamação impaciente:
-Ó, estas penas elétricas!… Que seca!
Amarrotara com cólera a carta começada – eu escapei, respirando,
para a Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio
e da Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos
decerto essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro
numa lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos economistas.
Avancei – e percorri, espantado, oito metros de Economia Política.
Depois avistei os Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda
uma parede, desde as escolas Pré-socráticas até às
escolas Neopessimistas. Naquelas pranchas se acastelavam mais de dois mil
sistemas – e que todos se contradiziam. Pelas encadernações
logo se deduziam as doutrinas: Hobbes, embaixo, era pesado, de couro negro;
Platão, em cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para diante
começavam as Histórias Universais. Mas aí uma imensa
pilha de livros brochados, cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia
contra a estante, como fresca terra de aluvião tapando uma riba secular.
Contornei essa colina, mergulhei na seção das Ciências
Naturais, peregrinando, num assombro crescente, da Ortografia para a Paleontologia,
e da Morfologia para a Cristalografia. Essa estante rematava junto duma janela
rasgada sobre os Campos Elísios. Apartei as cortinas de veludo – e
pôr trás descobri outra portentosa rima de volumes, todos de
História Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente
até aos últimos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas,
o ar e a luz do Senhor.
Mas depois rebrilhava, em marroquins claros, a estante amável dos
Poetas. Como um repouso para o espírito esfalfado de todo aquele saber
positivo, Jacinto aconchegara aí um recanto, com um divã e uma
mesa de ,limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de charutos,
de cigarros do Oriente, de tabaqueiras do século XVIII. Sobre um cofre
de madeira lisa pousava ainda, esquecido, um prato de damascos secos do Japão.
Cedi à sedução das almofadas; trinquei um damasco, abri
um volume; e senti estranhamente, ao lado, um zumbido como de um inseto de
asas harmoniosas. sorri à idéia que fossem abelhas, compondo
o seu mel naquele maciço de versos em flor. Depois percebi que o sussurro
remoto e dormente vinha do cofre de mogno, de parecer tão discreto.
Arredei uma Gazeta de França; e descortinei um cordão que emergia
de um orifício, escavado no cofre, e rematava num funil de marfim.
Com curiosidade, encostei o funil a esta minha confiada orelha, afeita à
singeleza dos rumores da serra. E logo uma Voz, muito mansa, mas muito decidida,
aproveitando a minha curiosidade para me invadir e se apoderar do meu entendimento,
sussurrou capciosamente:
-…”E assim, pela disposição dos cubos diabólicos,
eu chego a verificar os espaços hipermágicos!…”
Pulei com um berro.
-Ó Jacinto, aqui há um homem! Está aqui um homem a falar
dentro duma caixa!
O meu camarada, habituado aos prodígios, não se alvoroçou:
-É o Conferençofone…Exatamente como o Teatrofone; somente
aplicado às escolas e às conferências. Muito cômodo!…
Que diz o homem, Zé Fernandes?
Eu considerava o cofre, ainda esgazeado:
-Eu sei! Cubos diabólicos, espaços mágicos, toda a sorte
de horrores…
Senti dentro o sorriso superior de Jacinto:
-Ah, é o coronel Dorcas… Lições de Metafísica
Positiva sobre a Quarta Dimensão… Conjecturas, uma maçada!
Ouve lá, tu hoje jantas comigo e com uns amigos, Zé Fernandes?
-Não, Jacinto… Estou ainda enfardelado pelo alfaiate da serra!
E voltei ao gabinete mostrar ao meu camarada o jaquetão de flanela
grossa, a gravata de pintinhas escarlates, com que ao Domingo, em Guiães,
visitava o Senhor. Mas Jacinto afirmou que esta simplicidade montesina interessaria
os seus convidados, que eram dois artistas… Quem? O autor do Coração
Triplo, um Psicólogo Feminista, de agudeza transcendente, Mestre muito
experimentado e muito consultado em Ciências Sentimentais; e Vorcan,
um pintor mítico, que interpretara etereamente, havia um ano, a simbolia
rapsódica do cerco de Tróia, numa vasta composição,
Helena Devastadora…
Eu coçava a barba:
-Não, Jacinto, não… Eu venho de Guiães, das serras;
preciso entrar em toda esta civilização, lentamente, com cautela,
senão rebento. Logo na mesma tarde a eletricidade, e o Conferençofone,
e os espaços hipermágicos e o feminista, e o etéreo,
e a simbolia devastadora, é excessivo! Volto amanhã.
Jacinto dobrava vagarosamente a sua carta, onde metera sem rebuço
(como convinha à nossa fraternidade) duas violetas brancas tiradas
do ramo que lhe floria o peito.
-Amanhã, Zé Fernandes, tu vens antes de almoço, com
as tuas malas dentro dum fiacre, para te instalares no 202, no teu quarto.
No Hotel são embaraços, privações. Aqui tens o
telefone, o teatrofone, livros…
Aceitei logo, com simplicidade. E Jacinto, embocando um tubo acústico,
murmurou:
-Grilo!
Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se fendeu, surdiu
o seu velho escudeiro ( aquele moleque que viera com D.Galião), que
eu me alegrei de encontrar tão rijo, mais negro, reluzente e venerável
na sua tesa gravata, no seu colete branco de botões de ouro. Ele também
estimou ver de novo “ o siô Fernandes”. E, quando soube
que eu ocuparia o quarto do avô Jacinto, teve um claro sorriso de preto,
em que envolveu o seu senhor, no contentamento de o sentir enfim reprovido
duma família.
-Grilo, dizia Jacinto, esta carta a Madame de Oriol… Escuta!Telefona para
casa dos Trèves que os espiritistas só estão livres no
Domingo… Escuta! Eu tomo uma ducha de jantar, tépida, a 17. Fricção
com malva-rosa.
E caindo pesadamente para cima do divã, com um bocejo arrastado e
vago:
-Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como há
sete anos, neste velho Paris…
Mas eu não me arredava da mesa, no desejo de completar a minha iniciação:
-Ó Jacinto, para que servem todos estes instrumentozinhos? Houve já
aí um desavergonhado que me picou. Parecem perversos… São
úteis?
Jacinto esboçou, com languidez, um gesto que os sublimava. -Providenciais,
meu filho, absolutamente providenciais, pela simplificação que
dão ao trabalho! Assim… e apontou. Este arrancava as penas velhas,
o outro numerava rapidamente as ´páginas dum manuscrito; aqueloutro,
além, raspava emendas… E ainda os havia para colar estampilhas, imprimir
datas, derreter lacres, cintar documentos…
-Mas com efeito, acrescentou, é uma seca… Com as molas, com os
bicos, às vezes magoam, ferem… Já me sucedeu inutilizar cartas
pôr as Ter sujado com dedadas de sangue. É uma maçada!
Então, como o meu amigo espreitara novamente o relógio monumental,
não lhe quis retardar a consolação da ducha e da malva-rosa.
-Bem, Jacinto, já te revi, já me contentei… Agora até
amanhã, com as malas.
-Que diabo, Zé Fernandes, espera um momento… Vamos pela sala de
jantar. Talvez te tentes!
E, através da Biblioteca, penetramos na sala de jantar – que me encantou
pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira branca, lacada, mais lustrosa e
macia que cetim, revestia as paredes, encaixilhando medalhões de damasco
cor de morango, de morango muito maduro e esmagado; os aparadores, discretamente
com a mesma laca nevada; e damascos amorangados estofavam também as
cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a lentidão de gulas delicadas,
de gulas intelectuais.
-Viva o meu Príncipe! Sim senhor… eis aqui um comedouro muito compreensível
e muito repousante, Jacinto!
-Então janta, homem!
Mas já eu me começava a inquietar, reparando que a cada talher
correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me impressionei
quando Jacinto me desvendou que era um para as ostras, outro para o peixe,
outro para as carnes, outro para os legumes, outro para as frutas, outro para
o queijo. Simultaneamente, com uma sobriedade que louvaria Salomão,
só dois copos, para dois vinhos: – um Bordéus rosado em infusas
de cristal, e Champanhe gelando dentro de baldes de prata. Todo um aparador
porém vergava sob o luxo redundante, quase assustador de águas
– águas oxigenadas, águas carbonatadas, águas fosfatadas,
águas esterilizadas, águas de sais, outras ainda, em garrafas
bojudas, com tratados terapêuticos impressos em rótulos.
-Santíssimo nome de Deus, Jacinto! Então és ainda o
mesmo tremendo bebedor de água, hem?… Un aquatico! Como dizia o nosso
poeta chileno, que andava a traduzir Klopstock.
Ele derramou, pôr sobre toda aquela garrafaria encapuçada em
metal, um olhar desconhecido:
-Não… É pôr causa das águas da Cidade, contaminadas,
atulhadas de micróbios… Mas ainda não encontrei uma boa água
que me convenha, que me satisfaça… Até sofro sede.
Desejei então conhecer o jantar do Psicólogo e do Simbolista
– traçado, ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre lâminas
de marfim. Começava honradamente pôr ostras clássicas,
de Marennes. Depois aparecia uma sopa de alcachofras e ovas de carpa…
-É bom?
Jacinto encolheu desinteressadamente os ombros:
-Sim… Eu não tenho nunca apetite, já há tempo… Já
há anos.
Do outro prato só compreendi que continha frangos e túbaras.
Depois saboreariam aqueles senhores um filete de veado, macerado em Xerês,
com geléia de noz. E pôr sobremesa simplesmente laranjas geladas
com éter.
-Em éter, Jacinto?
O meu amigo hesitou, esboçou com os dedos a ondulação
dum aroma que se evola.
É novo… Parece que o éter desenvolve, faz aflorar a alma
das frutas…
Curvei a cabeça ignara, murmurei nas minhas profundidades:
-Eis a Civilização!
E descendo os Campos Elísios, encolhendo no paletó, a cogitar
neste prato simbólico, considerava a rudeza e atolado atraso da minha
Guiães, onde desde séculos a alma das laranjas permanece ignorada
e desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, pôr todos aqueles pomares
que ensombram e perfumam o vale, da Roqueirinha a Sandofim! Agora porém,
benedito deus, na convivência de um tão grande iniciado como
Jacinto, eu compreenderia todas as finuras e todos os poderes da civilização.
E (melhor ainda para a minha ternura!) contemplaria a raridade dum homem
que, concebendo uma idéia da Vida, a realiza – e através dela
e pôr ela recolhe a felicidade perfeita.
Bem se afirmara este Jacinto, na verdade, como Príncipe da Grã-Ventura!
Capítulo III
No 202, todas as manhãs, às nove horas, depois do meu chocolate
e ainda em chinelas, penetrava no quarto de Jacinto. Encontrava o meu amigo
banhado, barbeado, friccionado, envolto num roupão branco de pêlo
de cabra do Tibete, diante da sua mesa de toilette, toda de cristal (pôr
causa dos micróbios) e atulhada com esses utensílios de tartaruga,
marfim, prata, aço e madrepérola que o homem do século
XIX necessita para não desfear o conjunto suntuário da Civilização
e manter nela o seu Tipo. As escovas sobretudo renovavam, cada dia, o meu
regalo e o meu espanto – porque as havia largas como a roda maciça
dum carro sabino; estreitas e mais recurvas que o alfanje dum mouro; côncavas,
em forma de telha aldeã; pontiagudas, em feitio de folha de hera; rijas
que nem cerdas de javali; macias que nem penugem de rola! De todas, fielmente,
como amo que não desdenha nenhum servo, se utilizava o meu Jacinto.
E assim, em face ao espelho emoldurado de folhedos de prata, permanecia este
Príncipe passando pêlos sobre o seu pêlo durante catorze
minutos.
No entanto o Grilo e outro escudeiro, pôr trás dos biombos de
Quioto, de sedas lavradas, manobravam, com perícia e vigor, os aparelhos
dp lavatório – que era apenas um resumo das máquinas monumentais
da Sala de banho, a mais estremada maravilha do 202. Nestes mármores
simplificados existiam unicamente dois jatos graduados desde zero até
cem; as duas duchas, fina e grossa, para a cabeça; e ainda botões
discretos, que, roçados, desencadeavam esguichos, cascatas cantantes,
ou um leve orvalho estival. Desse recanto temeroso, onde delgados tubos mantinham
em disciplina e servidão tantas águas ferventes, tantas águas
violentas, saía enfim o meu Jacinto enxugando as mãos a uma
toalha de felpo, a uma toalha de linho, a outra de corda entrançada
para restabelecer a circulação, a outra de seda frouxa para
repolir a pele. Depois deste rito derradeiro que lhe arrancava ora um suspiro,
ora um bocejo, Jacinto, estendido num divã, folheava uma agenda, onde
se arrolavam, inscritas pelo Grilo ou pôr ele, as ocupações
do seu dia, tão numerosas pôr vezes que cobriam duas laudas.
Todas elas se prendiam à sua sociabilidade, à sua civilização
muito complexa, ou a interesses que o meu Príncipe, nesses sete anos,
criara para viver em mais consciente comunhão com todas as funções
da Cidade (Jacinto com efeito era presidente do Clube da Espada e Alvo; comanditário
do jornal O Boulevard; diretor da Companhia dos Telefones de Constantinopla;
sócio dos Bazares Unidos da Arte Espiritualista; membro do Comitê
de Iniciação das Religiões Esotéricas, etc. ).
Nenhuma destas ocupações parecia porém aprazível
ao meu amigo – porque, apesar da mansidão e harmonia dos seus modos,
freqüentemente arremessava para o tapete numa rebelião de homem
livre aquela agenda que o escravizava. E numa dessas manhãs (de vento
e neve), apanhando eu o livro opressivo, encadernado em pelica, de um carinhoso
tom de rosa murcha – descobrí que o meu Jacinto devia depois do almoço
fazer uma visita na rua da Universidade, outra no Parque Monceau, outra entre
os arvoredos remotos da Muette; assistir pôr fidelidade a uma votação
no clube; acompanhar Madame de Oriol a uma exposição de leques;
escolher um presente de noivado para a sobrinha dos Trèves; comparecer
no funeral do velho conde de Malville; presidir um tribunal de honra numa
questão de roubalheira, entre cavalheiros, ao ecarté… E ainda
se acavalavam outras indicações, escrevinhadas pôr Jacinto
a lápis: – “Carroceiro – Five-o’clock dos Efrains – A pequena
das Variedades – Levar a nota ao jornal…” Considerei o meu Príncipe.
Estirado no divã, de olhos miserrimamente cerrados, bocejava, num bocejo
imenso e mudo.
Mas os afazeres de Jacinto começavam logo no 202, cedo, depois do
banho. Desde as oito horas a campainha do telefone repicava pôr ele,
com impaciência, quase com cólera, como pôr um escravo
tardio. E mal enxugado, dentro do seu roupão de pêlo de cabra
do Tibete ou de grossos pijamas de pelúcia cor de ouro velho, constantemente
saía ao corredor a cochichar com sujeitos tão apressados, que
conservavam na mão o guarda-chuva pingando sobre o tapete. Um desses,
sempre presente (e que pertencia decerto aos Telefones de Constantinopla),
era temeroso – todo ele chupado, tisnado, com maus dentes, sobraçando
uma enorme pasta sebenta, e dardejando, de entre a alta gola duma peliça
puída, como da abertura dum covil, dois olhinhos torvose de rapina.
Sem cessar, inexoravelmente, um escudeiro aparecia, com bilhetes numa salva…
depois eram fornecedores de Indústria e de Arte; negociantes de cavalos,
rubicundos e de paletó branco; inventores com grossos rolos de papel;
alfarrabistas trazendo na algibeira uma edição “única”,
quase inverossímil, de Ulrich Zell ou do Lapidanus. Jacinto circulava
estonteado pelo 202, rabiscando a carteira, repicando o telefone, desatando
nervosamente pacotes, sacudindo ao passar algum emboscado que surdia das sombras
da antecâmara, estendia como um trabuco o seu memorial ou o seu castigo!
Ao meio-dia, um tantã argentino e melancólico ressoava, chamando
ao almoço. Com o Fígaro ou as Novidades abertas sobre o prato,
eu esperava sempre meia hora pelo meu Príncipe, que entrava numa rajada,
consultando o relógio, exalando com a face moída o seu queixume
eterno:
-Que maçada! E depois uma noite abominável, enrodilhada em
sonhos… Tomei sulfonal, chamei o Grilo para me esfregar com terebintina…
Uma seca!
Espalhava pela mesa um olhar já farto. Nenhum prato, pôr mais
engenhoso, o seduzia; – e, como através do seu tumulto matinal fumava
incontáveis cigarrilhas que o ressequiam, começava pôr
se encharcar com um imenso copo de água oxigenada, ou carbonatada,
ou gasosa, misturada dum conhaque raro, muito caro, horrendamente adocicado,
de moscatel de Siracusa. Depois, à pressa, sem gosto, com a ponta incerta
do garfo, picava aqui e além uma lasca de fiambre, uma febra de lagosta;
– e reclamava impacientemente o café, um café de Moca, mandado
cada mês pôr um feitor do Dedjah, fervido à turca, muito
espesso, que ele remexia com um pau de canela!
-E tu, Zé Fernandes, que vais tu fazer?
-Eu?
Recostado na cadeira, com delícias, os dedos metidos nas cavas do
colete:
-Vou vadiar, regaladamente, como um cão natural!
O meu solícito amigo, remexendo o café com o pau da canela,
rebuscava através da numerosa Civilização da cidade uma
ocupação que me encantasse. Mas apenas sugeria uma Exposição,
ou uma Conferência, ou monumentos, ou passeios, logo encolhia os ombros
desconsolado:
-Pôr fim nem vale a pena, é uma seca!
Acendia outra das cigarrilhas russas, onde rebrilhava o seu nome, impresso
a ouro na mortalha. Torcendo, numa pressa nervosa, os fios do bigode, ainda
escutava, à porta da Biblioteca, o seu procurador, o nédio e
majestoso Laporte. E enfim, seguido dum criado, que sobraçava um maço
tremendo de jornais para lhe abastecer o cupé, o Príncipe-Ventura
mergulhava na Cidade.
Quando o dia social de Jacinto se apresentava mais desafogado, e o céu
de Março nos concedia caridosamente um pouco de azul aguado, saíamos
depois do almoço, a pé, através de Paris. Estes lentos
e errantes passeios eram outrora, na nossa idade de Estudantes, um gozo muito
querido de Jacinto – porque neles mais intensamente e mais minuciosamente
saboreava a Cidade. Agora porém, apesar da minha companhia, só
lhe davam uma impaciência e uma fadiga que desoladamente destoava do
antigo, iluminado êxtase. Com espanto (mesmo com dor, porque sou bom,
e sempre me entristece o desmoronar duma crença) descobri eu, na primeira
tarde em que descemos aos Boulevards, que o denso formigueiro humano sobre
o asfalto, e a torrente sombria dos trens sobre o macadame, afligiam meu amigo
pela brutalidade da sua pressa, do seu egoísmo, e do seu estridor.
Encostado e como refugiado no meu braço, este Jacinto novo começou
a lamentar que as ruas, na nossa Civilização, não fossem
calçadas de guta-percha! E a guta-percha claramente representava, para
meu amigo, a substância discreta que amortece o choque e a rudeza das
coisas! Oh maravilha! Jacinto querendo borracha, a borracha isoladora, entre
a sua sensibilidade e as funções da Cidade! Depois nem me permitiu
pasmar diante daquelas dourejadas e espelhadas lojas que ele outrora considerava
como os !preciosos museus do século XIX”…
-Não vale a pena, Zé Fernandes. Há uma imensa pobreza
e secura de invenção! Sempre os mesmos florões Luís
XV, sempre as mesmas pelúcias… Não vale a pena!
Eu arregalava os olhos para este transformado Jacinto. E sobretudo me impressionava
o seu horror pela Multidão – pôr certos efeitos da Multidão,
só para ele sensíveis, e a que chamava os “sulcos”.
-Tu não sentes, Zé Fernandes. Vens das serras… Pois constituem
o rijo inconveniente das Cidades, estes sulcos! É um perfume muito
agudo e petulante que uma mulher larga ao passar, e se instala no olfato,
e estraga para todo o dia o ar respirável. É um dito que se
surpreende num grupo, que revela um mundo de velhacaria, ou de pedantismo,
ou de estupidez, e que nos fica colado à alma, como um salpico, lembrando
a imensidade da lama a atravessar. Ou então, meu filho, é uma
figura intolerável pela pretensão, ou pelo mau gosto, ou pela
impertinência, ou pela relice, ou pela dureza, e de que se não
pode sacudir mais a visão repulsiva… Um pavor, estes sulcos, Zé
Fernandes! De resto, que diabo, são as pequeninas misérias duma
Civilização deliciosa!
Tudo isto era especioso, talvez pueril – mas para mim revelava, naquele chamejante
devoto da Cidade, o arrefecimento da devoção. Nessa mesma tarde,
se bem recordo, sob uma luz macia e fina, penetramos nos centros de Paris,
nas ruas longas, nas milhas de casario, todo caliça parda, eriçado
de chaminés de lata negra, com as janelas sempre fechadas, as cortininhas
sempre corridas, abafando, escondendo a vida. Só tijolo, só
ferro, só argamassa, só estuque; linhas hirtas, ângulos
ásperos; tudo seco; tudo rígido. E dos chãos aos telhados,
pôr toda a fachada, tapando as varandas, comendo os muros, Tabuletas,
Tabuletas…
-Ó, este Paris, Jacinto, este teu Paris! Que enorme, que grosseiro
bazar!
E, mais para sondar o meu Príncipe do que pôr persuasão,
insisti na felicidade e tristeza destes prédios, duros armazéns,
cujos andares são prateleiras onde se apinha humanidade! E uma humanidade
impiedosamente catalogada e arrumada! A mais vistosa e de luxo nas prateleiras
baixas, bem envernizadas. A reles e de trabalho nos altos, nos desvios, sobre
pranchas de pinho nu, entre o pó e a traça…
Jacinto murmurou, com a face arrepiada:
-É feio, é muito feio!
E acudiu logo, sacudindo no ar a luva de anta:
-Mas que maravilhoso organismo, Zé Fernandes! Que solidez! Que produção!
Onde Jacinto me parecia mais renegado era na sua antiga e quase religiosa
afeição pelo Bosque de Bolonha. Quando moço, ele construíra
sobre o bosque teorias complicadas e consideráveis. E sustentava, com
olhos rutilantes de fanático, que no Bosque a Cidade cada tarde ia
retemperar salutarmente a sua força, recebendo, pela presença
de suas Duquesas, das suas Cortesãs, dos seus Políticos, dos
seus Financeiros, dos seus Generais, dos seus Acadêmicos, dos seus Artistas,
dos seus Clubistas, dos seus Judeus, a certeza consoladora de que todo o seu
pessoal se mantinha em número, em vitalidade, em função,
e que nenhum elemento da sua grandeza desaparecera ou deperecera! “Ir
aos bois” constituía então para o meu Príncipe
um ato de consciência. E voltava sempre confirmando com orgulho que
a Cidade possuía todos os seus astros, garantindo a eternidade da sua
luz!
Agora, porém, era sem fervor, arrastadamente, que ele me elevava ao
Bosque, onde eu, aproveitando a clemência de Abril, tentava enganar
a minha saudade de arvoredos. Enquanto subíamos, ao trote nobre das
suas éguas lustrosas, a Avenida dos Campos Elísios e a do Bosque,
rejuvenescidas pelas relvas tenras e fresco verdejar dos rebentos, Jacinto,
soprando o fumo da cigarrilha pelas vidraças abertas do cupé,
permanecia o bom camarada, de veia amável, com quem era doce filosofar
através de Paris. Mas logo que passávamos as grades douradas
do Bosque, e penetrávamos na Avenida das Acácias, e enfiávamos
na lenta fila dos trens de luxo de praça, sob o silêncio decoroso,
apenas cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando
a areia – o meu Príncipe emudecia, molemente engelhado no fundo das
almofadas, de onde só despegava a face para escancarar bocejos de fartura.
Pelo antigo hábito de verificar a presença confortadora do “pessoal,
dos astros”, ainda, pôr vezes, apontava para algum cupé
ou vitória rodando com rodar rangente noutra arrastada fila – e murmurava
um nome. E assim fui conhecendo a encaracolada barba hebraica do banqueiro
Efraim; e o longo nariz patrício de Madame de Trèves abrigando
um sorriso perene; e as bochechas flácidas do poeta neoplatônico
Dornan, sempre espapado no fundo de fiacres; e os longos bandós pré-rafaelitas
e negros de Madame Verghane; e o monóculo defumado do diretor do Boulevard,
e o bigodinho vencedor do duque Marizac, reinando de cima do seu fáeton
de guerra; e ainda outros sorrisos imóveis, e barbichas à Renascença,
e pálpebras amortecidas, e olhos farejantes, e peles empoadas de arroz,
que eram todas ilustres e da intimidade do meu Príncipe. Mas, do topo
da Avenida das Acácias, recomeçávamos a descer, em passo
sopeado, esmagando lentamente a areia; na fila vagarosa que subia, calhambeque
atrás de landau, vitória atrás de fiacre, fatalmente
revíamos o binóculo sombrio do homem do Boulevard, e os bandós
furiosamente negros de Madame Verghane, e o ventre espapado do neoplatônico,
e a barba talmúdica, e todas aquelas figuras, duma imobilidade de cera,
superconhecidas do meu camarada, recruzadas cada tarde através de revividos
anos, sempre com os mesmos sorrisos, sob o mesmo pó de arroz, na mesma
imobilidade de cera; então Jacinto não se continha, gritava
ao cocheiro:
-Para casa, depressa!
E era pela Avenida do bosque, pelos Campos Elísios, uma fuga ardente
das éguas a quem a lentidão sopeada, num roer de freios, entre
outras éguas também delas superconhecidas, lançava numa
exasperação comparável à de Jacinto.
Para o sondar eu denegria o Bosque:
-Já não é tão divertido, perdeu o brilho!…
Ele acudia, timidamente:
-Não, é agradável, não há nada mais agradável;
mas…
E acusava a friagem das tardes ou o despotismo dos seus afazeres. Recolhíamos
então ao 202, onde, com efeito, em breve embrulhado no seu roupão
branco, diante da mesa de cristal, entre a legião das escovas, com
toda a eletricidade refulgindo, o meu Príncipe se começava a
adornar para o serviço social da noite.
E foi justamente numa dessas noites (um Sábado) que nós passamos,
naquele quarto tão civilizado e protegido, pôr um desses brutos
e revoltos terrores como só os produz a ferocidade dos Elementos. Já
tarde, à pressa (jantávamos com Marizac no clube para o acompanhar
depois ao Lobengrin na Ópera) Jacinto arrochava o nó da gravata
branca – quando no lavatório, ou porque se rompesse o tubo, ou se dessoldasse
a torneira, o jato de água a ferver rebentou furiosamente, fumegando
e silvando. Uma névoa densa de vapor quente abafou as luzes – e, perdidos
nela, sentíamos, pôr entre os grilos do escudeiro e do Grilo,
o jorro devastador batendo os muros, esparrinhando uma chuva que escaldava.
Sob os pés o tapete ensopado era uma lama ardente. E como se todas
as forças da natureza, submetidas ao serviço de Jacinto, se
agitassem, animadas pôr aquela rebelião da água – ouvimos
roncos surdos no interior das paredes, e pelos fios dos lumes elétricos
sulcam faíscas ameaçadoras! Eu fugira para o corredor, onde
se alargava a névoa grossa. Pôr todo o 202 ia um tumulto de desastre.
Diante do portão, atraídas pela fumarada que se escapava das
janelas, estacionava polícia, uma multidão. E na escada esbarrei
com um repórter, de chapéu para a nuca, a carteira aberta, gritando
sofregamente “se havia mortos?”
Domada a água, clareada a bruma, vim encontrar Jacinto no meio do
quarto, em ceroulas, lívido:
-Ó Zé Fernandes, esta nossa indústria!… Que impotência,
que impotência! Pela Segunda vez, este desastre! E agora, aparelhos
perfeitos, um processo novo…
-E eu encharcado pôr esse processo novo! E sem outra casaca!
Em redor, as nobres sedas bordadas, os brocatéis Luís XIII,
cobertos de manchas negras, fumegavam. O meu príncipe, enfiado, enxugava
uma fotografia de Madame de Oriol, de ombros decotados, que o jorro bruto
maculara de empolas. E eu, com rancor, pensava que na minha Guiães
a água aquecia em seguras panelas – e subia ao meu lavatório,
pela mão forte da Catarina, em seguras infusas! Não jantamos
com o duque de Marizac, no Clube. E, na Ópera, nem saboreei Lohengrin
e a sua branca alma e o seu branco cisne e as suas brancas armas – entalado,
aperreado, cortado nos sovacos pela casaca que Jacinto me emprestara e que
rescendia estonteadoramente a flores de Nessari.
No Domingo, muito cedo, o Grilo, que na véspera escaldara as mãos
e as trazia embrulhadas em seda, penetrou no meu quarto, descerrou as cortinas,
e à beira do leito, com o seu radiante sorriso de preto:
-Vem no Fígaro!
Desdobrou triunfalmente o jornal. Eram, nos Ecos, doze linhas, onde as nossas
águas rugiam e espadanavam, com tanta magnificência e tanta publicidade,
que também sorri, deleitado.
E toda a manhã, o telefone, siô Fernandes! Exclamava o Grilo,
rebrilhando em ébano. A quererem saber, a quererem saber… “Está
lá? Está escaldado?” Paris aflito, siô Fernandes!
O telefone, com efeito, repicava, insaciável. E quando desci para
o almoço, a toalha desaparecia sob uma camada de telegramas, que o
meu Príncipe fendia com a faca, enrugado, rosnando contra a “maçada”.
Só desanuviou, ao ler um desses papéis azuis, que atirou para
cima do meu prato, com o mesmo sorriso agradado com que de manhã sorríamos,
o Grilo e eu:
-É do Grão-Duque Casimiro… Ratão amável! Coitado!
Saboreei, através dos ovos, o telegrama de S. Alteza. “O quê!
o meu Jacinto inundado! Muito chique, nos Campos Elísios! Não
volto ao 202 sem bóia de salvação! Compassivo abraço!
Casimiro…” Murmurei também com deferência: – “Amável!
Coitado!” Depois, revolvendo lentamente o montão de telegramas
que se alastrava até ao meu copo::
-Ó Jacinto! Quem é esta Diana que incessantemente te escreve,
te telefona, te telegrafa, te…?
-Diana… Diana de Lorge. É uma cocotte. É uma grande cocotte!
-Tua?
-Minha, minha… Não! tenho um bocado.
E como eu lamentava que o meu Príncipe, senhor tão rico e de
tão fino orgulho, pôr economia duma gamela própria chafurdasse
com outros numa gamela pública – Jacinto levantou os ombros, com um
camarão espetado no garfo:
-Tu vens das serras… Uma cidade como Paris, Zé Fernandes, precisa
ter cortesãs de grande pompa e grande fausto. Ora para montar em Paris,
nesta tremenda carestia de Paris, uma cocotte com os seus vestidos, os seus
diamantes, os seus cavalos, os seus lacaios, os seus camarotes, as suas festas,
o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolência, é necessário
que se agremiem umas poucas de fortunas, se forme um sindicato! Somos uns
sete, no Clube. Eu pago um bocado… Mas meramente pôr Civismo, para
dotar a Cidade com uma cocotte monumental. De resto não chafurdo. Pobre
Diana!… dos ombros para baixo nem sei se tem a pele cor de neve ou cor de
limão.
Arregalei um olho divertido:
-Dos ombros para baixo?… E para cima?
-Ó! para cima tem pó de arroz!… Mas é uma seca! Sempre
bilhetes, sempre telefones, sempre telegramas. E três mil francos pôr
mês, além das flores… Uma maçada!
E as duas rugas do meu Príncipe, aos lados do seu afilado nariz, curvado
sobre a salada, eram como dois vales muito tristes, ao entardecer.
Acabamos o almoço, quando um escudeiro, muito discretamente, num murmúrio,
anunciou Madame de Oriol, Jacinto pousou com tranqüilidade o charuto;
eu quase me engasguei, num sorvo alvoroçado de café. Entre os
reposteiros de damasco cor de morango ela apareceu, toda de negro, dum negro
liso e austero de Semana Santa, lançando com o regalo um lindo gesto
para nos sossegar. E imediatamente, numa volubilidade docemente chalrada:
-É um momento, nem se levantem! Passei, ia para a Madalena, não
me contive, quis ver os estragos… Uma inundação em Paris,
nos Campos Elísios! Não há senão este Jacinto.
E vem no Fígaro! O que eu estava assustada, quando telefonei! Imaginem!
Água a ferver como no Vesúvio… Mas é duma novidade!
E os estofos perdidos, naturalmente, os tapetes… Estou morrendo pôr
admirar as ruínas!
Jacinto, que não me pareceu comovido, nem agradecido com aquele interesse,
retomara risonhamente o charuto:
-Está tudo seco, minha querida senhora, tudo seco! A beleza foi ontem,
quando a água fumegava e rugia! Ora que pena não Ter ao menos
caído uma parede!
Mas ela insistia. Nem todos os dias se gozavam em Paris os destroços
duma inundação. O Fígaro contara… E era uma aventura
deliciosa, uma casa escaldada nos Campos Elísios!
Toda a sua pessoa, desde as plumazinhas que frisavam no chapéu até
à ponta reluzente das botinas de verniz, se agitava, vibrava, como
um ramo tenro sob o boliço do pássaro a chalrar. Só o
sorriso, pôr trás do véu espesso, conservava um brilho
imóvel. E já no ar se espalhara um aroma, uma doçura,
emanada de toda a sua mobilidade e de toda a sua graça.
Jacinto no entanto cedera, alegremente; e pelo corredor Madame de Oriol ainda
louvava o Fígaro amável, e confessava quanto tremera… Eu voltei
ao meu café, felicitando mentalmente o Príncipe da Grã-Ventura
pôr aquela perfeita flor de Civilização que lhe perfumava
a vida. Pensei então na apurada harmonia em que se movia essa flor.
E corri vivamente à antecâmara, verificar diante do espelho o
meu penteado e o nó da minha gravata. Depois recolhi à sala
de jantar, e junto da janela, folheando languidamente a Revista do Século
XIX. Tomei uma atitude de elegância e de alta cultura Quase imediatamente
eles reapareceram; e Madame de Oriol, que, sempre sorrindo, se proclamava
espoliada, nada encontrara que recordasse as águas furiosas, roçou
pela mesa, onde Jacinto procurava, para lhe oferecer, tangerinas de Malta,
ou castanhas geladas, ou um biscoito molhado em vinho de Tokai.
Ela recusava com as mãos guardadas no regalo. Não era alta,
nem forte – mas cada prega do vestido, ou curva da capa, caía e ondulava
harmoniosamente como perfeições recobrindo perfeições.
Sob o véu cerrado, apenas percebi a brancura da face empoada, e a escuridão
dos olhos largos. E com aquelas sedas e veludos negros, e um pouco do cabelo
louro, dum louro quente, torcido fortemente sobre as peles negras que lhe
orlavam o pescoço , toda ela derramava uma sensação de
macio e de fino. Eu teimosamente a considerava como uma flor de Civilização:
– e pensava no secular trabalho e na cultura superior que necessitara o terreno
onde ela tão delicadamente brotara, já desabrochada, em pleno
perfume, mais graciosa pôr ser flor de esforço e de estufa, e
trazendo nas suas pétalas um não sei quê de desbotado
e de antemurcho.
No entanto, com a sua volubilidade de pássaro, chalrando para mim,
chalrando para Jacinto, ela mostrava o seu lindo espanto pôr aquele
montão de telegramas sobre a toalha.
-Tudo esta manhã, pôr causa da inundação!… Ah,
Jacinto é hoje o homem, o único homem de Paris! Muitas mulheres
nesses telegramas?
Languidamente, com o charuto a fumegar, o meu Príncipe empurrou para
a sua amiga o telegrama do Grão-Duque. Então Madame de Oriol
teve um ah! muito grave e muito sentido. Releu profundamente o papel de S.A
. que os seus dedos acariciavam com uma reverência gulosa. E sempre
grave, sempre séria:
-É brilhante!
Ó! certamente! naquele desastre tudo se passara com muito brilho,
num tom muito Parisiense. E a deliciosa criatura não se podia demorar,
porque fizera marcar um lugar na igreja da Madalena para o sermão!
Jacinto exclamou com inocência:
-Sermão?… É já a estação dos sermões?
Madame de Oriol teve um movimento de carinhoso escândalo e dor. O quê!
pois nem na austera casa dos Trèves dera pela entrada da Quaresma?
De resto não se admirava – Jacinto era um turco! E, imediatamente celebrou
o pregador, um frade dominicano, o Père Granon! Ó! duma eloqüência!
No derradeiro sermão pregara sobre o amor, a fragilidade dos amores
mundanos! E tivera coisas duma inspiração, duma brutalidade!
Depois que gesto, um gesto terrível que esmagava, em que se lhe arregaçava
toda a manga, mostrando o braço nu, um braço soberbo, muito
branco, muito forte!
O seu sorriso permanecia claro sob o olhar que negrejara dentro do véu
negro. E Jacinto, rindo:
-Um bom braço de diretor espiritual, hem? Para vergar, espancar almas…
Ela acudiu:
-Não! infelizmente o Père Granon confessa!
E de repente reconsiderou – aceitava um biscoito, um cálice de Tokai.
Era necessário um cordial para afrontar as emoções do
Père Granon! Ambos nos precipitáramos, um arrebatando a garrafa,
outro oferecendo o prato de bombons. Franziu o véu para os olhos, chupou
à pressa um bolo que ensopara no Tokai. E como Jacinto, reparando casualmente
no chapéu que ela trazia, se curvara com curiosidade, impressionado,
Madame Oriol apagou o sorriso, toda séria ante uma coisa séria:
-Elegante, não é verdade?… É uma criação
inteiramente nova de Madame Vial. Muito respeitoso, e muito sugestivo, agora
na Quaresma.
O seu olhar, que me envolvera, também me convidava a admirar. Aproximei
o meu focinho de homem das serras para contemplar essa criação
suprema do luxo de Quaresma. E era maravilhoso! Sobre o veludo, na sombra
das plumas frisadas, aninhada entre rendas, fixada pôr um prego, pousava
delicadamente, feita de azeviche, uma Coroa de Espinhos!
Ambos nos extasiamos. E Madame de Oriol, num movimento e num sorriso que
derramou mais aroma e mais claridade, abalou para a Madalena.
O meu Príncipe arrastou pelo tapete alguns passos pensativos e moles.
E bruscamente, levantando os ombros com uma determinação imensa,
como se deslocasse um mundo:
-Ó Zé Fernandes, vamos passar este Domingo nalguma coisa simples
e natural…
-Em quê?
Jacinto circungirou os olhares muito abertos, como se, através da
Vida Universal, procurasse ansiosamente uma coisa natural e simples. Depois,
descansando sobre mim os mesmos largos olhos que voltavam de muito longe,
cansados e com pouca esperança:
-Vamos ao Jardim das Plantas, ver a girafa!
Capítulo IV
Nessa fecunda semana, uma noite, recolhíamos ambos da Ópera,
quando Jacinto, bocejando, me anunciou uma festa no 202.
-Uma festa?…
-Pôr causa da Grão-duque, coitado, que me vai mandar um peixe
delicioso e muito raro que se pesca na Dalmácia. Eu queria um almoço
curto. – O Grão-duque reclamou uma ceia. É um bárbaro,
besuntado com literatura do século XVIII, que ainda acredita em ceias,
em Paris! Reúno no Domingo três ou quatro mulheres, e uns dez
homens bem típicos, para o divertir. Também aproveitas. Folheias
Paris num resumo… Mas é uma maçada amarga!
Sem interesse pela sua festa, Jacinto não se afadigou em a compor
com relevo ou brilho. Encomendou apenas uma orquestra de Tziganes (os Tziganes,
as suas jalecas escarlates, a melancolia áspera da Czardas ainda nesses
tempos remotos emocionavam Paris); e mandou, na Biblioteca, ligar o Teatrofone
com a Ópera, com a Comédia Francesa, com a Alcazar e com os
Bufos, prevendo todos os gostos desde o trágico até ao pícaro.
Depois no Domingo, ao entardecer, ambos visitamos a mesa da ceia que resplandecia
com as velhas baixelas de D.Galião. E a faustosa profusão de
orquídeas, em longas silvas pôr sobre a toalha bordada a seda,
enroladas aos fruteiros de Saxe, transbordando de cristais lavrados e filigranados
de ouro, espalhava uma tão fina sensação de luxo e gosto,
que eu que eu murmurei: – “Caramba, bendito seja o dinheiro!”
Pela primeira vez, também, admirei a copa e a sua instalação
abundante e minuciosa – sobretudo os dois ascensores que rolavam das profundidades
da cozinha, um para os peixes e carmes aquecido pôr tubos de água
fervente, o outro para as saladas e gelados revestido de placas frigoríficas.
Ó, este 202!
Às nove horas, porém, descendo eu ao gabinete de Jacinto para
escrever a minha boa tia Vicência, enquanto ele ficara no toucador com
o manicuro que lhe polia as unhas, passamos nesse delicioso palácio,
florido e em gala, pôr bem corriqueiro susto! Todos os lumes elétricos,
subitamente, em todo o 202, se apagaram! Na minha imensa desconfiança
daquelas forças universais, pulei logo para a porta, tropeçccedil;ando
nas trevas, ganindo um Aqui-d’el-rei! que tresandava a Guiães,
Jacinto em cima berrava, com o manicuro agarrado aos pijamas. E de novo, como
serva ralassa que recolhe arrastando as chinelas, a luz ressurgiu com lentidão.
Mas o meu Príncipe, que descera, enfiado, mandou buscar um engenheiro
à Companhia Central da eletricidade doméstica. Pôr precaução
outro criado correu à mercearia comprar pacotes de velas. E o Grilo
desenterrava já dos armários os candelabros abandonados, os
pesados castiçais arcaicos dos tempos incientíficos de D. Galião:
era uma reserva de veteranos fortes, para o caso pavoroso em que mais tarde,
à ceia, falhassem perfidamente as forças bisonhas da Civilização.
O Eletricista, que acudira esbaforido, afiançou porém que a
Eletricidade se conservaria fiel, sem outro amuo. Eu, cautelosamente, soneguei
na algibeira dois cotos de estearina.
A Eletricidade permaneceu fiel, sem amuos. E quando desci do meu quarto,
tarde (porque perdera o colete de baile e só depois duma busca furiosa
e praguejada o encontrei caído pôr trás da cama!), todo
o 202 refulgia e os Tziganes, na antecâmara, sacudindo as guedelhas,
atiravam as arcadas duma valsa tão arrastadora que, pelas paredes,
os imensos Personagens da tapeçarias, Príamo, Nestor, o engenhoso
Ulisses, arfavam, buliam com os pés venerandos!
Timidamente, sem rumor, puxando os punhos, penetrei no gabinete de Jacinto.
E fui logo acolhido pelo sorriso da condessa de Trèves, que acompanhada
pelo ilustre historiador Danjon (da Academia Francesa), percorria maravilhada
os Aparelhos, os Instrumentos, toda a suntuosa Mecânica do meu supercivilizado
Príncipe. Nunca ela me parecera mais majestosa do que naquelas sedas
cor de açafrão, com rendas cruzadas no peito à Maria
Antonieta, o cabelo crespo e ruivo levantado em rolo sobre a testa dominadora,
e o curvo nariz patrício, abrigando o sorriso sempre luzidio, sempre
corrente, como um arco abriga o correr e o luzir dum regato. Direita como
num sólio, a longa luneta de tartaruga acercada dos olhos miúdos
e turvamente azulados, ela escutava diante do Grafofone, depois diante do
Microfone, como melodias superiores, os comentários que o meu Jacinto
ia atabalhoando com uma amabilidade penosa. E ante cada roda, cada mola, eram
pasmos, louvores finamente torneados, em que atribuía a Jacinto, com
astuta candura, todas aquelas invenções do Saber! Os utensílios
misteriosos que atulhavam a mesa de ébano foram para ela uma iniciação
que a enlevou. Ó, o “numerador de páginas”! Ó,
o “colador de estampilhas”!
A carícia demorada dos seus dedos secos aquecia os metais. E suplicava
os endereços dos fabricantes para se prover de todas aquelas utilidades
adoráveis! Como a vida, assim apetrechada, se tornava escorregadia
e fácil! Mas era necessário o talento, o gosto de Jacinto, para
escolher, para “criar!” E não só ao meu amigo (que
o recebia com resignação) ela ofertava o fino mel. Afagando
com o cabo de luneta o Telégrafo, achou a possibilidade de recordar
a eloqüência do Historiador. Mesmo para mim (de quem ignorava o
nome) arranjou junto do Fotógrafo, e acerca de “vozes de amigos
que é doce colecionar” uma lisonjazinha redondinha e lustrosa,
que eu chupei como um rebuçado celeste. Boa casaleira que vai atirando
o grão aos frangos famintos, a cada passo, maternalmente, ela nutria
uma vaidade. Sôfrego de outro rebuçado, acompanhei a sua cauda
sussurrante e cor de açafrão. Ela parara diante da Máquina
de contar, de que Jacinto Já lhe fornecera pacientemente uma explicação
sapiente. E de novo roçou os buracos de onde espreitam os números
negros, e com o seu enlevado sorriso murmurou: – “Prodigiosa, esta prensa
elétrica!…”
Jacinto acudiu:
-Não! Não! Esta é…
Mas ela sorria, seguia… Madame de Trèves não compreendeu
nenhum aparelho do meu Príncipe! Madame de Trèves não
atendera a nenhuma dissertação do meu Príncipe! Naquele
gabinete de suntuosa Mecânica ela somente se ocupara em exercer, com
proveito e com perfeição, a Arte de Agradar. Toda ela era uma
sublime falsidade. Não escondi a Danjon a admiração que
me penetrava.
O facundo Acadêmico revirou os olhos bugalhudos:
-Ó! e um gosto, uma inteligência, uma sedução!…
E depois como se janta bem em casa dela! Que café!… Mulher superior,
meu caro senhor, verdadeiramente superior!
Deslizei para a biblioteca. Logo à entrada da erudita nave, junto
da estante dos Padres da Igreja onde alguns cavalheiros conversavam, parei
a saudar o diretor do Boulevard e o Psicólogo-feminista, o autor do
Coração Triple, com quem na véspera me familiarizara
ao almoço, no 202. O seu acolhimento foi paternal; e como se necessitasse
a minha presença, reteve na sua mão ilustre, rutilante de anéis,
com força e com gula, a minha grossa palma serrana. Todos aqueles senhores,
com efeito, celebravam o seu Romance, a Couraça, lançado nessa
semana entre gritinhos de gozo e um quente rumor de saias alvoroçadas.
Um sobretudo, com uma vasta cabeça arranjada à Van-Dick e que
parecia postiça, proclamava, alçado na ponta das botas, que
nunca penetrara tão fundamente, na velha alma humana, a ponta da Psicologia
Experimental! Todos concordavam, se apertavam contra o Psicólogo, o
tratavam pôr “mestre”. Eu mesmo, que nem sequer entrevira
a capa amarela da Couraça, mas para quem ele voltava os olhos pedinchões
e famintos de mais mel, murmurei com um leve assobio: – “uma delícia!”
E o psicólogo, reluzindo, com o lábio úmido, entalado
num alto colarinho onde se enroscava uma gravata à 1830, confessava
modestamente que dissecara todas aquelas almas da Couraça com “algum
cuidado”, sobre documentos, sobre pedaços de vida ainda quentes,
ainda a sangrar… E foi então que Marizac, o duque de Marizac, notou,
com um sorriso mais afiado que um lampejo de navalha, e sem tirar as mãos
dos bolsos:
-No entanto, meu caro, nesse livro tão profundamente estudado há
um erro bem estranho, bem curioso!…
O Psicólogo, vivamente, atirara a cabeça para trás:
-Um erro?
Ó, sim, um erro! E bem inesperado num mestre tão experiente!…Era
atribuir à esplêndida amorosa da Couraça, uma duquesa,
e do gosto mais puro – um colete de cetim preto! Esse colete, assim preto,
de cetim, aparecia na bela página de análise e paixão
em que ela se despia no quarto de Rui de Alize. E Marizac, sempre com as mãos
nos bolsos, mais grave, apelava para aqueles senhores. Pois era verossímil,
numa mulher como duquesa, estética, pré-rafaelítica,
que se vestia no Doucet, no Pasquim, nos costureiros intelectuais, um colete
de cetim preto?
O Psicólogo emudecera, colhido, trespassado! Marizac era uma tão
suprema autoridade sobre a roupa íntima das duquesas, que à
tarde, em quartos de rapazes, pôr impulsos idealistas e anseios de alma
dolorida – se põem em colete e saia branca!… De resto o diretor do
Boulevard condenara logo sem piedade, com uma experiência firme, aquele
colete, só possível nalguma mercearia atrasada que ainda procurasse
efeitos de carne nédia sobre cetim negro. E eu, para que me não
julgassem alheio às coisas dos adultérios ducais e do luxo,
acudi, metendo os dedos pelo cabelo:
-Realmente, preto, só se estivesse de luto pesado, pelo pai!
O pobre mestre da Couraça sucumbira. Era a sua glória de Doutor
em Elegâncias Femininas desmantelada – e Paris supondo que ele nunca
vira uma duquesa desatacar o colete na sua alcova de Psicólogo! Então,
passando o lenço sobre os lábios que a angústia ressequira,
confessou o erro, e contritamente o atribuiu a uma improvisação
tumultuosa:
-Foi um tom falso, um tom perfeitamente falso que me escapou!… Com efeito!
É absurdo, um colete preto!… Mesmo pôr harmonia com o estado
da alma da duquesa devia ser lilás, talvez cor de resedá muito
desmaiada, com um frouxo de rendas antigas de Malines… É prodigioso
como me escapou . Pois tenho o meu caderno de entrevistas bem anotadas, bem
documentadas!…
Na sua amargura, terminou pôr suplicar a Marizac que espalhasse pôr
toda a parte, no Clube, nas salas, a sua confissão. Fora um engano
de artista, que trabalha na febre, vasculhando as almas, perdido nas profundidades
negras das almas! Não reparara no colete, confundira os tons… Gritou,
com os braços estendidos para o diretor do Boulevard:
-Estou pronto a fazer uma retificação, numa interview, meu
caro mestre! Mande um dos seus redatores… Amanhã, às dez horas!
Fazemos uma interview, fixamos a cor. Evidentemente é lilás…
Mande um de seus homens, meu caro mestre! É também uma ocasião
para eu confessar, bem alto, os serviços que o Boulevard em feito às
ciências psicológicas e feministas!
Assim ele suplicava, encostado à estante, às lombadas dos Santos
Padres. E eu abalei, vendo ao fundo da Biblioteca Jacinto que se debatia e
se recusava entre dois homens.
Eram os dois homens de Madame de Trèves – o marido, conde de Trèves,
descendente dos reis de Cândia, e o amante, o terrível banqueiro
judeu, David Efraim. E tão enfronhadamente assaltavam o meu Príncipe
que nem me reconheceram, ambos num aperto de mão mole e vago me trataram
pôr “caro conde”! Num relance, rebuscando charutos sobre
a mesa de limoeiro, compreendi que se tramava a Companhia das Esmeraldas da
Birmânia, medonha empresa em que cintilavam milhões, e para que
os dois confederados de bolsa e de alcova, desde o começo do ano, pediam
o nome, a infância, o dinheiro de Jacinto. Ele resistira, no enfado
dos negócios, desconfiado daquelas esmeraldas soterradas num vale da
Ásia. E agora o conde de Trèves, um homem esgrouviado, de face
rechupada, eriçada de barba rala, sob uma fronte rotunda e amarela
como um melão, assegurava ao meu pobre Príncipe que no Prospecto
já preparado, demonstrando a grandeza do negócio, perpassava
um fulgor das Mil e uma noites. Mas sobretudo aquela escavação
de esmeraldas convidava todo o espírito culto pela sua ação
civilizadora. Era uma corrente de idéias ocidentais, invadindo, educando
a Birmânia. Ele aceitara a direção pôr patriotismo…
-De resto é um negócio de jóias, de arte, de progresso,
que deve ser feito, num mundo superior entre amigos…
E do outro lado o terrível Efraim, passando a mão curta e grossa
sobre a sua bela barba, mais frisada e negra que a dum Rei Assirio, afiançava
o triunfo da empresa pelas grossas forças que nela entravam, os Nagayers,
os Bolsans, os Saccart…
Jacinto franzia o nariz, enervado:
-Mas, ao menos, estão feitos os estudos? Já se provou que há
esmeraldas?
Tanta ingenuidade exasperou Efraim:
-Esmeraldas! Está claro que há esmeraldas!… Há sempre
esmeraldas desde que haja acionistas!
E eu admirava a grandeza daquela máxima – quando apareceu, esbaforido,
desdobrando o lenço muito perfumado, um dos familiares do 202, Todelle
(Antonio de Todelle), moço já calvo, de infinitas prendas, que
conduzia Cotillons, imitava cantores de Café-Concerto, temperava saladas
raras, conhecia todos os enredos de Paris.
-Já veio?… Já cá está o Grão-Duque?
-Não, S. Alteza ainda não chegara. E Madame de Todelle?
-Não pôde… No sofá… Esfolou uma perna.
-Ó!
-Quase nada… Caiu do velocípede!
Jacinto, logo interessado:
-Ah! Madame de Todelle anda já de velocípede?
-Aprende. Nem tem velocípede!… Agora, na quaresma, é que
se aplicou mais, no velocípede do padre Ernesto, do cura de S. José!
Mas ontem, no Bosque, zás, terra!… Perna esfolada. Aqui.
E na sua própria coxa, com a unha, vivamente, desenhou o esfolão.
Efraim, brutal e sério, murmurou: – “Diabo! é no melhor
sítio!” Mas Todelle nem o escutara, correndo para o diretor do
Boulevard, que se avançava, lento e barrigudo, com o seu monóculo
negro semelhante a um pacho. Ambos se colaram contra uma estante, num cochichar
profundo.
Jacinto e eu entramos então no bilhar, forrado de velhos couros de
Córdova, onde se fumava. Ao canto dum divã, o grande Dornan,
o poeta neoplatônico e místico, o Mestre sutil de todos os ritmos,
espapado nas almofadas, com um dos pés sob a coxa gorda, como um Deus
índio, dos botões do colete desabotoados, a papeira caída
sobre o largo decote do colarinho, mamava majestosamente um imenso charuto.
Ao pé dele, também sentado, um velho que eu nunca encontrara
no 202, esbelto, de cabelos brancos em anéis passados pôr trás
das orelhas, a face coberta de pó de arroz, um bigodinho muito negro
e arrebitado, findara certamente alguma história de bom e grosso sal
– porque diante do divã, de pé, Jovan, o supremo Crítico
de Teatro, ria com a calva escarlate de gozo, e um moço muito ruivo
(descendente de Coligny), de perfil de periquito, sacudia os braços
curtos como asas, e gania: “delicioso! divino!” Só o poeta
idealista permanecera impassível, na sua majestade obesa. Mas, quando
nos acercamos, esse Mestre do ritmo perfeito, depois de soprar uma farta fumarada
e me saudar com um pesado mover das pálpebras, começou numa
voz de rico e sonoro metal:
-Há melhor, há infinitamente melhor… Todos aqui conhecem
Madame Noredal. Madame Noredal tem umas imensas nádegas…
Desgraçadamente para o meu regalo, Todelle invadiu o bilhar, reclamando
Jacinto com alarido. Eram as senhoras que desejavam ouvir no fonógrafo
uma ária da Patti! O meu amigo sacudiu logo os ombros, numa surda irritação:
-Ária da Patti…Eu sei lá! Todos esses rolos estão
em confusão. Além disso o Fonógrafo trabalha mal. Nem
trabalha! Tenho três. Nenhuma trabalha!
-Bem! – exclamou alegremente Todelle. – Canto eu a Pauvre fille… É
mais de ceia! Oh, la pauv’, pauv’, pauv’…
Travou do meu braço, e arrastou a minha timidez serrana para o salão
cor-de-rosa murcha, onde, como Deusas num círculo escolhido do Olimpo,
resplandeciam Madame de Oriol, Madame Verghane, a princesa de Carman, e uma
outra loura, com grandes brilhantes nas grandes farripas, e de ombros tão
nus, e braços tão nus, e peitos tão nus, que o seu vestido
branco com bordados de ouro pálido parecia uma camisa a escorregar.
Impressionado, ainda retive Todelle, rugi baixinho: – “Quem é?”
Mas já o festivo homem correra para Madame de Oriol, com quem riam,
numa familiaridade superior e fácil, Marizac (o duque de Marizac) e
um moço de barba cor de milho e mais leve que uma penugem, que se balouçava
gracilmente sobre os pés, como uma espiga ao vento. E eu, encalhado
contra o piano, esfregava lentamente as mãos amassando o meu embaraço,
quando Madame Verghane se ergueu do sofá onde conversava com um velho
(que tinha a Grã-Cruz de Santo André), e avançou, deslizou
no tapete, pequena e nédia, na sua copiosa cauda veludo verde-negro.
Tão fina era a cinta, entre os encontros fecundos e a vastidão
do peito, todo nu e cor de nácar, que eu receava que ela partisse pelo
meio, no seu lento ondular. Os seus famosos bandós negros, dum negro
furioso, inteiramente lhe tapavam as orelhas; e, no grande aro de ouro que
os circundava, reluzia uma estrela de brilhantes, como na fronte dos anjos
de Boticelli. Conhecendo sem dúvida a minha autoridade no 202, ela
despediu sobre mim ao passar, com raio benéfico, um sorriso que lhe
liquescia mais os olhos líquidos, e murmurou:
-O Gão-Duque vem, com certeza/
-Ó com certeza, minha senhora, para o peixe!
-Para o peixe?…
Mas justamente, na antecâmara, rompeu, em rufos e arcadas triunfais,
a marcha de Rakoczy. Era ele! Na Biblioteca, o nosso retumbante mordomo anunciava:
-S. Alteza o Grão-Duque Casimiro!
Madame de Verghane, com um curto suspiro de emoção, alteou
o peito, como para lhe expor melhor a magnificência ebúrnea.
E o homem do Boulevard, o velho da Grã-Cruz, Efraim, quase me empurraram,
investindo para a porta, na imensa sofreguidão de Pessoa Real.
Precedido pôr Jacinto, o Grão-duque surgiu. Era um possante
homem, de barba em bico, já grisalha, um pouco calvo. Durante um momento
hesitou, com um balanço lento sobre os és pequeninos, calçados
de sapatos rasos, quase sumidos sob as pantalonas muito largas. Depois, pesado
e risonho, veio apertar a mão às senhoras que mergulhavam nos
veludos e sedas, em mesuras de Corte. E imediatamente, batendo com carinhosa
jovialidade no ombro de Jacinto:
-E o peixe?… Preparado pela receita que mandei, hem?
Um murmúrio de Jacinto tranqüilizou S. Alteza.
-Ainda bem, ainda bem! – exclamou ele, no seu vozeirão de comando.
Que eu não jantei, absolutamente não jantei! É que se
está jantando deploravelmente em casa do José. Mas pôr
que se vai jantar ainda ao José? Sempre que chego a Paris, pergunto:
“Onde é que se janta agora?” em casa do José!…
Qual! não se janta! Hoje, pôr exemplo, galinholas… Uma peste!
Não tem, não tem a noção da galinhola!
Os seus olhos azulados, dum azul sujo, rebrilhavam, alargados pela indignação:
-Paris está perdendo todas as suas superioridades. Já se não
janta, em Paris!
Então, em redor, aqueles senhores concordaram, desolados. O conde
de Trèves defendeu o Bignon, onde se conservavam nobres tradições.
E o diretor do Boulevard, que se empurrava todo para S. alteza, atribuía
a decadência da cozinha, em França, à República,
ao gosto democrático e torpe pelo barato.
-No Paillard, todavia… – começou o Efraim.
-No Paillard! – gritou logo o Grão-Duque. – Mas os Borgonhas são
tão maus! Os Borgonhas são tão maus!…
Deixara pender os braços, os ombros, descoroçoado. Depois,
com o seu lento andar balançado como o dum velho piloto, atirando um
pouco para trás as lapelas da casaca, foi saudar Madame de Oriol, que
toda ela faiscou, no sorriso, nos olhos, nas jóias, em cada prega das
suas sedas cor de salmão. Mas apenas a clara e macia criatura, batendo
o leque como uma asa alegre, começara a chalrar, S.Alteza reparou no
aparelho de Teatrofone, pousado sobre uma mesa entre flores, e chamou Jacinto:
-Em comunicação com o Alcazar?… O Teatrofone?
-Certamente, meu senhor.
Excelente! Muito chique! Ele ficara com pena de não ouvir a Gilberte
numa cançoneta nova, as Casquettes. Onze e meia! Era justamente a essa
hora que ela cantava, no último ato da Revista Elétrica… –
colou às orelhas os dois “receptores” do Teatrofone, e
quedou embebido, com uma ruga séria na testa dura. De repente num comando
forte:
-É ela! Chuta! Venham ouvir!… É ela! Venham todos! Princesa
de Carman, para aqui! Todos! É ela! Chuta!…
Então, como Jacinto instalara prodigamente dois Teatrofones, cada
um provido de doze fios, as senhoras, todos aqueles cavalheiros, se apressaram
a acercar submissamente um “receptor” do ouvido, e a permanecer
imóveis para saborear Les Casquettes. E no salão cor-de-rosa
murcha, na nave da Biblioteca, onde se espalhara um silêncio augusto,
só eu fiquei desligado do Teatrofone, com as mãos nas algibeiras
e ocioso.
No relógio monumental, que marcava a hora de todas as Capitais e o
movimento de todos os Planetas, o ponteiro rendilhado adormeceu. Sobre a mudez
e a imobilidade pensativa daqueles dorsos, daqueles decotes, a Eletricidade
refulgia com uma tristeza de sol regelado. E de cada orelha atenta, que a
mão tapava, pendia um fio negro, como uma tripa. Dornan, esboroado
sobre a mesa, cerrara as pálpebras, numa meditação de
monge obeso. O historiador dos Duques de Anjou, com o “receptor”
na ponta delicada dos dedos, erguendo o nariz agudo e triste, gravemente cumpria
um dever palaciano. Madame de Oriol sorria, toda lânguida, como se o
fio lhe murmurasse doçuras. Para desentorpecer arrisquei um passo tímido.
Mas caiu logo sobre mim um chut severo do Grão-Duque! Recuei para entre
as cortinas da janela, a abrigar a minha ociosidade. O Psicólogo da
Couraça, distante da mesa, com o seu comprido fio esticado, mordia
o beiço, num esforço de penetração. A beatitude
de S. Alteza, enterrado numa vasta poltrona, era perfeita. Ao lado o colo
de Madame Verghane arfava como uma onda de leite. E o meu pobre Jacinto, numa
aplicação conscienciosa, pendia sobre o Teatrofone tão
tristemente como sobre uma sepultura.
Então, ante aqueles seres de superior civilização, sorvendo
num silêncio devoto as obscenidades que a Gilberte lhes gania, pôr
debaixo do solo de Paris, através de fios mergulhados nos esgotos,
cingidos aos canos das fezes – pensei na minha aldeia adormecida. O crescente
de lua, que, seguido duma estrelinha, corria entre nuvens sobre os telhados
e as chaminés negras dos Campos Elísios, também andava
lá fugindo, mais lustrosa e mais doce, pôr cima dos pinheirais.
As rãs coaxavam ao longe no Pego da dona. A ermidinha de S. Joaquim
branquejava no cabeço, nuazinha e cândida…
Uma das senhoras murmurou:
-Mas, não é a Gilberte!…
E um dos homens:
-Parece um cornetim…
-Agora são palmas…
-Não, é o Paulim!
O Grão-Duque lançou um chut feroz… No pátio da nossa
casa ladravam os cães. De Além do ribeiro respondiam os cães
do João Saranda. Como me encontrei descendo pôr uma quelha, sob
as ramadas, com o meu varapau ao ombro? E sentia, entre a seda das cortinas,
num fino ar macio, o cheiro das pinhas estalando nas lareiras, o calor dos
currais através das sebes altas, e o sussurro dormente das levadas…
Despertei a um brado que não saía nem dos eidos, nem das sombras.
Era o Grão-Duque que se erguera, encolhia furiosamente os ombros:
-Não se ouve nada!… Só guinchos! E um zumbido! Que maçada!…
Pois é uma beleza, a cançoneta:
Oh les casquettes,
Oh les casquette-e-e-tes!…
Todos largaram os fios – proclamavam a Gilberte deliciosa. E o mordomo benedito,
abrindo largamente os dois batentes, anunciou:
-Monseigneur est servi!
Na mesa, que pelo esplendor das orquídeas mereceu os louvores ruidosos
de S. Alteza, fiquei entre o etéreo poeta Dornan e aquele moço
de penugem loura que balouçava como uma espiga ao vento. Depois de
desdobrar o guardanapo, de o acomodar regaladamente sobre os joelhos, Dornan
desenvencilhou da corrente do relógio uma enorme luneta para percorrer
o menu – que aprovou. E inclinando para mim a sua face de Apóstolo
obeso.
-Este Porto de 1834, aqui em casa de Jacinto, deve ser autêntico…
Hem?
Assegurei ao Mestre dos Ritmos que o “Porto” envelhecera nas
adegas clássicas do avô Galião. Ele afastou, numa preparação
metódica, os longos, densos fios do bigode que lhe cobriam a boca grossa.
Os escudeiros serviram um consommé frio com trufas. E o moço
cor de milho, que espalhara pela mesa o seu olhar azul e doce, murmurou, com
uma desconsolação risonha:
-Que pena!… Só falta aqui um general e um bispo!
Com efeito! Todas as Classes Dominantes comiam nesse momento as trufas do
meu Jacinto… Mas defronte Madame de Oriol lançara um riso mais cantado
que um gorjeio. O Grão-Duque, numa silva de orquídeas que orlava
o seu talher, notara uma, sombriamente horrenda, semelhante a um lacrau esverdinhado,
de asas lustrosas, gordo e túmido de veneno: e muito delicadamente
ofertara a flor monstruosa a Madame de Oriol, que, com trinado riso, solenemente,
a colocou no seio. Colado àquela carne macia, duma brancura de nata
fina, o lacrau inchara, mais verde, com as asas frementes. Todos os olhos
se acendiam, se cravam no lindo peito, a que a flor disforme, de cor venenosa,
apimentava o sabor. Ela reluzia, triunfava. Para ajeitar melhor a orquídea
os seus dedos alargaram o decote, aclararam belezas, guiando aquelas curiosidades
flamejantes que a despiam. A face vincada de Jacinto pendia para o prato vazio.
E o alto lírico do Crepúsculo Místico, passando a mão
pelas barbas, rosnou com desdém:
-Bela mulher… Mas ancas secas, e aposto que não tem nádegas!
No entanto o moço de loura penugem voltara à sua estranha mágoa.
Não possuirmos um general com a sua espada, e um bispo com seu báculo!…
Ele atirou um gesto suave em que os seus anéis faiscaram:
-Para uma bomba de dinamite… Temos aqui um esplêndido ramalhete de
flores de civilização, com um Grão-Duque no meio. Imagine
uma bomba de dinamite, atirada da porta!… Que belo fim de ceia, num fim
de século!
E como eu o considerava assombrado, ele bebendo golos de Chateau-Yquem, declarou
que hoje a única emoção, verdadeiramente fina, seria
aniquilar a Civilização. Nem a ciência, nem as artes,
nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às
nossas almas saciadas. Todo o prazer que se extraíra de criar estava
esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de destruir!
Desenrolou ainda outras enormidades, com um riso claro nos olhos claros.
Mas eu não atendia o gentil pedante, colhido pôr outro cuidado
– reparando que em torno, subitamente, todo o serviço estacara como
no conto do Palácio Petrificado. E o parto agora devido era o peixe
famoso da Dalmácia, o peixe de S. Alteza, o peixe inspirador da festa!
Jacinto, nervoso, esmagava entre os dedos uma flor. E todos os escudeiros
sumidos!
Felizmente o Grão-Duque contava a história duma caçada,
nas coutadas de Sarvan, em que uma senhora, mulher de um banqueiro, saltara
bruscamente do cavalo, num descampado, sem árvores. Ele e todos os
caçadores param – e a galante senhora, lívida, com a amazona
arregaçada, corre para trás duma pedra… Mas nunca soubemos
em que se ocupava a banqueira, nesse descampado, agachada atrás da
pedra – porque justamente o mordomo apareceu, reluzente de suor, e balbuciou
uma confidência a Jacinto, que mordeu o beiço, trespassado. O
Grão-duque emudecera. Todos se entreolhavam, numa ansiedade alegre.
Então o meu Príncipe, com paciência, com heroicidade,
forçando palidamente o sorriso:
-Meus amigos, há uma desgraça…
Dornan pulou na cadeira:
-Fogo?
-Não, não era fogo. Fora o elevador dos pratos que inesperadamente,
ao subir o peixe de S. Alteza, se desarranjara, e não se movia encalhado!
O Grão duque arremessou o guardanapo. Toda a sua polidez estalava
como um esmalte mal posto:
-Essa é forte!… Pois um peixe que me deu tanto trabalho! Para que
estamos nós aqui então a cear? Que estupidez! E pôr que
o não trouxeram à mão, simplesmente? Encalhado… Quero
ver! Onde é a copa?
E, furiosamente, investiu para a copa, conduzido pelo mordomo que tropeçava,
vergava os ombros, ante esta esmagadora cólera de Príncipe.
Jacinto seguiu, como uma sombra, levado na rajada de S. Alteza. E eu não
me contive, também me atirei para a copa, a contemplar o desastre,
enquanto Dornan, batendo na coxa, clamava que se ceasse sem peixe!
O Grão-Duque lá estava, debruçado sobre o poço
escuro do elevador, onde mergulhara uma vela que lhe avermelhava mais a face
esbraseada. Espreitei, pôr sobre o seu ombro real. Em baixo, na treva,
sobre uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa, ainda
fumegando, entre rodelas de limão. Jacinto, branco como a gravata,
torturava desesperadamente a mola complicada do ascensor. Depois foi o Grão-Duque
que, com os pulsos cabeludos, atirou um empuxão tremendo aos cabos
em que ele rolava. Debalde! O aparelho enrijara numa inércia de bronze
eterno.
Sedas roçagaram à entrada da copa. Era Madame de Oriol, e atrás
Madame Verghane, com os olhos a faiscar, na curiosidade daquele lance em que
o Príncipe soltara tanta paixão. Marizac, nosso íntimo,
surgiu também, risonho, propondo uma descida ao poço com escadas.
Depois foi o Psicólogo, que se abeirou, psicologou, atribuindo intenções
sagazes ao peixe que assim se recusava. E a cada um o Grão-Duque, escarlate,
mostrava com dedo trágico, no fundo da cova, o seu peixe! Todos afundavam
a face, murmuravam: ”lá está!” Todelle, na sua precipitação,
quase se despenhou. O periquito descendente de Coligny batia as asas, granindo:
– “Que cheiro ele deita, que delícia!” Na copa atulhada
os decotes das senhoras roçavam a farda dos lacaios. O velho caiado
de pó de arroz meteu o pé num balde de gelo, com um berro ferino.
E o Historiador dos duques de Anjou movia pôr cima de todos o seu nariz
bicudo e triste.
De repente, Todelle teve uma idéia!
É muito simples… É pescar o peixe!
O Grão-Duque bateu na coxa uma palmada triunfal. Está claro!
Pescar o peixe! E no gozo daquela facécia, tão rara e tão
nova, toda a sua cólera se sumira, de novo se tornara o Príncipe
amável, de magnífica polidez, desejando que as senhoras se sentassem
para assistir à pesca miraculosa! Ele mesmo seria o pescador! Nem se
necessitava, para a divertida façanha, mais que uma bengala, uma guita
e um gancho. Imediatamente Madame de Oriol, excitada, ofereceu um dos seus
ganchos. Apinhados em volta dela, sentindo o seu perfume, o calor da sua pele,
todos exaltamos a amorável dedicação. E o Psicólogo
proclamou que nunca se pescara com tão divino anzol!
Quando dois escudeiros estonteados voltaram, trazendo uma bengala e um cordel,
já o Grão-Duque, radiante, vergara o gancho em anzol. Jacinto,
com uma paciência lívida, erguia uma lâmpada sobre a escuridão
do poço fundo. E os senhores mais graves, o Historiador, o diretor
do Boulevard, o Conde de Trèves, o homem de cabeça à
Van-Dyck, sorriam, amontoados à porta, num interesse reverente pela
fantasia de S. Alteza. Madame de Trèves, essa examinava serenamente,
com a sua nobre luneta, a instalação da copa. Só Dornan
não se erguera da mesa, com os punhos cerrados sobre a toalha, o gordo
pescoço encovado, no tédio sombrio de fera a quem arrancaram
a posta.
No entanto S. Alteza pescava com fervor! Mas debalde! O gancho, pouco agudo,
sem pressa, bamboleando na extremidade da guita frouxa, não fisgava.
-Ó Jacinto, erga essa luz! – gritava ele inchado e suado. – Mais!…
Agora! Agora! É na guelra! Só na guelra é que o gancho
o pode prender. Agora… Qual! que diabo! Não vai!
Tirou a face do poço, resfolegando e afrontado. Não era possível!
Só carpinteiros, com alavancas!… E todos, ansiosamente, bradamos
que se abandonasse o peixe!
O Príncipe, risonho, sacudindo as mãos, concordava que pôr
fim “fora mais divertido pescá-lo do que comê-lo!”
E o elegante bando refluiu sofregamente para a mesa, ao som duma valsa de
Strauss, que os Tziganes arremessaram em arcadas de lânguido ardor.
Só Madame de Trèves se demorou ainda, retendo o meu pobre Jacinto,
para lhe assegurar quanto admirava o arranjo da sua copa… Ó perfeita!
Que compreensão da vida, que fina inteligência do conforto!
S. Alteza, encalmado pelo esforço, esvaziou poderosamente dois copos
de Chateau-Lagrange. Todos o aclamavam como um pescador genial. E os escudeiros
serviam o Barão de Pauillac, cordeiro das lezírias marinhas,
que, preparado com ritos quase sagrados, toma este grande nome sonoro e entra
no Nobiliário de França.
Eu comi com o apetite dum herói de Homero. Sobre o meu copo e o de
Dornan o Champanhe cintilou e jorrou ininterrompidamente como fonte de Inverno.
Quando se serviam ortolans1 gelados, que se derretiam na boca, o
Ortolans: Hortulana, avezinha de arribação, de carne muito
apreciada; também chamada cencramo, cencrâmide, sombria ou verdelha.
Divino poeta murmurou, para meu regalo, o seu soneto sublime a “Santa
Clara”. E como, do outro lado, o moço de penugem loura insistia
pela destruição do velho mundo, também concordei, e,
sorvendo Champanhe coalhado em sorvete, maldissemos o Século, a Civilização,
todos os orgulhos da Ciência! Através das flores e das luzes,
no entanto, eu seguia as ondas arfantes do vasto peito de Madame Verghane,
que ria como uma bacante. E nem me apiedava de Jacinto que, com a doçura
de S. Jacinto sobre o cepo, esperava o fim do seu martírio e da sua
festa. Ela findou. Ainda me recordo, às três horas da noite,
o Grão-Duque na antecâmara, muito vermelho, mal firme nos pés
pequeninos, sem acertar com as mangas de peliça que Jacinto e eu lhe
ajudamos a enfiar – convidando o meu amigo, numa efusão carinhosa,
a ir caçar às suas terras da Dalmácia…
-Devo ao meu Jacinto uma bela pesca, quero que ele me deva uma bela caçada!
E enquanto o acompanhávamos, entre as alas dos escudeiros, pela vasta
escada onde o mordomo procedia erguendo um candelabro de três lumes,
S. Alteza repisava, pegajoso:
-Uma bela caçada… E também vai Fernandes! Bom Fernandes,
Zé Fernandes! Ceia superior, meu Jacinto! O Barão de Pauillac,
divino… Creio que o devemos nomear Duque… O Senhor duque de Pauillac!
Mais um bocado da perna do senhor Duque de Pauillac. Ah! Ah!… Não
venham fora! Não se constipem!
E do fundo do cupé, ao rodar, ainda bradou:
-O peixe, Jacinto, desencalha o peixe! Excelente, ao almoço, frio,
com um molho verde!
Trepando cansadamente os degraus, numa moleza de Champanhe e sono em que
os olhos se me cerravam, murmurei para o meu Príncipe:
-Foi divertido, Jacinto! Suntuosa mulher, a Verghane! Grande pena, o elevador…
E Jacinto, num som cavo que era bocejo e rugido:
-Uma maçada! E tudo falha!
Três dias depois desta festa no 202 recebeu o meu Príncipe inesperadamente,
de Portugal, uma nova considerável. Sobre a sua Quinta e solar de Tormes,
pôr toda a serra, passara uma tormenta devastadora de vento, corisco
e água. Com as grossas chuvas, “ou pôr outras causas que
os peritos dirão” (como exclamava na sua carta angustiada o procurador
Silvério), um pedaço de monte, que se avançava em socalco
sobre o vale da Carriça, desabara, arrastando a velha igreja, uma igrejinha
rústica do século XVI, onde jaziam sepultados os avós
de Jacinto desde os tempos de el-rei D. Manuel. Os ossos veneráveis
desses Jacintos jaziam agora soterrados sob um montão informe de terra
e pedra. O Silvério já começara com os moços da
Quinta a desatulhar os “preciosos restos”. Mas esperava ansiosamente
as ordens de sua Exª…
Jacinto empalidecera, impressionado. Esse velho solo serrano, tão
rijo e firme desde os Godos, que de repente ruía! Esses jazigos de
paz piedosa, precipitados com fragor, na borrasca e na treva, para um negro
fundo de vale! Essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma data, uma
história, confundidas num lixo de ruína!
-Coisa estranha, coisa estranha!…
E toda a noite me interrogou acerca da serra e de Tormes, que eu conhecia
desde pequeno, porque o velho solar, com a sua nobre alameda de faias seculares,
se erguia a duas léguas da nossa casa, no antigo caminho de Guiães
à estação e ao rio. O caseiro de Tormes, o bom Melchior,
era cunhado do nosso feitor da Roqueirinha: – e muitas vezes, depois da minha
intimidade com Jacinto, eu entrara no robusto casarão de granito, e
avaliara o grão espalhado pelas salas sonoras, e provara o vinho novo
das adegas imensas…
-E a igreja, Zé Fernandes?… Entraste na igreja?
-Nunca… Mas era pitoresca, com uma torrezinha quadrada, toda negra, onde
há muitos anos vivia uma família de cegonhas… Terrível
transtorno para as cegonhas!
-Coisa estranha! – murmurou ainda o meu Príncipe, agourado.
E telegrafou ao Silvério que desatulhasse o vale, recolhesse as ossadas,
reedificasse a Igreja, e para esta obra de piedade e reverência, gastasse
o dinheiro, sem contar, como a água dum rio largo.
Capítulo V
No entanto Jacinto, desesperado com tantos desastres humilhadores – as torneiras
que dessoldavam, os elevadores que emperravam, o Vapor que se encolhia, a
Eletricidade que se sumia, decidiu valorosamente vencer as resistências
finais da Matéria e da Força pôr novas e mais poderosas
acumulações de Mecanismos. E nessas semanas de Abril, enquanto
as rosas desabrochavam, a nossa agitada casa, entre aquelas quietas casas
dos Campos Elísios que preguiçavam ao sol, incessantemente tremeu,
envolta num pó de caliça e de empreitada, com o bruto picar
de pedra, o retininte martelar de ferro. Nos silenciosos corredores, onde
me era doce fumar antes do almoço um pensativo cigarro, circulavam
agora, desde madrugada, ranchos de operários, de blusas brancas, assobiando
o Petit-Bleu, e intimidando os meus passos, quando eu atravessava em fralda
e chinelas para o banho ou para ou para outros retiros. Apenas se varava com
perícia algum andaime obstruindo as portas – logo se esbarrava com
uma pilha de tábuas, uma seira de ferramentas ou um balde enorme de
argamassa. E os pedaços de soalho levantado mostravam tristemente,
como num cadáver aberto, todos interiores do 202, a ossatura, os sensíveis
nervos de arame, os negros intestinos de ferro fundido.
Cada dia estacava diante do portão alguma lenta carroça, de
onde os criados, em mangas de camisa, descarregavam caixotes de madeira, fardos
de lona, que se despregavam e se descosiam numa sala asfaltada, ao fundo do
jardim, pôr trás da sebe de lilases. E eu descia, reclamado pelo
meu Príncipe, para admirar uma nova Máquina que nos tornaria
a vida mais fácil, estabelecendo dum modo mais seguro o nosso domínio
sobre a Substância. Durante os calores, que apertaram depois da Ascensão,
ensaiamos esperançadamente, para refrescar as águas minerais,
a Soda-Water e os Medocs ligeiros, três geleiras, que se amontoaram
na copa sucessivamente desprestigiadas. Com os morangos novos apareceu um
instrumentozinho astuto, para lhes arrancar os pés, delicadamente.
Depois recebemos outro, prodigioso, de prata e cristal, para remexer freneticamente
as saladas; e, na primeira vez que o experimentei, todo o vinagre esparrilhou
sobre os olhos do meu Príncipe, que fugiu aos uivos! Mas ele teimava…
Nos atos mais elementares, para aliviar ou apressar o esforço, se socorria
Jacinto da dinâmica. E agora era pôr intervenção
duma máquina que abotoava as ceroulas.
E simultaneamente, ou em obediência à sua Idéia, ou governado
pelo despotismo do hábito, não cessava, ao lado de Mecânica
acumulada, de acumular Erudição. Ó, a invasão
dos livros no 202! Solitários, aos pares, em pacotes, dentro de caixas,
franzinos, gordos e repletos de autoridade, envoltos em plebéia capa
amarela ou revestidos de marroquim e ouro, perpetuamente, torrencialmente,
invadiam pôr todas as largas portas a Biblioteca, onde se estiravam
sobre o tapete, se repimpavam nas cadeiras macias, se entronizavam em cima
das mesas robustas, e sobretudo trepavam contra as janelas, em sôfregas
pilhas, como se, sufocados pela sua própria multidão, procurassem
com ânsia espaço e ar! Na erudita nave, onde apenas alguns livros
mais altos restavam descobertos, sem tapume de livros, perenemente se adensava
um pensativo crepúsculo de Outono enquanto fora Junho refulgia. A Biblioteca
transborda através de todo o 202! Não se abria um armário
sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não
se franzia uma cortina, sem que detrás surgisse, hista, uma ruma de
livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã,
correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada
pôr uma tremenda coleção de Estudos Sociais, a porta do
Water-Closet!
Mais amargamente porém me lembro da noite histórica em que,
no meu quarto, moído e mole dum passeio a Versalhes, com as pálpebras
poeirentas e meio adormecidas, tive de desalojar do meu leito, praguejando,
um pavoroso dicionário de Indústria em trinta e sete volumes!
Senti então a suprema fartura do livro. Ajeitando, com murros, os travesseiros,
maldisse a Imprensa, a Facúndia humana… e já me estirara,
adormecia, quando topei, quase parti a preciosa rótula do joelho, contra
a lombada dum tomo que velhacamente se aninhara entre a parede e os colchões.
Com furor e um berro empolguei, arremessei o tomo afrontoso – que entornou
o jarro, inundou um tapete rico de Daghestan. E nem sei se depois adormeci
– porque os meus pés, a que não sentia nem o pisar nem o rumor,
como se um vento brando me levasse, continuaram a tropeças em livros
no corredor apagado, depois na areia do jardim que o luar branquejava, depois
na Avenida dos Campos Elísios, povoada e ruidosa como numa festa cívica.
E, ó portento! Todas as casas aos lados eram construídas com
livros. Nos ramos dos castanheiros ramalhavam folhas de livros. E os homens,
as finas damas, vestidos de papel impresso, com títulos nos dorsos,
mostravam em vez de rosto um livro aberto, a que a brisa lenta virava docemente
as folhas. Ao fundo, na Praça da Concórdia, avistei uma escarpada
montanha de livros, a que tentei trepar, arquejante, ora enterrando a perna
em flácidas camadas de versos, ora batendo contra a lombada, dura como
calhau, de tomos de Exegese e Crítica. A tão vastas alturas
subi, para além da terra, para além das nuvens, que me encontrei,
maravilhado, entre os astros. Eles rolavam serenamente, enormes e mudos, recobertos
pôr espessas crostas de livros, de onde surdia, aqui e além,
pôr alguma fenda, entre dois volumes mal juntos, um raiozinho de luz
sufocada e ansiada. E assim ascendi ao Paraíso. Decerto era o paraíso
– porque com meus olhos de mortal argila avistei o Ancião da Eternidade,
aquele que não tem Manhã nem Tarde. Numa claridade que dele
irradiava mais clara que todas as claridades, entre fundas estantes de ouro
abarrotadas de códices, sentado em vetustíssimos fólios,
com os flocos das infinitas barbas espalhados pôr sobre resmas de folhetos,
brochuras, gazetas e catálogos – o Altíssimo lia. A fronte super-divina
que concebera o Mundo pousava sobre a mão superforte que o Mundo criara
– e o Criador lia e sorria. Ousei, arrepiado de sagrado horror, espreitar
pôr cima do seu ombro coruscante. O livro era brochado, de três
francos… O Eterno lia Voltaire, numa edição barata, e sorria.
Uma porta faiscou e rangeu, como se alguém penetrasse no Paraíso.
Pensei que um Santo novo chegara da Terra. Era Jacinto, com o charuto em brasa,
um molho de cravos na lapela, sobraçando três livros amarelos
que a Princesa de Carman lhe emprestara para ler!
Numa dessas ativas semanas, porém, a minha atenção subitamente
se despegou deste interessante Jacinto. Hóspede do 202, conservava
no 202 a minha mala e a minha roupa; e, acostado à bandeira do meu
Príncipe, ainda ocasionalmente comia do seu caldeirão suntuoso.
Mas a minha alma, a minha empobrecida alma, e o meu corpo, o meu embrutecido
corpo, habitavam então na rua do Hélder, nº. 16, quarto
andar, porta à esquerda.
Descia eu uma tarde, numa leda paz de idéias e sensações,
o Boulevard da Madalena, quando avistei, diante da Estação dos
ônibus, rondando no asfalto, num passo lento e felino, uma criatura
seca, muito morena, quase tisnada, com dois fundos olhos taciturnos e tristes,
e uma mata de cabelos amarelados, toda crespa e rebelde, sob o chapéu
velho de plumas negras. Parei, como colhido pôr um repuxão nas
entranhas. A criatura passou – no seu magro rondar de gata negra, sob um beiral
de telhado, ao luar de Janeiro. Dois poços fundos não luzem
mais negra e taciturnamente do que luziam os seus olhos taciturnos e negros.
Não recordo (Deus louvado!) como rocei o seu vestido de seda, lustroso
e ensebado nas pregas; nem como lhe rosnei uma súplica pôr entre
os dentes que rangiam; nem como subimos ambos, morosamente e mais silenciosos
que condenados, para um gabinete do Café Durand, safado e morno. Diante
do espelho, a criatura, com a lentidão dum rito triste, tirou o chapéu
e a romeira salpicada de vidrilhos. A seda puída do corpete esgarçava
nos cotovelos agudos. E os seus cabelos eram imensos, duma dureza e espessura
de juba brava, em dois tons amarelos, uns mais dourados, outros mais crestados,
como a côdea de uma torta ao sair quente do forno.
Com um riso trêmulo, agarrei os seus dedos compridos e frios.
-E o nomezinho, hem?
Ela séria, quase grave:
-Madame Colombe, 16, rua do Hélder, quarto andar, porta à esquerda.
E eu (miserável Zé Fernandes!) também me senti muito
sério, trespassado pôr uma emoção grave, como se
nos envolvesse, naquela alcova de Café, a majestade dum Sacramento.
À porta, empurrada levemente, o criado avançou a face nédia.
Ordenei uma lagosta, pato com pimentões, e Borgonha. E foi somente
ao findarmos o pato que me ergui, amarfanhando convulsamente o guardanapo,
e a tremer lhe beijei a boca, todo a tremer, num beijo profundo e terrível,
em que deixei a alma, entre saliva e gosto de pimentão! Depois, numa
tipóia aberta, sob um bafo mole de leste e de trovoada, subimos a Avenida
dos Campos Elísios. Em frente à grade do 202 murmurei, para
a deslumbrar com o meu luxo: – “Moro ali, todo o ano!…” E como
ao mirar o Palacete, debruçada, ela roçara a mata fulva do pêlo
crespo pela minha barba – berrei desesperadamente ao cocheiro que galopasse,
para a rua do Hélder, nº.16, quarto andar, pôr à
esquerda!
Amei aquela criatura. Amei aquela criatura com Amor, com todos os Amores
que estão no Amor, o Amor divino, o Amor humano, o Amor bestial, como
Santo Antonino amava a Virgem, como Romeu amava Julieta, como um bode ama
uma cabra. Era estúpida, era triste. Eu deliciosamente apagava a minha
alegria na cinza da sua tristeza; e com inefável gosto afundava a minha
razão na densidade da sua estupidez. Durante sete furiosas semanas
perdi a consciência da minha personalidade de Zé Fernandes –
Fernandes de Noronha e Sande, de Guiães! Ora se me afigurava ser um
pedaço de cera que se derretia, com horrenda delícia, num forno
rubro e rugidor; ora me parecia ser uma faminta fogueira onde flamejava, estalava
e se consumia um molho de galhos secos. Desses dias de sublime sordidez só
conservo a impressão duma alcova forrada de cretones sujos, duma bata
de lã cor de lilás com sotaches negros, de vagas garrafas de
cerveja no mármore dum lavatório, e dum corpo tisnado que rangia
e tinha cabelos no peito. E também me resta a sensação
de incessantemente e com arroubado deleite me despojar, arremessar para um
regaço, que se cavava entre um ventre sumido e uns joelhos agudos,
o meu relógio, os meus berloques, os meus anéis, os meus botões
de safira, e as cento e noventa e sete libras de ouro que eu trouxera de Guiães
numa cinta de camurça. Do sólido, decoroso, bem fornecido Zé
Fernandes, só restava uma carcaça errando através dum
sonho, com gâmbias moles e a barba a escorrer.
Depois, uma tarde, trepando com a costumada gula a escada da rua do Hélder,
encontrei a porta fechada – e arrancado da ombreira aquele cartão de
Madame Colombe que eu lia sempre tão devotamente e que era a sua tabuleta…
Tudo no meu ser tremeu como se o chão de Paris tremesse! Aquela era
a porta do Mundo que ante mim se fechara! Para além estavam as gentes,
as cidades, a vida, Deus e Ela. E eu ficara sozinho, naquele patamar do Não-ser,
fora da porta que se fechara, único ser fora do Mundo! Rolei pelos
degraus, com o fragor e a incoerência duma pedra, até ao cubículo
da porteira e do seu homem que jogavam as cartas em ditosa pachorra, como
se tão pavoroso abalo não tivesse desmantelado o Universo!
-Madame Colombe?
A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:
-Já não mora… Abalou esta manhã, para outra terra
com outra porca!
Para outra terra! Com outra porca!… Vazio, negramente vazio de todo o pensar,
de todo o sentir, de todo o querer – botei aos tombos, como um tonel vazio,
na corrente açodada do Boulevard, até que encalhei num banco
da Praça da Madalena, onde tapei com as mãos, a que não
sentia a febre, os olhos a que não sentia o pranto! Tarde, muito tarde,
quando já se cerravam com estrondo as cortinas de ferro das lojas,
surdiu, de entre todas estas confusas ruínas do meu ser, a eterna sobrevivente
de todas as ruínas – a idéia de jantar. Penetrei no Durand,
com os passos entorpecidos dum ressuscitado. E, numa recordação
que me escaldava a alma, encomendei a lagosta, o pato, o Borgonha! Mas ao
alargar o colarinho, ensopado pelo ardor daquela tarde de Julho, entre a poeira
da Madalena, pensei com desconforto: – “Santíssimo Nome de Deus!
Que imensa sede me fez esta desgraça!…” De manso acenei ao
moço: – “Antes do Borgonha, uma garrafa de Champanhe, com muito
gelo, e um grande copo!…” Creio que aquele Champanhe se engarrafara
no Céu onde corre perenemente a fresca fonte da Consolação,
e que na garrafa bendita que me coube penetrara, antes de arrolhada, um jorro
largo dessa fonte inefável. Jesus! que transcendente regalo, o daquele
nobre copo, embaciado, nevado, a espumar, a picar, num brilho de ouro! E depois,
garrafa de Borgonha! E depois, garrafa de Conhaque! E depois Hortelã-Pimenta
granitada em gelo! E depois um desejo arquejante de espancar, com o meu rijo
marmeleiro de Guiães, a porca que fugira com outra porca! Dentro da
tipóia fechada, que me transportou num galope ao 202, não sufoquei
este santo impulso, e com os meus punhos serranos atirei murros retumbantes
contra as almofadas, onde via, furiosamente via a mata imensa de pêlo
amarelo, em que a minha alma uma tarde se perdera, e três meses se debatera,
e para sempre se emporcalhara! Quando o fiacre estacou no 202 ainda eu espancava
tão desesperadamente a besta ingrata, que, aos berros do cocheiro,
dois moços acudiram e me sustiveram, recebendo pelos ombros, sobre
as nucas servis, os restos cansados da minha cólera.
Em cima, repeli a solicitude do Grilo que tentava impor ao siô Zé
Fernandes, a Zé Fernandes de Guiães, a imensa indignidade dum
chá de macela! E estirado no leito de D.Galião, com as botas
sobre o travesseiro, o chapéu alto sobre os olhos, ri, num doloroso
riso, deste Mundo burlesco e sórdido de Jacintos e de Colombes! E de
repente senti uma angústia horrenda. Era ela! Era a Madame Colombe,
que esfuziara da chama da vela, e saltara sobre o meu leito, e desabotoara
o meu colete, e arrombara as minhas costelas, e toda ela, com as saias sujas,
mergulhara dentro do meu peito e abocara o meu coração, e chupava
a sorvos lentos, como na rua do Hélder, o sangue do meu coração!
Então, certo da Morte, ganindo pela tia Vicência, pendi do leito
para mergulhar na minha sepultura, que, através da névoa final,
eu distinguia sobre o tapete – redondinha, vidrada, de porcelana e com asa.
E, sobre a minha sepultura, que tão irreverentemente se assemelhava
ao meu vaso, vomitei o Borgonha, vomitei o pato, vomitei a lagosta. Depois,
num esforço ultra-humano, com um rugido, sentindo que, não somente
toda a entranha, mas a alma se esvaziava toda, vomitei Madame Colombe! Recaí
sobre o leito de Galião…Recarreguei o chapéu sobre os olhos
para não sentir os raios do Sol… Era um sol novo, um sol espiritual,
que se erguia sobre a minha vida. E adormeci, como uma criancinha docemente
embalada num berço de verga pelo Anjo da guarda.
De manhã, lavei a pele num banho profundo, perfumado com todos os
aromas do 202, desde folhas de limonete da Índia até essência
de jasmim de França; e lavei a alma com uma rica carta da tia Vicência,
em letra farta, contando da nossa casa, e da linda promessa das vinhas, e
da compota de ginja que nunca lhe saíra tão fina, e da alegre
fogueira do pátio em noite de S. João, e da menininha muito
gorda e cabeluda que viera do Céu para a minha afilhada Joaninha. Depois,
à janela, bem limpo de alma e de corpo, numa quinzena de sedinha branca,
tomando chá de Naïpò, respirando os rosais do jardim revividos
pela chuva da madrugada, considerei, em divertido pasmo, que, durante sete
semanas, me emporcalhara, na rua do Hélder, com um estardalho muito
magro e muito tisnado! E concluí que padecera duma longa sezão,
sezão da carne, sezão da imaginação, apanhada
num charco de Paris – nesses charcos que se formam através da Cidade
com as águas mortas, os limos, os lixos, os tortulhos e os vermes duma
Civilização que apodrece.
Então, curado, todo o meu espírito, como uma agulha para o
Norte, se virou logo para o meu complicado Príncipe, que, nas derradeiras
semanas da minha infecção sentimental, eu entrevira sempre descaído
pôr cima de sofás, ou vagueando através da biblioteca
entre os seus trinta mil volumes, com arrastados bocejos de inércia
e de vacuidade. Eu, na minha pressa indigna, só lhe lançava
um distraído – “que é isso?” Ele, no seu moroso
desalento, só murmurava um seco – “é calor!”
E, nessa manhã da minha libertação, ao penetrar antes
de almoço no seu quarto, no sofá o encontrei enterrado, com
o Fígaro aberto sobre a barriga, a Agenda caída sobre o tapete,
toda a face envolta em sombra, e os pés abandonados, numa soberana
tristeza, ao pedicuro que lhe polia as unhas. Decerto o meu olhar realumiado
e repurificado, a brancura das minhas flanelas reproduzindo a quietação
das minhas sensações, e a segura harmonia em que todo o meu
ser visivelmente se movia, impressionaram o meu Príncipe – a quem a
melancolia nunca embotava a agudeza. Ergueu molemente um braço mole:
-Então esse capricho?
Derramei sobre ele todo o fulgor dum riso vitorioso:
-Morto! E, como o Sr. De Marlborought, “morto e bem enterrado”.
Jaz! Ou antes, rola! Com efeito deve andar agora rolando pôr dentro
do cano do esgoto!
Jacinto bocejou, murmurou:
-Este Zé Fernandes de Noronha e Sande!…
E, no meu nome, no meu digno nome assim embrulhado num bocejo com desprendida
ironia, se resumiu todo o interesse daquele Príncipe pela suja tormenta
em que se debatera o meu coração! Mas não me melindrou
esse consumado egoísmo… Claramente percebia eu que o meu jacinto
atravessava uma densa névoa de tédio, tão densa, e ele
tão afundado na sua mole densidade, que as glórias ou os tormentos
dum camarada não o comoviam, como muito remotas, intangíveis,
separadas da sua sensibilidade pôr imensas camadas de algodão.
Pobre Príncipe da Grã-Ventura, tombado para o sofá de
inércia, com os pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso
fastio caíra, depois de renovar tão bravamente todo o recheio
mecânico e erudito do 202, na sua luta contra a Força e a Matéria!
– e esse fastio não o escondeu mais do seu velho Zé Fernandes,
quando recomeçou entre nós a comunhão de vida e de alma
a que eu tão torpemente me arrancara, uma tarde, diante da Estação
dos ônibus, no charco da Madalena!
Não eram certamente confissões enunciadas. O elegante e reservado
Jacinto não torcia os braços, gemendo – “Ó vida
maldita!” eram apenas expressões saciadas; um gesto de repelir
com rancor a importunidade das coisas; pôr vezes uma imobilidade determinada,
de protesto, no fundo dum divã, de onde se não desenterrava,
como para um repouso que desejasse eterno; depois os bocejos, os ocos bocejos
com que sublinhava cada passo, continuado pôr fraqueza ou pôr
dever iniludível; e sobretudo aquele murmurar que se tornara perene
e natural – “Para que?” – “Não vale a pena!”
– “Que maçada!…”
Uma noite no meu quarto, descalçando as botas, consultei o Grilo:
-Jacinto anda tão murcho, tão corcunda… Que será,
Grilo?
O venerando preto declarou com uma certeza imensa:
-S. Exª. sofre de fartura.
Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris:
– e na Cidade, na simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e forte
(como ele outrora gritava, iluminado) o homem do século XIX nunca poderia
saborear plenamente a “delícia de viver”, ele não
encontrava agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse,
lhe valesse o esforço duma corrida curta numa tipóia fácil.
Pobre Jacinto! Um jornal velho, setenta vezes relido desde a Crônica
até aos Anúncios, com a tinta delida, as dobras roídas,
não enfastiaria mais o Solitário, que só possuísse
na sua Solidão esse alimento intelectual, do que o Parisianismo enfastiava
o meu doce camarada! Se eu nesse Verão capciosamente o arrastava a
um Café-Concerto, ou ao festivo Pavilhão de Armenonville, o
meu bom Jacinto, colado pesadamente à cadeira, com um maravilhoso ramo
de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão
da bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que
eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a
sua fuga de ave solta… Raramente (e então com veemente arranque como
quem salta um fosso) descia a um dos seus clubes, ao fundo dos Campos Elísios.
Não se ocupara mais das suas Sociedades e Companhias, nem dos Telefones
de Constantinopla, nem das Religiões Esotéricas, nem do Bazar
Espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano,
de onde o Grilo as varria tristemente como o lixo duma vida finda. Também
lentamente se despegava de todas as suas convivências. As páginas
da Agenda cor-de-rosa murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cedia
a um passeio de Mail-coach, ou a um convite para algum Castelo amigo dos arredores
de Paris, era tão arrastadamente, com um esforço tão
saturado ao enfiar o paletó leve, que me lembrava sempre um homem,
depois de um gordo jantar de província, a estalar, que, pôr polidez
ou em obediência a um dogma, devesse ainda comer uma lampreia de ovos!
Jazer, jazer, em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem
defendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma doçura
para o meu Príncipe se o seu próprio 202, com todo aquele tremendo
recheio de Civilização, não lhe desse uma sensação
dolorosa de abafamento, de atulhamento! Julho escaldava: e os brocados, as
alcatifas, tantos móveis roliços e fofos, todos os seus metais
e todos os seus livros tão espessamente o oprimiam, que escancarava
sem cessar as janelas para prolongar o espaço, a claridade, a frescura.
Mas era então a poeira, suja e acre, rolada em bafos mornos, que o
enfurecia:
-Ó, este pó da Cidade!
-Mas, ó Jacinto, pôr que não vamos para Fontainebleau,
ou para Montmorency, ou…
-Para o campo? O quê! Para o campo?!
E na sua face enrugada, através deste berro, lampejava sempre tanta
indignação, que eu curvava os ombros, humilde, no arrependimento
de Ter afrontosamente ultrajado o Príncipe que tanto amava. Desventurado
Príncipe! Com o seu dourado cigarro de Yaka a fumegar, errava então
pelas salas, lenta e murchamente, como quem vaga em terra alheia sem afeições
e sem ocupações. Esses desafeiçoados e desocupados passos
monotonamente o traziam ao seu centro, ao gabinete verde, à Biblioteca
de ébano, onde acumulara Civilização nas máximas
proporções, para gozar nas máximas proporções
a delícia de viver. Espalhava em torno um olhar farto. Nenhuma curiosidade
ou interesse lhe solicitavam as mãos, enterradas nas algibeiras das
pantalonas de seda, numa inércia de derrota. Anulado, bocejava com
descoroçoada moleza. E nada mais intrusivo e doloroso do que este supremo
homem do século XIX, no meio de todos os aparelhos reforçadores
dos seus órgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu
serviço as forças Universais, e dos seus trinta mil volumes
repletos de saber dos séculos – estacando, com as mãos derrotadas
no fundo das algibeiras, e exprimindo, na face e na indecisão mole
dum bocejo, o embaraço de viver!
Capítulo VI
Todas as tardes, cultivando uma dessas intimidades que entre tudo o que
cansa jamais cansam, Jacinto, às quatro horas, com regularidade devota,
visitava Madame de Oriol: – porque essa flor de Parisianismo permanecera em
Paris, mesmo depois do Grand-Prix, a desbotar na calma e no cisco da Cidade.
Numa dessas tardes, porém, o telefone, ansiosamente repicado, avisou
Jacinto de que a sua doce amiga jantava em Enghien com os Trèves. (Esses
senhores gozavam o seu Verão à beira do lago, numa casa toda
branca e vestida de rosinhas brancas que pertencia a Efraim.)
Era um Domingo silencioso, enevoado e macio, convidando às voluptuosidades
da melancolia. E eu (no interesse da minha alma) sugeri a Jacinto que subíssemos
à Basílica do Sacré-Couer, em construção
nos altos de Montmartre.
-É uma seca, Zé Fernandes…
-Com mil demônios! Eu nunca vi a Basilica…
-Bem, bem! Vamos à Basílica, homem fatal de Noronha e Sande!
E pôr fim logo que começamos a penetrar, para além de
S. Vicente de Paulo, em bairros estreitos e íngremes, duma quietação
de província, com muros velhos fechando quintalejos rústicos,
mulheres despenteadas cosendo à soleira das portas, carriolas desatreladas
descansando diante das tascas, galinhas soltas picando o lixo, cueiros molhados
secando em canas – o meu fastidioso camarada soriu àquela liberdade
e singeleza das coisas.
A vitória parou em frente à larga rua de escadarias que trepa,
cortando vielazinhas campestres, até à esplanada, onde, envolta
em andaimes, se ergue a Basílica imensa. Em cada patamar barracas de
arraial devoto, forradas de paninho vermelho, transbordavam de Imagens, Bentinhos,
Crucifixos, Corações de Jesus bordados a retrós, claros
molhos de Rosários. Pelos cantos, velhas agachadas resmungavam a Ave-Maria.
Dois padres desciam, tomando risonhamente uma pitada. Um sino lento tilintava
na doçura da tarde. E Jacinto murmurou, com agrado:
-É curioso!
Mas a Basílica em cima não nos interessou, abafada em tapumes
e andaimes, toda branca e seca, de pedra muito nova, ainda sem alma. E Jacinto,
pôr impulso bem Jacíntico, caminhou gulosamente para a borda
do terraço, a contemplar Paris. Sob o céu cinzento, na planície
cinzenta, a Cidade jazia, toda cinzenta, como uma vasta e grossa camada de
caliça e telha. E na sua imobilidade e na sua mudez, algum rolo de
fumo, mais tênue e ralo que o fumear dum escombro mal apagado, era todo
o vestígio visível da sua vida magnífica.
Então chasqueei risonhamente o meu Príncipe. Aí estava
pois a Cidade, augusta criação da Humanidade. Ei-la aí,
belo Jacinto! Sobre a crosta cinzenta da Terra – uma camada de caliça,
apenas mais cinzenta! No entanto ainda momentos antes a deixáramos
prodigiosamente viva, cheia dum povo forte, com todos os seus poderosos órgãos
funcionando, abarrotada de riqueza, resplandecente de sapiência, na
triunfal plenitude do seu orgulho, como Rainha do Mundo coroada de Graça.
E agora eu e o belo Jacinto trepávamos a uma colina, espreitávamos,
escutávamos – e de toda a estridente e radiante Civilização
da cidade não percebíamos nem um rumor nem um lampejo! E o 202,
o soberbo 202, com os seus arames, os seus aparelhos, a pompa da sua Mecânica,
os seus trinta mil livros? Sumido, esvaído na confusão de telha
e cinza! Para este esvaecimento pois da obra humana, mal ela se contempla
de cem metros de altura, arqueja o obreiro humano em tão angustioso
esforço? Hem, Jacinto?… Onde estão os teus Armazéns
servidos pôr três mil caixeiros? E os Bancos em que retine o ouro
universal? E as Bibliotecas atulhadas com o saber dos séculos? Tudo
se fundiu numa nódoa parda que suja a Terra. Aos olhos piscos de um
Zé Fernandes, logo que ele suba, fumando o seu cigarro, a uma arredada
colina – a sublime edificação dos Tempos não é
mais que um silencioso monturo da espessura e da cor do pó final. O
que será então aos olhos de Deus!
E ante estes clamores, lançados com afável malícia para
espicaçar o meu Príncipe, ele murmurou, pensativo:
-Sim, é talvez tudo uma ilusão… E a Cidade a maior ilusão!
Tão facilmente vitorioso redobrei de facúndia. Certamente,
meu Príncipe, uma Ilusão! E a mais amarga, porque o Homem pensa
Ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de
toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força
e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado
ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trêmulos
como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem
sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda – esse ser em que Deus,
espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na
Cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe
uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência;
pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar,
rastejar, aturar; e rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda
em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes,
ritos, serviços mais disciplinares que os dum cárcere ou dum
quartel… A sua tranqüilidade (bem tão alto que Deus com ele
recompensa os Santos ) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre,
nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou
pelo gozo, ou pela fugida rodela de ouro! Alegria como a haverá na
Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação
de desejar – e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão,
desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo
na Cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São como luzes que
o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade
e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante
obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam
de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora
sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que
estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade,
meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde
a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca!
Contempla esse velho Deus do Himeneu, que circula trazendo em vez do ondeante
facho da Paixão a apertada carteira do Dote! Espreita essa turba que
foge dos largos caminhos assoalhados em que os Faunos amam as Ninfas na boa
lei natural, e busca tristemente os recantos lôbregos de Sodoma ou de
Lesbos!… Mas o que a cidade mais deteriora no homem é a Inteligência,
porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância.
Nesta densa e pairante camada de Idéias e Fórmulas que constitui
a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela envolto, só
pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as
expressões já exprimidas: – ou então, para se destacar
na pardacenta e chata Rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola,
inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade
disforme que espante e que detenha a multidão como um monstrengo numa
feira. Todos, intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho,
balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em
fila, as pegadas pisadas; – e alguns são macacos, saltando no topo
de mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, na Cidade,
nesta criação tão antinatural onde o solo é de
pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e a gente
vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem
pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames – o homem
aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade,
sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é
passivo como um escravo ou impudente como um Histrião… E aqui tem
o belo Jacinto o que é a bela Cidade!
E ante estas encanecidas e veneráveis invectivas, retumbadas pontualmente
pôr todos os Moralistas bucólicos, desde Hesíodo, através
dos séculos – o meu Príncipe vergou a nuca dócil, como
se elas brotassem, inesperadas e frescas, duma Revelação superior,
naqueles cimos de Montmartre:
-Sim, com efeito, a Cidade… É talvez uma ilusão perversa!
Insisti logo, com abundância, puxando os punhos, saboreando o meu fácil
filosofar. E se ao menos essa ilusão da Cidade tornasse feliz a totalidade
dos seres que a mantém… Mas não ! Só uma estreita e
reluzente casta goza na Cidade os gozos especiais que ela cria. O resto, a
escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos especiais que
só nela existem! Deste terraço, junto a esta rica Basílica
consagrada ao Coração que amou o Pobre e pôr ele sangrou,
bem avistamos nós o lôbrego casario onde a plebe se curva sob
esse antigo opróbrio de que nem Religiões, nem Filosofias, nem
Morais, nem a sua própria força brutal a poderão jamais
libertar! Aí jaz, espalhada pela Cidade, como esterco vil que fecunda
a cidade. Os séculos rolam; e sempre imutáveis farrapos lhe
cobrem o corpo, e sempre debaixo deles, através do longo dia, os homens
labutarão e as mulheres chorarão. E com este labor e este pranto
dos pobres, meu Príncipe, se edifica a abundância da Cidade!
Ei-la agora coberta de moradas em que eles se não abrigam; armazenada
de estofos, com que eles se não agasalham; abarrotada de alimentos,
com que eles se não saciam! Para eles só a neve, quando a neve
cai, e entorpece e sepulta as criancinhas aninhadas pelos bancos das praças
ou sob os arcos das pontes de Paris… A neve cai, muda e branca na treva;
as criancinhas gelam nos seus trapos; e a polícia, em torno, ronda
atenta para que não seja perturbado o tépido sono daqueles que
amam a neve, para patinar nos lagos do Bosque de Bolonha com peliças
de três mil francos. Mas quê, meu Jacinto! a tua Civilização
reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá, nesta
amarga desarmonia social, se o Capital der Trabalho, pôr cada arquejante
esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável, é, pois,
que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria
é a condição do esplendor sereno da Cidade. Se nas suas
tigelas fumegasse a justa ração de caldo – não poderia
aparecer nas baixelas de prata a luxuosa porção de foie-gras
e túbaras que são o orgulho da Civilização. Há
andrajos em trapeiras – para que as belas Madamas de Oriol, resplandecentes
de sedas e rendas, subam em doce ondulação, a escadaria da Ópera.
Há mãos regeladas que se estendem e beiços sumidos que
agradecem o dom magnânimo dum sou – para que os Efrains tenham dez milhões
no Banco de França, se aqueçam à chama rica da lenha
aromática, e surtam de colares de safiras as suas concubinas, netas
dos duques de Atenas. E um povo chora de fome, e da fome dos seus pequeninos
– para que os Jacintos, em Janeiro, debiquem, bocejando, sobre pratos de Saxe,
morangos gelados em Champanhe e avivados dum fio de éter!
-E eu comi dos teus morangos, Jacinto! Miseráveis, tu e eu!
Ele murmurou, desolado:
-É horrível, comemos desses morangos… E talvez pôr
uma ilusão!
Pensativamente deixou a borda do terraço, como se a presença
da Cidade, estendida na planície, fosse escandalosa. E caminhamos devagar,
sob a moleza cinzenta da tarde, filosofando – considerando que para esta iniqüidade
não havia cura humana, trazida pelo esforço humano. Ah, os Efrains,
os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só
abandonarão ou afrouxarão a exploração das Plebes,
se uma influência celeste, pôr milagre novo, mais alto que os
milagres velhos, lhes converter as almas! O burguês triunfa, muito forte,
todo endurecido no pecado – e contra ele são impotentes os prantos
dos Humanitários, os raciocínios dos Lógicos, as bombas
dos Anarquistas. Para amolecer tão duro granito só uma doçura
divina. Eis pois esperança da terra novamente posta num Messias!…
Um decerto desceu outrora dos grandes Céus; e, para mostrar bem que
mandado trazia, penetrou mansamente no mundo pela porta dum curral. Mas a
sua passagem entre os homens foi tão curta! Um meigo sermão
numa montanha, ao fim duma tarde meiga; uma repreensão moderada aos
Fariseus que então redigiam o Boulevard; algumas vergastadas nos Efrains
vendilhões; e logo, através da porta da morte, a fuga radiosa
para o Paraíso! Esse adorável filho de Deus teve demasiada pressa
em recolher a casa de seu Pai! E os homens a quem ele incumbira a continuação
da sua obra, envolvidos logo pelas influências dos Efrains, dos Trèves,
da gente do Boulevard, bem depressa esqueceram a lição da Montanha
e do lago de Tiberíade – e eis que pôr seu turno revestem a púrpura,
e são Bispos, e são Papas, e se aliam à opressão,
e reinam com ela, e edificam a duração do seu Reino sobre a
miséria dos sem-pão e dos sem lar! Assim tem de ser recomeçada
a obra da Redenção. Jesus, ou Guatama, ou Cristna, ou outro
desses filhos que Deus pôr vezes escolhe no seio duma Virgem, nos quietos
vergéis da Ásia, deverá novamente descer à terra
de servidão. Virá ele, o desejado? Porventura já algum
grave rei do Oriente despertou, e olhou a estrela, e tomou a mirra nas suas
mãos reais, e montou pensativamente sobre o seu dromedário?
Já pôr esses arredores da dura Cidade, de noite, enquanto Caifás
e Madalena ceiam lagosta no Paillard, andou um Anjo, atento, num vôo
lento, escolhendo um curral? Já de longe, sem moço que os tanja,
na gostosa pressa dum divino encontro, vem trotando a vaca, trotando o burrinho?
-Tu sabes, Jacinto?
Não, Jacinto não sabia – e queria acender o charuto. Forneci
um fósforo ao meu Príncipe. Ainda rondamos no terraço,
espalhando pelo ar outras idéias sólidas que no ar se desfaziam.
Depois penetrávamos na Basílica – quando um Sacristão
nédio, de barrete de veludo, cerrou fortemente a porta, e um Padre
passou, enterrando na algibeira, com um cansado gesto final e como para sempre,
o seu velho Breviário.
-Estou com uma sede, Jacinto… Foi esta tremenda Filosofia!
Descemos a escadaria, armada em arraial devoto. O meu pensativo camarada
comprou uma imagem da Basílica. E saltávamos para a vitória,
quando alguém gritou rijamente, numa surpresa:
-Eh Jacinto!
O meu Príncipe abriu os braços, também espantado:
-Eh Maurício!
E, num alvoroço, atravessou a rua, para um café, onde, sob
o toldo de riscadinho, um robusto homem, de barba em bico, remexia o seu absinto,
com o chapéu de palha descaído na nuca, a quinzena solta sobre
a camisa de seda, sem gravata, como se descansasse num banco, entre as sombras
do seu jardim.
E ambos, apertando as mãos, se admiravam daquele encontro, num Domingo
de Verão, sobre as alturas de Montmartre.
-Ó! eu estou aqui no meu bairro! – exclamava alegremente Maurício.
Em famíçia, em chinelos… Há três meses que subi
para estes cimos da Verdade… Mas tu na Santa Colina, homem profano da planície
e das ruas de Israel!
O meu Príncipe mostrou o seu Zé Fernandes:
-Com este amigo, em peregrinação à Basílica…
O meu amigo Fernandes Lorena… Maurício de Mayolle, velho camarada.
Mr. De Mayolle (que, pela face larga e nariz nobremente grosso, lembrava
Francisco de Valois, Rei de França) ergueu o seu chapéu de palha.
E empurrava uma cadeira, insistia que nos acomodássemos para um absinto
ou para um bock.
-Toma um bock, Zé Fernandes! – lembrou Jacinto. – Tu estavas a ganir
com sede!
Corri lentamente a língua sobre os beiços mais secos que pergaminhos:
Estou a guardar esta sedezinha para logo, para jantar, com um vinhozinho
gelado!
Maurício saudou, com silenciosa admiração, esta minha
avisada malícia. E imediatamente, para o meu Príncipe:
-Há três anos que não te vejo, Jacinto… Como tem sido
possível, neste Paris que é uma aldeola e que tu atravancas?
-A vida, Maurício, a espalhada vida… Com efeito! Há três
anos, desde a casa dos Lamotte-Orcel. Tu ainda visitas esse santuário?
Maurício atirou um gesto desdenhoso e largo, que sacudia um mundo:
-Ó! Há mais dum ano que me separei dessa bicharia herética…
Uma turba indisciplinada, meu Jacinto! Nenhuma fixidez, um diletantismo estonteado,
carência completa e cômica de toda a base experimental… Quando
tu ias aos Lamotte-Orcel, e à Parola do 37, e à Cerveja ideal,
o que reinava?…
Jacinto catou lentamente as suas recordações pôr entre
os pêlos do bigode:
-Eu sei!… Reinava Wagner e a Mitologia Eddica, e o Raganarock, e as Normas…
Muito Pré-Rafaelismo também, e Montagna, e Fra-Angélico…
Em moral, o Renanismo.
Maurício sacudia os ombros. Ó, tudo isso pertencia a um passado
arcaico, quase lacustre! Quando Madame de Lamotte-Orcel remobiliara a sala
com veludos Morris, grossas alcachofras sobre tons de Açafrão,
já o Renanismo passara, tão esquecido como o Cartesianismo…
-Tu ainda és do tempo do culto do Eu?
O meu Príncipe suspirou risonhamente:
-Ainda o cultivei.
-Pois bem! Logo depois foi o Hartmanismo, o Inconsciente. Depois o Nietzismo,
o Feudalismo espiritual… Depois grassou o Tolstoísmo, um furor imenso
de renunciamento neocenobítico. Ainda me lembro dum jantar em que apareceu
um mostrengo dum eslavo, de guedelha sórdida, que atirava olhos medonhos
para o decote da pobre condessa de Arche, e que grunhia com o dedo espetado:
– “Busquemos a luz, muito pôr baixo, no pó da terra!”
– e à sobremesa bebemos à delícia da humildade e do trabalho
servil, com aquele Champanhe Marceaux granitado que a Matilde dava nos grandes
dias em copos da forma do Sã-Graal! Depois veio Emersonismo… Mas
a praga cruel foi o Ibsenismo! Enfim, meu filho, uma Babel de Éticas
e Estéticas. Paris parecia demente. Já havia uns desgarrados
que tendiam para o Luciferismo. E amiguinhas nossas, coitadas, iam descambando
para o Falismo, uma moxinifada místico-brejeira, pregada pôr
aquele pobre La Carte que depois se fez Monge Branco, e que anda no Deserto…
Um horror! E uma tarde, de repente, toda esta massa se precipita com ânsia
para o Ruskinismo!
Eu, agarrado à bengala, bem no chão, sentia como um vendaval
que redemoinhava, me torcia o crânio! E até Jacinto balbuciou,
esgazeado:
-O Ruskinismo?
-Sim, o velho Ruskin… John Ruskin!
O meu ditoso Príncipe compreendeu:
-Ah, Ruskin!… As sete lâmpadas da Arquitetura, A Coroa de Oliveira
Brava… É o culto da Beleza!
-Sim! O culto da Beleza – confirmou Maurício. Mas a esse tempo eu,
enjoado, já descera de todas nuvens vãs… Pisava um chão
mais seguro, mais fértil.
Deu um sorvo lento ao absinto, cerrando as pálpebras. Jacinto esperava,
com o seu fino nariz dilatado, como para respirar a Flor de Novidade que ia
desabrochar:
-E então? então?…
Mas o outro murmurou, dispersamente, pôr entre reticências em
que se velava:
-Vim para Montmartre… Tenho aqui um amigo, um homem de gênio, que
percorreu toda a Índia… Viveu com os Toddas, esteve nos mosteiros
de Grama-Khian e de Dashi-Lumbo, e estudou com Gengen-Chutu no retiro santo
de Urga… Gengen-Chuty foi a décima Sexta encarnação
de Guatama, e era portanto um Boddi-sattva… Trabalhamos, procuramos… Não
são visões. Mas fatos, experiências bem antigas, que vêm
talvez desde os tempos de Cristna…
Através destes nomes, que exalavam um perfume triste de vetustos ritos,
arredara a cadeira. E de pé, deixando cair sobre a mesa, distraidamente,
para pagar o absinto, moedas de prata e moedas de cobre, murmurava com os
olhos descansados em Jacinto, mas perdidos noutra visão:
-Pôr fim tudo se reduz ao supremo desenvolvimento da Vontade dentro
da suprema pureza da Vida. É toda a ciência e força dos
grandes mestres Hindus… Mas a pureza absoluta da vida, eis a luta, eis o
obstáculo! Não basta mesmo o Deserto, nem o bosque do mais velho
templo no alto Tibete… Ainda assim, meu Jacinto, já obtivemos resultados
bem estranhos. Sabes as experiências de Tyndall, com as chamas sensitivas…
O pobre químico, para demonstrar as vibrações do som,
tocou quase às portas da verdade esotérica. Mas quê! homem
de ciência, portanto homem de estupidez, ficou aquém, entre as
suas placas e suas retortas! Nós fomos além. Verificamos as
ondulações da Vontade! Diante de nós, pela expansão
da energia do meu companheiro, e em cadência com o seu mandado, uma
chama, a três metros, ondulou, rastejou, despediu línguas ardentes,
lambeu uma alta parede, rugiu furiosa e negra, resplandeceu direita e silenciosa,
e bruscamente abatida em cinza morreu!
E o estranho homem, com o chapéu para a nuca, ficou imóvel,
de braços abertos e os olhares esgazeados, como no renovado assombro
e no transe daquele prodígio. Depois, recaindo no seu modo fácil
e sereno, acendendo devagar um cigarro:
-Uma destas manhãs, Jacinto , apareço no 202, para almoçar
contigo, e levo o meu amigo. Ele só come arroz, um pouco de salada,
e fruta. E conversamos… Tu tinhas um exemplar do Sepber-Zerijab e outro
do Targun d’Onkelus. Preciso folhear esses livros.
Apertou a mão do meu Príncipe, saudou este assombrado Zé
Fernandes, e serenamente seguiu pela quieta rua, com o chapéu de palha
para a nuca, as mãos enterradas nas algibeiras, como um homem natural
entre coisas naturais.
-Ó Jacinto! Quem é este bruxo? Conta!… Quem é ele,
santíssimo nome de Deus?
Recostado na vitória, ajeitando o vinco das calças, o meu Príncipe
contou, concisamente. Era um nobre e leal rapaz, muito rico, muito inteligente,
da antiga casa soberana de Mayolle, descendente dos Duques de Septimania…
E murmurou, através do costumado bocejo:
-Ó desenvolvimento supremo da vontade!… Teosofia, Budismo esotérico…
Aspirações, decepções… Já experimentei…
Uma maçada!
Atravessamos, calados, o rumor de Paris, sob a moleza abafada do crepúsculo
de Verão, para jantar no Bosque, no Pavilhão de Armenoville,
onde os Tziganes, avistando Jacinto, tocaram o Hino da Carta com paixão,
com langor, numa cadência de czarda dolorosa e áspera.
E eu, desdobrando regaladamente o guardanapo:
-Pois venha agora para a minha rica sede esse vinhozinho gelado! E creio
que estabeleci definitivamente no espírito do Sr. D. Jacinto o salutar
horror da Cidade!
O meu Príncipe percorria, catando o bigode, a Lista dos Vinhos, enquanto
o Copeiro esperava com pensativa reverência:
-Mande gelar duas garrafas de champanhe St. Marceaux… Mas antes, um Barsac
velho, apenas refrescada… Água de Evian… Não, de Bussang!
Bem, de Evian e de Bussang! E, para começar, um bock.
Depois, bocejando, desabotoando lentamente a sobrecasaca cinzenta:
-Pois estou com vontade de construir uma casa nos cimos de Montmartre, com
um miradouro no alto, todo de vidro e ferro, para descansar de tarde e dominar
a Cidade…
Capítulo VII
Julho findara com uma chuva refrescante e consoladora: – e eu pensava em
realizar finalmente a minha romagem às cidades da Europa, sempre retardada,
através da Primavera, pelas surpresas do Mundo e da Carne. Mas, de
repente, Jacinto começou a rogar e a reclamar que o seu Zé Fernandes
o acompanhasse, todas as tardes, a casa de Madame de Oriol! E eu compreendi
que o meu Príncipe (à maneira do divino Aquiles, que, sob a
tenda, e junto da branca, insípida e dócil Briseida, nunca dispensava
Pátroclo) desejava Ter, no retiro do Amor, a presença, o conforto
e o socorro da amizade. Pobre Jacinto! Logo pela manhã combinava pelo
telefone com Madame de Oriol essa hora de quietação e doçura.
E assim encontrávamos sempre superfina Dama prevenida e solitária
naquela sala da rua de Lisbonne, onde Jacinto e eu mal cabíamos, sufocávamos
na confusão, entre os cestos de flores, e os outros rocalhados, e os
monstros do Japão, e a galante fragilidade dos Saxes, e as peles de
feras estiradas aos pés de sofás adormecedores, e os biombos
de Aubusson formando alcovas favoráveis e lânguidas… Aninhada
numa cadeira de bambu lacada de branco, entre almofadas aromatizadas de verbena
da Índia, com um romance pousado no regaço, ela esperava o seu
amigo numa certa indolência passiva e mansa que me lembrava sempre o
Oriente e um Harém. Mas, pelas frescas sedinhas Pompadour, parecia
também uma marquesinha de Versalhes cansada do grande século;
ou então, com brocados sombrios e largos cintos cravejados, era como
uma veneziana, preparada para um Doge. A minha intrusão, na intimidade
daquelas tardes, não a contrariava – antes lhe trazia um vassalo novo,
com dois olhos novos para a contemplar. Eu era já o seu Cher Fernandez!
E apenas descerrava os lábios avivados de vermelho, semelhantes a
uma ferida fresca, e começava a chalrar – logo nos envolvia o borborinho
e a murmuração de Paris. Ela só sabia chalrar sobre a
sua pessoa que era o resumo da sua Classe, e sobre a sua existência
que era o resumo do seu Paris: – e a sua existência, desde casada, consistira
em ornar com suprema ciência o seu lindo corpo; entrar com perfeição
numa sala e irradiar; remexer os estofos e conferenciar pensativamente com
o grande costureiro; rolar pelo Bois pousada na sua vitória como uma
imagem de cera; decotar e branquear o colo; debicar uma perna de galinhola
em mesas de luxo; fender turbas ricas em bailes espessos; adormecer com a
vaidade esfalfada; percorrer de manhã, tomando chocolate, os “Ecos”
e as “Festas” do Fígaro; e de vez em quando murmurar para
o marido – “Ah, és tu?…” Além disso, ao lusco-fusco,
num sofá, alguns curtos suspiros, entre os braços de alguém
a quem era constante. Ao meu Príncipe, nesse ano, pertencia o sofá.
E todos estes deveres de Cidade e de Casta os cumpria sorrindo. Tanto sorria,
desde casada, que já duas pregas lhe vincavam os cantos dos beiços,
indelevelmente. Mas nem na alma, nem na pele, mostrava outras máculas
de fadiga. A sua Agenda de Visitas continha mil e trezentos nomes, todos no
Nobiliário. Através, porém, desta fulgurante sociabilidade
arranjara no cérebro (onde decerto penetrara o pó de arroz que
desde o colégio acamava na testa) algumas Idéias Gerais. Em
Política era pelos Príncipes; e todos os outros “horrores”,
a República, o Socialismo, a Democracia que se não lava, os
sacudia risonhamente, com um bater de leque. Na Semana Santa juntava às
rendas do chapéu a Coroa amarga dos espinhos – pôr serem esses,
para gente bem-nascida, dias de penitência e de dor. E, diante de todo
o Livro ou de todo o Quadro, sentia a emoção e formulava finamente
o juízo, que no seu Mundo, e nessa Semana, fosse elegante formular
e sentir. Tinha trinta anos. Nunca se embaraçara nos tormentos duma
paixão. Marcava, com rígida regularidade, todas as suas despesas
num Livro de Contas encadernado em pelúcia verde-mar. A sua religião
íntima (e mais genuína do que a outra, que a levava todos os
domingos à missa de S. Felipe du Roule) era a Ordem. No Inverno, logo
que na amável cidade começavam a morrer de frio, debaixo das
pontes, criancinhas sem abrigo – ela preparava com comovido cuidado os seus
vestidos de patinagem. E preparava também os de Caridade – porque era
boa, e concorria para Bazares, Concertos e Tômbolas, quando fossem patrocinados
pelas Duquesas do seu “rancho”. Depois, na Primavera, muito metodicamente,
regateando, vendia a uma adela os vestidos e as capas de Inverno. Paris admirava
nela uma suprema flor de Parisianismo.
Pois respirando esta macia e fina flor passamos nós as tardes desse
Julho enquanto as outras flores pendiam e murchavam na calma e no pó.
Mas, na intimidade do seu perfume, Jacinto não parecia encontrar esse
contentamento de alma, que entre tudo que cansa jamais cansa. Era já
com a paciente lentidão com que se sobem todos os Calvários,
os mais bem tapetados, que ele subia a escadaria de Madame de Oriol, tão
suave e orlada de tão frescas palmeiras. Quando a apetitosa criatura,
com dedicação, para o entreter, desdobrava a sua vivacidade
como um pavão desdobra a cauda, o meu pobre Príncipe puxava
os pêlos do bigode murcho, na murcha postura de quem, pôr uma
manhã de Maio, enquanto os melros cantam nas sebes, assiste, numa igreja
negra, a um responso fúnebre pôr um Príncipe. E no beijo
que ele chuchurreava sobre a mão da sua doce amiga, para despedir,
havia sempre alacridade e alívio.
Mas ao outro dia, ao começar da tarde, depois de errar através
da Biblioteca e do Gabinete, puxando sem curiosidade a tira do telégrafo,
atirando algum recado mole pelo telefone, espalhando o olhar desalentado sobre
o saber imenso dos trinta mil livros, remexendo a colina dos Jornais e Revistas,
terminava pôr me chamar, já com a preguiça triste da façanha
a que se impelia:
-Vamos a casa de Madame de Oriol, Zé Fernandes? Eu tinha marcadas
para hoje seis ou sete coisas, mas não posso, é uma seca! Vamos
a casa de Madame de Oriol… Ao menos lá, às vezes, há
um bocado de frescura e paz.
E foi uma dessas tardes, em que o meu Príncipe assim procurava desesperadamente
um “bocado de frescura e paz”, que encontramos, ao meio da escadaria
suave, entre as palmeiras, o marido de Madame de Oriol. Eu já o conhecia
– porque Jacinto mo mostrara uma noite, no Grand Café, ceando com dançarinas
do Moulin Rouge. Era um moço gordalhufo, indolente, de uma brancura
crua de toucinho, com uma calvície já séria e já
lustrosa, constantemente acariciada pelos seus gordos dedos carregados de
anéis. Nessa tarde, porém, vinha vermelho, todo emocionado,
calçando as luvas com cólera. Estacou diante de Jacinto – e
sem mesmo lhe apertar a mão, atirando um gesto para o patamar:
-Visita lá acima? Vai achar a Joana em péssima disposição…
Tivemos uma cena, e tremenda.
Deu outro puxão desesperado à luva cor de palha, já
esgaçada:
-Estamos separados, cada um vive como lhe apetece, é excelente! Mas
em tudo há medida e forma… Ela tem o meu nome, não posso consentir
que em Paris, com conhecimento de todo o Paris, seja a amante do trintanário.
Amantes da nossa roda, vá! Um lacaio, não!… Se quer dormir
com os criados que emigre para o fundo da província, para a sua casa
de Corbelle. E lá até com os animais!… Foi o que lhe disse!
Ficou como uma fera.
Sacudiu então a mão de Jacinto que “era da sua roda”
– rebolou pela escadaria florida e nobre. O meu Príncipe, imóvel
nos degraus, de face pendida, cofiava lentamente os fios pendidos do bigode.
Depois, olhando para mim, como um ser saturado de tédio e em quem nenhum
tédio novo pode caber:
-Já agora subamos, sim?
Parti então, com muita alegria, para a minha apetecida romagem às
Cidades da Europa.
Ia viajar!… Viajei. Trinta e quatro vezes, à pressa, bufando, com
todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia num
vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer
de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente
limonadas mornas que me escangalhavam a entranha. Catorze vezes subi derreadamente,
atrás dum criado, a escadaria desconhecida dum Hotel,; e espalhei o
olhar incerto pôr um quarto desconhecido; e estranhei uma cama desconhecida,
de onde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas desconhecidas
um café com leite que me sabia a fava, um banho de tina que me cheirava
a lodo. Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que
me espoliavam. Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três ceroulas,
e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito. Em
mais de trinta mesas-redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-à-la-mode,
já frio, com molho coalhado – e que o copeiro me trouxesse a garrafa
de Bordéus que eu provava e repelia com desditosa carantonha. Percorri,
na fresca penumbra dos granitos e dos mármores, com pé respeitoso
e abafado, vinte e nove Catedrais. Trilhei molemente, com uma dor surda na
nuca, em catorze museus, cento e quarenta salas revestidas até aos
tetos de Cristos, heróis, santos, ninfas, princesas, batalhas, arquiteturas,
verduras, nudezes, sombrias manchas de betume, tristezas das formas imóveis!…
E o dia mais doce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei
um velho inglês de penca flamejante que habitara o Porto, conhecera
o Ricardo, o José Duarte, o Visconde do Bom Sucesso, e as Limas da
Boa vista… Gastei seis mil francos. Tinha viajado.
Enfim, numa bendita manhã de Outubro, na primeira friagem e névoa
de Outono, avistei com enternecido alvoroço as cortinas de seda ainda
fechadas no meu 202! Afaguei o ombro do Porteiro. No patamar, onde encontrei
o ar macio e tépido que deixara em Florença, apertei os ossos
do Grilo excelente:
-E Jacinto?
O digno negro murmurou, de entre os altos, reluzentes colarinhos:
-S. Exª. circula… Pesadote, fartote. Entrou tarde do baile da Duquesa
de Loches. Era o contrato de casamento de Mademoiselle de Loches… Ainda
tomou antes de se deitar um chá gelado… E disse a coçar a
cabeça: “Eh! Que maçada! Eh! Que maçada!”
Depois do banho e do chocolate, às dez horas, consolado e quentinho
dentro do roupão de veludo, rompi pelo quarto do meu Príncipe,
de braços abertos e sedentos:
-Ó Jacinto!
-Ó viajante!…
Quando nos estreitamos, fartamente, eu recuei para lhe contemplar a face
– e nela a alma. Encolhido numa quinzena de pano cor de malva orlada de peles
de marta, com os pêlos do bigode murchos, as suas duas rugas mais cavadas,
uma moleza nos ombros largos, o meu amigo parecia já vergado sob o
peso e a opressão e o terror do seu dia. Eu sorri, para que ele sorrisse:
-Valente Jacinto… Então como tens vivido?
Ele respondeu, muito serenamente:
-Como um morto.
Forcei uma gargalhada leve, como se o seu mal fosse leve:
-Forcei uma gargalhada leve, como se o seu mal fosse leve:
-Aborrecidote, hem?
O meu Príncipe lançou, num gesto tão vencido, um ó
tão cansado – que eu compadecido de novo o abracei, o estreitei, como
para lhe comunicar uma parte desta alegria sólida e pura que recebi
do meu Deus!
Desde essa manhã, Jacinto começou a mostrar claramente, escancaradamente,
ao seu Zé Fernandes, o tédio de que a existência o saturava.
O seu cuidado realmente e o seu esforço consistiram então em
sondar e formular esse tédio – na esperança de o vencer logo
que lhe conhecesse bem a origem e a potência. E o meu pobre Jacinto
reproduziu a comédia pouco divertida dum Melancólico que perpetuamente
raciocina a sua Melancolia! Nesse raciocínio, ele partia sempre do
fato irrecusável e maciço – que a sua vida especial de Jacinto
continha todos os interesses e todas as facilidades, possíveis no século
XIX, numa vida de homem que não é um Gênio, nem um Santo.
Com efeito! Apesar do apetite embotado pôr doze anos de Champanhes e
molhos ricos ele conservava a sua rijeza de pinheiro bravo; na luz da sua
inteligência não aparecera nem tremor nem morrão; a boa
terra de Portugal, e algumas Companhias maciças, pontualmente lhe forneciam
a sua doce centena de contos; sempre ativas e sempre fiéis o cercavam
as simpatias duma Cidade inconstante e chasqueadora; o 202 estourava de confortos;
nenhuma amargura de coração o atormentava; – e todavia era um
Triste. Pôr que?… E daqui saltava, com certeza fulgurante, à
conclusão de que a sua tristeza, esse cinzento burel em que a sua alma
andava amortalhada, não provinha da sua individualidade de Jacinto
– mas da Vida, do lamentável, do desastroso fato de Viver! E assim
o saudável, intelectual, riquíssimo, bem acolhido Jacinto tombara
no Pessimismo.
E um Pessimismo irritado! Porque (segundo afirmava) ele nascera para ser
tão naturalmente otimista como um pardal ou um gato. E, até
aos doze anos, enquanto fora um bicho superiormente amimado, com a sua pele
sempre bem coberta, o seu prato sempre bem cheio, nunca sentira fadiga, ou
melancolia, ou contrariedade, ou pena – e as lágrimas eram para ele
tão incompreensíveis que lhe pareciam viciosas. Só quando
crescera, e da animalidade penetrara na humanidade, despontara nele esse fermento
de tristeza, muito tempo indesenvolvido no tumulto das primeiras curiosidades,
e que depois alastrara, o invadira todo, se lhe tornara consubstancial e como
o sangue das suas veias. Sofrer portanto era inseparável de Viver.
Sofrimentos diferentes nos destinos diferentes da Vida. Na turba dos humanos
é a angustiada luta pelo pão, pelo teto, pelo lume; numa casta,
agitada pôr necessidades mais altas, é a amargura das desilusões,
o mal da imaginação insatisfeita, o orgulho chocando contra
o obstáculo; nele, que tinha os bens todos e desejos nenhuns, era o
tédio. Miséria do Corpo, tormento da Vontade, fastio da Inteligência
– eis a Vida! E agora aos trinta e três anos a sua ocupação
era bocejar, correr com os dedos desalentados a face pendida para nela palpar
e apetecer a caveira.
Foi então que o meu Príncipe começou a ler apaixonadamente,
desde o Eclesiastes até Schopenhauer, todos os líricos e todos
os teóricos do Pessimismo. Nestas leituras encontrava a reconfortante
comprovação de que o seu mal não era mesquinhamente “Jacíntico”
– mas grandiosamente resultante duma Lei Universal. Já há quatro
mil anos, na remota Jerusalém, a Vida, mesmo nas delícias mais
triunfais, se resumia em Ilusão. Já o Rei incomparável,
de sapiência divina, sumo Vencedor, sumo Edificador, se enfastiava,
bocejava, entre os despojos das suas conquistas, e os mármores novos
dos seus Templos, e as suas três mil concubinas, e as Rainhas que subiam
do fundo da Etiópia para que ele as fecundasse e no seu ventre depusesse
um Deus! Não há nada novo sob o Sol, e a eterna repetição
dos males. Quanto mais se sabe mais se pena. E o justo como o perverso, nascidos
do pó, em pó se tornam. Tudo tende ao pó efêmero,
em Jerusalém e em Paris! E ele, obscuro no 202, padecia pôr ser
homem e pôr viver – como no seu trono de ouro, entre os seus quatro
leões de ouro, o filho magnífico de David.
Não se separava então do Eclesiastes. E circulava pôr
Paris trazendo dentro do cupé Salomão, como irmão de
dor, com quem repetia o grito desolado que é a suma da verdade humana
– Vanitas Vanitatum! Tudo é Vaidade! Outras vezes, logo de manhã
o encontrava estendido no sofá, num roupão de seda, absorvendo
Schopenhauer – enquanto o pedicuro, ajoelhado sobre o tapete, lhe polia com
respeito e perícia as unhas dos pés. Ao lado pousava a chávena
de Saxe, cheia desse café de Moca enviado pôr emires do Deserto,
que não o contentava nunca, nem pela força, nem pelo aroma.
A espaços pousava o livro no peito, resvalava um olhar compassivo para
o pedicuro, como a procurar que dor o torturaria – pois que a todo o viver
corresponde um sofrer. Decerto o remexer assim, perpetuamente, em pés
alheios… E quando o pedicuro se erguia, Jacinto abria para ele um sorriso
de confraternidade – com um “adeus, meu amigo” que era um “adeus,
meu irmão!”
Esse foi o período esplêndido e soberbamente divertido do seu
tédio. Jacinto encontrara enfim na vida uma ocupação
grata – mal dizer da Vida! E para que pudesse maldizer em todas as suas formas,
as mais ricas, as mais intelectuais, as mais puras, sobrecarregou a sua vida
própria de novo luxo, de interesses novos de espírito, e até
de fervores humanitários, e até de curiosidades supernaturais.
O 202, nesse Inverno, refulgiu de magnificência. Foi então que
ele iniciou em Paris, repetindo Heliogábalo, os Festins de Cor contados
na HISTÓRIA AUGUSTA: e ofereceu às suas amigas esse sublime
jantar cor-de-rosa, em que tudo era róseo, as paredes, os móveis,
as luzes, as louças, os cristais, os gelados, os Champanhes, e até
(pôr uma invenção da Alta Cozinha) os peixes, e as carnes,
e os legumes, que os escudeiros serviam, empoados de pó rosado, com
librés da cor de rosa, enquanto do teto, dum velário de seda
rosada, caíam pétalas frescas de rosas… A Cidade, deslumbrada,
clamou: – “Bravo, Jacinto!” E o meu Príncipe, ao rematar
a festa fulgurante, plantou diante de mim as mãos nas ilhargas e gritou
triunfalmente: – “Hem? Que maçada!…”
Depois foi o Humanitarismo: e fundou um Hospício no campo, entre jardins,
para velhinhos desamparados, outro para crianças débeis à
beira do Mediterrâneo. Depois com o major Dorchas, e Mayolle, e o Hindu
de Mayolle penetrou no Teosofismo: e montou tremendas experiências para
verificar a misteriosa exteriorização da motilidade. Depois,
desesperadamente, ligou o 202 com os fios telegráficos do Times, para
que no seu gabinete, como num coração, palpitasse toda a Vida
Social da Europa.
E a cada um destes esforços da elegância, do humanitarismo,
da sociabilidade, e da inteligência indagadora, voltara para mim, de
braços alegres, com um grito vitorioso: – “Vês tu, Zé
Fernandes? Uma maçada!” – Arrebatava então o seu Eclesiastes,
o seu Schopenhauer, e, estendido no sofá, saboreava voluptuosamente
a concordância da Doutrina e da Experiência. Possuía uma
Fé – o Pessimismo; era um apóstolo rico e esforçado;
e tudo tentava, com suntuosidade, para provar a verdade da sua Fé!
Muito gozou nesse ano o meu desgraçado Príncipe!
No começo do Inverno, porém, notei com inquietação
que Jacinto já não folheava o Eclesiastes, desleixava Schopenhauer.
Nem festas, nem Teosofismos, nem os seus Hospícios, nem os fios do
Times, pareciam interessar agora o meu amigo, mesmo como demonstrações
gloriosas da sua Crença. E a sua abominável função
de novo se limitou a bocejar, a passar os dedos moles sobre a face pendida,
palpando a caveira. Incessantemente aludia à morte como a uma libertação.
Uma tarde mesmo, no melancólico crepúsculo da Biblioteca, antes
de refulgirem as luzes, consideravelmente me aterrou, falando num regelado
de mortes rápidas, sem dor, pelo choque duma vasta pilha elétrica
ou pela violência compassiva do ácido cianídrico. Diabo!
O Pessimismo, que aparecera na Inteligência do meu Príncipe como
um conceito elegante – atacara bruscamente a Vontade!
Todo o seu movimento então foi o dum boi inconsciente que marcha sob
a canga e o aguilhão. Já não esperava da Vida contentamento
– nem mesmo se lastimava que ela lhe trouxesse tédio ou pena. “Tudo
é indiferente, Zé Fernandes!” E tão indiferentemente
sairia à sua janela para receber uma Coroa Imperial oferecida pôr
um Povo – como se estenderia numa poltrona rota para emudecer e jazer. Sendo
tudo inútil, e não conduzindo senão a maior desilusão,
que podia importar a mais rutilante atividade ou a mais desgostada inércia?
O seu gesto constante, que me irritava, era encolher os ombros. Perante duas
idéias, dois caminhos, dois pratos, encolhia os ombros! Que importava?…
E no mínimo ato, raspar um fósforo ou desdobrar um Jornal, punha
uma morosidade tão desconsolada que todo ele parecia ligado, desde
os dedos até à alma, pelas voltas apertadas duma corda que se
não via e que o travava.
Muito desagradavelmente me recordo do dia dos seus anos, a 10 de Janeiro.
Cedo, de manhã, recebera, com uma carta de Madame de Trèves,
um açafate de camélias, azaléas, orquídeas e lírios-do-vale.
E foi este mimo que lhe recordou a data considerável. Soprou sobre
as pétalas o fumo do cigarro e murmurou com um riso de lento escárnio:
-Então há trinta e quatro anos eu ando nesta maçada?
E como eu propunha que telefonássemos aos amigos para beberem no 202
o Champanhe do “Natalício” – ele recusou, com o nariz enojado.
-Ó! Não! Que horrível seca!… – E bradou mesmo para
o Grilo: – Eu hoje não estou em Paris para ninguém. Abalei para
o campo, abalei para Marselha… Morri!
E a sua ironia não cessou até ao almoço perante os bilhetes,
os telegramas, as cartas, que subiam, se arredondavam em colina sobre a mesa
de ébano, como um preito da Cidade. Outras flores que vieram, em vistosos
cestos, com vistosos laços, foram pôr ele comparadas às
que se depõem sobre uma tumba. E apenas se interessou um momento pelo
presente de Efraim, uma engenhosa mesa, que se abaixava até ao tapete
ou se alteava até ao teto – para quê, senhor Deus meu?
Depois do almoço, como chovia sombriamente, não arredamos do
202, com os pés estendidos ao lume, em preguiçoso silêncio.
Eu terminara pôr adormecer beatificamente. Acordei aos passos açodados
do Grilo… Jacinto, enterrado na poltrona, com umas tesouras, recortava um
papel! E nunca eu me compadeci daquele amigo, que cansara a mocidade a acumular
todas as noções formuladas desde Aristóteles e a juntar
os inventos realizados desde Terâmenes, como nessa tarde de festa, em
que ele, cercado de Civilização nas máximas proporções,
para gozar nas máximas proporções a delícia de
viver, se encontrava reduzido, junto ao seu lar, a recortar papéis
com uma tesoura!
O Grilo trazia um presente do Grão-Duque – uma caixa de prata, forrada
de cedro, e cheia dum chá precioso, colhido, flor a flor, nas veigas
de Kiang-Sou pôr mãos puras de virgens, e conduzido através
da Ásia, em caravanas, com a veneração duma relíquia.
Então, para despertar o nosso torpor, lembrei que tomássemos
o divino chá – ocupação bem harmônica com a tarde
triste, a chuva grossa alagando os vidros, e a clara chama bailando no fogão.
Jacinto acendeu – e um escudeiro acercou logo a mesa de Efraim para que nós
lhe estreássemos os serviços destros. Mas o meu Príncipe,
depois de a altear, para o meu espanto, até aos cristais do lustre,
não conseguiu, apesar de uma suada e desesperada batalha com as molas,
que a mesa regressasse a uma altura humana e caseira. E o escudeiro de novo
a levou, levantada como um andaime, quimérica, unicamente aproveitável
para o gigante Adamastor. Depois veio a caixa do chá entre chaleiras,
lâmpadas, coadores, filtros, todo um fausto de alfaias de prata, que
comunicavam a essa ocupação, tão simples e doce em casa
de minha tia, fazer chá, a majestade dum rito. Prevenido pelo meu camarada
da sublimidade daquele chá de Kiang-Sou, ergui a chávena aos
lábios com reverência. Era uma infusão descorada que sabia
a malva e a formiga. Jacinto provou, cuspiu, blasfemou. Não tomamos
chá.
Ao cabo de outro pensativo silêncio, murmurei, com os olhos perdidos
no lume:
-E as obras de Tormes? A igreja… Já haverá igreja nova?
Jacinto retomara o papel e a tesoura:
-Não sei… não tornei a receber carta do Silvério…
Nem imagino onde param os ossos… Que lúgubre história!
Depois chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encomendara pelo Grilo ao
nosso magistral cozinheiro uma larga travessa de arroz-doce, com as iniciais
de Jacinto e a data ditosa em canela, à moda amável da nossa
meiga terra. E o meu Príncipe à mesa, percorrendo a lâmina
de marfim onde no 202 se escreviam os pratos a lápis vermelho, louvou
com fervor a idéia patriarcal:
-Arroz-doce! Está escrito com dois ss, mas não tem dúvida…
Excelente lembrança! Há que tempos não como arroz-doce!
Desde a morte da avó.
Mas quando o arroz-doce apareceu triunfalmente, que vexame! Era um prato
monumental, de grande arte! O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide
do Egito, emergia duma calda de cereja, e desaparecia sob os frutos secos
que o revestiam até ao cimo onde se equilibrava uma coroa de Conde
feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciais, a data, tão
lindas e graves na canela ingênua, vinham traçadas nas bordas
da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato acanalhado.
E Jacinto, erguendo o copo de Champanhe, murmurou como num funeral pagão:
-Ad Manes, aos nossos mortos!
Recolhemos à Biblioteca, a tomar o café no conchego e alegria
do lume. Fora, o vento bramava como num ermo serrano; e as vidraças
tremiam, alagadas, sob as bátegas da chuva irada. Que dolorosa noite
para os dez mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na minha
aldeia, entre cerro e vale, talvez assim rugisse a tormenta. Mas aí
cada pobre, sob o abrigo da sua telha vã, com a sua panela atestada
de couves, se agacha no seu mantéu ao calor da lareira. E para os que
não tenham lenha ou couve, lá está o João das
Quintãs, ou a tia Vicência, ou o abade, que conhecem todos os
pobres pelos seus nomes, e com eles contam, como sendo dos seus, quando o
carro vai ao mato e a fornada entra no forno. Ah Portugal pequenino, que ainda
és doce aos pequeninos!
Suspirei, Jacinto preguiçava. E terminamos pôr remexer languidamente
os jornais que o mordomo trouxera, num monte facundo, sobre uma salva de prata
– jornais de Paris, jornais de Londres, Semanários, Magazines, Revistas,
Ilustrações… Jacinto desdobrava, arremessava: das Revistas
espreitava o sumário, logo farto; às ilustrações
rasgava as folhas com o dedo indiferente, bocejando pôr cima das gravuras.
Depois, mais estirado para o lume:
-É uma seca… Não há que ler. E de repente, revoltado
contra este fastio opressor que o escravizava, saltou da poltrona com um arranque
de quem despedaça algemas, e ficou ereto, dardejando em torno um olhar
imperativo e duro, como se intimasse aquele seu 202, tão abarrotado
de Civilização, a que pôr um momento sequer fornecesse
à sua alma um interesse vivo, à sua vida um fugitivo gosto!
Mas o 202 permaneceu insensível; nem uma luz, para o animar, avivou
o seu brilho mudo: só as vidraças tremeram sob o embate mais
rude de água e vento.
Então o meu Príncipe, sucumbido, arrastou os passos até
ao seu gabinete, começou a percorrer todos os aparelhos completadores
e facilitadores da Vida – o seu Telégrafo, o seu Telefone, o seu Fonógrafo,
o seu Radiômetro, o seu Grafofone, o seu Microfone, a sua Máquina
de Escrever, a sua Máquina de Contar, a sua Imprensa Elétrica,
a outra Magnética, todos os seus utensílios, todos os seus tubos,
todos os seus fios… Assim um Suplicante percorre altares de onde espera
socorro. E toda a sua suntuosa Mecânica se conservou rígida,
reluzindo frigidamente, sem que uma roda girasse nem uma lâmina vibrasse,
para entreter o seu Senhor.
Só o relógio monumental, que marcava a hora de todas as capitais
e o curso de todos os planetas, se compadeceu, batendo a meia-noite, anunciando
ao meu amigo que mais um Dia partira levando o seu peso – diminuindo esse
sombrio peso da Vida, sob que ele gemia, vergado. O Príncipe da Grã-Ventura,
então, decidiu recolher para a cama – com um livro… E durante um
momento, estacou no meio da Biblioteca, considerando os seus setenta mil volumes
estabelecidos com pompa e majestade como doutores num Concílio – depois
as pilhas tumultuárias dos livros novos que esperavam pelos cantos,
sobre o tapete, o repouso e a consagração das estantes de ébano.
Torcendo molemente o bigode caminhou pôr fim para a região dos
Historiadores: espreitou séculos, farejou raças; pareceu atraído
pelo esplendor do Império Bizantino; penetrou na Revolução
Francesa de onde se arredou desencantado; e palpou com mão indeliberada
toda a vasta Grécia desde a criação de Atenas até
à aniquilação de Corinto. Mas bruscamente virou para
a fila dos Poetas, que reluziam em marroquins claros, mostrando, sobre a lombada,
em ouro, nos títulos fortes ou lânguidos, o interior das suas
almas. Não lhe apeteceu nenhuma dessas mil almas – e recuou, desconsolado,
até aos Biólogos… Tão maciça e cerrada era a
estante de Biologia, que o meu pobre Jacinto estarreceu, como ante uma cidadela
inacessível! Rolou a escada – e, fugindo, trepou, até às
alturas da Astronomia: destacou astros, recolocou mundos; todo um Sistema
Solar desabou em fragor. Aturdido, desceu, começou a procurar pôr
sobre as rimas as obras novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate.
Apanhava, folheava, arremessava; para desentulhar um volume, demolia uma torre
de doutrinas; saltava pôr cima dos Problemas, pisava as Religiões;
e relanceando uma linha, esgravatando além num índice, todos
interrogava, de todos se desinteressava, rolando quase de rastos, nas grossas
vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na ânsia de encontrar
um Livro! Parou então no meio da imensa nave, de cócoras, sem
coragem, contemplando aqueles muros todos forrados, aquele chão todo
alastrado, os seus setenta mil volumes – e, sem lhe provar a substância,
já absolutamente saciado, abarrotado, nauseado pela opressão
da sua abundância. Findou pôr voltar ao montão de jornais
amarrotados, ergueu melancolicamente um velho Diário de Notícias,
e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer.
Capítulo VIII
Ao fim desse Inverno escuro e pessimista, uma manhã que eu preguiçava
na cama, sentindo através da vidraça cheia de sol ainda pálido
um bafo de Primavera ainda tímido – Jacinto assomou à porta
do meu quarto, revestido de flanelas leves, duma alvura de açucena.
Parou lentamente à beira dos colchões, e, com gravidade, como
se anunciasse o seu casamento ou a sua morte, deixou desabar sobre mim esta
declaração formidável:
-Zé Fernandes, vou partir para Tormes.
O pulo com que me sentei abalou o rijo leito de pau-preto do velho D.Galião:
-Para Tormes? Ó Jacinto, quem assassinaste?…
Deleitado com a minha emoção, o Príncipe da Grã-Ventura
tirou da algibeira uma carta, e encetou estas linhas, já decerto relidas,
fundamente estudadas:
-“Ilmº e Exmº sr. – Tenho grande satisfação
em comunicar a V.Exª que toda esta semana devem ficar prontas as obras
da capela…”
-É do Silvério? – exclamei.
-É do Silvério. “… as obras da capela nova. Os venerandos
restos dos excelsos avós de V. Exª, senhores de todo o meu respeito,
podem pois ser em breve trasladados da igreja de S José, onde têm
estado depositados pôr bondade do nosso Abade, que muito se recomenda
a V.Exª… Submisso aguardo as prestantes ordens de V.Exª a respeito
desta majestosa e aflitiva cerimônia…”
Atirei os braços, compreendendo:
-Ah! bem! Queres ir assistir à trasladação….
Jacinto sumiu a carta no bolso.
-Pois não te parece, Zé Fernandes? Não é pôr
causa dos outros avós, que são vagos, e que eu não conheci.
É pôr causa do avô Galião… Também não
o conheci. Mas este 202 está cheio dele; tu estás deitado na
cama dele; eu ainda uso o relógio dele. Não posso abandonar
ao Silvério e aos caseiros o cuidado de o instalarem no seu jazigo
novo. Há aqui um escrúpulo de decência, de elegância
moral… Enfim, decidi. Apertei os punhos na cabeça, e gritei – vou
a Tormes! E vou!… E tu vens!
Eu enfiara as chinelas, apertava os cordões do roupão:
-Mas tu sabes, meu bom Jacinto, que a casa de Tormes está inabitável…
Ele cravou em mim os olhos aterrados.
-Medonha, hem?
-Medonha, medonha, não… É uma bela casa, de bela pedra. Mas
os caseiros, que lá vivem há trinta anos, dormem em catres,
comem o caldo à lareira, e usam as salas para secar o milho. Creio
que os únicos móveis de Tormes, se bem recordo, são um
armário e uma espineta de charão, coxa, já sem teclas.
O meu pobre Príncipe suspirou, com um gesto rendido em que se abandonava
ao Destino:
-Acabou!… alea jacta est! E como só partimos para Abril, há
tempo de pintar, de assoalhar, de envidraçar… Mando aqui de Paris
tapetes e camas… Um estofador de Lisboa vai depois forrar e disfarçar
algum buraco… Levamos livros, uma máquina para fabricar gelo… E
é mesmo uma ocasião de pôr enfim numa das minhas casas
de Portugal alguma decência e ordem. Pois não achas? E então
essa! Uma casa que data de 1410… Ainda existia o Império Bizantino!
Eu espalhava, com o pincel, sobre a face, flocos lentos de sabão.
O meu Príncipe acendeu muito pensativamente um cigarro; e não
se arredou do toucador, considerando o meu preparo com uma atenção
triste que me incomodava. Pôr fim, como se remoesse uma sentença
minha, para lhe reter bem a moral e o suco:
-Então, definitivamente, Zé Fernandes, entendes que é
um dever, um absoluto dever, ir eu a Tormes?
Afastei do espelho a cara ensaboada para encarar divertido espanto o meu
Príncipe:
-Ó Jacinto! foi ti, só em ti que nasceu a idéia desse
dever! E honra te seja, menino… Não cedas a ninguém essa honra!
Ele atirou o cigarro – e, com as mãos enterradas nas algibeiras das
pantalonas, vagou pelo quarto, topando nas cadeiras, embicando contra os postes
torneados do velho leito de D.Galião, num balanço vago, com
barco já desamarrado do seu seguro ancoradouro, e sem rumo no mar incerto.
Depois encalhou sobre a mesa onde eu conservava enfileirada, pôr gradações
de sentimentos, desde o daguerreótipo do papá até a fotografia
do Corocho perdigueiro, a galeria da minha Família.
E nunca o meu Príncipe (que eu contemplava esticando os suspensórios)
me pareceu tão corcovado, tão minguado, como gasto pôr
uma lima que desde muito andasse fundamente limando. Assim viera findar, desfeita
em Civilização, naquele super-requintado magricela sem músculo
e sem energia, a raça fortíssima dos Jacintos! Esses guedelhudos
Jacintões, que nas suas altas terras de Tormes, de volta de bater o
mouro no Salado ou o castelhano em Valverde, nem mesmo despiam as fuscas armaduras
para lavar as suas cãs e amarrar a vide ao olmo, edificando o Reino
com a lança e com a enxada, ambas tão rudes e rijas! E agora
ali estava aquele último Jacinto, um Jacintículo, com a macia
pele embebida em aromas, a curta alma enrodilhada em Filosofias, travado e
suspirando baixinho na miúda indecisão de viver.
-Ó Zé Fernandes, quem é essa lavadeirona tão
rechonchuda?
Estendi o pescoço para a fotografia que ele erguera de entre a minha
galeria, no seu honroso caixilho de pelúcia escarlate:
-Mais respeito, Sr. D. Jacinto… Um pouco mais de respeito, cavalheiro!…
É minha prima Joaninha, de Sandofim, da Casa da Flor da Malva.
-Flor da Malva – murmurou o meu Príncipe. – É a Casa do Condestável,
de Nun’Álvares.
-Flor da Rosa, homem! A Casa do Condestável era na Flor da Rosa, no
Alentejo… Essa tua ignorância trapalhona das coisas de Portugal!
O meu Príncipe deixou escorregar molemente a fotografia da minha prima
de entre os dedos moles – que levou à face, no seu gesto horrendo de
palpar através da face a caveira. Depois, de repente, com um soberbo
esforço, em que se endireitou e cresceu:
-Bem! Alea jacta est! Partamos pois para as serras!…E agora nem reflexão,
nem descanso!… Á obra! E a caminho!
Atirou a mão ao fecho dourado da porta como se fosse o negro loquete
que abre os Destinos – e no corredor gritou pelo Grilo, com uma larga e açodada
voz que eu nunca lhe conhecera, e me lembrou a dum Chefe ordenando, na alvorada,
que se levante o Acampamento, e que a Hoste marche, com pendões e bagagens…
Logo nessa manhã (com uma atividade em que eu reconheci a pressa enjoada
de quem bebe óleo de rícino) escreveu ao Silvério mandando
caiar, assoalhar, envidraçar o casarão. E depois do almoço
apareceu na Biblioteca, chamado violentamente pelo telefone, para combinar
a remessa de mobílias e confortos, o diretor da Companhia Universal
de Transportes.
Era um homem que parecia o cartaz da sua Companhia, apertado num jaquetão
de xadrezinho escuro, com polainas de jornada sobre botas brancas, uma multicor
resumindo as suas condecorações exóticas de Madagáscar,
de Nicarágua, da Pérsia, outras ainda, que provavam a universalidade
dos seus serviços. Apenas Jacinto mencionou “Tormes, no Douro…”
– ele logo, através dum sorriso superior, estendeu o braço,
detendo outros esclarecimentos, na sua intimidade minuciosa com essas regiões.
-Tormes… Perfeitamente! Perfeitamente!
Sobre o joelho, na carteira, escrevinhou uma fugidia nota – enquanto eu considerava,
assombrado, a vastidão do seu saber Corográfico, assim familiar
com os recantos duma serra de Portugal e com todos os seus velhos solares.
Já ele atirara a carteira para o bolso… E “nós, seus
caros senhores, não tínhamos senão a encaixotar as roupas,
as mobílias, as preciosidades! Ele mandaria as suas carroças
buscar os caixotes, a que poria, em grossa letra, com grossa tinta, o endereço…”
-Tormes, perfeitamente! Linha Norte-Espanha-Medina-Salamanca… Perfeitamente!
Tormes… Muito pitoresco! E antigo, histórico! Perfeitamente, perfeitamente!
Desengonçou a cabeça numa vênia profundíssima
– e saiu da Biblioteca, com passos que devoravam léguas, anunciavam
a presteza dos seus Transportes.
-Vê tu – murmurou Jacinto muito sério. – Que prontidão,
que facilidade!… em Portugal era uma tragédia. Não há
senão Paris!
Começou então no 202 o colossal encaixotamento de todos os
confortos necessários ao meu Príncipe para um mês de serra
áspera – camas de pena, banheiras de níquel, lâmpadas
Carcel, divãs profundos, cortinas para vedar as gretas rudes, tapetes
para amaciar os soalhos broncos. Os sótãos, onde se arrecadavam
os pesados trastes do avô Galião, foram esvaziados – porque o
casarão medieval de 1410 comportava os tremós românticos
de 1830. De todos os armazéns de Paris chegavam cada manhã fardos,
caixas, temerosos embrulhos que os embaladores desfaziam, atulhando os corredores
de montes de palha e de papel pardo, onde os nossos passos açodados
se enrodilhavam. O cozinheiro, esbaforido, organizava a remessa de fornalhas,
geleiras, bocais de trufas, latas de conservas, bojudas garrafas de águas
minerais. Jacinto, lembrando as trovoadas da serra, comprou um imenso pára-raios.
Desde o amanhecer, nos pátios, no jardim, se martelava, se pregava,
com vasto fragor, como na construção duma cidade. E o desfilar
das bagagens, através do portão, lembrava uma página
de Heródoto contando a marcha dos Persas.
Das janelas, Jacinto, com o braço estendido, saboreava aquela atividade
e aquela disciplina:
-Vê tu, Zé Fernandes, que facilidade!… Saímos do 202,
chegamos à serra, encontramos o 202. Não há senão
Paris!
Recomeçara a amar a Cidade, o meu Príncipe, enquanto preparava
o seu êxodo. Depois de Ter, toda a manhã, apressado os encaixotadores,
descortinado confortos novos para o abandonado solar, telefonado gordas listas
de encomendas a cada loja de Paris – era com delícia que se vestia,
se perfumava, se floria, se enterrava na vitória ou saltava para a
almofada do fáeton, e corria ao bosque, e saudava a barba talmúdica
do Efraim, e os bandós furiosamente negros de Vergame, e o Psicólogo
de fiacre, e a condessa de Trèves na sua nova caleche de oito molas
fornecida pelas operações conjuntas da Bolsa e da alcova. Depois
arrebanhava amigos para jantares de surpresa no Voisin ou no Bignon, onde
desdobrava o guardanapo com a impaciência duma fome alegre, vigiando
fervorosamente que os Bordpeus estivessem bem aquecidos e os Champanhes bem
granitados. E no teatro das Nouveautés, no Palais Royal, nos Buffos,
ria batendo na coxa, com encanecidas facécias de encanecidas farsas,
antiquíssimos atores, com que já rira na sua infância,
antes da guerra, sob o segundo Napoleão.
De novo, em duas semanas, se abarrotaram as páginas da sua Agenda.
A magnificência do seu traje, como imperador Frederico II de Suábia,
deslumbrou, no baile mascarado da Princesa de Cravon-Rogan (onde também
fui, de “moço de forcado”). E na Associação
para o Desenvolvimento das Religiões Esotéricas discursou e
batalhou bravamente pela construção dum Templo Budista de Montmartre!
Com espanto meu recomeçou também a conversar, como nos tempos
de Escola, da “famosa Civilização nas suas máximas
proporções”. Mandou encaixotar o seu velho telescópio
para o usar em Tormes. Receei mesmo que no seu espírito germinasse
a idéia de criar, no cimo da serra, uma Cidade com todos os seus órgãos.
Pelo mesmo não consentia o meu Jacinto que essas semanas da silvestre
Tormes interrompessem a ilimitada acumulação das noções
– porque uma manhã rompeu pelo meu quarto, desolado, gritando que entre
tantos confortos e formas de Civilização esquecêramos
os livros! Assim era – e que vexame para a nossa Intelectualidade! Mas que
livros escolher entre os facundos milhares sob que vergava o 202? O meu Príncipe
decidiu logo dedicar os seus serranos ao estudo da História Natural
– e nós mesmos, imediatamente, deitamos para o fundo dum vasto caixote
novo, como lastro, os vinte e cinco tomos de Plínio. Despejamos depois
para dentro, às braçadas, Geologia, Mineralogia, Botânica…
Espalhamos pôr cima uma camada aérea de Astronomia. E, para fixar
bem no caixote estas ciências oscilantes, entalamos em redor cunhas
de Metafísica.
Mas quando a derradeira caixa, pregada e cintada de ferro, saiu do portão
do 202 na derradeira carroça da Companhia dos Transportes, toda esta
animação de Jacinto se abateu como a efervescência num
copo de Champanhe. Era em meados já tépidos de Março.
E de novo os seus desagradáveis bocejos atroaram o 202 e todos os sofás
rangeram sob o peso do corpo que lhe atirava para cima, mortalmente vencido
pela fartura e pelo tédio, num desejo de repouso eterno, bem envolto
de solidão e silêncio. Desesperei. O quê! Aturaria eu ainda
aquele Príncipe palpando amargamente a caveira, e, quando o crepúsculo
entristecia a Biblioteca, aludindo, num tom rouco, à doçura
das mortes rápidas pela violência misericordiosa do ácido
cianídrico? Ah não, caramba! E uma tarde em que o encontrei
estirado sobre um divã, de braços em cruz, como se fosse a sua
estátua de mármore sobre o seu jazigo de granito, positivamente
o abanei com furor, berrando:
-Acorda, homem! Vamos para Tormes! O casarão deve estar pronto, a
reluzir, a abarrotar de coisas! Os ossos de teus avós pedem repouso
em cova sua!… A caminho, a enterrar esses mortos, e a vivermos nós,
os vivos!… Irra! São cinco de Abril!… é o bom tempo da serra!
O meu Príncipe ressurgiu lentamente da inércia de pedra:
-O Silvério não me escreveu, nunca me escreveu… Mas, com
efeito, deve estar tudo preparado… Já lá certamente criados,
o cozinheiro de Lisboa… eu só levo o Grilo, e o Anatole que enverniza
bem o calçado, e tem jeito como pedicuro… Hoje é Domingo.
Atirou os pés para o tapete, com heroísmo:
-Bem, partimos no Sábado!… Avisa tu o Silvério!
Começou então o laborioso e pensativo estudo dos Horários
– e o dedo magro de Jacinto, pôr sobre o mapa, avançando e recuando
entre Paris e Tormes. Para escolher o “salão” que devíamos
habitar durante a temida jornada, duas vezes percorremos o depósito
da Estação de Orleãs atolados em lama, atrás do
chefe do Tráfico que entontecia. O meu Príncipe recusava este
salão pôr causa da cor tristonha dos estofos; depois recusava
aquele pôr causa da mesquinhez aflitiva do Water-Closet. Uma das suas
inquietações era o banho, nas manhãs que passaríamos
rolando. Sugeri uma banheira de borracha. Jacinto, indeciso, suspirava…
Mas nada o aterrou como o trasbordo em Medina del Campo, de noite, nas trevas
da Velha Castela. Debalde a Companhia do Norte da Espanha e de Salamanca,
pôr cartas, pôr telegramas, sossegaram o meu camarada, afirmando
que, quando ele chegasse no comboio de Irun dentro do seu salão, já
outro salão ligado ao comboio de Portugal esperaria, bem aquecido,
bem alumiado, com uma ceia que lhe ofertava um dos Diretores, D. Esteban Castilho,
ruidoso e rubicundo conviva do 202! Jacinto corria os dedos ansioso pela face:
– “E os sacos, as peles, os livros, quem os transportaria do salão
de Irun para o salão de Salamanca?” Eu berrava, desesperado,
que os carregadores de Medina eram os mais rápidos, os mais destros
de toda a Europa! Ele murmurava: – “Pois sim, mas em Espanha, de noite!…”
A noite, longe da Cidade, sem telefone, sem luz elétrica, sem postos
de polícia, parecia ao meu Príncipe povoada de surpresas e assaltos.
Só acalmou depois de verificar no Observatório Astronômico,
sob a garantia do sábio professor Bertrand, que a noite da nossa jornada
era de Lua-cheia!
Enfim, na Sexta-feira, findou a tremenda organização daquela
viagem histórica! O Sábado predestinado amanheceu com generoso
sol, de afagadora doçura. E eu acabava de guardar na mala, embrulhadas
em papel pardo, as fotografias das criaturinhas suaves que, nesses vinte e
sete meses de Paris, me tinham chamado “mon petit chou! mont rat cheri!”
quando Jacinto rompeu pelo quarto, com um soberbo ramo de orquídeas
na sobrecasaca, pálido e todo nervoso.
-Vamos ao bosque, pôr despedida?
Fomos – à grande despedida! E que encanto! Até nas almofadas
e molas da vitória senti logo uma elasticidade mais embaladora. Depois,
pela Avenida do Bosque, quase me pesava não ficar sempiternamente rolando,
ao trote rimado das éguas perfeitas, no rebrilho rico de metais e vernizes,
sobre aquele macadame mais alisado que mármore, entre tão bem
regadas flores e relvas de tão tentadora frescura, cruzando uma Humanidade
fina, de elegância bem acabada, que almoçara o seu chocolate
em porcelanas de Sèvres ou de Minton, saíra de entre sedas e
tapetes de três mil francos, e respirava a beleza de Abril com vagar,
requinte e pensamentos ligeiros! O Bosque resplandecia numa harmonia de verde,
azul e ouro. Nenhuma cova ou terra solta desalisava as polidas áleas
que a Arte traçou e enroscou na espessura – nenhum esgalho desgrenhado
desmanchava as ondulações macias da folhagem que o Estado escova
e lava. O piar da aves apenas se elevava para espalhar uma graça leve
de vida alada – e mais natural parecia, entre o arvoredo sociável,
o ranger das selas novas, onde pousavam, com balanço esbelto, as amazonas
espartilhadas pelo grande Redfern. Em frente ao Pavilhão de Armenonville
cruzamos Madame de Trèves, que nos envolveu a ambos na carícia
do seu sorriso, mais avivado àquela hora pelo vermelhão ainda
úmido. Logo atrás a barba talmúdica de Efraim negrejou,
fresca também da brilhantina da manhã, no alto dum fáeton
tilintante. Outros amigos de Jacinto circulavam nas Acácias – e as
mãos que lhe acenavam, lentas e afáveis, calçavam luvas
frescas cor de palha, cor de pérola, cor de lilás. Todelle relampejou
rente de nós sobre uma grande bicicleta. Dorman, alastrado numa cadeira
de ferro, sob um espinheiro em flor, mamava o seu imenso charuto, como perdido
na busca de rimas sensuais e nédias. Adiante foi o Psicólogo,
que nos não avistou, conversando com um requebro melancólico
para dentro dum cupé que rescendia a alcova, e a que um cocheiro obeso
imprimia dignidade e decência. E rolávamos ainda, quando o Duque
de Marizac, a cavalo, ergueu a bengala, estacou a nossa vitória para
perguntar a Jacinto se aparecia à noite nos “quadros vivos”
dos Verghanes. O meu Príncipe rosnou um – “não, parto
para o sul…” – que mal lhe passou de entre os bigodes murchos… e
Marizac lamentou – porque era uma festa estupenda. Quadros vivos da História
Sagrada e da História romana!… Madame Verghane, de Madalena, de braços
nus, peitos nus, pernas nuas, limpando com os cabelos os pés do Cristo!
– O Cristo, um latagão soberbo, parente dos Trèves, empregado
no Ministério da guerra, gemendo, derreado, sob uma cruz de papelão!
Havia também Lucrécia na cama, e Tarquínio ao lado, de
punhal, a puxar os lençóis! E depois ceia, em mesas soltas,
todos nos seus trajes históricos. Ele já estava aparceirado
com Madame de Malbe, que era Agripina! Quadro portentoso esse – Agripina morta,
quando Nero a vem contemplar e lhe estuda as formas, admirando umas, desdenhando
outras como imperfeitas. Mas, pôr polidez, ficara combinado que Nero
admiraria sem reserva todas as formas de Madame de Malbe… Enfim colossal,
e estupendamente instrutivo!
Acenamos um longo adeus àquele alegre Marizac. E recolhemos sem que
Jacinto emergisse do silêncio enrugado em que se abismara, com os braços
rigidamente cruzados, como remoendo pensamentos decisivos e forte. Depois,
em frente ao Arco do Triunfo, moveu a cabeça, murmurou:
-É muito grave deixar a Europa!
Enfim, partimos! Sob a doçura do crepúsculo que se enublara,
deixamos o 202. O Grilo e o Anatole seguiam num fiacre atulhado de livros,
de estojos, de paletós, de impermeáveis, de travesseiras, de
águas minerais, de sacos de couro, de rolos de mantas; e mais atrás
um ônibus rangia sob a carga de vinte e três rolos de mantas;
e mais atrás um ônibus rangia sob a carga de vinte e três
malas. Na Estação, Jacinto ainda comprou todos os Jornais, todas
as Ilustrações, Horários, mais livros, e um saca-rolhas
de forma complicada e hostil. Guiados pelo Chefe do Tráfico, pelo Secretário
da Companhia, ocupamos copiosamente o nosso salão. Eu pus o meu boné
de seda, calcei as minhas chinelas. Um silvo varou a noite. Paris lampejou,
fulgiu num derradeiro clarão de janelas… Para o sorver, Jacinto ainda
se arremessou à portinhola. Mas rolávamos já na treva
da Província. O meu Príncipe então recaiu nas almofadas:
-Que aventura, Zé Fernandes!
Até Chartres, em silêncio. Folheamos as Ilustrações.
Em Orleães, o guarda veio arranjar respeitosamente as nossas camas.
Derreado com aqueles catorze meses de Civilização, adormeci
– e só acordei em Bordéus quando Grilo, zeloso, nos trouxe o
nosso chocolate. Fora, uma chuva miudinha pingava molemente dum espesso céu
de algodão sujo. Jacinto não se deitara, desconfiado da aspereza
e da umidade dos lençóis. E, metido num roupão de flanela
branco, com a face arrepiada e estremunhada, ensopando um bolo no chocolate,
rosnava sombriamente:
-Este horror!… E agora com chuva!
Em Biarriz.
Depois Jacinto, que espreitava pela janela embaciada, reconheceu o lento
caminhar pernalto, o nariz bicudo e triste, do Historiador Danjon. Era ele,
o facundo homem, vestido de xadrezinho, ao lado duma dama roliça que
levava pela trela uma cadelinha felpuda. Jacinto baixou a vidraça violentamente,
berrou pelo Historiador, na ânsia de comunicar ainda, através
dele, com a Cidade, com o 202!… Mas o comboio mergulhara na chuva e névoa.
Sobre a ponte do Bidassoa, antevendo o termo da vida fácil, os abrolhos
da Incivilização, Jacinto suspirou com desalento:
-Agora adeus, começa a Espanha!…
Indignado, eu, que já saboreava o generoso ar da terra bendita, saltei
para diante do meu Príncipe, e num saracoteio de tremendo salero, castanholando
os dedos, entoei uma “petenera” condigna:
A la puerta de mi casa
Ay Soledad, Soleda…á…á…á.
Ele estendeu os braços, suplicante:
-Zé Fernandes, tem piedade do enfermo e do triste!
-Irun! Irun!…
Nessa Irun almoçamos com suculência – porque sobre nós
velava, como deus onipresente, a Companhia do Norte. Depois “el jefe
d’Aduana, el jefe d’Estación”, preciosamente nos
instalaram noutro salão, novo, com cetins cor de azeitona, mas tão
pequeno que uma rica porção dos nossos confortos em mantas,
livros, sacos e impermeáveis, passou para o compartimento do Sleeping
onde se repoltreavam o Grilo e o Anatole, ambos de bonés escoceses,
e fumando gordos charutos – Buen viage! Gracias! Servidores! – e entramos
silvando nos Pireneus.
Sob a influência da chuva embaciadora, daquelas serras sempre iguais,
que se densenrolavam, arrepiadas, diluídas na névoa, resvalei
a uma sonolência doce; – e, quando descerrava as pálpebras, encontrava
Jacinto a um canto, esquecido do livro fechado nos joelhos, sobre que cruzara
os magros dedos, considerando vales e montes com a melancolia de quem penetra
nas terras do seu desterro! Um momento veio em que, arremessando o livro,
enterrando mais o chapéu mole, se ergueu com tanta decisão,
que receei detivesse o comboio para saltar à estrada, correr através
das Vascongadas e da Navarra, para trás, para o 202! Sacudi o meu torpor,
exclamei: – “ó menino!…” Não! O pobre amigo ia
apenas continuar o seu tédio para outro canto, enterrado noutra almofada,
com outro livro fechado. E à maneira que a escuridão da tarde
crescia, e com ela a borrasca de vento e água, uma inquietação
mais aterrada se apoderava do meu Príncipe, assim desgarrado da Civilização,
arrastado para a Natureza que já o cercava de brutalidade agreste.
Não cessou então de me interrogar sobre Tormes:
-As noites são horríveis, hem, Zé Fernandes? Tudo negro,
enorme solidão… E o médico?… Há médico?
Subitamente o comboio estacou. Mais grossa e ruidosa a chuva fustigou as
vidraças. Era um descampado, todo em treva, onde rolava e lufava um
grande vento solto. A máquina apitava, com angústia. Uma lanterna
lampejou, correndo. Jacinto batia o pé: – É medonho! É
medonho!…” Entreabri a portinhola. Da claridade incerta das vidraças
surdiam cabeças esticadas, assustadas. – “Que hay? Que hay?”
– A uma rajada, que me alagou, recuei:- e esperamos durante lentos, calados
minutos, esfregando desesperadamente os vidros embaciados para sondar a escuridão.
De repente o comboio recomeçou a rolar, muito sereno.
Em breve apareceram as luzinhas mortas duma estação abarracada.
Um condutor, com o casacão de oleado todo a escorrer, trepou ao salão:
– e pôr ele soubemos, enquanto carimbava apressadamente os bilhetes,
que o trem, muito atrasado, talvez não alcançasse em Medina
o comboio de Salamanca!
-Mas então?…
O casaco de oleado escorregara pela portinhola, fundido na noite, deixando
um cheiro de umidade e azeite. E nós encetamos um novo tormento…
Se o trem de Salamanca tivesse abalado? O salão, tomado até
Medina, desengatava em Medina: – e eis os nossos preciosos corpos, com as
nossas preciosas almas, despejados em Medina, para cima da lama, entre vinte
e três malas, numa rude confusão espanhola, sob a tormenta de
ventania e de água!
-Ó Zé Fernandes, uma noite em Medina!
Ao meu Príncipe aparecia como desventura suprema essa noite em Medina,
numa fonda2 sórdida, fedendo a alho, com gordas filas de percevejos
através dos lençóis de estopa encardida!… Não
cessei então de fitar, num desassossego, os ponteiros do relógio:
– enquanto Jacinto, pela vidraça escancarada, todo fustigado da chuva
clamorosa, furava a negrura, na esperança de avistar as luzes de Medina
e um comboio paciente fumegando… Depois recaía no divã, limpava
os bigodes e os olhos, maldizia a Espanha. O trem arquejava, rompendo o vasto
da planura desolada. E a cada apito era um alvoroço. Medina?… Não!
algum sumido apeadeiro, onde o trem se atardava, esfalfado, resfolgando, enquanto
dormentes figuras encarapuçadas, embrulhadas em mantas, rondavam sob
o telheiro do barracão, que as lanternas baças tornavam mais
soturno. Jacinto esmurrava o joelho: – “Mas pôr que pára
este infame comboio? Não há tráfico, não há
gente! Ó esta Espanha!…” A sineta badalava, moribunda. De novo
fendíamos a noite e a borrasca.
Resignadamente comecei a percorrer um Jornal do Comércio, antigo,
trazido de Paris. Jacinto esmagava o espesso tapete do salão com passadas
rancorosas, rosnando como uma fera. E ainda assim escoou, às gotas,
uma hora cheia de eternidade. – Um silvo, outro silvo!… Luzes mais fortes,
longe, palpitaram na neblina. As rodas trilharam, com rijos solavancos, os
encontros de carris. Enfim, Medina!… Um muro sujo de barracão alvejou
– e bruscamente, à portinhola aberta com violência, aparece um
cavalheiro barbudo, de capa à espanhola, gritando pelo sr. D. Jacinto!…
Depressa! Depressa! Que parte o comboio de Salamanca.
-“Que no hay um momento, caballeros! Que no hay un momento!”
Agarro estonteadamente o meu paletó, o Jornal do Comércio.
Saltamos com ânsia: – e, pela plataforma, pôr sobre os trilhos,
através de charcos, tropeçando em fardos, empurrados pelo vento,
pelo homem da capa à espanhola, enfiamos outra portinhola, que se fechou
com um estalo tremendo… Ambos arquejávamos. Era um salão forrado
dum pano verde que comia a luz escassa. E eu estendia o braço, para
receber dos carregadores açodados as nossas malas, os nossos livros,
as nossas mantas – quando, em silêncio, sem um apito, o trem despegou
e rolou. Ambos nos atiramos às vidraças, em brados furiosos:
-Pare! – As nossas malas, as nossas mantas!… Pára aqui!… Ó
Grilo! Ó Grilo!
Uma imensa rajada levou os nossos brados. Era de novo o descampado tenebroso,
sob a chuva despenhada. Jacinto ergueu os punhos num furor que o engasgava:
Fonda: Hospedaria, estalagem, pousada. É termo espanhol.
-Ó! Que serviço! Ó que canalhas!… Só em Espanha!…
E agora? As malas perdidas!… Nem uma camisa, nem uma escova!
Calmei o meu desgraçado amigo:
-Escuta! Eu entrevi dois carregadores arrebanhando as nossas coisas… Decerto
o Grilo fiscalizou. Mas na pressa, naturalmente, atirou com tudo para o se
compartimento… Foi um erro não trazer o Grilo conosco, no salão…
Até podíamos jogar a manilha!
De resto a solicitude da Companhia, Deusa onipresente, velava sobre o nosso
conforto – pois que à porta do lavatório branqueava o cesto
da nossa ceia, mostrando na tampa um bilhete de D. Esteban com estas doces
palavras a lápis – á D. Jacinto y su egregio amigo, que les
dê gusto! Farejei um aroma de perdiz. E alguma tranqüilidade nos
penetrou no coração, sentindo também as nossas malas
sob a tutela da Deusa onipresente.
-Tens fome, Jacinto?
-Não. Tenho horror, furor, rancor!… e tenho sono.
Com efeito! depois de tão desencontradas emoções só
apetecíamos as camas que esperavam, macias e abertas. Quando caí
sobre a travesseira, sem gravata, em ceroulas, já o meu Príncipe,
que não se despira, apenas embrulhara os pés no meu paletó,
nosso único agasalho, ressonava com majestade.
Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na cidadezinha
da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma fardeta, um boné,
que murmuravam baixinho com imensa doçura:
-V. Exas não têm nada a declarar?… Não há malinhas
de mão?…
Era a minha terra! Murmurei baixinho com imensa ternura:
-Não temos aqui nada… pergunte V.Ex.ª pelo Grilo… Aí
atrás, num compartimento… Ele tem as chaves, tem tudo… É
o Grilo.
A fardeta desapareceu, sem rumor, como sombra benéfica. E eu readormeci
com o pensamento em Guiães, onde a tia Vicência, atarefada, de
lenço branco cruzado no peito, decerto já preparava o leitão.
Acordei envolto num largo e doce silêncio. Era uma Estação
muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes
– e outras rosas em moutas, num jardim, onde um tanquezinho abafado de limos
dormia sob mimosas em flor que recendiam. Um moço pálido, de
paletó cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava
pensativamente o comboio. Agachada rente à grade da horta, uma velha,
diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre
o telhado secavam abóboras. Pôr cima rebrilhava o profundo, rico
e macio azul de que meus olhos andavam aguados.
Sacudi violentamente Jacinto:
-Acorda, homem, que estás na tua terra!
Ele desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou o bigode, e veio
sem pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.
-Então é Portugal, hem?… Cheira bem.
-Está claro que cheira bem, animal!
A sineta tilintou languidamente. E o comboio deslizou, com descanso, como
se passasse para seu regalo sobre as duas fitas de aço, assobiando
e gozando a beleza da terra e do céu.
O meu Príncipe alargava os braços, desolado:
-E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gota de água-de-colônia!…
entro em Portugal, imundo!
-Na Régua há uma demora, temos tempo de chamar o Grilo, reaver
os nossos confortos… Olha para o rio!
Rolávamos na vertente duma serra, sobre penhascos que desabavam até
largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava
uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um
laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava
contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco carregado de pipas. Para
além, outros socalcos, dum verde pálido de resedá, com
oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras
penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância
do azul. Jacinto acariciava os pêlos corredios do bigode:
-O Douro, hem?… É interessante, tem grandeza. Mas agora é
que eu estou com uma fome, Zé Fernandes!
-Também eu! Destapamos o cesto de D. Esteban de onde surdiu um bodo
grandioso, de presunto, anho, perdizes, outras viandas frias que o ouro de
duas nobres garrafas de Amontilado, além de duas garrafas de Rioja,
aqueciam com um calor de sol Andaluz. Durante o presunto, Jacinto lamentou
contritamente o seu erro. Ter deixado Tormes, um solar histórico, assim
abandonado e vazio! Que delícia, pôr aquela manhã tão
lustrosa e tépida, subir à serra, encontrar a sua casa bem apetrechada,
bem civilizada… Para o animar, lembrei que com as obras do Silvério,
tantos caixotes de Civilização remetidos entendia um palácio
perfeito, um 202 no deserto!… E, assim discorrendo, atacamos as perdizes.
Eu desarrolhava uma garrafa de Amontilado – quando o comboio, muito sorrateiramente,
penetrou numa estação. Era a Régua. E o meu Príncipe
pousou logo a faca para chamar o Grilo, reclamar as malas que traziam o asseio
dos nossos corpos.
-Espera, Jacinto! Temos muito tempo. O comboio pára aqui uma hora…
Come com tranqüilidade. Não escangalhemos este almocinho com arrumações
de maletas… O Grilo não tarda a aparecer.
E corri mesmo a cortina, porque de fora um padre muito alto, com uma ponta
de cigarro colada ao beiço, parara a espreitar indiscretamente o nosso
festim. Mas quando acabamos as perdizes, e Jacinto confiadamente desembrulhava
um queijo manchego, sem que Grilo ou Anatole comparecessem, eu, inquieto,
corri à portinhola para apressar esses servos tardios… E nesse instante
o comboio, largando, deslizou com o mesmo silêncio sorrateiro. Para
o meu Príncipe foi um desgosto:
-Aí ficamos outra vez sem um pente, sem uma escova… E eu que queria
mudar de camisa! Pôr culpa tua, Zé Fernandes!
-É espantoso!… Demora sempre uma eternidade. Hoje chega e abala!
Paciência, Jacinto. Em duas horas estamos na Estação de
Tormes… Também não valia a pena mudar de camisa para subir
à serra. Em casa tomamos um banho, antes de jantar… Já deve
estar instalada a banheira.
Ambos nos consolamos com copinhos duma divina aguardente Chinchon. Depois,
estendidos nos sofás, saboreando os dois charutos que nos restavam,
com as vidraças abertas ao ar adorável, conversamos de Tormes.
Na estação certamente estaria o Silvério, com os cavalos…
-Que tempo leva a subir?
Uma hora. Depois de lavados sobrava tempo para um demorado passeio pelas
serras com o caseiro, o excelente Melchior, para que o Senhor de Tormes, solenemente,
tomasse posse do seu Senhorio. E à noite o primeiro bródio da
serra, com os pitéus vernáculos do velho Portugal!
Jacinto sorria, seduzido:
-Vamos a ver que cozinheiro me arranjou esse Silvério. Eu recomendei
que fosse um soberbo cozinheiro português, clássico. Mas que
soubesse trufar um peru, afogar um bife em molho de moela, estas coisas simples
da cozinha de França!… O pior é não te demorares, seguires
logo para Guiães…
-Ah! menino, anos da tia Vicência no Sábado… Dia sagrado!
Mas volto. Em duas semanas estou em Tormes, para fazermos uma larga Bucólica.
E, está claro, para assistir à trasladação.
Jacinto estendera o braço:
-Que casarão é aquele, além no outeiro, com a torre?
Eu não sabia. Algum solar de fidalgote do Douro… Tormes era nesse
feitio atarracado e maciço. Casa de séculos e para séculos
– mas sem torre.
-E logo se vê, da estação, Tormes?…
-Não! Muito no alto, numa prega da serra, entre arvoredo.
No meu Príncipe já evidentemente nascera uma curiosidade ela
sua rude casa ancestral. Mirava o relógio, impaciente. Ainda trinta
minutos! Depois, sorvendo o ar e a luz, murmurava, no primeiro encanto de
iniciado:
-Que doçura, que paz…
-Três horas e meia, estamos a chegar, Jacinto!
Guardei o meu velho Jornal do Comércio dentro do bolso do paletó,
que deitei sobre o braço; – e ambos em pé, às janelas,
esperamos com alvoroço a pequenina Estação de Tormes,
termo ditoso das nossas provações. Ela apareceu enfim, clara
e simples, à beira do rio, entre rochas, com os seus vistosos girassóis
enchendo um jardinzinho breve, as duas altas figueiras assombreando o pátio,
e pôr trás a serra coberta de velho e denso arvoredo… Logo
na plataforma avistei com gosto a imensa barriga, as bochechas menineiras
do chefe da Estação, o louro Pimenta, meu condiscípulo
em Retórica, no Liceu de Braga. Os cavalos decerto esperavam, à
sombra, sob as figueiras.
Mal o trem parou para mim com amizade:
-Viva o amigo Zé Fernandes!
-Ó belo Pimentão!…
Apresentei o senhor de Tormes. E imediatamente:
-Ouve lá, Pimentinha… Não está aí o Silvério?
-Não… O Silvério há quase dois meses que partiu para
Castelo de Vide, ver a mãe que apanhou uma cornada dum boi!
Atirei a Jacinto um olhar inquieto:
Ora essa! E o Melchior, o caseiro?… Pois não estão aí
os cavalos para subirmos à Quinta?
O digno chefe ergueu com surpresa as sobrancelhas cor de milho:
-Não!… Nem Melchior, nem cavalos… O Melchior… Há que
tempos eu não vejo o Melchior!
O carregador badalou lentamente a sineta para o comboio rolar. Então,
não avistando em torno, na lisa e despovoada Estação,
nem criados nem malas, o meu Príncipe e eu lançamos o mesmo
grito de angústia:
-E o grilo? as bagagens?…
Corremos pela beira do comboio, berrando com desespero:
-Grilo!… Ó Grilo!… Anatole!… Ó Grilo!
Na esperança que ele e o Anatole viessem mortalmente adormecidos,
trepávamos aos estribos, atirando a cabeça para dentro dos compartimentos,
espavorindo a gente quieta com o mesmo berro que retumbava: – “Grilo,
estás aí, Grilo?” – Já duma terceira classe, onde
uma viola repenicava, um jocoso gania, troçando: – “Não
há pôr aí um grilo? Andam pôr aí uns senhores
a pedir um grilo!” – E nem Anatole, nem Grilo!
A sineta tilintou.
-Ó Pimentinha, espera, homem, não deixes largar o comboio!…
As nossas bagagens, homem!
E, aflito, empurrei o enorme chefe para o furgão de carga, a pesquisar,
descortinar as nossas vinte e três malas! Apenas encontramos barris,
cestos de vime, latas de azeite, um baú amarrado com cordas… Jacinto
mordia os beiços, lívido. E o Pimentinha, esgazeado:
-Ó filhos, eu não posso atrasar o comboio!…
A sineta repicou… E com um belo fumo claro o comboio desapareceu pôr
detrás das fragas altas. Tudo em torno pareceu mais calado e deserto.
Ali ficávamos pois baldeados, perdidos na serra, sem Grilo, sem procurador,
sem caseiro, sem cavalos, sem malas! Eu conservava o paletó alvadio,
de onde surdia o Jornal do Comércio. Jacinto, uma bengala. Eram todos
os nossos bens!
O Pimentão arregalava para nós os olhinhos papudos e compadecidos.
Contei então àquele amigo o atarantado trasfego em Medina sob
a borrasca, o Grilo desgarrado, encalhado com as vinte e três malas,
ou rolando talvez para Madri sem nos deixar um lenço…
-Eu não tenho um lenço!… Tenho este Jornal do Comércio.
É toda a minha roupa branca.
Grande arrelia, caramba! – murmurava o Pimenta, impressionado. – E agora?
-Agora – exclamei – é trepar para a Quinta, à pata… A não
ser que se arranjassem aí uns burros.
Então o carregador lembrou que perto, no casal da Giesta, ainda pertencente
a Tormes, o caseiro, seu compadre, tinha uma boa égua e um jumento…
E o prestante homem enfiou numa carreira para a Giesta – enquanto o meu Príncipe
e eu caíamos para cima dum banco, arquejantes e sucumbidos, como náufragos.
O vasto Pimentinha, com as mãos nas algibeiras, não cessava
de nos contemplar, de murmurar: – “É de arrelia”. -O rio
defronte descia, preguiçoso e como adormentado sob a calma já
pesada de Maio, abraçando, sem um sussurro, uma larga ilhota de pedra
que rebrilhava. Para além a serra crescia em corcovas doces, com uma
funda prega onde se aninhava, bem junta e esquecida do mundo, uma vilazinha
clara. O espaço imenso repousava num imenso silêncio. Naquelas
solidões de monte e penedia os pardais, revoando no telhado, pareciam
aves consideráveis. E a massa rotunda e rubicunda do Pimentinha dominava,
atulhava a região.
-Está tudo arranjado, meu senhor! Vêm aí os bichos!…
Só o que não calhou foi um selinzinho para a jumenta!
Era o carregador, digno homem, que voltava da Giesta, sacudindo na mão
duas esporas desirmanadas e ferrugentas. E não tardaram a aparecer
no córrego, para nos levarem a Tormes, uma égua ruça,
um jumento com albarda, um rapaz e um podengo. Apertamos a mão suada
e amiga do Pimentinha. Eu cedi a égua ao senhor de Tormes. E começamos
a trepar o caminho, que não se alisara nem se desbravara desde os tempos
em que o trilhavam, com rudes sapatões ferrados, cortando de rio a
monte, os Jacintos de século XIV! Logo depois de atravessarmos uma
trêmula ponte de pau, sobre um riacho quebrado pôr pedregulhos,
o meu Príncipe, com o olho de dono subitamente aguçado, notou
a robustez e a fartura das oliveiras… – E em breve os nossos males esqueceram
ante a incomparável beleza daquela serra bendita!
Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista
que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou,
neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça. Para os
vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados
e redondos, dum verde tão moço, que eram como um musgo macio
onde apetecia cair e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso,
largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar
leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros
seculares, que sustêm as terras liados pelas heras, rompiam grossas
raízes coleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão,
de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas,
alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol;
outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam
como proas de galeras enfeitadas; e, de entre as que se apinhavam nos cimos,
algum casebere que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava
pelos postigos negros, sobre as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento
lhe semeara nas telhas. Pôr toda a parte a água sussurrante,
a água fecundante… espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos,
de entre as patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados
saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas
de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta
à beira de veredas, jorrava pôr uma bica, beneficamente, à
espera dos homens e dos gados… Todo um cabeço pôr vezes era
uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como
seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes. Caminhos
de lajes soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando:
– ou mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa,
numa penumbra de repouso e frescura. Trepávamos então alguma
ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se
esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso
das pinhas. Nos cerros remotos, pôr cima da negrura pensativa dos pinheirais,
branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espelhava
alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria
pelas quebradas…
Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
-Que beleza!
E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
-Que beleza!
Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e carinho.
Pôr trás das sebes, carregadas de amoras, as macieiras estendidas
ofereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham
maduras. Todos os vidros duma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram
hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguiu,
de azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão
melro! Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre contigo
fiquemos, serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita
entre as serras!
Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos àquela avenida de faias,
que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade. Atirando uma vergastada
ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu podengo sobre os
calcanhares, gritou: – “Aqui é que estamos, meus amos!”
E ao fundo das faias, com efeito, aparecia o portão da Quinta de Tormes,
com o seu brasão de armas, de secular granito, que o musgo retocava
e mais envelhecia. Dentro já os cães ladravam com furor. E quando
Jacinto, na sua suada égua, e eu atrás, no burro de furor. E
quando Jacinto, na sua suada égua, e eu atrás, no burro de Sancho,
transpusemos o limiar solarengo, desceu para nós, do alto do alpendre,
pela escadaria de pedra gasta, um homem nédio, rapado como um padre,
sem colete, sem jaleca, acalmando os cães que se encarniçavam
contra o meu Príncipe. Era o Melchior, o caseiro…
Apenas me reconheceu, toda a boca se lhe escancarou num riso hospitaleiro,
a que faltavam dentes. Mas apenas eu lhe revelei, naquele cavalheiro de bigodes
louros que descia da égua esfregando os quadris, o senhor de Tormes
– o bom Melchior recuou, colhido de espanto e terror como diante duma avantesma.
-Ora essa!… Santíssimo nome de Deus! Pois então…
E, entre o rosnar dos cães, num bracejar desolado, balbuciou uma história
que pôr seu turno apavorava Jacinto, como se o negro muro do casarão
pendesse para desabar. O Melchior não esperava S. Exª!… (Ele
dizia sua incelência)… O sr. Silvério estava para Castelo de
Vide desde Março, com a mãe, que apanhara uma cornada na virilha.
E decerto houvera engano, cartas perdidas… Porque o sr. Silvério
só contava com S. Exª em Setembro, para a vindima! Na casa as
obras seguiam devagarinho, devagarinho… O telhado, no sul, ainda continuava
sem telhas, muitas vidraças esperavam, ainda sem vidros; e, para ficar,
Virgem Santa, nem uma cama arranjada!…
Jacinto cruzou os braços numa cólera tumultuosa que sufocava.
Pôr fim, com um berro:
-Mas os caixotes? Os caixotes, mandados de Paris, em Fevereiro, há
quatro meses?…
O desgraçado Melchior arregalava os olhos miúdos, que se embaciavam
de lágrimas. Os caixotes?! Nada chegara, nada aparecera!… E na sua
perturbação mirava pelas arcadas do pátio, palpava na
algibeira das pantalonas. Os caixotes?… Não, não tinha os
caixotes!
-E agora, Zé Fernandes?
Encolhi os ombros:
-Agora, meu filho, só vires comigo para Guiães… Mas são
duas horas a cavalo. E não temos cavalos! O melhor é ver o casarão,
comer a boa galinha que o nosso amigo Melchior nos assa no espeto, dormir
numa enxerga, e amanhã cedo, antes do calor, trotar para cima, para
a tia Vicência.
Jacinto replicou, com uma decisão furiosa:
-Amanhã troto, mas para baixo, para a estação!… E
depois, para Lisboa!
E subiu a gasta escadaria do seu solar com amargura e rancor. Em cima uma
larga varanda acompanhava a fachada do casarão, sob um alpendre de
negras vigas, toda ornada, pôr entre os pilares de granito, com caixas
de pau onde floriam cravos. Colhi um cravo amarelo – e penetrei atrás
de Jacinto nas salas nobres, que ele contemplava com um murmúrio de
horror. Eram enormes, duma sonoridade de casa capitular, com os grossos muros
e enegrecidos pelo tempo e o abandono, e relegadas, desoladamente nuas, conservando
apenas aos cantos algum monte de canastras ou alguma enxada entre paus. Nos
tetos remotos, de carvalho apainelado, luziam através dos rasgões
manchas de céu. As janelas, sem vidraças, conservavam essas
maciças portadas, com fechos para as trancas, que, quando se cerram,
espalham a treva. Sob os nossos passos, aqui e além, uma tábua
podre rangia e cedia.
-Inabitável! – rugiu Jacinto surdamente. – Um horror! Uma infâmia!…
Mas depois, noutras salas, o soalho alternava com remendos de tábuas
novas. Os mesmos remendos claros mosqueavam os velhíssimos tetos de
rico carvalho sombrio. As paredes repeliam pela alvura crua da cal fresca.
E o sol mal atravessava as vidraças – embaciadas e gordurentas da massa
e das mãos dos vidraceiros.
Penetramos enfim na última, a mais vasta, rasgada pôr seis janelas,
mobiliada com um armário e com uma enxerga parda e curta estirada a
um canto; e junto dela paramos, e sobre ela depusemos tristemente o que nos
restava de vinte e três malas – o meu paletó alvadio, a bengala
de Jacinto, e o Jornal do Comércio que nos era comum. Através
das janelas escancaradas, sem vidraças, o grande ar da serra entrava
e circulava como num eirado, com um cheiro fresco de horta regada. Mas o que
avistávamos, da beira da enxerga, era um pinheiral cobrindo um cabeço
e descendo pelo pendor suave, à Maneira duma hoste em marcha, com pinheiros
na frente, destacados, direitos, emplumados de negro; mais longe as serras
de além rio, duma fina e macia cor de violeta; depois a brancura do
céu, todo liso, sem uma nuvem, duma majestade divina. E lá debaixo,
dos vales, subia, desgarrada e melancólica, uma voz de pegureiro cantando.
Jacinto caminhou lentamente para o poial duma janela, onde caiu esbarrondado
pelo desastre, sem resistência ante aquele brusco desaparecimento de
toda a Civilização! Eu palpava a enxerga, dura e regelada como
um granito de Inverno. E pensando nos luxuosos colchões de penas e
molas, tão prodigamente encaixotados no 202, desafoguei também
a minha indignação:
-Mas os caixotes, caramba?… Como se perdem assim trinta e tantos caixotes
enormes?…
Jacinto sacudiu amargamente os ombros:
-Encalhados, pôr aí, algures, num barracão!… Em Medina,
talvez, nessa horrenda Medina. Indiferença das Companhias, inércia
do Silvério… enfim a Península, a barbárie!
Vim ajoelhar sobre o outro poial, alongando os olhos consolados pôr
céu e monte:
-É uma beleza!
O meu Príncipe, depois de um silêncio grave, murmurou, com a
face encostada à mão:
-É uma lindeza… E que paz!
Sob a janela vicejava fartamente uma horta, com repolho, feijoal, talhões
de alface, gordas folhas de abóbora rastejando. Uma eira, velha e mal
alisada, dominava o vale, de onde já subia tenuemente a névoa
de algum fundo ribeiro. Toda a esquina do casarão desse lado se encravava
em laranjal. E duma fontinha rústica, meio afogada em rosas tremedeiras,
corria um longo e rutilante fio de água.
-Estou com apetite desesperado daquela água! – declarou Jacinto, muito
sério.
-Também eu… Desçamos ao quintal, hem? E passamos pela cozinha,
a saber do frango.
Voltamos à varanda. O meu Príncipe, mais conciliado com o destino
inclemente, colheu um cravo amarelo. E pôr outra porta baixa, de rigíssimas
ombreiras, mergulhamos numa sala, alastrada de caliça, sem teto, coberta
apenas de grossas vigas, donde se ergueu uma revoada de pardais.
-Olha para este horror! – murmurava Jacinto arrepiado.
E descemos pôr uma lôbrega escada de castelo, tenteando depois
um corredor tenebroso de lajes ásperas, atravancado pôr profundas
arcas, capazes de guardar todo o grão duma província. Ao fundo
a cozinha, imensa, era uma massa de formas negras, madeira negra, pedra negra,
densas negruras de felugem secular. E neste negrume refulgia a um canto, sobre
o chão de terra negra, a fogueira vermelha, lambendo tachos e panelas
de ferro, despedindo uma fumarada que fugia pela grade aberta no muro, depois
pôr entre a folhagem dos limoeiros. Na enorme lareira, onde se aqueciam
e assavam as suas grossas peças de porco e de boi os Jacintos medievais,
agora desaproveitada pela frugalidade dos caseiros, negrejava um poeirento
montão de cestas e ferramentas; e a claridade toda entrava pôr
uma porta de castanho, escancarada sobre um quintalejo rústico em que
se misturavam couves lombardas e junquilhos formosos. Em roda do lume um bando
alvoroçado de mulheres depenava frangos, remexia as caçarolas,
picava a cebola, com um fervor afogueado e palreiro. Todas emudeceram quando
aparecemos – e de entre elas o pobre Melchior, estonteado, com sangue a espirrar
na nédia face de abade, correu para nós, jurando “que
o jantarinho de suas Incelências não demorava um credo”…
-E a respeito de camas, ó amigo Melchior?
O digno homem ciciou uma desculpa encolhida “sobre enxergazinhas no
chão…”
-É o que basta! – acudi eu, para o consolar. – Pôr uma noite
com lençóis frescos…
-Ah, lá pelos lençoizinhos respondo eu!… Mas um desgosto
assim, meu senhor! A gente apanhada sem um colchãozinho de lã,
sem um lombozinho de vaca… Que eu já pensei, até lembrei à
minha comadre, V. Incas podiam ir dormir aos Ninhos a casa do Silvério.
Tinham lá camas de ferro, lavatórios… Ele sempre é
uma leguazita e meu caminho…
Jacinto, bondoso, acudiu:
-Não, tudo se arranja, Melchior. Pôr uma noite!… Até
gosto mais de dormir em Tormes, na minha casa da serra!
Saímos ao terreiro, retalho de horta fechado pôr grossas rochas
encabeladas de verdura, entestando com os socalcos da serra onde lourejava
o centeio. O meu Príncipe bebeu da água nevada e luzidia da
fonte, regaladamente, com os beiços na bica; apeteceu a alface rechonchuda
e crespa; e atirou pulos aos ramos altos duma copada cerejeira, toda carregada
de cereja. Depois, costeando o velho lagar, a que um bando de pombas branqueava
o telhado, deslizamos até ao carreiro, cortado no costado do monte.
E andando, pensativamente, o meu Príncipe pasmava para os milheirais,
para vetustos carvalhos plantados pôr vetustos Jacintos, para os casebres
espalhados sobre os cabeços à orla negra dos pinheirais.
De novo penetramos na avenida de faias e transpusemos o portão senhorial
entre o latir dos cães, mais mansos, farejando um dono. Jacinto reconheceu
“certa nobreza” na frontaria do seu lar. Mas sobretudo lhe agradava
a longa alameda, assim direita e larga, como traçada para nela se desenrolar
uma cavalgada de Senhores com plumas e pajens. Depois, de cima da varanda,
reparando na telha nova da capela, louvou o Silvério, “esse ralasso”,
pôr cuidar ao menos da morada do Bom-Deus.
-E esta varanda também é agradável – murmurou ele mergulhando
a face no aroma dos cravos. – Precisa grandes poltronas, grandes divãs
de verga…
Dentro, na “nossa sala”, ambos nos sentamos nos poiais da janela,
contemplando o doce sossego crepuscular que lentamente se estabelecia sobre
vale e monte. No alto tremeluzia uma estrelinha, a Vênus diamantina,
lânguida anunciadora da noite e dos seus contentamentos. Jacinto nunca
considerara demoradamente aquela estrela, de amorosa refulgência, que
perpetua no nosso Céu católico a memória de Deusa incomparável:
– nem assistira jamais, com a alma atenta, ao majestoso adormecer da Natureza.
E este enegrecimento dos montes que se embuçam em sombra; os arvoredos
emudecendo; cansados de sussurrar; o rebrilho dos casais mansamente apagado;
o cobertor de névoa, sob que se acama e agasalha a frialdade dos vales;
um toque sonolento de sino que rola pelas quebradas; o segregado cochichar
das águas e das relvas escuras – eram para ele como iniciações.
Daquela janela, aberta sobre as serras, entrevia uma outra vida, que não
anda somente cheia do Homem e do tumulto da sua obra. E senti o meu amigo
suspirar como quem enfim descansa.
Deste enlevo nos arrancou o Melchior com o doce aviso do “jantarinho
de suas incelências”. Era noutra sala, mais nua, mais abandonada:
– e aí logo à porta o meu supercivilizado Príncipe estacou,
estarrecido pelo desconforto, e escassez e rudeza das coisas. Na mesa, encostada
ao muro denegrido, sulcado pelo fumo das candeias, sobre uma toalha de estopa,
duas velas de sebo em castiçais de lata alumiavam grossos pratos de
louça amarela, ladeados pôr colheres de estanho e pôr garfos
de ferro. Os copos, dum vidro espesso, conservavam a sombra roxa do vinho
que neles passara em fartos anos de fartas vindimas. A malga de barro, atestada
de azeitonas pretas, contentaria Diógenes. Espetado na côdea
dum imenso pão reluzia um imenso facalhão. E na cadeira senhorial
reservada ao meu Príncipe, derradeira alfaia dos velhos Jacintos, de
hirto espaldar de couro, com madeira roída de caruncho, a clina fugia
em melenas pelos rasgões do assento puído.
Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro
das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da
lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior,
que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incelências
lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar… Jacinto ocupou
a sede ancestral – e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro
excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a
fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha
e recendia. Provou – e levantou para mim, seu camarada de misérias,
uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais
cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: – “Está bom!”
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia;
três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
-Também lá volto! – exclamava Jacinto com uma convicção
imensa. – É que estou com uma fome… Santo Deus! Há anos que
não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando
a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que
enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e pousou sobre a mesa
uma travessa a trasbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em
Paris, sempre abominava favas!… Tentou todavia uma garfada tímida
– e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando
os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade
que se regala. Depois um brado:
-Ótimo!… Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia!
E pôr esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres
palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio…
-Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!
O homem ótimo sorria, inteiramente desanuviado:
-Pois é cá a comidinha dos moços da Quinta! E cada pratada,
que até suas Incelências se riam… Mas agora, aqui, o Sr. D.
Jacinto, também vai engordar e enrijar!
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o Senhor
de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e minguava… e o meu
Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma
longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores
mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele
apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios
de Platão, terminou pôr bradar: – “É divino!”
Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda
infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando
mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo,
o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe,
com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio:
-Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho
amável destas serras? Quem dignamente te cantará, vinho amável
destas serras?
Eu, que não gosto que me avantajem em saber clássico, espanejei
logo também o meu Virgílio, louvando as doçuras da vida
rural:
-Hanc olim veteres vitam coluere Sabini… Assim viveram os velhos Sabinos.
Assim Rômulo e Remo… Assim cresceu a valente Etrúria. Assim
Roma se tornou a maravilha do mundo!
E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava
para nós os olhos em infinito assombro e religiosa reverência.
Ah! Jantamos deliciosamente, sob os auspícios do Melchior – que ainda
depois, próvido e tutelar, nos forneceu o tabaco. E, como ante nós
se alongava uma noite de monte, voltamos para as janelas desvidraçadas,
na sala imensa, a contemplar o suntuoso céu de Verão. Filosofamos
então com a pachorra e facúndia.
Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros – pôr
causa dos candeeiros de gás ou dos globos de eletricidade que os ofuscam.
Pôr isso (como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o
Universo que é a única glória e única consolação
da vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a
fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de
chumbo, puxam a alma para o pó rasteiro – um Jacinto, um Zé
Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais duma janela, olham para
os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime
imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente, ansiosamente,
com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de tão
longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos…
-Ó Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre
o beiral do telhado?
-Não sei… e aquela, Zé Fernandes, além, pôr
cima do pinheiral?
-Não sei.
Não sabíamos. Eu pôr causa da espessa crosta de ignorância
com que saí do ventre de Coimbra, minha Mãe espiritual. Ele,
porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre Astronomia,
e o Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem
se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse
Sírio e aquele outro Aldebara? Que lhes importava a eles que um de
nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós
tão pequeninos, somos a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas
de Noronha e Sande, constituímos modos diversos dum Ser único,
e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta Unidade. Moléculas
do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim… Do astro
ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro
– tudo é o mesmo Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo Deus.
E nenhum frêmito de vida, pôr menor, passa numa fibra desse sublime
Corpo, que se não repercuta em todas, até às mais humildes,
até às que parecem inertes e invitais. Quando um Sol que não
avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades,
esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio
de morte: – e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além
o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo!
Jacinto abateu tijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei:
-Acredita!… O Sol tremeu.
E depois (como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses
grãos de pó luminoso, existia uma criação, que
incessantemente nasce, perece, renasce. Neste instante, outros Jacintos, outros
Zés Fernandes, sentados às janelas de outras Tormes contemplam
o céu noturno, e nele um pequenininho ponto de luz, que é a
nossa possante Terra pôr nós tanto sublimada. Não terão
todos esta nossa forma, bem frágil, bem desconfortável, e (a
não ser no Apolo do Vaticano, na Vênus de Milo e talvez na Princesa
de Carman) singularmente feia e burlesca. Mas, horrendos ou de inefável
beleza; colossais e duma carne mais dura que o granito, ou leves como gases
e ondulando na luz, todos eles são seres pensantes e têm consciência
da Vida – porque decerto cada Mundo possui o seu Descartes, ou já o
nosso Descartes os percorreu a todos com o seu Método, a sua escura
capa, a sua agudeza elegante, formulando a única certeza talvez certa,
o grande Penso, logo existo. Portanto todos nós, Habitantes dos Mundos,
às janelas dos nossos casarões, além nos Saturnos, ou
aqui na nossa Terrícula, constantemente perfazemos um ato sacrossanto
que nos penetra e nos funde – que é sentirmos no Pensamento o núcleo
comum das nossas modalidades, e portanto realizarmos um momento, dentro da
Consciência, a Unidade do Universo!
-Hem, Jacinto?
O meu amigo rosnou:
-Talvez… Estou a cair com sono.
-Também eu. “Remontamos muito, Ex.mo Sr.!” como dizia
o Pestaninha em Coimbra. Mas nada mais belo, e mais vão, que uma cavaqueira,
no alto das serras, a olhar para as estrelas!… tu sempre vais amanhã?
-Com certeza, Zé Fernandes! Com a certeza de Descartes. “Penso,
logo fujo!” Como queres tu, neste pardieiro, sem uma cama, sem uma poltrona,
sem um livro?… Nem só de arroz com fava vive o Homem! Mas demoro
em Lisboa, para conversar com o Sesimbra, o meu Administrador. E também
à espera que estas obras acabem, os caixotes surjam, e eu possa voltar
decentemente, com roupa lavada, para a trasladação…
-É verdade, os ossos…
-Mas resta ainda o Grilo… Que animal! Pôr onde andará esse
perdido?
Então, passeando lentamente na sala enorme, onde a vela de sebo já
derretida no castiçal de lata era como um lume de cigarro num descampado,
meditamos na sorte do Grilo. O estimado negro ou fora despejado nas lamas
de Medina, com as vinte e sete malas, aos gritos – ou, regaladamente adormecido,
rolara com o Anatole no comboio para Madri. Mas ambos os casos apareciam ao
meu Príncipe como irremediavelmente destruidores do seu conforto…
-Não, escuta, Jacinto… Se o Grilo encalhou em Medina, dormiu na
Fonda, catou os percevejos, e esta madrugada correu para Tormes. Quando amanhã
desceres à Estação, às quatro horas, encontras
o teu precioso homem, com as tuas preciosas malas, metido nesse comboio que
te leva ao Porto e à Capital…
Jacinto sacudiu os braços como quem se debate nas malhas duma rede:
-E se seguiu para Madri?
-Então, pôr esta semana, cá aparece em Tormes, onde encontra
ordem para regressar a Lisboa e reentrar no teu séquito… Resta o
interessante caso das minhas bagagens. Se amanhã encontrares na estação
o Grilo, separa a minha mala negra, e o saco de lona, e a chaleira. O Grilo
conhece. E pede ao Pimenta, ao gordalhufo, que me avise para Guiães.
Se o Grilo aportar Tormes, esfogueteado de Madri, com toda essa malaria, deixa
as minhas coisas aqui, ao Melchior… Eu amanhã falo ao Melchior.
Jacinto sacudiu furiosamente o colarinho:
-Mas como posso eu partir para Lisboa, amanhã, com esta camisa de
dois dias, que já me faz uma comichão horrenda? E sem um lenço…
Nem ao menos uma escova de dentes!
Fértil em idéias, estendi as mãos, num belo gesto tutelar:
-Tudo se arranja, meu Jacinto, tudo se arranja! Eu, largando daqui cedo,
pelas seis horas, chego a Guiães às dez, ainda sem calor. E,
mesmo antes do almoço e da cavaqueira com tia Vicência, imediatamente
te mando pôr um moço um saco de roupa branca. As minhas camisas
e as minhas ceroulas talvez te estejam largas. Mas um mendigo como tu não
tem direito a elegâncias e a roupas bem cortadas. O moço, num
bom trote, entra aqui às duas horas; tens tempo de mudar antes de desceres
para a Estação… Posso meter na mala uma escova de dentes.
-Ó Zé Fernandes! Então mete também uma esponja…
E um frasco de água-de-colônia!
-Água de alfazema, excelente, feita pela tia Vicência…
O meu Príncipe suspirou, impressionado com a sua miséria esquálida,
e esta dádiva de roupas:
-Bem, então vamos dormir, que estou esfalfado de emoções
e de astros…
Justamente Melchior entreabria a pesada porta, com timidez, a avisar que
“estavam preparadinhas as camas de suas Incelências”. E
seguindo o bom caseiro, que erguia uma candeia, que avistamos nós,
o meu Príncipe e eu, ainda há pouco irmanados com os astros?
Em duas saletas, que uma abertura em arco, lôbrego arco de pedra, separava
– duas enxergas sobre o soalho. Junto à cabeceira da mais larga, que
pertencia ao senhor de Tormes, um castiçal de latão sobre um
alqueire; aos pés, como lavatório, um alguidar vidrado em cima
duma tripeça. Para mim, serrano daquelas serras, nem alguidar nem alqueire.
Lentamente, com o pé, o meu supercivilizado amigo apalpou a enxerga.
E decerto lhe sentiu uma dureza intransigente, porque ficou pendido sobre
ela, a correr desoladamente os dedos pela face desmaiada.
-E o pior não é ainda a enxerga – murmurou enfim com um suspiro.
– É que não tenho camisa de dormir, nem chinelas!… E não
me posso deitar de camisa engomada.
Pôr inspiração minha recorremos ao Melchior. De novo
esse benemérito providenciou, trazendo a Jacinto, para ele desafogar
os pés, uns tamancos – e para embrulhar o corpo uma camisa da comadre,
enorme, de estopa, áspera como uma estamenha de penitente, com folhos
mais crespos e duros do que lavores de madeira. Para consolar o meu Príncipe
lembrei que Platão quando compunha o Banquete, Vasco da Gama quando
dobrava o Cabo, não dormiam em melhores catres! As enxergas rijas fazem
as almas fortes, ó Jacinto!… E é só vestido de estamenha
que se penetra no Paraíso.
-Tens tu – volveu o meu amigo secamente – alguma coisa que eu leia? Não
posso adormecer sem um livro..
Eu? Um livro? Possuía apenas o velho número do Jornal do Comércio,
que escapara à dispersão dos nossos bens. Rasguei a copiosa
folha pelo meio, partilhei com Jacinto fraternalmente. Ele tomou a sua metade,
que era a dos anúncios… E quem não viu então Jacinto,
senhor de Tormes, acaçapado à borda da enxerga, rente da vela
de sebo que se derretia no alqueire, com os pés encafuados nos socos,
perdido dentro das ásperas pregas e dos rijos folhos da camisa serrana,
percorrendo num pedaço velho de Gazeta, pensativamente, as partidas
dos Paquetes – não pode saber o que é uma intensa e verídica
imagem do Desalento.
Recolhido à minha alcova espartana, desabotoava o colete, num delicioso
cansaço, quando o meu Príncipe ainda me reclamou:
-Zé Fernandes…
-Diz.
-Manda também no saco um abotoador de botas.
Estirado comodamente na rija enxerga murmurei, como sempre murmuro ao penetrar
no Sono, que é um primo da Morte: ”Deus seja louvado!”
Depois tomei a metade do Jornal do Comércio que me pertencia.
-Zé Fernandes…
-Que é?
-Também podias meter no saco pós dos dentes… E uma lima das
unhas… E um romance!
Já a meia Gazeta me escapava das mãos dormentes. Mas da sua
alcova, depois de soprar a vela, Jacinto murmurou entre um bocejo:
-Zé Fernandes…
-Hem?
-Escreve para Lisboa, para o Hotel Bragança… Os lençóis
ao menos são frescos, cheiram bem, a sadio!
Capítulo IX
Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar o meu Jacinto, que,
com as mãos cruzadas sobre o peito, dormia beatificamente na sua enxerga
de granito – parti para Guiães.
Ao cabo duma semana, recolhendo uma manhã para o almoço, encontrei
no corredor as minhas malas tão desejadas, que um moço do casal
da Giesta trouxera num carro com “recados do sr. Pimentinha”.
O meu pensamento pulou para o meu Príncipe. E lancei pelo telégrafo,
para Lisboa, para o Hotel Bragança, este brado alegre: – “Estás
lá? Sei recuperaste Grilo e Civilização! Hurra, Abraço!”
– Só depois de sete dias, ocupados numa delicada apanha de aspargos
com que outrora civilizara a horta da tia Vicência, notei o silêncio
de Jacinto. Num bilhete postal renovei, desenvolvi o grito amigo: – “E
tornam desatento e mudo? Eu, todo aspargos! Responde, quando chegas? Tempo
delicioso! 23º à sombra. E os ossos?” – Veio depois a devota
romaria da Senhora da Roqueirinha. Durante a Lua-nova andei num corte de mato,
na minha terra das Corcas. A tia Vicência vomitou, com uma indigestão
de morcelas. E o silêncio do meu Príncipe era ingrato e ferrenho.
Enfim, uma tarde, voltando da Flor da Malva, de casa da minha prima Joaninha,
parei em Sandofim, na venda do Manoel Rico, para beber de certo vinho branco
que a minha alma conhece – e sempre pede .
Defronte, à porta do ferrador, o Severo, sobrinho do Melchior de Tormes
e o mais fino alveitar da serra, picava tabaco, escarranchado num banco. Mandei
encher outro quartinho: ele acariciou o pescoço da minha égua
que já salvara dum esfriamento; e como eu indagasse do nosso Melchior,
o Severo contou que na véspera jantara com ele em Tormes, e se abeirara
também do fidalgo…
-Ora essa! Então o sr, D.Jacinto está em Tormes?
O meu espanto divertiu o Severo:
-Então V. Exª… Pois em Tormes é que ele está,
há mais de cinco semanas, sem arredar! E parece que fica para a vindima,
e vai lá uma grandeza!
Santíssimo nome de Deus! Ao outro dia, Domingo, depois da missa e
sem me assustar com a calma que carregava, trotei alvoroçadamente para
Tormes. Ao latir dos rafeiros, quando transpus o portal solarengo, a comadre
do Melchior acudiu dos lados do curral, com um alguidar de lavagem encostado
à cintura. – Então o sr. D. Jacinto?… O sr. D. Jacinto andava
lá para baixo, com o Silvério e com o Melchior, nos campos de
Freixomil…
-E o sr. Grilo, o preto?
-Há bocadinho também o enxerguei no pomar, com o francês,
a apanhar limões doces…
Todas as janelas do solar rebrilhavam, com vidraças novas, bem polidas.
A um canto do pátio notei baldes de cal e tigelas de tintas. Uma escada
de pedreiro descansara durante o dia Santo arrimada contra o telhado. E, rente
ao muro da capela, dois gatos dormiam sobre montões de palha desempacotada
de caixotes consideráveis.
-Bem – pensei eu. – eis a Civilização!
Recolhi a égua, galguei a escada. Na varanda, sobre uma pilha de ripas,
reluzia num raio de Sol uma banheira de zinco. Dentro encontrei todos os soalhos
remendados, esfregados a carqueja. As paredes, muito caiadas, e nuas, refrigeravam
como as dum convento. Um quarto, a que me levaram três portas escancaradas
com franqueza serrana, era certamente o de Jacinto: a roupa pendia de cabides
de pau; o leito de ferro, com coberta de fustão, encolhia timidamente
a sua rigidez virginal a um canto, entre o muro e a banquinha onde de um castiçal
de latão resplandecia sobre um volume do S. Quixote; no lavatório
pintado de amarelo, imitando bambu, apenas cabia o jarro, a bacia, um naco
gordo de sabão; e uma prateleirinha bastava ao esmerado alinho da escova,
da tesoura, do pente, do espelhinho de feira, e do frasquinho de água
de alfazema que eu mandara de Guiães. As três janelas, sem cortinas,
contemplavam a beleza da serra, respirando um delicado e macio ar, que se
perfumava nas resinas dos pinheirais, depois nas roseiras da horta. Em frente,
no corredor, outro quarto repetia a mesma simplicidade. Certamente a previdência
do meu Príncipe o destinara ao seu Zé Fernandes. Pendurei logo
dentro, no cabide, o meu guarda-pó de lustrina.
Mas na sala imensa, onde tanto filosofáramos considerando as estrelas,
Jacinto arranjara um centro de repouso e de estudo – e desenrolara essa “grandeza”
que impressionava o Severo. As cadeiras de verga da Madeira, amplas e de braços,
ofereciam o conforto de almofadinhas de chita. Sobre a mesa enorme de pau
branco, carpinteirada em Tormes, admirei um candeeiro de metal de três
bicos, um tinteiro de frade armado de penas de pato, um vaso de capela transbordando
de cravos. Entre duas janelas uma cômoda antiga, embutida, com ferragens
lavradas, recebera sobre o seu mármore rosado o devoto peso dum Presépio,
onde Reis Magos, pastores de surrões vistosos, cordeiros de esguedelhada
lã, se apressavam através de alcantis para o menino, que na
sua lapinha lhes abria os braços, coroado pôr uma enorme Coroa
Real. Uma estante de madeira enchia outro pedaço de parede, entre dois
retratos negros com caixilhos negros; sobre uma das suas prateleiras repousavam
duas espingardas; nas outras esperavam, espalhados, como os primeiros Doutores
nas bancadas dum concílio, alguns nobres livros, um Plutarco, um Virgílio,
a Odisséia, o Manual de Epíteto, as Crônicas de Froissart.
Depois, em fila decorosa, cadeiras de palhinha, muito envernizadas. E a um
canto um molho de varapaus.
Tudo resplandecia de asseio e ordem. As portadas das janelas, cerradas, abrigavam
do Sol que batia aquele lado de Tormes, escaldando os peitoris de pedra. Do
soalho, borrifado de água, subia, na suavizada penumbra, uma frescura.
Os cravos rescendiam. Nem dos campos, nem da casa, se elevava um rumor. Tormes
dormia no esplendor da manhã santa. E, penetrado pôr aquela consoladora
quietação de convento rural, terminei pôr me estender
numa cadeira de verga junto da mesa, abrir languidamente um tomo de Virgílio,
e murmurar, apropriando o doce verso que encontrara:
Fortunate Jacinthe! Hic, inter arva nota
Et fontes sacros, frigus captabis opacum…
Afortunado Jacinto, na verdade! Agora, entre campos que são teus e
águas que te são sagradas, colhes enfim a sombra e a paz!
Li ainda outros versos. E, na fadiga das duas horas de égua e calor
desde Guiães, irreverentemente adormecia sobre o divino Bucolista –
quando me despertou um berro amigo! Era o meu Príncipe. E muito decididamente,
depois de me soltar do seu rijo abraço, o comparei a uma planta estiolada,
emurchecida na escuridão, entre tapetes e sedas, que, levada para o
vento e o sol, profusamente regada, reverdece, desabrocha e honra a Natureza!
Jacinto já não corcovava. Sobre a sua arrefecida palidez de
supercivilizado, o ar montesino, ou vida mais verdadeira, espalhara um rubor
trigueiro e quente de sangue renovado que o virilizava soberbamente. Dos olhos,
que na Cidade andavam sempre tão crepusculares e desviados do Mundo,
saltava agora um brilho de meio-dia, resoluto e largo, contente em se embeber
na beleza das coisas. Até o bigode se lhe encrespara. E já não
deslizava a mão desencantada sobre a face – mas batia com ela triunfalmente
na coxa. Que sei? Era Jacinto novíssimo.
E quase me assustava, pôr eu Ter de aprender e penetrar, neste novo
Príncipe, os modos e as idéias novas.
-Caramba, Jacinto, mas então…?
Ele encolheu jovialmente os ombros realargados. E só me soube contar,
trilhando soberanamente com os sapatos brancos e cobertos de pó o soalho
remendado, que, ao acordar em Tormes, depois de se lavar numa dorna, e de
enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente como desanuviado, desenvencilhado!
Almoçara uma pratada de ovos com chouriço, sublime. Passeara
pôr toda aquela magnificência da serra com pensamentos ligeiros
de liberdade e de paz. Mandara ao Porto comprar uma cama, uns cabides… E
ali estava…
-Para todo o verão?
-Não! Mas um mês… Dois meses! Enquanto houver chouriços,
e a água da fonte, bebida pela telha ou numa folha de couve, me souber
tão divinamente!
Caí sobre a cadeira de verga, e contemplei, arregalado, quase esgazeado,
o meu Príncipe! Ele enrolava numa mortalha tabaco picado, tabaco grosso,
guardado numa malga vidrada. E exclamava:
-Ando aí pelas terras desde o romper de alva! Pesquei já hoje
quatro trutas magníficas… Lá embaixo, no Naves, um riachote
que se atira pelo vale de Seranda… temos logo ao jantar essas trutas!
Mas eu, ávido pela história daquela ressurreição:
-Então, não estiveste em Lisboa?… Eu telegrafei…
-Qual telégrafo! Qual Lisboa! Estive lá em cima, ao pé
da fonte da Lira, à sombra duma grande árvore, sub tegmine não
sei quê, a ler esse adorável Virgílio… e também
a arranjar o meu palácio! Que te parece, Zé Fernandes? Em três
semanas, tudo soalhado, envidraçado, caiado, encadeirado!… Trabalhou
a freguesia inteira! Até eu pintei, com uma imensa brocha. Viste o
comedouro?
-Não.
-Então vem admirar a beleza na simplicidade, bárbaro!
Era a mesma onde nós tanto exaltáramos o arroz com favas –
mas muito esfregada, muito caiada, com um rodapé besuntado de azul
estridente, onde logo adivinhei a obra do meu Príncipe. Uma toalha
de linho de Guimarães cobria a mesa, com as franjas roçando
o soalho. No fundo dos pratos de louça forte reluzia um galo amarelo.
Era o mesmo galo e a mesma louça em que na nossa casa, em Guiães,
se servem os feijões aos cavadores…
Mas no pátio os cães latiram. E Jacinto correu à varanda,
com uma ligeireza curiosa que me deleitou. Ah, bem definitivamente se esfrangalhara
aquela rede de malha que se não percebia e que outrora o travava! –
Nesse momento apareceu o Grilo, de quinzena de linho, segurando em cada mão
uma garrafa de vinho branco. Todo se alegrou “em ver na Quinta o siô
Fernandes”. Mas a sua veneranda face já não resplandecia,
como em Paris, com um tão sereno e ditoso brilho de ébano. Até
me pareceu que corcovava… Quando o interroguei sobre aquela mudança,
estendeu duvidosamente o beiço grosso.
-O menino gosta, eu então também gosto… Que o ar aqui é
muito bom, siô Fernandes, o ar é muito bom!
Depois, mais baixo envolvendo num gesto desolado a louça de Barcelos,
as faces de cabo de osso, as prateleiras de pinho como num refeitório
de Franciscanos:
-Mas muita magreza, siô Fernandes, muita magreza!
Jacinto voltara com um maço de jornais cintados:
-Era o carteiro. Já vês que não amuei inteiramente com
a Civilização. Eis a imprensa!… Mas nada de Fígaro,
ou da horrenda Dois-Mundos! Jornais de Agricultura! Para aprender como se
produzem as risonhas messes, e sob que signo se casa a vinha ao olmo, e que
cuidados necessita a abelha provida…. Quid faciat laetas segetes… De resto
para esta nobre educação, já me bastavam as Geórgicas,
que tu ignoras!
Eu ri:
-Alto lá! Nos quoque gens sumus et nostrum Virgilium sabemus!
Mas o meu novíssimo amigo, debruçado da janela, batia as palmas
– como Catão para chamar os servos, na Roma simples. E gritava:
-Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha! Pulei,
imensamente divertido:
-Ó Jacinto! E as águas carbonatadas? E as fosfatadas? E as
esterilizadas? E as sódicas?…
O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou
a aparição de um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada
da água refulgente, que uma bela moça trazia num prato. Eu admirei
sobretudo a moça… Que olhos, dum negro tão líquido
e sério! No andar, no quebrar da cinta, que harmonia e que graça
de Ninfa latina!
E apenas pela porta desaparecera a esplêndida aparição:
-Ó Jacinto, eu daqui a um instante também quero água!
E se compete a esta rapariga trazer as coisas, eu, de cinco em cinco minutos,
quero uma coisa!… Que olhos, que corpo… Caramba, menino! Eis a poesia,
toda viva, da serra…
O meu Príncipe sorria, com sinceridade:
-Não! não nos iludamos, Zé Fernandes, nem façamos
Arcádia. É uma bela moça, mas uma bruta… Não
há ali mais poesia, nem mais sensibilidade, nem mesmo mais beleza do
que numa linda vaca turina. Merece o seu nome de Ana Vaqueira. Trabalha bem,
digere bem, concebe bem. Para isso a fez a Natureza, assim sã e rija;
e ela cumpre. O marido todavia não parece contente, porque a desanca.
Também é um belo bruto… Não, meu filho, a serra é
maravilhosa e muito grato lhe estou… Mas temos aqui a fêmea em toda
a sua animalidade e o macho em todo o seu egoísmo… são porém
verdadeiros, genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé Fernandes,
é para mim um repouso.
Lentamente, gozando a frescura, o silêncio, a liberdade do vasto casarão,
retrocedemos à sala que Jacinto já denominara a Livraria. E,
de repente, ao avistar num canto uma caixa com a tampa meio despregada, quase
me engasguei, na furiosa curiosidade que me assaltou:
-E os caixotes? Ó Jacinto?… Toda aquela imensa caixotaria que nós
mandamos, abarrotada de Civilização? Soubeste? Apareceram?
O meu Príncipe parou, bateu alegremente na coxa:
-Sublime! Tu ainda te lembras daquele homenzinho, de saco a tiracolo, que
nós admiramos tanto pela sua sagacidade, o seu saber geográfico?…
Lembras? Apenas falei em Tormes, gritou que conhecia, rabiscou uma nota…
Nem era necessário mais! “Ó! Tormes, perfeitamente, muito
antigo, muito curioso!” Pois mandou tudo para Alba de Tormes, em Espanha!
Está tudo em Espanha!
Cocei o queixo, desconsolado:
-Ora, ora… Um homem tão esperto, tão expedito, que fazia
tanta honra ao progresso! Tudo para Espanha!… E mandaste vir?
-Não! Talvez mais tarde… Agora, Zé Fernandes, estou saboreando
esta delícia de me erguer pela manhã, e de Ter só uma
escova para alisar o cabelo.
Considerei, cheio de recordações, o meu amigo:
-Tinhas umas nove.
-Nove? Tinha vinte! Talvez trinta! E era uma atrapalhação,
não me bastavam!… Nunca em Paris andei bem penteado. Assim com os
meus setenta mil volumes: eram tantos que nunca li nenhum. Assim com as minhas
ocupações; tanto me sobrecarregavam, que nunca fui útil!
-Nove? Tinha vinte! Talvez trinta! E era uma atrapalhação,
não me bastavam!… Nunca em Paris andei bem penteado. Assim com os
meus setenta mil volumes: eram tantos que nunca li nenhum. Assim com as minhas
ocupações; tanto me sobrecarregavam, que nunca fui útil!
De tarde, depois da calma, fomos vaguear pelos caminhos coleantes daquela
Quinta rica, que, através de duas léguas, ondula pôr vale
e monte. Não me encontrara mais com Jacinto em meio da Natureza, desde
o remoto dia de entremez em que ele tanto sofrera no sociável e policiado
bosque de Montmorency. Ah, mas agora, com que segurança e idílico
amor se movia através dessa Natureza, de onde andara tantos anos desviado
pôr teoria e pôr hábito! Já não receava a
humildade mortal das relvas; nem repelia como impertinente o roçar
das ramagens; nem o silêncio dos altos o inquietava como um despovoamento
do Universo. Era com delícias, com um consolado sentimento de estabilidade
recuperada, que enterrava os grossos sapatos nas terras moles, como no seu
elemento natural e paterno; sem razão, deixava os trilhos fáceis,
para se embrenhar através de arbustos emaranhados, e receber na face
a carícia das folhas tenras; sobre os outeiros, parava, imóvel,
retendo os meus gestos e quase o meu hálito, para se embeber de silêncio
e de paz; e duas vezes o surpreendi atento e sorrindo à beira dum regatinho
palreiro, como se lhe escutasse a confidência…
Depois filosofava, sem descontinuar, com o entusiasmo dum convertido, ávido
de converter:
-Como a inteligência aqui se liberta, hem? E como tudo é animado
duma vida forte e profunda!… dizes tu agora, Zé Fernandes, que não
há aqui pensamento…
-Eu?! Eu não digo nada, Jacinto…
-Pois é uma maneira de refletir muito estreira e muito grosseira…
-Ora essa! Mas eu…
-Não, não percebes. A vida não se limita a pensar, meu
caro doutor…
-Que não sou!
-A vida é essencialmente Vontade e Movimento: e naquele pedaço
de terra, plantado de milho, vai todo um mundo de impulsos, de forças
que se revelam, e que atingem a sua expressão suprema, que é
a Forma. Não, essa tua filosofia está ainda extremamente grosseira…
-Irra! Mas eu não…
-E depois, menino, que inesgotável, que miraculosa diversidade de
formas… E todas belas!
Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu reparasse com reverência.
Na Natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetido! Nunca duas
folhas de hera, que, na verdura ou recorte, se assemelhassem! Na Cidade, pelo
contrário, cada casa repete servilmente a outra casa; todas as faces
reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação;
as idéias têm todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma forma,
como as libras; e até o que há mais pessoal e íntimo,
a Ilusão, é em todos idêntica, e todos a respiram, e todos
se perdem nela como no mesmo nevoeiro… a mesmice – eis o horror das Cidades!
-Mas aqui! Olha para aquele castanheiro. Há três semanas que
cada manhã o vejo, e sempre me parece outro… A sombra, o sol, o vento,
as nuvens, a chuva incessantemente lhe compõem uma expressão
diversa e nova, sempre interessante. Nunca a sua freqüentação
me poderia fartar…
Eu murmurei:
-É pena que não converse!
O meu Príncipe recuou, com olhares chamejantes, de Apóstolo:
-Como que não converse? Mas é justamente um conversador sublime!
Está claro, não tem ditos, nem parola teorias, ore rotundo.
Mas nunca eu passo junto dele que não me sugira um pensamento ou me
não desvende uma verdade… Ainda hoje quando eu voltava de pescar
as trutas… Parei: e logo ele me fez sentir como toda a sua vida de vegetal
é isenta de trabalho, da ansiedade, do esforço que a vida humana
impõe; não tem de se preocupar com o sustento, nem com o vestido,
nem com o abrigo; filho querido de Deus, Deus o nutre, sem que ele se mova
ou se inquiete… E é esta segurança que lhe dá tanta
graça e tanta majestade. Pois não achas?
Eu sorria, concordava. Tudo isto era decerto rebuscado e especioso.Mas que
importavam as requintadas metáforas, e essa metafísica mal madura,
colhida à pressa nos ramos dum castanheiro? Sob toda aquela ideologia
transparecia uma excelente realidade – a reconciliação do meu
Príncipe com a Vida. Segura estava a sua Ressurreição
depois de tantos anos de cova, de cova mole em que jazera, enfaixado como
uma múmia nas faixas do Pessimismo!
E o que esse Príncipe, nesta tarde, me esfalfou! Farejava com uma
curiosidade insaciável, todos os recantos da serra! Galgava os cabeços
correndo, como na esperança de descobrir lá do alto os esplendores
nunca contemplados dum Mundo inédito. E o seu tormento era não
conhecer os nomes das árvores, da mais rasteira planta brotando das
fendas dum socalco… Constantemente me folheava como a um Dicionário
Botânico.
-Fiz toda a sorte de cursos, passei pelos professores mais ilustres da Europa,
tenho trinta mil volumes, e não sei se aquele senhor além é
um amieiro ou um sobreiro.
-É um azinheiro, Jacinto.
Já a tarde caía quando recolhemos muito lentamente. E toda
essa adorável paz do Céu, realmente celestial, e dos campos
onde cada folhinha conservava uma quietação contemplativa, na
luz docemente desmaiada, pousando sobre as coisas com um liso e leve afago,
penetrava tão profundamente Jacinto, que eu o senti, no silêncio
em que caíramos, suspirar de puro alívio.
Depois, muito gravemente:
-Tu dizes que na natureza não há pensamento…
-Outra vez! Olha que maçada! Eu…
-Mas é pôr estar nela suprimido o pensamento que lhe está
poupado o sofrimento! Nós desgraçados, não podemos suprimir
o pensamento, mas certamente o podemos disciplinar e impedir que ele se estonteie
e se esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que nunca se realizam,
aspirando a certezas que nunca se atingem!… E é o que aconselham
estas colinas e estas árvores à nossa alma, que vela e se agita:
– que vive na paz dum sonho vago e nada apeteça, nada tema, contra
nada se insurja, e deixe o Mundo rolar, não esperando dele senão
um rumor de harmonia, que a embale e lhe favoreça o dormir dentro da
mão de Deus. Hem, não te parece, Zé Fernandes?
-Talvez. Mas é necessário então viver num mosteiro,
com o temperamento de S Bruno, ou Ter cento e quarenta contos de renda e o
desplante de certos Jacintos… E também me parece que andamos léguas.
Estou derreado. E que fome!
-Tanto melhor, para as trutas, e para o cabrito assado que nos espera…
Bravo! Quem te cozinha?
-Uma afilhada do Melchior. Mulher sublime! Hás de ver a canja! Hás
de ver a cabidela! Ela é horrenda, quase anã, com os olhos tortos,
um verde e outro preto. Mas que paladar! Que gênio!
Com efeito! Horácio dedicara uma ode àquele cabrito assado
num espeto de cerejeira. E com as trutas, e o vinho do Melchior, e a cabidela,
em que a sublime anã de olhos tortos pusera inspirações
que não são da terra, e aquela doçura da noite de Junho,
que pelas janelas abertas nos envolveu no seu veludo negro, tão mole
e tão consolado fiquei, que, na sala onde nos esperava o café,
caí numa cadeira de verga, na mais larga, e de melhores almofadas,
e atirei um berro de pura delícia.
Depois, com uma recordação, limpando o café do pêlo
dos bigodes:
-Ó Jacinto, e quando nós andávamos pôr Paris com
o Pessimismo às costas, a gemer que tudo era ilusão e dor?
O meu Príncipe, que o cabrito tornara ainda mais alegre, trilhava
a grandes passadas o soalho, enrolando o cigarro:
-Ó! Que engenhosa besta, esse Schopenhauer! E a maior besta eu, que
o sorvia, e que me desolava com sinceridade! E todavia – continuava ele, remexendo
a chávena – o Pessimismo é uma teoria bem consoladora para os
que sofrem, porque desindividualiza o sofrimento, alarga-o até o tornar
uma lei universal, a lei própria da Vida; portanto lhe tira o caráter
pungente duma injustiça especial, cometida contra o sofredor pôr
um Destino inimigo e faccioso! Realmente o nosso mal sobretudo nos amarga,
quando contemplamos ou imaginamos o bem do nosso vizinho: – porque nos sentimos
escolhidos e destacados para a infelicidade, podendo, como ele, Ter nascido
para a Fortuna. Quem se queixaria de ser coxo – se toda a humanidade coxeasse?
E quais não seriam os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na
neve e friagem e borrasca dum Inverno especial, organizado nos Céus
para o envolver a ele unicamente – enquanto em redor, toda a Humanidade se
movesse na luminosa benignidade duma Primavera?
-Com efeito – murmurei eu – esse sujeito teria imensa razão para urrar…
-E depois – clamava ainda o meu amigo – o Pessimismo é excelente para
os Inertes, porque lhes atenua o desgracioso delito da Inércia. Se
toda a meta é um monte de Dor, onde a alma vai esbarrar, para que marchar
para a meta, através dos embaraços do mundo? E de resto todos
os Líricos e Teóricos do Pessimismo, desde Salomão até
o maligno Schopenhauer, lançam o seu cântico ou a sua doutrina
para disfarçar a humilhação das suas misérias,
subordinando-as todas a uma vasta lei de Vida, uma lei Cósmica, e ornando
assim com a auréola de uma origem quase divina as suas miúdas
desgraçazinhas de temperamento ou Sorte. O bom Schopenhauer formula
todo o seu schopenhauerismo, quando é um filósofo sem editor,
e um professor sem discípulos; e sofre horrendamente de terrores e
manias; e esconde o seu dinheiro debaixo do sobrado; e redige as suas contas
em grego nos perpétuos lamentos da desconfiança; e vive nas
adegas com o medo de incêndios; e viaja com um copo de lata na algibeira
para não beber em vidro que beiços de leproso tivessem contaminado!…
Então Schopenhauer é sombriamente Schopenhauerista. Mas apenas
penetra na celebridade, e os seus miseráveis nervos se acalmam, e o
cerca uma paz amável, não há então, em todo Francoforte,
burguês mais otimista, de face mais jucunda, e o gozando mais regradamente
os bens da inteligência e da Vida!… e outro, o Israelita, o muito
pedantesco rei de Jerusalém! Quando descobre esse sublime Retórico
que o mundo é Ilusão e Vaidade? Aos setenta e cinco anos, quando
o Poder lhe escapa das mãos trêmulas, e o seu serralho de trezentas
concubinas se lhe torna ridiculamente supérfluo. Então rompem
os pomposos queixumes! Tudo é verdade e aflição de espírito!
nada existe estável sob o Sol! Com efeito, meu bom Salomão,
tudo passa – principalmente o poder de usar trezentas concubinas! Mas que
se restitua a esse velho sultão asiático, besuntado de Literatura,
a sua virilidade – e onde se sumirá o lamento do Eclesiastes? Então
voltará em Segunda e triunfal edição, o êxtase
do Livro dos Cantares!…
Assim discursava o meu amigo no noturno silêncio de Tormes. Creio que
ainda estabeleceu sobre o Pessimismo outras coisas joviais, profundas ou elegantes
– mas eu adormecera, beatificamente envolto em Otimismo e doçura.
Em breve, porém, me fez pular, escancarar a pálpebras moles,
uma rija, larga, sadia e genuína risada. Era Jacinto, estirado numa
cadeira, que lia o D.Quixote… Ó! bem-aventurado Príncipe!
Conservara ele o agudo poder de arrancar teorias a uma espiga de milho ainda
verde, e pôr uma clemência de Deus, que fizera reflorir o tronco
seco, recuperara o Dom divino de rir, com as facécias de Sancho!
Aproveitando a minha companhia, as duas semanas de bucólica ociosidade
que eu lhe concedera, o meu Jacinto preparou então a cerimônia
tão falada, tão meditada, a trasladação dos ossos
dos velhos Jacintos – dos “respeitáveis ossos” como murmurava,
cumprimentando, o bom Silvério, o procurador, nessa manhã de
Sexta-feira, em que almoçava conosco, metido num espantoso jaquetão
de veludinho amarelo debruado de seda azul! A cerimônia, de resto, reclamava
muita singeleza pôr serem tão incertos, quase impessoais, aqueles
restos, que nós estabeleceríamos na Capelinha do vale da Carriça,
na Capelinha toda nova, toda nua e toda fria, ainda sem alma e sem calor de
Deus.
-Porque enfim V. Exª compreende – explicava o Silvério passando
o guardanapo pôr sobre a larga face suada e pôr sobre as imensas
barbas negras, como as dum turco -, naquela mixórdia… Ó! peço
desculpa a V. Exª! Naquela confusão, quando tudo desabou, não
pudemos mais conhecer a quem pertenciam os ossos. Nem sequer, falando verdade,
nós sabíamos bem que dignos avós de V.Exª jaziam
na capela velha, assim tão antigos, com com os letreiros apagados,
senhores de todo o nosso respeito, certamente, mas, se V.Exª me permite,
senhores já muito desfeitos… Depois veio o desastre, a mixórdia.
E aqui está o que decidi, depois de pensar. Mandei arranjar tantos
caixões de chumbo, quantas as caveiras que se apanharam lá embaixo
na Carriça, entre o lixo e o pedregulho. Havia sete caveiras e meia.
Quero dizer, sete caveiras e uma caveirinha pequenina. Metemos cada caveira
em seu caixão. Depois: Que quer V.Exª? Não havia outro
meio! E aqui o sr. Fernandes dirá se não acha que procedemos
com habilidade. A cada caveira juntamos uma certa porção de
ossos, uma porção razoável… Não havia outro
meio… Nem todos os ossos se acharam. Canelas, pôr exemplo, faltavam!
E é bem possível que as costelas dum daqueles senhores ficassem
com a cabeça de outro… Mas quem podia saber? Só Deus. Enfim
fizemos o que a prudência mandava… Depois, no dia de Juízo,
cada um destes fidalgos apresentará os ossos que lhe pertencerem.
Lançava estas coisas macabras e tremendas, penetrado de respeito,
quase com majestade, espetando, ora em mim, ora no meu Príncipe, os
olhinhos agudos e reluzentes como vidrilhos.
Eu aprovei o pitoresco homem:
-Perfeitamente! Andou perfeitamente, amigo Silvério. São tão
vagos, tão anônimos, todos esses avós! Só faz pena,
grande pena, que se tresmalhassem os restos do avô Galião.
-Não estava cá! – acudiu Jacinto. – Vim a Tormes expressamente
pôr causa do avô Galião, e pôr fim o seu jazigo nunca
foi aqui, na Capelinha da Carriça… Felizmente!
O Silvério sacudiu gravemente a calva trigueira:
-Nunca tivemos o Exmo Sr. Galião. Há cem anos, Sr. Fernandes,
há cem anos que se não depositava na capela velha corpo de cavalheiro
cá da casa.
-Onde estarão então?…
O meu Príncipe encolheu os ombros. Pôr esse Reino… Na igrejinha,
no cemitério de alguma das freguesias numerosas, onde ele possuía
terras. Casa tão espalhada!
-Bem! – concluí. – Então, como se trata de ossadas vagas, sem
nome, sem data, convém uma cerimoniazinha muito simples, muito sóbria.
-Quietinha, quietinha! – murmurou o Silvério, dando um forte sorvo
assobiado ao café.
E foi quietinha, duma rústica e doce singeleza a cerimônia daqueles
altos senhores. Cedo, pôr uma manhã, levemente enevoada, os oito
caixões pequeninos, cobertos dum veludo vermelho mais de festa que
de funeral, com molhos de rosas espalhados contendo cada um o seu montezinho
de ossos incertos, saíram aos ombros dos coveiros de Tormes e dos moços
da quinta, da Igreja de S. José, cujo sino leve tangia, na enevoada
doçura da manhã – quando fina e levemente! – como pia um passarinho
triste, Adiantem um airoso moço de sobrepeliz erguia com zelo a velha
cruz prateada; abrigando o pescoço sob um imenso lenço de rapé,
de quadrados azuis, o velho e corcovado sacristão segurava pensativamente
a caldeirinha de água benta; e o bom abade de S. José, com os
dedos entre o breviário fechado, movia os lábios, numa lenta,
murmurosa reza, que ia pelo doce ar, espalhando mais doçura. Logo atrás
do último cofre, o mais pequenino, o da caveirinha pequena, Jacinto
caminhava; e eu, a estalar dentro dum fato preto de Jacinto, tirado à
pressa duma das malas de Paris quando, de manhã, já tarde para
mandar a Guiães, me lembrei que toda a minha roupa era de cores festivais
e pastoris.
Depois marchava o Silvério, soleníssimo, com um imenso peitilho,
onde as barbas imensas se alastravam negríssimas. De casaca, com o
grosso beiço descaído, descaído todo ele pôr aquela
melancolia de enterro que se juntava à melancolia da serra, o Grilo
enfiava no braço a sua coroa, enorme, de rosas e de heras. Pôr
fim seguia o Melchior, entre um rancho de mulheres, que, sumidas na sombra
dos lenços pretos, desfiando longos rosários, rosnavam surdas
ave-marias, através de espaçados suspiros, tão doridos
como se inconsoladamente lhes doesse a perda daqueles Jacintos. Assim, pelas
várzeas entrecorridas de regueiros, lenta nos recostos dos matos, escorregando
mais rápida, pelos córregos pedregosos, seguia a procissão,
sempre com a cruz adiante, alta e prateada, rebrilhando pôr vezes num
breve raiozinho de Sol que, vagarosamente, surdia da névoa desfeita.
Ramos baixos de lódão ou de salgueiro passavam uma derradeira
carícia sobre o veludo dos caixões.
Um regato pôr vezes nos acompanhava, com discreto fulgir entre as relvas,
sussurrando e como rezando também, alegremente; e nos quintalinhos
umbrosos, à nossa passagem, os galos, de cima das pilhas de mato, faziam
soar o seu clarim festivo. Depois, adiante da fonte da Lira, como o caminho
se alongava, e desejássemos poupar o nosso velho abade, cortamos através
duma seara, já alta, quase madura, toda entremeada de papoulas. O Sol
radiou: sob a brisa larga, que levara a névoa, toda a messe ondulou
numa lenta vaga dourada, em que se balouçavam os esquifes; e, como
enorme papoula, a mais vermelha, rutilava o guarda-sol de paninho logo aberto
pelo sacristão para abrigar o abade.
Jacinto tocou no meu cotovelo:
-Que lindos vamos! Ora vê tu a Natureza… Num simples enterrar de
ossos, quanta graça e quanta beleza!
Na Capelinha, nova, dominando o vale da Carriça, solitária
e muito nua, no meio dum adro, ainda mal alisado, sem uma verdura de relva,
uma frescura de arbusto, dois moços seguravam à porta molhos
de tochas, que o Silvério distribuiu, a passos graves, com cortesias,
soleníssimo. Dentro as curtas chamas mal luziam, mal derramavam a sua
amarelidão triste, esbatidas na reluzente brancura dos muros estucados,
na jovial claridade que caía das altas vidraças bem polidas.
Em torno dos esquifes, pousados sobre bancos, que pesados veludilhos recobriam,
o abade murmurava um suave latim, enquanto ao fundo as mulheres, sumidas na
sombra dos seus negros lenços, gemiam améns agudos, abafavam
um respeitoso soluço. Depois, tomando levemente o hissope, ainda o
bom abade aspergiu, para uma derradeira purificação, os incertos
ossos dos incertos Jacintos. E todos desfilamos pôr diante do meu Príncipe,
timidamente encostado à ombreira, com o Silvério ao lado esmagando
contra o peitilho as barbas imensas, a face descaída, cerradas as pálpebras
como contendo lágrimas.
No adro, o meu Príncipe acendeu regaladamente um cigarro pedido ao
Melchior:
-E então, Zé Fernandes, que te pareceu a cerimoniazinha?
-Muito campestre, muito suave, muito risonha… Uma delícia.
Mas o Abade, que se desvestira na Sacristia, apareceu, já com o seu
grande casaco de lustrina, o seu velho chapéu desabado, trazidos pelo
moço da Residência, num saco de chita. Jacinto, imediatamente
lhe agradeceu tantos cuidados, a afável hospitalidade que oferecera
aos ossos, durante a construção da Capelinha nova. E o suave
velho, todo branquinho, de faces ainda menineiras e coradas, com um claro
sorriso de dentes sadios, louvava Jacinto, que assim viera de tão longe,
em tão longa jornada, para cumprir aquele dever de bom neto.
-São avós muito remotos, e agora tão confusos! – murmurava
Jacinto, sorrindo,
-Pois mais mérito ainda o de V.Exª. Respeitar um avô moto,
bem é corrente… Mas respeitar os ossos dum quinto avô, dum
sétimo avô!
-Sobretudo, sr. Abade, quando deles nada se sabe, e naturalmente nada fizeram.
O velho sacudiu risonhamente o dedo gordo:
-Ora quem sabe, quem sabe! Talvez fossem excelentes! E pôr fim, quem
muito se demora no mundo, como eu, termina pôr se convencer que no mundo
não há coisa ou ser inútil. Ainda ontem eu lia num jornal
do Porto, que pôr fim, segundo se descobriu, são as minhocas
que estrumam e lavram a terra, antes de chegar o lavrador e os bois com o
arado. Não há nada inútil… Eu tinha lá na residência
uma porção de cardos a um canto da horta, que me afligiam. Pois
refleti e terminei pôr me regalar com eles em xarope. Os avós
de V.Exª pôr cá andaram, pôr cá trabalharam,
pôr cá padeceram. Quer dizer: pôr cá serviram. E,
em todo o caso, que lhes rezemos um Padre-Nosso pôr alma, não
lhes pode fazer senão bem, a eles e a nós.
E assim, docemente filosofando, paramos num souto de carvalheiras, nose esperava
a velhíssima égua do Abade, porque o santo homen agora depois
do reumatismo do último Inverno, já não afrontava rijamente
como antes os trilhos duros da serra. Para ele montar, filialmente Jacinto
segurou o estribo. E enquanto a égua se empurrava pelo córrego
acima, quase tapada sob o imenso guarda-sol vermelho em que se abrigava o
velho, nós recolhemos a casa metendo pela serra da Lombinha, através
dos milhos, e depressa, porque eu estalava, aperreado, dentro da roupa preta
do meu Príncipe.
-Estão pois acomodados estes senhores, Zé Fernandes! Só
resta rezar pôr eles o Padre Nosso, que recomenda o Abade. Somente,
eu não sei, já não me lembro do Padre-Nosso.
-Não te aflijas, Jacinto, peço à tia Vicência
que reze pôr mim e pôr ti. É sempre a tia Vicência
que reza os meus Padre-Nossos.
Durante essas semanas que preguicei em Tormes, eu assisti, com enternecido
interesse, a uma considerável evolução de Jacinto nas
suas relações com a Natureza. Daquele período sentimental
de contemplação, em que colhia teorias nos ramos de qualquer
cerejeira, e edificava sistemas sobre o espumar das levadas, o meu Príncipe
lentamente passava para o desejo da Ação… E duma ação
direta e material, em que a sua mão, enfim restituída a uma
função superior, revolvesse o torrão.
Depois de tanto comentar, o meu Príncipe, evidentemente, aspirava
a criar.
Uma tardinha, ao anoitecer, sentados no pomar, no rebordo do tanque, enquanto
o Manuel hortelão apanhava laranjas no alto duma escada arrimada a
uma laranjeira, Jacinto observou, mais para si do que para mim:
-É curioso… Nunca plantei uma árvore!
-Pois é um dos três grandes atos, sem os quais, segundo diz
não sei que Filósofo, nunca se foi um verdadeiro homem… Fazer
um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar,
para ser um homem. É possível que talvez nunca prestasses um
serviço a uma árvore, como se presta a um semelhante!
-Sim… Em Paris, quando era pequeno, regava os lilases. E no Verão
é um belo serviço! Mas nunca semeei.
E como o Manuel descia da escada, o meu Príncipe, que nunca acreditara
inteiramente – pobre homem! – no meu saber agrícola, imediatamente
reclamou o parecer daquela autoridade:
-Ó Manuel, ouça lá o que se poderia agora semear?
Com o cesto das laranjas enfiado no braço, o Manuel exclamou, através
dum lento riso, entre respeitoso e divertido:
-Semear, patrão? Agora é antes colher… Olhe que já
se anda a limpar a eirazinha para a debulha, meu patrão.
-Pois sim… Mas sem ser milho nem cevada… então ali no pomar, rente
do muro velho, não se podia plantar uma fila de pessegueiros?
O riso do Manuel crescia.
-Isso sim, meu senhor! Isso é lá para os Santos ou para o Natal.
Agora só a couvinha na horta, a beldroega, os espinafres, algum feijãozinho
em terra muito fresca…
O meu Príncipe sacudiu, com brando gesto, estes legumes rasteiros.
-Bem, boa noite, Manuel. Essas laranjas são da tal laranjeira que
diz o Melchior, muito doces, muito finas? Então leve para os seus pequenos.
Leve muitas para os pequenos.
Não! o empenho era criar a árvore contemplada na serra em
sua verdadeira majestade, na beneficência da sua sombra, na frescura
embaladora do seu rumorejar, na graça e santidade dos ninhos que a
povoam, começara talvez, lentamente, o seu amor novo da Terra. E agora
sonhava uma Tormes toda coberta de árvores, cujos frutos e verduras,
e sombras, e rumorejos suaves, e abrigados ninhos, fossem a obra e o cuidado
das suas mãos paternais.
No silêncio grave do crepúsculo, que descia, murmurou ainda:
-Ó Zé Fernandes quais são as árvores que crescem
mais depressa?
-Eh, meu Jacinto… A árvore que cresce mais depressa é o eucalipto,
o feiíssimo e ridículo eucalipto. Em seis anos tens aí
tormes coberta de eucaliptos…
-Tudo tão lento, Zé Fernandes…
Porque o seu sonho, que eu compreendia, seria plantar caroços que
subissem em fortes troncos, se alargassem em verdes ramarias, antes de ele
voltar ao 202, no começo do Inverno…
-Um carvalho!… Trinta anos, antes que seja belo! Desanimo! É bom
para deus, que pode esperar… Patiens quia oeternus. Trinta anos! Daqui a
trinta anos, árvores só para me cobrirem a sepultura!
-Já é um ganho. E depois para teus filhos, Jacinto…
-Filhos! Onde os tenho eu?
-É o mesmo processo dos castanheiros. Semeia. Não faltam pôr
aí terras agradáveis… Em nove meses tens uma planta feita.
E quanto mais tenrinhas, e mais pequeninas, mais essas plantas encantam.
Ele murmurou, cruzando as mãos sobre os joelhos:
-Tudo leva tanto tempo!…
E à borda do tanque nos quedamos, calados, na fresca doçura
do anoitecer, entre o cheiro avivado das madressilvas do muro, olhando o crescente
da Lua, que surdia dos telhados de Tormes.
E decerto esta pressa de se tornar a Natureza não mais um sonhador,
mas um criador, arremessou vivamente o seu interesse para os gados! Repetidamente,
nos nossos passeios através da Quinta, ele lhe notava a solidão.
-Faltam aqui animais, Zé Fernandes!
Imaginava eu que ele apetecia em Tormes o ornato elegante de veados e pavões.
Mas um Domingo, costeando o largo campo da Ribeirinha, sempre escasso de águas,
agora mais ressequido pôr Verão de tanta secura, o meu Príncipe
parou a considerar os três carneiros do caseiro, que retouçavam
com penúria uma relvagem pobre.
E, de repente, como magoado:
-Justamente! Aqui está o espaço para um belo prado, um imenso
prado, muito verde, muito farto, com rebanhos de carneiros brancos gordíssimos
como bolas de algodão pousadas na relva!… Era lindo, hem? É
fácil, não é verdade, Zé Fernandes?
-Sim… Trazes a água para o prado. Águas não faltam
na serra.
E o meu Príncipe, encadeando logo nesta inspirada idéia outra,
mais rica e vasta, lembrou quanta beleza daria a Tormes encher esses prados,
esses verdes ferregiais, de manadas de vacas, formosas vacas inglesas, bem
nédias e bem luzidias. Hem? Uma beleza. Para abrigar esses gados ricos,
construiria currais perfeitos, duma arquitetura leve e útil, toda em
ferro e vidro, fundamente varridos pelo ar, largamente lavados pela água…
Hem? Que formosura! Depois, com todas essas vacas, e o leite jorrando, nada
mais fácil e mais divertido, e até mais moral, que a instalação
duma queijeira, à fresca moda holandesa, toda branca e reluzente, de
azulejos e de mármore, para fabricar os Camemberts, os Bries… os
Coulommiers… Para a casa, que conforto! E para toda a serra, que atividade!
-Pois não te parece, Zé Fernandes?
-Com certeza. Tu tens, em abundância, os quatro elementos: o ar, a
água, a terra, e o dinheiro. Com estes quatro elementos, facilmente
se faz uma grande lavoura. Quanto mais uma queijeira!
-Pois não é verdade? E até como negócio! Está
claro, para mim o lucro é o deleite moral do trabalho, o emprego fecundo
do dia… Mas uma queijaria, assim perfeita, rende. Rende prodigiosamente.
E educa o paladar, incita a instalações iguais, implanta talvez
no pais uma indústria nova e rica! Ora, com essa instalação
perfeita, quanto me poderá custar cada queijo?
Fechei um olho, calculando:
-Eu te digo… Cada queijo, um desses queijinhos redondos, como o Camembert
ou o Rabaçal, pode vir a custar-te, a ti Jacinto queijeiro, entre duzentos
e cinqüenta e trezentos mil-réis.
O meu Príncipe recuou, com os olhos alegres espantados para mim.
-Como trezentos mil-réis?
-Ponhamos duzentos… Tem certeza! Com todos esses prados, e os encantamentos
de água, e a configuração de serra alterada, e as vacas
inglesas, e os edifícios de porcelana e vidro, e as máquinas,
a extravagância, e a patuscada bucólica, cada queijo te custa,
a ti produtor, duzentos mil-réis. Mas com certeza o vendes no Porto
pôr um tostão. Põe cinqüenta réis para a caixa,
rótulos, transporte, comissão, etc. Tens apenas, em cada queijo,
uma perda de cento e noventa e nove mil oitocentos e cinqüenta réis!
O meu Príncipe não desanimou.
-Perfeitamente! Faço um desses espantosos queijos pôr semana,
ao Sábado, para o comermos nós ambos ao Domingo!
E tanta energia lhe comunicava o seu novo Otimismo, tão ansiosamente
aspirava a criar, que logo, arrastando o Silvério e o Melchior pôr
cabeços e barrancos, largou a percorrer a Quinta toda, para determinar
onde cresciam, ao seu mando inspirado, os verdes prados, e se ergueriam, rebrilhantes
no sol de Tormes, os currais elegantes. Com a esplêndida segurança
dos seus cento e nove contos de renda, não surgia dificuldade, risonhamente
murmurada pelo Melchior, ou exclamada, com respeitoso pasmo, pelo Silvério,
que ele não afastasse brandamente, com jeito leve, como um galho de
roseira brava atravessado numa vereda.
Aquelas rochas, além, empecendo? Que se arrancassem! Um vale importuno
dividia dois campos? Que se atulhasse! O Silvério suspirava, enxugando
sobre a escura calva um suor quase de angústia. Pobre Silvério!
Rijamente sacudido na doce pachorra da sua administração, calculando
despesas que se afiguravam sobre-humanas à sua parcimônia serrana,
forçado a arquejar, sem descanso, sob soalheiras de Junho, o desgraçado
retomara na Serra o jeito que Jacinto deixara em Paris – e era ele que corria
pelas longas barbas tenebrosas os dedos desalentados… Enfim uma tarde desabafou
comigo, a um canto da varanda, enquanto Jacinto, na livraria, escrevia a um
seu amigo de Holanda, o conde Rylant, Mordomo-Mor da Corte, pedindo desenhos,
e planos, e orçamentos duma queijeira perfeita.
-Pois, Sr.Fernandes, se toda esta grandeza vai pôr diante, sempre lhe
digo que o Sr. D. Jacinto enterra aqui na serra dezenas de contos, Dezenas
de contos!
E como eu aludia à fortuna do meu Príncipe, a quem todas essas
obras tão vastas, que alterariam o antiquíssimo rosto da serra,
não custavam mais que a outros o conserto dum socalco – o bom Silvério
atirou os longos braços para as coxas, ainda mais desolado:
-Pois pôr isso mesmo, Sr. Fernandes! Se o Sr. D. Jacinto não
tivesse a dinheirama, recuava. Assim, é zás, para diante; e
eu não o censuro pela idéia. Lograsse eu a renda de S. Exª,
que me atirava também a uma lavoura de capricho. Mas não aqui,
Sr. Fernandes, nestas serranias, entre alcantis. Pois um senhor que possui
aquela linda propriedade de Montemor, nos campos de Mondego, onde até
podia plantar jardins de desbancar os do Palácio de Cristal do Porto!
E a Veleira? Isso é um condado! E uma terra chã, boa terra,
toda junta, ali em volta da casa, com uma torre. Um regalo, Sr. Fernandes.
Mas sobretudo Montemor! Lá é que eram prados e manadas de vacas
inglesas, e queijeira e horta rica, de fartar, e aí trinta perus na
capoeira…
-Então que quer, Silvério? O Jacinto gosta da serra. E depois
este é o solar da família, e aqui começaram no século
XIV os Jacintos…
O pobre Silvério, no seu desespero, esquecia o respeito devido à
secular nobreza da casa.
-Ora! até ficam mal ao Sr. Fernandes essas idéias, neste século
da liberdade… Pois estamos lá em tempos de se falar em fidalguias,
agora que pôr toda a parte tudo em República? Leia o Século,
Sr. Fernandes! leia o Século, e verá! E depois eu sempre quero
ver o Sr.D. Jacinto, aqui no Inverno, com o nevoeiro a subir do rio logo pela
manhã, e a friagem a traspassar os ossos, e ventanias que atiram carvalheiras
de raízes ao ar, e chuvas e chuvas que se desfaz a serra!… Olhe,
até mesmo pôr amor da saúde o Sr. D. Jacinto, que é
fraquinho e acostumado à cidade, necessita sair da serra. Em Montemor,
em Montemor é que Sua Exª estava bem. e o Sr. Fernandes, tão
amigo dele e assim com tanta influência, devia teimar, e berrar, até
que o levasse para Montemor.
Mas, infelizmente para quietação do Silvério, Jacinto
lançara raízes, e rijas, e amorosas raízes na sua rude
serra. Era realmente como se o tivessem plantado de estaca naquele antiquíssimo
chão, de onde brotara a sua raça, e o antiquíssimo húmus
refluísse e o penetrasse todo, e o andasse transformando num Jacinto
rural, quase vegetal, tão do chão, e preso ao chão, como
as árvores que ele tanto amava.
E depois o que o prendia à serra era o Ter nela encontrado o que na
Cidade, apesar da sua sociabilidade, não encontrara nunca – dias tão
cheios, tão deliciosamente ocupados, dum tão saboroso interesse,
que sempre penetrava neles, como numa festa ou numa glória.
Logo de manhã, às seis horas, eu, no meu quarto, mexendo ainda
regaladamente o meu corpo nos colchões de fresco folhelho, sentia os
seus rijos sapatões pelo corredor, e o seu cantarolar, desafinado,
mas ditoso como o dum metro. Em poucos instantes escancarava com fragor a
minha porta, já de chapéu desabado, já de bengalão
de cerejeira, disposto com reservado fervor para os trilhos conhecidos da
serra. E era sempre a mesma nova, quase orgulhosa:
-Dormi hoje deliciosamente, Zé Fernandes. Tão bem, com uma
tal serenidade, que começo a acreditar que sou um justo! Um dia lindo!
Quando abri a janela, às cinco horas, quase gritei de puro gosto!
Na sua pressa, nem me deixava demorar na frescura da banheira; e quando eu
repetia a risca mal começada do cabelo, aquele antigo homem das trinta
e nove escovas protestava contra esse desbarato efeminado dum tempo devido
aos fortes gozos da terra.
Mas quando, depois de acariciar os rafeiros no pátio, desembocávamos
da alameda de plátanos, e adiante de nós se dividiam matutinamente,
mais brancos entre o verde matutino, os caminhos coleantes da Quinta, toda
a sua pressa findava, e penetrava na Natureza, com a reverente lentidão
de quem penetra num Templo. E repetidamente sustentava ser “contrário
à Estética, à Filosofia e à Religião, andar
depressa através dos campos”. De resto, com aquela sutil sensibilidade
bucólica que nele se desenvolvera, e incessantemente se afirmava, qualquer
breve beleza, do ar ou da terra, lhe bastava para um longo encanto. Ditosamente
poderia ele entreter toda uma manhã, caminhar pôr entre um pinheiral,
de tronco a tronco, calado, embebido no silêncio, na frescura, no resinoso
aroma, empurrando com o pé as agulhas e as pinhas secas. Qualquer água
corrente o retinha, enternecido naquela serviçal atividade, que se
apressa, cantando, para o torrão que tem sede, e nele se some, e se
perde. E recordo ainda quando me reteve meio Domingo, depois da Missa, no
cabeço, junto a um velho curral desmantelado, sob uma grande árvore
– só porque em torno havia quietação, doce aragem, um
fino piar de ave na ramaria, um murmúrio de regato entre as canas verdes,
e pôr sobre a sebe, ao lado, um perfume, muito fino e muito fresco,
de flores escondidas.
Depois, quando eu, velho familiar das serras, me não abandonava aos
mesmos êxtases que a ele lhe enchiam a alma ainda noviça – o
meu Príncipe rugia, com a indignação dum poeta que descobre
um merceeiro bocejando sobre Shakespeare ou Musset. Eu ria.
-Meu filho, olha que eu não passo dum pequeno proprietário.
Para mim não se trata de saber se a terra é linda, mas se a
terra é boa. Olha o que diz a Bíblia! “Trabalharás
a Quinta com o suor do teu rosto!” E não diz “contemplarás
a Quinta com o enlevo da tua imaginação!”
-Pudera! – exclamava o meu Príncipe. – Um velho livro escrito pôr
Judeus, pôr ásperos semitas, sempre com o turvo olho posto no
lucro! Repara, homem, para aquele bocadinho de vale, e consegue não
pensar, pôr um momento, nos trinta mil-réis que ele rende! Verás
que pela sua beleza e graça ele te dá mais contentamento à
alma que os trinta mil-réis ao corpo. E na vida só a alma importa.
Recolhendo ao casarão, já o encontrávamos com as janelas
meio cerradas, os soalhos borrifados para aquelas quentes réstias de
Sol de Junho, que depois do almoço docemente nos retinham na livraria,
preguiçando.
Mas realmente a alegre atividade do meu Príncipe não cessava,
nem amolecia, sob o peso da sesta. A essa hora, enquanto pelo arvoredo mudo
os mais agitados pardais dormiam, e o Sol mesmo parecia repousar, imóvel
na rutilância da sua luz, Jacinto com o espírito acordado – ávido
de sempre gozar, agora que reconquistara essa faculdade – tomava com delícia
o seu livro. Porque o dono de trinta mil volumes era agora, na sua casa de
Tormes, depois de ressuscitado, o homem que só tem um livro. Essa mesma
Natureza, que o desligara das ligaduras amortalhadoras do tédio, e
lhe gritara o seu belo Ambula, caminha! – também certamente lhe gritara
et lege, e lê. E libertado enfim do invólucro sufocante da sua
Biblioteca imensa, o meu ditoso amigo compreendia enfim a incomparável
delícia de ler um livro. Quando eu correra a Tormes (depois das revelações
do severo na venda do Torto), ele findava o D.Quixote, e ainda eu lhe escutara
as derradeiras risadas com as coisas deliciosas, e decerto profundas, que
o gordo Sancho lhe murmurava, escarranchado no seu burro. Mas agora o meu
Príncipe mergulhara na Odisséia – e todo ele vivia no espanto
e no deslumbramento de assim Ter encontrado no meio do caminho da sua vida
o velho errante, o velho Homero!
-Ó Zé Fernandes, como sucedeu que eu chegasse a esta idade
sem Ter lido Homero?…
-Outras leituras, mais urgentes… o Fígaro, George Ohnet…
-Tu leste a Ilíada?
-Menino, sinceramente me gabo de nunca Ter lido a Ilíada.
Os olhos do meu Príncipe fuzilavam.
-Tu sabes o que fez Alcibíades, uma tarde, no Pórtico, a um
sofista, um desavergonhado dum sofista, que se gabava de não Ter lido
a Ilíada?
-Não.
-Ergueu a mão e atirou-lhe uma bofetada tremida.
-Para lá, Alcibíades! Olha que eu li a Odisséia!
Ó! mas decerto eu a lera, corridamente, com a alma desatenta! E insistia
em me iniciar, ele, e me conduzir, através do Livro sem igual. Eu ria.
E rindo, pesado do almoço, terminava pôr consentir, e me estirava
no canapé de verga. Ele, diante da mesa, direito na cadeira, abria
o livro gravemente, pontificalmente, como um missal, e começava numa
lenta ode sentida. Aquele grande mar da Odisséia – resplandecente e
sonoro, sempre azul, sob o vôo branco das gaivotas, rolando, e mansamente
quebrando sobre a areia fina ou contra as rochas de mármore das Ilhas
divinas – exalava logo uma frescura salina, bem-vinda e consoladora naquela
calma de Junho, em que a serra entorpecia. Depois as estupendas manhas do
sutil Ulisses e os seus perigos sobre-humanos, tantas lamúrias sublimes
e um anseio tão espalhado da Pátria perdida, e toda aquela intriga,
em que embrulhava os heróis, lograva as Deusas, iludia o Fado, tinham
um delicioso sabor ali, nos campos de Tormes, onde nunca se necessitava de
sutileza ou de engenho, e a vida se desenrolava com a segurança imutável
com que cada manhã sempre o Sol igual nascia, e sempre centeios e milhos,
regados pôr águas iguais, seguramente medravam, espigavam, amadureciam…
Embalado pela recitação grave e monótona do meu Príncipe,
eu cerrava as pálpebras docemente. Em breve um vasto tumulto, pôr
Terra e Céu, me alvoroçava… E eram os rugidos de Polifemo,
ou a grita dos companheiros de Ulisses roubando as vacas de Apolo. Com os
olhos logo esbugalhados para Jacinto, eu murmurava: Sublime! E sempre nesse
momento o engenhoso Ulisses, de carapuço vermelho e o longo remo ao
ombro, surpreendia com a sua facúndia a clemência dos Príncipes,
ou reclamava presentes devidos ao Hóspede, ou surripiava astutamente
algum favor aos deuses. E Tormes dormia, no esplendor de Junho. Novamente,
eu cerrava as pálpebras consoladas, sob a carícia inefável
do largo dizer homérico… E meio adormecido, encantado, incessantemente
avistava, longe, na divina Hélade, entre o mar muito azul e o céu
muito azul, a branca vela, hesitante, procurando Ítaca…
Depois da sesta o meu Príncipe de novo se soltava para os campos.
E a essa hora, sempre mais ativa, voltava com ardor aos “seus planos”,
a essas culturas de luxo e elegantes oficinas que cobririam a serra de magnificências
rurais. Agora andava todo no esplêndido apetite duma horta que ele concebera,
imensa horta ajardinada, em que todos os legumes, clássicos ou exóticos,
cresceriam, soberbamente, em vistosos talhões, fechados pôr sebes
de rosas, de cravos, de alfazemas, de dálias. A água das regas
desceria pôr lindos córregos de louça esmaltada. Nas ruas,
a sombra cairia de densas latadas de moscatel, pousando em esteios revestidos
de azulejo. E o meu Príncipe desenhara o plano desta espantosa horta,
a lápis vermelho, num papel imenso, que o Melchior e o Silvério,
consultados, longamente contemplaram – um coçando risonhamente a nuca,
o outro com os braços duramente cruzados, e o sobrolho trágico.
Mas este plano, o da queijaria, o da capoeira, e outro, suntuoso, dum pombal
tão povoado que todo o céu de Tormes às tardes se tornaria
branco e todo fremente de asas – não saíam das nossas gostosas
palestras, ou dos papéis em que Jacinto os debuxava, e que se amontoavam
sobre a mesa, platônicos, imóveis, entre o tinteiro de latão
e o vaso com flores.
Nem enxadada fendera terra, nem alavanca deslocara pedra, nem serra serrara
madeira, para encetar estas maravilhas. Contra a resistência reboluda
e escorregadia do Melchior, contra a respeitosa inércia do Silvério
se quedavam, encalhados, os planos do meu Príncipe, como galeras vistosas
em rochas ou em lodo.
Não convinha bulir em nada (clamava o Silvério) antes das colheitas
e da vindima! E depois (acrescentava o Melchior com um sorriso de grande promessa)
“para boas obras mês de Janeiro” porque lá ensina
o ditado:
Em Janeiro – mete obreiro
Mês meante – que não ante
E, de resto, o gozo de conceber as suas obras e de indicar, estendendo a
bengala pôr cima de vale e monte, os sítios privilegiados que
elas aformoseariam, bastava pôr ora ao meu Príncipe, ainda mais
imaginativo que operante. E, enquanto meditava estas transformações
da terra, muito progressivamente e com um amável esforço, se
ia familiarizando com os homens simples que a trabalhavam. Na sua chegada
a Tormes, o meu Príncipe sofria duma estranha timidez diante dos caseiros,
dos jornaleiros, e até de qualquer rapazinho que passasse, tangendo
uma vaca para o pasto. Nunca ele então se demoraria a conversar com
os moços, quando à borda dum caminho ou num campo em monda eles
se endireitavam de chapéu na mão, num respeito de velha vassalagem.
Decerto o empecia a preguiça, e talvez ainda o pudico recato de transpor
toda a imensa distância que se alargava desde a sua complicada supercivilização
até a rude simplicidade daquelas almas naturais: – mas sobretudo o
retinha o medo de mostrar a sua ignorância da lavoura e da terra, ou
de parecer talvez desdenhoso de ocupações e de interesses, que
para os outros eram supremos e quase religiosos. Remia então esta reserva
com uma profusão de sorrisos, de doces acenos, tirando também
o chapéu em cortesias profundas, com uma tal ênfase de polidez
que eu pôr vezes receava que ele murmurasse aos jornaleiros. “Tenha
V. Exª muito boas-tardes… Criado de V. Exª!”
Mas agora, depois daquelas semanas de serra, e de já saber (com um
saber ainda frágil) a época das sementeiras e das ceifas, e
que as árvores de fruta se semeiam no Inverno, já se aprazia
em parar junto dos trabalhadores, contemplar descansadamente o trabalho, dizer
coisas afáveis e vagas.
-Então, isso vai andando?… Ora ainda bem!… este bocado de terrão
aqui é rico… O talude ali adiante está precisando conserto…
E cada um destes tão simples dizeres lhe era doce, como se pôr
meio deles penetrasse mais fundamente na intimidade da terra, e consolidasse
a sua encarnação em “homem do campo”, deixando de
ser uma mera sombra circulando entre realidades. Já pôr isso
não cruzava no caminho o mocinho atrás das vacas, que não
o detivesse, o não interrogasse: “Para onde vais tu? De quem
é o gado? Como te chamas?” E, contente consigo, sempre gabava
gratamente o desembaraço do rapaz, ou a esperteza dos seus olhos. Outra
satisfação do meu Príncipe era conhecer os nomes de todos
os campos, as nascentes de água, e as delimitações da
sua Quinta.
-Vês acolá, para além do ribeiro, o pinheiral. Já
não é meu, é dos Albuquerques.
E com perene alegria de Jacinto as noites da serra, no vasto casarão,
eram fáceis e curtas. O meu Príncipe era então uma alma
que se simplificava: – e qualquer pequenino gozo lhe bastava, desde que nele
entrasse paz ou doçura. Com verdadeira delícia ficava, depois
do café, estendido numa cadeira, sentindo através das janelas
abertas a noturna tranqüilidade da serra, sob a mudez estrelada do céu.
As histórias, muito simples e muito caseiras, que eu lhe contava,
de Guiães, do abade, da tia Vicência, dos nossos parentes da
Flor da Malva, tão sinceramente o interessavam que eu encetara, para
seu regalo, a crônica completa de Guiães, com todos os namoricos,
e as façanhas de forças, e as desavenças pôr causa
de servidões ou de águas. Também pôr vezes nos
enfronhávamos com aferro numa partida de gamão, sobre um belo
tabuleiro de pau-preto, com pedras de velho marfim, que nos emprestara o Silvério.
Mas nada decerto o encantava tanto como atravessar as casas, pé ante
pé, até uma saleta que dava para o pomar, e aí ficar
encostado à janela, sem luz, num enlevado sossego, a escutar longamente,
languidamente, os rouxinóis que cantavam no laranjal.
Capítulo X
Numa dessa manhãs – justamente na véspera do meu regresso a
Guiães – o tempo, que andara pela serra tão alegre, num inalterado
riso de luz rutilante, todo vestido de azul e ouro, fazendo poeira pelos caminhos,
e alegrando toda a natureza, desde os pássaros até os regatos,
subitamente, com uma daquelas mudanças que tornam o seu temperamento
tão semelhante ao do homem, apareceu triste, carrancudo, todo embrulhado
no seu manto cinzento, com uma tristeza tão pesada e contagiosa que
a serra entristeceu. E não houve mais pássaro que cantasse,
e os arroios fugiram para debaixo das ervas, com um lento murmúrio
de choro.
Quando Jacinto entrou no meu quarto, não resisti à malícia
de o aterrar:
-Sudoeste! Gralhas a grasnar pôr todos esses soutos… Temos muita
água, Sr.D.Jacinto! Talvez duas semanas de água! E agora é
que se vai saber quem é aqui o fino amador da Natureza, com esta chuva
pegada, com vendaval, com a serra toda a escorrer!
O meu Príncipe caminhou para a janela com as mãos nas algibeiras:
-Com efeito! Está carregado. Já mandei abrir uma das malas
de Paris e tirar um casacão impermeável… Não importa!
Fica o arvoredo mais verde. E é bom que eu conheça Tormes nos
seus hábitos de Inverno.
Mas como o Melchior lhe afiançara que a “chuvinha só
viria para a tarde”, Jacinto decidiu ir antes de almoço à
Corujeira, onde o Silvério o esperava para decidirem da sorte de uns
castanheiros, muito velhos, muito pitorescos, inteiramente interessantes,
mas já roídos, e ameaçando desabar. E, confiando nas
previsões do Melchior, partimos sem que Jacinto se vestisse à
prova de água. Não andáramos porém meio caminho,
quando, depois dum arrepio nas árvores, um negrume carregou e, bruscamente,
desabou sobre nós uma grossa chuva oblíqua, vergastada pelo
vento, que nos deixou estonteados, agarrando os chapéus, enrodilhados
na borrasca. Chamados pôr uma grande voz, que se esganiçava no
vento, avistamos num campo mais alto, à beira dum alpendre, o Silvério,
debaixo dum guarda-chuva vermelho, que acenava, nos indicava o trilho mais
curto para aquele abrigo. E para lá rompemos, com a chuva a escorrer
na cara, patinhando na lama, contorcidos, cambaleantes, atordoados no vendaval,
que num instante alargara os campos, inchara os ribeiros, esboroava a terra
dos socalcos, lançara num desespero todo o arvoredo, tornara a serra
negra, bravamente agreste, hostil, inabitável.
Quando enfim, debaixo do vasto guarda-chuva com que Silvério nos esperava
à beira do campo, corremos para o alpendre, nos refugiamos naquele
abrigo inesperado, a escorrer, a arquejar, o meu Príncipe, enxugando
a face, enxugando o pescoço, murmurou, desfalecido:
-Apre! que ferocidade!
Parecia espantado daquela brusca, violenta cólera duma serra tão
amável e acolhedora, que em dois meses, inalteradamente, só
lhe oferecera doçura e sombra, e suaves céus, e quietas ramagens,
e murmúrios discretos de ribeirinhos mansos.
-Santo Deus! Vêm muitas vezes assim, estas borrascas?
Imediatamente o Silvério aterrou o meu Príncipe:
-Isto agora são brincadeiras de Verão, meu senhor! Mas há
de V. Exª. ver no Inverno, se V.Exª se agüentar pôr cá!
Então é cada temporal, que até parece que os montes estremecem!
E contou como fora também apanhado, quando ia para a Corujeira. Felizmente,
logo de manhã, quando sentiu o ar carrancudo e as folhinhas dos choupos
a tremer, se acautelara com o chapéu de chuva e calçara as suas
grandes botas.
-Ainda estive para me abrigar em casa do Esgueira, que é um caseiro
de cá. Aquela casa, ali abaixo, onde está a figueira… Mas
a mulher tem estado doente, já há dias… e como pode ser obra
que se pegue, bexigas ou coisa que o valha, pensei comigo: Nada, o seguro
morreu de velho! Meti para o alpendre… E o senhor D. Jacinto é voltar
para casa, e mudar-se, que temos um dia e uma noite de água.
Mas, justamente, a chuva começara a cair perpendicular, dum céu
ainda negro, onde o vento se calara; e para além do rio e dos montes
havia uma claridade, como entre cortinas de pano cinzento que se descerram.
Jacinto repousava. Eu não cessara de me sacudir, de bater os pés
encharcados, que me arrefeciam. E o bom Silvério, passando a mão
pensativa sobre o negrume das suas barbas, refletia, emendava os seus prognósticos:
-Pois, não senhor… Ainda estia! Nunca pensei. É que tornejou
o vento.
O alpendre que nos cobria assentava sobre duas paredes em ângulo, de
pedra solta, restos de algum casebre desmantelado, e sobre um esteio fazendo
cunhal. Nesse momento só abrigava madeira, um cuculo de cestos vazios,
e um carro de bois, onde o meu Príncipe se sentara, enrolando um cigarro,
confortador. A chuva desabava, copiosa, em longos fios reluzentes. E todos
três nos calávamos, naquela contemplação inerte
e sem pensamento, em que uma chuva grossa e serena sempre imobiliza e retém
olhos e almas.
-Ó Sr. Silvério – murmurou lentamente o meu Príncipe
-, que é que o senhor esteve aí a dizer de bexigas?
O procurador voltou a face surpreendido:
-Eu, Exmo Sr?… Ah sim! A mulher do Esgueira! É que pode ser, pode
ser… Não imagine V. Exª que faltam pôr cá doenças.
O ar é bom. Não digo que não! Arzinho são, aguazinha
leve, mas às vezes, se V.Exª me dá licença, vai
pôr aí muita maleita..
-Mas não há médico, não há botica?
O Silvério teve o riso superior de quem habita regiões civilizadas
e bem providas…
-Então não havia de haver? Pois há um boticário,
em Guiães, lá quase ao pé da casa aqui do nosso amigo.
E homem entendido… o Firmino, hem, Sr. Fernandes? Homem capaz. Médico
é o Dr. Avelino, daqui a légua e meia, nas Bolsas. Mas já
V. Exª vê, esta gentinha é pobre!… Tomaram eles para pão,
quanto mais para remédios!
E de novo se estabeleceu um silêncio, sob o alpendre, onde penetrava
a friagem crescente da serra encharcada. Para além do rio, a prometedora
claridade não se alargara entre as duas espessas cortinas pardacentas.
No campo, em declive diante de nós, ia um longo correr de ribeiros
barrentos. Eu terminara pôr me sentar na ponta dum madeiro, enervado,
já com a fome aguçada pela manhã agreste. E Jacinto,
na borda do carro, com os pés no ar, cofiava os bigodes úmidos,
palpava a face, onde, com espanto meu, reaparecera a sombra, a sombra triste
dos dias passados, a sombra do 202!
E, então, surdiu pôr trás da parede do alpendre um rapazito,
muito rotinho, muito magrinho, com uma careta miúda, toda amarela sob
a porcaria, e onde dois grandes olhos pretos se arregalavam para nós,
com vago pasmo e vago medo. Silvério imediatamente o conheceu.
-Como vai a tua mãe? Escusas de te chegar para cá, deixa-te
estar aí. Eu ouço bem. Como vai a tua mãe?
Não percebi o que os pobres beicitos descorados murmuraram. Mas Jacinto,
interessado:
-Que diz ele? Deixe vir o rapaz! Quem é a tua mãe?
Foi o Silvério que informou respeitosamente:
-É a tal mulher que está doente, a mulher do Esgueira, ali
do casal da figueira. E ainda tem outro abaixo deste… Filharada não
lhe falta.
-Mas este pequeno também parece doente! – exclamou Jacinto. – Coitado,
tão amarelo!… Tu também estás doente?
O rapazito emudecera, chupando o dedo, com os tristes olhos pasmados. E o
Silvério sorria, com bondade:
-Nada! este é sãozinho… Coitado, é assim amarelado
e enfezadito porque… Que quer V.Exª? Mal comido! muita miséria….
Quando há o bocadito de pão é para todo o rancho. Fomezinha,
fomezinha!
Jacinto pulou bruscamente da borda do carro.
-Fome? Então ele tem fome? Há aqui gente com fome?
Os seus olhos rebrilhavam, num espanto comovido, em que pediam, ora a mim,
ora ao Silvério, a confirmação desta miséria insuspeitada.
E fui eu que esclareci o meu Príncipe:
-Homem! Está claro que há fome! Tu imaginavas talvez que o
Paraíso se tinha perpetuado aqui nas serras, sem trabalho e sem miséria…
Em toda a parte há pobres, até na Austrália, nas minas
de ouro. Onde há trabalho há proletariado, seja em Paris, seja
no Douro…
O meu Príncipe teve um gesto de aflita impaciência:
-Eu não quero saber o que há no Douro. O que eu pergunto é
se aqui, em Tormes, na minha propriedade, dentro destes campos que são
meus, há gente que trabalhe para mim, e que tenha fome… Se há
criancinhas, como esta, esfomeadas? É o que eu quero saber.
O Silvério sorria, respeitosamente, ante aquela cândida ignorância
das realidades da serra:
-Pois está bem de ver, meu senhor, que há para aí caseiros
que são muito pobres. Quase todos… É uma miséria, que
se não fosse algum socorro que se lhes dá, nem eu sei!… Este
Esgueira, com o rancho de filhos que tem, é uma desgraça…
Havia V. Exª de ver as casitas em que eles vivem… São chiqueiros.
A do Esgueira, acolá…
-Vamos vê-la! – atulhou Jacinto com uma decisão exaltada.
E saiu logo do alpendre, sem atender à chuva, que ainda caia, mais
leve e mais rala. Mas então Silvério alargou os braços
diante dele, com ansiedade, como para o salvar dum precipício.
-Não! V. Exª lá na casa do Esgueira é que não
entra! Não se sabe o que a mulher tem, e cautela e caldo de galinha…
Jacinto não se alterou na sua polidez paciente:
-Obrigado pelo seu cuidado, Silvério… Abra o seu chapéu de
chuva, e avante!
Então o Procurador vergou os ombros, e, como sua Exª mandava,
abriu com estrondo o imenso pára-águas, abrigou respeitosamente
Jacinto, através do campo encharcado. Eu segui, pensando na esmola
suntuosa que o bom Deus mandava àquele pobre casal pôr um remoto
senhor das Cidades! Atrás vinha o pequenito perdido num imenso pasmo.
Como todos os casebres da serra, o Esgueira era de grossa pedra solta, sem
reboco, com um vago telhado, de telha musgosa e negra, um postigo no alto,
e a rude porta que servia para o ar, para a luz, para o fumo, e para a gente.
E em redor, a Natureza e o Trabalho tinham, através de anos, acumulado
ali trepadeiras e flores silvestres, e cantinhos de horta, e sebes cheirosas,
e velhos bancos roídos de musgo, e panelas com terra onde crescia salsa,
e regueiros cantantes, e videiras enforcadas nos olmos, e sombras e charcos
espelhados, que tornavam deliciosa, para uma Écloga, aquela morada
da Fonte, da doença e da Tristeza.
Cautelosamente, com a ponteira do guarda-chuva, Silvério empurrou
a porta, chamando:
-Eh! tia Maria… Olá, rapariga!
E na fenda entreaberta apareceu uma moça, muito alta, escura e suja,
com uns tristes olhos pisados, que se espantaram para nós, serenamente.
-Então como vai tua mãe? Abre lá a porta, que estão
aqui estes senhores…
Ela abriu, lentamente, e ia murmurando numa voz dolente e arrastada mas sem
queixume, que um vago, resignado sorriso acompanhava:
-Ora, coitada! como há de ir? Malzinha… malzinha.
E dentro, num gemido que subia como do chão, de entre abafos, amodorrado
e lento, a mãe repetiu a desconsolada queixa:
-Ai! para aqui estou, e malzinha, malzinha!…
O Silvério, sem passar da porta, com o guarda-chuva em riste, meio
aberto, como um escudo contra a infecção, lançou uma
consolação vaga:
-Não há de ser nada, tia Maria!… Isso foi friagem! Não
foi senão friagem!
E, sobre o ombro de Jacinto, encolhido:
-Já V. Exª vê… Muita miséria! Até lhe chove
lá dentro.
E, no pedaço de chão que viam, chão de terra batida,
uma mancha úmida reluzia, da chuva pingada de uma telha rota. A parede,
coberta de fuligem, das longas fumaraças da lareira, era tão
negra como o chão. E aquela penumbra suja parecia atulhada, numa desordem
escura, de trapos, de cacos, de restos de coisas, onde só mostravam
forma compreensível uma arca de pau negro, e pôr cima, pendurado
dum prego, entre uma serra e uma candeia, um grosso saiote escarlate.
Então Jacinto, muito embaraçado, murmurou abstraidamente:
-Está bem, está bem…
E largou pelo campo para o lado do alpendre como se fugisse, enquanto Silvério
decerto revelava à rapariga, a presença augusta do “fidalgo”,
porque a sentimos, da porta, levantar a voz dolorida:
-Ai! Nosso Senhor lhe dê muita boa sorte! Nosso Senhor o acompanhe!
Quando o Silvério, com as grandes passadas das suas grandes botas,
nos colheu, no meio do campo, Jacinto parara, olhava para mim, com os dedos
trêmulos a torturar o bigode, e murmurava:
-É horrível, Zé Fernandes, é horrível!
Ao lado, o vozeirão do Silvério trovejou:
-Que queres tu outra vez, rapaz? Vai para a tua mãe, criatura!
Era o pequeno rotinho, esfaimadinho, que se prendia a nós, num imenso
pasmo das nossas pessoas, e com a confusa esperança, talvez, que delas,
como de Deuses encontrados num caminho, lhe viesse afago ou proveito. E Jacinto,
para quem ele mais especialmente arregalava os olhos tristes, e que aquela
miséria, e a sua muda humildade, embaraçavam, acanhavam horrivelmente,
só soube sorrir, murmurar o seu vago: “Está bem, está
bem…” Fui eu que dei ao pequenito um tostão, para o fartar,
o despegar dos nossos passos. Mas como ele, com o seu tostão bem agarrado,
nos seguia ainda, como no sulco da nossa magnificência, o Silvério
teve de o espantar, como a um pássaro, batendo as mãos, e de
lhe gritar:
-Já para casa! E leve esse dinheiro à mãe. Roda, roda!…
-E nós vamos almoçar – lembrei eu olhando o relógio.
– O dia ainda vai estar lindo.
Sobre o rio, com efeito, reluzia um pedaço de azul lavado e lustroso,
e a grossa camada de nuvens já se ia enrolando sob a lenta varredela
do vento, que as levava, despejadas e rotas, para um canto escuso do céu.
Então recolhemos lentamente para casa, pôr uma vereda íngreme,
que ensinara o Silvério, e onde um leve enxurro vinha ainda, saltando
e chalrando. De cada ramo tocado, rechovia uma chuva leve. Toda a verdura,
que bebera largamente, reluzia consolada.
Bruscamente, ao sairmos da vereda para um caminho mais largo, entre um socalco
e um renque de vinha, Jacinto parou, tirando lentamente a cigarreira:
-Pois, Silvério, eu não quero mais estas horríveis misérias
na Quinta.
O Procurador deu um jeito aos ombros, com um vago eh! eh! de obediência
e dúvida.
-Antes de tudo – continuava Jacinto – mande já hoje chamar esse Dr.
Avelino para aquela pobre mulher… E os remédios que os vão
buscar logo a Guiães. E recomendação ao médico
para voltar amanhã, e em cada dia; até que ela melhore… Escute!
E quero, Silvério, que lhe leve dinheiro, para os caldos, para a dieta,
uns dez ou quinze mil-réis… Bastará?
O Procurador não conteve um riso respeitoso. Quinze mil-réis!
Uns tostões bastavam…. Nem era bom acostumar assim, a tanta franqueza,
aquela gente. Depois todos queriam, todos pechinchavam…
-Mas é que todos hão de Ter – disse Jacinto simplesmente.
-V. Exª manda! – murmurou o Silvério.
Encolhera os ombros, parado no caminho, no espanto daquelas extravagâncias.
Eu tive de o apressar, impaciente:
-Vamos conversando e andando! É meio-dia! Estou com uma fome de lobo!
Caminhamos, com o Silvério no meio, pensativo, a fronte enrugada sob
a vasta aba do chapéu, a barba imensa espalhada pelo peito, e a barraca
exorbitante do guarda-chuva vermelho enrolada debaixo do braço. E Jacinto,
puxando nervosamente o bigode, arriscava outras idéias benfazejas,
cautelosamente, no seu indomável medo do Silvério:
-E as casas também… Aquela casa é um covil!… Gostava de
abrigar melhor aquela pobre gente… E naturalmente, as dos outros caseiros
são pocilgas iguais… era necessário uma reforma! Construir
casas novas a todos os rendeiros da Quinta…
-A todos?… – O Silvério gaguejava – emudeceu.
E Jacinto balbuciava aterrado:
-A todos… Enfim, quero dizer… Quantos serão eles?
Silvério atirou um gesto enorme:
-São vinte e coisas… vinte e três! Se bem lembro. Upa! Upa!
Vinte e sete…
Então Jacinto emudeceu também, como reconhecendo a vastidão
do número. Mas desejou saber pôr quanto ficaria cada casa!…
Ó! uma casa simples, mas limpa, confortável, como a que tinha
a irmã do Melchior, ao pé do lagar. Silvério estacou
de novo. Uma casa como a da Ermelinda? Queria Sua Exª saber? E alijou
a cifra, muito de alto, como uma pedra imensa, para esmagar Jacinto:
-Duzentos mil-réis, Exmo Senhor! E é para mais que não
para menos!
Eu ria da trágica ameaça do excelente homem. E Jacinto, muito
docemente, para conciliar o Silvério:
-Bem, meu amigo… eram uns seis contos de réis! Digamos dez, porque
eu queria dar a todos alguma mobília e alguma roupa.
Então o Silvério teve um brado de terror:
-Mas então, Exmo Senhor, é uma revolução!
E como nós, irresistivelmente, ríamos dos seus olhos esgazeados
de horror, dos seus imensos braços abertos para trás, como se
visse o mundo desabar – o bom Silvério encavacou:
-Ah! V. Exas riem? Casas para todos, mobílias, pratas bragal, dez
contos de réis! Então também eu rio! Ah! ah! ah! Ora
viva a bela chalaça!… Está boa a risota!
E subitamente, numa profunda mesura, como declinando toda a responsabilidade
naquele disparate magnífico:
-Enfim, V. Exª é quem manda!
-Está mandado, Silvério. E também quero saber as rendas
que paga essa gente, os contratos que existem, para os melhorar. Há
muito que melhorar. Venha você almoçar conosco. E conversamos,
Tão saturado de espanto estava o Silvério, que nem recebeu
mais espanto com essa “melhoria de rendas”. Agradeceu o convite,
penhorado. Mas pedia licença a S. Exª para passar primeiramente
pelo lagar, para ver os carpinteiros que andavam a consertar a trave do rio.
Era um instante, e estava em seguida às ordens de S. Exª.
Meteu a corta-mato, saltando um cancelo. E nós seguimos, com passos
que eram ligeiros, pela hora do almoço que se retardara, pelo azul
alegre que reaparecia, e pôr toda aquela justiça feita à
pobreza da serra.
-Não perdeste hoje o teu dia, Jacinto – disse eu, batendo, com uma
ternura que não disfarcei, no ombro do meu amigo.
-Que miséria, Zé Fernandes! eu nem sonhava… Haver pôr
aí, à vista da minha casa, outras casas, onde crianças
têm fome! É horrível….
Estávamos entrando na alameda. Um raio de sol, saindo de entre duas
grossas, algodoadas nuvens, passou sobre uma esquina do casarão, ao
fundo, uma viva tira de ouro. O clarim dos galos soava claro e alto. E um
doce vento, que se erguera, punha nas folhas lavadas e luzidias um frêmito
alegre e doce.
-Sabes o que eu estava pensando, Jacinto?… Que te aconteceu aquela lenda
de Santo Ambrósio… Não, não era Santo Ambrósio…
Nem me lembro o santo… Nem era ainda santo… apenas um cavaleiro pecador,
que se enamorara duma mulher, pusera toda a sua alma nessa mulher, só
pôr a avistar a distância na rua. Depois, uma tarde que a seguia,
enlevado, ela entrou num portal de igreja, e aí, de repente, ergueu
o véu, entreabriu o vestido, e mostrou ao pobre cavaleiro o seio roído
pôr uma chaga! Tu também andavas namorado da serra, sem a conhecer,
só pela sua beleza de Verão. E a serra, hoje, zás! De
repente, descobre a sua grande úlcera… É talvez a tua preparação
para S. Jacinto.
Ele parou, pensativo, com os dedos nas cavas do colete:
-É verdade! Vi a chaga! Mas enfim, esta, louvado seja Deus,é
das que eu posso curar!
Não desiludi o meu Príncipe. E ambos subimos alegremente a
escadaria do casarão.
Capítulo XI
No dia que seguiu estas largas caridades recolhi a Guiães. E, desde
então, tantas vezes trotei pôr aquelas três léguas
entre a nossa e a velha alameda dos Jacintos, que a minha égua, quando
a desviava dessa estrada familiar, conduzindo-a a uma cavalariça familiar
(onde ela privava com o garrano do Melchior), relinchava de pura saudade.
Até a tia Vicência se mostrava vagamente ciumenta daquela Tormes,
para onde eu sempre corria, daquele Príncipe de quem incessantemente
celebrava o rejuvenescimento, a caridade, os pitéus, e as quimeras
agrícolas. Já um dia com um grão de sal e ironia – o
único que cabia num coração todo cheio de inocência
-, ela me dissera, movendo com mais vivacidade as agulhas da sua meia:
-Olha que te podes gabar! Até me tens feito curiosidade de conhecer
esse Jacinto… Traz cá essa maravilha, menino!
Eu rira:
-Sossegue, tia Vicência, que a trarei agora, para o dia dos meus anos,
a jantar… Damos uma festa, haverá um bailarico no pátio, e
vem aí toda essa senhorama dos arredores. Talvez até se arranje
uma noiva para o Jacinto.
Eu, com efeito, já convidara meu Príncipe para este “natalício”.
E de resto, convinha que o senhor de Tormes conhecesse todos aqueles senhores
das boas casas da serra… Sobretudo, como eu lhe dizia rindo, convinha que
ele conhecesse algumas mulheres, algumas daquelas fortes raparigas dos solares
serranos, porque Tormes tinha uma solidão muito monástica; e
o homem, sem um pouco do eterno Feminino, facilmente se endurece e ganha uma
casca áspera como a das árvores, na solidão.
-E esta Tormes, Jacinto, esta tua reconciliação com a Natureza,
e o renunciamento às mentiras da Civilização é
uma linda história… Mas, caramba, faltam mulheres!
Ele concordava, rindo, languidamente estendido na cadeira de vime:
-Com efeito, há aqui falta de mulher, com M grande. Mas essas senhoras
aí das casas dos arredores… Não sei, mas estou pensando que
se devem parecer com legumes. Sãs, nutritivas, excelentes para a panela
– mas, enfim, legumes. As mulheres que os poetas comparam às flores
são sempre as mulheres das cortes, das Capitais, às quais, invariavelmente,
desde Hesíodo e Horácio, se rendem os poetas… e evidentemente
não há perfume, nem graça, nem elegância, nem requinte,
numa cenoura ou numa couve… Não devem ser interessantes as senhoras
da minha serra.
-Eu te digo… A tua vizinha mais chegada, a filha do d. Teotônio,
com efeito, salvo o respeito que se deve à casa ilustre dos Barbedos,
é um mostrengo! A irmã dos Albergarias, da Quinta da Loja, também
não tentaria nem mesmo o precisado santo Antão. Sobretudo se
se despisse, porque é um espinafre infernal! Essa realmente é
legume, e não dos nutritivos.
-Tu o disseste: espinafre!
-Temos também a D. Beatriz Veloso… Essa é bonita… Mas,
menino, que horrivelmente bem falante! Fala como as heroínas do Camilo.
Tu nunca leste o Camilo… e depois, um tom de voz que te não sei descrever,
o tom com que se fala em D. Maria… Enfim, um horror! E perguntas pavorosas.
“V. Exª, Sr. Doutor, não se delicia com Lamartine?”
Já me disse esta, a indecente!
-E tu?
-Eu! Arregalei os olhos… “Ó Lamartine!” Mas, coitada,
é uma excelente rapariga! Agora, pôr outro lado, temos as Rojões,
as filhas do João Rojão, duas flores, muito frescas, muito alegres,
com um cheiro e um brilho a sadio, e muito simples… A tia Vicência
morre pôr elas. Depois há a mulher do Dr. Alípio, que
é uma beleza. Ó! uma criatura esplêndida! Mas, enfim,
é a mulher do Dr. Alípio, e tu renunciaste aos deveres da Civilização…
Além disso, mulher muito séria, toda absorvida nos seus dois
pequenos, que parecem dois anjinhos de Murillo… E quem mais? Já agora,
quero completar a lista do pessoal feminino. Temos a Melo Rebelo, de Sandofim,
muito engraçada, com cabelo lindo… Borda na perfeição,
faz doces como uma freira do antigo regime… Havia também uma Júlia
Lobo, muito linda, mas morreu… Agora não me lembro de mais. Mas falta
a flor da Serra, que é a minha prima Joaninha, da Flor da Malva! Essa
é uma perfeição de rapariga.
-E tu, primo Zé, como tens tu resistido?
-Somos como irmãos, criados de pequeninos, mais acostumados e familiares
que tu e eu… A familiaridade esbate os sexos. A mãe dela era a única
irmã da tia Vicência, e morreu muito nova. A Joaninha, quase
desde o berço que se criou em nossa casa, em Guiães. O pai é
bom homem, o tio Adrião. Erudito, antiquário, colecionador…
Coleciona toda a sorte de coisas esquisitas, campainhas, esporas, sinetes,
fivelas… Tem uma coleção curiosa. Ele há muito que
deseja vir a Tormes, para te visitar… Mas, coitado, sofre da bexiga, não
pode montar a cavalo. E a estrada da flor da Malva aqui é impossível
para carruagens…
O meu Príncipe espreguiçara longamente os braços:
-Não, está claro! eu é que hei de visitar teu tio, e
a tia Vicência… desejo conhecer os meus vizinhos. Mas mais tarde,
quando sossegar. Agora ando todo ocupado com o meu povo.
E com efeito! Jacinto era agora como um Rei fundador dum Reino, e grande
edificador. Pôr todo o seu domínio de Tormes andavam obras, para
o renovamento das casas dos rendeiros, umas que se consertavam, outras mais
velhas, que se derrubavam para se reconstruírem com uma largueza cômoda.
Pelos caminhos constantemente chiavam carros, carregados de pedra, ou de madeiras
cortadas nos pinheirais.
Na taberna do Pedro, à entrada da freguesia, ia um desusado movimento,
de pedreiros e carpinteiros contratados para as obras; e o Pedro, com as mangas
arregaçadas, pôr trás do balcão, não cessava
de encher os decilitros com uma vasta infusa.
Jacinto, que tinha agora dois cavalos, todas as manhãs cedo percorria
as obras, com amor. Eu, inquieto, sentia outra vez latejar e irromper no meu
Príncipe o seu velho, maníaco furor de acumular Civilização!
O plano primitivo das obras era incessantemente alargado, aperfeiçoado.
Nas janelas, que deviam ter apenas portadas, segundo o secular costume da
serra, decidira pôr vidraças, apesar do mestre-de-obras lhe dizer
honradamente que depois de habitadas um mês não haveria casa
com um só vidro. Para substituir as traves clássicas queria
estucar os tetos; e eu via bem claramente que ele se continha, se retesava
dentro do bom senso, para não dotar cada casa com campainhas elétricas.
nem sequer me espantei, quando ele uma manhã me declarou que a porcaria
da gente do campo provinha deles não terem onde comodamente se lavar,
pelo que andava pensando em dotar cada casa com uma banheira. Descíamos
nesse momento, com os cavalos à rédea, pôr uma azinhaga
precipitada e escabrosa, um vento leve ramalhava nas árvores, um regato
saltava ruidosamente entre as pedras. Eu não me espantei – mas realmente
me pareceu que as pedras, o arroio, as ramagens e o vento, se riam alegremente
do meu Príncipe. E além destes confortos a que o João,
mestre-de-obras, com os olhos loucamente arregalados chamava “as grandezas”,
Jacinto meditava o bem das almas. Já encomendara ao seu arquiteto,
naquele campo da Carriça, junto à capelinha que abrigava “os
ossos”. Pouco a pouco, aí criaria também uma biblioteca,
com livros de estampas, para entreter, aos domingos, os homens a quem já
não era possível ensinar a ler. Eu vergava os ombros, pensando:
– “Aí vem a terrível acumulação das Nações!
Eis o livro invadindo a Serra!” Mas outras idéias de Jacinto
eram tocantes – e eu mesmo me entusiasmei, e excitei o entusiasmo da tia Vicência
com o seu plano duma Creche, onde ele esperava ter manhãs muito divertidas
vendo as criancinhas a gatinhar, a correr tropegamente atrás duma bola.
De resto, o nosso boticário de Guiães estava já apalavrado
para estabelecer uma pequena farmácia em Tormes, sob a direção
do seu praticante, um afilhado da tia Vicência, que tinha publicado
um artigo sobre as festas populares do Douro no Almanaque de Lembranças.
E já fora oferecido o partido médico de Tormes, com ordenado
de 600$000 réis.
-Não te falta senão um Teatro! – dizia eu, rindo.
-Um teatro, não. Mas tenho a idéia duma sala, com projeções
de lanterna mágica, para ensinar a esta pobre gente as cidades desse
mundo, e as coisas de África, e um bocado de História.
E também me ensoberbeci com esta inovação! – e quando
a contei ao tio Adrião, o digno antiquário bateu, apesar do
seu reumatismo, uma palmada tremenda na coxa. “Sim, senhor! Bela idéia!
Assim se podia ensinar àquela gente iletrada, vivamente, pôr
imagens, a História Romana, até a História de Portugal!…”
E voltado para a prima Joaninha, o tio Adrião declarou um “homem
de coração!”
E realmente pela Serra crescia a popularidade do meu Príncipe. Naquele,
“guarde-o Deus, meu senhor!” com que as mulheres ao passar o saudavam,
se voltavam para o ver ainda, havia uma seriedade de oração,
o bem sincero desejo de que Deus o guardasse sempre. As crianças a
quem ele distribuía tostões farejavam de longe a sua passagem
– e era em torno dele um escuro formigueiro de caritas trigueiras e sujas,
com grandes olhos arregalados, que se ainda tinham pasmo, já não
tinham medo. Como o cavalo de Jacinto uma tarde se chapara, ao desembocar
da alameda, numas grossas pedras que aí deformavam a estrada, logo
ao outro dia um bando de homens, sem que Jacinto o ordenasse, veio pôr
dedicação ensaibrar e alisar aquele pedaço perigoso de
caminho, aterrados com o risco que correra o bom senhor. Já pela serra
se espalhava esse nome de “bom senhor”. Os mais idosos da freguesia
não o encontravam sem exclamarem, uns com gravidade, outros com grandes
risos desdentados:
-Este é o nosso benfeitor! Pôr vezes, alguma velha corria do
fundo do eido, ou vinha à porta do casebre, ao avistá-lo no
caminho, para gritar, com grandes gestos dos braços magros: “Ai
que Deus o cubra de bênçãos! Que Deus o cubra de bênçãos!”
Aos domingos, o padre José Maria (bom amigo meu e grande caçador)
vinha de Sandofim, na sua égua ruça, a Tormes, para celebrar
a missa na Capelinha. Jacinto assistia ao ofício na sua tribuna, como
os Jacintos de outras eras, para que aqueles simples o não supusessem
estranho a Deus. Quase sempre então ele recebia presentes, que as filhas
dos caseiros, ou os pequenos, vinham muito corados, trazer-lhe à varanda,
e eram vasos de manjericão, ou um grosso ramalhete de cravos, e pôr
vezes um gordo pato. Havia então uma distribuição de
cavacas e merengues de Guiães, às raparigas e às crianças
– e, no pátio, para os homens circulavam as infusas de vinho branco.
O Silvério já sustentava com espanto, e redobrado respeito,
que o Sr. D. Jacinto em breve disporia de mais votos nas eleições
que o Dr. Alípio. E eu próprio me impressionei, quando o Melchior
me contou que o João Torrado, um velho singular daqueles sítios,
de grandes barbas brancas, ervanário, vagamente alveitar, um pouco
adivinho, morador misterioso duma cova no alto da serra, a todos afirmava
que aquele senhor era El-Rei D. Sebastião, que voltara!
Capítulo XII
Assim chegou Setembro, e com ele o meu natalício, que era a 3 e num
Domingo. Toda essa semana a passara eu em Guiães, nos preparos da vindima
– e de manhã cedo, nesse Domingo ilustre, me fui debruçar da
varanda do quarto do saudoso tio Afonso, vigiando a estrada, pôr onde
devia aparecer meu Príncipe, que enfim visitava a casa do seu Zé
Fernandes. A tia Vicência, desde a madrugada, andava atarefada pela
cozinha e pela copa, porque, desejando mostrar ao meu Príncipe “o
pessoal” da serra, convidar para jantar algumas famílias amigas,
dos arredores, as que tinham carruagens ou carroções, e podiam,
pelas estradas mal seguras, recolher tarde, depois dum bailarico campestre,
no pátio, já enfeitado para esse efeito de lanternas chinesas.
Mas logo às dez horas me desesperei, ao receber, pôr um moço
da Flor da Malva, uma carta da prima Joaninha, em que dizia “a pena
de não poder vir porque o Papá estava desde a véspera
com um leicenço, e ela não o queria abandonar”. Corri
indignado à cozinha, onde a tia Vicência presidia a um violento
bater de gemas de ovos dentro duma imensa terrina.
-A Joaninha não vem ! Sempre assim! Diz que o pai tem um incenço…
Aquele tio Adrião escolhe sempre os grandes dias para Ter leicenços,
ou para Ter a pontada…
A boa face redondinha e corada da tia Vicência enterneceu-se.
-Coitado! Será em sítio que não se pudesse sentar na
carruagem! Coitado! Olha, se lhe escreveres, diz-lhe que ponha um emplastrozinho
de folhas de alecrim. Era com que teu tio se dava bem.
Eu gritei simplesmente para o moço, que dava de beber ao burro no
pátio:
-Diz à Srª D. Joaninha que sentimos muito… Que talvez eu lá
apareça amanhã.
E voltei à janela, impaciente, porque o relógio do corredor,
muito atrasado, já cantara a meia hora depois das dez e o Príncipe
tardava para o almoço. Mas , mal eu me chegara à varanda, apareceu
justamente na volta da estrada Jacinto, de grande chapéu de palha,
no seu cavalo, seguido do Grilo que, também de chapéu de palha,
e abrigado sob um imenso guarda-sol verde, se escarranchava no albardão
da velha égua de Melchior. Atrás, um moço com uma maleta
à cabeça. E eu, na alegria de avistar enfim meu Príncipe
trotando para a minha casa de aldeia, no dia dos meus trinta e seis anos,
pensava noutro natalício, no dele, em Paris, no 202, quando, entre
todos os esplendores da Civilização, nós bebemos tristemente
ad manes, aos nossos mortos!
-Salve! – gritei da varanda. – Salve, domine Jacinthi!
E entoei, para o acolher, um alegre “tarantantan”, o hino da
carta!
-Isto pôr aqui também é lindo! – gritou ele de baixo.
– E o teu palácio tem um soberbo ar… Pôr onde é a porta?
Mas eu já me precipitava para o pátio – onde Jacinto, apeando,
contou alegremente os tormentos do Grilo, que nunca montara a cavalo, e não
cessara de berrar ante os perigos daquela ventura.
E o digno preto, ofegante, lustroso de suor, e lívido sob o esplendor
da sua negrura, exclamava, apontando com a mão trêmula para a
pobre égua, que solta, de cabeça pensativa, parecia de pedra,
sobre as patas mais imóveis que marcos:
-Pois se o siô Fernandes visse! Uma fera, que nunca veio quieta. Sempre
para a esquerda, sempre para a direita, pé aqui, pé além!
Só para me sacudir! Só para me sacudir!
E não resistiu. Com a ponta do guarda-sol atirou uma pontoada vingativa
contra a égua sobre o albardão.
Subindo a escadaria ligeira, penetrando no alegre corredor, com a sua janela
ao fundo engrinaldada de rosinhas, Jacinto louvava grandemente a nossa casa,
que o repousava das rijas muralhas, das grossas portas feudais de Tormes.
E no seu quarto agradeceu os cuidados maternais da tia Vicência, que
enchera de flores os dois vasos da china sobre a cômoda, e adornara
a cama com uma das nossas colchas da Índia mais ricas, cor de canário
com grandes aves de ouro. Eu sorria, enternecido. Então estreitamos
os ossos num grande abraço, pelo natalício… “Trinta
e oito, hem Zé Fernandes?” – “Trinta e quatro, animal!”
E o meu Príncipe abrindo a mala, sóbria maleta de filósofo,
ofereceu os “nobres presentes, que são devidos”, como diz
sempre o astuto Ulisses na Odisséia. Era um alfinete de gravata, com
uma safira, uma cigarreira de aro fosco, adornada de um florido ramo de macieira
em delicado esmalte, e uma faca para livros de velho lavor chinês. Eu
protestava contra a prodigalidade.
-É tudo das malas de Paris… Mandei-as abrir ontem à noite.
E tomei a liberdade de trazer esta lembrança à tua tia Vicência.
Não vale nada… É só pôr Ter pertencido à
princesa de Lamballe. Era uma caldeirinha de água benta, em prata lavrada,
dum gosto florido e quase galante.
-A tia Vicência não sabe quem é a princesa de Lamballe,
mas ficará encantada! E é uma garantia, porque ela suspeita
da tua religião, como homem de Paris, da terra das impiedades… E
agora, lavar, escovar, e ao almoço!
A tia Vicência pareceu toda surpreendida, e logo encantada com o meu
camarada, que ela supusera realmente um Príncipe, arrogante, escarpado
e difícil. Quando ele lhe ofereceu a caldeirinha, com um delicado pedido
“para se lembrar dele nas suas orações”, duas largas
rosas, mais róseas e frescas que as rosas que enchiam a mesa, cobriam
as faces redondas da boa senhora, que nunca recebera tão piedoso presente,
com tão linda palavra. Mas o que sobretudo a cativou foi o tremendo
apetite de Jacinto, a entusiasmada convicção com que ele, acumulando
no prato montes de cabidela, depois altas serras de arroz de forno, depois
bifes de numerosa cebolada, exaltava a nossa cozinha, jurava nunca Ter provado
nada tão sublime. Ela resplandecia:
-Até faz gosto, até faz gosto!… Ora mais uma destas batatinhas
recheadas…
-Com certeza, minha senhora! Até duas! As minhas rações,
em mesas destas, tão perfeitas, são sempre as de Gargântua.
-Não cites Rabelais, que a tia Vicência não conhece os
autores profanos! – exclamava eu, também radiante. – E prova esse vinho
branco cá da nossa lavra, e louva Deus que amadurece tal uva.
E o almoço foi muito alegre, muito íntimo, muito conversado,
sobre as obras de Jacinto em Tormes, e a sua Creche, que enlevava a tia Vicência,
ea as esperanças da vindima, e a minha prima Joaninha, que tinha o
papá doente, e o péssimo estado dos caminhos. Mas o enternecimento
maior foi quando, ao servir o café, o criado pôs ao lado de Jacinto
um pires com um pau de canela, o seu estranho e costumado pau de canela.
Não o esquecera a tia Vicência! Ali tinha o seu pauzinho de
canela! – Queria que ele, em Guiães, continuasse os seus hábitos
como em Tormes… E aquele pau de canela foi o símbolo de adoção
do meu Príncipe como novo sobrinho da tia Vicência.
Ela em breve recolheu à cozinha, aos preparativos do banquete. Nós
fumamos um preguiçoso charuto no jardim, ao pé do repuxo, sob
a recolhida sombra do cedro. Depois, inexoravelmente, como proprietário,
mostrei ao meu Príncipe a propriedade toda, com desapiedada minuciosidade,
sem lhe perdoar uma leira, um regueiro, uma árvore, um pé de
vinha. Só quando a sua face começou a opar e a empalidecer,
de cansaço, e que do entendimento totalmente atordoado só lhe
escorria um vago – “muito bonito! Bela terra!” é que voltei
os passos para casa, tornejando ainda numa volta larga para lhe mostrar o
lagar, uma plantação de espargos, e o sítio onde existira
a ruína dum velho castro romano. Ao penetrarmos de novo, pelo jardim,
na fresca sala, ainda o empurrei, como uma rês, para a livraria do meu
bom tio Afonso, para lhe mostrar as preciosidades, uma magnífica crônica
de D. João I pôr Fernão Lopes, a primeira edição
do Imperador Clarimundo, uma Henriada, com a assinatura de Voltaire, forais
de El-Rei D. Manuel, e outras maravilhas. Ele respirava fechando o derradeiro
pergaminho, quando eu o arrastei à adega, para que admirasse a famosa
pipa, que tinha, em relevo, na madeira do tampo, as complicadas armas dos
Sandes. Eram quatro horas. O meu Príncipe tinha o ar esgazeado e lívido.
Cravando nele os olhos inexoráveis, olhos em que eu mesmo sentia reluzir
a ferocidade, declarei “que iríamos agora ver a tulha”.
Mas então, com as mãos nos rins, ele murmurou, humildemente,
num murmúrio de criança:
-Não se me dava de me sentar um poucochinho!
Tive então piedade, abri as garras, deixei que ele se arrastasse,
atrás de mim, para o seu quarto, onde freneticamente descalçou
as botas, se atirou para um fresco canapé forrado de ganga, murmurando
num abatimento profundo: – “Bela propriedade!”
Consenti generosamente que ele adormecesse – e eu mesmo desci a verificar
se a Gertrudes dispusera bem as escovas, as toalhas de renda, no quarto onde
os convidados, em breve, ao chegar, lavariam as mãos, escovariam a
poeira da estrada. E justamente, uma caleche rodava no pátio, a velha
caleche do D. Teotônio, com a parelha ruça. Espreitando da janela
descobri, com prazer, que chegava só, de gravata branca, sob o guarda-pó,
sem a horrendíssima filha. Corri alegremente ao quarto da tia Vicência,
que, ajudada pela Catarina, abrochava à pressa as suas pulseiras ricas
de topázios.
-Tia Vicência! chegou o D. Teotônio! Felizmente vem sem a filha…Não
se demore, os outros não tardam. O Manuel que esteja bem penteado,
de gravata bem tesa!… Vamos a ver como corre a festa!
Capítulo XIII
Ai de mim! a festa do meu aniversário não se passou com brilho,
nem com alegria!
Quando o meu Príncipe entrou na sala, com uma elegância (onde
eu senti as malas de Paris, abertas na véspera) – uma rosa branca no
jaquetão preto, colete branco lavrado e traspassado, copiosa gravata
de seda branca, tufando, e presa pôr uma pérola negra – já
todos os convidados estavam na sala -, o D.Teotônio, o Ricardo Veloso,
o Dr. Alípio, o gordo Melo Rebelo, de Sandofim, os dois manos Albergarias,
da Quinta da Loja – todos de pé, num pelotão cerrado. Em torno
do sofá onde a tia Vicência se instalara, um magotezinho de cadeiras
reunira as senhoras – a Beatriz Veloso, de cassa branca sobre seda, que a
tornava mais aérea e magra, com a sua trunfa imensa de cabelo riçado;
as duas Rojões (com a tia Adelaide Rojão) vermelhinhas como
camoesas, ambas de branco; e a mulher do Dr. Alípio, de preto, esplêndida
como uma Vênus Rústica… E foi na sala, como se realmente entrasse
um Príncipe, desses países do Norte onde os Príncipes
são magníficos, muito distantes dos homens, e aterram as gentes.
Um silêncio, como se o teto de carvalho descesse, nos esmagava: e todos
os olhos se enristaram contra o meu desgraçado Jacinto, como numa caçada
hindu, quando orla da floresta surge o Tigre Real. Debalde – nas confusas,
apressadas apresentações, com que eu o levava através
da sala -, os seus apertos de mão, os sorrisos, o vago murmúrio,
“da sua honra, do seus apertos de mão, os sorrisos, o vago murmúrio,
“da sua honra, do seu prazer”, foram repassados de simpatia, de
simplicidade. Todos os cavalheiros permaneciam reservados, observando o Príncipe,
que subira à serra; e as senhoras mais se aconchegavam à sombra
da tia Vicência, como ovelhas à volta do pastor, quando na altura
assoma o lobo. Eu, já inquieto, lancei o D.Teotônio, o mais ornamental
daqueles cavalheiros.
-O Sr. Teotônio foi muito amável em vir, Jacinto. Raras vezes
sai da sua linda casa da Abrujeira.
O digno D.Teotônio sorriu, cofiando os espessos bigodes brancos, de
velho brigadeiro:
-V.Exª chegou diretamente de Viena?
-Não! – Jacinto viera diretamente de Paris, com o amigo Zé
Fernandes. D Teotônio insistiu:
-Mas certamente visita muitas vezes Viena…
Jacinto sorriu surpreendido:
-Viena, pôr que?… Não. Há mais de quinze anos que não
vou a Viena.
O fidalgo murmurou um lento ah! e ficou calado, de pálpebras baixas,
como revolvendo análises profundas, com as mãos cruzadas sob
as abas da longa sobrecasaca azul.
Eu então, vigilante, lancei o Dr. Alípio:
-O nosso Doutor, meu caro Jacinto, é o mais poderoso influente de
todo o distrito.
O Doutor curvou a cabeça bem feita, com um belo cabelo preto, admiravelmente
alisado e lustroso. Mas a tia Vicência, que se erguera do sofá.,
chamava o meu Príncipe, porque o Manuel anunciara o jantar, mudamente,
mostrando apenas, à porta da sala, a sua corpulenta pessoa –inteiriçado
e vermelho.
À mesa, onde os pudins, as travessas de doce de ovos, os antigos vinhos
da Madeira e do Porto, nas suas pesadas garrafas de cristal lapidado, fundiam
com felicidade os seus tons ricos e quentes, Jacinto ficou entre a tia Vicência
e uma das Rojões, a Luisinha, sua afilhada, que, pôr costume
velho, quando jantava em Guiães, sempre se colocava à sombra
da sua boa madrinha. E a sopa, que era de galinha com macarrão, foi
comida num tão largo e pesado silêncio que eu, na ânsia
de o quebrar, exclamei, ao acaso, sem pensar que me achava em Guiães
depois de tanto tempo e em minha própria casa:
-Deliciosa, esta sopa!
Jacinto ecoou:
-Divina!!
Mas como todos os convidados certamente estranharam este meu brado, e a excessiva
admiração de Jacinto, o silêncio, carregado de cerimônia,
mais se carregou de embaraço. Felizmente a tia Vicência, com
aquele seu bom sorriso, observou que Jacinto parecia gostar da comida portuguesa…
e eu, sempre no intuito de animar a conversa, nem deixei que o meu Príncipe
confirmasse o seu amor da cozinha vernácula, e gritei:
-Como gostar! Mas é que delira!… Pudera! Tanto tempo em Paris, privado
dos pitéus lusitanos…
E como, ditosamente, me lembrara o prato de arroz-doce preparado na ocasião
do natalício de Jacinto, pelo cozinheiro do 202, contei a história,
profusamente, exagerando, afirmando que esse arroz continha foie-gras, e que
sobre a sua ornamentada pirâmide flutuava a bandeira tricolor, pôr
cima do busto do conde de Chambord! Mas o arroz-doce de Paris, assim estragado
tão longe da Serra, não interessara ninguém. Puxou apenas
alguns sorrisos de polida condescendência, quando eu, alternadamente,
me voltava para um cavalheiro, para uma senhora, insistindo, exclamando: –
Extraordinário, hem?
D. Teotônio observou, misteriosamente, que o “cozinheiro sabia
para quem cozinhava”. E a bela mulher do Dr. Alípio ousou murmurar,
corando:
-Havia de ser bonito prato, e talvez não fosse mau!
Eu, sempre na ânsia de espiritualizar o banquete, de produzir conversação,
ataquei com desabrida alegria a Srª D. Luísa, pôr ela assim
defender a profanação do nosso grande acepipe nacional! Mas,
pobre de mim! tão excessiva e ruidosamente interpelei a formosa senhora,
que ela se enconchou, emudeceu, toda corada, e mais formosa assim. E outro
silêncio se abatia sobre a mesa, como uma névoa, quando a tia
Vicência, providencial, se desculpou para com Jacinto de não
ter peixe! Mas quê! ali na Serra era impossível, ainda a peso
de ouro, ter peixe, a não ser a pescada salgada, ou o bacalhau. O excelente
Rojão, com aquele seu modo, tão suave que cada sílaba
para correr mais docemente parecia lubrificada com óleos santos, lembrou
que o Sr.D. Jacinto possuía uma larga faixa do rio douro com privilégio
para a pesca do sável. Jacinto não sabia, nem imaginava que
houvesse sáveis… O Dr. Alípio não se admirava porque
essas pescas tinham sido vendidas ao Cunha brasileiro, há vinte anos,
na mocidade do Sr. D. Jacinto. E hoje, segundo D. Teotônio, não
valiam dois mil-réis. Se já não há sáveis!…
E a propósito das antigas pescas do Douro se iam formando, em torno
da mesa, entre os homens mais vizinhos, lentas cavaqueirinhas rurais, que
as senhoras aproveitavam para cochilar, no desabafo daquele silêncio
cerimonioso, que viera pesando cada vez mais desde a sopa até aos frangos
guisados. Receoso de que essa orla de murmúrios lentos, sem brilho
e sem alegria, se estabelecesse de novo, me abalancei (para animar) a interpelar
Jacinto, recordando a famosa aventura do peixe da Dalmácia encalhado
no ascensor.
-Isso foi uma das melhores histórias que nos sucederam em Paris! O
Jacinto, pôr causa dum peixe muito raro, lhe mandara o que… O Grão-Duque
Casimiro, o irmão do Imperador…
Todos os olhos se desviaram para o meu Jacinto, que se servia de ervilhas:
– e o Melo Rebelo quase se engasgou, num sorvo precipitado ao copo, para contemplar
no meu amigo algum reflexo do Grão-Duque. E eu contei, com profusão,
o peixe encalhado, o Grão-Duque pescando, o anzol feito com um gancho
da Princesa de Carman, o duque de Marizac, caindo quase no poço do
elevador… Mas não se produziu um único riso, e a atenção
mesmo era dada com esforço, pôr cortesia. Debalde eu arremessava
aqueles nomes magníficos de príncipes e princesas, misturados
a coisas picarescas… Nenhum dos meus convidados compreendia o maquinismo
do elevador, um prato encalhado num poço negro… Perante o gancho
da Princesa, as Albergarias baixaram os olhos. E a minha deliciosa história
morreu numa reticência, ainda mais regelada pela exclamação
inocente da tia Vicência:
-Ó! filho, que coisas!
Mas, como Jacinto se enfronhara de repente numa larga conversa com a Luisinha
Rojão, que ria, toda luminosa e palradora – todos, como libertados
do peso cerimonioso da sua presença augusta, se lançaram nas
conversinhas discretas, a que o champanhe, agora, depois do assado, dava mais
viveza. Eram os soturnos murmúrios, em torno da mesa, que definitivamente
se perpetuavam. Foi então que desisti de animar o jantar. Mergulhei
com a bela mulher do Dr. Alípio na grande questão social desse
tempo em Guiães, o casamento da D. Amélia Noronha com o feitor!
E eu defendia a D. Amélia, os direitos do amor, quando se alargou um
silêncio – e era Jacinto, que se debruçava, de copo na mão.
-Velho amigo Zé Fernandes, à tua! Muitos e bons, e sempre em
companhia de tua tia e minha senhora, a quem peço para saudar.
Todos os copos, onde a espuma morria sobre um fundo de champanhe, se ergueram
num largo rumor de amizade, e boa vizinhança. Eu acenei ao Manuel,
vivamente, para encher os copos; e logo, também de pé, atirando
para trás a sobrecasaca:
-Meus senhores, peço uma grande saúde para o meu velho amigo
Jacinto, que pela primeira vez honra esta casa fraternal… Que digo eu? que
pela primeira vez honra com a sua presença a sua querida pátria!
E que pôr cá fique, pelas serras, muitos anos, todos bons. À
tua, meu velho!
Outro rumor correu pela mesa, mas cerimonioso e sereno. A nossa oratória,
positivamente, não incendiara as imaginações!
A tia Vicência fez tilintar o seu copo, quase vazio, com o de Jacinto,
que tocou no copo da sua vizinha, a Luisinha Rojão, toda resplandecente,
e mais vermelha que uma peônia. Depois foi o encadeamento de saúdes,
com os copos quase vazios, entre todos os convidados, sem esquecer o tio Adrião,
e o Abade, ambos ausentes, ambos com furúnculos. E a tia Vicência
espalhava aquele olhar, que prepara o erguer, o arrastar de cadeiras – quando
d. Teotônio, erguendo o seu copo de vinho do Porto, com a outra mão
apoiada à mesa, meio erguido, chamou Jacinto, e numa voz respeitosa,
quase cava:
-Esta é toda particular, e entre nós… Brindo o ausente!
Esvaziou o copo, como em religião, pontificando. Jacinto bebeu assombrado,
sem compreender. As cadeiras arrastavam – eu dei o braço à tia
Albergada.
E só compreendi, na sala, quando o Dr. Alípio, com a sua chávena
de café e o charuto fumegante, me disse, num daqueles seus olhares
finos, que lhe valiam a alcunha de Dr. Agudo: – “Espero que ao menos,
cá pôr Guiães, não se erga de novo a forca!…”
E o mesmo fino olhar me indicava o D. Teotônio, que arrastara Jacinto
para entre as cortinas duma janela, e discorria, com um ar de fé e
de mistério. Era o miguelismo, pôr Deus! O bom D. Teotônio
considerava Jacinto como um hereditário, ferrenho miguelista – e, na
sua inesperada vinda ao seu solar de Tormes, entrevia uma missão política,
o começo duma propaganda enérgica, e o primeiro passo para uma
tentativa de Restauração. E na reserva daqueles cavalheiros,
ante o meu Príncipe, eu senti então a suspeita liberal, o receio
duma influência rica, nova, nas Eleições próximas,
e a nascente, e a nascente irritação contra as velhas idéias,
representadas naquele moço, tão rico, de civilização
tão superior. Quase entornei o café, na alegre surpresa daquela
sandice. E retive o Melo Rebelo, que repunha a chávena vazia na bandeja,
fitei, com um pouco de riso, o Dr.Agudo.
-Então, francamente, os amigos imaginam que o Jacinto veio para Tormes
trabalhar no miguelismo?
Muito sério, Melo Rebelo chegou o seu grosso bigode à minha
orelha:
-Até corre, como certo, que o Príncipe d. Miguel está
com ele em Tormes!
E como eu os considerava esgazeado, o Dr. Alípio – tão agudo!
– confirmou:
-É o que corre… disfarçado em criado!
Em criado? Ó! Santo Deus! Era o Batista! Justamente, Ricardo Veloso
veio, puxando do seu cigarrinho, para o acender no meu charuto. E o bom Rebelo
logo invocou o seu testemunho. – Pois não corria, que o filho de D.
Miguel estava em Tormes, escondido?…
-Disfarçado em lacaio – confirmou logo o digno Rebelo.
Acendeu o cigarro, soprou o fumo, e erguendo muito as sobrancelhas meditativas:
-Se assim é, lá me parece desplante… Que eu não desgostava
de o ver. Dizem que é bonito moço, bem apessoado. Mas enfim,
meu tio João Vaz Rebelo foi partido às postas, a machado, nas
prisões de Almeida… E se recomeçam essas questões,
mau, mau! Ora o seu amigo…
Emudeceu. Jacinto, que se libertara do velho d. Teotônio, e ainda conservava
um resto de riso, de assombro divertido, vinha para mim, desabafar.
-Extraordinário! Vejo que aqui, na serra, ainda se conservam, sem
uma ruga, as velhas e boas idéias…
Imediatamente, sem se conter, Melo Rebelo acudiu:
-É conforme o que V. Exª chama boas idéias.
E eu agora, furioso com aquela disparada invenção, que cercava
de hostilidade o meu pobre Jacinto, estragava aquela amável noite de
anos, intervim, vivamente:
-Tu jogas o voltarete, Jacinto? Não jogas… então vamos arranjar
duas mesas… O D. Teotônio há de querer cartas.
E arrastei Jacinto para as senhoras, que de novo se aninhavam à sombra
da tia Vicência, estabelecida no seu canto do sofá. Todos se
calavam, parecia encolherem-se ante a aparição do meu Príncipe,
como pombas avistando o abutre. E deixei o temido homem afirmando à
mulher do Dr. Alípio (um pouco desgarrada do banho das aves tímidas)
que lhe dera grande prazer aquela ocasião de conhecer as suas vizinhas
de Tormes… ela abrira nervosamente o leque, sorria, e nunca decerto Jacinto
admirara na Cidade uma boca mais vermelha, dentinhos mais rutilantes. Mas
depois de organizar a mesa do voltarete, tive de abancar, eu, para substituir
o Manuel Albergaria, que era dispéptico, se declarara “afrontado”,
e desejava respirar um momento na varanda. Todos aqueles cavalheiros, de resto,
se queixavam de calor. Mandei abrir as janelas que davam sobre as mimosas
do pátio. O Veloso, ao baralhar, parava, bufando, como oprimido:
-Está abafado… Ainda temos trovoada!
E o Dr. Alípio, inquieto, porque tinha uma hora de estrada até
casa, e uma das éguas da caleche era escabreada, correu à janela,
espreitar o céu, que enegrecera, morno e pesado.
-Com efeito, vai cair água.
As hastes das mimosas ramalhavam, arrepiadas; e o ar que agitava as cortinas
era intermitente, estonteado. Decerto na sala, entre as senhoras, surgira
a mesma inquietação, porque a tia Albergaria apareceu, avisando
o mano Jorge.
Era prudente pensar em partir, a noite ameaçava… E o Dr. Alípio,
puxando o relógio, propôs que levantada aquela remissa, se preparasse
a marcha. Justamente o albergaria recolhia da varanda desafrontado, aliviado
com um cálice de genebra: e retomou as suas cartas, anunciando também
que vinha aí uma trovoada valente.
Voltando à sala, encontrei Jacinto muito alegre entre as senhoras,
que se familiarizaram, escutando, cheias de riso e gosto, a história
da sua chegada a Tormes, sem malas, sem criados, tão desprovido que
dormira com a camisa da caseira! Mas a minha pobre noite de anos findava,
desorganizada. A tia Albergaria rondava de janela em janela, assustada com
a volta à Roqueirinha, espreitando a treva abafada. Calçando
lentamente as luvas, a bela mulher do Dr. Alípio perguntava se ainda
havia a remissa. E a tia Vicência apressara o chá, que o Manuel,
seguido pela Gertrudes, com a bandeja de bolos, já começava
a servir às senhoras. Jacinto, de pé, oferecendo chávenas,
gracejava:
-Então tanta pressa, tanto medo, pôr causa duma trovoadinha?
Elas replicavam, familiarizadas, numa crescente simpatia pelo meu Príncipe:
-Ora o senhor fala bem, porque fica debaixo de telhas…
-Sempre o queríamos ver… se fosse agora para Tormes, com esta noite
cerrada!
O volante findara nas duas mesas: e aqueles cavalheiros, das janelas, gritavam
ordens para o pátio negro, onde as carruagens esperavam atreladas:
-Desce a cabeça da vitória, ó Diogo!
-Acende o lampião, Pedro! Sempre ajuda a luz das lanternas.
A criada Quitéria chagava à porta com os braços carregados
de xales, de mantilhas de renda. Como uma das Albergarias ia no assento de
diante, na vitória, eu corri a buscar o meu casaco de borracha, para
ela se abrigar, se a chuva viesse. E só o D. Teotônio, que tinha
até casa apenas meia légua de estrada boa, se não apressava,
filiado outra vez no meu Príncipe, que levava para os cantos mais solitários,
em conversas profundas, que o seu dedo solene, espetado, sublinhava gravemente.
Mas a tia Albergaria gritou que já chovia – e então foi uma
pressa das senhoras, que beijocavam vivamente a tia Vicência, enquanto
os homens, na antecâmara, enfiavam açodadamente os paletós.
Jacinto e eu descemos ao pátio para acompanhar aquela debandada –
e uma a uma, a traquitana do Dr. Alípio, a vitória das Albergarias
a velha e imensa caleche dos Velosos, rolaram sob a noite, entre os nossos
desejos de boa jornada. Pôr fim D. Teotônio calçou as luvas
pretas e entrou para sua caleche, dizendo a Jacinto:
-Pois, primo e amigo, Deus permita que, do nosso encontro, e do mais que
se passar, algum bem resulte a esta terra!
Subindo a escada, o meu Príncipe desabafou:
-Este Teotônio é extraordinário! Sabes o que descobri
pôr fim?… Que me toma pôr um miguelista, e imagina que eu vim
para Tormes preparar a rstauração de D. Miguel?!
-E tu?
-Eu fiquei tão espantado, que nem o desiludi!
-Pois sabe mais, meu pobre amigo. Todos pensam o mesmo, estão desconfiados,
e receiam ver de novo erguidas as forcas em Guiães! E corre que tu
tens o Príncipe D. Miguel escondido em Tormes, disfarçado em
criado. E sabes quem ele é? o Batista!
-Isso é sublime! – murmurou Jacinto, com uns grandes olhos abertos.
Na sala, a tia Vicência esperava-nos desconsolada, entre todas as luzes,
que ardiam ainda no silêncio e paz do serão debandado:
-Ora uma coisa assim! Nem quererem ficar para tomar um copinho de geléia,
um cálice de vinho do Porto!
-Esteve tudo muito desanimado, tia Vicência! – exclamei desafogando
o meu tédio. – Todo esse mulherio emudeceu; os amigos com um ar desconfiado…
Jacinto protestou, muito divertido, muito sincero:
-Não! pelo contrário. Gostei menso. Excelente gente! E tão
simples… todas estas raparigas me pareceram ótimas. E tão
frescas tão alegres! Vou ter aqui bons amigos, quando verificarem que
não sou miguelista.
Então contamos à tia Vicência a prodigiosa história
de D. Miguel escondido em Tormes… Ela ria! Que coisa! E mau seria…
-Mas o Sr. Jacinto, não é?
-Eu, minha senhora, sou socialista…
Acudi explicando à tia Vicência que socialista era ser pelos
pobres. A doce senhora considerava esse partido o melhor, o verdadeiro:
-O meu Afonso, que Deus haja, era liberal… Meu pai também, e até
amigo do Duque da Terceira…
Mas um rude trovão rolou, atroou a noite negra: – e uma bátega
de água cantou nos vidros, e nas pedras da varanda.
-Santa Bárbara! – gritou a tia Vicência. – Ai aquela pobre gente!…
Até estou com cuidado… As Rojões, que vão na vitória!
E correu para o quarto, na sua pressa de acender as duas velas costumadas
no oratório, ainda antes de ir guardar as pratas, e rezar o terço
com a Gertrudes.
Capítulo XIV
Ao outro dia, depois do almoço, eu e Jacinto montamos a cavalo para
um grande passeio até a Flor da Malva, a saber de meu tio Adrião,
e do seu furúnculo. E sentia uma curiosidade interessada, e até
inquieta, de testemunhar a impressão que daria ao meu Príncipe
aquela nossa prima Joaninha, que era o orgulho da nossa casa. Já nessa
manhã, andando todos no jardim a escolher uma bela rosa-chá
para a botoeira do meu Príncipe, a tia Vicência celebrara com
tanto fervor a beleza, a graça, a caridade, e a doçura da sua
sobrinha toda-amada, que eu protestei:
-Ó! tia Vicência, olhe que esses elogios todos competem apenas
à virgem Maria! A tia Vicência está a cair em pecado de
idolatria! O Jacinto depois vai encontrar uma criatura apenas humana, e tem
um desapontamento tremendo!
E agora, trotando pela fácil estrada de Sandofim, lembrava-me aquela
manhã, no 202, em que Jacinto encontrara o retrato dela no meu quarto,
e lhe chamara uma lavradeirona. Com efeito, era grande e forte a Joaninha.
Mas a fotografia datada do seu tempo de viço rústico, quando
ela era apenas uma bela, forte e sã planta da serra. Agora entrava
nos vinte e cinco, e já pensava, e sentia – e a alma que nela se formara,
afinara, amaciara, e espiritualizava o seu esplendor rubicundo.
A manhã, com o céu todo purificado pela trovoada da véspera,
e as terras reverdecidas e lavadas pelos chuviscos ligeiros, oferecia uma
doçura luminosa, fina, fresca que tornava doce, como diz o velho Eurípedes
ou o velho Sófocles, mover o corpo, e deixar a alma preguiçar,
sem pressa nem cuidados. A estrada não tinha sombra, mas o sol batia
muito de leve, e roçava-nos com uma carícia quase alada. O vale
parecia a Jacinto, que nunca ali passara, uma pintura da Escola Francesa do
século XVIII, tão graciosamente nele ondulavam as terras verdes,
e com tanta paz e frescura corria o risonho Serpão, e tão afáveis
e prometedores de fartura e contentamento alvejavam os casais nas verduras
tenras! Os nossos cavalos caminhavam num passo pensativo, gozando também
a paz da manhã adorável. E não sei, nunca soube, que
plantazinhas silvestres e escondidas espalhavam um delicado aroma, que tantas
vezes sentira, naquele caminho, ao começar o Outono.
-Que delicioso dia! – murmurou Jacinto. – Este caminho para a Flor da Malva
é o caminho do Céu… Ó Zé Fernandes, de que é
este cheirinho tão doce, tão bom?
Eu sorri, com certo pensamento:
-Não sei… É talvez já o cheiro do Céu!
Depois, parando o cavalo, apontei com o chicote para o vale:
-Olha, acolá, onde está aquela fila de olmos, e há o
riacho, já são terras do tio Adrião. Tem ali um pomar,
que dá os pêssegos mais deliciosos de Portugal… Hei de pedir
à prima Joaninha que te mande um cesto deles. E o doce que ela faz
com esses pêssegos, menino, é alguma coisa de celeste. Também
lhe hei de pedir que te mande o doce.
Ele ria:
-Será explorar demais a prima Joaninha.
E eu (pôr quê?) recordei e atirei ao meu Príncipe estes
dois versos duma balada cavalheiresca, composta em Coimbra pelo meu pobre
amigo Procópio:
-Manda-lhe um servo querido,
Bem hajas dona formosa!
E que lhe entregue um anel
E com um anel uma rosa.
Jacinto riu alegremente:
-Zé Fernandes, seria excessivo, só pôr causa de meia
dúzia de pêssegos, e dum boião de doce.
Assim ríamos, quando apareceu, à volta da estrada, o longo
muro da Quinta dos Velosos, e depois a capelinha de S. José de Sandofim.
E imediatamente piquei para o largo, para a taberna do Torto, pôr causa
daquele vinhinho branco, que sempre, quando pôr ali a levo, a minha
alma me pede. O meu Príncipe reprovou, indignado:
-Ó! Zé Fernandes, pois tu, a esta hora, depois de almoço,
vais beber vinho branco?
-É um costumezinho antigo… Aqui à taberninha do Torto…Um
decilitrozinho… A almazinha assim, mo pede.
E paramos; eu gritei pelo Manuel, que apareceu, rebolando a sua grossa pança,
sobre as pernas tortas, com a infusa verde, e um copo.
-Dois copos, Torto amigo. Que aqui este cavalheiro também aprecia.
Depois dum pálido protesto, o meu Príncipe também quis,
mirou o límpido e dourado vinho ao sol, provou, e esvaziou o copo,
com delícia, e um estalinho de alto apreço.
-Delicioso vinho!… Hei de querer deste vinho em Tormes…É perfeito.
-Hem? Fresquinho, leve, aromático, alegrador, todo alma!…Encha lá
outra vez os copos, amigo Torto. Este cavalheiro aqui é o Sr. D. Jacinto,
o fidalgo de Tormes.
Então, de trás da ombreira da taberna, uma grande voz bradou,
cavamente, solenemente:
-Bendito seja o Pai dos Pobres!
E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe comiam
a face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão,
com uma caixa de lata a tiracolo, e cravou em Jacinto dois olhinhos dum negro,
que faiscavam. Era o tio João Torrado, o profeta da Serra… Logo lhe
estendi a mão, que ele apertou, sem despegar de Jacinto os olhos, que
se dilatavam mais negros. Mandei vir outro copo, apresentei Jacinto, que corara,
embaraçado.
-Pois aqui o tem, o senhor Jacinto, que corara, embaraçado.
-Pois aqui o tem, o senhor de Tormes, que fez pôr aí todo esse
bem à pobreza.
O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía cabeludo
e quase negro duma manga muito curta.
-A mão!
E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João
Torrado longamente lha reteve com um sacudir lento e pensativo, murmurando:
-Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão
já rara!
Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa lentidão,
limpou as barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a caixa de
lata, e batendo com a ponta do cajado no chão:
-Pois louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo, que pôr aqui me trouxe,
que não perdi o meu dia, e vi um homem!
Eu então debrucei-me para ele, mais em confidência:
-Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo
você dizer pôr aí, pelos sítios, que El-Rei D. Sebastião
voltara?
O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo de
espalhada barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como seguindo
a percussão dos seus pensamentos:
-Talvez voltasse, talvez não voltasse… Não se sabe quem vai,
nem quem vem. A gente vê os corpos, mas não vê as almas
que estão dentro. Há corpos de agora com almas de outrora. Corpo
é vestido, alma é pessoa…Na feira da Roqueirinha quem sabe
com quantos reis antigos se topa, quando se anda aos encontrões entre
os vaqueiros… Em ruim corpo se esconde bom senhor!
E como ele findara num murmúrio, eu, atirando um olhar a Jacinto,
para gozarmos aqueles estranhos, pitorescos modos de vidente, insisti:
-Mas, ó tio João, você realmente, em sua consciência,
pensa que El-Rei D. Sebastião não morreu na batalha?
O velho ergueu para mim a face, que enrugara numa desconfiança:
-Essas coisas são muito antigas. E não calham bem aqui à
porta do Torto. O vinho era bom, e V. Srª tem pressa, meu menino! A flor
da Flor da Malva lá tem o paizinho doente… Mas o mal já vai
pela serra abaixo com a inchação às costas. Dá
gosto ver quem dá gosto aos tristes. Pôr cima de Tormes há
uma estrela clara. E é trotar, trotar, que o dia está lindo!
Com a magra mão lançou um gesto para que seguíssemos.
E já passávamos o cruzeiro, quando o seu brado ardente de novo
reboou, com solenidade cava:
-Bendito seja o Pai dos Pobres!
Direito, no meio da estrada, erguia o cajado como dirigindo as aclamações
dum povo. E Jacinto pasmava de que ainda houvesse no reino um Sebastianista.
-Todos o somos ainda em Portugal, Jacinto! Na serra ou na cidade cada um
espera o seu D. Sebastião. Até a lotaria da Misericórdia
é uma forma de Sebastianismo. Eu todas as manhãs, mesmo sem
ser de nevoeiro, espreito, a ver se chega o meu.. Ou antes a minha, porque
eu espero uma D. Sebastiana… E tu, felizardo?
-Eu? Uma D. Sebastiana? Estou muito velho, Zé Fernandes… Sou o último
Jacinto; Jacinto ponto final… Que casa é aquela com os dois torreões?
-A Flor da Malva.
Jacinto tirou o relógio:
-São três horas. Gastamos hora e meia… Mas foi um belo passeio,
e instrutivo. É lindo este sítio.
Sobre um outeirinho, afastada da estrada pôr arvoredo, que um muro
cerrava, e dominando, a Flor da Malva voltava para o Oriente e para o Sol
a sua longa fachada com os dois torreões quadrados, onde as janelas,
de varanda, eram emolduradas em azulejos. O grande portão de ferro,
ladeado pôr dois bancos de pedra, ficava ao fundo do terreirinho, onde
um imenso castanheiro derramava verdura e sombra. Sentado sobre as fortes
raízes descarnadas da grande árvore, um pequeno esperava segurando
um burro pela arreata,
-Está pôr aí o Manuel da Porta?
-Ainda agora subiu pela alameda.
-Bem: empurra lá o portão.
E subimos, pôr uma curta avenida de velhas árvores, até
outro terreiro, com um alpendre, uma casa de moços, toda coberta de
heras, e uma casota de cão, de onde saltou, com um rumor de corrente
arrastada, um molosso, o Tritão, que eu logo sosseguei fazendo-lhe
reconhecer o seu velho amigo Zé Fernandes. E o Manuel da Porta correu
da fonte, onde enchia um grande balde, para nos segurar os cavalos.
-Como está o tio Adrião?
Surdo, o excelente Manuel sorriu, deleitado:
-E então vossa excelência, bem? A Srª D. Joaninha ainda
agora andava no laranjal com o pequeno da Josefa.
Seguimos pôr ruazinhas bem areadas, orladas de alfazema e buxo alto,
enquanto eu contava ao meu Príncipe que aquele pequenito da Josefa
era um afilhadinho da prima Joana, e agora o seu encanto e o seu cuidado todo.
-Esta minha santa prima, apesar de solteira, tem aí pela freguesia
uma verdadeira filharada. E não é só dar-lhes roupas
e presentes, e ajudar as mães. Mas até os lava, e os penteia,
e lhes trata as tosses. Nunca a encontro sem alguma criancita ao colo… Agora
anda na paixão deste Josezinho.
Mas quando chegamos ao laranjal, à beira da larga rua da Quinta que
levava ao tanque, debalde procurei, e me embrenhei, e até gritei: –
Eh, prima Joaninha!…
-Talvez esteja lá para baixo, para o tanque…
Descemos a rua, entre árvores, que a cobriam com as densas ramas encruzadas.
Uma fresca, límpida água de regra corria e luzia num caneiro
de pedra. Entre os troncos, as roseiras bravas ainda tinham uma frescura de
Verão. E o pequeno campo, que se avistava para além, rebrilhava
com doçura, todo amarelo e branco, dos malmequeres e botões
de ouro.
O tanque, redondo, fora esvaziado para se lavar, e agora de novo o repuxo
o ia enchendo duma água muito clara, ainda baixa, onde os peixes vermelhos
se agitavam na alegria de recuperarem o seu pequeno oceano. Sobre um dos bancos
de pedra que circundavam o tanque, pousava um cesto cheio de dálias
cortadas. E um moço, que sobre uma escada podava as camélias,
vira a Srª D. Joana seguir para o lado da parreira. Marchamos para a
parreira, ainda toda carregada de uva preta. Duas mulheres, longe, ensaboavam
num lavadouro, na sombra de grandes nogueiras. Gritei: – Eh lá? Vocês
viram pôr aí a Srª D. Joana? Uma das moças esganiçou
a voz, que se perdeu no vasto ar luminoso e doce.
-Bem vamos a casa! Não podemos farejar assim, toda a tarde.
-É uma bela Quinta – murmurava o meu Príncipe, encantado.
-Magnífica! E bem tratada… O tio Adrião teve um feitor excelente…
Não é o teu Melchior. Observa, aprende, lavrador! Olha aquele
cebolinho!
Passamos pela horta, uma horta ajardinada, como sonhara o meu Príncipe,
com os seus talhões debruados de alfazema, e madressilva enroscada
nos pilares de pedra, que faziam ruazinhas frescas toldadas de parra densa.
E demos volta à capela, onde crescia aos dois lados da porta uma roseira-chá,
com uma rosa única, muito aberta, e uma moita de baunilha, onde Jacinto
apanhou um raminho para cheirar. Depois entramos no terraço em frente
da casa, com a sua balaustrada de pedra, toda enrodilhada de jasmineiros amarelos.
A porta envidraçada estava aberta e subimos pela escadaria de pedra,
no imenso silêncio em que toda a Flor da Malva repousava, até
a antecâmara, de altos tetos apainelados, com longos bancos de pau,
onde desmaiavam na sua velha pintura as complicadas armas dos Cerqueiras.
Empurrei a porta duma outra sala, que tinha as janelas da varanda abertas,
cada uma com a gaiola dum canário.
-É curioso! – exclamou Jacinto. – Parece o meu Presépio…
E as minhas cadeiras.
E com efeito. Sobre uma cômoda antiga, com bronzes antigos, pousava
um presépio, semelhante ao da livraria de Jacinto. E as cadeiras de
couro lavrado tinham, como as que ele descobrira no sótão, umas
armas sob um chapéu de Cardeal.
-Ó senhores! – exclamei. – Não haverá um criado?
Bati as mãos, fortemente. E o mesmo doce silêncio permaneceu,
muito largo, todo luminoso e arejado pelo macio ar da Quinta, apenas cortado
pelo saltitar dos canários nos poleiros das gaiolas.
-É o palácio da Bela adormecida no bosque! – murmurou Jacinto,
quase indignado. – Dá um berro!
-Não, caramba! Vou lá dentro!
Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha,
corada do passeio e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço,
que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua
pele, e o louro ondeado dos seus cabelos – lindamente risonha, na surpresa
que alargava os seus largos, luminosos olhos negros, e trazendo ao colo uma
criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta com uma camisinha, de grandes
laços azuis.
E foi assim que Jacinto, nessa tarde de Setembro, na Flor da Malva, viu aquela
com quem casou em Maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé
de roseira se cobrira todo de rosas.
Capítulo XV
E agora, entre roseiras que rebentam, e vinhas que se vindimam, já
cinco anos passaram sobre Tormes e a Serra. O meu Príncipe já
não é o último Jacinto, Jacinto ponto final – porque
naquele solar que decaíra, correm agora, com soberba vida, uma gorda
e vermelha Teresinha, minha afilhada, e um Jacintinho, senhor muito da minha
amizade. E, pai de família, principiara a fazer-se monótono,
pela perfeição da beleza moral, aquele homem tão pitoresco
pela inquietação filosófica, e pelos variados tormentos
da fantasia insaciada. Quando ele agora, bom sabedor das coisas da lavoura,
percorria comigo a Quinta, em sólidas palestras agrícolas, prudentes
e sem quimeras – eu quase lamentava esse outro Jacinto que colhia uma teoria
em cada ramo de árvore, e riscando o ar com a bengala, planejava queijeiras
de cristal e porcelana, para fabricar queijinhos que custariam duzentos mil-réis
cada um!
Também a paternidade lhe despertara a responsabilidade. Jacinto possuía
agora um caderno de contas, ainda pequeno, rabiscando a lápis, com
falhas, e papeluchos soltos entremeados, mas onde as suas despesas, as suas
rendas se alinhavam, como duas hostes disciplinadas.
Visitara já as suas propriedades de Montemor, da Beira; e consertava,
mobiliava as velhas casas dessas propriedades para que os seus filhos, mais
tarde, crescidos, encontrassem “ninhos feitos”. Mas onde eu reconheci
que definitivamente um perfeito e ditoso equilíbrio se estabelecera
na alma do meu Príncipe, foi quando ele, já saído daquele
primeiro e ardente fanatismo da Simplicidade – entreabriu a porta de Tormes
à Civilização. Dois meses antes de nascer a Teresinha,
uma tarde, entrou pela avenida de plátanos uma chiante e longa fila
de carros, requisitados pôr toda a freguesia, e acuculados de caixotes.
Eram os famosos caixotes, pôr tanto tempo encalhados em Alba de Tormes,
e que chegavam, para despejar a Cidade sobre a Serra. Eu pensei: – Mau! o
meu pobre Jacinto teve uma recaída! Mas os confortos mais complicados,
que continha aquela caixotaria temerosa, foram, com surpresa minha, desviados
para os sótãos imensos, para o pó da inutilidade; e o
velho solar apenas se regalou com alguns tapetes sobre os seus soalhos, cortinas
pelas janelas desabrigadas, e fundas poltronas, fundos sofás, para
que os repousos, pôr que ele suspirara, fossem mais lentos e suaves.
Atribuí esta moderação a minha prima Joaninha, que amava
Tormes na sua nudez rude. Ela jurou que assim o ordenara o seu Jacinto. Mas,
decorridas semanas, tremi. Aparecera, vindo de Lisboa, um contramestre, com
operários, e mais caixotes, para instalar um telefone!
-Um telefone, em Tormes, Jacinto?
O meu Príncipe explicou, com humildade:
-Para casa de meu sogro!… bem vês.
Era razoável e carinhoso. O telefone porém, sutilmente, mudamente,
estendeu outro longo fio, para Valverde. E Jacinto, alargando os braços,
quase suplicante:
-Para casa do médico. Compreendes…
Era prudente. Mas, certa manhã, em Guiães, acordei aos berros
da tia Vicência! Um homem chegara, misterioso, com outros homens, trazendo
arame, para instalar na nossa casa o novo invento. Sosseguei a tia Vicência,
jurando que essa máquina nem fazia barulho, nem trazia doenças,
nem atraía as trovoadas. Mas corri a Tormes. Jacinto sorriu, encolhendo
os ombros:
-Que queres? Em Guiães está o boticário, está
o carniceiro… E, depois, estás tu!
Era fraternal. Todavia pensei: Estamos perdidos! Dentro dum mês temos
a pobre Joana a apertar o vestido pôr meio duma máquina! Pois
não! o Progresso, que, à intimação de Jacinto,
subira a Tormes a estabelecer aquela sua maravilha, pensando talvez que conquistara
mais um reino para desfear, desceu, silenciosamente, desiludido, e não
avistamos mais sobre a serra a sua hirta sombra cor de ferro e de fuligem.
Então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera
o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura, de que tanto
tempo ele fora o Príncipe sem Principado. E uma tarde, no pomar, encontrando
o nosso velho Grilo, agora reconciliado com a serra, desde que a serra lhe
dera meninos para trazer às cavaleiras, observei ao digno preto, que
lia o seu Fígaro, armado de imensos óculos redondos:
-Pois, Grilo, agora realmente bem podemos dizer que o Sr. D. Jacinto está
firme.
O Grilo arredou os óculos para a testa, e levantando para o ar os
cinco dedos em curva como pétalas duma tulipa:
-Sua Exª brotou!
Profundo sempre o digno preto! Sim! Aquele ressequido galho da Cidade, plantado
na serra, pregara, chupara o humo do torrão herdado, criara seiva,
afundara raízes, engrossara de tronco, atirara ramos, rebentara em
flores, forte, sereno, ditoso, benéfico, nobre, dando frutos, derramando
sombra. E abrigados pela grande árvore, e pôr ela nutridos, cem
casais em redor a bendiziam.
XVI
Muitas vezes Jacinto, durante esses anos, falara com prazer num regresso
de dois, três meses, ao 202, para mostrar Paris à prima Joaninha.
E eu seria o companheiro fiel, para arquivar os espantos da minha serrana
ante a Cidade! Depois conveio em esperar que o Jacintinho completasse dois
anos, para poder jornadear sem desconforto, e apontando já com o seu
dedo para as coisas da civilização. Mas quando ele, em Outubro,
fez esses dois anos desejados, a prima Joaninha sentiu uma preguiça
imensa, quase aterrada, do comboio, do estridor da Cidade, do 202, e dos seus
esplendores. “Estamos aqui tão bem! está um tempo tão
lindo!” murmurava, deitando os braços, sempre deslumbrada, ao
rijo pescoço do seu Jacinto. Ele desistia logo de Paris, encantado.
“Vamos para Abril, quando os castanheiros dos Campos Elísios
estiverem em flor!” Mas em Abril vieram aqueles cansaços que
imobilizavam a prima Joaninha no divã, ditosa, risonha, com umas pintas
na pele, e o roupão mais solto. Pôr todo um longo ano estava
desfeita a alegre aventura. Eu andava então sofrendo de desocupação.
As chuvas de Março prometiam uma farta colheita. Uma certa Ana Vaqueira,
corada e bem feita, viúva, que sortia as necessidades do meu coração,
partira com o irmão par ao Brasil, onde ele dirigia uma venda. Desde
o Inverno, sentia também no corpo como um começo de ferrugem,
que o emperrava, e certamente, algures, na minha alma, nascera uma pontinha
de bolor. Depois a minha égua morreu… Parti eu para paris.
Logo em Hendaia, apenas pisei a doce terra de frança, o meu pensamento,
como pombo a um velho pombal, voou ao 202 – talvez pôr eu ver um enorme
cartaz em que uma mulher nua, com flores bacânticas nas tranças,
se estorcia, segurando numa das mãos uma garrafa, espumante, e brandindo
na outra, para o anunciar ao Mundo, um novo modelo de saca-rolhas. E oh surpresa!
Eis que, logo adiante, na estação quieta e clara de Saint-Jean-de-Luz,
um moço esbelto, de perfeita elegância, entra vivamente no meu
compartimento, e, depois de me encarar, grita:
-Eh, Fernandes!
Marizac! O duque de Marizac! Era já o 202… Com que reconhecimento
lhe sacudi a mão fina, pôr ele me Ter reconhecido! E atirando
para o canto do vagão um paletó, um maço de jornais,
que o escudeiro lhe passara, o bom Marizac exclamava na mesma surpresa alegre:
-E Jacinto?
Contei Tormes, a serra, o seu primeiro amor pela Natureza, o seu outro grande
amor pôr minha prima, e os dois filhos, que ele trazia escarranchados
no pescoço.
-Ah que canalha! – exclamou Marizac com os olhos espetados em mim. – É
capaz de ser feliz!
-Espantosamente, loucamente… Qual! Não há advérbios…
-Indecentemente – murmurou Marizac muito sério. – Que canalha!
Eu então desejei saber do nosso rancho familiar do 202. Ele encolheu
os ombros, acendendo a cigarrilha:
-Todo esse mundo circula…
-Madame de Oriol?
-Continua.
-Os Trèves? o Efraim?
-Continuam, todos três.
Lançou um gesto lânguido.
-Durante cinco anos, em Paris, tudo continua… As mulheres com um pouco
mais de pó-de-arroz, e a pele um pouco mais mole, e melada. Os homens
com um tanto mais de dispepsia. E tudo segue. Tivemos os Anarquistas. A princesa
de Carman abalou com um acrobata do Circo de Inverno… e – e voilá!
-Dornan?
-Continua… Não o encontrei mais desde o 202… Mas vejo às
vezes o nome dele, no Boulevard, com versos preciosos, obscenidades muito
apuradas, muito sutis.
-E o Psicólogo?… Ora, como se chamava ele?…
-Continua também. Sempre com as feminices a três francos e cinqüenta…
Duquesas em camisa, almas nuas… coisas que se vendem bem!
Mas quando eu, encantado, ia indagar de Todelle, do Grão-Duque, o
comboio entrou na estação de Biarritz: – e rapidamente, apanhando
o paletó e os jornais, depois de me apertar a mão, o delicioso
Marizac saltou pela portinhola, que o seu criado abrira, gritando:
-Até Paris!… Sempre rue Cambori.
Então, no compartimento solitário, bocejei, com uma estranha
sensação de monotonia, de saciedade, como cercado já
de gentes muito vistas, murmurando histórias muito sabidas, e coisas
muito ditas, através dos sorrisos estafados. Dos dois lados do comboio
era a longa planície monótona, sem variedade, muito miudamente
cultivada, muito miudamente retalhada, dum verde de resedá, verde-cinzento
e apagado, onde nenhum lampejo, nem tom alegre de flor, nem acidente do solo,
desmanchavam a mediocridade discreta e ordeira. Pálidos choupos, em
renques pautados e finos, bordavam canaizinhos muito direitos e claros. Os
casais, todos da mesma cor pardacenta, mal se elevavam do solo, mal se destacavam
da verdura desbotada, como encolhidos na sua mediocridade e cautela. E o céu,
pôr cima, liso, sem uma nuvem, com um sol descorado, parecia um vasto
espelho muito lavado a grande água, até que de todo se lhe safasse
o esmalte e o brilho. Adormeci numa doce insipidez.
Com que linda manhã de Maio entrei em Paris! Tão fresca e fina,
e já macia, que, apesar de cansado, mergulhei com repugnância
no profundo, sombrio leito do Grande-Hotel, todo fechado de espessos veludos,
grossos cordões, pesadas borlas, como um palanque de gala. Nessa profunda
cova de penas sonhei que em Tormes se construíra uma torre Eiffel,
e que em volta dela as senhoras da Serra, as mais respeitáveis, a própria
tia Albergaria, dançavam, nuas, agitando no ar saca-rolhas imensos.
Com as comoções deste pesadelo, e depois o banho, e o desemalar
da mala, já se acercavam as duas horas quando enfim emergi do grande
portão, pisei, ao cabo de cinco anos, o Boulevard. E imediatamente
me pareceu que todos esses cinco anos eu ali permanecera à porta do
Grand-Hotel, tão estafadamente conhecido me era aquele estridente rolar
da cidade, e as magras árvores, e as grossas tabuletas, e os imensos
chapéus emplumados sobre tranças pintadas de amarelo, e as empertigadas
sobrecasacas com grossas rosetas da legião de honra, e os garotos,
em voz rouca e baixa, oferecendo baralhos de cartas obscenas, caixas de fósforos
obscenas… Santo Deus! Pensei, há que anos eu estou em Paris! Comprei,
então, num quiosque, um jornal, a Voz de Paris, para que ele me contasse,
durante o almoço, as novas da Cidade. A mesa do quiosque desaparecia,
durante o almoço, as novas da Cidade. A mesa do quiosque desaparecia,
alastrada de jornais ilustrados: – e em todos se repetia a mesma mulher, sempre
nua, ou meio despida, ora mostrando as costelas magras, de gata faminta, ora
voltando para o Leitor duas tremendas nádegas… Eu outra vez murmurei:
– Santo Deus! No café da Paz, o criado lívido, e com um resto
de pó-de-arroz sobre a sua lividez, aconselhou ao meu apetite, pôr
ser tão tarde, um linguado frito e uma costeleta.
-E que vinho, Sr.Conde?
-Chablis, Sr. Duque!
Ele sorriu à minha deliciosa coluna, através duma prosa muito
retorcida, toda em brilhos de jóia barata, entrevi uma Princesa nua,
e um Capitão de Dragões, que soluçava. Saltei a outras
colunas, onde se contavam feitos de cocottes de nomes sonoros. Na outra página
escritores eloqüentes celebravam vinhos digestivos e tônicos. Depois
eram os crimes do costume. – Não há nada de novo! Pus de parte
a Voz de Paris – e então foi, entre mim e o linguado, uma luta pavorosa.
O miserável, que se frigira rancorosamente contra mim, não consentia
que eu descolasse da sua espinha uma febra escassa. Todo ele se ressequira
numa sola impenetrável e tostada, onde a faca vergava, impotente e
trêmula. Gritei pelo moço lívido, o qual, com faca mais
rija, fincando no soalho os sapatos de fivela, arrancou enfim àquele
malvado duas tirinhas, finas e curtas como palitos, que engoli juntas, e me
esfomearam. Duma garfada findei a costela. E paguei quinze francos com um
bom luís de ouro. No troco, que o moço me deu, com a polidez
requintada duma civilização muito difundida, havia dois francos
falsos. E pôr aquela doce tarde de Maio saí para tomar no terraço
um café cor de chapéu-coco, que sabia a fava.
Com o charuto aceso contemplei o Boulevard, àquela hora em toda a
pressa e estritor da sua grossa sociabilidade. A densa torrente dos ônibus,
calhambeques, carroças, parelhas de luxo, rolava vivamente, como toda
uma escura humanidade formigando entre patas e rodas, numa pressa inquieta.
Aquele movimento continuado e rude bem depressa entonteceu este espírito,
pôr cinco anos afeito à quietação das serras imutáveis.
Tentava então, puerilmente, repousar nalguma forma imóvel, ônibus
parado, fiacre que estacara num brusco escorregar da pileca; mas logo algum
dorso apressado se encafuava pela portinhola da tipóia, ou um cacho
de figuras escuras trepava sofregamente para o ônibus: – e, recomeçava
o rolar retumbante . Imóveis, decerto, estavam os altos prédios
hirtos, ribas de pedra e cal, que continham, disciplinavam, aquela torrente
ofegante. Mas da rua aos telhados, em cada varanda, pôr toda a fachada,
eram tabuletas encimando tabuletas, que outras tabuletas apertavam: – e mais
me cansava o perceber a tenaz incessância do trabalho latente, a devorante
canseira do lucro, arquejante pôr trás das frontarias decorosas
e mudas. Então, enquanto fumava o meu charuto, estranhamente se apossaram
de mim os sentimentos que Jacinto outrora experimentara no meio da Natureza,
e que tanto me divertiam. Ali, à porta do café, entre a indiferença
e a pressa da Cidade, também eu senti, como no Campo, a vaga tristeza
da minha fragilidade e da minha solidão Bem certamente estava ali como
perdido num mundo, que não era fraternal. Quem me conhecia? Quem se
interessaria pôr Zé Fernandes? Se eu sentisse fome, e o confessasse,
ninguém me daria metade do seu pão. Pôr mais aflitamente
que a minha face revelasse uma angústia, ninguém na sua pressa
pararia para me consolar. De que me serviriam também as excelências
da alma, que só na alma florescem? Se eu fosse um santo, aquela turba
não se importaria com a minha santidade; e se eu abrisse os braços
e gritasse, ali no Boulevard – “ oh homens, mais ferozes que o lobo
ante o Pobrezinho de Assis, ririam e passariam indiferentes. Dois impulsos
únicos, correspondendo a duas funções únicas,
parecia estarem vivos naquela multidão – o lucro e o gozo. Isolada
entre eles, e ao contágio ambiente da sua influência, em breve
a minha alma se contrairia, se tornaria num duro calhau de Egoísmo.
Do ser que eu trouxera da Serra só restaria em pouco tempo esse calhau,
e nele, vivos, os dois apetites da cidade – encher a bolsa, saciar a carne!
E pouco a pouco as mesmas exagerações de Jacinto perante a Natureza
me invadiam perante a cidade. Aquele Boulevard reçumava para mim um
bafo mortal, extraído dos seus milhões de micróbios.
De cada porta me parecia sair um ardil para me roubar. Em cada face avistada
à portinhola dum fiacre, suspeitava um bandido em manobra. Todas as
mulheres me pareciam caiadas como sepulcros, tendo só podridão
pôr dentro. E considerava duma melancolia funambulesca as formas de
toda aquela Multidão, a sua pressa áspera e vã, a afetação
das atitudes, as imensas plumas das chapeletas, as expressões postiças
e falsas, a pompa dos peitos alteados, o dorso redondo dos velhos olhando
as imagens obscenas da vitrinas. Ah! tudo isto era pueril, quase cômico
da minha parte, mas é o que eu sentia no Boulevard, pensando na necessidade
de mergulhar na Serra, para que ao seu puro ar se me despegasse a crosta da
Cidade, e eu ressurgisse humano, e Zé Fernandico!
Então, para dissipar aquele pesadume de solidão, paguei o café
e parti, lentamente, a visitar o 202. Ao passar na Madalena, diante da estação
dos ônibus, pensei: – Que será feito de Madame Colombe? E, oh
miséria! Pelo meu miserável ser subiu uma curta e quente baforada
de desejo bruto pôr aquela besta suja e magra! Era o charco onde eu
me envenenara, e que me envolvia nas emanações sutis do seu
veneno. Depois, ao dobrar da rue Royale para a praça da Concórdia,
topei com um robusto e possante homem, que estacou, ergueu o braço,
ergueu o vozeirão, num modo de comando:
-Eh, Fernandes!
O Grão-Duque! O belo Grão-Duque, de jaquetão alvadio
e chapéu tirolês cor de mel! Apertei com gratidão reverente
a mão do Príncipe, que me reconhecera.
-E Jacinto? Em Paris?…
Contei Tormes, a serra, o rejuvenescimento do nosso amigo entre a Natureza,
a minha doce prima, e os bravos pequenos, que ele trazia às cavaleiras.
O Grão-Duque encolheu os ombros, desolado:
-Ó lá, lá, lá!… Peuh! Casado, na aldeia, com
filharada… Homem perdido! Ora não há!… E um rapaz útil!
Que nos divertia, e tinha gosto! Aquele Jantar cor-de-rosa foi uma festa linda…
Não se fez, não se tornou a fazer nada tão brilhante
em Paris… E Madame de Oriol… Ainda há dias a vi no Palácio
de Gelo… Potável, mulher ainda muito potável… Não
é todavia o meu gênero… adocicada, leitosa, pomadada, neve
à la vanile… Ora esse Jacinto!…
-E vossa Alteza, em Paris, com demora?
O formidável homem baixou a face, franzida e confidencial:
-Nenhuma. Paris não se agüenta… está, estragado, positivamente
estragado…Nem se come! Agora é o Ernest, da Praça Gailon,
o Ernest, que era maître-d’hotel do Maire… Já lá
comeu? Um horror. Tudo é o Ernest, agora! Onde se come? No Ernest.
Qual! Ainda esta manhã lá almocei… Um horror! Uma salada Chambord…
palhada! Não tem a noção da salada! Paris foi! Teatros,
uma estopada. Mulheres, hui! Lambidas todas. Não há nada! Ainda
assim, num dos teatritos de Montmartre, na Roulotte, está uma revista,
que se vê: Para cá as mulheres! – engraçada, bem despida…
A Celestine tem uma cantiga, meio sentimental, meio porca, o Amor no Water-Closet,
que diverte, tem topete… Onde está, Fernandes?
-No Grand-Hotel, meu senhor.
-Que barraca!… E o seu Rei sempre bom?
Curvei a cabeça:
-Sua Majestade, bem.
-Estimo! Pois, Fernandes, tive prazer… Esse Jacinto é que me desola!
Vá ver a Revista… Boas pernas, a Celestine… E tem graça
o tal Amor no Water-Closet.
Um rijíssimo aperto de mão – e S. Alteza subiu pesadamente
para a vitória, ainda com um aceno amável, que me penhorou…
Excelente homem, este Grão-Duque! Mais reconciliado com Paris, atravessei
para os Campos Elísios. Em toda a sua nobre e formosa largueza, toda
verde, com os castanheiros em flor, corriam, subindo, descendo, velocípedes.
Parei a contemplar aquela fealdade nova, estes inumeráveis espinhaços
arqueados, e gâmbias magras, agitando-se desesperadamente sobre duas
rodas. Velhos gordos, de cachaço escarlate, pedalavam, gordamente.
Galfarros, esguios, de tíbias descarnadas, fugiam numa linha esfuziada.
E as mulheres, muito pintadas, de bolero curto, calções bufantes,
giravam, mais rapidamente ainda, no prazer equívoco da carreira, escarranchadas
em hastes de ferro. E a cada instante outras medonhas máquinas passavam,
vitórias e faetontes a vapor, com uma complicação de
tubos e caldeiras, torneiras e chaminés, rolando numa trepidação
estridente e pesada, espalhando um grosso fedor de petróleo. Segui
para o 202, pensando no que diria um grego do tempo de Fídias, se visse
esta nova beleza e graça do caminhar humano!…
No 202, o porteiro, o velho Vian, quando me reconheceu, mostrou uma alegria
enternecedora. Não se fartou de saber do casamento de Jacinto, e daqueles
queridos meninos. E era para ele uma felicidade que eu aparecesse, justamente
quando tudo se andara limpando para a entrada da Primavera. Quando penetrei
na amada casa senti vivamente a minha solidão. Não restava em
toda ela nem um dos costumados aspectos que fizessem reviver a velha camaradagem
com o meu Príncipe. Logo na antecâmara grandes lonas cobriam
as tapeçarias heróicas, e igual lona escondia os estofos das
cadeiras e dos muros, e as largas estantes de ébano da Biblioteca,
onde os trinta mil volumes, nobremente enfileirados como doutores num Concílio,
pareciam separados do mundo pôr aquele pano que sobre eles descera depois
de finda a comédia da sua força e da sua autoridade. No gabinete
de Jacinto, de sobre a mesa de escrita, desaparecera aquela confusão
de instrumentozinhos, de que eu perdera já a memória; e só
a Mecânica suntuosa, pôr sobre peanhas e pedestais, recentemente
espanejada, reluzia, com as suas engrenagens, tubos, rodas, rigidezes de metais,
numa frieza inerte, na inatividade definitiva das coisas desusadas, como já
dispostas num Museu, para exemplificar a instrumentação caduca
dum mundo passado. Tentei mover o telefone, que se não moveu; a mola
da eletricidade não acendeu nenhum lume: todas as forças universais
tinham abandonado o serviço do 202, como servos despedidos. E então,
passeando através das salas, realmente me pareceu que percorria um
museu de antigüidades; e que mais tarde outros homens, com uma compreensão
mais pura e exata da vida e da Felicidade, percorreriam, como eu, longas salas,
atulhadas com os instrumentos da supercivilização, e, como eu,
encolheriam desdenhosamente os ombros ante a grande Ilusão que findara,
agora para sempre inútil, arrumada como um lixo histórico, guardado
debaixo da lona.
Quando saí do 202 tomei um fiacre, subi ao Bosque de Bolonha. E apenas
rolara momentos pela Avenida das Acácias, no silêncio decoroso,
unicamente cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando
a areia, comecei a reconhecer as velhas figuras, sempre com o mesmo sorriso,
o mesmo pó-de-arroz, as mesmas pálpebras amortecidas, os mesmos
olhos farejantes, a mesma imobilidade de cera! O romancista da Couraça
passou numa vitória, fixou em mim o monóculo defumado, mas permaneceu
indiferente. Os bandós negros de Madame Verghane, tapando-lhe as orelhas,
pareciam ainda mais furiosamente negros entre a harmonia de todo o branco
que a vestia, chapéu, plumas, flores, rendas e corpete, onde o seu
peito imenso se empolava como uma onda. No passeio, sob as Acácias,
espapado em duas cadeiras, o diretor do Boulevard mamava o resto de seu charuto.
E num landau, Madame de Trèves continuava o seu sorriso de há
cinco anos, com duas pregazinhas mais moles aos cantos dos lábios secos.
Abalei para o Grand-Hotel, bocejando – como outrora Jacinto. E findei o meu
dia de Paris, no Teatro das Variedades, estonteado com uma comédia
muito fina, muito aclamada, toda faiscante do mais vivo parisianismo, em que
todo o enredo se enrodilhava à volta duma Cama, onde alternadamente
se espojavam mulheres em camisa, sujeitos gordos em ceroulas, um coronel com
papas de linhaça nas nádegas, cozinheiras de meias de seda bordadas,
e ainda mais gente, ruidosa e saltitante, a esfuziar de cio e de pilhéria.
Tomei um chá melancólico no Julien, no meio de um áspero
e lúgubre namoro de prostitutas, fariscando a presa. Em duas delas,
de pele oleosa e cobreada, olhos oblíquos, cabelos duros e negros como
crinas, senti o Oriente, a sua provocação felina… Interroguei
o criado, um medonho ser, duma obesidade balofa e lívida, de eunuco.
O monstro explicou numa voz roufenha e surda:
-Mulheres de Madagáscar… Foram importadas quando a França
ocupou a ilha!
Arrastei então pôr Paris dias de imenso tédio. Ao longo
do Boulevard revi nas vitrinas todo o luxo, que já me enfartara havia
cinco anos, sem uma graça nova, uma curta frescura de invenção.
Nas livrarias, sem descobrir um livro, folheava centenas de volumes amarelos,
onde, de cada página que ao acaso abria, se exalava um cheiro morno
de alcova, e de pós-de-arroz, entre linhas trabalhadas com efeminado
arrebique, como rendas de camisas. Ao jantar, em qualquer restaurante, encontrava,
ornando e disfarçando as carnes ou as aves, o mesmo molho, de cores
e sabores de pomada, que já de manhã, noutro restaurante, espelhado
e dourejado, me enjoara no peixe e nos legumes. Paguei pôr grossos preços
garrafas do nosso adstringente e rústico vinho de Torres, enobrecido
com o título de Château isto, Château aquilo, e pó
postiço no gargalo. À noite, nos teatros, encontrava a Cama,
a costumada cama, como centro e único fim da vida, atraindo, mais fortemente
que o monturo atrai os moscardos, todo um enxame de gentes estonteadas, frementes
de erotismo, zumbindo chacotas senis. Esta sordidez da Planície me
levou a procurar melhor aragem de espírito nas alturas da Colina, em
Montmartre; e aí, no meio duma multidão elegante de Senhoras,
de Duquesas, de Generais, de todo o alto pessoal da Cidade, eu recebia, do
alto do palco, grossos jorros de obscenidades, que faziam estremecer de gozo
as orelhas cabeludas de gordos banqueiros, e arfar com delícia os corpetes
de Worms e de Doucet, sobre os peitos postiços das nobres damas. E
recolhia enjoado com tanto relento de alcova, vagamente dispéptico
com os molhos de pomada do jantar, e sobretudo descontente comigo, pôr
me não divertir, não compreender a Cidade, e errar através
dela e da sua Civilização Superior, com a reserva ridícula
dum Censor, dum Catão austero. Ó senhores! – pensava – pois
eu não me divertirei nesta deliciosa cidade? Entrará comigo
o bolor da velhice?
Passei as pontes, que separam em Paris o Temporal do Espiritual, mergulhei
no meu doce bairro Latino, evoquei, diante de certos cafés, a memória
da minha Nini; e, como outrora, preguiçosamente, subi as escadas da
Sorbona. Num anfiteatro, onde sentira um grosso sussurro, um homem magro,
com uma testa muito branca e larga, como talhada para alojar pensamentos altos
e puros, ensinava, falando das instituições da Cidade Antiga.
Mas, mal eu entrara, o seu dizer elegante e límpido foi sufocado pôr
gritos, urros, patadas, um tumulto rancoroso de troça bestial, que
saía da mocidade apinhada nos bancos, a mocidade das Escolas, Primavera
sagrada, em que eu fora flor murcha. O Professor parou, espalhando em redor
um olhar frio, e remexendo as suas notas. Quando o grosso grunhido se moderou
em sussurro desconfiado, ele recomeçou com alta serenidade. Todas as
suas idéias eram frias e substanciais, expressas numa língua
pura e forte, mas, imediatamente, rompe uma furiosa rajada de apitos, uivos,
relinchos, cacarejos de galo, pôr entre magras mãos, que se estendiam
levantadas para estrangular as idéias. Ao meu lado um velho, encolhido
na alta gola dum macfarlane de xadrezes, contemplava o tumulto com melancolia,
pingando endefluxado. Perguntei ao velho:
-Que querem eles? É embirração com o professor… é
política?
O velho abanou a cabeça, espirrando:
-Não… É sempre assim, agora, em todos os cursos… Não
querem idéias… Creio que queriam cançonetas. É o amor
da porcaria e da troça.
Então, indignado, berrei:
-Silêncio, brutos!
E eis que um abortozinho de rapaz, amarelado e sebento, de longas melenas,
umas enormes lunetas rebrilhantes, se arrebita, me fita, e me berra:
-Sale Maure!3
Ergui o meu grosso punho serrano – e o desgraçado, numa confusão
de melenas, com sangue pôr toda a face, aluiu, como um montão
de trapos moles, ganindo desesperadamente, enquanto o furacão de uivos
e cacarejos, guinchos e silvos, envolvia o Professor, que cruzara os braços,
esperando, com uma serenidade simples.
Desde esse momento decidi abandonar a fastidiosa Cidade; e o único
dia alegre e divertido que nela passei foi o derradeiro, comprando para os
meus queridinhos de Tormes brinquedos consideráveis, tremendamente
complicados pela Civilização – vapores de aço e cobre,
providos de caldeiras para viajar em tanques; leões de pele verídica
rugindo pavorosamente, bonecas vestidas pela Laferrière, com fonógrafo
no ventre…
Finalmente abalei uma tarde, depois de lançar da minha janela, sobre
o Boulevard, as minhas despedidas à Cidade:
-Pois adeuzinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na
poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens de bom,
que é o teu gênio, elegante e claro, lá o receberei na
Serra pelo correio. Adeuzinho!
Na tarde do seguinte Domingo, debruçado da janela do comboio, que
vagarosamente deslizava pela borda do rio lento, num silêncio todo feito
de azul e sol, avistei, na plataforma da quieta estação da minha
aldeia, os Senhores de Tormes, com a minha afilhada Teresa, muito vermelha,
arregalando os seus soberbos olhos, e o bravo Jacintinho, que empunhava uma
bandeira branca. O alvoroço ditoso com que abracei e beijei aquela
tribo bem-amada conviria perfeitamente a quem voltasse vivo duma guerra distante,
na Tartária. Na alegria de recuperar a Serra, até beijoquei
o chefe Pimentinha, que a estalar de obesidade se açodava gritando
ao carregador todo o cuidado com as minhas malas.
Jacinto, magnífico, de grande chapéu serrano e jaqueta, de
novo me abraçou:
-E esse Paris?
-Medonho!
Abri depois os braços para o bravo Jacintinho.
-Então para que é essa bandeira, meu cavaleiro?
-É a bandeira do Castelo! – declarou ele com uma bela seriedade nos
seus grandes olhos.
A mãe ria. Desde essa manhã, logo que soubera da chegada do
Ti-Zé, apareceu de bandeira, feita pelo Grilo, e não a largara
mais; com ela almoçara, com ela descera de Tormes!
Bravo! E, prima Joaninha, olhe que está magnífica! Eu, também,
venho daquelas peles meladas de Paris… Mas acho-a triunfal! E o tio Adrião,
e a tia Vicência?
-Tudo ótimo! – gritou Jacinto. – A serra, Deus louvado, prospera.
E agora, para cima! Tu hoje ficas em Tormes. Para contar da Civilização.
No largo pôr trás da estação, debaixo dos eucaliptos,
que revi com gosto, esperavam os três cavalos, e dois belos burros brancos,
um com cadeirinha para a Teresa, outro com um cesto de verga, para meter dentro
o heróico Jacintinho, um e outro servidos à estribeira, pôr
um criado. Eu ajudara a prima Joaninha a montar, quando o carregador apareceu
com um maço de jornais e papéis, que eu esquecera na carruagem.
Era uma papelada, de que me sortira na Estação de Orleães
toda recheada de mulheres nuas, de historietas sujas, de parisianismo, de
erotismo. Jacinto, que as reconhecera, gritou rindo:
-Deita isso fora!
E eu atirei, para um montão de lixo, ao canto do pátio, aquele
pútrido rebotalho da Civilização. E montei. Mas ao dobrar
para o caminho empinado da Serra, ainda me voltei, para gritar adeus ao Pimenta,
de quem me esquecera. O digno chefe, debruçado sobre o monturo, apanhava,
sacudia, recolhia com amor aquelas belas estampas, que chegavam de Paris,
contavam as delícias de Paris, derramavam através do mundo a
sedução de Paris.
Em fila começamos a subir para a Serra. A tarde adoçava o seu
esplendor de Estio. Uma aragem trazia, como ofertados, perfumes das flores
silvestres. As ramagens moviam, com um aceno de doce acolhimento, as suas
folhas vivas e reluzentes. Toda a passarinhada cantava, num alvoroço
de alegria e de louvor. As águas correntes, saltantes, luzidias, despediam
um brilho mais vivo, numa pressa mais animada. Vidraças distantes de
casas amáveis flamejavam com um fulgor de ouro. A Serra toda se ofertava,
na sua beleza eterna e verdadeira. E, sempre adiante da nossa fila, pôr
entre a verdura, flutuava no ar a bandeira branca, que o Jacintinho não
largava, de dentro do seu cesto, com a haste bem segura na mão. Era
a bandeira do Castelo, afirmara ele.
E na verdade me parecia que, pôr aqueles caminhos, através
da natureza campestre e mansa – o meu Príncipe, atrigueirado nas soalheiras
e nos ventos da Serra, a minha prima Joaninha, tão doce e risonha Sale
Maure! : Mouro imundo! Mãe, os dois primeiros representantes da sua
abençoada tribo, e eu – tão longe de amarguradas ilusões
e de falsas delícias, trilhando um solo eterno, e de eterna solidez,
com a alma contente, e Deus contente de nós, serenamente e seguramente
subíamos – para o Castelo do Grã-Ventura!
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