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Viajamos certa vez pelas regiões estéreis por onde há um século, puxado pelo negro, o carro triunfal de Sua Majestade o café passou, quando grossas nuvens reunidas no céu entraram a desmanchar-se.
Sinal certo de chuva.
Para confirmá-lo, um vento brusco, raspante, veio quebrar o mormaço, vascolejando a terra como a preveni-la do iminente banho meteórico. Remoinhos de poeira sorviam folhas e gravetos, que lá torvelinhavam em espirais pelas alturas.
Sofreando o animal, parei, a examinar o céu.
– Não há dúvida – disse ao meu companheiro – , temo-la e boa! O remédio é acoutar-nos quanto antes nalgum socavão, que água vem aí de rachar.
Circunvaguei o olhar em torno. Morraria áspera a perder-se de vista, sem uma casota de palha a acenar-nos com um “Vem cá”.
– E agora? – exclamou desnorteado o Jonas, marinheiro de primeira viagem, que tudo fiava da minha experiência.
Agora é galopar. Atrás deste espigão fica uma fazenda em ruínas, de má nota, mas único oásis possível nesta emergência. Casa do inferno, chama-lhe o povo.
– Pois toca para o inferno, já que o céu nos ameaça – retorquiu Jonas, dando de esporas e seguindo-me por um atalho.
– Tens coragem? – gritei-lhe. – Olha que é casa mal-assombrada!…
– Bem-vinda seja. Anos há que procuro uma, sem topar coisa que preste. Correntes que se arrastam pela calada da noite?
– Dum preto velho que foi escravo do defunto capitão Aleixo, fundador da fazenda, ouvi coisas de arrepiar…
Jonas, a criatura mais gabola deste mundo, não perdeu vasa duma pacholice:
– De arrepiar a ti, que a mim, bem sabes, só me arrepiam correntes de ar…
– Acredito, mas toca, que o dilúvio não tarda.
O céu enegrecera por igual. Um relâmpago fulgurou-se seguido de formidável ribombo, que lá se foi às cabeçadas pelos morros até perder-se distante. E os primeiros pingos vieram, escoteiro, pipocar no chão ressecado.
– Espora, espora!
Em minutos vingávamos o espigão, de cujo topo vimos a casaria maldita, tragada a meio pelo mataréu invasor.
Os pingões mais e mais se amiudavam, e já eram água de molhar quando a ferradura das bestas estrepitou, com faíscas, no velho terreiro de pedra. Sururucados por ele adentro rumo a um telheiro em aberto, lá apeamos afinal, esbaforidos, mas a salvo da molhadela.
E as bátegas vieram, furiosas, em acordas-d’água a prumo, como devia ser no chuveiro bíblico do dilúvio universal.
Examinei o couto. Telheiro de carros e tropa, derruído em parte. Os esteios, da cabiúna eterna, tinham nabos à mostra – tantos enxurros correram por ali erodindo o solo. Por eles marinhava a caetaninha, essa mimosa alcatifa dos tapumes, toda rosetada de flores amarelas e pingentada de melõezinhos de bico, cor de canário.
Também abobeiras viçavam na tapera, galgando vitoriosas pelos espeques para enfolharem no alto, entremeio das ripas e caibros a nu. Suas flores grandalhudas, tão caras às mamangavas, manchavam d’amarelo pálido o tom cru da folhagem ver-negra.
Fora, a pouca distância do telheiro, a “casa-grande” se erguia, vislumbrada apenas através da cortina d’água.
E a água a cair.
E a trovoada a escalejar seus ecos pela morraria intérmina.
E o meu amigo, tão calmo sempre e alegre, a exasperar-se:
– Raio de peste de tempo desgraçado! Já não posso almoçar em Vassouras amanhã, como pretendia.
– Chuva de corda não dura hora – consolei-o.
– Sim, mas será possível alcançar o tal pouso do Alonso ainda hoje?
Consultei o pulso.
– Cinco e meia. É tarde. Em vez de Alonso, temos que gramar o Aleixo. E dormir com as bruxas, mais a alma do capitão infernal.
– Inda é o que nos vale – filosofou o impertinente Jonas. – Que assim, ao menos, haverá o que contar amanhã.
ll
O temporal durou meia hora e ao cabo amainou, com os relâmpagos espacejados e os trovões a roncarem muito longe dali. Apesar de próxima a noite, inda tínhamos uma hora de luz para sondar o terreiro.
– Há de morar aqui por perto algum urumbeva – disse eu. – Não existe tapera sem lacraia. Vamos à cata desse abençoado urupê.
Encavalgamos de novo e saímos a rodear a fazenda.
– Acertaste, amigo! – exclamou de repente Jonas, ao divisar uma casinhola erguida entre moitas, a duzentos passos de distância. – Bico-de-papagaio, pé de mamão, terreiro limpo; é o urumbeva sonhando!
Para lá nos dirigimos e já do terreiro gritamos o “Ó de casa!” Uma porta se abriu-se, enquadrando o vulto dum negro velho, de cabelos ruços. Com que alegria o saudei…
– Pai Adão, viva!
– Vassuncristo! – respondeu o preto.
Era dos legítimos…
Pra sempre! – gritei eu. – Estamos aqui trancados pela chuva e impedidos de prosseguir viagem. Tio Adão há de…
– Tio Bento, pra servir os bancos.
– Tio Bento há de arranjar-nos pouso por esta noite.
– E bóia – acrescentou Jonas – , visto que temos a caixa das empadas a tinir.
O excelente negro sorriu-se, com a gengiva inteira à mostra, e disse:
– Pois é apeá. Casa de pobre, mas de bom coração. Quanto “de comer”, comidinha de negro velho, já sabe…
Apeamos, alegremente.
– Angu? – chasqueou o Jonas.
O negro riu-se.
– Já se foi o tempo do angu com “bacalhau”…
– E não deixou saudades, hein, tio Bento?
– Saudades não deixou, não, eh! eh!…
– Para vocês, pretos; porque entre os brancos muitos há que choram aquele tempo de vacas gordas. Não fosse o 13 de Maio e não estava agora eu aqui a arrebentar as unhas neste raio de látego, que encruou com a chuva e não desata. Era servicinho do pajem…
Desarreamos as bestas e depois de soltá-las penetramos na casinha, sobraçando os arreios. Vimos, então, que era pequena demais para nos abrigar aos três.
– Amigos Bento, olha, não cabemos tanta gente aqui. O melhor é acomodar-nos na casa-grande, que isto cá não é casa de bicho-homem, é ninho de cuitelo…
– Os brancos querem dormir na casa mal-assombrada? – exclamou admirado o preto.
– Não aconselho, não. Alguém já fez isso mas se arrependeu depois.
– Arrepender-nos-emos também depois, amanhã, mas já com a dormida no papo – disse Jonas.
E como o preto abrisse a boca:
– Você não sabe o que é coragem, tio Bento. Escoramos sete. E almas do outro mundo, então, uma dúzia! Vamos lá. Está aberta a casa?
– A porta do meio emperrou, mas à força de ombros deve abrir.
– Abandonada há muito tempo?
– “Quinzano!” Des’ que morreu o último filho do capitão Aleixo ficou assim, ninho de morcego e suindara.
– E por que abandonaram?
– “Descabeçada” do moço. Pra mim, castigo de Deus. Os filhos pagam a ruindade dos pais, e o capitão Aleixo, Deus que me perdoe, foi mau, mau, inteirado. Tinha fama! Aqui em dez léguas de roda, quem queria ameaçar um negro reinador era só dizer: “Espera, diabo, que te vendo pro capitão Aleixo”. O negro ficava que nem uma seda!…Mas o que ele fez os filhos pagaram. Eram quatro: Sinhozinho, o mais velho, que morreu “masgaiado” num trem; nhá zabelinha…
lll
Enquanto o preto falava, insensivelmente fomos caminhando para casa maldita.
Era o casarão clássico das antigas fazendas negreiras. Assombrado, erguido em alicerces e muramento de pedra até meia altura e daí por diante de pau-apique.
Esteios de cabreúva, entremostrando-se picados a enxó nos trechos donde se esboroara o reboco. Janelas e portas em arco, de bandeiras em pandarecos. Pelos interstícios da pedra amoitavam-se as samambaias; e nas faces de sombra, avenquinhas raquíticas. Num cunhal crescia anosa figueira, enlaçando as pedras na terrível cordoalha tentacular. À porta de entrada ia ter uma escadaria dupla, com alpendre em cima e parapeito esborcinado.
Pus-me a olhar para aquilo, invadido de saudade que sempre me causam ruínas, e parece que em Jonas a sensação era a mesma, pois que o vi muito sério, de olhar pregado na casa, como quem recorda. Perdera o bom humor, o espírito brincalhão de inda há pouco. Emudecera.
– Está visto – murmurei depois dalguns minutos. – Vamos agora à bóia, que não é sem tempo.
Voltamos.
O negro, que não parara de falar, agora de sua vida ali.
– Morreu tudo, meu branco, e fiquei eu só. Tenho umas plantas na beira do rio, palmito no mato e uma paquinha lá de vez em quando na ponta do chuço. Como sou só…
– Só, só, só?
– “Suzinho, suzinho!” A merência morreu faz três anos. Os filhos, não sei deles. Criança é como ave: cria pena, avoa. O mundo é grande – andam pelo mundo avoando…
– Pois, amigo Bento, saiba que você é um herói e um grande filósofo por cima, digno de ser memorando em prosa ou verso pelos homens que escrevem nos jornais. Mas filósofo de pior espécie está me parecendo aquele sujeito…
– Concluí referindo-me ao Jonas, que se atrasara e parara de novo em contemplação da casa.
Gritei-lhe:
– Mexe-te, ó poeta que ladras às lagartixas! Olha que saco vazio não se põe de pé, e temos dez léguas a engolir amanhã.
Respondeu-me com um gesto vago e ficou-se no lugar imóvel.
Larguei mão do cismabundo e entrei na casinhola do preto, que, acendendo luz – um candeeiro de azeite -, foi ao borralho buscar raízes de mandioca assada. Pô-las sobre um mocho, quentinhas, dizendo:
– É o que há. Isto e um restico de paca moqueada.
– E achas pouco, Bento? – disse eu, metendo os dentes na raiz deliciosa. – não sabes que se não fosse tua providencial presença teríamos de manducar viradinho de brisas com torresmos de zéfiros até alcançarmos a venda do Alonso amanhã? Deus que te abençoe e te dê no céu um mandiocal imenso, plantado pelos anjos.
lV
Caíra de toda a noite. Que céu! Alternavam vivíssimas com rebojos negros de nuvens acasteladas. Na terra, escuridão de breu, rasgada de piques de luz pelas estrelinhas avoantes. Uma coruja berrava longe, num esgalho morto de perobeira.
Que solidão, que espessura de trevas é a de uma noite assim, no deserto! Nesses momentos é que um homem bem compreende a origem tenebrosa do medo…
V
Acabada a magra refeição, observei ao preto:
– Agora, amigo, é agarrarmos estas mantas e pelegos, mais a luz, e irmo-nos à casa grande. Dormes lá conosco, a guisa de Pará-raios de almas. Topas?
Contente de ser-nos útil, tio Bento sobraçou a quitanda e deu-me a levar o candeeiro. E lá fomos pelo escuro da noite, a chapinhar nas poças e na grama empapada.
Encontrei Jonas no mesmo lugar, absorto em frente à casa.
Estás louco, rapaz? Não comeres tu, que estavas de fome, e ficares aí como perereca diante da cascavel?
Jonas olhou-me dum modo estranho e como única resposta esganiçou um “deixa-me”. Fiquei a encará-lo por uns instantes, deveras desnorteado por tão inexplicável atitude. E foi assim, de rugas na testa, que galguei a escadaria musgosa do casarão.
Estava perra de fato a porta, como dissera o negro, mas com valentes ombradas abri-a no preciso para dar passagem a um homem. Mal entramos, morcegos às dezenas, assustados com a luz, debandaram às tontas, em voejos surdos.
– Macacos me lambam se isto aqui não é o quartel general de todos os ratos de asas deste e dos mundos vizinhos!
– E das suindaras, patrãozinho. Mora aqui um bandão delas que até dá medo – acrescentou o preto, ao ouvir-lhes os pios no forro.
A sala de espera toava com o restante da fazenda. Paredes lagarteadas de rachas, escorrida de goteiras, com vagos vestígios do papel. Móveis desaparelhados – duas cadeiras Luiz XV, de palhinha rota, e mesa de centro do mesmo estilo, com o mármore sujo pelo guano dos morcegos. No teto, tábuas despregadas, entremostrando rombos escuros.
– Tio Bento – disse eu, procurando iludir com palavras a tristezas do coração -, isto aqui cheira-me à sala nobre do sabá das bruxas. Que não venham hoje atropelar-nos, nem apareça a alma do capitão-mor a nos infernizar o sono. Não é verdade que a alma do capitão-mor vagueia por aqui a desoras?
– Dizem – respondeu o preto. – Dizem que aparece ali na casa do tronco, não às dez, mas a meia-noite, e que sangra as unhas a arranhar as paredes…
– E depois vem cá arrastar correntes pelos corredores, hein? Como é pobre a imaginativa popular! Sempre e em toda parte a mesma ária das correntes arrastadas! Mas vamos ao que serve. Não haverá um quarto melhor do que isto, nesta hospedaria de mestre tinhoso?
– Haver, há – trocadilho sem querer o preto -, mas é o quarto do capitão-mor. Tem coragem?
– Ainda não está convencido, Bento, de que sou um poço de coragem?
– Poço tem fundo – retrucou ele, sorrindo filosoficamente. – O quarto é aqui à direita.
Dirigi-me para lá. Entrei. Quarto amplo e em melhor estado que a sala de espera. Guarneciam-no duas velhas marquesas de palhinha bolorenta, além de várias cadeiras rotas. Na parede, um retrato na moldura clássica da época dourada, de cantos redondos, com florões. Limpei com o lenço a poeira acumulada no vidro e vi que era um daguerreótico esmaiado, representando imagem de mulher.
Bento percebeu a minha curiosidade e explicou:
– É o retrato da filha mais velha do capitão Aleixo, nhá Zabé, uma moça tão desgraçada…
Contemplei longamente aquela antigualha venerável vestida à moda da época.
– Tempo das anquinhas, hein Bento? Lembras-te das anquinhas?
Se me lembro! A sinhá-velha, quando vinha da cidade, era assim que ela andava, que nem uma perua choca…
Recoloquei na parede o daguerreótipo e pus-me a arranjar as marquesas, arrumando numa e noutra pelegos, à guisa de travesseiros. Em seguida fui ao alpendre, de luz na mão, a ver se amadrinhava o meu relapso companheiro. Era demais aquela maluquice! Não jantar e agora ficar-se ali ao relento…
Vl
Perdi meu requebrado. Chamei-o, mas nem com o “deixa-me” respondeu desta vez.
Tal atitude pôs-me seriamente apreensivo.
– Se lhe desarranja a cabeça, aqui nestas alturas…
Torturado por esta idéia, não pude sossegar. Confabulei com o Bento e resolvemos sair em procura do transviado.
Fomos felizes. Encontramo-lo no terreiro, em face da antiga casa do tronco. Estava imóvel e mudo.
Ergui-lhe a luz à altura do rosto. Que estranha expressão a sua! Não parecia o mesmo – não era o mesmo. Deu-me a impressão de retesado no último arranco duma luta suprema, com todas as energias crispadas numa resistência feroz. Sacudi-o com violência.
– Jonas! Jonas!
Inútil. Era um corpo largado da alma. Era um homem “vazio de si próprio!” Assombrado com o fenômeno, concentrei todas as minhas forças e, ajudado pelo Bento, trouxe-o para casa.
Ao penetrar na sala de espera, Jonas estremeceu; parou, arregalou os olhos para a porta do quarto. Seus lábios tremiam. Percebi que articulavam palavras incompreensíveis. Precipitou-se, depois, para o quarto e, dando com o daguerreótipo de Isabel, agarrou-o com frenesi, beijou-o, rompido em choro convulsivo.
Em seguida, como exausto duma grande luta, caiu sobre a marquesa, prostado, sem articular nenhum som.
Inutilmente interpelei-o, procurando a chave do enigma. Jonas permanecia vazio…
Tomei-lhe o pulso: normal. A temperatura: boa. Mas largado, como um corpo morto.
Fiquei ao pé dele uma hora, com mil idéias a me azoinarem a cabeça. Por fim, vendo-o calmo, fui ter com o preto.
– conta-me o que sabes desta fazenda – pedi-lhe. – Talvez que…
Meu pensamento era deduzir das palavras do negro algo explicativo da misteriosa crise.
Vll
Nesse entremeio zangara de novo o tempo. As nuvens recobriam inteiramente o céu, transformado num saco de carvão. Os relâmpagos voltaram a fulgurar, longíquos, acompanhados de rebôos surdos. E para que ao horror do quadro nenhum tom falasse, a ventania cresceu, uivando lamentosa nas casuarinas
Fechei a janela.
Mesmo assim, pela frinchas, o assobio lúgubre entrava a me ferir os ouvidos…
Bento falou em voz baixa, receoso de despertar o doente. Contou como viera ali, comprado pelo próprio capitão Aleixo, na feira de escravos do Valongo, molecote ainda. Disse da formação da fazenda e do caráter cruel do senhor.
– Era mau, meu branco, como deve ser mau o canhoto. Judiava da gente à toa. Pelo gosto de judiar. No começo não era assim, mas foi piorando com o tempo.
No caso da Liduína… era uma bonita crioula aqui da fazenda. Muito viva, desde bem criança passou da senzala pra casa-grande, como mucama de sinhazinha Zabé…
Isso foi… deve fazer sessenta anos, antes da guerra do Paraguai. Eu era moleque novo e trabalhava aqui dentro, no terreiro. Via tudo. A mucama, uma vez que Sinhazinha Zabé veio da corte passar as férias na roça, protegeu o namoro dela com um portuguesinho, e foi então…
Na marquesa, onde dormia, Jonas estremeceu. Olhei. Estava sentado e em convulsões.
Os olhos exorbitados fixavam-se nalguma coisa invisível para mim. Suas mãos crispadas mordiam a palhinha rota.
Agarrei-o, sacudi-o.
– Jonas, Jonas, que é isso?
Olhou-me sem ver, com a retina morta, num ar de desvario.
– Jonas, fala!
Tentou murmurar uma palavra. Seus lábios tremeram na tentativa de articular um nome.
Por fim enunciou-o,arquejante:
– “Isabel”…
Mas aquela voz já não era a voz de Jonas. Era uma voz desconhecida. Tive a sensação plena de que um “eu” alheio lhe tomara de assalto o corpo vazio. E falava por sua boca, e pensava com seu cérebro. Não era Jonas, positivamente, quem estava ali. Era “outro”!…
Tio Bento, ao pé de mim, olhava assombrado para aquilo, sem compreender coisa nenhuma; e eu, num horroroso estado de superexcitação, sentia-me à beira do medo pânico. Não fossem os trovões ecoantes e o ululo da ventania nas casuarinas denunciarem-me lá fora um horror talvez maior, e é possível que não resistisse ao lance e fugisse da casa maldita como criminoso. Mas ali ao menos havia precioso do que todos os bens da terra.
Estava escrito, entretanto, que ao horror dessa noite de trovoada e mistério não faltaria uma nota sequer. Assim foi que, altas horas, a luz principiou a esmorecer.
Estremeci, e fiquei de cabelos eriçados quando a voz do negro murmurou a única frase que eu não queria ouvir:
– O azeite está no fim…
– E há mais lá em tua casa?
Era o restinho…
Estarreci…
As trovões ecoavam longe, e o uivar do vento nas casuarinas era o mesmo de sempre. Parecia empenhada a natureza em pôr em prova a resistência dos meus nervos. Síbito, um estalido no candeeiro. A luz bruxuleou um clarão final e extinguiu-se.
Trevas. Trevas absolutas…
Corri à janela. Abri-a.
As mesmas trevas lá fora…
Senti-me sem olhos.
Procurei a cama às apalpadas e caí de bruços na palhinha bolorenta.
Vlll
Pela madrugada começou Jonas a falar sozinho, como quem se recorda. Mas não era o meu Jonas quem falava – era o “outro”
Que cena!…
Tenho até agora gravadas a burril no cérebro todas as palavras dessa misteriosa confidência, proferida pelo íncubo no silêncio das trevas profundas. Mil anos que viva e nunca se me apagará da memória o ressoar daquela voz de mistério. Não reproduzo suas palavras de maneira como as enunciou. Seria impossível, sobre nocivo à compreensão de quem lê. O “outro” falava ao jeito de quem pensa em voz alta, como a recordar. Linguagem taquigráfica, ponho-a aqui traduzida em, linguagem corrente.
lX
“Meu nome era Fernão. Filho de pais incógnitos, quando me conheci por gente já rolava no mar da vida como rolha sobre a onda. Ao léu, solto nos vaivens da miséria, sem carinhos de família, sem amigos, sem ponto de apoio no mundo.
Era no reino, na Póvoa do Varzim; e do Brasil, a boa colônia preluzida em todas as imaginações como Eldorado, eu ouvia ao marinheiros de torna-viagem contarem maravilhas.
Fascinado, deliberei emigrar.
Parti um dia para Lisboa, a pé, como vagabundinho de estrada. Caminhada inesquecível, faminta, mas rica dos melhores sonhos da minha existência. Via-me na terra nova feito mascate de bugigangas. Depois, vendeiro; depois, já casado, com linda cachopa, via-me de novo na Póvoa, rico, morando em quinta, senhor de vinhedo e terras de semeadura.
Assim embalado em sonhos áureos, alcancei o porto de Lisboa, onde passei o primeiro dia no cais, namorando os navios surtos no Tejo. Um havia em aprestos para largar de rumo à colônia, a caravela “Santa Tereza”.
Acamaradando-me com velhos marujos de gandaia por ali, consegui nela, por intermédio deles, o engajamento necessário.
– Lá, foges – aconselhou-me um – e afundas no sertão. E mercadejas, e enriqueces, e voltas cá excelentíssimo. É o que eu faria se tivesse os verdes anos que tens.
Assim fiz e, grumete do “Santa Teresa”, boiei no oceano, rumo às terras de ultramar.
Aportamos em África para recolher pretos d’Angola, metidos nos porões como fardos de couro suado com carne viva por dentro. Pobres pretos!
Desembarcado no Rio, tive ainda ocasião de vê-los no Valongo, semius, expostos á venda como reses. Os pretendentes chegavam, examinavam-nos, fechava negócio.
Foi assim, nessa tarefa, que conheci o capitão Aleixo. Era um homem alentado, de feições duras, olhar de gelo. Trazia botas, chapéus largo e rebenque na mão.
Atrás dele, como sombra, um capataz mal-encarado.
O capitão notou o meu tipo, fez perguntas e ao cabo propôs-me serviço em sua fazenda. Aceitei e fiz a pé, em companhia do lote de negros adquiridos, essa viagem pelo interior de um país onde tudo me era novidade.
Chegamos.
Sua fazenda, formada de pouco tempo, ia então no apogeu, riquíssima de canaviais, gado e café em inícios. Deram-me servicinhos leves, compatíveis com a idade e a minha nenhuma experiência de terra. E, sempre subindo de posto, ali continuei até ver-me homem.
A família do capitão morava na corte. Os filhos vinham todos os anos passar temporadas na roça, enchendo a fazenda de travessuras loucas. Já as meninas, então no colégio, lá se deixavam ficar mesmo na férias. Só vieram uma vez, com a mãe, dona Teodora – e foi isso a minha desgraça…
Eram duas, Inês, a caçula, e Isabel, a mais velha, lindas meninas de luxo, radiosas de mocidade. Eu as via de longe, como nobres figuras de romance, inacessíveis, e lembro-me do efeito que naquele sertão bruto, asselvajado pela escravaria retinta, fazia a presença das meninas ricas, sempre vestidas à moda da corte. Eram princesinhas de conto de fadas que só provocavam uma atitude: adoração.
Um dia…
Aquela cachoeira – lá lhe ouço o remoto rumorejo – era a piscina da fazenda. Escondida numa grota, como jóia de cristal vivo de defluir com permanente escachôo num engaste rústico de taquaris, caetés e ingazeiros, formava um recesso grato ao pudor dos banhistas.
Um dia…
Lembro-me bem – era domingo e eu, de vadiagem, saíra cedo a passarinhar. Seguia pela margem do ribeirão tocaiando os pássaros ribeirinhos.
Um pica-pau-de-cabeça-vermelha zombou de mim. Errei a bodocada e, metido em brios, afreimei-me em perseguilo. E, salta daqui, salta dali, quando dei acordo estava embrenhado na grota da cachoeira, onde, num, galho de ingá, pude visar melhor a minha presa e espeloteá-la.
Caiu a avezinha longe do meu alcance; barafustei pela trama dos taquaris para colhê- la. Nisto, por uma abertura na verdura, avistei embaixo a bacia de pedra onde a água chofrava. Mas estarreci. Duas ninfas nuas brincavam na espuma. Reconheci-as. Eram Isabel e sua mucama dileta, da mesma idade, a Liduína.
O improviso da visão ofuscou-me os olhos. Quem há insensível à beleza da mulher em flor e, a mais, vista assim em nudez num quadro agreste daqueles? Isabel deslumbrou-me.
Corpo escultural, nesse período entontecedor em que florescem as promessas da puberdade, diante dele senti a explosão subitânea dos instintos. Ferveu-me nas veias o sangue. Fiz-me cachoeira de apetites. Vinte anos! O momento das erupções incoercíveis…
Imóvel como estátua, ali me quedei em êxtase o tempo que durou o banho. E estou ainda com o quadro na imaginação. A graça com que ela, de cabeça eguida, boca entreaberta, apresentava os pequeninos seios ao jato das águas… os sustos e gritinhos nervosos quando gravetos derivantes lhe esfrolavam a epiderme. Os mergulhos de sereia na bacia e o emergir do corpo aljofrado de espuma…
Durou minutos o banho fatal. Depois vestiram-se numa laje seca e lá se foram, contentes como borboletinhas ao sol.
Fiquei-me por ali, extático, rememorando a cena mais linda que meus olhos viram.
Impressão de sonho…
Águas de cristal rumorejantes orvalhadas pedidas para a linfa como a lhe escutar o murmúrio; um raio de sol matutino, coado pelas franças, a pintalgar de ouro tremeluzente a nudez menineira das náiades.
Quem poderá esquecer um quadro assim?
X
Esta impressão matou-me. Matou-nos.
XI
Saí dali transformado.
Não era mais o humilde serviçal da fazenda, contente de sua sorte. Era um homem branco e livre que desejava uma mulher formosa.
Daquele momento em diante minha vida iria girar em torno dessa aspiração. Nascera em mim o amor, vigoroso e forte como as ervas loucas da tigüera. Dia e noite só um pensamento ocuparia meu cérebro: Isabel. Um só desejo: vê-la. Um só objetivo à minha frente: possuí-la.
Todavia, apesar de branco e livre, que abismo me separava da filha do fazendeiro! Eu era pobre. Era um subalterno. Era nada.
Mas o coração não raciocina, nem o amor olha para conveniências sociais. E assim, desprezando obstáculos, cresceu o amor no meu peito como crescem rios em tempo de cheia.
Aproximei-me da mucama e, depois de lhe cair em graça e lhe conquistar a confiança, contei-lhe um dia a minha tortura.
– Liduína, tenho um segredo n’alma que me mata, mas tu poderás salvar-me. Só tu.
Preciso do teu socorro… Juras auxiliar-me?
Ela espantou-se da confidência, mas, insistida, rogada, implorada. Prometeu tudo quanto pedi.
Pobre criatura! Tinha alma irmã da minha e foi compreender su’alma que pela primeira vez alcancei todo o horror da escravidão.
Abri-lhe o meu peito e revelei-lhe em frases cadentes a paixão que me consumia.
Linduína a princípio assustou-se. Era grave o caso. Mas quem resiste à dialética dos apaixonados? E Linduína, vencida, afinal, prometeu auxiliar-me.
XII
A mucama agiu por partes, fazendo desabrochar o amor no coração da senhora sem que esta o percebesse à minha pessoa.
– Sinhazinha conhece o Fernão?
– Fernão?!… Quem é?
– Um moço que veio do reino e toma conta do engenho…
– Se já o vi, não me lembro.
– Pois repare nele. Tem uns olhos…
– É teu namorado?
– Quem me dera!…
Foi essa a abertura do jogo. E assim, aos poucos, em dosagem hábil, hoje uma palavra, amanhã outra, no espírito de Isabel nasceu a curiosidade – passou número um do amor.
Certo dia Isabel quis ver-me.
– Falas tanto nesse Fernão, nos olhos desse Fernão, que estou curiosa de vê-lo.
E viu-me.
Eu estava no engenho, dirigindo a moagem da cana, quando as duas apareceram de copo na mão. Vinham com o pretexto da garapa.
Liduína achegou-se a mim e:
– Seu Fernão, uma garapinha de espuma para sinhá Isabel.
A menina olhou-me de frente, mas não lhe pude sustentar o olhar. Baixei os olhos, conturbado. Eu tremia, balbuciava apenas, nessa ebriez do primeiro encontro.
Dei ordens aos pretos e logo jorrou da bica uma jato fofo da garapa espumejante. Tomei o copo da mão da mucama, enchi-o e ofereci-o à Náiade. Ela o recebeu com simpatia, bebeu aos golinhos e pegou-me o serviço com um gentil “obrigada”, olhando- me de novo nos olhos.
Pela segunda vez baixei os olhos.
Saíram.
Mais tarde, Liduína contou-me o resto – um pequeno diálogo.
– Tinha razão – dissera-lhe Isabel -, um bonito rapaz. Mas não lhe vi bem os olhos. Que acanhamento! Parece que tem medo de mim… Duas vezes que olhei de frente, duas vezes os baixou.
– Vergonha – disse Linduína. – Vergonha ou…
– … ou quê?
– Não digo…
A mucama, com seu fino instinto de mulher, compreendeu que não ainda tempo de pronunciar a palavra amor. Pronuncio-a dias mais tarde, quando percebeu a menina suficientemente madura para ouvi-la sem escândalo.
Passeavam pelo pomar da fazenda, então no auge da florescência.
O ar embriagava, tanto era o perfume nele solto.
Abelhas aos milhares, e colibris, zumbiam e esfuziavam numa delírio orgíaco.
Era a festa anual do mel.
Percebendo em Isabel o trabalho dos amavios ambientes, Liduína aproveitou o ensejo para um passo a mais.
– Quando eu vinha vindo vi o seu Fernão sentado na pedra do muro. Uma tristeza…
– Que será que ele tem? Saudades da terra?
– Quem sabe?! Saudades ou…
– … ou quê?
– Ou amor.
– Amor! Amor! – disse Isabel sorvendo com volúpia o ar embalsamado. – Que linda palavra, Linduína! Eu, quando vejo um laranjal assim florido, a palavra que me vem à idéia é essa: amor! Mas amará ele a alguém?
– Pois decerto. Quem não ama neste mundo? Os passarinhos, as borboletas, as vespas…
– Mas quem amará ele? A alguma preta do eito, com certeza… – E Isabel riu-se desabaladamente.
– Aquele? – fez Linduína num muxoxo. – Não é desses, não, sinhazinha. Moço pobre, mais de condição. Para mim, até penso que ele é filho de algum fidalgo do reino. Anda por aqui escondido…
Isabel quedou-se pensativa.
– Mas a quem amará, então, aqui, neste deserto de brancas?
– Pois as brancas…
– Que brancas?
– Dona Inesinha… Dona Isabelinha…
A mulher desapareceu por um momento para ceder o lugar à filha do fazendeiro.
– Eu? Engraçadinha! Era só o que faltava…
Liduína calou-se. Deixou que a semente lançada corresse o prazo da germinação. E, vendo um casal de borboletas a perseguirem-se com estalidos de asas, mudou o rumo à conversa.
– sinhazinha já reparou nestas borboletas de perto? Tem dois números debaixo das asas
– oito, oito. Quer ver?
Correu atrás delas.
– Não pegas ! – gritou Isabel, divertida.
– Mas pego esta aqui – retrucou Liduína apanhando putra, lerdota. E trazendo-a espernear entre os dedos.
É ver uma casca de árvore com musgo. Espertalhona! Assim se disfarça, que ninguém a percebe quando está sentadinha. É como o periquito, que está gritando numa árvore, em cima da cabeça da gente, e a gente nada vê. Por falar em periquito, Por que sinhazinha não arranja um casal?
Isabel tinha o pensamento longe Dalí. A mucama bem o sentia, mas muito de indústria continuava na tagarelice.
– Dizem que se querem tanto, os periquitos, que quando um morre o companheiro se mata. Tio Adão teve um assim, que se afogou numa pocinha d’água no dia em que a periquita morreu. Só entre os pássaros há coisas dessas…
Isabel continuava absorta. Mas em dão momento quebrou o mutismo.
– Por que lembraste de mim desse negócio do Fernão?
– por quê? – repetiu Liduína cavorteiramente. Por que é tão natural isso…
– Alguém te disse alguma coisa?
– Ninguém. Mas se ele ama de amor, aqui neste sertão, e foi assim agora, depois que sinhazinha chegou, a quem há de amar?… Ponha o caso em si. Se Sinhazinha fosse ele, e ele fosse Sinhazinha…
Calaram-se ambas e o passeio terminou no silêncio de quem dialoga consigo mesmo.
XIII
Isabel dormiu tarde essa noite. A idéia de que sua imagem enchia o coração de um homem esvoaçava-lhe na imaginação como as abelhas no laranjal.
– Mas é um subalterno! – alegava o orgulho.
– Qu’importa, se é um moço rico de bons sentimentos? – retorquiu a Natureza.
– E bem pode ser que fidalgo!… – acrescentava, insinuante, a fantasia.
A imaginação também veio à tribuna.
– E pode vir a ser poderoso fazendeiro. Quem era o capitão Aleixo na idade dele? Um simples arreador…
Já era o amor quem assoprava tais argumentos.
Isabel ergueu-se da cama e foi à janela. A lua em minguante quebrava de tons cinéreos o escuro da noite. Os sapos no brejal coaxavam melancólicos. Vagalumes tontos riscavam fósforos no ar.
Era aqui… Era aqui neste quarto, era aqui nesta janela!
Eu a espiava de longe, nesse estado de êxtase que o amor provoca na presença do objeto amado. Longo tempo a vi assim, imersa em cisma. Depois fechou-se a persiana, e o mundo para mim se encheu de trevas.
XIV
No outro dia, antes que Liduína abordasse o tema dileto, disse-lhe Isabel:
– Mas Liduína, que é amor?
– Amor? – respondeu a arguta mucama em que o instinto substituía a cultura. – Amor é uma coisa…
– … que…
– … quem vem vindo, vem vindo …
– … e chega!
– e chega e toma conta da gente. Tio Adão diz que o amor é doença. Que agente tem sarampo, catapora, tosse comprida, caxumba e amor – cada doença no tempo.
– Pois eu tive tudo isso – replicou Isabel – e não tive amor.
– Sossegue que não escapa. Teve as piores e não há de ter a melhor? Espere que um dia ele vem…
Silenciaram.
Súbito, agarrando o braço da mucama, Isabel encarou-a a fito nos olhos.
– És minha amiga do coração, Liduína?
– Um raio me parta neste momento se…
– És capaz de um segredo, mas dum segredo eterno, eterno, eterno?
– Um raio me parta se…
– Cala a boca.
Isabel vacilava.
Depois, nessa ânsia que nasce ao primeiro luar do amor, disse, corando:
– Liduína, parece-me que estou ficando doente… da doença que faltava.
– Pois é tempo – exclamou a finória arregalando os olhos. – Dezessete anos…
– Dezesseis.
E Liduína, cavilosa:
– Algum fidalguinho da corte?
Isabel vacilou de novo; por fim disse:
– Eu tenho um namorado no Rio – mas é namoro só. Amor, amor desse que bole cá dentro com o coração, desse que vem vindo, vem vindo chega, não! Não, lá…
E em cochicho ao ouvido da mucama, corando:
– Aqui!…
– Quem? – perguntou Liduína, simulando espanto.
Isabel não respondeu com palavras. Ergueu-se e:
– Mas é um comecinho só. Vem vindo…
XV
O amor veio vindo e chegou. Chegou e destruiu todas as barreiras. Destruiu nossas vidas e acabou destruindo a fazenda. Estas ruínas, estas corujas, este morcegal, tudo não passa da florescência de um grande amor…
Por que há de ser a vida assim? Por que hão de os homens, à força do orhulho, impedir que o botão da maravilhosa planta passe a flor? E por que hão de transformar o que é céu em inferno, o que é perfume em dor, o que é luz em negrume, o que é beleza em caveira?
Isabel, mimo de fragilidade feminil, avivada de graça Brasília, tinha o quê perturbador das orquídeas. Sua beleza não era ao molde da beleza rechonchuda e corada, forte e sadia, das cachopas da minha terra. Por isso mesmo mais fortemente me seduzia a pálida princesinha tropical.
Ao inverso, o que em mim a seduzia era a força varonil e transbordante, e a nobre rudeza dos meus instintos, que iam até a audácia de pôr os olhos na altura em que ela pairava.
XVI
O primeiro encontro foi… casual. Meu acaso chamava-se Liduína. Seu gênio instintivo fê-la boa fada de nossos amores.
Foi assim.
Estavam as duas no pomar diante duma pitangueira enrubescida de frutos.
– Lindas pitangas! – disse Isabel. – Sobe, Liduína, e apanha um punhado.
Aproximou-se Liduína da pitangueira e fez vãs tentativas para trepar.
– Impossível, sinhazinha, só chamando alguém. Quer?
– Pois vai chamar alguém.
Liduína partiu correndo e Isabel teve a impressão nítida de quem viria. De fato, momentos depois apareci eu.
– Senhor Fernão, desculpe-me – disse a moça. – Pedi àquela maluca que chamasse algum preto para colher pitangas – e foi ela incomodá-lo.
Perturbado pela sua presença e com o coração aos pulos, gaguejei, para dizer algo:
– São pitangas que quer?
– Sim. Mas falta uma cestinha que Liduína foi buscar.
Pausa.
Isabel, tão senhora de si, percebi-a nesse momento embaraçada como eu. Não tinha o que dizer. Silenciava. Por fim:
– Moem cana hoje? Pergutou-me.
Gaguejei que sim e novo silêncio se fez. Para quebrá-lo, Isabel gritou em direção da casa:
– Anda depressa, rapariga! Que lesmice…
E depois, para mim:
– Não tem saudades de sua terra?
Despregou-se-me a língua. Perdi o embaraço. Respondi que tive, mas não as tinha mais.
– Os primeiros anos passei-os a suspirar à noite, saudoso de tudo de lá. Só quem emigrou sabe a dor do fruto arrancado à árvore. Conformei-me, afinal. E hoje… o mundo inteiro para mim está aqui nestas montanhas.
Isabel compreendeu-me a intenção e quis perguntar-me por quê. Mas não teve ânimo.
Saltou para outro assunto.
– Por que motivo só as pitangas desta árvore prestam? As outras são azedas…
– Vai ver – disse eu – que esta árvore é feliz e as outras não. O que azeda os homens e as coisas é a desgraça. Fui doce como lima, logo que vim para cá. Hoje sou amargo…
– Julga-se infeliz?
– Mais do que nunca.
Isabel arriscou-se:
– Por quê?
Respondi intrepidamente:
– Dona Isabel, que é menina rica, não imagina a posição desgraçada de quem é pobre. O pobre forma neste mundo uma casta maldita, sem direito a coisa nenhuma. O pobre não pode nada…
– Pode, sim…
– ?
– Deixar de ser pobre.
– Não falo da riqueza do dinheiro. Essa é fácil de alcançar, depende apenas de esforço e habilidade. Falo das coisas mais preciosas que o ouro. Um pobre, tenha o coração que tiver, seja mais nobre das almas, não tem o direito de erguer os olhos para certas alturas…
– Mas se a altura quiser descer até ele? – retrucou audaciosa e vivamente a menina.
– Esse caso acontece às vezes nos romances. Na vida nunca…
Calamo-nos de novo. Neste entremeio Liduína reapareceu, esbaforida, com a cestinha na mão.
– Custou-me a achar – disse a velhaca, justificando a demora. – Estava caída atrás do toucador.
O olhar que lhe lançou Isabel dizia: ‘Mentirosa!”
Tomei a cesta e preparei-me para trepar à árvore.
Isabel, porém, interveio:
– Não! Não quero mais pitangas. Vão tirar-me o apetite para a garapa do meio-dia.
Ficam para outra vez.
E para mim, amável:
– Queira desculpar-me…
Saudei-a, ébrio de felicidade, e lá me fui de aleluias n’alma, com o mundo a dançar em torno de mim.
Isabel seguiu-me com o olhar, pensativamente.
– Tinha razão, Liduína, é um rapagão que vale todos os pelintras da corte. Mas, coitado!… Queixa-se tanto do seu destino…
– Bobagens – muxoxou a mucama, trepando à pitangueira com agilidade de macaco.
Vendo aquilo, Isabel sorriu e murmurou, entre repreensiva e maliciosa:
Você, Liduína…
A rapariga que tinha entre os dentes alvíssimos o vermelho duma pitanga, esganiçou uma risada velhaca.
– Pois sinhazinha não sabe que sou mais sua amiga do que sua escrava?
XVII
O amor é o mesmo em toda parte e em todos os tempos. Aquele enleio do primeiro encontro é o eterno enleio dos primeiros encontros. Aquele diálogo à sombra da pitangueira é o eterno diálogo da abertura. Assim, nosso amor tão novo para nós, reproduzia um jogo velho qual o mundo.
Nascera em Isabel e em mim um sexto sentido maravilhoso. Compreendíamo-nos, adivinhávamo-nos e descobria-nos meios de inventar os mais imprevistos encontros – encontros deliciosos, em que um olhar bastava para permuta de mundos de confidências…
Isabel amou-me.
Que período de vida, esse!
Eu sentia-me alto como montanhas, forte como o oceano e todo a coruscar de estrelas por dentro.
Era rei.
A terra, a natureza, os céus, a luz, a luz, a cor, tudo existia para ambiente do meu amor.
Não era mais vida aquele meu viver, sim um êxtase contínuo.
Alheado de tudo, uma só coisa eu via, duma só coisa me alimentava.
Riquezas, poderio, honras – que vale tudo isso ante a sensação divina de amar e ser amado?
Nessa abriedade vivi – quanto tempo não sei. O tempo não contava para meu amor. Vivia – tinha impressão de que só nessa época entrara a viver. Antes, a vida não me fora mais que simples agitação animalesca.
Poetas! Como vos compreendi a voz interior ressonada em rimas, como me irmanei convosco no esvoaçar pelos intermúndios do sonho!…
Liduína comportava-se como a fada boa dos nossos destinos. Sempre vigilante, e ela devíamos inteirinho o mar de felicidade em que boiávamos. Lépida, mimosa, travessa, a gentil crioula enfeixava em si toda a artimanha da raça perseguida – e todo gênio do sexo escravizado à prepotência do homem.
Entretanto, o bem que nos fizeste como se avinagrou para ti, Liduína!… Em que fel horroroso se transfez para ti, afinal…
Eu sabia que o mundo é governado pelo monstro Estupidez. E que sua Majestade não perdoa o crime de amor. Mas nunca supus que esse monstro fosse a fera delirante que é – tão sanguissedenta, tão requintada em feróica. Nem que houvesse monstro mais bem servido que fosse.
Que comitiva numerosa traz!
Que servos diligentes possui!
A sociedade, as leis, os governos, as religiões, os juízes, as morais, tudo que é força social organizada presta mão forte à estupidez Onipotente.
E assanha-se em punir, em torturar o ingênuo que, conduzido pela natureza, arrosta com os mandamentos da megera.
Ai dele, se comete um crime de lesa-estupidez! Mãos de ferro constringem-lhe a garganta. Seu corpo rola por terra, espezinhado; seu nome perpetua-se com pechas infames.
Nosso crime – que lindo crime: amar! – foi descoberto. E monstruosa engrenagem de aço triturou-nos, ossos e almas, aos três…
XVIII
Uma noite…
A lua, bem no alto, empalidecia as estrelas e eu, triste, velava, rememorando o último encontro com Isabel. Fora à tardinha, numa volta do ribeirão, à sombra dum tufo de marianeiras cacheadas de frutos. Mãos unidas, cabeça contra cabeça, num enlevo de comunhão d’alma, assistíamos ao alvoroço da peixaria assanhada na disputa das frutinhas amarelas que a espaços pipocavam na água remansosa do rio. Isabel, absorta, mirava aquelas ariscas lingüinhas de prata, apinhadas em torno das iscas.
– Sinto-me triste, Fernão. Tenho medo da nossa felicidade. Qualquer coisa me diz que isso vai ter fim – e fim trágico…
Minha resposta foi aconchegá-la ainda mais no meu peito.
Um bando de saíras e sanhaços, de pouso nas marianeiras, entraram a debicar energicamente os cachos de frutinha silvestre. E o espelho das águas piriricou ao chuveiro das migalhas caídas. Coalhou-se ao rio de lambaris famintos, engalfinhados num delírio de rega-bofe, com saltos de prata faiscantes no ar.
Isabel, sempre absorta, dizia:
– Como são felizes!… E são felizes porque são livres. – Nós – pobres de nós!… – Nós somos ainda mais escravos do que os escravos do eito…
Duas “viuvinhas” pousaram numa haste de Peri emersa da margem fronteira. A vara vergou-se ao peso, oscilou uns instantes e estabilizou-se de novo. E o lindo casal permaneceu imóvel, juntinho, comentando talvez, como nós, a festa glutona dos peixes.
Isabel murmurou, num sorriso de infinita melancolia:
– Que cabecinha sossegada eles têm…
Eu rememorava frase por frase esse último encontro com a minha amada, quando, dentro da noite, ouvi bulha à porta.
Alguém corria o ferrolho e entrava.
Sentei-me na cama, de sobressalto.
Era Liduína. Tinha os olhos esgazeados de pavor e foi em voz arquejante que atropelou as derradeiras palavras que lhe ouvi na vida.
Fuja! O capitão Aleixo sabe tudo. Fuja, que estamos perdidos…
Disse, e esgueirou-se para o terreiro como sombra.
XIX
O choque foi tamanho que me senti vazio de cérebro. Parei de pensar…
O capitão Aleixo…
Lembro-me bem dele. Era o plenipotenciário de sua majestade a estupidez nestas paragens. Frio e duro, não reconhecia sensibilidade em carne alheia.
Recomendava sempre aos feitores a sua receita de bem conduzir os escravos: “Angu por dentro e relho por fora, sem economia e sem dó”.
Consoante tal programa, a vida na fazenda escoava-se entre trabalhos de eito, comezaina farta e “bacalhau”.
Com o tempo desenvolveu-se nele a crueldade inútil. Não limitava a impor castigos: ia presenciá-los. Gozava de ver a carne humana avergoar-se aos golpes do couro cru.
Ninguém, entretanto, estranhava aquilo. Os pretos sofriam como predestinados à dor. E os brancos tinham como dogma que de outra maneira não se levavam pretos.
O sentimento de revolta não latejava em ninguém, salvo em Isabel, que se fechava no quarto, de dedos fincados nos ouvidos, sempre que na casa do tronco o bacalhau arrancava urros a um pobre infeliz.
A mim, em começo, também me era indiferente a dor alheia. Ao depois – depois que o amor me floriu a alma de todas as flores do sentimento – aquelas barbaridades diárias punham-me fremente de cólera.
Uma vez tive ímpetos de estrangular o déspota. Foi o caso dum vizinho que lhe trouxera um cão de fila para vender.
XX
– É bom? Bem bravo? – perguntou o fazendeiro, examinando o animal.
– Uma fera! Para apanhar negro fugido, nada melhor.
– Não compro nabos em sacos – disse o capitão. – Experimentemo-lo.
Ergueu os olhos para o terreiro que fulgurava ao sol. Deserto. A escravaria inteira na roça. Mas naquele momento o portão se abriu e um preto velho entrou, cambaio, de jacá ao ombro, rumo ao chiqueiro dos porcos. Era um estropiado do eito que pagava o que comia tratando da criação.
O fazendeiro teve uma idéia. Tirou o cão da corrente e atirou-o contra o preto.
– Pega, vinagre!
O mastim partiu como bala e instantes depois ferrava o pobre velho, dando com ele em terra. Estraçalhou-o…
O fazendeiro sorria-se com entusiasmo.
– É de primeira – disse ao sujeito. – Dou-lhe cem mil réis pelo vinagre.
E como o sujeito, assombrado daqueles processos, lamentasse a desgraça do estraçalho, o capitão fez cara de espanto.
– Ora bolas! Um caco de vida…
XXI
Pois foi esse homem que vi subitamente penetrar no meu quarto, essa noite, logo depois que se sumiu Liduína. Acompanhavam-no dois feitores, como sombras. Entrou e fechou a porta sobre si. Parou a alguma distância. Olhou-me e sorriu.
– Vou dar-te uma bela noivinha – disse ele. E num gesto ordenou aos carrascos que me amarrassem.
Despertei da vacuidade. O instinto de conservação retesou-me todas as energias e, mal os capangas vieram a mim, atirei-me a eles com furor de onça fêmea a quem roubam os cachorrinhos.
Não sei quanto tempo durou a luta horrorosa; sei apenas que tantas perdi os sentidos em virtude das violentas pancadas que me racharam a cabeça.
Quando despertei pela madrugada vi-me por terra, com os pés doridos entalados no tronco. Levei a mão aos olhos sujos de pó e sangue e entrevi à aminha esquerda, no extremo do madeiro hediondo, um corpo desmaiado de mulher.
Liduína…
Percebi ainda que havia mais gente ali.
Olhei.
Dois homens de picaretas abriam um largo rombo no espesso muro de taipa.
Outro, um pedreiro, misturava cal e areia no chão, rente a uma pilha de tijolos.
O fazendeiro também ali estava, de braços cruzados, dirigindo o serviço. Vendo-me desperto, aproximou-se do meu ouvido e murmurou com gélido sarcasmo as últimas palavras que ouvi sobre a terra:
– Olhe! A tua noivinha é aquela parede…
Compreendi tudo: iam emparedar-me vivo…
XXII
Aqui se interrompe a história do “outro”, como a ouvi naquela horrorosa noite. Repito que não a ouvi assim, nessa ordem literária, mas murmurada em solilóquio, aos arrancos, às vezes entre soluços, outras num cicio imperceptível. Tão estranha era essa forma de narrar que o velho tio Bento não apanhou coisa nehuma.
E foi com ela a me doer no cérebro que vi chegar a manhã.
– Bendita sejas, luz!
Ergui-me, alvoroçado.
Abri a janela, todo a renascer-me dos horrores noturnos.
O sol lá estava espiando-me dentre a copa do arvoredo. Seus raios de ouro invadiram- me a alma. Varreram dela os frocos de trevas que a entenebreciam qual cabelugem de pesadelo.
O ar lavado e alerta encheu-me os pulomões da delirante vida matutina. Respirei-o alegremente, em haustos largos.
E Jonas? Dormia ainda, repousado de feições.
Era “ele” outra vez. O “outro” fugira com as trevas da noite.
– Tio Bento – exclamei – , conte-me o resto da historia. Que fim teve Liduína?
O velho preto recomeçou a contá-la a partir do ponto em que a interrompera na véspera.
– Não! – gritei eu – dispenso tudo isso. Só quero saber que fim teve Liduína depois que o capitão deu sumiço ao moço.
Tio Bento abriu cara de espanto.
Como o meu branco sabe disso?
– Sonhei , tio Bento.
Ele permaneceu ainda uns instantes admirado, custando a crer. Depois narrou:
– Liduína morreu no chicote, coitadinha – tão na flor, dezenove anos… O Gabriel e o Estevão, os carrascos, retalharam o seu corpinho de criança com rabos do bacalhau… A mãe dela, que só na hora do castigo soube do acontecido na véspera. Correu feito louca para a casa do tronco. No momento em que empurrou a porta e olhou, uma chicotada cortava o seio esquerdo da filha. Antônia deu um grito e caiu para trás como morta.
Apesar do radioso da manhã meus nervos fremiram às palavras do preto.
– Basta, basta… De Linduína basta. Só quero agora saber o que se sucedeu a Isabel
– Nha Zabé ninguém mais viu ela na fazenda. Foi levada para corte e acabou mais tarde no hospício, é o que dizem.
– E Fernão?
– Esse sumiu. Ninguém nunca soube dele – Nunca, nunca…
Jonas acabava de despertar. E ao ver luz no quarto sorriu. Queixava-se de peso na cabeça.
Interpelei-o sobre o eclipse noturno de sua alma, mas Jonas mostrou-se alheio a tudo.
Enrugou a testa, recordando-se.
– Lembro-me que uma coisa me invadiu, que fui empolgado, que lutei com desespero…
– E depois?
Depois?… Depois um vácuo…
Saímos para fora.
A casa maldita, mergulhada na onda de luz matutina, perdera o aspecto trágico.
Disse-lhe adeus – para sempre…
– vade retro!…
E fomo-nos à casinhola do preto engolir o café e arrear os animais.
De caminho espiei pelas grades da casa do tronco: na taipa grossa da parede havia um trecho murado a tijolos…
Afastei-me horripilado.
E guardei comigo o segredo da tragédia de Fernão. Só eu no mundo a conhecia, contada por ele mesmo, oitenta anos após a catástrofe.
Só eu!
Mas como não sei guardar segredo, revelei-o em caminho a Jonas.
Jonas riu-se à larga e disse, estendendo-me o dedo minguinho:
– Morde aqui!..
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