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Monteiro Lobato
CAPITULO I – O Desastre
Achava-me um dia diante dos guichês do London Bank á espera de que o pagador
gritasse a minha chapa, quando vi a cochilar num banco ao fundo certo corretor
de negócios meu conhecido. Fui-me a ele, alegre da oportunidade de iludir
o fastio da espera com uns dedos de prosa amiga.
— Esperando sua horinha, hein? disse-lhe com um tapa amigável
no ombro, enquanto me sentava ao seu lado.
— É verdade. Espero pacientemente que me cantem o numero, e
enquanto espero filosofo sobre os males que traz á vida a deshonestidade
dos homens.
— ? — Sim, porque se não fosse a deshonestidade dos homens
tudo se simplificaria grandemente. Esta demora no pagamento do mais simples
cheque, donde provém? Da necessidade de controle em vista dos artifícios
da deshonestidade. Fossem todos os homens sérios, não houvesse
hipotese de falsificações ou abusos, e o recebimento de um dinheiro
far-se-ia instantaneo. Ponho-me ás vezes a imaginar como seriam as
coisas cá na terra se um sabio eugenismo désse combate á
deshonestidade por meio da completa eliminação dos deshonestos.
Que paraíso! — Tem razão, concordei eu, com os olhos
parados de quem pela primeira vez reflete uma ideia. A vida é complicada,
existem leis, polícia, embaraços de toda especie, burocracia
e mil peia?, tudo porque a deshonestidade nas relações humanas
constitue, como dizes, um elemento constante. Mas é mal sem remedio…
E por aí fomos, no filosofar vadio de quem não possue coisa
melhor a fazer e apenas procura matar o tempo. Passamos depois a analisar
varios tipos ali presentes, ou que entravam e saíam, na azafama peculiar
aos negocios bancarios. O meu amigo, frequentador que era dos bancos, conhecia
muitos deles e foi-me enumerando particularidades curiosas relativas a cada
qual. Nisto entrou um velho de aparencia distinta, já um tanto dobrado
pelos anos.
— E aquele velho que ali vem? perguntei.
— Oh! Aquele é um caso sério. O professor Benson, nunca
ouviu falar? — Benson… Esse nome me é desconhecido.
— Pois o professor Benson é um homem misterioso que passa a
vida no fundo dos laboratorios, talvez á procura da pedra filosofal.
Sabio em ciencias naturais e sabio ainda em finanças, coisa ao meu
ver muito mais importante. E tão sabio que jamais perde.
Dou-me com esses rapazes todos que trabalham nas seções de
cambio e por eles sei deste homem coisas impressionantes. Benson joga no cambio,
mas com tal segurança que não perde.
— Sorte! — Não é bem sorte. A sorte caracteriza-se
por um afluxo de paradas felizes, por uma media mais alta de lucro do que
de perda.
Mas Benson não perde nunca.
— Será possível? — É mais que possível,
é fato. Deve possuir hoje enorme fortuna.
Mora em um complicado castelo lá dos lados de Friburgo, mas não
cultiva relações sociais. Não tem amigos, ninguem ainda
viu o interior do casarão onde vive em companhia de uma filha, servido
por criados mudos, ao que dizem. Você sabe que depois da guerra o mundo
inteiro jogou no marco alemão.
— Sei, sim, e fui uma das vitimas…
— Pois o mundo inteiro perdeu, menos ele.
— Absurdo! Só se fabricava marcos para vender.
— Ao contrario, comprava e revendia marcos já feitos. O marco,
talvez você se lembre, teve em certo periodo uma oscilação
de alta.
Renasceram as esperanças dos jogadores e o movimento de compras foi
enorme. Benson vendeu nessa ocasião. Logo em seguida começou
o marco desandar até zero e para nunca mais se erguer.
— Vendeu no momento exato, como quem sabe qual o momento exato de
vender…
— Isso mesmo. Com o franco fez coisa identica. Comprou exatamente
nos dias de maior baixa e vendeu exatamente nos dias de maior alta. Tem ganho
o que quer ganhar, o raio do homenzinho…
— E para que necessita de tanto dinheiro? — Ignoro. Não
leva a vida comum dos nossos ricaços, não dá festas,
não consta que seja explorado por mulheres. É positivamente
misterioso o professor Benson — um verdadeiro magico que vê através
do futuro.
Ri-me da expressão do meu amigo e qual filosofo barato murmurei com
superioridade: — Como pode ver através do que não existe?
O futuro não existe…
O corretor respondeu-me com uma frase que naquele momento não compreendi:
— Não existe, sim, mas vai existir necessariamente.
— Dois mais dois — é o presente. A soma quatro é
o futuro.
Um futuro previsível…
— "Vinte e dois!" gritou uma voz da pagadoria.
Era o meu numero.
— Dois mais dois tambem podem ser vinte e dois, gracejei eu, despedindo-me
do filosofo. Adeus, meu caro. Na proxima oportunidade você continuará
com a demonstração.
Recebi o dinheiro e saí para o torvelinho das ruas, onde breve se
me apagou do cerebro a impressão do professor Benson e das palavras
do meu amigo.
Mas dá a vida misteriosas voltas e um belo dia, ao despertar de um
sono letargico, quem vi eu diante dos meus olhos, qual um espetro? O professor
Benson!…
Não antecipemos, porém; e antes de mais nada permitam-me que
fale um bocado da minha pessoa.
Era eu um pobre diabo para toda gente, exceto para mim mesmo. Para mim tinha-me
na conta de centro do universo. Penso e sou, dizia comigo, repetindo certo
filosofo francês. Tudo gira em redor do meu ser. No dia em que eu deixar
de pensar, o mundo acaba-se.
Mas isto parece que não tinha grande originalidade, pois todos os
meus conhecidos se julgavam da mesma forma.
Eu vivia do meu trabalho, recebendo dele, não o produto, mas uma
pequena quota, o necessario para pagar o quarto onde morava, a pensão
onde comia e a roupa que vestia. Quem propriamente se gozava do meu trabalho
era a dupla Sá, Pato & Cia., gordos e solidos negociantes que me
enterneciam a alma nas epocas de balanço ao concederem-me a pequena
gratificação constituidora do meu lucro. Com eles trabalhei
varios anos, conseguindo reunir o modesto peculio que transformei em marcos
e, com grande dor d’alma, vi se reduzirem a zero absoluto, apesar da teoria
de que tudo é relativo.
Continuei no trabalho por mais quatro anos, daí por diante já
curado de jogatinas e megalomanias.
Mas todos nós possuímos um ideal na vida. Meu amigo corretor
sonha dirigir a carteira cambial de um banco. Aquele pobre que ali passa,
tocando o realejo que herdou do pai e ao qual faltam tres notas, sonha com
um realejo novo em que não falte nota nenhuma.
Eu sonhava… com um automovel. Meu Deus! As noites que passei pensando
nisso, vendo-me no volante, de olhar firme para a frente, fazendo, a berros
de klaxon, disparar do meu caminho os pobres e assustadiços pedestres!
Como tal sonho me enchia a imaginação! Meu serviço na
casa era todo de rua, recebimentos, pagamentos, comissões de toda especie.
De modo que posso dizer que morava na rua, e o mundo para mim não passava
de uma rua a dar uma porção de voltas em torno da terra. Ora,
na rua eu via a humanidade dividida em duas castas, pedestres e rodantes,
como os batizei aos homens comuns e aos que circulavam sobre quatro pneus.
O pedestre, casta em que nasci e em que vivi até aos 26 anos, era um
ser inquieto, de pouco rendimento, forçado a gastar a sola das botinas,
a suar em bicas nos dias quentes, a molhar-se nos dias de chuva e a operar
prodígios para não ser amarrotado pelo orgulhoso e impassível
rodante, o homem superior que não anda, mas desliza veloz. Quantas
vezes não parei nas calçadas para gozar o espetaculo do formigamento
dos meus irmãos pedestres, a abrirem alas inquietas á Cadillac
arrogante que por eles se metia, a reluzir esmaltes e metais! O ronco de porco
do klaxon parecia-me dizer — "Arreda canalha!" Sonhei, portanto,
mudar de casta e por minha vez levar os pedestres a abrirem-me alas, sob pena
de esmagamento. E o novo peculio, com tanto esforço acumulado depois
do desastre germanico, não visava outra coisa. Foi, pois, com o maior
enlevo d’alma que entrei certa manhã numa agencia e comprei a maquina
que me mudaria a situação social. Um Ford.
Os efeitos dessa compra foram decisivos na minha vida. Ao veremme chegar
ao escritorio fonfonando, os patrões abriram as maiores bocas que ainda
lhes vi e vacilaram entre porem-me no olho da rua ou dobrarem–me o ordenado.
Por fim dobraram-me o ordenado, quando demonstrei o quanto lhes aumentaria
o renome da firma o terem um auxiliar possuidor de automovel proprio. E tudo
correria pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis, se eu me não
excedesse na furia de fordizar a todo o transe com o fito de embasbacar pedestres.
A paixão da carreira grelara em mim e, depois de um mês, já
não contente com a velocidade desenvolvida por aquele carro, pus-me
a sonhar a aquisição de outro, que chispasse cem quilometros
por hora. O aumento de ordenado permitiu-me varias excursões de maluco,
nas quais me embriagava aos domingos da delicia de devorar quilometros.
Paguei diversas multas, matei meia duzia de cães e cheguei a atropelar
um pobre surdo que não atendera ao meu insolente "Arreda!"
Tornou-se-me o pedestre uma criatura odiosa, embaraçadora do meu direito
á rapidez e á linha reta. Pensei até em representar ao
governo, sugerindo uma lei que proibisse a semelhantes trambolhos semoventes
o transito pelas vias asfaltadas. Adquiri, em suma, a mentalidade dos rodantes,
passando a desprezar o pedestre como coisa vil e de somenos importancia na
vida.
Por essa epoca um dos meus patrões encarregou-me de liquidar pessoalmente
certo negocio com um freguês morador perto de Friburgo.
Muito facil me seria lá ir de trem, mas um rodante da minha marca
sorria dos trens. Fui no meu auto, apesar das ruins informações
que me deram do caminho. Meti boa reserva de gasolina e atirei-me qual um
doido por estradas de tropa em que, suponho, nenhum automovel ainda se arriscara
a passar. Numerosos contratempos sofri nessa minha "viagem a Damasco",
mas mesmo assim tudo acabaria sem novidade se a estrada infame não
desembocasse de improviso numa otima, recem-feita e tão bem conservada
como a melhor das pistas de corrida. Mal me vi naquele setimo céu de
macadame, dei toda a força á maquina e desforrei-me da lentidão
de até ali com uma chispada a 60 por hora, o maximo que o meu fordinho
permitia.
A região que eu atravessava era de maravilhosa beleza. Serras azues
ao longe, quais muralhas de safira a sopesarem um céu de cobalto. Dia
de limpidez absoluta. Paisagem das que vibram de nitidez. Desafeito aos formosos
quadros da natureza, distrai-me com a novidade do espetaculo e… cataprus!
Dormi um longo sono. Quando acordei achava-me num quarto desconhecido, tendo
na minha frente… o velho jogador de cambio que eu vira no banco —
o professor Benson! Grande foi a minha surpresa, e ainda maior seria se uma
forte dor no meu braço direito me permitisse pensar em alguma coisa
além da lesão sofrida nesse apendice do eixo central do universo.
— Onde estou? murmurei, olhando muito espantado para o professor Benson.
— Em minha casa, respondeu ele. Um dos meus homens o encontrou sem
sentidos no fundo de um despenhadeiro, ao lado de um Ford em pandarecos.
— O meu Ford em pandarecos! Desgraçado que sou… gemi.
A dor do braço ofendido era grande, mas a minha dor moral muito maior.
Creio até que entre perder o carro e perder um braço eu não
vacilaria na escolha. Custara-me tanto consegui-lo… E, além do mais,
dada a psicologia dos meus patrões, o certo era reduzirem-me o ordenado,
já que eu voltaria a servi-los a pé como outrora…
Tão negra noticia me sombreou de crepes a alma. Não podia
conformar-me com o desastre. Delirei. Soube mais tarde, pelo professor, que
nesse delírio uma obsessão unica transparecia: o desespero ante
o meu retorno á miseravel casta dos pedestres…
Mas tudo passa. A dor do braço foi atenuando e a dor moral acompanhou-a
nesse amortecimento, de modo que pude erguer-me da cama ao cabo de quinze
ou vinte dias.
Vi então desenhar-se na minha frente um problema terrível.
Davam-me alta em breve e, não havendo mais razão para permanecer
naquela casa estranha, forçoso me seria regressar á cidade.
E teria de me apresentar diante dos senhores Sá, Pato & Cia. a
pé, murcho, resignado ás suas pilherias e á logica redução
de salario. Revoltado, deliberei mudar de vida. Quando na manhã seguinte
o professor Benson me apareceu no quarto, abri-me com ele.
— Professor, não sei como agradecer o bem que me fez!…
— Fiz o meu dever apenas, declarou com simplicidade o velho.
— Salvou-me a vida, professor. Não fosse a sua preciosa assistencia
e o provavel era estar eu agora esvoaçando pelo outro mundo, como froco
de paina psíquica. Minha gratidão é imensa. Mas seria
infinita se o professor me ajudasse a resolver o problema muito serio que
vejo armar-se diante de mim.
— Diga qual é. Já resolvi diversos, tidos como insoluveis,
e serme- ia grato resolver mais um…
Animado pela bonomia do velho, abri meu coração. Contei-lhe
a mediocridade da minha vida, os meus esforços para juntar o peculio
empatado no automovel, a transformação que as quatro rodas me
operaram na mentalidade e o horror com que via agora o forçado regresso
ao pedestrianismo.
— O professor é opulento e pelo que vejo possue uma grande
e linda propriedade. Precisará, portanto, de homens que trabalhem nela.
Eu não queria sair daqui. Arranje-me uma ocupação qualquer,
seja lá qual for. Tenho algumas aptidões e, como a boa vontade
é grande, para isto ou aquilo sempre hei de servir. O que não
desejo é voltar á cidade e ter de apresentar-me, assim decaído,
ante os meus truculentos patrões…
O professor Benson pareceu meditar. Tirou do nariz os oculos de ouro, limpou-lhes
os vidros num lenço de linho e depois disse: — Não necessito
aqui de ninguem. Possuo o numero de criados estritamente precisos para conservação
desta propriedade e nela não vejo função que o amigo
possa desempenhar. E não o admitiria em hipotese alguma, se de dias
a esta parte não sentisse cá no coração prenuncios
de que minha vida está no fim. Isto me faz sair da política
que tenho levado até hoje e aceita-lo em minha companhia como… confidente.
— Confidente?… repeti, sem compreender o alcance da expressão.
— Sim, confidente. Aproveito-me do acaso te-lo trazido ao meu encontro
para confiar-lhe a historia da minha vida. Mas desde já dou um conselho:
guarde segredo de tudo, depois que eu morrer. Não que seja caso de
segredo, mas vai o amigo ouvir e ver coisas tão extraordinarias que,
se o for contar lá fora, o agarram e o metem no hospício como
doido varrido. Digo que guarde segredo para seu bem apenas. Agora saia. Dê
pelos campos o seu primeiro passeio de convalescente e antes do almoço
procure-me no gabinete.
Findo o discurso o professor premiu o botão duma campainha.
Sem demora vi surgir um criado.
— Acompanhe este moço num passeio pelos arredores e Se volta
conduza-mo ao gabinete.
CAPITULO II – A Minha Aurora
Pela primeira vez depois de recolhido áquela mansão punha eu
o nariz fora do meu quarto de doente.
Senti-me surpreso. A casa do professor Benson não era ao tipo da
casa vulgar. Dava antes ideia de uma especie de castelo, não pelo estilo,
que não lembrava nenhum dos castelos classicos que eu vira reproduzidos
em cartões postais, mas pela massa e o estranho da construção.
Olhei para aquilo com marcado espanto. Além do corpo fronteiro, evidentemente
moradia familiar, erguiam-se pavilhões, galerias envidraçadas
e varios minaretes altíssimos, ou, melhor, torres de ferro enxadrezado,
entretecidas de fios de arame.
— Que diabo de casa é esta? perguntei ao criado, voltando-me
para ele.
O criado, um tipo de misterioso aspecto e mais com ar de automato do que
de gente, permaneceu imovel atrás de mim, sem mostras de ter ouvido.
Repeti-lhe a pergunta, e nada. Lembrei-me então da minha conversa
com o corretor, quando me deu informes sobre o sabio Benson e contou que vivia
misteriosamente, servido por criados mudos. Sem duvida era aquele um dos tais.
Isto fez-me estremecer. O pouco que eu vira já me provara não
ser o morador do castelo um homem comum — e o viver servido por mudos
inda mais me aguçava a ponta do enigma.
Prossegui, entretanto, no meu passeio, conformado em faze-lo cm silencio,
uma vez que o mutismo era a senha da casa.
Em redor do castelo estendiam-se campos e florestas. Região montanhosa
mas de relevo suave, cochilas mansas que ao longe ganhavam corpo até
se erguerem na morraria de um dos contrafortes da serra do Mar. Nos vales,
belos capões de mata virgem; e nas lombas, um tapete de gramineas crioulas,
naquela epoca revestidas de florinhas roseas.
Notei logo que a natureza não era ali trabalhada. Tudo vivia em estado
selvagem, sem sombra de intervenção humana além da impressa
nos caminhos. Nem gado nas pastagens, nem sombras de cultura — porteiras
ou cercas. Um pedaço de natureza virgem onde o homem só abriria
passagens que lhe dessem o gozo das perspectivas naturais.
Compreendi que não estava numa fazenda. Homem de posses, o professor
Benson teria aquilo apenas para recreio dos sentidos, sem o menor recurso
ás possibilidades do solo. Unicamente em redor da casa havia algo beneficiado:
belo jardim todo garrido de rosas; aos fundos, o pomar.
Caminhei por espaço de meia hora e, no alto de uma colina, sentei-me
no topo de um cupim para admirar a vista soberba dali descortinada. Impressionava
estranhamente aquele castelo de inexplicavel arquitetura, em meio duma natureza
rude e calma, onde só uma ou outra ave silvestre rompia o silencio
com o seu piar.
Afeito ao meu viver de cidade, no tumulto das ruas, aquele silencio e aquela
solidão punham-me novidades n’alma. Senti no cerebro um referver de
ideias novas, a sairem da casca que nem pintos.
A impressão geral que tive diante da natureza liberta da presença
e ação do homem, coisa que via pela primeira vez, foi da minha
absoluta nihilidade — da nihilidade absoluta dos meus patrões,
naquele momento a se esbofarem no escritorio e a maldizerem do empregado desaparecido
sem licença. — Para eles era eu o empregado — e tambem
vinte dias antes eu me considerava apenas um empregado, isto é, humilde
peça da maquina de ganhar dinheiro que os senhores Sá, Pato
& Cia. houveram por bem montar dentro de uma certa aglomeração
humana. Mas ali não me via empregado de ninguem; era um ser igual ás
ervas que esverdeciam as colinas, ás arvores que frondejavam nas grotas
e ás aves que piavam nas moitas. Sentia-me deliciosamente integrado
na natureza.
Minha loquela desaparecera. A necessidade de falar a todo o transe, tamanha
que me fazia ás vezes falar sozinho, se substituira pela necessidade
do silencio. Cheguei a agradecer a finura do velho sabio em dar-me um companheiro
mudo, compreendendo que, se em vez dele ali estivesse o meu barbeiro, terrível
altofalante de futebol e jogo de bicho, bem certo que eu chegaria ao extremo
de amordaça-lo.
Talvez até nem fosse mudo de nascença o criado, mas apenas
emudecido por influição local. Comigo vi que tambem emudeceria,
se permanecesse algum tempo naquele deserto.
O ar livre abriu-me o apetite e o apetite aberto fez-me lembrar do almoço
e da ordem de aparecer antes dele no gabinete do professor Benson. Tratei
de voltar — e ao pôr pé no castelo já me sentia
bem outro homem, varrido das preocupações de outrora e absolutamente
exonerado, por incompatibilidade psicologica, das funções de
factotum cronico dos senhores Sá, Pato & Cia.
CAPITULO III – O Capitão Nemo
Quando o criado me fez entrar no gabinete do doutor Benson o velho não
se achava ali. Aproveitei o ensejo para correr os olhos pelas paredes e admirar,
ou antes, embasbacar-me com as estranhas coisas que via. Devo dizer que não
compreendi nada de nada.
Conhecia o gabinete de trabalho dos meus patrões e o de muitos outros
negociantes. Tambem conhecia consultorios medicos, salas de advogado, salões
de hotel, e facilmente tomava pé num deles. Os moveis, os quadros das
paredes, os objetos de cima de mesa, os bibelôs, as estatuetas, essas
coisas todas me valiam por marcas digitais das que revelam a profissão
do dono. No gabinete do professor Benson, porém, tudo me era desnorteante
e, fora as poltronas, nas quais o corpo afundava, como nas do Derby Club,
onde estive uma vez á procura dum figurão, tudo mais me valia
por citações em caracteres chineses numa pagina em lingua materna.
Pelas paredes, quadros — não quadros comuns com pinturas ou retratos,
mas quadros de marmore, como os das usinas eletricas, inçados de botõezinhos
de ebonite. E reentrancias, afunilamentos que se metiam pelos muros como cornetas
de gramofone, lampadas eletricas dos mais estranhos aspectos, grupos de fios
que vinham aos quatro, aos cinco, aos vinte e de repente se sumiam pelo muro
a dentro.
Todavia, o que mais me prendeu a atenção foi, ao lado da secretária
do professor, um enorme globo de cristal, e sobre ela, apontado para o globo,
um curioso instrumento de olhar, ou que me pareceu tal por uma vaga semelhança
com o microscopio.
Eu lera em criança um romance de Julio Verne, Vinte Mil Leguas Submarinas,
e aquele gabinete misterioso logo me evocou varias gravuras representando
os aposentos reservados do capitão Nemo.
Lembrei-me tambem do professor Aronnax e senti-me na sua posição
ao ver-se prisioneiro no "Nautilus".
Nesse momento uma porta se abriu e o professor Benson entrou.
— Bom dia, meu caro senhor… Seu nome? Ainda não sei o seu
nome.
— Ayrton Lobo, ex-empregado da firma Sá, Pato & Cia., respondi,
fazendo uma reverencia de cabeça e carregando no ex com infinito prazer.
— Muito bem, disse o professor. Queira sentar-se e ouvir-me.
O habito de sempre falar de pé aos ex-patrões impediu-me de
cumprir a primeira ordem dada pelo meu novo chefe, e vacilei uns instantes,
permanecendo perfilado. O professor Benson compreendeu a minha atitude; pos-me
a mão no ombro e, paternalmente, murmurou na sua voz cansada: —
Sente-se. Não creia que o vou reter aqui como a um subalterno. Disse
que iria ser o meu confidente e os confidentes não se equiparam aos
homens de serviço. Sente-se e conversemos.
Sentei-me sem mais embaraço, porque o tom do misterioso velho era
na realidade cordial.
— O senhor Ayrton, pelo que vejo e adivinho, é um inocente,
começou ele. Chamo inocente ao homem comum, de educação
mediana e pouco penetrado nos segredos da natureza. Empregado no comercio:
quer dizer que não teve estudos.
— Estudos ligeiros, ginasiais apenas, expliquei com modestia.
— Isso e nada é o mesmo. Eu preferia ter para confidente um
sabio ou, melhor, uma organização de sabio, inteligencia de
escol, das que compreendem. Em regra, o homem é um bipede incompreensivo.
Alimenta-se de ideias feitas e desnorteia diante do novo. Mas costumo respeitar
as injunções do Acaso. Ele o trouxe ao meu encontro, seja pois
o meu confidente. E saiba, senhor Ayrton, que é a primeira criatura
humana aqui entrada desde que conclui a construção deste laboratorio.
— O castelo, quer dizer? — Sim, o castelo, como romanticamente
lhe apraz chamar esta oficina de estudos onde realizei a mais extraordinaria
descoberta de todos os tempos.
Sem querer dei um recuo na poltrona, pensando logo na pedra filosofal e
no elixir da longa vida.
— Não se assuste, nem arregale, dessa maneira, os olhos. Nem
tente adivinhar o que é. Saiba apenas que se acha diante de um homem
condenado a levar consigo ao tumulo o seu invento, porque esse invento excede
á capacidade humana de adaptação ás descobertas.
Se eu o divulgasse, pobre humanidade! Seria impossível prever a soma
de consequencias que isso determinaria. Se houvesse, ou antes, se predominasse
no homem o bom senso, a inteligencia superior, as qualidades nobres em suma,
sem medo eu atiraria á divulgação a minha maravilhosa
descoberta. Mas sendo o homem como é, vicioso e mau, com um pendor
irredutível para o despotismo, não posso deixar entre eles tão
perigosa arma.
— Quer dizer, atrevi-me a murmurar, que se o doutor quisesse…
— Se eu quisesse, interrompeu-me o velho sabio, tornar-me-ia o senhor
do mundo, pois me vejo armado de uma potencia que até hoje os místicos
julgaram atributo exclusivo da divindade.
Dei novo recuo na cadeira, desta vez meio na duvida se falava com um somem
sadio dos miolos ou com um maluco. O ar sempre sereno do professor Benson
acomodou-me, porém.
— Mas não quero. A dominação sobre o mundo não
me daria prazeres maiores que os que gozo. Não me faria ver mais azul
e límpida aquela serra, nem respirar com mais prazer este ar puro,
nem ouvir melhor musica que a do sabiá que todas as tardes canta numa
das laranjeiras do pomar. Além disso, estou velho, tenho os dias contados
e nada do que é do mundo consegue interessar-me. Vivi demais, satisfiz
demais a minha outrora insaciavel, mas hoje saciada, curiosidade de sabio.
Só aspiro a morrer sem dor e desfazer-me na vida do universo transfeito
em atomos. Quem sabe se cada um desses atomos não levará consigo
a capacidade de gozo que ha em mim, e se com esse desdobramento não
elevo ao extremo as minhas possibilidades?…
Não compreendi muito bem, lento que sou de espirito, a alta filosofia
do professor; mas calei-me, cheio de admiração pelo homem que
podendo ser imperador, presidente de republica, rei do aço, sultão
ou o que lhe desse na telha, visto que podia tudo, contentavase com ser um
misterioso velhinho ignorado do mundo e á espera da morte naquele sereno
recanto da natureza.
Nisto um criado surgiu á porta e fez sinal.
— Vamos ao almoço, senhor, Ayrton. Depois continuarei nas minhas
confidencias, disse-me o professor erguendo-se com dificuldade da poltrona.
CAPITULO IV – Miss Jane
Na sala de almoço tive uma nova surpresa. Estava lá, e recebeunos
com gentil sorriso, a mais encantadora criatura que meus olhos ainda viram.
— Minha filha Jane, apresentou-ma o velho.
Como eu esperava tudo, menos encontrar ali uma figura feminina, atrapalhei-me
e gaguejei, visto que sou timido diante das mulheres formosas. Já com
as feias, ou velhas, sinto-me desembaraçadíssimo. Mas cabelos
louros como aqueles, olhos azues como aqueles, esbelteza e elegancia de porte
como as de miss Jane, eram ingredientes fortes demais para que não
produzissem a ruptura do meu equilíbrio nervoso. Gaguejei, já
disse, e fui logo tropeçando num pé de cadeira, o que muito
me vexou, embora não fizesse rir á moça.
Esta contensão de sua parte provou-me que eu estava diante de uma
criatura finamente educada e generosa.
Correu sem incidentes o almoço, e nada vi nele de misterioso.
Pratos simples, servidos em baixela fina, tudo despido dos excessos que
caracterizam a mesa dos ricaços amigos de nas menores coisas exibirem
o seu dinheiro.
Miss Jane falou ao pai de tres filhotes de pintassilgos que encontrara no
pomar, num ninho feito de raízes de capim.
— Gosta de passaros, senhor Ayrton? perguntou-me num gracioso sorriso.
Confesso que eu até ignorava a existencia de passaros no mundo.
A minha vida de cidade, no corre-corre das ruas desde menino, sem nunca
umas férias passadas no campo, impedia-me de prestar atenção
a essas vidinhas aladas, que constituem um dos enlevos dos contemplativos.
— Gosto, sim, senhora, respondi eu, se bem que em materia de passaros
só me lembre dum periquito vitima duma menina filha lá da firma.
— Pois aprenderá aqui a adora-los. O sabiá que todas
as tardes canta numa das laranjeiras do pomar, com certeza já lhe atraiu
a atenção. Temos tambem varios outros amiguinhos que de lá
não saem, pintassilgos, sanhaços, rolinhas, sairas…
— O senhor Ayrton, interveio o professor, vai ficar aqui conosco.
Tem muito que ouvir e aprender. Vou revelar-lhe os segredos da natureza,
e tu, Jane, lhe revelarás a poesia. Estes homens da cidade têm
a visão muito restrita; o mundo para eles se resume na rua, nas casas
marginais e no torvelinho humano.
— Realmente, professor. A impressão que tive hoje durante o
meu passeio pelo campo abriu-me a alma. Verifiquei que o mundo não
é só a cidade, e que o centro do universo não é
a firma Sá, Pato & Cia., como toda vida supus.
— O mundo, meu caro, é um imenso livro de maravilhas. A parte
que o homem já leu chama-se passado; o presente é a pagina em
que está aberto o livro; o futuro são as paginas ainda por cortar.
E a uma criatura que nem conhece a pagina aberta ante os olhos, como o senhor,
vou eu revelar o que a ninguém ainda foi revelado: algumas futuras!
Olhei para o professor Benson com ar palerma, porque sempre me apalermava
o que ele dizia. Tinha o sabio uma linguagem nova para mim, da qual eu apreendia
apenas o sentimento formal, não o sentido intimo. Animei-me, entretanto,
a uma frase: — Miss Jane com certeza conhece também essas paginas
futuras.
— Sim, eu e ela, respondeu o professor. Só nós dois,
no mundo inteiro e desde que o mundo é mundo, gozamos deste privilegio
maravilhoso. Enviuvei muito cedo e minha família está hoje reduzida
a Jane. É a minha companheira de analises dos cortes anatomicos do
futuro.
"Cortes anatomicos do futuro"… A expressão soou-me como
outrora a do senhor Sá quando pela primeira vez me falou em ‘lançamento
por partidas dobradas", coisa que hoje não ignoro mas que na epoca
me valeu por um "corte anatomico".
Nesse ponto do almoço fez-se notar certa zoada distante vinda não
sabia eu de onde.
— Deixaste o cronizador aberto, Jane? — Sim, meu pai. Deixei-o
em marcha para 410 anos de hoje, focalizado para 80.° de latitude N. e
40 de longitude. Experiencia ao acaso, pois nem verifiquei onde fica esse
ponto.
— Groenlandia. O corte não revelará coisa nenhuma, suponho.
Não creio que em 410 anos as condições do mundo se
alterem a ponto de haver lá outra vida alem da dos esquimós,
ursos e focas.
— Em todo o caso vejamos, disse a moça. Temos tido tantas surpresas…
— Minha filha, senhor Ayrton, possue mais frieza de sabio do que eu.
Não perde tempo em formular hipoteses quando tem ao alcance meios de
verificar experimentalmente.
Ri-me. Acho que a melhor maneira de figurar numa roda onde se falam coisas
acima da nossa compreensão é sorrir para o interlocutor que
nos dirige a palavra. Se o riso não engana a ele, engana-nos a nós
e livra-nos de uma replica verbal, que sai asneira infalivelmente. De todo
o dialogo da filha com o pai só me evocou uma imagem já classificada
em meu cerebro a palavra Groenlandia.
Lembrei-me dos meus tempos de geografia e da impressão que me causara
a descrição da Terra Verde, ou Groenlandia, feita pelo meu barbudo
professor Maneco Lopes. E por associação me vieram á
mente ursos brancos, focas, leões marinhos, pinguins, esquimós.
Querendo contribuir com uma nota para a conversa, e fingindo entender o
que eles haviam dito, arrisquei: — Não ha duvida, a Groenlandia
é um caso sério. Uma piririca! Foi a vez do professor Benson
franzir os sobrolhos no gesto classico da incompreensão. Vi que aquele
homem, que sabia tudo e lia o futuro, ignorava alguma coisa do presente —
a gíria da cidade, e firmeime na resolução de dar com
a giria em cima dele para ve-lo refranzir a testa muitas vezes.
— Que? indagou o velho sabio.
— Sim, expliquei eu sem erguer os olhos para miss Jane com medo de
desnortear. A Groelandia é um caso, um numero. Quanto o pinguim cisma
p’ra cima do peixe e o urso gréla a foca…
Mas o professor Benson cortou-me as vazas.
— Não refletiu nunca, meu caro senhor Ayrton, na oportunidade
do silencio? O silencio é sabio, é uma das mais altas formas
da sabedoria. Foi silenciando que Jesus deu ao "Que é a verdade?"
de Pilatos a unica resposta acertada…
— Papai, interveio a moça evidentemente apiedada da minha situação,
está aí uma experiencia que ainda não fizemos! Involuir
a corrente e operar um corte no ano 33, a ver se apanhamos essa cena historica…
— Realmente é uma ideia, minha filha, e mais curiosa do que
o exame da Groenlandia, onde, como diz cá o amigo, o urso gréla
a foca…
CAPITULO V – Tudo Eter que Vibra
Saí daquele almoço com as ideias mais desnorteadas do que nunca.
Um elemento novo contribuía para isso; miss Jane, criatura singularmente
perturbadora, pois, além de agir sobre meus fragilimos nervos como
todas as moças bonitas, ainda me tonteava com a sua mentalidade de
sabio. De tudo quanto a jovem disse só me ficou claro no espirito a
historia dos passarinhos do pomar. Até ali pareceu-me uma criatura
tal as outras, mas depois do "corte anatomico" tudo se complicou
e passei a ve-la qual um misterioso idolo de divindade dupla, mixto de Afrodite
e Minerva.
Depois do almoço levou-me o professor a ver os laboratorios.
Atravessei numerosas salas e pavilhões cuja composição
entendi menos que a do gabinete. Quanta maquina esquisita, tubos de cristal,
ampolas, pilhas eletricas, bobinas, dínamos — extravagancias
de sabio! Eu conhecia varias oficinas mecanicas, mas nelas nunca me tonteava.
Tornos, maquinas de cortar e furar, bigornas, martelos automaticos, laminadores,
fresas, tudo isso eu via e compreendia, pois apesar de complicados na aparencia
evidenciavam logo uma função esclarecedora. Mas ali, santo Deus!
Que caos! Não consegui entender coisa nenhuma e mesmo depois que o
velho sabio mas explicou manda a verdade confessar que fiquei na mesma.
Isto aqui, disse ele na primeira sala, são aparelhos eletro-radioquimicos,
na maioria criados ou adaptados por mim e que constituíram o ponto
de partida da minha descoberta. Se o amigo Ayrton fosse tecnico, eu os explicaria
um por um, mas será difícil fazerme entender por quem não
possue uma solida base de ideias cientificas. Resumirei dizendo que neste
velho laboratorio consumi os trinta anos da minha mocidade em pesquisas pacientíssimas,
culminantes na construção daquela antena que o amigo lá
vê no alto da torre.
Olhei e vi uns fios entrecruzados formando um desenho geometrico.
— Parece uma teia de aranha! murmurei.
— E é de fato uma teia de aranha. A aranha sou eu. Com essa
teia apanho a vibração atomica do momento.
— "Vibração atomica do momento"… repeti,
fazendo um furioso esforço mental para compreender a novidade.
— Sim. A vida na terra é um movimento de vibração
do eter, do atomo, do que quer que seja uno e primario, entende? — Estou
quasi entendendo. Já li um artigo no jornal onde um sabio provava que
só ha força e materia, mas que a materia é força,
de modo que os dois elementos são um, como os tres da Santíssima
Trindade tambem são um, não é isso? — Mais ou menos.
Nomes não vêm ao caso. Força, eter, atomo: denominações
arbitrarias de uma coisa una que é o principio, o meio e o fim de tudo.
Por comodidade chamarei eter a esse elemento primario. Esse eter vibra e,
conforme o grau ou intensidade da vibração, apresenta-se-nos
sob formas. A vida, a pedra, a luz, o ar, as arvores, os peixes, a sua pessoa,
a firma Sá, Pato & Cia.: modalidades da vibração
do eter. Tudo isso foi, é e será apenas eter.
Não pude deixar de sorrir lembrando-me da cara que fariam os senhores
Sá, Pato & Cia. se ouvissem as palavras do sabio. Eter, eles…
— Mas não ha somente eter no mundo, continuou o mestre.
Se só houvesse eter e fosse de sua essencia vibrar, a vibração
seria uniforme e tornaria impossível a manifestação de
formas de vida.
Seria o estatismo eterno.
— Sei, um zum-zum, uma zoada de não acabar mais.
— Muito bem, está compreendendo. A vibração do
eter, pois, sofreu a interferencia… Sabe o que é interferencia? —
Uma coisa que se insinua pelo meio; intrometer a colher torta na conversa
dos mais velhos deve ser, cientificamente, uma interferencia.
— Perfeitamente. Sofreu a interferencia do que cá no vocabulario
que criei com minha filha chamo — o Interferente. Isto de palavras não
tem importancia, como já disse. Só vale a ideia. O Interferente
poderá para outros ter o nome de Deus, por exemplo, ou de Vontade.
Os filosofos que filosofam com palavras passam a vida a debater qual a melhor
palavra a aplicar ao meu Interferente, como se palavras jamais esclarecessem
alguma coisa.
— Vai indo muito bem, professor. Ha o eter que vibra e ha o Interferente
que se mete no meio…
— Isso. Interfere e provoca a variação vibratoria. Essa
variação cria correntes que se chocam umas com as outras, modificam-e
se dão origem a todas as formas de vida existentes. A vida, pois, não
passa da vibração do eter modificada pela ação
do…
— Interferente! concluí, glorioso.
Parece que o professor Benson mudou a ideia que formava de mim. Viu que
o discípulo aprendia depressa e, voltando atrás, como se valesse
a pena instrui-lo mais a fundo, passou a explicar-me dezenas de coisas do
seu laboratorio, na intenção de confirmar-me nos princípios
que o levaram á dedução da formula: Eter + Interferencia
= Vida.
Depois que me viu já bem seguro das suas teorias, continuou: —
Preste atenção agora, que este ponto é capital. O interferente
não interfere sempre. O Interferente interferiu uma só vez!
Parei um pouco atordoado.
— Espere, doutor. Dê-me tempo de assentar as ideias. O Interferente
veio, interferiu e parou de interferir. É isso? — Perfeitamente.
Quebrou a uniformidade da vibração, perturbou o unissonismo…
— O zum-zum! — …e desde então o fenomeno vida, que
tambem podemos denominar universo, desenvolve-se por si, automaticamente,
por determinismo. As coisas vão-se determinando…
— Uma puxa a outra.
— Isso. Uma determina a outra. Daí vem falarem os velhos filosofos
em lei da causalidade, "todo efeito tem uma causa", "toda causa
produz efeitos", etc.
— Aristoteles. . . ia eu arriscando.
— Deixe Aristoteles em paz. Estamos na determinação
universal, e a vida, ou o universo, é para nós o momento consciente
desta determinação.
— "Momento consciente"… repeti forçando o cerebro.
— O senhor Ayrton, por exemplo, é um momento consciente da
determinação universal ás 13 horas e 14 minutos do dia
3 de janeiro do ano de 1926, aos 22.° e 35′ de latitude S. e 35.°
e 3′ de longitude ocidental do meridiano do Rio de Janeiro.
— Admiravel! exclamei com entusiasmo e cheio de orgulho, compreendendo
afinal a minha verdadeira significação na vida. Mas o futuro,
doutor? Muito mais que a definição cientifica do que sou, interessam-me
as suas visões do futuro.
— Para lá chegar temos que ir por este caminho. Começamos
do eter inicial, admitimos a Interferencia e estamos na Determinação,
que é o que os filosofos chamam presente… O futuro é a Predeterminação.
Franzi os sobrolhos. A palavra era nova para mim e a ideia muito mais. O
professor Benson expo-la com luminosa clareza e mostrou-me o maravilhoso do
determinismo. Em certo ponto da sua exposição lembrei-me do
amigo corretor e da sua comparação do 2 + 2 = 4. Fingi que era
minha a imagem e arrisquei: — Dois mais dois igual a quatro.
O professor Benson entreparou, com a fisionomia radiante. Em seguida estendeu-me
a mão.
— Meus parabens! Vejo que o senhor Ayrton é muito mais inteligente
do que a principio supus. Nessa imagem está toda a minha filosofia;
2 + 2 significa o presente; 4 significa o futuro. Mas, assim que escrevemos
o presente 2 + 2, o futuro 4 já está predetermindo antes que
a mão o transforme em presente lançando-o no papel. Aqui, porém,
são tão simples os elementos que o cerebro humano, por si mesmo,
ao escrever o 2 + 2, vê imediatamente o futuro 4. Já tudo muda
num caso mais complexo, onde em vez de 2 + 2 tenhamos, por exemplo, a Bastilha,
Luis 16, Danton, Hobespierre, Marat, o clima de França, o odio da Inglaterra
além Mancha, a herança gaulesa combinada com a herança
romana, o bilhão de fatores, em suma, que faziam a França de
89. Embora tudo isso predeterminasse o "quatro" Napoleão,
esse futuro não poderia ser previsto por nenhum cerebro em virtude
da fraqueza do cerebro humano. Pois bem: eu descobri o meio de predeterminar
esse futuro — e ve-lo! — Mas é assombroso, professor! É
a mais espantosa descoberta de todos os tempos! exclamei de olhos arregalados.
Entretanto, permita-me uma duvida. Se esse futuro ainda não existe,
como o pode ver? — O 4 antes de ser escrito tambem não existe;
no entanto o amigo o vê tão claro no presente 2 + 2 que o escreve
incontinenti.
O argumento calou fundo. Pisquei sete vezes, com a testa fortemente refranzida.
— O futuro não existe, continuou o sabio, mas eu possuo o meio
de produzir o momento futuro que desejo.
Tonteando pelo tom categorico daquela afirmativa não ousei duvidar,
e estava ainda apalermado com a maravilhosa revelação quando
miss Jane apereceu, esplendida de formosura.
Esqueci toda aquela altíssima ciencia que já me dava dor de
cabeça e regalei os olhos na sua imagem perturbadora.
Saudou-me com um gesto amavel e disse, dirigindo-se ao professor: —
Tinha razão, meu pai. Já fiz o corte e lá só vi
as eternas brancuras da neve.
E voltando-se para mim: — Tem aprendido muita coisa, senhor Ayrton?
— Mais que em toda a minha vida, miss Jane, e começo a bendizer
o acaso que me fez vitima de um desastre.
— E está tão no começo ainda! Quando entrar no
segredo de tudo e puder ver diretamente uns cortes, o seu assombro vai ser
ilimitado.
— Já prevejo isso, senhorita, e…
E engasguei-me. Miss Jane olhara-me nos olhos e eu não era criatura
que suportasse de frente um olhar assim. Cheguei a corar, creio, o que inda
mais aumentou a minha perturbação. Felizmente a boa criatura,
vendo que eu me calava, voltou-se para o professor Benson e disse: —
Mas agora, meu pai, treguas ás revelações. O café
está na mesa e com uns bolinhos tentadores que eu mesma fiz. Senhor
Ayrton, vamos…
CAPITULO VI – O Tempo Artificial
Quando de novo me encontrei com o professor Benson no laboratorio prosseguiu
ele na exposição interrompida.
— Onde estavamos, senhor Ayrton? — Na pre-determinação.
— Sim. Foi nesse ponto que Jane nos interrompeu. Pois bem: se tudo
inexoravelmente se determina pela influencia reciproca das vibrações,
se é isto pura mecanica, embora duma meta-mecanica inaccessivel ás
forças da inteligencia do homem, é logico que a predeterminação
é possível em teoria.
— E na pratica tambem! aventei eu iluminado de subita ideia.
Homens ha que adivinham ocorrencias futuras. Eu mesmo já tive ocasião
de observar comigo um curioso caso de pressentimento lá nos negocios
da firma. Veiu-me não sei de onde a ideia de que um freguês ia
falir. Disse-o ao senhor Sá, o qual me chamou de tolo. Um mês
mais tarde esse freguês abria bancarrota! Nunca me pude explicar isso
pois nada conhecia dos seus negocios, nem coisa nenhuma ouvira falar a respeito.
— Esse caso pode ser visto de outra maneira. A ideia de requerer falencia
podia estar em ação no cerebro do freguês. Ideia é
vibração que repercute em ondas como tudo mais, e certos cerebros
possuem bela faculdade emissiva ou receptora. Emitiu esse freguês uma
vibração da ideia e o cerebro do senhor Ayrton agiu como polo
receptor.
— Mas a leitura das linhas da mão? A quiromante que na Martinica
predisse a Josefina, então simples burguesinha crioula, que seria imperatriz
da França? — Aí já o caso é diverso, como
no de todas as profecias comprovadas. Havemos que conceber certas organizações
possuidoras duma faculdade pre-determinante. E não me custa admitir
isso, já que construi o pre-determinador.
— Que significa essa nova palavra, professor? — Vamos ao pavilhão
vizinho; lá me compreenderá melhor.
Passamos á sala imediata, recinto envidraçado e em forma de
funil, cujo bico era uma das tais torres de ferro enxadrezado.
— Aqui temos o nervo ótico do futuro. Chamo a este conjunto
"o grande coletor da onda Z." Eu andava de novidade em novidade
e por mais alerta que pusesse o cerebro tinha de fazer paradas constantes,
pedindo ao professor explicações parciais.
— Onda Z, professor Benson? Ainda não me falou nela.
— Só agora chegou o momento. A multiplicidade infinita das
formas, isto é, das vibrações do eter, produz turbilhões
ou ondas, que consegui classificar uma por uma e captar por meio deste conjunto
receptor que as polariza…
— ?I — Polarizar é reunir tudo num só ponto, num
polo.
— Compreendo.
— Este conjunto receptor polariza os turbilhões e os funde
numa especie de corrente continua, ou, usando de imagem concreta, de um jacto.
Suponha milhões de gotas de chuva a caírem num imenso funil
e a sairem pelo bico sob a forma continua de um jorro cristalino. Todas as
gotas estão no jacto, mas fundidas e sob outra forma. Assim o meu coletor.
Apanha o turbilhão das ondas e as polariza naquele aparelho.
Olhei para o aparelho que o dedo do professor apontava e apenas vi um emaranhado
de fios e grandes carreteis de arame, que em calão eu definiria muito
bem com a palavra estrumela. Mas guardei o vocabulo, visto que a lição
da Groenlandia ainda estava muito fresca em minha memoria.
— Consigo assim, prosseguiu o sabio, concentrar em minhas mãos
o presente, isto é, o momento atual da vida do universo, como imensa
paisagem panoramica que toda se reflete numa chapa fotografica e nela se conserva
latente até que vá ao banho revelador. Quer isto dizer que na
corrente continua, invisível como o fluido eletrico, que gira naquele
caos aparente de fios, solenoides e bobinas, está tudo quanto constitue
o momento universal! Apesar da segurança do velho sabio e da solidez
de suas deduções eu permanecia numa vaga duvida. Na minha curteza
mental eu achava excessivo estar tudo quanto existe reduzido a tão
homeopaticas proporções e, ainda mais, impalpavel e invisível.
O professor Benson adivinhou a minha indecisão e esmagou-a como quem
esmaga uma pulga.
— Sabe o que é isto? perguntou mostrando-me uma coisinha de
minusculas dimensões.
— Uma semente, respondi.
— E que é uma semente? Uma pre-determinação.
Aqui dentro está predeterminada uma arvore de colossais dimensões
que se chama jequitibá. Se o amigo admite que desta semente, que analisada
só revela a presença de um bocado de amido, sais, graxa, etc.
Surja sempre, e de um modo fatal, um majestoso jequitibá, porque vacila
em admitir um fenomeno semelhante, qual a polarização do momento
universal numa semente, que no caso é o fluido que circula no meu aparelho?
O simile matou-me de vez todas as veleidades de cepticismo e foi como quem
ouve a voz de Deus que dali por diante me entreguei sem reservas ás
palavras do sábio.
— Prossiga, doutor, murmurei.
O professor Benson prosseguiu.
— Obtenho, pois, neste aparelho, uma corrente continua, que é
o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente. Os cardumes de peixes que
neste momento agonizem no seio do oceano ao serem apanhados pela agua tepida
da Corrente do Golfo; o juiz bolchevista que neste momento assina a condenação
de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em Zorn, neste
momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha; a flor do pessego
que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucocito
a envolver um microbio malevolo que penetrou no sangue dum fakir da India;
a gota d’agua que espirra do Niagara e cai num liquen de certa pedra marginal;
a matriz de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair
no molde; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do
potro que passou a galope; o beijo que num estudio de Los Angeles Gloria Swanson
começa a receber de Valentino…
— A fatura que neste momento o senhor Sá está acabando
de somar… Compreendo, professor. Toda a vida, todas as manifestações
poliformes da vida, tudo está ali, como o jequitibá, com todos
os seus galhos e folhas e passarinhos que pousam nele e cigarras que o elegem
para palco de suas cantorias, está dentro da sementinha. Não
é isso? conclui radiante.
O professor Benson riu-se do meu entusiasmo e pareceu-me na realidade satisfeito
com o discípulo.
— Perfeitamente, amigo Ayrton. Tudo está ali. Pela primeira
vez desde que o mundo é mundo consegue o homem esse espantoso milagre
— mas só eu sei o que isso me custou de experiencias e tentativas
falhas!… Fui feliz. O Acaso, que é um Deus, ajudou-me e hoje me sinto
na estranha posição de um homem que é mais do que todos
os homens…
Sua fisionomia irradiava tanta luz — a luz da inteligencia, —
que só a poderia suportar um inocente da minha marca. Estou convencido
de que se outro sabio o defrontasse naquele instante estarreceria de assombro,
considerado como Isaias diante das sarças ardentes quando delas trovejou
a voz de Jeová. A minha ingenuidade, a minha inocencia mental salvou-me.
Hoje estremeço quando penso em tudo isso, como estremeceu Tartarin
de Tarascon ao saber que os abismos que com risonha coragem ele arrostara
nos Alpes eram de fato abismos e não cenografia como, iludido por Bompard,
no momento supôs. Hoje que já nada mais existe do professor Benson
a não ser uma lapide no cemiterio, e nada existe senão cinzas
do seu maravilhoso laboratorio, se me ponho a analisar esse período
da minha vida tenho sensação de que convivi com um Deus humanizado.
O professor Benson falava das suas invenções com tanta simplicidade
e me tratava tão familiarmente que jamais me senti tolhido em sua presença
— como me sentia, por exemplo, na do Senhor Pato, o socio comendador
lá da firma. Sempre que me cruzava com o comendador eu tremia, tanto
se impunha aos subalternos aquela formidavel massa de banhas, vestida de fraque,
com anel de grande pedra no dedo e uma corrente de relogio toda berloques
que nos esmagava a humildade sob a arrogancia e o peso do ouro maciço.
Diante do comendador Pato eu tremia e balbuciava; mas diante do professor
Benson, um deus, sempre me senti como em face de um igual.
Compreendo hoje o fenomeno e sei que a verdadeira superioridade num homem
não o extrema dos "inocentes", como dizia o professor —
e por isso chamava Jesus a si os pequeninos. Até na indumentaria aqueles
dois homens eram antípodas. Na do comendador, o fraque propunha-se
a impressionar imaginações, a estabelecer categorias, a amedrontar
os paletós sacos com a imponencia da sua cauda bipartida; na do professor
Benson tinha a rouca por unica função vestir um corpo a modo
de resguarda-lo das bruscas variações atmosfericas.
Mas voltemos atrás. Ao ouvir dizer ao professor Benson que todo o
momento universal estava ali, olhei para a maranha de fios e bobinas com um
sentimento misto de orgulho e piedade. Orgulho de ver o Tudo escravizado diante
de mim. Piedade, porque havia nisso uma certa humilhação para
o Tudo…
A voz pausada do velho sabio tirou-me de tais cogitações.
— Até aqui permanecemos no presente. A onda Z ali captada só
diz respeito ao presente, e se eu ficasse nessa etapa de pouco valeria a minha
descoberta. Mas fui além. Descobri o meio de envelhecer essa corrente
á minha vontade.
— Envelhecer?… murmurei refranzindo a um tempo todos os musculos
da cara.
— Sim. Faço-a passar pelo aparelho que tenho no pavilhão
imediato e ao qual denominei cronizador. Vamos para lá.
O professor tomou a dianteira e eu o segui, ainda repuxado de musculos faciais.
O pavilhão imediato possuia ao centro um novo aparelho tão incompreensível
para a minha inteligencia como os anteriores.
— Aqui temos o cronizador, disse o meu cicerone apontando para o esquisito
conjunto. Este mostrador, que lembra o dos relogios, me permite marcar no
futuro a epoca que desejo estudar.
— ? ! — Perca o habito de assustar-se, porque senão acabará
cardíaco. A corrente penetra por este fio, sofre um turbilhonamento
e envelhece na medida que eu determino com o movimento deste ponteiro. É
como se eu tomasse a semente e por um golpe de magica dela fizesse brotar
a arvore aos dez anos de idade, ou aos cinquenta, ou aos cem — ao arbítrio
do experimentador. Compreende? — Compreendo…
— E destarte a evolução, que com o decorrer do tempo
necessariamente vai ter a vida atual do universo, eu a apresso e a detenho
no momento escolhido. Este meu cronizador, em suma, é um aparelho de
produzir o tempo artificial com muito mais rapidez do que pelo sistema antigo,
que é esperar que o tempo transcorra.
Obtenho um ano num minuto de turbilhonamento; penetro no futuro, no ano
2.000, por exemplo, em 74 minutos. Opera-se durante a cronização
uma zoada, que é o som dos anos a se sucederem, som muito semelhante
a um eco distante…
— Sei. O que ouvi na hora do almoço.
— Exatamente. Quis Jane visualizar o futuro no ano 2.336, ou seja
a 410 anos deste em que estamos. Para isso colocou aqui o ponteiro e abriu
o comutador. A corrente envelheceu e automaticamente parou no ponto marcado,
isto é, no ano 2.336.
A minha curiosidade crescia. Percebi que chegara ao ponto culminante da
descoberta do professor Benson.
— E depois? indaguei ansioso. Para ver, ou como diz o professor, para
visualizar esse futuro, como procede? — Devagar!… Consigo, como ia
dizendo, envelhecer a corrente até o ponto desejado. Ao obter isso,
a evolução determinista que rigorosamente vai dar-se no universo
com o decorrer normal do tempo dá-se artificialmente dentro do aparelho.
E, chegada ao termo da cronização que visamos, a corrente turbilhonada
torna-se estatica, por assim dizer congelada. E fico eu na posse dum momento
da vida universal futura — isto é, com o 4 da nossa primitiva
imagem do 2 + 2. Resta-nos agora a ultima parte da operação,
a qual, por comodidade, executo no meu gabinete. Não notou lá
uma especie de globo cristalino? — Foi a primeira coisa que me impressionou
neste castelo.
— Pois é o porviroscopio, o aparelho que toma o corte anatomico
do futuro, como pitorescamente diz Jane, e o desdobra na multiplicidade infinita
das formas de vida futura que estão em latencia dentro da corrente
congelada.
— Por que, corte anatomico? indaguei, para não deixar ponto
obscuro atrás de mim.
— Nunca esteve num laboratorio de miscroscopia? Com uma navalha afiadissima
o anatomista opera um córte na ponta do seu dedo, por exemplo. Tira
uma lamina de carne, a mais fina que possa, e estuda-a ao microscopio. A essa
fatia do seu dedo chamará ele "corte anatomico". É
Jane uma menina muito viva e gosta de falar por imagens, algumas extraordinariamente
pitorescas…
A evocação de miss Jane veio perturbar a contensão
do espirito com que eu acompanhava as revelações do mestre.
Meu espirito cansado repousou nesse gracioso oasis, e foi com infinita inocencia
que indaguei: — Que idade tem ela, professor? Mas o velho sabio talvez
nem me ouvisse, porque entrou a dar explicações sobre a segunda
função que possuía o cronizador: involuir a corrente,
rodar para trás — o que permitia cortes anatomicos no passado.
— Mas isso não interessa, aventei levianamente. O passado é
velho conhecido nosso.
— Engano. É tão desconhecido como o futuro e o presente.
Desta vez abri a boca, e lá por dentro me soou como tolice a frase
do sabio. Mas vi logo que o tolo era eu.
— Do presente que é que sabe o amigo Ayrton? Sabe apenas que
está neste minuto conversando comigo. Mais nada. Não sabe nem
sequer se os senhores Sá, Pato & Cia. estão a esta hora
de falencia aberta.
— Impossivel! Aquela gente é solida como as montanhas!… Só
vendem á vista…
— Quantas planícies não marcam hoje o lugar outrora
ocupado por montanhas!… Do presente o amigo Ayrton só sabe, isto
é, só tem consciencia do que no momento lhe afeta os sentidos.
— Na verdade! exclamei. Nem o meu Ford, que era tudo para mim, sei
onde pára…
— E se ignoramos o presente, que dizer do passado? — Mas a Historia?
O professor Benson sorriu meigamente um sorriso de Jesus.
— A Historia é o mais belo romance anedotico que o homem vem
compondo desde que aprendeu a escrever. Mas que tem com o passado a Historia?
Toma dele fatos e personagens e os vai estilizando ao sabor da imaginação
artística dos historiadores. Só isso.
— E os documentos da epoca? insisti.
— Estilização parcial feita pelos interessados, apenas.
Do presente, meu caro, e do passado, só podemos ter vagas sensações.
Ha uma obra de Stendhal, La Chartreuse de Parme, cujo primeiro capitulo
é deveras interessante. Trata da batalha de Waterloo, vista por um
soldado que nela tomou parte. O pobre homem andou pelos campos aos trambolhões,
sem ver o que fazia nem compreender coisa nenhuma, arrastado ás cégas
pelo instinto de conservação. Só mais tarde veio a saber
que tomara parte na batalha que recebeu o nome de Waterloo e que os historiografos
pintam de maneira tão sugestiva. Os pobres seres que inconscientemente
nela funcionaram como atores, confinados a um campo visual muito restrito,
nada viram, nem nada podiam prever da tela heroica que os cenografos de historia
iriam compor sobre o tema. Eis o presente… Vamos agora ao gabinete, concluiu
o professor. O mais interessante se passa lá.
Acompanhei-o, literalmente apatetado. Aquele homem pensava de modo tão
diferente de todo mundo que suas ideias me davam a impressão de algo
novo e operavam em meu cerebro como luz que invade aos poucos uma sala de
museu. Mil coisas que nunca supus existirem em minha cabeça revelaram-se-me
de pronto. Coisas mínimas, germes de ideias, antigas impressões
recolhidas nos vaivéns do viver quotidiano ressurgiam animadas de estranha
significação. Outras, que eram capitais outrora, diluiam-se.
O comendador Pato, até vinte dias antes tido por mim como o mais formidavel
expoente do genio humano, decaia a irrisorias proporções. Oh,
como desejei ve-lo ali em contato com o professor, para gozar a derrocada
das ridículas ideias de fraque que ele tinha na cabeça!
CAPÍTULO VII – Futuro e Presente
Ao entrar no gabinete iluminei-me todo por dentro. Estava miss Jane adiante
do globo de cristal, absorvida com certeza na visualização de
um corte anatomico. Um raio de sol coado pela vidraça transfazia em
luz o louro de seus cabelos. Miss Jane era toda atenção. Seus
olhos azues verdadeiramente bebiam algum maravilhoso quadro. O professor Benson
estacou á porta, fazendo-me gesto de silencio, e assim permaneceu até
que a moça desse volta a um comutador e regressasse ao presente.
— Papai, exclamou ela, estou no fim da tragedia, no crepusculo da
raça. Dudlee ganhou uma estatua… Boa tarde, senhor Ayrton.
Desculpe-me o estar dizendo a meu pai coisas que nem por sombras o senhor
pode desconfiar o que sejam. Compreendo que é indelicado falar em lingua
estranha na presença de pessoas que a desconhecem…
A bondade de miss Jane encantou-me; e, como a jovem não me olhasse
nos olhos, pude replicar: — Mas tudo nesta casa me é linguagem
estranha! O que acabo de ver assombra-me de tal maneira que tão cedo
não me reconhecerei a mim mesmo.
— Está fazendo progressos, Jane, disse o professor. O amigo
Ayrton compreendeu muito bem a parte teorica da minha exposição.
— Ou compreendi, exclamei, ou pareceu-me compreender. Aqui o professor
fala com tal simplicidade e clareza que nem parece um sabio. Conheci um lá
na cidade, e grande, a avaliar pela fama, com quem tive de tratar a mandado
da firma. Pois confesso que não pesquei coisa nenhuma do que o homem
disse. Esse, sim, parecia falar uma linguagem de mim nem sequer suspeitada…
— Não era um verdadeiro sabio, interveio miss Jane. Os verdadeiros
são como meu pai, claros e fecundos como a luz do sol.
Mas quer saber o senhor Ayrton o que eu fazia ha pouco? — Não
lhe contes ainda, Jane. Explica-lhe primeiro a função do porviroscopio,
enquanto vou repousar um bocado. Sou velho e qualquer esforço além
do habitual me cansa.
Antes que o professor Benson se retirasse, deu miss Jane um salto na cadeira,
leve como a corça, e veiu beija-lo no rosto.
— Este querido paizinho! murmurou, acompanhando-o com os olhos amorosamente.
Depois voltando-se para mim: — Não é uma benção
das fadas ter um pai destes? Como sabe conciliar a maxima inteligencia com
a maxima bondade! — E com a maxima simplicidade! acrescentei. Não
caibo em mim de gosto ao ver o homem que podia ser dono do mundo, se quisesse,
tratar-me como se eu fôra alguem.
— Não se espante disso. Meu pai é coerente com as suas
ideias.
Todos para ele somos meras vibrações do eter.
— Até miss Jane? — Eu serei vibração de
um eter especial, muito afim do que vibra nele, explicou ela a sorrir. Mas,
sentemo-nos, senhor Ayrton, que ha muito que conversar.
Já disse que eu era um rapaz acanhado, sobretudo em presença
de moças bonitas; mas o ambiente de familiaridade e franqueza daquela
casa modificou-me logo. Cheguei até a suportar nos olhos os olhares
da linda jovem, sem perder a tramontana como da primeira vez. É que
nem remotamente lembrava aquele olhar o olhar malicioso das mulheres que eu
conhecera. Fui percebendo aos poucos que de feminino só havia em miss
Jane o aspecto. Seu espirito formado na ciencia e seu convívio com
um homem superior, dela afastavam todas as preocupações de coquetismo,
proprias da mulher comum.
Isso me pôs á vontade. Sentia-me, não um moço
em frente de uma donzela, mas um espirito diante do outro.
Aproveitei o ensejo para esclarecer-me a respeito do professor Benson. Soube
que era descendente de um mineralogista norteamericano que um seculo antes
viera ao Brasil estudar a composição de certa zona aurífera.
Gostou da terra e nela se fixou, casando-se com a filha de um fazendeiro de
S. Paulo.
— Desse consorcio, explicou miss Jane, só veio ao mundo meu
pai, que cedo foi enviado á Europa, onde se dedicou a estudos cientificos.
Lá se casou tarde e lá residiu por certo tempo. Veio depois
tomar posse dos bens deixados pelo meu avô — e aqui nasci eu.
Mas não me lembro de minha mãe. Morreu muito moça, anos
9 anos… Desde essa epoca estabeleceu-se meu pai neste recanto e consagrou-se
integralmente á sua invenção. Passou o nosso mundo a
resumir-se neste laboratorio. Raras vezes vamos á cidade, pouco interesse,
aliás, achando nós dois em seu tumulto.
— Pudera! Quem tem o passado e o futuro nas mãos…
— Realmente é isso. Este aparelho fornece-nos tamanhas maravilhas,
que a bem dizer vivemos muito mais no porvir do que no presente. Meu gosto
é realizar estudos dos anos mais remotos, e só lamento não
ter um cerebro imenso qual o oceano para reter tudo o que vejo. Outra coisa
que lamento é não podermos dar a publico a nossa invenção.
A bondade de meu pai o impede.
— Não alcanço muito bem o porquê…
— Pretende ele, e com muita logica, que a humanidade não está
apta a suportar a revelação do futuro. Acha que a sua invenção
cairia no poder de um grupo o qual abusaria da tremenda soma de superioridade
que a descoberta lhe concederia. Fosse meu pai um homem vulgar, de pouca sensibilidade
de coração, e ele mesmo assumiria o predomínio que receia
ver na posse de outrem. Basta dizer que até hoje apenas se utilizou
deste invento para reunir o dinheiro necessario á nossa vida e aos
enormes dispendios dos seus estudos.
— Agora me lembro, miss Jane, que lá fora é o professor
Benson conhecido como um jogador de cambio que jamais perde.
— E assim é. Fizemos experiencia com o marco e o franco e os
fatos corresponderam com exatidão ás indicações
deste aparelho. Mas meu pai limitou-se a ganhar o necessario para o trem de
vida que leva. Estamos na posse de elementos para alcançar o que quisermos,
para reunirmos nas mãos a maior soma de ouro com que se possa sonhar.
Isso, porém, nos seria de todo inutil. Para que necessitamos da mesquinha
riqueza do mundo se nada não nos dá ela que se aproxime do que
temos aqui? — Por mais espantosa, miss Jane, que seja a descoberta do
professor Benson, espanta-me ainda mais o carater das duas pessoas que estão
no seu segredo. Podem ser tudo e não querem ser nada…
— Ser tudo!… Que significa ser tudo? Quando penso nas grandezas
do mundo, rio-me delas…
Miss Jane conversou comigo por mais de um hora sobre os mais variados assuntos.
E explicou-me depois o funcionamento do aparelho, recorrendo ás suas
imagens habituais, tão pitorescas. A corrente perdia no globo de cristal
a sua forma concentrada e visualizava-se como numa projeção
de cinema, reproduzindo momentos de vida futura cora a exatidão que
vai ter um dia.
— Ficamos na posição de um espectador imovel num ponto.
Só vemos e ouvimos o que passa ao alcance dos nossos olhos ou soa
ao alcance dos nossos ouvidos. Isso ás vezes dificulta a compreensão
de certos momentos da vida futura. Aparecem-nos coisas que não podemos
compreender por falta dos elos anteriores da evolução. No ano
3.527, por exemplo, vi na população da França evidentes
sinais de mongolismo. Os trajes não lembravam nada do que usam hoje
as criaturas em parte nenhuma da terra, nem sequer pude perceber de que seriam
feitos. Esqueci-me de dizer que o nosso aparelho não vai além
do ano 3.527. Sua potencia pára aí. Focalizado para o ano de
3.528 já dá uma visão de tal modo baça que não
distinguimos nada.
Ficamos, eu e meu pai, perplexos ante aquele mongolismo da França.
Só depois, fazendo cortes menos recuados e combinando uns com os
outros, conseguimos decifrar o misterio. Tinham-se derramado pela Europa os
mongois e se substituído á raça branca.
Não pude conter um gesto de espanto, e fiz tal cara que miss Jane
sorriu.
— Que horror! Vai então acontecer essa catastrofe? exclamei.
A jovem sabia respondeu com serena impassibilidade: — Por que, catastrofe?
Tudo que é tem razão de ser, tinha forçosamente de ser;
e tudo que será terá razão de ser e terá forçosamente
de ser. O amarelo vencerá o branco europeu por dois motivos muito simples:
come menos e prolifera mais. Só se salvará da absorção
o branco da America. E como esta, quantas revelações curiosas!
Outra, que muito me impressionou, foi a transformação das ruas
que se nota no ano 2.200 em diante. Cessa a era dos veículos.
Nada de bondes, automoveis ou aviões no céu.
— Como pode ser isso, miss Jane? É quasi um absurdo.
— Pois para lá caminhamos. Em cortes sucessivos que fiz de
dez em dez anos observei a diminuição rapida dos veículos
atuais. A roda, que foi a maior invenção mecanica do homem e
hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar
a pé. O que se dará é o seguinte: o radio-transporte
tornará inutil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado
para o escritorio e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas
rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará
para o escritorio. Em suma: trabalhar-se-á á distancia. E acho
muito logica esta evolução.
Não são hoje os recados transmitidos instantaneamente pelo
telefone? Estenda esse principio a tudo e verá que imensas possibilidades
para vir traze-lo. O progresso foi grande, mas repare quando á radiocomunicação
se acrescentar o radio-transporte. Outrora, por exemplo, se o senhor Ayrton
quisesse fumar um charuto tinha de mandar um criado busca-lo á charutaria;
hoje pede-o pelo telefone, mas o charuteiro ainda é obrigado a mobilizar
um carregador para vir trazelo.
O progresso foi grande, mas repare que atraso ainda! Mobilizar um homem,
isto é, uma massa de 60 ou 70 quilos de carne, faze-lo dar mil ou cinco
mil passos, gastando vinte ou trinta minutos da sua vida. só para transportar
um simples charuto! Chega a ser grotesco…
— Realmente. Mas no futuro? — No futuro o senhor Ayrton fumará
á distancia. Veja quanta economia de tempo e esforço humano!
Julguei que miss Jane estivesse a caçoar comigo e até hoje permaneço
na duvida. Em seu rosto, porém, não vi a menor sombra de motejo.
— Pode ser, mas… duvidei.
— Esse mesmo "pode ser, mas…" diria um romano do tempo
de Cesar se alguem lhe predissesse que um romano do tempo do oleo de ricino
não precisaria sair de sua casa para conversar com um cidadão
de Paris. Sabe o senhor Ayrton, no entanto, que isso é comezinho hoje
e nem sequer admira a ninguem.
— Falar é uma coisa e fumar é outra.
— Hoje, que só temos a radio-comunicação. Mas
chegará o dia da radio-sensação e do radio-transporte,
com radical mudança do nosso sistema de vida. Os veículos ao
sistema corrente desaparecerão um por um. Voltará o homem a
caminhar a pé, por prazer, e as ruas se tornarão uma delicia.
O senhor Ayrton sabe o que quer dizer uma rua hoje…
— Ninguem melhor do que eu, miss Jane, pois desde menino vivo nelas.
Que angustia, que permanente inquietação! Temos que andar com
cinquenta olhos arregalados, para prevenirmos trancos e atropelamentos.
— Tudo isso desaparecerá, e adquirirão as cidades uma
calma deliciosa, como hoje a de certas aldeias. Vi New York nesse periodo.
Que diferença do atropelado e doido formigueiro de agora! —
Deve miss Jane ter observado coisas maravilhosas!…
— Menos maravilhosas do que desnorteantes para as nossas ideias atuais.
As invenções vão sobrevivendo no decurso do tempo, umas
saidas das outras, e as coisas tomam ás vezes rumo muito diverso do
que a logica, com ponto de partida no estado atual, nos faria prever, O professor
Benson reapareceu nesse momento e a conversa tomou outro rumo. Eu me achava
na situação de um homem que ingerisse um estupefaciente desconhecido.
Estava com a minha capacidade de assimilação de ideias esgotada
e já com uma ponta de dor de cabeça a dar sinal de que o cerebro
exigia repouso. Sem que eu o dissesse, o velho sabio, mais sua filha, compreenderam-no
perfeitamente e dali até o jantar só me falaram de coisas repousantes.
Á noite custei a conciliar o sono, o que era natural. Mas sinceramente
o digo: o que mais me dansava na cabeça não era o desvendamento
do futuro nem as suas abracadabrantes maravilhas, e sim a imagem de miss Jane.
A estranha criatura loura, de olhos tão azues, impressionara por igual
meu cerebro e meu coração. Comecei a ver nela o verdadeiro tudo;
e se me dessem a opinar entre a posse da descoberta do professor Benson e
o te-la ao meu lado para o resto da vida, não vacilaria um instante
na escolha.
Dormi por fim e, em vez de sonhar com o mundo futuro entrevisto na palestra
da moça, sonhei no encanto do presente, todo resumido em conjugal convivencia
com o meigo anjo sabio.
CAPITULO VIII – A Luz que se Apaga
No dia seguinte, logo pela manhã, soou-me aos ouvidos uma novidade
desagradável. Não passara bem a noite o professor Benson.
— Estou velho, meu caro senhor Ayrton, disse-me ele ao encontrar-se
comigo. Já sinto cá dentro a maquina funcionar com esforço.
Jane ignora o meu estado, mas a pobre menina não me terá por
muito tempo na terra. Ficará só. Dei-lhe, entretanto, tal educação,
e possue ela tais qualidades de carater, que morrerei feliz.
Saberá agir no mundo como se contasse sempre comigo.
Veio-me aos labios um ímpeto de confidencia. Quis apresentar-me ao
professor como o braço forte que se oferecia a miss Jane quando o de
seu pai viesse a faltar. Contive-me a tempo. Lembrei-me da minha insignificancia
e do pouquíssimo que eu ainda era naquele lar. Limiteime, pois, a confirmar
as ideias do velho em relação á filha, dizendo: —
Pelo que com ela conversei ontem tive a mesma impressão. É miss
Jane uma criatura superior, uma madame Curie capaz de prosseguir nos trabalhos
de seu pai, se o quiser.
— Jane o quereria talvez, mas não posso consentir nisso.
Bastam-lhe, para lhe encher a vida, as visões que já teve
e a superioridade que adquiriu conhecendo o futuro proximo. Isso lhe permitirá
por-se a salvo das contingencias da necessidade. Possue Jane um caderninho
onde anotou a cotação dos principais valores de bolsa nestes
proximos cinquenta anos. Está assim habilitada a ser detentora do dinheiro
que quiser. O dinheiro ainda é tudo para os homens. O estranho dote
que deixo á minha filha se resume nesse caderninho de notas… Mas
conheço Jane. Extremamente imune ás ambições que
atormentam o comum das mulheres, levará um viver apagado, sem exterioridade,
toda entregue á vida cerebral, que a tem intensissima.
O professor fez uma pausa, como se o esforço daquelas confidencias
o tivesse cansado. Depois, disse: — Realizei o que jamais sonhara nos
delirantes sonhos da minha mocidade — e me vejo forçado a levar
para o tumulo o grande segredo… Jane não o revelará a ninguem
e ainda que o faça não estará na posse da solução
tecnica. O senhor Ayrton, unica testemunha presencial de tudo, tambem o não
revelará a ninguem.
— Proibe-mo, professor? — Não, não proibo, já
disse. Mas se algum dia tiver a ingenuidade de o revelar a alguem, passará
por louco, e se insistir, por louco varrido, dos que os homens metem nos hospícios.
O instinto de conservação e de sociabilidade é que o
vai impedir de revelar o que está vendo aqui.
Miss Jane entrou nesse momento e notei que o velho sabio se contrafazia
diante da moça para não denunciar o seu estado de saude. Apesar
disso ela observou.
— Um pouco palido, meu pai…
— Sim, mas estou perfeitamente bem. Temos aqui o senhor Ayrton e compete
a ti, minha filha, organizar o programa do dia. Pouco posso acompanha-los.
Uma delicada experiencia vai absorver-me por algumas horas.
Miss Jane olhou-me com os seus lindos olhos claros e disse: — Escolha,
senhor Ayrton. Ontem foi a teoria, hoje começa a ser a pratica. Vai
estudar uns córtes. Escolha um momento da vida futura que o interessa.
Miss Jane estava linda como uma rosa desabrochada naquela manhã na
roseira proxima do meu quarto. Meus olhos envolveramna num veu de enlevo e
se o coração pudesse falar ter-lhe-ia eu dito que só
me interessava o presente nela concentrado. Mas respondi de outro modo.
— Sou um leigo em materia de futuro, miss Jane, e nem escolher posso.
Deixo isso ao seu inteligente criterio.
— Não tem vontade de ver o que se passará aqui, neste
lugar onde estamos, no ano 3000? — Já fizeste esse corte, Jane,
interveio o professor.
— Fiz, sim, meu pai, mas será curioso repeti-lo para o senhor
Ayrton.
— Perfeitamente, concordei. Ha sempre mais interesse para nós
em ver assim futurizado um ponto nosso conhecido do que um desconhecido.
— Pois então, resolveu o professor Benson, comecem por aí
e não contem comigo. Vou trabalhar.
Ergueu-se e saiu. Miss Jane acompanhou-o até á porta e ao
tornar me disse: — Acho meu pai um tanto abatido hoje. Já está
nos setenta anos e velhice é doença…
Uma nuvem de melancolia sombreou-lhe os lindos olhos azues e um breve suspiro
lhe escapou do peito. Tambem eu no intimo me sombreei de tristeza, embora
mentisse exteriormente, nesse intuito de consolação facil que
tais lances impõem.
— Qual! exclamei. O professor é rijo. E com a vida calma que
leva ainda viverá muito.
— Assim seja, murmurou Miss Jane, porque não sei o que será
de mim sem ele. Acho-me tão identificada com meu pai…
Arrisquei urna pergunta indiscreta: — Nunca pensou em casamento, miss
Jane? A moça entreparou, olhando-me entre admirada e divertida.
— Casamento? Ora que coisa interessante, senhor Ayrton!…
Ha de crer que é a primeira vez que tal palavra soa nesta casa? Ca-sa-men-to!…
E repetiu-a diversas vezes como se repetisse uma palavra de som esquisito
e nunca antes pronunciada.
— Sim, continuei eu, todas as moças se casam. O amor um dia
vem e…
Miss Jane permaneceu alheada, como entregue a profundas cogitações
interiores.
— "Todas as moças"… repetiu. Mas serei eu moça?
Nunca me analisei, senhor Ayrton. Minha vida tem sido voar de seculo em seculo
por esse futuro afora em companhia de meu pai. Sinto que sou apenas um espirito
que observa e possue meios de visualizar o que está fora do alcance
humano. Será isso ser moça? Amor?… Que é amor, senhor
Ayrton? O seu vocabulario é tão novo para mim como deve ser
para o seu espírito esta nossa mentalidade futurista. Mas vamos ao
que serve. É tempo de operar um corte.
Miss Jane dirigiu-se ao gabinete do porviroscopio e eu acompanhei-a, tomado
de espanto diante de um ser tão alheio ao seu tempo e á sua
condição. Lá fora, amor e casamento constituem a obsessão
unica de todas as mulheres. Em criança, brincam de casar as bonecas.
Nubeis, cuidam exclusivamente de casar a si proprias.
Velhas, cuidam de casar ou descasar as outras. Havia, pois, uma mulher no
mundo, e formosíssima que não só não pensava em
amor e casamento mas á qual tais expressões soavam como vozes
ineditas…
Era simplesmente prodigioso! Diante do porviroscopio ela se deteve e depois
de algumas explicações me fez colocar no ano 3000 o ponteiro.
Em seguida viu num mapa a situação geografica do ponto onde
nos achavamos e ensinou-me a mover o ponteiro marcador das latitudes e longitudes.
— Pronto! exclamou. Basta agora abrir esta valvula. A corrente envelhecerá
de 1074 anos, que são quantos vão do em que estamos ao ano 3000.
Envelhecerá e nos dará sinal disso automaticamente. Mas como
o envelhecimento de cada ano consome um minuto, teremos…
Tomou de um lapis e calculou, rapida.
— Teremos de esperar 17 horas e 54 minutos. O relogio marca as nove
e, pois, só conseguiremos ter cá o ano 3000 ás nossas
ordens entre meia noite e uma da madrugada. Estou afeita a estas observações
a qualquer hora da noite, mas não sei se para o senhor Ayrton não
será incomodo…
— Absolutamente não. Só lamento não poder satisfazer
já, já, a minha curiosidade. Ver um pedaço da nossa terra
no ano 3000, que portentosa maravilha! Diga-me alguma coisa, miss Jane, do
que me vai ser revelado…
— Não. Não quero prejudicar a sua surpresa. Prefiro
falar de aspectos que vi em outros tempos e outros paises.
Lances ha na vida absolutamente indeleveis. Essa tarde que passei com a
filha do professor Benson, a ouvir-lhe as revelações do futuro,
como esquece-la jamais? Não poderei reproduzir aqui tudo quanto ela
me disse; seria compor um catalogo sem fim. A invasão mongolica, o
feroz industrialismo da Europa mudado em contemplativismo asiatico, a evolução
da America num sentido inteiramente inverso… quanta coisa formidavel! Mas
nada me interessou tanto como o drama do choque das raças nos Estados
Unidos.
— Esse choque, disse miss Jane, deu-se no ano 2228 e assumiu tão
empolgantes aspectos que reduzido a livro dá uma perfeita novela. Não
sei se o senhor Ayrton é literato…
— Já fiz um soneto na idade em que todos desovam sonetos…
— Pois se não é poderá tornar-se. O principal
para uma novela é ter o que dizer, estar senhor de um tema na verdade
interessante.
Ora, eu fornecerei os dados dessa novela e o senhor Ayrton terá oportunidade
otima para apresentar-se ao mundo das letras com um livro que a critica julgará
ficção, embora não passe da simples verdade futura.
A ideia sorriu-me, e todo me lisonjeei com a opinião que miss Jane
fazia das minhas capacidades artísticas.
— Quer tentar? insistiu ela. Contar-lhe-ei com a maxima fidelidade
o que vai passar-se. De posse desse material, e depois de pessoalmente fazer
varios cortes que o ajudem a formar ideia justa do ambiente futuro, atirar-se-á
á tarefa. Desde já asseguro uma coisa: sairá novela unica
no genero. Ninguem lhe dará nenhuma importancia no momento, julgando-a
pura obra da imaginação fantasista. Mas um dia a humanidade
se assanhará diante das previsões do escritor, e os cientistas
quebrarão a cabeça no estudo de um caso, unico no mundo, de
profecia integral e rigorosa até nos mínimos detalhes.
— Realmente! exclamei. Será romance como os de Wells, porém
verdadeiro, o que lhe requintará o sabor. Quanta novidade! —
Os leitores andarão pulando de surpresa, e estou já a imaginar
as caras de espanto que hão de fazer quando o senhor Ayrton falar,
por exemplo, da cirurgia do doutor Lewis.
— Quem era? — Oh, um magico da anatomia, o primeiro que praticou
o desdobramento do homem.
Franzi os sobrolhos.
— Desdobramento da personalidade? perguntei.
— Sim, mas desdobramento anatomico. O doutor Lewis, sabio que começou
a surgir em 2201, teve a ideia de romper com o plano simetrico do corpo humano.
Possuímos dois olhos e dois ouvidos que agem como a parelha de cavalos
a puxar no mesmo rumo o carro. Lewis alterou isso. Por meio dum delicado processo
cirurgico, desligou — desxifopagou os nervos óticos e auditivos,
dando autonomia aos dois ramos. Conseguiu dess’arte que o "desdobrado"
pudesse ver uma coisa com o olho direito e outra com o esquerdo, e tambem
ouvir ás duplas, com a audição assim desligada.
Miss Jane fez breve pausa, como a recordar. Depois disse: — Lembro-me
que no escritorio do Intermundane Herald observei o primeiro desdobrado em
ação, primeiro e unico aliás.
— Intermundane Herald, miss Jane? Cheira-me isso a psiquismo…
— E cheira certo. Era um jornal de radiação metapsiquica,
que veiu atender á velha sede de liame com os vivos que os mortos sempre
manifestaram. Em vez das pobres almas penadas andarem pelo mundo em busca
de mesinhas falantes e mediuns, unico meio que possuem hoje de conversar conosco,
liam o Intermundane Herald.
— E como se manifestavam? Pois não posso crer que tambem colaborassem
nesse jornal…
— Disso se encarregava a Psychical Corporation, dona de grande estação
central de Detroit. Afluíam os espíritos para ali e chamavam
os vivos pela linha metapsicotonica internacional, como hoje nos chamamos
pela linha telefonica.
O meu assombro era grande, embora tocado de uma pontinha de desconfiança.
Estaria miss Jane a mangar comigo? Olhei-a firme nos olhos. A lealdade que
neles vi era a mesma de sempre.
— Mas, continuou ela, voltando ao meu homem desdobrado direi que pude
observa-lo em ação no escritorio do Herald. Estava á
mesa de trabalho, a examinar com o olho direito uma gravura antiga e a consultar
uma tabua de logaritmos com o esquerdo. Ao mesmo tempo ouvia a musica da moda
com o ouvido direito e com o esquerdo atendia a um colaborador do jornal.
Ocupava-se em quatro coisas diversas, valendo assim por quatro homens não
desdobrados.
— h2…
— E não ficava nisso. Era bem um Homo elevado, não á
quarta, mas á sexta potencia, porque ainda recolhia a queixa dum dos
espíritos leitores do Herald — espirito rabugento, a avaliar
por certos ímpetos nervosos da mão que estenografava.
— E com a outra mão que fazia? — Alisava meigamente um
gatinho que lhe sentara no colo.
Encarei-a de novo, firme. Miss Jane não piscou. Logo, era verdade.
A experiencia dos olhos que piscam sempre me pareceu infalível na pesca
dos potoqueiros.
— Mas não foi coisa que se generalizasse, continuou a moça.
A ruptura por intervenção humana dos planos normais da natureza
nunca foi bem sucedida. Sobrevinham sempre complicações imprevisiveis
á argucia dos sabios, e irremediaveis. Esse pobre desdobrado, por exemplo,
acabou logo depois de maneira tragica.
Em vez de persistir na sua sexta potencia, empastelou-se, confundiu-se e
acabou não sendo nem sequer um homem apenas, como antes da operação.
A mais horrorosa demencia veiu destruir aquela obra prima da cirurgia de 2228.
Por esta amostra vê o senhor Ayrton quantos episodios interessantes
podem enriquecer a sua novela, concluiu miss Jane.
Fiquei de olhos parados, a cismar.
— Outra coisa que muito me maravilhou foi o Teatro Onírico,
prosseguiu ela.
— Que? — O teatro dos sonhos.
— Fiquei na mesma…
— Descobriu-se um processo de fixar na tela os sonhos, como hoje o
cinematografo fixa em filmes o movimento material. E dada a riqueza do nosso
subconsciente, mar donde emana o sonho, e mar profundo do qual a consciencia
não passa da exígua superfície, pode o senhor Ayrton
imaginar que maravilhosas representações não se davam
nesse teatro. Nem as Mil e Uma Noites, nem Edgard Poe — nada valia um
só desses espetaculos onde o contra-regra se chamava Imprevisto. Tornou-se
a arte suprema, a mais deleitosa de toda — e ainda uma ciencia. A alma
humana só deixou de ser o enigma que hoje é depois que pôde
ser assim fotografada em suas manifestações de absoluta nudez.
Até então apenas lhe conhecíamos as manifestações
vestidas pela Censura, isto é, as suas atitudes.
Miss Jane pausou um bocado, enquanto eu refervia.
Era de maravilhar a transformação que se operava em mim! Vinte
dias antes eu não passava de modesto empregado de rua duma casa comercial
— e estava agora na iminencia de tornar-me autor de um livro assombroso,
capaz de cobrir meu nome de gloria. A ideia desvairoume e a novela principiou
a formar-se-me nos miolos com fragmentos de romances lidos em rodapé
de jornais. O começo do primeiro capitulo chegou a traçar-se
de chofre em minha cabeça: — "Era por uma dessas tardes
calmosas de verão, em que o astro rei, rubro como um disco de cobre,"
etc.
Estava eu nesse devaneio quando um criado penetrou de surpresa no gabinete.
Chamou de parte miss Jane e disse-lhe algumas palavras agitadas. Sem pedir
licença a moça retirou-se com precipitação.
Fiquei atonito, sem saber o que pensar. Delicada e fina como era, se assim
se retirava de minha companhia sem o classico e sorridente "com licença"
é que algo de grave ocorria. Fiquei na minha poltrona ainda uns dez
minutos com o ouvido atento aos menores rumores, tentando decifrar o misterio.
O silencio era absoluto; nem sequer se ouvia o zum-zum do cronizador a trabalhar.
Consultei o relogio.
— Dez e quinze. A corrente já está no ano 2001, pensei
comigo, ano que não alcançarei. Mas meu filho Ayrton Benson
Lobo o alcançará.
Pus-me a sonhar, e os sonhos logo me acalmaram a inquietação
produzida pela inexplicavel retirada de miss Jane. Vi-me amado de tão
gentil criatura e com ela casado. Por esse tempo já não fazia
parte deste mundo o professor Benson. Setenta anos tinha ele; era natural
que não durasse muito. Miss Jane ficava só na terra, sem relações
sociais, sem sonhos de grandeza mundana. E não seria eu nessa epoca
apenas o pobre diabo que era, triste exempregado dos senhores Sá, Pato
& Cia. Seria um autor, um romancista! Os jornais dariam meu retrato e
me tratariam de "ilustre homem de letras". Talvez até cavasse
a Academia. Uma situação social, sem duvida, e das mais bonitas.
Poderia aproximar-me da inconsolavel menina e oferecer-me para seu companheiro
de vida. Claro que miss Jane aceitaria o meu coração. Viagens
depois, mundo a correr — Paris, New York. Levariamos conosco o caderninho
das cotações…
— "Olá, senhor corretor, compro mil ações
da Niagara Falls Company!" A piedade do corretor vendo esta carinha chupada
de brasileiro amarelo comprar ações de uma empresa cuja bancarrota
estava iminente! Sorri-se lá consigo e vende-mas, piscando o olho para
os seus auxiliares. No dia seguinte noticia nos jornais: Uma jazida de platina
encontrada nas terras da Niagara! As ações da companhia centuplicam
de valor. Reapareço no escritorio do corretor atonito a fumar um charuto
imponente, e vingo-me do seu sorriso de vespera.
— "Hoje vendo, meu caro palerma. O brasileirinho amarelo hoje
vende, sabe?…" E lá deixo de novo as ações da
Niagara e embolso milhões sonantes… Compro em seguida um hiate, o
mais belo e comodo que houver…
No meu sonho julguei ser o capitão do hiate e ia responder-lhe com
uma ordem — "Rumo a boreste!", quando ao pé de mim
vejo miss Jane, muito transtornada de feições.
— Senhor Ayrton, meu pai passa mal! Venha ve-lo…
Corri atrás dela, tomado de negros pressentimentos. Penetrei no quarto
do professor. Lá estava o bom velho no fundo da cama, muito desfeito,
dando mais a impressão de um defunto que de um ser vivo.
— Quer que vá buscar um medico? exclamei ansioso ao aproximar-me
do enfermo.
— Não, respondeu lentamente a voz cava e debil do professor.
É inutil. Conheço o meu estado e sei que chegou o momento…
A moça atirou-se-lhe aos braços e cobriu-lhe o rosto de beijos
convulsos.
— Boa Jane, disse ele, é hora de separar-nos. Tenho confiança
em ti e espero que passado o rude momento te conformes com a situação,
buscando conforto no estoicismo que te ensinei e de que te dei exemplo em
vida. Há já algum tempo que me sentia mal. Ocultava-o a ti para
evitar-te um sofrimento inutil. Mas esta noite percebi que chegara o fim.
Quando te deixei no gabinete com pretexto de concluir um trabalho, iludi-te,
ou, melhor, vim fazer um trabalho muito diverso do que poderias supor. Vim
destruir a minha descoberta.
Queimei toda a papelada relativa e desmontei as peças mestras dos
aparelhos. O que resta nenhuma significação possue e não
poderá ser restaurado. Desfiz em meia hora o trabalho de toda uma vida.
Da minha invenção restam apenas as impressões que te
ficaram na memoria. E quando por tua vez morreres, tudo se extinguirá…
— Meu pai! exclamou Jane achegando o seu rosto afogueado á
face descorada do velho.
— Teu pai, teu amigo, teu companheiro de trabalho…
Não pude conter-me diante do doloroso lance e grossas lagrimas brotaram-me
dos olhos. O moribundo não esqueceu o hospede.
Volveu com esforço um olhar para o meu lado e disse em voz cada vez
mais fraca: — Adeus, Ayrton. O acaso o trouxe aqui para me ver morrer.
Seja amigo de Jane. Adeus…
Um impulso atirou-me de joelhos ao pé do leito do moribundo; tomei-lhe
as palidas mãos e beijei-as tão enternecido como se beijara
as de meu proprio pai.
— Adeus, Jane!… foram suas derradeiras palavras.
Fechou os olhos e imobilizou-se. Minutos mais tarde estava apagada a luz
daquele cerebro, o mais potente que ainda desabrochou no seio da humanidade…
CAPITULO IX – Entre Sá, Pato & Cia. e Miss Jane
Pobre moça!… vinha eu pensando comigo ao voltar do enterro do professor
Benson. Se é grande a dor de perder um bom pai, que dizer de quem perdia
tal pai?…
De fato, quasi que com seu pai perdera Jane a sua razão de ser na
vida. Desde menina se consagrara a estudos do porvir, e é natural que
quem possue tal faculdade de pre-videncia não se preocupe grande coisa
com a atualidade. Para nós, encerrados nas quatro paredes dos cinco
sentidos, o presente é tudo; mas quão pouco não será
ele para uma criatura colocada no tope da montanha, podendo ver tanto a paisagem
do que lá passou como a do que vai passar! O magico aparelho do professor
Benson deixara de existir, e dele, como dissera o moribundo, só restavam
as impressões subsistentes na memoria da filha. Tinha miss Jane, portanto,
de refazer sua vida, adaptar-se á condição comum dos
pobres seres humanos que só vêem um palmo adiante do nariz.
— Está como eu, murmurei em soliloquio. Passou tambem a pedestre…
Mas vi logo o falso da comparação. Eu podia com o tempo voltar
á casta dos rodantes, adquirindo novo automovel. Miss Jane nunca mais
alcançaria a onividencia…
O castelo ficava a tres quilometros de Friburgo, pela estrada onde se dera
o meu desastre. Ao passar por essa estrada reconheci o ponto e parei á
borda do desbarrancado. Estavam ainda patentes os sinais do trambolhão.
— Estranhos caminhos da Interferencia! exclamei comigo mesmo.
Para ver a maravilha das maravilhas e conhecer a mulher que me está
iluminando a alma e talvez faça de mim um romancista, foi mister que
eu passasse por este precipício aos trancos, e lá fosse parar
semi-morto ao fundo da barroca…
Logo adiante, dobrada uma curva da estrada, vi erguer-se o vulto misterioso
do castelo, com suas torres metalicas. Parei tomado de viva emoção.
Olhei para a singular fabrica e perdi-me em pensamentos de saudade e incerteza.
Entre aquelas paredes duas nobres criaturas humanas me haviam abrigado com
extremos de carinho; trataram-me do corpo, salvaram-me a vida e não
satisfeitas ainda me revelaram o segredo irrevelado. No castelo conheci a
mulher divina que jamais sairá do meu coração. Lá
estive em minha casa, como no seio da minha verdadeira familia…
Mas quão tudo mudara! Eu não podia mais continuar naquela
situação de hospede depois de morto o hospedeiro. Tinha que
afastarme dali — afastar-me do lugar que era na verdade o meu verdadeiro
lugar na terra…
O coração confrangeu-se-me dolorosamente e foi com o olhar
sombrio e a cabeça baixa que transpus de novo os umbrais do castelo.
Chamei um criado. Por coincidencia apareceu o surdo-mudo que me acompanhara
na primeira saída pelos campos. Esqueci-me dessa circunstancia e perguntei-lhe:
— Não será possível falar a miss Jane? O criado
tambem se esqueceu de que era surdo-mudo e tornou: — Acho inconveniente.
Miss Jane recolheu-se em tal estado de abatimento que nenhum de nós
se atreve a perturba-la.
Vi que o homem tinha razão. Pedi-lhe papel e, ali mesmo no vestíbulo,
tracei o seguinte bilhete: Com o coração alanceado Ayrton despede-se
de miss Jane. Volta ao seu fado anterior, cheio, pelo resto da vida, dos sentimentos
de gratidão e enlevo que os donos deste castelo encantado lhe despertaram
n’alma. Se acha miss Jane que o hospede ocasional lhe merece alguma coisa,
permita-lhe que a venha ver de vez em quando .
Entreguei-o ao criado e sai.
Estava outra vez na rua — e nunca avaliei tão bem a sensação
do decair. Quando o anjo mau se viu expulso do paraíso a sua impressão
devera ter sido igual á minha…
Na curva da estrada volvi um ultimo olhar ao castelo. Lagrimas me vieram
aos olhos, e foi com a infinita tristeza de um corvo triste que alcancei a
estação de Friburgo. Rodei para o Rio.
Ao apresentar-me no escritorio da firma o assombro do senhor Sá foi
enorme. Olhou-me com os olhos arregalados, como se visse aparecer um espetro;
depois vincou a testa de todas as temíveis rugas com que tanto nos
apavorava e disse: — Muito bem, senhor Ayrton Lobo! Sempre contei com
a sua presteza, quando o senhor me andava a pé. Agora, que se deu ao
luxo de um automovel, gasta-me vinte e tantos dias numa simples cobrança
e aparece-me com essa cara de cachorrinho que me quebrou a panela! Me, me,
me, me… tudo para aquele homem se relacionava egoisticamente á sua
pessoa…
Procurei acalmar-lhe a furia, contando do desastre e da minha internação
numa casa acolhedora. Mas o eter em vibração que era o senhor
Sá fôra evidentemente interferido por uma rabanada de saia das
furias de Esquilo. Em vez de aceitar a minha escusa, o homem redobrou de acusações.
— E por que me não preveniu? Um empregado decente, logo que
se vê numa situação dessas, a primeira coisa que faz é
avisar aos patrões. Pensa então o senhor que isto aqui é
brincadeira? Não sabe que somos uma firma séria e temos o direito
de ser bem servidos? Está despachado. Não nos servem empregados
da sua ordem.
Nesse momento um rumor muito meu conhecido denunciou a presença da
outra parte da firma. Era o senhor Pato que chegava. Ao ve-lo surgir á
porta, dentro do seu formidavel fraque de elasticotine de cem mil réis
o metro e todo reluzente de penduricalhos de ouro maciço, confesso
que tremi. Olhou-me o homem d’alto a baixo, fulminantemente, e sem dizer palavra
foi para um canto confabular com o socio.
Não sei o que disseram. Só sei que ao cabo de dois minutos
o senhor Sá voltou-se para mim e indagou: — E o seu automovel?
— Perdi-o… respondi com voz sumida.
Sá trocou com o socio um olhar risonho e ironico; em seguida, divertido
lá no intimo por uma ideia, humanizou-se.
— Pode ficar na casa, senhor Ayrton, mas compreende o caro amigo que
não nos é possível pagar a um moço que anda a
pé o mesmo ordenado que pagavamos a um que tinha automovel proprio…
Pronunciou um "proprio" de boca cheia, trocando com o Patrão
um novo olhar de malícia.
Resignei-me, já que precisava viver. E murcho, de cabeça baixa,
com o espirito a agarrar-se á lembrança de miss Jane, reassumi
na casa as minhas velhas funções.
A semana toda passei-a na rua, a trabalhar como um automato. Meu pensamento
fugia para longe do que eu executava.
Impossível fixa-lo nas reles coisas que me mandavam fazer, quando
havia um ponto luminoso a atrai-lo como íman. Impossível tomar
a serio os negocios de S&aaaacute;, Pato & Cia. depois do deslumbramento
daquelas semanas no castelo. Eu já não era mais o mesmo. Era
um ser que se dilatara imensamente — e que esperava…
Executei mal as minhas comissões e sofri do senhor Sá varias
reprimendas. Ouvia-as, porém, tão absorto nos meus pensamentos
que não poderei reproduzir nada do que ele me disse.
Eu aguardava ansioso a chegada do proximo domingo. Iria novamente rever
o castelo e extasiar-me ainda uma vez diante da imagem querida.
O domingo chegou. Fui. Miss Jane recebeu-me no gabinete e fez-me sentar
na poltrona onde me achava no momento em que o criado a chamou. Encontrei-a
serena e resignada, embora com todos os estigmas da sua grande dor impressos
na fisionomia. Seus olhos denunciavam o cansaço das lagrimas.
Permaneci calado por uns instantes, sem ter o que dizer. Quem rompeu o silencio
foi ela.
— Obrigada, senhor Ayrton. A sua visita me fará bem, me acalmará
os nervos, coisa que nunca supus que tivesse… A minha solidão é
hoje extrema. Como castigo de ter tido ás mãos o tudo, vejome
agora sem nada. Este casarão vazio… os laboratorios já sem
função… o porviroscopio, onde passei anos a me deslumbrar
com visões ineditas, morto, reduzido a simples materia inerte, sem
alma…
A alma de tudo era meu pai…
Alcancei a situação da querida criatura e foi com a alma á
boca que lhe disse: — Compreendo como ninguem o seu caso, miss Jane,
e sei que até hoje no mundo pessoa alguma num só dia perdeu
tanto. Horas apenas convivi com o professor Benson e apesar disso a sua lembrança
viverá em mim como não vive a de meu pai. Imagino, pois, a falta
que faz ele á sua filha, á sua companheira de estudos e visões…
Miss Jane sacudiu a cabeça como a espantar ideias importunas.
Depois esboçou o sorriso mais triste que inda vi. E com um suspiro
murmurou: — Paciencia. Meu pai ensinou-me o estocismo, mas é
bem difícil o estoicismo nos grandes momentos de dor. O estoicismo
é uma atitude…
Tres horas passei em companhia da desolada jovem, e consegui afinal distrair
o seu espirito contando-lhe o meu reaparecimento no escritorio. Chegou a sorrir
quando lhe desenhei a imagem hipopotamica do senhor Pato, todo a reluzir berloques
de ouro maciço.
— Que felicidade ser como esse homem, agir como ele, formar de si
proprio a ideia que ele forma! comentou miss Jane. Ignora tudo, mas não
tem a sensação disso. Meu pai era o contrario. Levava ao extremo
oposto o conceito da sua propria pequenez — e o senhor Ayrton sabe que
se houve no mundo criatura mais que todas as outras foi meu pai… Imagine
se tomba nas mãos desse senhor Pato a maquina de sondar o futuro! —
Aplica-la-ia em enriquecer-se como dez Cresos, pendurando no corpo tanta quinquilharia
de ouro que quando andasse na rua havia de tilintar. E a pobre humanidade,
assombrada, era bem capaz de meter-se de joelhos á sua passagem, certa
de que resurgira no mundo o Bezerro de Ouro disfarçado em homem.
— Bem razão tinha meu pai em não tornar publica a sua
descoberta. Só mesmo um espirito de eleição como o dele
poderia resistir ás tentações resultantes, concluiu miss
Jane.
Soube nesse domingo muitos detalhes curiosos da vida do professor Benson,
e de como chegara á descoberta da onda Z, ponto de partida para o mais.
— Foi o psiquismo que lhe revelou essa onda que resume e reflete a
vida universal do momento. O fato de certos indivíduos agirem como
polarizadores de uma força desconhecida impresionara profundamente
a sua agudissima inteligencia. Meteu-se a estudar o fenomeno sob uma luz nova
e chegou a apreende-lo de modo integral. Pobre pai! Falamos depois do nosso
romance sobre o choque das raças na America.
— Sim, disse miss Jane animando-se. Contínuo a pensar que o
senhor Ayrton não deve perder a oportunidade. Ouvirá de mim
tudo o que sei a respeito e escreverá um livro deveras interessante.
Não lhe prometo já, já, fazer essas revelações.
Neste meu estado, compreende que me seria penoso. Mas o tempo cicatriza, eu
sei, e lá chegaremos.
Para mim será até um derivativo á dor da saudade. Dizem
que recordar é reviver e eu pressinto que minha vida vai resumir-se
nisso: recordar, reviver o que tenho acumulado na memoria. Venha todos os
domingos e creia que sua presença me será sempre agradavel —
além de que estamos ligados pelo grande segredo…
CAPÍTULO X – Céu e Purgatorio
Regressei á cidade alegre como um pardal depois da chuva. As palavras
de miss Jane valeram-me pela abertura do céu. Com que prazer não
trabalharia a semana toda estimulado pela perspectiva de ve-la cada domingo!
A firma chegou a notar o meu assanha-mento. O senhor Sá olhou-me de
soslaio e murmurou para o socio de fraque: — Parece que o seresma viu
passarinho verde…
Custou a passar o tempo, tanto a minha impaciencia alongava as horas. Mas
passou e no domingo, depois de apurar-me na toalete como nunca, e lançar
ao pescoço uma gravata nova verde-oliva com pintas de tom mais sombrio,
voei, positivamente voei, ao castelo dos meus sonhos.
Já mais senhora de si, nesse dia miss Jane não falou tão
exclusivamente de seu pai. Muito falou dele ainda, mas tambem discorreu de
outros assuntos, dando começo afinal ás revelações
que me serviram de base á novela.
Antes de mais nada externou-se quanto á situação presente
do povo americano — e com palavras que me derrancaram as ideias. Sim,
porque eu tinha a ingenuidade de posuir ideias assentes sobre o povo americano,
apesar da mais absoluta ignorancia da psíquica e rumos que levava esse
povo. Ideias pegadas no ar do escritorio, nas palestras dos cafés,
na leitura de jornais redigidos por criaturas tão ignaras como eu,
ideias que se nos grudam ao cerebro como o pó do asfalto nos adere
ao rosto nos dias de calor. Do senhor Sá, por exemplo, ouvi dizer do
americano (não a mim, está claro, que me não daria esta
honra, mas ao senhor Pato): "Povo sem ideais, o mais materialão
da terra. A gente do the biggest…" Era Sá quem o dizia e pois
a afirmação me penetrou nos miolos como a propria Certeza. Nesse
mesmo dia, num café, como na roda em que me achava se falasse da América,
repeti a esmo, entre duas baforadas de um cigarro: — Povo sem ideais,
o mais materialão da terra. A gente do the biggest…
Causou sensação, e é provavel que algum dos presentes
fosse repetir alem, a bela síntese dos meus patrões —
e por aqui se vê como certas ideias circulam á maneira de moeda
e vão enriquecer o patrimonio ideologico de um povo…
Quando miss Jane abordou o assunto e de chofre perguntou-me que é
que eu pensava do americano, imediatamente a bela sintese sapatesca me veio
aos labios: — Povo sem ideais, o mais materialão da terra, a
gente do the biggest… murmurei com enfase.
O efeito, porém, falhou. Pela primeira vez não vi na cara
de um interlocutor a expressão aprovativa a que eu já me afizera.
Miss Jane, ao contrario, sorriu com o inesquecível sorriso do professor
Benson e disse: — Essa ideia não pode ser sua, senhor Ayrton.
Soa-me a frase feita, das que se recebem no ar sem exame. A um povo que tenta
romper com o alcool acha sem ideias? Poderá haver maior idealismo que
o sacrifício de formidaveis interesses materiais do presente em vista
de benefícios que só as gerações futuras poderão
recolher? Se o senhor Ayrton observar um pouco a psique americana verá,
ao contrario, que é o unico povo idealista que floresce hoje no mundo.
Unico, vê? Apenas se dá o seguinte: o idealismo dos americanos
não é o idealismo latino que recebemos com o sangue. Possuem-no
de forma especifica, proprio, e de implantação impossivel em
povos não dotados do mesmo carater racial. Possuem o idealismo organico.
Nós temos o utopico. Veja a França. Estude a Convenção
Francesa. Sessão permanente de utopismo furioso — e a resultar
em que calamidades! Por que? Porque irrealizavel, contrario á natureza
humana. Veja agora a America. Em todos os grandes momentos da sua historia,
sempre vencedor o idealismo organico, o idealismo pragmatico, a programação
das possibilidades que se ajeitam dentro da natureza humana. Leia Emerson
e leia Rousseau. Terá os expoentes de duas mentalidades polares. Não
acha o senhor Ayrton que é assim? Apressei-me em achar, se não
de todo convencido ao menos vencido por tão ardorosos argumentos. Espantaram-me
a fluidez, a clareza, o ímpeto com que miss Jane discordara. Vi bem
clara a diferença que existe entre ter ideias proprias, frutos faceis
e logicos de uma arvore nascida de boa semente e desenvolvida sem peias ou
imposições externas — ser "arvore de natal",
museu de ideias alheias pegadas daqui e dali, sem ligação organica
com os galhos, donde não pendem de pedunculos naturais e sim de ganchinhos
de arame. E comecei a aprender a tambem ser arvore como as que crescem no
campo, e a deixar-me engalhar, enfolhar e frutificar livremente por mim proprio.
Sinto hoje que a minha arvore mental cresce desafogada no sitio tanto tempo
ocupado por uma arvore-cabide, onde Sás, Patos et caterva penduravam
papel-ideias, coisa peor que o papel-moeda. Foi com miss Jane que aprendi
a pensar.
— Idealista como nenhum outro povo, prosseguiu ela, e do unico idealismo
verdadeiramente construtor da atualidade. Acompanhe a vida de Henry Ford,
por exemplo, estude-lhe as ideias. Verá que nelas estão todas
as soluções que no seu desvario de doida a Europa procura no
despotismo. Por mais audacioso que nos pareça o pensamento de Henry
Ford, que é ele senão o reflexo do mais elementar bom senso?
Todos nós, creia, senhor Ayrton, temos conosco essas ideias, á
primeira vista tão novas. No entanto, tamanha é a crosta que
nos recobre o bom senso natural que Ford nos parece um messias da Ideia Nova.
Ha um aparelho de limpar os tubos das caldeiras por onde passa a chama vinda
da fornalha. Esses tubos, com o tempo, vão se encrostando de residuos
carbonicos e acabam por se obstruírem. É necessario a espaços
proceder-se a uma limpeza. Embora o uso das maquinas de vapor já seja
bem velho, só recentemente se inventou o meio pratico de desencrosta-las:
o martelo trepidante.
Ford me dá a sensação desse instrumento. É o
martelo trepidante que nos desencrosta os tubos do cerebro, obstruídos
pela fuligem das ideias falsas. Ninguem melhor do que eu poderá dizer
isto de Henry Ford, porquanto devassei o futuro e por toda parte vi reflexos
do seu pensamento. É pois o melhor tipo atual do idealista organico.
Sonha, mas sonha a realidade de amanhã. A desaglomeração
da industria urbana, por exemplo, a estandardização de todos
os produtos, a industria posta na base de uma associação de
tres socios — trempe que abrange todas as classes sociais, a simplificação
da vida pela eliminação dos milhares de coisas inuteis que hoje
consomem tanto material e energia, tudo isso vai realizado no futuro e, no
meu entender, com ponto de partida no idealismo pragmatico de Henry Ford.
— Realmente!… exclamei. Agora vejo que fazemos cá uma ideia
apressada desse povo.
Eu me sentia cada vez mais desencrostado das minhas ideias falsas ante a
vibração do gentil martelinho trepidante que era miss Jane…
— E o mundo americano não podia deixar de ser assim, senhor
Ayrton, continuou ela. Note apenas: que é a America, senão a
feliz zona que desde o inicio atraiu os elementos mais eugenicos das melhores
raças europeias? Onde a força vital da raça branca, se
não lá? Já a origem do americano entusiasma. Os primeiros
colonos, quais foram eles? A gente do Mayflower, quem era ela? Homens de tal
tempera, caracteres tão shakespearianos, que entre abjurar das convicções
e emigrar para o deserto, para a terra vazia e selvagem onde tudo era inhospitalidade
e dureza, não vacilaram um segundo. Emigrar ainda hoje vale por alto
expoente de audacia, de elevação do tonus vital.
Deixar sua terra, seu lar, seus amigos, sua língua, cortar as raízes
todas que desde a infancia nos prendem ao solo patrio, haverá maior
heroísmo? Quem o faz é um forte, e só com esse fato já
revela um belo índice de energia. Mas emigrar para o deserto, deixar
a patria pelo desconhecido, isto é formidavel! — Realmente, realmente…
— Pois bem, continuou miss Jane, o processo inicial da America tornou-se
o processo normal do seu acrescentamento no decorrer da historia. Ondas sucessivas
dos melhores elementos europeus para lá se transportaram. Depois vieram
as leis seletivas da emigração, e as massas que a procuravam,
já de si boas, viram–se peneiradas ao chegar. Ficava a flor. O restolho
voltava… Note o enriquecimento de valores humanos que isso representou para
aquela nação.
Miss Jane falava com tanta alma, havia em suas palavras tal força
persuasiva, que senti um ímpeto de revolta contra o senhor Sá.
Se esse homem me aparece naquele momento, eu era capaz de erguer contra
ele a minha outrora tão humilde mão! — E hoje, prosseguiu
miss Jane, hoje que se deslocou para lá o centro economico do mundo?
Reflita um bocado na significação, não digo do povo americano,
mas do fenomeno americano — o fenomeno eugenico americano. Estados Unidos
querem hoje dizer um imenso foco luminoso num mundo de candieiros de azeite
e velas de sebo. Todas as mariposas da terra têm os olhos fixos no deslumbrante
foco — todos os artistas, todos os sabios, todos os espíritos
animados da centelha criadora, que na sua patria não encontram condições
propicias de desenvolvimento. Lá, a manhã radiosa de sol. No
resto do mundo, varias especies de crepusculos… Cada vez mais vai sendo
a Europa drenada de seus melhores elementos — as suas mariposas, e a
Europa acabará amarelada pela pigmentação mongolica.
Isso vi eu já bem denunciado nos cortes feitos no seculo 25.
— Mas, miss Jane, atrevi-me a dizer, não é logico que
tambem invada a America esse asiatismo entrevisto? — Logico por que?
O logico é que da semente da couve nasça o pé de couve
e da do jequitibá nasça o jequitibá. A semente americana
lançada em Plymouth era sã e era de jequitibá. O espirito
de casta matou a Asia — do espirito de classe morrerá a Europa.
A semente de que nasceu a America não continha em seus cotiledones
essas venenosas toxinas.
— Mas deu origem a classes, tambem…
— Deu origem a classes, é certo, e os interesses das classes
se tornaram antagonicos. Mas o espirito de exame dos fatos — e outra
coisa não quer dizer o idealismo organico — interveio a tempo
e harmonizou tais interesses. Quando Ford provou que não ha hostilidade
entre o capital e o trabalho e sim mal-entendido — e o provou com o
fato da sua formidavel realização, todos os olhos se abriram,
e a industria, até ali Moloch devorador da classe que produz e da que
consome em proveito da que detem os meios de produção, passou
a ser a mais harmonizada das associações. Esse maravilhoso remedio
criou a grande barreira contra o asiatismo invasor e ergueu a America do seculo
25 á posição de um mundo sadio e vivo dentro de um marasmo
fatalista.
— Está tudo muito bem, adverti eu, mas nos Estados Unidos não
penetraram apenas os elementos espontaneos que miss Jane aponta. Entrou ainda,
á força, arrancado da Africa, o negro.
— Lá ia chegar. Entrou o negro e foi esse o unico erro inicial
cometido naquela feliz composição.
— Erro impossível de ser corrigido, aventurei. Tambem aqui
arrostamos com igual problema, mas a tempo acudimos com a solução
pratica — e por isso penso que ainda somos mais pragmaticos do que os
americanos. A nossa solução foi admiravel. Dentro de cem ou
duzentos anos terá desaparecido por completo o nosso negro em virtude
de cruzamentos sucessivos com o branco. Não acha que fomos felicíssimos
na nossa solução? Miss Jane sorriu de novo com o meigo e enigmatico
sorriso do professor Benson.
— Não acho, disse ela. A nossa solução foi medíocre.
Estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiraveis
qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitavel peora
de carater, consequente a todos os cruzamentos entre raças dispares.
Carater racial é uma cristalização que ás lentas
se vai operando através dos seculos. O cruzamento perturba essa cristalização,
liquefa-la, torna-a instavel. A nossa solução deu mau resultado.
— Quer dizer que prefere a solução americana, que não
foi solução de coisa nenhuma, já que deixou as duas raças
a se desenvolverem paralelas dentro do mesmo territorio separadas por uma
barreira de odio? Aprova então o horror desse odio e todas as suas
tristes consequencias? — Esse odio, ou melhor, esse orgulho, respondeu
miss Jane, serena como se a propria Minerva falasse pela sua boca, foi a mais
fecunda das profilaxias. Impediu que uma raça desnaturasse descristalizasse
a outra, e conservou a ambas em estado de relativa pureza. Esse orgulho foi
o criador do mais belo fenomeno da eclosão etnica que vi em meus cortes
do futuro.
— Mas é horrível isso! exclamei revoltado, Miss Jane,
um anjo de bondade, defende o mal…
Pela terceira vez a moça sorriu com o sorriso do professor Benson.
— Não ha mal nem bem no jogo das forças cosmicas. O
odio desabrocha tantas maravilhas quanto o amor. O amor matou no Brasil a
possibilidade de uma suprema expressão biologica. O odio criou na America
a gloria do eugenismo humano…
Como era forte o pensamento de miss Jane! Dava-me a sensação
dos fenomenos naturais, ora da brisa que passa e treme a folha das arvores,
ora do jorro de sol que tudo ilumina. Seus olhos fulguravam e por vezes eu
sentia neles o impeto sereno que os poetas gregos atribuíam a Palas.
Meu sentimentalismo sofria com isso. "Poderia vir a amar-me uma criatura
assim, tão alta de cerebro?". Tudo me levava a crer que não,
e apesar disso eu esperava…
— Entre dar uma solução inepta e não dar solução
nenhuma, o americano optou pela ultima alternativa, continuou miss Jane.
— Quer dizer que eternizou o problema, conclui vitorioso.
— A sua eternidade, senhor Ayrton, é bem precaria. Durará
apenas mais 302 anos. O inevitavel choque das duas raças dar-se-á
em 2228, e a solução…
— Já sei qual será! exclamei muito lampeiro. Um massacre
em massa, uma chacina horrorosa!…
— Nada disso.
— Expulsam os negros de lá, então! adverti apressadamente,
na minha ansia de adivinhar.
— Nada, nada disso.
Parei atrapalhado, mas num clarão apresentou-se-me a terceira hipotese.
— Dividem o país em duas partes, a negra e a branca! —
Nada, ainda. Creio que por mais esforços que o senhor Ayrton faça
não adivinhará.
Refleti alguns instantes a ver se me ocorria uma quarta hipotese.
Não ocorreu coisa nenhuma e confessei-me vencido.
— Se a solução não vai ser alguma destas, quer
dizer que o caso fica insoluvel, rematei.
— Ao contrario. Será solvido da maneira mais completa, sem
sacrifício dos negros existentes e sem transigencia dos brancos. O
orgulho é criador, senhor Ayrton e além disso, extremamente
engenhoso…
Era hora de retirar-me.
Beijei a mão de miss Jane e saí pela estrada afora a parafusar
no tremendo quebra-cabeça. Depois volvi para ela os meus pensamentos
e passei a semana inteira a recordar as suas palavras e gestos, num grande
enlevo d’alma. O senhor Sá notou-o e disse ao socio: — Isto ou
é amor ou é espinhela caida.
Era amor. Em tudo eu via miss Jane. Nas moças que se cruzavam por
mim nas ruas eu só via os traços que tinham de comum com miss
Jane — esta a linha dos ombros; aquela o tom dos cabelos. Meus sonhos
se complicavam estranhamente, mas neles Freud leria claro como numa cartilha
infantil. O mundo futuro me surgia caotico, informe, com chins em Paris e
homens sem pressa em New York, a conversarem sentados no meio das ruas —
e que ruas! Wall Street, Broadway… Depois surgia miss Jane como o Tudo e
eu mergulhava em extase.
Amor! Amor!
CAPITULO XI – No Ano 2228
Voltei ao castelo e minha amiga deu começo enfim as suas revelações
sobre o choque das raças.
— Decifrou o quebra-cabeças? perguntou-me logo que entrei.
— É dos indecifraveis, respondi — dos indecifraveis para
quem não inventou nenhum porviroscopio. Um ponto, entretanto, me intriga.
Acho que a população negra da America é muito pequena
em relação á branca para que possa jamais constituir
perigo.
— Seria assim, de fato, emendou a moça, se com o crescer do
país a proporção se conservasse sempre a mesma. Não
foi exatamente isso o que se deu. Enquanto a corrente imigratoria europeia
trazia ondas e mais ondas de brancos a somarem-se aos já estabelecidos
no país, nada alarmava, nem deixava vislumbrar um futuro agravamento
da situação. Mas essas ondas foram diminuindo em virtude dos
obstaculos opostos á entrada de imigrantes, e por fim sobreveio um
maquiavelico sistema de drenagem. Em vez de entrada franca a quem quisesse
vir localizar-se no país, organizou o governo americano em todas as
nações do velho mundo um serviço de importação
de valores humanos, consistente em atrair para lá a fina flor eugenica
das melhores raças europeias. Já aliviada do seu ouro em favor
da America, viu-se a Europa tambem aliviada da sua elite.
— Desnataram a pobre Europa! Só deixaram no velho mundo o soro…
— Isso mesmo. Daí a qualificação de maquiavelico
dada ao sistema. Os mais perfeitos tipos de beleza plastica, as mais fortes
inteligencias, os mais puros valores morais, eram descobertos onde quer que
florescessem e seduzidos, de modo a, mais cedo ou mais tarde, se localizarem
na Canaã americana. Por fim achou-se o país bastante povoado;
e a mentalidade proibicionista, assustada com o espetro do super-povoamento,
suplantou a imigracionista. Fecharamse todas as portas ao fluxo europeu e
a nação passou a crescer vegetativamente apenas. Data daí
a "inflação do pigmento".
Até essa epoca a população negra representava um sexto
da população total do país. A predominancia do branco
era pois esmagadora e de molde a não arrastar o americano a ver no
negro um perigo serio. Mas com o proibicionismo coincidiu o surto das ideias
eugenisticas de Francis Galton. As elites pensantes convenceram-se de que
a restrição da natalidade se impunha por mil e uma razões,
resumiveis no velho truismo: qualidade vale mais que quantidade.
Deu-se então a ruptura da balança. Os brancos entraram a primar
em qualidade, enquanto os negros persistiam em avultar em quantidade.
Foi a maré montante do pigmento. Mais tarde, quando a eugenia venceu
em toda a linha e se criou o Ministerio da Seleção Artificial,
o surto negro já era imenso.
— Ministerio da Seleção Artificial? — Sim. O grande
Ministerio, o verdadeiro fator da espantosa transformação sofrida
pelo povo americano. O seu espirito criador, a coragem de enveredar por sendas
novas sem esperar que outros o fizessem primeiro, deu áquele povo um
enorme avanço sobre os demais.
Essas restrições melhoraram de maneira impressionante a qualidade
do homem. O numero dos mal-formados no fisico desceu a proporções.
minimas — sobretudo depois do resurgimento da sabia lei espartana.
— A que matava no nascedouro as crianças defeituosas? exclamei
arrepiado. Tiveram eles a coragem de fazer isso? — Se o senhor Ayrton
visse, como eu vi, o resultado dessa e de outras leis semelhantes, só
se admiraria da estupidez do homem em retardar por tanto tempo a adoção
de normas tão fecundas. Entre cortar no inicio o fio da vida a uma
posta de carne sem sombra de consciencia e deixar que dela saia o ser consciente
que vai vegetar anos e anos na horrível categoria dos "desgraçados",
a crueldade está no segundo processo. A lei espartana reduziu praticamente
a zero o numero dos desgraçados por defeito fisico. Restavam os desgraçados
por defeito mental.
— De numero infinito…
— Esses foram impedidos de se reproduzirem pela Lei Owen, fruto das
grandes ideias pregadas por Walter Owen. Walter Owen foi o verdadeiro remodelador
da raça branca na America. Apareceu cento e poucos anos antes do choque
das raças com o seu famoso livro O Direito de Procriar, onde lançava
os fundamentos do Codigo da Raça, conjunto de leis tão sabias
e fecundas em resultados que, podemos dizer, a Era Nova da raça humana
datou da sua promulgação. A lei Owen, como era chamado esse
Codigo da Raça, promoveu a esterilização dos tarados,
dos mal-formados mentais, de todos os indivíduos em suma capazes de
prejudicar com má progenie o futuro da especie. Só depois da
aplicação de tais leis é que foi possível realizar
o grandioso programa de seleção que já havia empolgado
todos os espíritos. Os admiraveis processos hoje em emprego na criação
dos belos cavalos puro-sangue passaram a reger a criação do
homem na America.
— E lá se foram os peludos!…
— Exatissimamente… Desapareceram os peludos — os surdosmudos,
os aleijados, os loucos, os morfeticos, os histericos, os criminosos natos,
os fanaticos, os gramaticos, os misticos, os retoricos, os vigaristas, os
corruptores de donzelas, as prostitutas, a legião inteira de mal-formados
no fisico e no moral, causadores de todas as perturbações da
sociedade humana. Essas leis está claro que eram fortemente restritivas
da natalidade, sobretudo, no começo, quando havia quasi tanto joio
quanto trigo. Crescer para a America não equivalia mais a avultar ás
tontas em numero, como hoje, e sim a elevar o indice mental e fisico dos seus
habitantes. Os Estados Unidos (e o Canadá, que já se fundira
neles) cresciam dessa maneira admiravel, se bem que incompreensível
para nós hoje, que vivemos em plena licenciosa anarquia procriadora.
Miss Jane tomou folego e prosseguiu: — Mas… o "mas" perturbador
de todos os calculos humanos surgiu. Apesar de submetida aos mesmos processos
restritivos dos brancos, a raça negra começou desde logo a apresentar
um indice mais alto de crescimento. A proporção do negro puro
relativa ao branco subiu a um quinto, a um quarto, a um terço, e por
fim chegou á metade… Quer dizer que o binomio racial, desprezado
na era do crescimento imigratorio e descurado no inicio do regime seletivo,
passou a entrar na fase aguda do "resolve-me ou devoro-te".
— Em quantos eram calculados os negros nesse momento? — Na era
em que tomamos este corte anatomico do futuro, ano 2228, as estatísticas
apresentavam dados alarmantes. Negros, 108 milhões; brancos, 206 milhões.
E como o coeficente da natalidade negra acusasse uma nova subida, o instinto
de conservação dos brancos eriçou-se nos primeiros arrepios
da legitima defesa. Dos muitos alvitres propostos para de uma vez por todas
arrancar a America do seu beco sem saida predominavam duas correntes de ideias
contrarias, conhecidas por "solução branca" e "solução
negra".
A solução branca…
— Já sei! exclamei aflito por acertar uma só vez que
fosse. A solução branca era expatriar o negro!…
— Muito bem! confirmou miss Jane, alegre de ter-me proporcionado um
inocente prazer mental. Queriam os brancos a expatriação dos
negros para o . . .
— Vale do Amazonas! exclamei de novo, radiante do meu sucesso anterior
e esperançoso de segunda vitoria. Dias antes eu lera não sei
onde uma qualquer coisa que me deixara entrever isso.
— Bravos! Nesse andar vai o senhor Ayrton substituir com vantagem
o nosso porviroscopio perdido. Para esse vale, sim. O antigo Brasil cindira-se
em dois países, um centralizador de toda a grandeza sul-americana,
filho que era do imenso foco industrial surgido ás margens do rio Paraná.
Com as cataratas gigantescas ao longo do seu curso, acabou esse fecundo Nilo
da America transformado na espinha dorsal do país que em eficiencia
ocupava no mundo o lugar imediato aos Estados Unidos. O outro, uma republica
tropical, agitava-se ainda nas velhas convulsões políticas e
filologicas. Discutiam sistemas de voto e a colocação dos pronomes
da semi-morta lingua portuguesa. Os sociologos viam nisso o reflexo do desequilíbrio
sanguíneo consequente á fusão de quatro raças
distintas, o branco, o negro, o vermelho e o amarelo, este ultimo predominante
no vale do Amazonas.
Não pude deixar de estremecer diante das revelações
de miss Jane sobre o futuro do meu país.
— Que tristeza, miss Jane! exclamei compungido. Pois vai dar-se isso
então? — Não vejo motivos para a sua tristeza, respondeu
ela. Acho até que a divisão do país constitui uma solução
otima, a melhor possível, dado o erro inicial da mistura das raças.
A parte quente ficou a sofrer o erro e suas consequencias; mas a parte temperada
salvou-se e pode seguir o caminho certo. A sua tristeza vem da ilusão
territorial.
Mas reflita que a muita terra não é que faz a grandeza de
um povo e sim a qualidade dos seus habitantes. O Brasil temperado, além
disso, continuou a ser um dos grandes paises do mundo em territorio, visto
como fundia no mesmo bloco a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.
Enchi-me de orgulho patriotico e sem querer levantei-me da cadeira com um
hurrah entalado na garganta.
— Vencemos a Argentina, então? Conquistamos todo o Prata? —
Errou desta vez, senhor Ayrton. Não houve guerra, nem conquista de
qualquer especie. Os povos deste sul abriram os olhos a tempo, viram que a
espinha dorsal da zona era o rio Paraná e foram-se arrumando ao longo
das suas quedas como costelas, formando um todo unico, mais ligados pelos
interesses economicos e geograficos do que por vinculas de sangue.
— Mas a velha rivalidade entre brasileiros e argentinos? — Não
passava de uma ingenua voz de sangue. Brasileiros e argentinos, descendentes
de lusos e espanhois, encampavam sem o saber o velho antagonismo que sempre
dividiu a península iberica.
Mas tantas ondas de sangue novo despejou cá a imigração,
que o elemento inicial luso-espanhol foi suplantado e não teve forças
para perpetuar a ingenua rivalidade hereditaria — Mas por que dividiram
o Brasil? perguntei ainda mal consolado. Era só povoar o norte da mesma
maneira que o sul. . .
— Um país não é povoado como se quer, senhor
Ayrton, ou como apraz aos idealistas. Um país povoa-se como pode. No
nosso caso foi o clima que estabeleceu a separação. Dos europeus
só os portugueses se aclimavam na zona quente, onde, graças
ás afinidades com o negro, continuaram o velho processo de mestiçamento,
acabando por formar um povo de mentalidade incompatível com a do sul.
Mas voltemos á America do Norte. O nosso caso é o americano.
Mais tarde revelarei ao senhor Ayrton o que se passou no Brasil e como surgiu
a grande Republica do Paraná. Estavamos na solução branca,
e direi que todos os brancos americanos só queriam uma coisa: exportar,
despejar os cem milhões de negros americanos no vale do Amazonas. Isso,
entretanto, constituia uma empresa formidavel ou, melhor, impraticavel, não
só em virtude de tremendas dificuldades materiais como por ferir de
face a Constituição Americana. O pacto fundamental do grande
povo era profundamente sabio, tão sabio que conseguira elevar a antiga
colonia inglesa á liderança universal e, pois, gozava de um
respeito na verdade supersticioso. Essa carta impedia uma duplicidade de tratamento
para cidadãos iguais entre si perante a sua serena majestade de lei
substantiva.
Já os negros se batiam por uma solução muito mais viavel
e justa.
Queriam a divisão do país em duas partes, o sul para os negros
e o norte para os brancos. Alegavam que era a America tanto de uma raça
como de outra, visto como saira do esforço de ambas; e já que
não podiam gozar juntas da obra feita em comum, o razoavel seria dividir-se
o territorio em dois pedaços. Mas como os brancos preferiam continuar
no status-quo a resolver o caso por esse processo, o problema racial permanecia
de pé, cada vez mais ameaçador.
Dez anos antes começara a aparecer na cena americana um vulto de
excepcional envergadura: Jim Roy, o negro de genio. Tinha a figura atletica
do senegalês dos nossos tempos, apesar da modificação
craniana sofrida por influencia do meio. Tal modificação o aproximava
do tipo dos antigos aborigines encontrados por Colombo. Era esse, aliás,
o tipo predominante no país inteiro, e cada vez mais acentuado depois
que a interrupção da corrente imigratoria permitiu um evoluir
etnico não perturbado por injeções estranhas. Até
na tez levemente acobreada começava a transparecer nos americanos a
misteriosa influencia do ambiente geografico.
— Engraçado! Quer dizer que com o tempo todos iam virando indios…
— Não quer dizem bem isso, e sim que se aproximavam um pouco
do tipo amerindio, no que pude observar. Talvez que dentro de vinte ou trinta
mil anos a sua hipotese esteja realizada.
Infelizmente o aparelho que meu pai construiu não ia além
do ano 3257.
Em Jim Roy a sua semelhança com um mestiço de senegalês
e pelevermelha (coisa impossível, pois de ha muito já não
existia um só indio na America) acentuava-se pela côr da pele,
nada relembrativa da côr classica dos pretos de hoje.
— Influencia do meio? — Não. Não foi isso milagre
da influencia do meio, nem era coisa singular, privativa de Jim Roy. Quasi
toda a população negra da America apresentava pele igual á
sua. A ciencia havia resolvido o caso de côr pela destruição
do pigmento. De modo que se Jim Roy aparecesse diante de nós hoje,
surpreenderia da maneira mais desconcertante, visto como esse negro de raça
puríssima, sem uma só gota de sangue branco nas veias, era,
apesar de ter o cabelo carapinha, horrivelmente esbranquiçado.
— Albino? — Não albino. Esbranquiçado —
um pouco desse tom duvidoso das mulatas de hoje que borram a cara de creme
e pó de arroz…
— Barata descascada, sei.
— Mas nem eliminando com os recursos da ciencia o caracteristico essencial
da raça deixavam os negros de ser negros na America. Antes agravavam
a sua situação social, porque os brancos, orgulhosos da pureza
etnica e do privilegio da côr branca ingenita, não lhes podiam
perdoar aquela camouflage da despigmentação.
Era Jim Roy na realidade um homem de imenso valor. Nascera fadado a altos
destinos, com a marca dos condutores de povos impressa em todas as facetas
da sua individualidade. Como organizador e menear talvez superasse os mais
famosos organizadores surgidos entre os brancos. A historia da humanidade
poucos exemplos apresentava de uma eficiencia igual á sua. Consagrara-se
desde muito jovem á execução dum plano de genio, traçado
nas linhas mestras com a mais perfeita compreensão do material humano
sobre que pretendia agir.
— Está me lembrando o velho Moisés…
— Jim Roy conseguira o milagre da associação integral
da população negra sob a bandeira dum partido político
cujas forças, coletadas por extensa cadeia de agentes distritais, vinham,
como fios telefonicos, ter á estação central da sua chefia
suprema. Sempre sabias e construtoras, suas instruções desciam
com autoridade de dogmas sobre todas as celulas da Associação
Negra (era o nome do partido) e as fazia moverem-se como puros automatos.
Esta abdicação, ou melhor, esta sujeição consciente
e consentida de todas as vontades a uma vontade unica aperfeiçoara-se
de tal modo que no ano da tragedia a situação politica dos Estados
Unidos passou de fato a depender do lider negro.
— Passou a depender dele como? Pois não eram os negros apenas
cem para duzentos milhões de brancos? — Não se impaciente,
senhor Ayrton. Temos que ir por partes.
Disse eu que a situação politica da America passou a depender
de Jim Roy e foi fato. Mas antes de lá chegarmos temos que fazer um
rodeio politico. Gosta de politica, senhor Ayrton? — Nem eleitor sou,
miss Jane.
— E da politica feminina? — Essa desconheço. Suponho,
entretanto, que ha de ser mais felina que a dos homens…
CAPITULO XII – A Simbiose Desmascarada
— Mais felina, sim, e muito mais pitoresca, prosseguiu miss Jane. Não
imagina o senhor Ayrton como o cerebro da mulher é rico de estratagemas,
e com que ardor conduzem elas uma campanha politica. Vinha daí que
o proximo pleito se desenhava renhidissimo.
Ia a republica dos Estados Unidos eleger dentro de poucos dias o seu 88.°
presidente, proporcionando assim a um mundo perturbado por sucessivas mudanças
de forma politica um exemplo de fixidez na forma inicial só comparavel
ao passado monarquico da Inglaterra. Os velhos partidos Democratico e Republicano
haviam-se fundido num forte bloco sob a denominação de Partido
Masculino. Mesmo assim não se via seguro da vitoria, porque o partido
contrario, o Feminino, dispunha de maior numero de vozes. Estava pois em jogo
o prestigio político do homem, batido pelo da mulher em todos os campos
de atividade e a defender agora o seu ultimo reduto — a presidencia
da republica. Até então nenhuma mulher conseguira alcançar
ao posto supremo, embora no pleito anterior miss Evelyn Astor houvesse perdido
por insignificante minoria.
— Quem era essa bicha? Alguma chefa do partido feminino? — Sim,
uma chefa que insistia na sua candidatura, e agora com mais probabilidade
de vitoria, visto como era possível que o grande líder negro
se deixasse levar pela sedução dos seus argumentos e desse apoio
ao Partido Feminino.
Do outro lado o senhor Kerlog, presidente em exercício e candidato
á reeleição, só via possibilidade de exito se
obtivesse o concurso de Jim, como sucedera no pleito anterior.
As melhores estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões
de vozes, ao Partido Feminino 51 e meio e á Associação
Negra, contados os votantes de ambos os sexos, 54 milhões. A proxima
eleição dependeria pois exclusivamente da atitude do grande
negro.
— Miss Evelyn Astor! exclamei. Lindo nome. Já me estou simpatizando
por essa criatura, que talvez esteja no meu proprio calcanhar. Havia de ser
linda, não? — De fato, nessa criatura habilissima, rica de todos
os dotes da inteligencia, da cultura e da maquiavelica sagacidade feminina,
se juntava um elemento perturbador, novo no jogo político presidencial:
a sua rara beleza fisica.
Embora, graças á vitoria da eugenia, fosse regra a beleza,
em vez de exceção como hoje, mesmo assim a formosura de miss
Evelyn Astor se destacava de modo obsedante. Ninguem a defrontava sem sentir-se
envolvido por uma aura de harmonia transfeita em força de dominação.
Em todas as epocas as mulheres dotadas de beleza sempre dominaram, atrás
dos tronos como favoritas, na sociedade como cortesãs, no lar como
boas deusas humanas, mas sempre por intermedio do homem — o despota,
o amante, o marido, detentores em sua qualidade de machos de todas as prerrogativas
sociais. No futuro a dominação da beleza feminina não
se fará mais por intermedio do macho. Éra da Harmonia, a beleza
se tornará uma força pura, como pura expressão que é
da harmonia.
Nesse ano de 2228 já a mulher vencera o seu estagio de inferioridade
política e cultural, consequencia menos duma pretensa inferioridade
do cerebro, como dizia miss Elvin…
— Miss Elvin? — Espere. Menos de uma pretensa inferioridade
de cerebro do que de uma organização cerebral diversa da do
homem e, portanto, inapta a produzir o mesmo rendimento quando submetida ao
mesmo regime de educação. Mis Elvin… Como está assanhado
o senhor Ayrton! Não se contentou com a mulher futura que já
lhe dei, miss Astor, e quer outra? Que ilusão a de miss Jane! Eu queria
apenas, de todas as mulheres passadas, presentes e futuras, uma só
— a que me falava naquele momento, tão alheia ás emoções
borbulhantes em meu coração…
— Miss Elvin era a autoria de Simbiose Desmascarada, um livro que
graças á alegria do estilo e ao fulgor dos argumentos vinha
causando verdadeira reviravolta no publico. A ideia central de miss Elvin
cifrava-se em que a mulher não constituía a femea natural do
homem, como a leoa o é do leão, a galinha do galo, a delfina
do delfim. A femea natural do homem ele a repudiara em epoca recuadissima
— e tudo levava a crer na extinção desse pobre animal.
Repudiara-a e tomara para si, como os antigos romanos fizeram ás
sabinas, a femea de um outro mamífero de vagas semelhanças anatomicas
com o Homo. Supunha miss Elvin que seriam anfíbios esses "sabinos"
pre-historicos, assim romanamente despojados das suas femeas. E recreando
a imaginação com um pouco de fantasia, chegou a descrever num
segundo livro de igual sucesso o "mas sacre dos sabinos" quando,
do seio das ondas acudiram ás praias em defesa das raptadas metades.
Vinha daí o carater ondeante da mulher. "She was false as water",
já o dissera Shakespeare.
— Que topete! exclamei. Pelo que vejo as mulheres do futuro não
beneficiaram grandemente os miolos com o remedio da eugenia…
— O senhor Ayrton está um pouco passadista e corre muito depressa
no Ford das suas conclusões, respondeu miss Jane com doce ironia. Nada
ha mais fecundo do que a ventilação das ideias aceitas, do que
o abalo violento em certas bases mentais. Põe-nas á prova e
revelam-lhes alguma racha ou lacuna, se as ha. Com o seu exagero, miss Gloria
Elvin não ressuscitou o sabino — mas quantas consequencias indiretas
não brotaram da sua revolta! — Retiro o topete, miss Jane; continue.
— Pois o Homo suplantou o mamífero adverso e de posse da femea
alheia veiu através das idades tentando um equilíbrio sexual
impossível. A falsa femea, o ser estranho ligado a ele por simbiose,
sempre resistiu ao seu domínio, apesar de um processo de domesticação
multi-milenar. Todas as formas de vida em comum, todos os modos de associação
sexual existentes na natureza foram tentados sem sucesso. O harem muçulmano,
a poligamia, a monogamia, a bigamia, a poliandria, o hetairismo, nada produzia
bons resultados; e a mulher, por voz unanime dos poetas e pensadores, se viu
classificada como um ser incompreensível.
Miss Elvin desvendou o misterio. Não era um ser incompreensivel.
Era apenas diferente.
Mais fraca em força física e, portanto, escravizavel, a sabina
defendeu-se da tirania do raptor com o manejo de uma arma perigosissima, a
dissimulação — reflexo ainda do carater ondeante do seu
elemento primitivo, o mar. Quando no mundo surgiu o feminismo, toda a gente
supôs que a solução do problema da mulher estava em nivela-la
ao homem pela cultura e igualdade de direitos.
Erro cascudo, demonstrou miss Elvin. A cultura como a criara o homem não
se adaptava ao cerebro da mulher, de funcionamento especialissimo e sempre
influenciado por certas glandulas misteriosas.
Falhou por isso o feminismo. De toda a sua agitação só
veio a resultar uma coisa; a feminista, a odiosa mulher-homem, que pensava
com ideais de homem, usava colarinhos de homem, conseguindo com isso apenas…
— …não ser homem nem mulher, conclui eu, lembrando-me duma
sufragista do meu conhecimento.
— Perfeitamente. Os estudos de miss Elvin modificaram por completo
os termos de equação sexual. Basta de simbiose, dizia ela; basta
de vida em comum em troca de serviços recíprocos. A mulher passa
doravante a viver vida autonoma; e se ainda permanece ao lado do "gorila"
no antigo status-quo sexual, será a titulo provisorio apenas e em vista
unicamente dos interesses proliferantes das especies respectivas. Porque miss
Elvin não perdia a esperança de promover o descobrimento e a
ressurreição do sabino pre-historico…
— Irra! exclamei com uma pontinha de despeito. Está aí:
a coisa unica que o homem jamais previu: o surto de uma especie rival! —
De fato. Os arrojos de miss Elvin punham calafrios na espinha do Homo. Ela
tirava todas as consequencias logicas da sua teoria, chegando ao extremo de
pregar guerra de morte contra o "insolente raptor".
Miss Astor era elvinista e, pois, a sua candidatura á presidencia
inquietava de modo duplo o Partido Masculino. Sua vitoria coroaria o movimento
feminino com a unica sanção que lhe faltava, a do poder; seria,
se não o crepusculo do dominio dos homens (já de bases corroidas
pelas vitorias parciais da mulher), pelo menos uma humilhante diminuição.
O problema americano se complicava assim da mais imprevista maneira. Alem
do aspecto etnico — o inevitavel choque da raça branca com a
negra, — surgira o aspecto, como direi? especial, isto é, o conflito
das duas especies de mamíferos — Homo e Sabinas — cuja
simbiose fôra denunciada.
O lider masculino, o Presidente Kerlog, tinha esperanças de um acordo
com Jim Roy. Jim era homem e havia de inclinar-se para a facção
do seu sexo. Com miss Evelyn Astor é que não enxergava possibilidades
de entendimento. Tivera com a formosa antagonista uma conferencia, mas a sua
impressão, resumida em poucas palavras na presença do ministerio,
fôra inquietante.
— "Não nos entendemos, declarou ele. As palavras que nós
homens usamos têm na boca de miss Astor um sentido diverso. Em certo
ponto tive a sensação de que estavamos eu a falar inglês
e ela a responder-me em hebraico, lingua que positivamente desconheço.
Estou quasi convencido de que nasceu nas mulheres alguma glandula nova…"
— "Ou perderam alguma glandula velha", rosnou da sua poltrona
Berald Shaw, o pachorrento ministro da Equidade.
CAPITULO XIII – Política de 2228
Nessa mesma reunião ministerial, prosseguiu miss Jane, o Presidente
Kerlog teve palavras de fazer refletir os ouvintes.
— "O nosso predomínio vejo-o ameaçado, se não
de ruína, pelo menos de fundas transformações. Avoluma-se
a onda negra — e a ela resistiriamos se a cisão elvinista não
viesse enfraquecer o nosso peso político. Mas o eleitorado branco está
cindido, e agora mais que nunca vai funcionar a massa negra como o fiel da
balança dos destinos da America. Venceremos, pois o concurso de Roy,
embora negaceado para nos extorquir concessões, virá infalivelmente
á ultima hora.
Imagino com que horror não verá ele os progressos do sabinismo!
Mas havemos de confessar que é precaria a situação do
nosso partido, com a vida assim dependente da boa vontade de um manhoso lider
negro…" — Que concessões queria Jim Roy? perguntei.
— Essa mesma pergunta fez ao senhor Kerlog o ministro da Seleção
Artificial. "Quer, respondeu o presidente, uma entente no terreno seletivo.
Insiste na atenuação da lei Owen." Os rigores desta lei
tinham-se agravado no ano anterior, com o fim muito claro de fazer cair o
índice do crescimento negro. Isso contrariava a política racial
de Jim Roy, toda resumida em favorecer a expansão do seu povo até
o ponto que lhe permitisse forçar o branco á divisão
do país.
Por coisa nenhuma queriam os brancos transigir no terreno restritivo da
Lei Owen — seria um suicídio. Mas a situação metera
a política naquele buraco: ou ceder ás exigencias de Jim Roy
ou assistir á vitoria das mamíferas rebeldes.
Quando o presidente terminou a sua exposição calaram-se os
ministros por algum tempo, de queixo preso. Qualquer das hipoteses não
agradava ao macho branco. Mas como a sabedoria pragmatica consiste cm acudir
primeiro ao perigo mais proximo, foi acordado ceder ás exigencias do
lider negro.
Os ministros retiraram-se dessa reunião de tal modo apreensivos que
não viram, no quadro onde se estampavam de minuto em minuto as comunicações
dos agentes do governo, um radio que naquele momento acabava de inscrever-se
em letras luminosas: Miss Astor está em conferencia com Jim Roy.
O Presidente Kerlog fixou os olhos no quadro informativo e permaneceu uns
instantes a morder uma espatula de vidro flexível como aço.
— "Não a entendi", murmurou, "não nos
entendemos em nossa conferencia. Mas com Jim vai ela falar a velha linguagem
inteligível…" Mordiscou ainda por algum tempo a espatula. Depois
ergueu-se, risonho.
— "Mas não vencerá o orgulho sexual de Roy! Jim
Roy é homem e vê como eu o perigo da vitoria sabina…"
— Que curioso devia ter sido esse encontro de miss Astor com Jim Roy,
dois seres tão distantes! disse eu.
— Realmente, concordou miss Jane. O ve-los um defronte do outro no
gabinete de trabalho da grande elvinista lembrava acareação
de garça do Amazonas com raposa branquicenta da Siberia. Eram dois
seres sem a menor aproximação de aparencias externas, formando
um quadro proprio como nenhum outro para ilustrar a teoria de miss Elvin.
Parecia até inconcebível que por tanto tempo fossem as duas
criaturas classificadas na mesma especie pela ciencia macha. A radiosa beleza
da Sabina mutans (assim a zoologia de miss Elvin classificava a ex-femea do
Homo sapiens) iradiava um verdadeiro halo de fascínio. Criatura nenhuma
envolvida por essa aura conseguia libertarse dos seus amavios magnetizadores.
Miss Astor, se falava, não era por necessidade de falar, porque convencia
pela presença. Mas achava-se naquele momento em face do talvez unico
representante da especie antagonista imunizado contra a ação
catalizadora da beleza. Jim Roy valia pelo símbolo da força.
A raça espezinhada confluira-se toda nele, transformando-o num feixe
de energias indomaveis. Em toda a sua vida publica jamais esse negro dera
um só passo ou pronunciara uma só palavra que se não
norteasse pela grande ideia que trazia embutida no cerebro. Não era
um indivíduo, Jim. Era a propria raça negra por um milagre de
compressão posta inteira dentro de um homem.
Miss Astor o sentiu imediatamente. Percebeu que tinha diante de si uma força
insubornavel e inseduzivel. E, compreendendo o inutil dos volteios de onda
em torno de rocha tão dura, abordou de frente o assunto.
— "O choque das raças vai dar-se, disse ela. Precipita-se.
Será um conflito tremendo, mas só no caso de estar no poder
o homem branco, criador do odio ao negro. Tudo mudará, se em vez desse
implacavel inimigo comum estivermos no poder nós mulheres". Jim
Roy franziu os sobrolhos.
— "Inimigo comum, sim, prosseguiu miss Astor. Ambas somos suas
escravas; mas se a escravização dos teus, Jim, data de seculos,
a nossa data de milenios. Caso o poder supremo venha ter ás mãos
da mulher, o choque se atenuará, porque saberemos ser conciliantes,
e haverá enorme economia de sofrimento futuro, se operar-se sem demora
a aliança política do elvinismo com o elemento negro. Acresce
uma circunstancia: os negros são conhecedores dos processos do macho
branco e sabem muito bem o que dele podem esperar. Mas desconhecem os processos
femininos; dada a contradição de ideias e sentimentos que hoje
afasta as sabinas do gorila evoluído, só têm vantagens
a esperar da vitoria elvinista".
E foi por aí além miss Astor. Mostrou-se palavrosa e abundante,
visto que sentia falhar ante a firmeza do grande líder negro o prestigio
da sua "ação de presença".
Jim Roy ouviu-a com serena impassibilidade, sem que um sorriso ou ruga de
apreensão lhe quebrasse a calma das feições, e ao responder
limitou-se a promessas ondeantes, fechado em formulas vagas e de duplo sentido.
Finda a conferencia miss Astor permaneceu imovel na sua poltrona, a refletir.
— "Como este diabo assimilou bem a lingua da velha diplomacia,
a lingua que parecendo dizer alguma coisa não dizia nada!" E quando
naquele mesmo gabinete se reuniram suas amigas e colaboradoras, ansiosas por
conhecerem os resultados da enterite com Jim Roy, foi com o olhar cismarento
que miss Astor murmurou: — "Qualquer coisa me diz que o lider negro
incuba um plano secreto…" — "Contra quem?" —
"Ignoro-o. Nada ha de deduzir das suas palavras, perfeitas palavras de
diplomata. Mas o meu senso divinatorio não mente, Jim vai trair…"
CAPITULO XIV – Eficiência e Eugenia
— O aspecto da vida americana, continuou miss Jane, mudara muito por
efeito das invenções e de um grande principio peculiar ao yankee.
Quem olhasse de um ponto elevado o panorama historico dos povos, veria,
na França, uma flamula com tres palavras; na Inglaterra, um principio
diretor, Tradição; na Alemanha, uma formula, Organização;
na Asia, um sentimento, Fatalismo. Mas ao voltar os olhos para a America perceberia
fluidificado no ambiente um principio novo — Eficiencia.
Só a America encontrara o Sesamo que abre todas as portas. Só
a America, portanto, era Ação num mundo a insistir em caminhos
errados e sempre a oscilar entre dois polos — Agitação
Esteril e Marasmo Fatalista.
O principio da Eficiencia resolvera todos os problemas materiais dos americanos,
como o eugenismo resolvera todos os seus problemas morais. Na operosidade
e uniformidade do tipo, aquele povo lembrava a colmeia das abelhas. Quasi
não havia distinguir um indivíduo de outro, pois tomar um homem
ao acaso era ter nas mãos uma poderosa unidade de eficiencia dentro
de um admiravel tipo de ariano peleavermelhado.
As mulheres não mais evocavam fisicamente as suas avós, magras
umas, outras gordas, esta toda nadegas, aquela uma tabua ou de normes seios
e dentes de cavalo — verdadeira coleção de monstruosidades
anatomicas. Nem recordavam socialmente as pobres cativas de dantes, forçadas
a girar no triangulo de ferro — casamento, celibato á força
ou promiscuidade.
Finas sem magreza, ageis sem macaquice, treinadas de musculos por meio de
sabios esportes, conseguiram alcançar a beleza nervosa das eguas puro-sangue
— o que trouxe a decadencia do hipismo. Já não necessitavam
os homens de dedicar-se aos cavalos para satisfação da ansia
secreta da beleza perfeita…
— Que pena ter-se perdido o porviroscopio do professor Benson! exclamei.
O que eu não daria para uma espiadela nesse maravilhoso futuro!…
Lindas, então, assim? perguntei levemente assanhado.
— E habeis, respondeu miss Jane. Competiam com o homem em todas as
profissões num absoluto pé de igualdade, realizando o velho
ideal da independencia. Os filhos lhes pertenciam e não ao progenitor,
sistema matriarcal muito mais dentro da natureza, visto como o filho é
mais da mãe do que do pai na proporção de nove meses
para meio minuto.
Tossi uma tossezinha de encomenda; miss Jane não o percebeu e continuou:
— O caracteristico mais frisante dessa epoca, toda via, estava na organização
do trabalho. Todos produziam. Muito cedo chegou o americano á conclusão
de que os males do mundo vinham de tres pesos mortos que sobrecarregavam a
sociedade — o vadio, o doente e o pobre. Em vez de combater esses pesos
mortos por meio do castigo, do remedio e da esmola, como se faz hoje, adotou
solução muito mais inteligente: suprimi-los. A eugenia deu cabo
do primeiro, a higiene do segundo e a eficiencia do ultimo. Aliviada da carga
inutil que tanto a embaraçava e afeava, pôde a America aproximar-se
de um tipo de associação já existente na natureza, a
colmeia — mas a colmeia da abelha que raciocina.
— Que maravilha! exclamei pesaroso de ter vindo ao mundo cedo demais.
E o governo, miss Jane? Deixou de ser essa calamidade que é hoje? —
Os princípios da eficiencia tambem haviam penetrado no organismo governamental.
Deixou o governo de sugerir a lembrança dos hediondos "sistemas
de parasitismo" de outrora e de hoje, como a realeza de França
ou o devorismo orçamentario de certas republicas nossas conhecidas,
onde fazer parte do estado é conquistar o direito á inação
da piolheira vitalicia — dormir, apodrecer na sonolencia da burocracia
que não espera, não deseja, não quer, não age
— suga apenas. Tudo isso desapareceu, todas essas baixas formas de parasitismo.
Tornou-se o estado americano uma organização em coisa nenhuma
diversa das organizações particulares. Apenas maior e com funções
privativamente suas.
— Sempre sob o sistema representativo? — Sim. O sistema representativo
persistiu. Mas só eram eleitos homens cujo viver social os apontava
como seres de escol pela força e equilibrio do cerebro. Não
constituía uma situação sujeita a disputas, o ser deputado
ou senador. Era uma contingencia. Os homens de elite viam-se colocados nesses
postos naturalmente, como o melhor musico das orquestras sobe naturalmente
á cadeira da regencia. O equilibrio mental tornou-se perfeito —
mas apenas da parte dos homens. As mulheres, não obstante o levantamento
físico e moral, permaneciam variaveis como no tempo de Francisco I.
— Souvent femme varie…
— Sim. Conquistaram a mais perfeita igualdade de direitos, mas ondeavam,
arrastadas pelo vento das ideias. Trocaram o souvent do bom Francisco I pelo
toujours de miss Elvin. Como a simplicidade dos trajes fizera desaparecer
a hoje obsedante preocupação da moda, talvez em virtude do vinco
mental elas mudaram a moda para o campo das ideias. O elvinismo, por exemplo,
avassalou as mulheres americanas com a tirania do nosso cabelo á la
garçonne. Excelentes mães de família e otimas esposas
batiam-se pelo "sabino" com inconsciencia de pasmar. Mas chegadas
em casa despiam o cerebro da extravagancia e beijavam na testa o Homo que
na rua vinham de condenar como "infame raptor".
O orgão de miss Elvin — Remember sabino! mantinha a exaltação
dos espíritos num constante estado de fervura.
— Ainda havia jornais nesse tempo? — Sim, mas jornais nada relembrativos
dos de hoje. Eram radiados e impressos em caracteres luminosos num quadro
mural existente em todas as casas.
— E os cegos? — O cego ficou para trás, Cegueira, mudez,
surdez, estupidez, tudo isso não passava de reminiscencias dum tempo
de que os homens sorriam com piedade.
O radio que temos hoje é um simples ponto de partida. Vale como valem
para a eletricidade moderna as primeiras experiencias de Volta. Descobriram-se
novas ondas, e o transporte da palavra, do som e da imagem, do perfume e das
mais finas sensações tacteis, passou a ser feito por intermedio
delas. A consequencia logica foi uma grande transformação da
vida. Pelo sistema atual vai o homem para o serviço, para o teatro,
para o concerto — um ir e vir que constitue um enorme desperdício
de energia e é o criador dos milhões de veículos atravancadores
do espaço, bondes, autos, bicicletas, trens, aviões e outros.
Com a fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins, e sua consequente escravização
aos interesses do homem, o ir e vir forçado se reduziu a escala minima.
O serviço, o teatro, o concerto é que passaram a vir ao encontro
do homem. Foi espantosa a transformação das condições
do mundo quando a maior parte das tarefas industriais e comerciais começou
a ser feita de longe pelo radio-transporte. Para dar uma ideia do que isso
representava de economia de esforço e tempo, basta vermos o que era
o jornal de miss Elvin. Pelo sistema atual, o colaborador ou escreve em casa
o seu topico ou vai escrevelo na redação; depois de escrito,
passa-o ao compositor; este o compõe passa-o ao formista, este o enforma
e passa-o ao tirador de provas; esse tira as provas e manda-o ao revisor;
este o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e. . . e a coisa
não acaba mais! Ê uma cadeia de incontaveis elos, isto dentro
das oficinas, pois que o jornal na rua dá inicio á nova cadeia
que desfecha no leitor — correio, agentes, entregadores, vendedores,
o diabo.
— Já estive numa oficina de jornal e sei o que é isso.
Puro inferno…
— Pois toda esta complicação desapareceu. Cada colaborador
do Remember radiava de sua casa, numa certa hora, o seu artigo, e imediatamente
suas ideias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes.
— Que maravilha!…
— Sim, não houve industria que como a do jornal não
sofresse a influencia simplificadora do radio-transporte — e isso tirou
ao viver quotidiano a sua velha feição de atropelo e tumulto.
As ruas tornaram-se amaveis, limpas e muito mansas de trafego.
Por elas deslizavam ainda veiculos, mas raros, corno outrora nas velhas
cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou gosto no andar
a pé e perdeu os seus habitos antigos de pressa. Verificou que a pressa
é indice apenas de uma organização defeituosa e antinatural.
A natureza não criou a pressa. Tudo nela è sossegado. Parece
coisa muito evidente isto; no entanto foi a maior descoberta que fez o povo
mais apressado do mundo…
— Realmente! exclamei, chocado pelo imprevisto daquele aspecto do
futuro. Eu que por assim dizer moro na rua, só com este quadro da rua
futura já me estou assombrando com o horror da rua moderna.
E, no entanto, se miss Jane nada me revelasse continuaria a ter como muito
natural o tumulto de hoje.
— O habito não nos deixa ver os defeitos, e daí a vantagem
de convulsões como a de miss Elvin. O grande obstaculo ao progresso
sempre foi o habito, a ideia feita, a preguiça de constante exame do
unico problema material da vida — o do transporte.
— Unico? — Sim, unico. Tudo é transporte na vida, senhor
Ayrton, e o tumulto de hoje vem das imperfeições dos nossos
sistemas de transporte. Tudo é transporte! A minha voz transporta ideias
do meu cerebro para o seu. Esse livro que o senhor tem nas mãos é
um sistema de transporte de impressões mentais. Que faz a firma Sá,
Pato & Cia. senão transportar mercadorias de um lado para outro,
com o fim ultimo de transportar para as burras dos socios o dinheiro dos clientes?
E que é o dinheiro senão um maravilhoso e engenhosissimo meio
de transporte? — For isso são as moedas redondas…
— Rodinhas… O homem deu o primeiro grande passo em materia de transporte
com a invenção da roda. Mas ficou nisso.
Repare que a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver
a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a seculos, quando for
possível ao homem uma ampla visão do seu panorama histórico,
todo este período que vem do albor da historia até nós
e ainda vai prolongarse por muitas gerações receberá
o nome de Era da Roda. Mas do ano 2200 em diante começará o
seu declínio e em 3000 e tantos estará passada. Num corte anatomico
dessa epoca vi certo museu nos arredores de Pittsburgh que muito me impressionou
— o Museu da Roda. Dormiam nas vitrinas, como dormem hoje os machados
de silex dos nossos avós, as modalidades infinitas de rodas sobre as
quais ainda gira hoje a civilização, desde o rodízio
brutesco dos carros de boi até a minima engrenagem dos relogios de
pulso. O radio matará a roda, concluiu miss Jane.
Pus-me a refletir naquilo e a comparar a estreiteza do meu cerebro com a
amplidão do cerebro da filha do professor Benson.
Quantas rodas tinha ele mais do que o meu! E como rodavam bem lubrificadas
as rodinhas do cerebro de miss Jane, todas postas sobre mancais de bilhas…
— De tudo quanto miss Jane acaba de expor concluo que a vida nos Estados
Unidos passou a ser um céu aberto, comentei eu.
— Não vou até lá, contraveio ela. Havia uma pedra
no sapato americano: o problema etnico. A permanencia no mesmo territorio
de duas raças dispares e infusiveis perturbava a felicidade nacional.
Os atritos se faziam constantes e, embora não desfechassem como outrora
nas violencias da Ku-Klux-Klan, constituíam um permanente motivo de
inquietação.
A ideia do expatriamento para o vale do Amazonas tinha um ponto fraco: só
podia ser voluntaria e o negro não se mostrava inclinado a trocar a
cidadania americana por outra qualquer. O processo cientifico de embranquece-los
aproximava-os dos brancos na côr, embora não lhes alterasse o
sangue nem o encarapinhamento dos cabelos. O desencarapinhamento constituía
o ideal da raça negra, mas até ali a ciencia lutara em vão
contra a fatalidade capilar. Se isso se désse, poderia o caso negro
entrar por um caminho imprevisto, a perfeita camouflage do negro em branco,
Tal saida, entretanto, era apenas um sonho dos imaginativos impenitentes.
E como a repartição do país em duas zonas não
fosse forma aceita pelos brancos, iam os Estados Unidos entrar no seu 88.°
período presidencial com o mesmo problema que trezentos e trinta e
nove anos antes preocupara o grande George Washington.
Enquanto miss Jane falava, naquele tom impessoal e frio de sabio a fazer
conferencia publica, toda ela cerebro e cultas expressões na boca,
eu, humano que sou, envolvia-a nos meus ternos olhares de carneiro amoroso,
e essa minha excessiva atenção á parte corporea da encantadora
vidente me fez perder muita coisa interessante das suas revelações.
Distraia-me, preso áquele lindo presente de olhos azues sempre a pairar
pelas eras futuras. Quando, por exemplo, ela entrou a descrever o tipo dos
negros descascados do ano 2228, confesso que perdi metade das suas observações.
Achava-me no momento a namorar o mimoso lobulo da sua orelha esquerda, onde
brincava um raio de sol. Esse fio de luz acendia-lhe em ouro a penugem finíssima
e o tornava do roseo translucido de certos veios da agata. Perdi-me no gracioso
pedacinho de carne, como a sua dona andava perdida em plena despigmentação
do seculo XXIII. A poesia falou em mim e uma imagem lirica entreabriu a pieguice
das suas petalas. Lembrei-me do baiser de Rostand, point rose sur l’i du verbe
aimer, e perpetrei coisa melhor: depor naquele ninho de colibri o ovinho de
um beijo…
Depois filosofei e pareceu-me apreender uma grande verdade: a beleza não
passa de um total de parcelas que a mão da Harmonia soma.
Que terriveis torneiras abre o amor! Mas ao chegar naquele ponto das suas
revelações, miss Jane ergueu os olhos para o relogio. Em seguida
apertou o botão da campainha.
Veio um criado.
— Chá, disse ela.
Eu já sabia da significação do chá, engenhoso
ponto e virgula com que miss Jane punha fim ás nossas palestras domingueiras.
Regressei á cidade mais apaixonado do que nunca pela encantadora
filha do velho sabio — sábia tambem ela, mas, ai! bem pouco feminina…
O Amor que ardia em meu peito não a contagiava.
Talvez nem sequer o percebesse. Ou percebera desde o inicio e dissimulava?
Mulher, mulher… Sabina vingativa — false as water…
Fiquei na duvida. Seria miss Jane um puro espirito, uma vibração
de eter jamais interferida, ou tinha nervos como as demais, coração,
sensibilidade como todas as mulheres? No dia seguinte, no escritorio, notou
o patrão o ar distante com que eu colecionava umas faturas. Meu pensamento
estava longe da firma, vogando em pleno período da simbiose desmascarada.
Não sei por que motivo o senhor Sá mostrava-se nesse dia alegre
e familiar.
Vira o passarinho verde, com certeza. Tão familiar e alegre que em
certo momento me atrevi a fazer–lhe uma pergunta: — Acha o senhor Sá
que é a mulher a femea natural do homem? O honrado negociante não
respondeu, mas fulminou-me com tais olhos que achei prudente esgueirar-me
para a sala vizinha com o pacote de faturas na mão. Vim a saber depois
que em conferencia com o senhor Pato ele chegara á conclusão
de que a queda no precipício me tinha evidentemente "perturbado
as faculdades mentais"…
CAPITULO XV – Vesperas do Pleito
No proximo domingo voei mais cedo ao castelo, ansioso pela continuação
das revelações de miss Jane.
Encontrei-a triste.
— Aconteceu-lhe alguma coisa? inquiri inquieto.
— Nada! respondeu-me num suspiro. Saudades de meu pai apenas. Estive
ontem no cemiterio e minha dor reavivou-se. Como ainda sinto pungente o desfalque
sofrido pela sinfonia do universo com a perda de sua nota mais bela!…
A tristeza de minha amiga contagiou-me de tal modo que quando dei por mim
uma lagrima me descia pelo rosto.
Miss Jane, comovida, apertou-me a mão. Irmanavamo-nos dia a dia,
á medida que as nossas afinidades se iam revelando. Afinidades mentais
e de sentimento. Apesar da aparente divergencia das nossas ideias, eu sentia
que no fundo pensavamos da mesma forma. Quem ali nos visse a conversar da
vida futura, juraria sermos amigos velhos ou parentes muito proximos —
e outra não era a minha impressão.
Parecia-me conhece-la de seculos, e nunca ter convivido com outra pessoa.
A menor sombra que passasse pela sua alma logo se refletia na minha. Suas
alegrias eram as minhas e minhas as suas tristezas.
Como me punha feliz aquela doce convivencia…
Mas a nuvem passou afinal e pude ve-la de novo entregue aos acontecimentos
do ano 2228.
— Na vespera da 88.a eleição presidencial, prosseguiu
miss Jane, o país apresentava o grave aspecto desses instantes de imobilidade
precursores de tormenta. Como que a armazenar forças para uma explosão
tragica, todos os homens permaneciam silenciosos, num estado de repouso muito
semelhante a cansaço por antecipação.
Só nos arraiais femininos era intenso o reboliço. Estavam
as sabinas seguras da vitoria e lá com as diretoras do movimento já
repartiam os despojos da batalha.
Devo dizer que a presidencia de uma elvinista não inquietava grandemente
os homens de espirito filosofico. Sabiam muito bem como o poder modifica as
ideias dos que lhes galgam as cumeadas. E havia até curiosidade pela
vitoria sabina por parte dos homens de temperamento artístico —
dos que só encaram o mundo através de prismas esteticos.
Já a massa masculina enxergava na vitoria de miss Astor o fim do
tradicional predomínio do homem na terra.
— Eram ainda as eleições ao nosso sistema de hoje? —
As eleições do seculo 23 em nada lembravam as de hoje, consistentes
na reunião dos votantes em pontos prefixados e no registro dos votos.
Tudo mudara. Os eleitores não saíam de casa — radiavam
simplesmente os seus votos com destino á estação central
receptora de Washington. Um aparelho engenhosissimo os recebia e apurava automatica
e instantaneamente, imprimindo os totais definitivos na fachada do Capitolio.
De ha muito se havia eliminado as hipoteses de fraude, não só
porque a seleção elevara fortemente o nivel moral do povo, como
ainda porque a mecanização dos tramites entregava todo o processo
eleitoral ás ondas hertzianas e á eletricidade, elementos estranhos
á política e da mais perfeita incorruptibilidade.
Mas só os habitantes de Washington gozavam do privilegio de ler no
Capitolio os numeros decisivos. O resto da população americana
tambem os lia e na mesma hora, mas em suas proprias casas.
Certo que estava da vitoria, o partido feminino delirava no antegozo de
um prazer inedito: bater o macho em seu reduto supremo — a Presidencia
da Republica! Na antevespera das eleições miss Elvin organizou
em Washington uma passeata memoravel.
— Ainda havia disso? perguntei.
— Já não havia disso, respondeu miss Jane. Miss Elvin
apenas ressuscitou a velha praxe a titulo de curiosidade estetica. Como vemos
hoje exposições de arte retrospectiva, teve ela a ideia de organizar
coisa semelhante — uma passeata á nossa moda, com discursos em
rançoso estilo retorico, nos quais se expusessem á luz do dia
caducas imagens ha muito aposentadas. Reuniu um lote de dez mil correligionarias
para um desfile diante do Capitolio. Cada qual traria uma bandeirola ou cartaz
onde se caricaturassem de maneira cruel os homens ou se inscrevessem legendas
insultantes — Abaixo o macaco glabro! Morram os raptores! Viva o sabino!
Basta de gorilas evoluídos! Essa manifestação realizou-se
á noite — e por falar em noite…
como imagina que eram as noites desse tempo, senhor Ayrton? — Como
as de hoje, ora essa! Talvez com menos grilos, respondi.
— Pois saiba que nenhum espetaculo futuro me surpreendeu tanto como
as noites das cidades americanas. A noite urbana que temos hoje não
passa da noite natural picada de focos luminosos — um jogo, portanto,
de sombra e luz. O que lá vi não recordava essa alternativa.
Sofrera completa mudança a iluminação artificial —
tamanha como a do transporte depois da vinda do radio. Inventara-se a luz
fria. Por dentro e fora eram pintadas as casas de uma tinta de luar, que dava
ás cidades o aspecto de emersas de um banho de fosforo. Paredes, muros,
telhados, todas as superfícies dimanavam um palor uniforme de sonho.
Mas o escuro é tão necessario ao homem como o luminoso, de modo
que todas as casas possuíam comodos não revestidos de luar ou
apenas aquarelados de leve. Que deliciosas penumbras vi no Oblivion Park,
em Eropolis!…
— Quê? Havia Eropolis, a cidade do Amor? — Sim. Uma cidade
das Mil e Uma Noites erguida no mais belo recanto dos Adirondacks e exclusivamente
dedicada ao Amor. Para lá iam os enamorados, os casados em lua de mel,
nela só permanecendo durante o período da ebriedade amorosa.
O senhor Ayrton com certeza já amou e sabe como o amor desabrocha as
criaturas em flores e perfumes. Pois imagine um eden criado pela fantasia
de todos os grandes amorosos — Dante, Petrarca, Romeu, Leandro, de colaboração
com todas as grandes amorosas, Julieta, Hero… Imagine a rainha Mab a provocar
sonhos nesses inebriados, e Ariel a realiza-los com o carinho que punha nas
comissões de Prospero. O bafo de Caliban nem de leve embaciava os marmores
de Eropolis — a maravilha suprema das artes humanas ao serviço
do Amor.
Nada lembrava ali o organismo que é uma cidade comum — mixto
de orgãos nobres e vísceras de funções humilhantes.
Em vez de ruas geometricas, meandros irregulares, ganglionados magicamente
de pelouses e moitas nupciais. Sumiam-se nelas os amorosos passeantes e em
tais ninhos de doçura trocavam o beijo que elabora o porvir. Tudo fôra
planejado em Eropolis com o intento de dar ás criaturas as mais finas
sensações esteticas, de modo que os seres ali concebidos já
se plasmassem em beleza e harmonia desde o contacto inicial dos gametos.
Os filhos de Eropolis passaram a constituir uma elite na America —
a nova aristocracia dos filhos do Amor e da Beleza.
Suspirei. Vi-me em Eropolis de mãos dadas a miss Jane, olhos nos
seus olhos e em tal enlevo amoroso que todas as maravilhas da nova ilha de
Calipso eram como se não existissem para mim…
— Mas deixemos em paz a cidade do Amor, disse minha amiga fechando
o delicioso parentesis. Trepada a uma estatua fronteira ao Capitolio espera-nos
a irrequieta miss Elvin com o seu discurso flamante, perfeitamente vieux jeu.
— "Eis", dizia ela apontando para o Capitolio com ademanes
dos nossos oradores mitingueiros, "eis o simbolo da Bastilha masculina
que será amanhã tomada de assalto! É a casa-mestra da
força, a odiosa cabina das manivelas que dirigem tudo. Ali têm
habitado os peores monstros da humanidade. Moraram ali Gengis-Kan, Cesar,
Luis 14, Frederico da Prussia, Pedro o Grande, Crornwell, todos os gorilas
cesareos que através dos seculos vêm trazendo preso ao seu carro
de triunfo um ser de especie diferente, arrancado ao companheiro natural por
um gesto de violencia e rapina!" e por aí além…
O presidente Kerlog ouviu pelo seu receptor de bolso a curiosa arenga e
disse com muita filosofia ao ministro da Equidade: — "Parece grotesco
tudo quanto ela diz, no entanto a historia mostra que nós homens temos
sido arrastados por fabulas ainda mais grosseiras".
— "Isso só prova", retrucou Berald Shaw, "que
miss Elvin está errada. Homens e mulheres somos positivamente da mesma
especie…" E enquanto a passeata de miss Elvin barulhentamente prosseguia
no seu percurso, voltaram os ministros á conferencia, retomando-lhe
o fio no ponto em que a arenga da sabina os interrompera.
— "Dentro de 48 horas tudo estará resolvido, disse o Presidente,
e conto com a reeleição. Apesar de não haver obtido de
Jim Roy promessa formal, estou absolutamente certo de que ele nos dará
os votos negros. Deve neste momento estar apreensivo, o pobre Jim, com o discurso
de miss Elvin. Se ela nos trata a nós brancos de gorilas, que expressões
reservará para os pretos de Jim?" — "Mas miss Astor
tambem conta com os votos negros", disse o ministro da Seleção
Artificial.
— "Engano. Miss Astor espera de Jim uma traição.
Ora, a traição para miss Astor significa não votar em
seu nome. Logo, está convencida de que Jim Roy nos dará os votos
negros." — "E nesse caso derrogaremos a lei seletiva?"
— "Sem duvida. O pigmento reclama contra o rigor excessivo da Lei
Owen. Isso aliás pouco importa, porque antes dos maus efeitos da derrogação
dessa lei já teremos solvido o problema. Os ultimos estudos tecnicos
da exportação dos negros para a Amazonia já se acham
conclusos. Jim é habil e domina como despota a massa negra.
Havemos de nos entender. Havemos de impor-lhe por bem ou por mal a solução
branca. No momento o caso se resume em obtermos dele o concurso eleitoral,
pois quem lá pode saber que rumo tomarão os acontecimentos caso
vençam as elvinistas? É impossível protelar por mais
tempo com paliativos ilusorios a solução do binomio racial.
Ou expatriamos os negros já, ou dentro de meio seculo seremos forçados
a aceitar a solução negra, asfixiados que estaremos pela maré
montante do pigmento." — "Destruído, aliás…
— "Oh, antes o não fosse! A mim chega a me repugnar o
aspecto desses negros de pele branquicenta e cabelos carapinha. Dão-me
a ideia de descascados …" — E miss Astor? perguntei. Continuava
perplexa? Miss Jane respondeu: — A poucos passos da Casa Branca tambem
miss Astor conferenciava com varias sumidades do seu partido.
— "Estás ministra, minha cara Dorothy Glynor, se vencermos…"
dizia ela a uma linda criatura candidata ao Ministerio da Educação
Social.
— "Se?…" fez. Dorothy Glynor. "Pois ainda admite
duvidas depois da entente com Jim Roy?" — "Tudo me leva a
crer que Jim Roy não perderá a oportunidade de ajudar-nos a
apear o macho branco inimigo tradicional da sua raça. A logica me conduz
a esse raciocínio, mas acima da logica ha em mim uma voz interna, uma
ressonancia que raro falha — e essa voz me diz que Jim vai trair…"
— "A nós?" — "Não sei. Sinto no ar
a traição, e sinto-a tão forte que ando presa de um estranho
mal estar. É com esforço que procuro conter os meus nervos.
O entusiasmo com que me apresento em campo não passa de mera atitude.
O que ha em mim — e cada vez mais angustiante — é uma profunda
depressão nervosa…" Miss Evelyn Astor estava á sua mesa
de trabalho, em permanente comunicação com todos os distritos
do país. Recebia de minuto em minuto informações animadoras,
mas ouvia-as quasi desatenta. O imenso entusiasmo reinante nos arraiais femininos
— entusiasmo que ela mesma acendera com suas famosas irradiações
— só não contagiava a sua autora. Miss Astor metia os
olhos do pressentimento pela fachada do Capitolio e não lia lá
o seu nome…
Bem outra se apresentava a situação nos arraiais de Jim Roy.
A população negra permanecia numa especie de calma fatalista,
aguardando com insidiosa quietude de pantano a senha que o grande lider ficara
de irradiar uma hora antes do pleito. Até esse momento a formidavel
massa de cincoenta e tantos milhões de votantes conservarse- ia neutra.
Tinham compreendido as imensas vantagens da coesão e delegação
de todas as vontades numa só, além de que depositavam em Jim
Roy uma fé que nem Moisés merecera do povo hebraico. Qualquer
coisa de majestade havia naquele oceano submisso — escravo de novo,
escravo como sempre, mas desta vez escravo por heroico e livre consentimento.
CAPITULO XVI – O Titã Apresenta-se
— Fôra o pleito marcado para as onze horas da manhã e
duraria apenas trinta minutos, continuou miss Jane. Em meia hora o assombroso
fenomeno de um bloco de 150 milhões de criaturas a imprimirem em símbolos
numericos a sua vontade na fachada do Capitolio completar-se-ia de maneira
perfeita.
— Jim Roy avisara aos seus agentes distritais de que só ás
dez da manhã revelaria o nome do candidato em que os negros tinham
de votar. Esses agentes, por sua vez, radiariam aos eleitores das respectivas
zonas a esperada senha.
Ás nove e meia Jim recolheu-se á sua sala de trabalho no palacio
da Associação Negra e fechou-se por dentro.
Apesar da solidez dos seus nervos o lider cavilava…
Ás 9 e 45 aproximou-se da janela e correu os olhos pelo casario de
Washington. O panorama que viu, entretanto, não foi o da cidade.
Descortinou todo o lugubre passado da raça infeliz. Viu muito longe,
esfumado pela bruma dos seculos, o humilde kraal africano visado pelo feroz
negreiro branco, que em frageis brigues vinha por cima das ondas qual espuma
venenosa do oceano. Viu o assalto, a chacina dos moradores nus, o sangue a
correr, o incendio a engulir as palhoças.
Depois, o saque, o apresamento dos homens palidos e das mulheres, a algema
que lhes garroteava os pulsos, a canga que os metia dois a dois em comboios
sinistros tocados a relho para a costa. Viu, como goelas escuras, abrirem-se
os porões dos brigues para tragar a dolorosa carne do eito. E recordou
o interminavel suplicio da travessia… Carga humana, coisa, fardos de couro
negro com carne vermelha por dentro, A fome, a sede, a doença, a escuridão.
For sobre as cabeças da carga humana, um tabuado. Por cima do tabuado,
rumores de vozes. Eram os brancos. Branco queria dizer uma coisa só:
crueldade fria…
Viu depois o desembarque. Terra, arvores, sol — não mais como
em Africa. Nada deles, agora — nem a terra, nem as arvores, nem o sol.
Caminha, caminha! Se um tropeça, canta-lhe o latego no lombo. Se cai
desfalecido, trucidam-no. A caravana marcha, tropega, e penetra nos algodoais…
Viu Jim viçarem luxuriosos os algodoais da Virgínia depois
que o negro chegou. Além das chuvas havia a rega-los agora o suor africano
— suor e sangue.
Viu dois seculos de chicote a lacerar carne e outros dois seculos de lagrimas,
de gemidos e lamentosos uivos de dor. E viu a America ir saindo dessa dor,
como a perola, filha do sofrimento do molusco, nasce na concha…
Viu depois a Aurora da noite de duzentos anos: Lincoln. O Branco Bom disse:
"Basta!" Ergueu exercitos e das unhas de Jefferson Davis arrancou
a pobre carne-coisa.
As algemas cairam dos pulsos mas o estigma ficou. As algemas de ferro foram
substituídas pelas algemas morais do pária. O socio branco negava
ao socio negro a participação de lucros morais na obra comum.
Negava a igualdade e negava a fraternidade, embora a Lei, que paira serena
acima do sangue, consagrasse a equiparação dos dois socios.
E viu Jim que Justiça não passava de uma pura aspiração
— e que só ha justiça na terra quando a força a
impõe.
— "Hei de fazer-me força e impor a justiça",
murmurou o grande negro.
Em sua testa profunda ruga se abriu. Seus olhos se cerraram e Jim permaneceu
imovel, como que siderado por uma ideia de gigante.
Soou a primeira badalada das dez. Era o momento de radiar a esperada senha.
O titã despertou. Dirigiu-se para a cabina emissora. De passagem
deteve-se diante de um busto de Lincoln e disse, pausadamente, pondo-lhe a
mão sobre o ombro: — "Tu começaste a obra, Jim vai
conclui-la…" Penetrou na cabina. Vacilou um instante em face do aparelho
que lhe ia veicular a vontade. Contraiu os musculos num sorriso de senegalês
descorticado — e pronunciou finalmente com voz segura a palavra secreta
que até ali escondera: — "O candidato da raça negra
é Jim Roy".
CAPITULO XVII – A Adesão das Elvinistas
Arregalei os olhos de surpresa. Nem por sombras eu havia imaginado aquela
hipotese e confessei-o a miss Jane.
— A surpresa não foi unicamente sua, senhor Ayrton. Alguns
minutos passados depois do gesto decisivo do formidavel Jim Roy, e cinquenta
milhões de eleitores negros recebiam a imprevista senha como se recebessem
violenta pancada no cranio. A sensação de atordoamento foi geral.
Pelo cerebro dos despigmentados passara tudo, menos aquilo. Nem um negro sequer
imaginara tal hipotese.
Mas a perturbação foi se desfazendo, e á medida que
se ia desfazendo iam se iluminando as caras com um sorriso novo no mundo.
Um sorriso sem significação, puramente reflexo. O sorriso do
grilheta que nasceu de algemas ao pulso e de subito as vê se esvaírem
em nevoa ao contacto de magico talismã.
— "Livre, apenas? Não! Tambem senhor, agora…" O
sigilo das comunicações radiadas era perfeito.
Onda que partisse com recado para fulano jamais errava de porta ou se deixava
transviar pelo caminho. Mesmo assim miss Astor, cujo maquiavelismo de espirito
não extremava a rubra ideologia elvinista dum maravilhoso senso das
realidades, conseguira feliz exito na caçada que armou á onda
portadora da senha de Jim Roy. Não corromperia a onda, de si incorruptível,
mas corromperia um dos seus destinatarios — talvez o unico agente infiel
de quantos tinha Jim a seu serviço. Logo que recebeu a senha, esse
espião chamou miss Astor ao aparelho das comunicações
reservadas.
Estava ela a postos, na séde do partido, rodeada do seu ardente estado
maior. Mal soou o chamado, deixou as companheiras e literalmente atirou-se
ao fone adivinhando do que se tratava. A viva expressão de curiosidade
do Seu rosto, porém, demudou-se em derrocada.
Seus olhos arregalaram-se e seus labios, subitamente brancos, tremeram.
Vendo o transtorno de feições da chefa suprema, o estado-maior
elvinista acudiu inquieto.
— "Que ha? indagou miss Elvin, agarrando-a pelos ombros.
Resolveu Jim votar com Kerlog?" Miss Astor quis responder mas não
pôde. Sentiu uma nuvem turvar-lhe a vista, uma zoeira nos ouvidos, um
turbilhão no cerebro.
E descaiu para trás, desmaiada.
— Como as de hoje… murmurei contente com aquele desmaio.
Miss Jane prosseguiu.
— O panico apossou-se incontinenti do estado-maior elvinista e transformou
a sala num rodamoinho de lindas baratas tontas. As sabinas entraram a correr
de um lado para outro trefegamente a agarrar-se entre si, a gritar. Mas a
voz aguda de miss Elvin se fez ouvir e as conteve: — "Se Evelyn
desmaiou, é que recebeu uma terrivel noticia, e a unica noticia terrivel
que Evelyn poderia receber é a da adesão de Jim a Kerlog. Logo,
estamos derrotadas…" E os olhos da sabina despediram uma terrivel faisca
de odio — não político, não sexual apenas, mas
especial, sentimento inedito do mundo e de pura criação elvinista.
Miss Elvin cerrou o punho e ergueu-o na direção do Capitolio,
ao mesmo tempo que uivava qual loba ferida: — "Não importa,
Kerlog! Recorreremos aos grandes meios — á sabotagem, á
boicotagem do gorila!" — "Bravos! gritaram as elvinistas,
recompostas da momentanea desorientação. Viva o boicote!"
Miss Elvin rangia os dentes.
— "Os infames monstros jamais poderão prever o plano infernal
de sabotagem que contra eles organizei! Parecem ignorar, esses orgulhosos
gorilas, que a natureza os criou de uma carne toda ela calcanhares de Aquiles.
Convido as sabinas presentes para uma reunião amanhã em minha
casa a fim de estudarmos a aplicação imediata do plano diabolico.
Ás oito horas lá todas!" — "Bravos! Bravos!
Sabotemos o gorila!" A grita fez efeito de sais nos nervos da chefa desmaiada.
Miss Astor entreabriu os olhos, passou as mãos pelo rosto como a afastar
as ultimas sombras e, reentrando na posse dos seus sentidos, ergueu-se de
pé. Circunvagou pelo ambiente o olhar ainda trocado e em tom de misterio
exclamou por fim, como se estivesse a falar consigo propria: — "É
indispensavel um entendimento com Kerlog. Tudo mudou…" O espanto das
elvinistas atingiu o auge. Estarreceram todas, de olhos arregalados e bocas
entreabertas. Não compreendiam nada.
Miss Astor prosseguiu: — "Temos de nos aliar de novo ao homem…"
— "Nunca! rugiu miss Elvin, escarlate de furor. Transigir, nunca!…"
O relogio da sala interrompeu o tumulto com o pingar das onze — a hora
eleitoral.
— "Sim, declarou pausadamente miss Astor. Sim, porque já
não se trata de um mero choque político entre as duas facções
da raça branca. Trata-se da luva que nos vem de lançar ao rosto
a raça negra.
Jim Roy neste momento já deve estar eleito Presidente da Republica…"
Se uma granada de gás estupefaciente houvera explodido na sala, outro
não seria o aspecto daquelas sabinas apalermadas pelo inaudito da surpresa.
Transformaram-se em verdadeiras mulheres de Lot, mudas e imoveis, com os olhos
cravados na lider feminina.
Miss Astor continuou: — "Não me enganavam os meus pressentimentos!
Eu senti que Jim traira. Ide ver na fachada do Capitolio o seu nome vitorioso…"
As elvinistas precipitaram-se para a janela e leram no frontão do monumento
o nome de Jim Roy! Depois de 87 presidentes brancos surgia o primeiro negro,
eleito por 54 milhões de votos. Miss Astor obtivera 50 milhões
e meio e Kerlog 50 milhões e pico. Apesar de disporem de um eleitorado
quasi duplo do contrario, os brancos perdiam a presidencia graças á
cisão entre os dois sexos provocada pelo elvinismo…
Foi instantanea e radical a mudança que se operou nas mulheres. Apreenderam
num relance todas as consequencias possíveis do golpe negro e tomaram-se
de furiosa crise de sentimentalismo amoroso pelo homem branco, ser mau, opressivo,
injusto, não havia duvida, mas afinal de contas o marido milenar da
mulher. Mal com ele, peor sem ele. Estava tão longe o hipotetico sabino…
Miss Astor tomou a palavra e fez-se a interprete do pensamento dominante.
— "Mulheres! Eis as consequencias da nossa loucura! Divorciamo-nos
do nosso velho companheiro sexual e…" — "Companheiro ilegítimo!"
aparteou miss Elvin.
— "Seja, mas nem por isso menos companheiro. Divorciamo-nos dele,
declaramos-lhe guerra, difamamo-lo, e a paixão nos cegou a ponto de
não vermos o polvo que espiava a brecha afim de envolver o Capitolio
nos seus tentaculos! Ah, Kerlog, que injusta fui contigo recusando a fusão
partidaria que me propunhas! E como fui cruel respondendo ás tuas leais
palavras com anfigurís em linguagem sabina! Vejo bem claro agora o
nosso erro e, embora reconhecendo as queixas que a mulher tem do macho, tambem
reconheço que sem o concurso dele nada valeríamos no mundo.
Bastou um momento de divorcio para que a raça branca se visse nesta
horrível situação: apeada do domínio e á
mercê de uma raça de pitecos que, essa sim, tem contas terríveis
a justar conosco…" Palmas e bravos estrepitaram. Só miss Elvin,
irredutível no seu sonho, conservara-se de pé atrás.
— "E as minhas teorias? uivou ela. Que importa um momentaneo
incidente eleitoral em face do fulgor das minhas ideias? Voto contra a aproximação
com Kerlog e protesto contra o movimento de fraqueza, essa crise amorosa que
vejo nas palavras de Evelyn! Proponho o prosseguimento da luta com redobrado
ardor.
Submissão de novo, nunca!…" Mas nem uma só voz se ergueu
para apoia-la. Suas palavras tiveram como resposta um silencio de cemiterio.
Estava morto o elvinismo e de cinzas varridas todos aqueles cerebros e corações.
Diante do silencio da assembleia ainda mais se exaltou miss Elvin, rompendo
em apostrofes violentíssimas contra o "gorila pelado" e o
"sentimentalismo ovelhum" das suas companheiras.
Dessa vez não foi o silencio de cemiterio que acolheu sua arenga.
Foi a assuada.
— "Fora! Abaixo o sabino! Viva o Homo! Viva o macho forte que
suplantou o macho fraco!…" — "Sim, perorou miss Astor, viva
o homem! Macho natural ou não, neto do gorila ou não, é
ele o nosso marido pela milenar consagração dos fatos. Sempre
vivemos ao seu lado, ora escravas, ora deusas, mas como irmãs de peregrinação
nesta vida. Peludas que eramos ainda, e lá no fundo das idades já
o ajudavamos a afiar o machado de silex com que nos amparou das agressões
do Urso speleus.
Comemos juntos bifes crus de megaterios. Juntos nos derramamos por todos
os recantos do globo e conseguimos a dominação hoje absoluta.
Juntos subimos aos tronos e juntos fomos lançados ás feras do
circo. De mãos dadas compusemos á sublime epopeia do amor —
poema que principiou com a Vida e só com ela terá fim… O sabino,
ainda que existisse, seria um fraco. O raptor valia muito mais do que esse
hipotetico bicho marinho, só existente, talvez, na imaginação
exaltada da nossa querida miss Elvin…" — "Era o peixe-boi,
o pesado animalão que os homens arpoam no Amazonas…" aparteou
miss Dorothy Glynor.
— "O homem é o gorila, o gorila, o gorila…" urrava
miss Elvin possessa.
— "Pois viva então o gorila! concluiu miss Astor e os
aplausos foram delirantes. Fique miss Elvin com o boi do mar que nós
ficaremos com o nosso velho e tradicional gorila. Á Casa Branca!…"
E numa verdadeira revoada precipitou-se para a Casa Branca o bando das ondeantes
mamíferas com miss Astor á frente. Só ficou no recinto
a sabina teimosa, a bater o pé e uivar para as cadeiras vazias: —
"Gorila, gorila, gorila, gorila…" Nesse ponto miss Jane parou
para tomar folego, enquanto eu dizia: — Toma! Como tenho muita honra
de ser neto do meu avô gorila, exulto com a derrota dessa renegada.
Mas… e Kerlog, miss Jane? Como recebeu ele a noticia da vitoria do negro?
— O presidente Kerlog recebeu o resultado do pleito com um asombro igual
ao das mulheres, embora muito diferente na sua exteriorização.
Convicto do apoio de Jim Roy a um dos partidos brancos, chegara a admitir
por hipotese o triunfo de miss Astor; mas lá no intimo contava com
o seu. De modo que quando na fachada do Capitolio surgiu o nome de Jim Roy,
a sensação que o empolgou foi de pesadelo. Kerlog apalpou-se
e beliscou as carnes a ver se dormia. Não era pesadelo, não.
Era coisa peor — fato. E como a hipotese da eleição de
um negro nem por sombra lhe houvesse passado pela ideia, o seu desnorteamento
fez-se absoluto.
Kerlog reclinou-se sobre a secretária e permaneceu durante alguns
instantes imovel, com a cabeça apoiada nas mãos. Dava tempo
a que a ideia nova da eleição de um presidente negro penetrasse
em seu cerebro, criando lá pelas circunvoluções um quadro
inexistente. Custou a aboletar-se essa ideia. Não cabia em quadro nenhum
e punha arrepios em todos perto dos quais passava…
Mas o 87.° Presidente possuía uma solida organização
mental; reagiu contra o golpe e logo reentrou no controle dos seus espíritos.
Tomou um gole d’agua e dirigiu a palavra aos atonitos ministros presentes.
— "Chegou afinal a crise prevista ha seculos e de maneira surpreendente.
A hipotese que acaba de realizar-se creio que jamais passou pelo espirito
de nenhum americano, branco ou preto. É obra exclusiva de Jim Roy e
explica a paciencia com que vem ele automatizando a massa negra. Mas o fato
está consumado. É um desafio, uma luva lançada ao rosto
da raça branca, á qual nos cumpre dar troco. Não apresento
nenhuma ideia porque não a tenho — ainda não houve tempo
de se formarem ideias em meu cerebro.
Creio que o mesmo se dará com todos os presentes…" Um movimento
geral de cabeças apoiou suas palavras. Todos os ministros se achavam
na mesma situação de espirito.
Kerlog prosseguiu. Fez ver a que terrivel impasse a loucura das mulheres
arrastara o país, situação insoluvel caso elas persistissem
em se "desgorilarem" de sua ascendencia.
— "E dado o modo de pensar é falar da líder feminina,
disse ele, não prejulgo o que esteja agora se passando pelo cerebro
de miss Evelyn Astor. Mas é indispensavel a todo o transe um entendimento
com ela. É indispensavel promovermos a harmonia dos partidos brancos,
porque só a união da raça branca nos salvará."
O ministro da Paz tomou a palavra (as guerras haviam cessado no mundo depois
que aos ministros da Guerra se substituíram os ministros da Paz) e
disse: — "Acho inutil qualquer debate neste momento. A situação
é obscura e…" Não pôde acabar. Um tropel reboou
nos corredores. Era o bando elvinista que penetrava, com miss Astor á
frente.
Kerlog empalideceu. Os extremismos daquela facção eram tantos
que ele previu qualquer coisa semelhante aos assaltos histericos das antigas
sufragistas britanicas. E apertou o botão da campainha de alarma, chamando
a postos os guardas.
Miss Astor avançou para ele. Num instintivo gesto de defesa, Kerlog
recuou em sua poltrona, vendo claramente definida a agressão iminente.
Os ministros lançaram-se das suas cadeiras em socorro do chefe supremo.
Era tarde, Miss Astor agarrara o presidente Kerlog pelo pescoço…
Agarrara-o não para o estrangular, mas para o beijar entre lagrimas
e soluços de comoção.
— "Kerlog, querido Kerlog! Venho em nome de todas as mulheres
pedir perdão ao Homo, em ti representado, da loucura a que miss Elvin
nos arrastou. Diante dos supremos interesses da raça ofendida, cessa
o divorcio sexual. Volta a mulher de novo aos braços do seu velho companheiro
de peregrinação pelo mundo…" Mal vindo do espanto, tonto
ainda, o presidente Kerlog apenas murmurou: — "A que horas, miss
Astor! A que horas vem falar-me lingua compreensivel!…" — "Perdoa,
Kerlog! Foi uma nuvem que passou." — "Mas lá estão
as terriveis consequencias impressas na fachada do Capitolio." —
"Que importa? O que a mão do negro escreveu a tua apagará."
— "Facil de dizer, miss Evelyn. Dentro da criatura civilizada dorme
um troglodita. Receio que a exasperação desperte esse monstro."
— "Temos tudo por nós, o numero e a superioridade mental."
— "Mas temos contra nós o momento, o impulso, a colera,
a vingança — as velhas inferioridades adormecidas mas não
mortas.
Receio que a America se inunde de sangue…
Miss Astor emudeceu por um momento, com os seios ofegantes.
Depois disse: — "E agora? Que vamos fazer?" Kerlog respondeu
com finura: — "Vamos vencer. O perigo existia enquanto a palavra
vamos só representava metade da raça branca. Se miss Astor me
traz o concurso da metade rebelde, tudo muda …" A ex-sabina desprendeu-se
do pescoço presidencial e gritou, voltada para as suas companheiras:
— "Cerremos fileiras em torno de Kerlog! É ele o nosso lider
supremo — lider da raça, e acaba de traçar o incoercível
programa branco: "Vencer!" Viva Kerlog!" Um burra delirante
saudou as suas palavras.
— "Viva Kerlog! Viva o Homo!" O ministro da Educação
Social interveio malicioso: — "Alia-se de novo então ao
"gorila pelado", miss Astor? — "Sim, respondeu ela, mais
formosa do que nunca, tanto a sua fisionomia irradiava de entusiasmo. Acabamos
de fazer uma grande descoberta: o sabino de miss Elvin não passa de
um estupido boi de mar. Viva, portanto, o velho gorila!" — "Viva!
Viva!…" E a onda feminina derramou-se barulhentamente pelos corredores
afora, até despejar-se pelas escadarias.. .
Aliviado de um grande peso Kerlog voltou-se para os ministros e repetiu
risonho o verso de Shakespeare: — "She is false as water,..
— "Mas de muita força catalítica, rosnou o ministro
da Equidade. Cura pela ação da presença …" O ponto
e virgula com torradas veio interromper naquele dia as revelações
de miss Jane. Retirei-me mais interessado do que nunca no desfecho da crise
americana do seculo 23.
CAPÍTULO XVIII – O Orgulho da Raça
Passei a semana agitado, menos com as revelações do ano 2228
do que com a impassibilidade de miss Jane.
Eu ardia, positivamente ardia, e traia o meu amor em todos os meus olhares
e gestos; mas a enigmatica jovem não dava ar de o perceber. No começo
a admiti como um puro espirito, uma Cassandra sem nervos nem sangue. Depois
duvidei da existencia de tais puros espiritos e passei a ver em miss Jane
uma "desentendida". Talvez que me julgasse muito inferior a si e
adotasse semelhante atitude como o meio mais facil de guardar as distancias.
Mas era-me impossível conciliar isso com a amizade que ela me demonstrava
e sobretudo com o ter só a mim no mundo depois de perdido o pai. Se
de fato me julgasse inferior ou indigno de sua pessoa, certo que já
me teria afastado do castelo. Não havia duvida, miss Jane fazia-se
de desentendida…
Firmei-me nessa ideia e concebi um plano de ataque — uma demonstração
amorosa que a arrancasse da sua marmorea impassibilidade. Ou tudo ou nada.
Ou dava-me o coração ou punhame no olho da rua.
Restava saber uma coisa só — se no momento da demonstração
a timidez não me trairia a vontade…
Quando chegou o domingo, levantei-me mais cedo e fui ao mercado de flores.
Comprei as mais belas violetas e a sobraça-las parti para Friburgo
no primeiro trem. Lá me dirigi ao cemiterio onde repousavam os restos
do professor Benson. Pela segunda vez eu levava flores ao jazigo do pai da
maior maravilha do seculo — miss Jane…
Ao transpor o portão do pequeno cemiterio meu coração
bateu.
Vi de longe um vulto querido a espalhar rosas sobre o tumulo do velho sabio.
Aproximei–me com um pressentimento n’alma — "é hoje"…
— Tambem aqui? disse miss Jane ao avistar-me, estendendo para mim
a sua mão gelada pelo frescor matutino.
Vi que era chegado o momento. Armei-me de todas as coragens e comecei: —
Miss Jane, eu…
Mas engasguei. Já estava ela de olhos muito fixos no tumulo, com
o ar de quem repete mentalmente o "morrer… dormir… sonhar, quem sabe?"
de Shakespeare. Estava puro espirito em excesso…
Ficamos os dois silenciosos por alguns momentos. Depois miss Jane falou,
como respondendo a si propria e sempre de olhos cravados no tumulo: —
Nem ele! Nem ele que penetrava o passado e o futuro adiantou um passo na decifração
do enigma da vida…
Enguli de vez o meu proposito. Não era o momento. O formoso Hamlet
de faces roseas, cabelos afogados em boina de veludo negro e corpo revestido
de perfeito tailleur, pairava muito distante de mim.,.
Apesar disso tomei-lhe a mão e apertei-a de novo, suavemente.
Miss Jane olhou-me nos olhos com a funda melancolia dos que penetram no
mui longe das coisas — e nada vêem do que vai por perto.
Dali seguimos juntos para o castelo, sem que a paisagem nem o ar fino da
manhã dissipassem a tristeza dela e a minha decepção.
No castelo, por uma hora, só falamos do professor Benson, com longos
intervalos de silencio — intervalos de silencio em que eu lamentava
a coexistencia de puros espíritos em corpos assim tão perturbadores.
Depois do almoço, o primeiro que fiz em sua companhia, a nuvem das
saudades passou e retomamos a nossa excursão pelo ano 2228.
— Onde estavamos? principiou ela.
— Em Kerlog, já libertado do pesadelo elvinista, respondi.
— Sim, é isso. As mulheres aderiram ao Homo e tudo mudou, como
era natural. A raça branca formava novamente um bloco unido e apto
a organizar a resistencia.
— Mas a impressão do golpe de Jim? Como o recebeu o país?
perguntei suspirando.
— Com estupefação. Pela primeira vez na vida de um povo
ocorria um fato que interessava a todos os seus componentes, sem exceção
de um só. E como ninguem, a não ser Jim Roy, houvesse esperado
por aquele desfecho, facil é de imaginar o grau de assombro do espirito
publico.
A estupefação dos brancos derrotados não era menor
que a dos negros vencedores. Haviam estes agido como automatos; deram o voto
a Roy como o dariam a Kerlog, a miss Astor, ou o não dariam a nenhum
dos tres, se tal fosse a senha recebida. E agora olhavam-se uns para os outros
num estonteamento de vitoria em absoluto inedito para eles.
Quanto ás consequencias possíveis, nem de um lado nem do outro
ninguem podia prever coisa nenhuma. Extenso demais era o fenomeno para ser
abarcado por uma cabeça e, alem disso, não tinha precedentes
na historia.
Só no dia seguinte é que o acesso de estupefação
coletiva principiou a decair. As celulas do imenso organismo social foram
saindo daquele penoso estado de anestesia para entrar na fase inversa da exaltação.
O velho desprezo racial do branco pelo negro transformavase em colera, e o
recalcado odio do negro pelo branco, arreganhando os dentes, entreabria um
monstruoso sorriso de revanche.
Lentamente despertava a massa negra do longo letargo de submissão
e tremia de narinas ao vento, como o tigre solto na jungle.
Toda a barbarie atavica, todos os apetites em recalque, rancores impotentes,
injustiças padecidas, todas as vergastadas que laceraram a sua pobre
carne até o advento de Lincoln, e depois de Lincoln todas as humilhações
da desigualdade de tratamento — essa legião de fantasmas irrompeu
da alma negra como serpes de sob a lage que mão imprudente levanta.
E a raça maior que o da mesquinha liberdade fisica, passou a sonhar
o grande sonho branco da dominação…
Tomado de receios ante a imensidade daquele despertar, Jim Roy auscultava
os fremitos do seu povo e media a tarefa ingente que lhe pesava sobre os ombros.
Se não conseguisse manter açaimado o monstro e submisso á
sua voz de comando, a momentanea vitoria breve se transformaria num horrendo
cataclismo. Jim Roy amava a America. Nós alicerces do colossal edificio
o cimento ligador dos blocos fôra amassado com o suor dos seus ancestrais.
A America surgira do esforço braçal de um, dirigido pelo esforço
mental de outro, e pois tanto lhe falava a ele ao sangue como ao do mais orgulhoso
neto dos pioneiros louros.
De instante a instante recebia comunicações dos seus agentes
dando conta do estado d’alma da massa. A pantera negra distendia os musculos
entorpecidos, com os olhos a se rajarem de sangue…
Jim tremeu. Sabia conter os nervos da fera, dominar-lhe todos ímpetos
instintivos. Além disso via o seu já imenso prestigio de lider
acrescentado com o de Presidente eleito — mas estaria em seu poder sofrear
o maremoto africano? Não faria dele um dique impotente a borrasca a
desenhar-se? Jim sentia no ar as ondas de fluidos explosivos, um perfeito
ambiente de polvora. O solo latejava pulsações vulcanicas. Jim
tremeu diante de sua obra — e sem vacilar foi ao encontro de Kerlog.
O momento impunha a conjugação da sua força com a do
lider branco.
Defrontaram-se os dois chefes como duas forças da natureza, contrarias
nos seus destinos, inimigas pela voz do sangue, mas irmanadas no momento por
um nobre objetivo comum.
No primeiro ímpeto Kerlog apostrofou o chefe negro.
— "Vê tua obra, Jim! A America transformada num vulcão
e ameaçada de morte!" O negro cravou no lider branco os olhos
frios, por um instante animados de estranho fulgor.
— "Não minha, Presidente Kerlog! Não é minha
esta obra. É sua, é dos seus, é de Washington, é
de Lincoln. Os brancos mentiram na lei basica. E ou confessam que mentiram
ou reconhecem que a situação é perfeitamente normal.
Que aconteceu, Presidente Kerlog? Houve um pleito e as urnas liberrimas conferiram
a vitoria a um cidadão elegível. Acha o Presidente Kerlog que
o Pacto Constitucional sofreu lesão? Naquele peito a peito Jim Roy
dominava o adversario.
— "Mas não se trata disso, continuou ele. O momento não
é para recriminações — e em materia de recriminações
o Presidente Kerlog bem sabe que jamais um branco venceria um negro… O fato
está consumado; e como chefes supremos das duas raças a nós
só incumbe atender á salvação comum. Se não
contivermos de redeas presas os dois monstros — o monstro da ebriedade
negra e o monstro do orgulho branco, a chacina vai ser espantosa…"
— "Ninguem sabe disso melhor que eu, retrucou o chefe da nação.
Nos estados do Sul já lavra o incendio …" O negro deu um salto.
— "Jim o apagará! Jim manterá presa em cadeia de
aço a pantera africana. Ele a domina com os olhos como o soba a dominava
no kraal donde a cupidez dos brancos a tirou. Jim é rei!" Era
tal a firmeza com que o grande lider negro emitia aquelas palavras que o tom
de superioridade do branco se demudou em admiração. Kerlog viu
que tinha diante de si, não um feliz aventureiro político, mas
uma dessas incoercíveis expressões raciais a que chamamos condutores
de povos. Pela primeira vez enfrentava um homem que era algo mais que um homem.
E do fundo do coração Kerlog lamentou que a incompatibilidade
racial o separasse de tamanho vulto.
Jim prosseguiu: — "Mas só o farei se por sua vez o Presidente
Kerlog açaimar o orgulho branco. Eu domino os meus com o olhar e a
palavra. O Presidente Kerlog domina com a força do estado. Em nossas
mãos está pois a paz da America." O lider branco baixou
a cabeça. Meditava.
— "Pois salvemos a America, Jim! disse erguendo-se. Açaima
tu a pantera negra que meterei luvas nas unhas da aguia branca." Um leal
aperto de mão selou aquele pacto de gigantes.
— "Mas a pantera que conte com o revide da aguia! continuou o
lider branco depois que as mãos se desapertaram. A aguia é cruel…"
Jim Roy retesou-se de todos os musculos como a fera que se põe em guarda.
— "Ameaça-nos como sempre? Ameaça-nos até
110 momento em que a America ou rompe a sua Constituição e afoga-se
num mar de sangue ou submete-se ao meu comando?" Kerlog olhou-o firme
nos olhos e murmurou com nitidez de lamina: — "Não ameaço.
Previno lealmente. Vejo em ti uma força demasiado grande para que eu
a enfrente com palavras. Estamos face a face não dois homens, sim duas
almas raciais arrostadas num duelo decisivo. Não fala neste momento
o Presidente Kerlog. Fala o branco de crueldade fria, o mesmo que vos arrancou
do kraal, o mesmo que vos torturou nos brigues, o mesmo que vos espezinhou
nos algodoais. Como ha razões de estado, Jim, ha razões de raça.
Razões sobrehumanas, frias como o gelo, crueis como o tigre, duras
como o diamante, implacaveis como o fogo. O sangue não raciocina, como
os filosofos. O sangue sidera, qual o raio. Como homem admirote, Jim. Vejo
em ti o irmão e sinto o genio. Mas como branco só vejo em ti
o inimigo a esmagar…" O largo peito de Jim Roy arfava. A fera ancestral
nele alapada transpareceu no fremir das ventas grossas.
— "E não trepidará o branco em esmagar a America
se for condição para esmagar o negro?" rugiu.
Kerlog retrucou calmamente como se pela sua boca falasse o proprio deus
do Orgulho: — "Acima da America está o Sangue".
Jim baixou a cabeça. Viu aberto á sua frente o eterno abismo.
O sangue branco tinha a dureza do diamante. Armado de mais cerebro, dos
vales dos Ganges partira para a ousada aventura conquistadora e vencera sempre
e não cedera nunca. Era o nobre, o duro, o eterno senhor cujo raio
fulmina. Era o criador. Do rude instinto de matar do troglodita extraira a
sua grande arte, a Guerra.
Forjara a espada, dominara o gás que explode, violara o profundo
das aguas e a amplidão dos ares. E com esse feixe de armas incoercíveis
rodeara como de baionetas o diamante do seu Orgulho.
Tudo isso, num clarão, viu Jim Roy naquele homem que sereno o arrostava.
E o que ainda havia de escravo no sangue do grande negro vacilou. Jim sentiu–se
como retina ferida pelo sol. Mas sem demora reagiu. Ergueu-se e mais firme
que nunca disse com dureza de rocha na voz: — "Seja! E porque assim
é, dei o supremo golpe. A America é tão sua como minha.
Tenho-a nas mãos. Vou dividi-la." — "A justiça
está contigo, Jim. Manda a justiça dividir a America. Mas o
Sangue está acima da justiça. O Sangue tem a sua justiça.
E para a justiça do Sangue Branco é um crime dividir a America."
Jim novamente baixou a cabeça e emudeceu. Pela segunda vez sentia-se
como a retina ofuscada pelo sol.
O Presidente Kerlog aproximou-se dele e, com as mãos nos seus ombros
largos, disse: — "Vejo-te grande como Lincoln, Jim, e é
com lagrimas nos olhos que contemplo a tua figura imensa, mas inutil… Adeus.
Atendamos ao instante, açaimemos as nossas raças — mas
não fique entre nós sombra de mentira. O teu ideal é
nobilíssimo, mas á solução de justiça com
que sonhas só poderemos responder com a eterna resposta do nosso orgulho:
Guerra!" E os dois seres humanos subsistentes no imo dos dois lideres
raciais abraçaram-se com lagrimas…
Miss Jane fez uma pausa, atenta á minha comoção. Aquele
duelo de gigantes agitara fundo o meu ser. Tive a impressão de que
jamais a historia oferecera lance mais grandioso — nem mais cruel. Vi
claros inumeros pontos até ali obscuros na marcha da caravana que do
fundo das idades vem vindo a entredegolar-se com sanhudos odios.
Vi um sonho de Ariel esfumado nas alturas — a Justiça Humana;
e vi na terra, onipotente, a Justiça do Sangue — um raio cego…
— E depois? perguntei. Voltou a paz á America? — Sim,
respondeu miss Jane. Os dois lideres entraram a agir de pronto. A ação
de um foi tão rapida e segura como a do outro. A pantera negra recolheu
as garras e a aguia branca enluvou as unhas.
Mas o beluario negro sentia-se ferido. As palavras que a raça branca
pusera na boca de Kerlog cravaram-se-lhe no coração como as
zagaias dos seus avós no peito dos leões africanos — mortalmente…
CAPITULO XIX – Burrada
Para descanço do meu espirito miss Jane passou a falar do movimento
feminino, tema que muito me interessava.
— O partido elvinista, disse ela, desapareceu do cenario nacional
como neve exposta ao fogo. Poderosíssimo na vespera, tão poderoso
que batera seu adversario, o partido masculino, por meio milhão de
votos, achava-se agora reduzido a uma só partidaria: miss Elvin. Todas
as mais haviam aderido aos homens escandalosamente, como se lá no intimo
nunca tivessem ansiado por outra coisa.
O tempo ia passando e miss Elvin não se recompunha do formidavel
trambolhão sofrido. Para o meeting marcado em sua casa no dia das eleições
não aparecera ninguem, e atirada a uma poltrona do salão deserto
a irredutível sabina permaneceu até tarde da noite, furiosa,
com os olhos cravados no aparelho por onde irradiara a ultima proclamação
do Remember Sabino! — Ultima, miss Jane? — Ultima, sim, porque
esse jornal havia morrido de subito colapso. Todas as assinantes haviam cortado
a ligação, e se miss Elvin tentasse radiar uma só palavra
que fosse ve-la-ia perder-se virgem de ouvidos pelos intermundios siderais.
A um canto da sala havia um enorme gorila empalhado, com um dístico
insultante: "O avô do ladrão". Era olhando para aquela
bestial carcaça avoenga que miss Elvin compunha as suas terríveis
catilinarias contra o Homo sapiens, ao qual jurara descer da sua posição
de macho natural da mulher, — Mas haveria sinceridade nisso? perguntei.
— Sinceridade estetica evidentemente, forma de sinceridade tão
legitima como outra qualquer.
Não entendi muito bem. Miss Jane dizia ás vezes coisas um
tanto acima da minha debil compreensão…
— Essa teoria, prosseguiu ela, fez carreira e exerceu uma função
muito curiosa na America: congregar todas as femeas que por uma circunstancia
ou outra se desavinham com os machos — esposos, noivos ou namorados,
e foi com esses elementos que se constituiu o partido elvinista. Partido instavel,
aliás, e sempre renovado.
Diariamente nele se inscreviam milhares de adeptas e se eliminavam outras
tantas. Entravam as brigadas com o homem e saiam as reconciliadas…
Mesmo assim miss Elvin elevou muito alto as suas construções,
chegando até, como já disse, a criar ciencias novas, adaptadas
á mentalidade das mulheres.
A Universidade Sabina fez furor. Não tinha séde ao sistema
de hoje, como aliás a maioria dos estabelecimentos de ensino da epoca.
As lições eram radiadas diretamente para a residencia das alunas.
A ciencia elvinista possuía seus metodos proprios, nada semelhantes
aos da velha ciencia dos homens. Em aritmetica, por exemplo 2 + 2 não
era forçosamente igual a quatro. Era igual ao que no momento conviesse.
— Vejo, disse eu, que é bem verdade o "nada ha de novo
debaixo do sol". Para quanta gente hoje a verdadeira matematica não
é essa! Mas como era a ciencia sabina, miss Jane? Fale-me dela.
Miss Jane explicou que o grande principio da ciencia sabina era admitir
como base de tudo a veneta; e como a veneta é de si feminina e instavel
nenhuma das ciencias novas, inclusive as matematicas, possuía base
fixa. Tudo ondeava, como o mar donde procediam as sabinas. E por absurdo que
isto nos pareça, a nós deste presente educado na rigidez da
velha ciencia de Aristoteles e Bacon, as teorias de miss Elvin trouxeram ao
espirito humano a sua contribuição de beleza. Foi a vitoria
do furta-côr, da onda, do reflexo fugidio do loie-fulerismo, contrapostos
á côr fixa., á rididez do cubo, á constancia equacional
dos termos. Isso se adaptava maravilhosamente á agilidade do pensamento
mulheril, e foi justamente essa feição sedutora, amavel e liberrima
da teoria que determinou o enlace de todas as mulheres para o terreno político,
operando a cisão branca.
— Qualquer coisa como o futurismo de hoje, não acha? —
Isso. Teorias de repouso, com base num sutil malabarismo de logica, que servem
para romper o monotono de certeza, de verdade, da coisa tida e havida como
justa. O espirito humano nelas se recreia e se espoja, como se espoja na poeira
o cavalo cansado.
Miss Elvin, entretanto, ao invés de mostrar-se desolada com as consequencias
do seu movimento só via o lado pessoal do desastre.
Fôra violenta demais a sua queda. O sonho maravilhoso erguera-a ás
nuvens e a sabina acabou convencida de que era de fato messianica. E como
tinha o genio impulsivo, não podia conter o furor diante da deserção
até das amigas mais proximas.
Em certo momento, no dia do grande meeting, miss Elvin olhou para a cara
bestial do gorila empalhado como quem olha para um inimigo de carne. O monstro,
de dentes á mostra, parecia sorrir-lhe ironicamente.
— "Venceste ainda uma vez, meu celerado! Mas a crise passará
e justaremos contas…" disse ela atirando-lhe á cara uma veneranda
Origem das Especies de Charles Darwin.
Estava plenamente convicta de que quando o país reentrasse na normalidade
resurgiria o partido sabino. A onda fôra-se. Mas o proprio da onda é
ir e vir.
— "She is false as water…" repetiu miss Elvin por sua
vez, espraiando o olhar para o futuro.
E assim foi. Quando o país recaiu na paz de sempre, o Remember Sabino!
reapareceu e houve um perfeito da capo do elvinismo, como nas musicas…
Miss Jane fez pausa. Notou talvez que eu estava inquieto, em luta com alguma
ideia. E não errara. Qualquer coisa me dizia que era o momento de declarar
a minha sopitada paixão. O sangue estuavame nas veias e por fim a palavra
de amor que romperia a barreira assomou-me á boca. Mas ao chegar á
boca transformou-se, e o que saiu foi uma filha da timidez disfarçada
em curiosidade: — E miss Astor? perguntei.
— Essa irradiava de contentamento, como se o reatar relações
com o difamado Homo lhe houvesse correspondido a um secreto anelo do coração.
Durante o período agudo da agitação elvinista operarase
uma completa ruptura entre os membros dos dois partidos, e miss Astor chegou
a zombar de Kerlog, por quem possuia uma séria inclinação
sentimental. O desfecho inesperado das eleições, entretanto,
viera romper a frieza e aproximara-os de novo, fato que a enchia de secretas
esperanças. As demais elvinistas, já saudosas do macho tradicional,
tambem aproveitaram o ensejo para uma reconciliação —
e é de crer que nunca houvesse maior safra de beijos na America.
Remexi-me na poltrona. Tanto beijo lá longe e uma criatura humana
a definhar ali por falta de um só…
— Isso explicava, continuou a desentendida miss Jane, o estranho fenomeno
de só as ex-adeptas de miss Elvin demonstrarem uma clara e inquieta
alegria justamente na hora mais pressaga da nação.
Enquanto todos se entregavam a penosas cogitações, colhidos
pela angustia do momento, as ex-sabinas vogavam em pleno mar de uma doce lua
de mel.
A crise de ternura não passou desapercebida ao ministro da Seleção
Artificial.
— "Vai altear-se o índice dos nascituros brancos, disse
ele a um colega no momento em que subiam os degraus da Casa Branca para a
reunião do ministerio. Prevejo o congestionamento de Eropolis…"
Kerlog já lá estava no salão do conselho, mais sereno
do que na vespera; embora ainda cheio de rugas na fronte. A conferencia com
Jim Roy abalara-o profundamente. Sentira que não era o negro um ambicioso
vulgar, como tinha suposto. Via agora em Jim uma nobre alma de patriota, capaz
do supremo heroismo de sacrificar-se pela America. E graças a seu concurso
podia o governo estudar com a necessaria calma a gravíssima situação.
Reunidos todos os secretarios, quem primeiro falou foi o ministro da Paz,
antigo juiz cujo respeito pela Constituição tinha algo de supersticioso.
— "Refleti durante a noite sobre o caso, disse ele, e cheguei
á conclusão de que a nós só compete uma coisa:
mostrar-nos fieis á memoria dos instituidores da nação.
A lei basica existe e a nossa missão suprema é faze-la cumprir.
Foi eleito um cidadão americano tão elegível como o senhor
Kerlog ou miss Astor. Governo que somos, a lei nos obriga a aceitar o fato,
mantendo a ordem e empossando Jim Roy no dia que a lei manda." —
"Perdão! interveio o ministro da Equidade. Creio que o senhor
Kerlog não nos convocou para o exame formal do problema. Seria inutil,
sobre infantil. O problema transcende a esfera politica e tornase racial.
Neste momento não estamos aqui como secretarios de estado e sim como
brancos afrontados pelos negros. Acima das leis políticas vejo a lei
suprema da Raça Branca. Acima da Constituição vejo o
Sangue Ariano. O negro nos desafia. Cumpre-nos aceitar a luva e organizar
a guerra." Kerlog sorriu. Via o seu ministro expender as mesmas razões
que ele lançara contra Jim. A voz do Sangue, sempre…
A discussão foi breve. Tirante o ministro da Paz, todos apoiaram
o ponto de vista do ministro da Equidade — e Kerlog encerrou a audiencia
com estas palavras: — "Possuimos uma delegação politica
e com os poderes que ela nos outorga não podemos resolver um problema
de sangue. Meu pensamento é que se convoque a convenção
da Raça Branca. Como ha razões de estado, tambem ha razoes de
raça que nos cumpre ouvir e atender." A ideia foi unanimemente
aprovada.
— O que admiro, comentei eu, é a concisão e firmeza
dessa gente da America futura. Se fosse entre nós hoje, que barulheira,
que discurseira de não acabar mais! — Tem razão, senhor
Ayrton. A uma criatura de hoje que assistisse aos acontecimentos do ano de
2228 nos Estados Unidos, nada espantaria tanto como o alto controle de si
proprio que o homem revelava. Nada de tumulto, de anarquia individualista,
de desnecessarias violencias na linguagem e nos atos. É que os processos
seletivos tinham banido da sociedade os tarados, inclusive os retoricos. Todas
as perturbações do mundo vinham da ação anti-social
desses maus elementos. Até á vitoria pratica do eugenismo, a
desordem humana raiara pelo destempero e não podia deixar de ser assim,
visto como um alcoolatra, um retorico ou um burocrata tinham tanta liberdade
de encher o mundo de futuros pensionistas das prisões, dos prostíbulos
e das camaras de deputados como um homem são de o povoar de silenciosos
homens de bem. A má semente humana gozava de tantos direitos como a
semente que abrolhou em Lincoln. E a caridade, a filantropia, a assistencia
publica em materia de defesa social, não faziam senão despender
enormes quantidades de dinheiro e esforço na criação
de hospitais, asilos, hospícios, prisões, casas de congresso,
repartições publicas, isto é, abrigos para os produtos
logicos da má origem. A ideia de seleção da semente,
de ha muito vitoriosa na agricultura e na pecuaria, só não se
via aceita no campo que mais deveria interessar ao homem. Uma velha ideologia
mística vinda da Asia hebraica, e um falso conceito de liberdade vindo
do 89 francês, a isso se opunham tenazmente. Quando em 2031 Owen propôs
a lei espartana, a resistencia ainda se mostrou forte; mas o alto progresso
do espirito da America permitiu-lhe a vitoria. Pouco depois, quando o mesmo
Owen formulou a lei da esterilização dos tarados, embora fosse
colossal o numero dos atingidos, já se revelou menor a resistencia
e a lei venceu por esmagadora maioria.
Bastou um seculo de inteligente e sistematica aplicação dessas
leis aureas para que o povo americano se alçasse a um grau de elevação
física, mental e moral que nem o proprio Owen chegara a sonhar. Fecharam–se
as prisões e com elas os hospitais, os hospícios e asilos de
toda especie. E os sociologos da epoca entraram a assombrar-se da estupidez
dos seus ancestrais…
— … que passavam a vida lutando contra os produtos do mal sem terem
a ideia de suprimi-lo com supressão da má semente.
Até a miseria, cancro julgado pelos velhos filosofos como contingencia
humana, viu-se gradualmente extinta á proporção que o
progresso seletivo operava os seus logicos efeitos. Com ela desapareceram
automaticamente a prostituição e as formas baixas do crime.
O direito de reprodução passou a ser regido pelo Codigo da
Raça, o mais alto monumento da sabedoria humana. Só quem apresentasse
a serie completa de requisitos que a Eugenia impunha — requisitos que
assegurassem a perfeita qualidade dos produtos, é que recebia o ministerio
da Seleção Artificial o brevet de "pai autorizado".
— Mas realmente parece incrível, miss Jane, exclamei com horror,
que ainda hoje tenha o direito de ser pai quem quer! Morfeticos ha ali na
roça que botam no mundo anualmente pequeninos lazaros. E ninguem vê,
ninguem diz nada, todos acham que está tudo direito. ..
Eu sentia-me a ferver, com impetos de pular para a rua e berrar para todos
os ventos: — Burrada!…
Miss Jane acalmou-me a furia e prosseguiu: — E não parava aí
a intervenção seletiva. Se um "pai autorizado" pretendia
casar-se, tinha de apresentar-se com a noiva a um Gabinete Eugenometrico,
onde lhes avaliavam o indice eugenico e lhes estudavam os problemas relativos
á harmonização somatica e psiquica. Caso um deles não
atingisse o índice exigido, poderiam contrair nupcias mas sob a condição
de infecundidade.
— Como é claro e inteligente isso! exclamei. Burrada!…
— Reproduzir a especie tornou-se um ato de altíssima responsabilidade,
já que era de altíssima relevancia para o progresso da especie.
A ideia de exigir habilitações oficiais para certos atos da
vida é velha — mas exclue o ato de dar vida á prole futura.
Exige o estado de hoje habilitação brevetada para quasi tudo,
para que um homem trabalhe no fôro, construa uma casa, cure uma dor
de barriga…
— enrole uma pílula …
— …mas nada exige de quem pretende dar vida a um novo ser humano,
elo inicial, muitas vezes, de uma cadeia sem fim de desgraçados ou
criminosos.
— Burrada! Burrada… exclamei deveras revolta do contra a estupidez
vigente. E como não ser assim, se qualquer Sá ou qualquer Pato
dirige a opinião? Depois que meu ímpeto de revolta serenou,
voltei a interpela-la acerca de um ponto que andava a espicaçar a minha
curiosidade.
— E o casamento, miss Jane? Já falou diversas vezes em casamento
e estou curioso por saber se essa palavra em 2228 diz o mesmo que hoje.
— Diz e não diz, respondeu miss Jane. Nos casamentos em que
o fim era a procriação, o estado intervinha com olhos de lince.
Sendo o objetivo a prole sã de corpo e alma, compreende o senhor Ayrton
que todo o rigor era pouco para evitar desvios funestos ao futuro da raça.
As criaturas autorizadas a procriar constituíam uma especie de nobreza.
Todos as respeitavam como as eleitas da especie, preciosas linhas diretrizes
do amanhã. O supersticioso acato que mereciam outrora os duques, marqueses
e barões por mercês arbitrarias de tronos e solios pontifícios,
passou a caber aos pais pelo simples fato de serem pais. Ser pai valia por
um diploma de superioridade mental, moral e fisica, conferido pela natureza
e confirmado pelos poderes publicos.
Esse casamento aproximava-se do nosso em muitos pontos. Era tambem dissoluvel.
Mas conquanto dissoluvel, raro se dissolvia: a harmonização
pre-nupcial dos Gabinetes Eugenometricos quasi não dava oportunidade
a erros.
Nos outros casos os conjuges uniam-se e desuniam-se com a maxima liberdade
e desembaraço. Nada tinha que fazer o governo em um contrato bilateral
onde só valia a vontade dos contratantes.
— Quer dizer que o numero dos divorcios cresceu espantosamente…
— Ao contrario, diminuiu como nunca se esperou. E diminuiu em virtude
da unica imposição que a lei fazia a esses contratos: as férias
conjugais obrigatorias.
— ? ! — Sim, férias. A experiencia psicologica demonstrou
que o mal do casamento vinha mais do enfaro reciproco dos conjuges do que
da essencia dessa forma de associação sexual. Instituiram-se
as férias, como temos hoje as forenses, as colegiais, etc. E essa separação
periodica agiu com tamanha eficacia que os casais passaram a ter duas luas
de mel por ano, luazinha após as férias pequenas e lua cheia
após ás grandes. Não houve mais necessidade de recorrer-se
ao violento drastico do divorcio, como o temos hoje. O suave laxante das férias
limpava os conjuges das toxinas do enfaro e renascia-lhes o amor ao petit-feu
das saudades.
— Puro ovo de Colombo! exclamei. Estou vendo que tudo é ovo
de Colombo na vida. ..
— Será, mas o Colombo deste ovo só apareceu no seculo
XXIII.
Foi Johnston Coolidge, autor do famoso livro Toxinas Conjugais, concluiu
miss Jane.
Pela primeira vez fui eu quem pôs fim a um domingo. Estava ansioso
por voltar á cidade e nos cafés, na rua, no escritorio, prégar
a eugenia e insultar a estupida gente que não vê as coisas mais
simples. A consequencia foi que só dormi pela madrugada. E sonhei,
agitado.
Sonhei a cidade tão limpa dos seus aleijões que ficava reduzida
unicamente a duas criaturas de mãos presas — eu e miss Jane…
CAPÍTULO XX – A Convenção Branca
Desta vez não tive paciencia de esperar novo domingo. Havia um feriado
no meio da semana e aproveitei-o para voar ao castelo antes do almoço.
Delicioso almoço! Figurei-me durante ele já marido da gentil
hospedeira e dono do castelo. Cheguei a olhar com olhos de proprietario através
das vidraças, por onde se viam terras e mais terras otimas para a cultura.
Mas foi momentaneo o meu deslize. Do fundo d’alma eu só queria ser
dono do coraçãozinho que palpitava no seio da castelã.
Tomamos café na varanda e em seguida miss Jane retomou o fio da historia.
— A elevação do índice eugenico-mental do povo
da America no ano do choque das raças já era notabilissima;
o modo como agiu a Convenção Branca o demonstrou mais uma vez.
Falar em convenção é lembrar a Convenção
Francesa, aquele tumulto utopico que fez retorica ás toneladas e decepou
cabeças aos montões, como se a produção de frases
e a redução de vidas pudesse aumentar o trigo dos celeiros,
causa real de todos os males da França.
A Convenção Branca de 2228 nem por sombras lembraria o redemoinho
alto-falante de 1789.
Já na composição desse corpo representativo nada se
fez como outrora. Os convencionais não penetraram nele pela força
dos azares eleitorais e sim por um processo novo de delegação.
Todos os ramos da atividade americana tinham á sua testa, naturalmente
levados a esse posto pelo grau de eficiencia mental demonstrado, homens que
mereceriam o nome de chefes naturais, ou lideres natos. Como hoje é
Henry Ford o lider nato da industria americana em virtude da higidez universalmente
reconhecida das suas ideias e realizações, assim naquele tempo
cada ramo de atividade possuia um lider natural, mantido nessa situação
por consenso unanime. Funcionavam tais chefes naturais como orgãos
especialissimos, apices, vertices, cimos, estações centrais,
bulbos raquideanos da classe. Ninguem lhes discutia as ideias de decisões,
sumulas sempre da mais alta sabedoria possível no momento — e
o chefe cujas ideias passavam a ser discutidas via-se logo automaticamente
apeado dessa posição.
De modo que foi facílimo convocar a Convenção Branca.
Alem de já estarem naturalmente indicados, os convencionais se resumiam
em seis criaturas, respetivamente lideres da industria, do comercio, das finanças,
da arte, das ciencias e das letras. Eram eles os senhores George Abbot, morador
em Detroit e chefe da industria das bonecas falantes, o supremo encanto das
crianças americanas; John Perkins, morador em Hudson, onde mantinha
um pequeno comercio de peles de lontra branca; Harmsworth, diretor do Banco
Universal; John Leland, criador da Puericultura Estetica; John Dudley, pai
da côr numero 8 e autor de 72 invenções; e finalmente
Dorian Davis, poeta de um soneto unico sobre o qual se achava a America dividida
em dois imensos grupos — os que tinham como defeituoso o quarto verso
e os que o tinham como uma forma de beleza só perceptível no
futuro.
O Presidente Kerlog não encontrou dificuldades em reunir a Convenção.
Radiou uma sucinta mensagem na qual pedia a cada uma das classes sociais a
indicação do seu representante para o exame do impasse criado
pela vitoria dos negros. Uma hora depois o aparelho receptor do Capitolio
registrava os seis nomes previstos, só não havendo unanimidade
quanto á indicação do representante das letras.
Os que consideravam defeituoso o quarto verso do soneto de Davis preferiram
votar em branco.
Dois dias mais tarde congregavam-se na Casa Branca os seis expoentes supremos
da raça, sob a presidencia do senhor Kerlog.
Solenidade de protocolo, nenhuma. Eram homens simples no trajar e nos modos,
criaturas nada relembrativas dos figurões que se reunem hoje em conferencias
internacionais, vestidos de soleníssimas sobrecasacas e com solenerrimos
tubos de chaminé reluzentes nas cabeças, como se a plumagem
dos perus influísse alguma coisa nas ideias dos perus.
Sentaram-se os seis expoentes e ouviram a breve exposição
de motivos do chefe do estado. Declarou este que ocupava apenas um posto politico
e se via numa emergencia racial. Nada fizera, nem faria, antes que a suprema
delegação da raça definisse com rigor o caso e lhe estabelecesse
um rumo. Como governo, executaria em seguida o veredictum altíssimo.
Pedia, pois, aos presentes que lhe dessem as "razões da raça".
Os convencionais ouviram-no com amavel atenção e passaram
a conversar de outros assuntos, como se estivessem num garden-party.
— "A minha ultima boneca", disse George Abbot, "alem
de falar, cose, varre e lava roupa", na perfeição. Tenho
uma netinha de seis anos que está positivamente encantada.. .
Ao lado dele Harmsworth confessava que ainda não lera o soneto maravilhoso.
— "Falta de tempo?" indagou Davis.
— "Não. Ha em minha casa uma harmonia perfeita sobre o
asunto e receio perturba-la adotando um ponto de vista discordante…"
Já Leland debatia com Dudley a possibilidade da côr numero 9
e propunha um lindo nome para essa possível filha futura do espetro
solar.
Á encasacada e encartolada gente de hoje parecerá estranho
que homens de tal envergadura e em momento tão angustioso, assim puerilmente
se recreassem num congresso presidido pelo chefe da nação. É
que os nossos medalhões, envenenados pela retorica e pelo atitudismo
não alcançam certas formas da ultra beleza, nem compreendem
certos segredos de ultra psicologia.
Justamente porque era gravíssima a decisão que iam tomar,
e na realidade decisiva para os destinos do genero humano, procuravam manter
a serenidade de espirito com repousantes trocas de ideias gentis, enquanto
nas profundas dos respectivos cerebros a sentença suprema se elaborava.
Passados quinze minutos nesta recreação espiritual, John Leland
ergueu-se e disse com grande calma, depois de grafar num papel meia duzia
de sinais: — "Senhor Presidente, minha ideia está formada
e eu a consigno nesta moção, que tenho a honra de submeter a
votos. Vou le-la".
Fez-se no recinto um augusto silencio. Se ainda houvesse moscas no ano 2228
poder-se-ia ouvir alguma voar na sala. Todos sentiam que a Raça Branca
ia falar a palavra ultima, a palavra de sentença do mais alto tribunal
que ainda se reuniu no mundo.
Leu Leland a sua moção, sucinta e nitida como era de esperar.
Sua voz soou como um dobre a finados. Apesar da firmeza de animo dos convencionais,
sentia–se que estavam todos de alma tensa como corda de violino em ponto
de romper-se. Fugira-lhes das faces o sangue; até o senhor Kerlog,
sempre rosado, parecia um vulto de cera.
Quando o ultimo eco da moção Leland morreu naquele ambiente
de tumba, todas as cabeças se inclinaram para o peito e todos os olhos
se fecharam. A Raça Branca elaborava o seu voto decisivo…
Alguns minutos transcorreram assim. Ao cabo o Presidente Kerlog murmurou:
— "Está a votos a moção Leland".
O primeiro que se ergueu foi Dudley.
— "Voto com Leland", disse ele e sentou-se. Ergueu-se em
seguida Harmsworth e disse: — "Voto com Leland".
O terceiro foi Abbot, que murmurou sem levantar-se da cadeira: — "Idem".
Os outros limitaram-se a dar igual voto com uma simples indicação
de cabeça.
Estava lavrada a sentença de ponto final do negro na America? Sem
verborreia, sem inutil dispendio de retorica, sem citação dos
gros bonnets da etnologia e da sociologia, a Suprema Convenção
da Raça Branca traçara o diagnostico e dera o remedio exato.
O Presidente Kerlog pronunciou mais meia duzia de palavras e… pronto!
concluiu miss Jane.
Confesso que fiquei desapontando. Quando miss Jane abordou aquele assunto
preparei-me para ouvir coisas tremendas. Uma Convenção! A Convenção
da Raça Branca! Nunca no mundo se reunira congresso mais alto e proposto
a fins mais terríveis. Esperei portanto qualquer coisa de tão
eloquente como um jacto de seis Mirabeaus, multiplicados por seis Dantons.
Em vez disso, um homem que apresenta uma breve moção e mais
cinco sujeitos ultra pacíficos que a aprovam friamente — alguns
até com a cabeça, sem se erguerem das suas poltronas. Era demais!
— Só isso, miss Jane? exclamei com cara de espectador roubado.
— Só, respondeu ela, muito divertida com o meu logro. Que mais
queria? Mính’alma de latino espalhafatoso não se conformava
com a falta de espalhafato.
— Eu queria uma tempestade com raios e trovões. Queria um Jeová
tonitroando na sarça ardente. Ou, pelo menos, eloquencia, que diabo!
— Haverá maior eloquencia do que a da precisão absoluta?
Não me convenci. Não ia comigo tanta frieza. Meu sangue quente
pedia barulho, berros, murros na mesa, desaforos… Resignei-me, porém,
e minha curiosidade tomou pé.
— Mas, afinal de contas, que é que dizia a moção
Leland? indaguei.
— Ignoro, respondeu miss Jane. Foi secreta. Só o Presidente,
os seis convencionais e depois os tecnicos do estado tiveram conhecimento
dos seus termos.
Miss Jane sorria. Ocultava-me qualquer coisa, com certeza para me surpreender
no fim. Não insisti e, resignado, disse-lhe: — Continue, miss
Jane…
Miss Jane continuou.
CAPÍTULO XXI – Uma Dor de Cabeça Historica
— Quando os convencionais deixaram a Casa Branca o último a
despedir-se foi o senhor John Dudley, pai da côr numero 8 e autor das
72 invenções.
Era esse Dudley um velhinho de olhar muito vivo e alegre, cuja inteligencia
tinha fama de ser a mais pronta da America, a mais facetada e contornante.
Apreendia tudo instantaneamente, sob todos os aspectos possíveis.
Ao apertar a mão do Presidente Kerlog, disse ele com ar enigmatico:
— "Faço votos para que o senhor Presidente descubra a solução
pratica com a mesma facilidade com que o senhor Leland descobriu a solução
teorica. Isso lhe trará, talvez, uma certa dorzinha de cabeça.
Se por acaso se agravar essa dor de cabeça e não ceder a nenhum
sedativo, lembre-se deste seu criado e chame-o.
Quero ter a honra de curar uma dor de cabeça historica…
Disse e saiu a sorrir. Kerlog ficou uns instantes a meditar naquelas palavras
enigmaticas, que traziam evidentemente uma intenção oculta.
O homem das setenta e duas invenções nada dizia ás tontas.
— "Será que John Dudley possue de sua invenção
alguma famosa super-aspirina?" pensou consigo o chefe de estado. Mas
o tumulto das preocupações governamentais fe-lo em breve esquecer-se
do incidente.
A semana que se seguiu á Convenção foi o peor momento
de vida que ainda passou um presidente americano. O ministerio vivia em reuniões
continuas, e era de fuga que aqueles homens tomavam algum repouso. A tarefa
de manter o país em calma, de evitar a explosão das duas masas
prenhes de eletricidades contrarias e suscetiveis de explosão ao menor
choque, agravava-se com a premencia de solver o caso dentro da formula votada
pelos convencionais. Mas entre propor com toda a frieza uma solução
daquelas e descobrir os meios de possibiliza-la, ia um abismo.
O ministro da Paz chegou a irritar-se.
— "São facílimas as soluções dessa
ordem", disse ele. "Creio até que se em vez de seis velhos
lideres reunissemos aqui seis crianças de escola, o resultado seria
o mesmo. É absolutamente impraticavel a formula Leland." O Presidente
Kerlog possuía um carater mais obstinado do que o do seu ministro.
Assim foi que objetou: — "Costumamos chamar impraticavel ao que
não praticamos ainda. Lembre-se de Colombo com o ovo…" —
"Perfeitamente", contraveio o ministro, "mas já se passou
uma semana e não nos ocorre saída. Estou cansado de examinar
as sugestões dos nossos tecnicos, todas absurdas, porque em grau maior
ou menor implicam o emprego da força, o que seria desencadear a tormenta.
As sugestões de hoje — sete! — parecem-me tão idiotas
como as anteriores.
Na realidade assim era. Debaixo do mais absoluto segredo cerca de cinquenta
tecnicos do estado, dos mais habeis que se puderam reunir, davam aos miolos
as maiores torturas para afastar do remedio proposto por Leland o termo coação.
Os ministros já manifestavam sintomas de surmenage. Horas e horas
perdiam a debater o caso, e nem no sono tinham repouso; o trabalho mental
subconsciente os torturava de pesadelos.
No oitavo dia o Presidente apareceu na sala de trabalho a cheirar um frasco
de sais. Era a dorzinha de cabeça prevista por John Dudley. No decimo
dia essa dor agravou-se de modo a inspirar receio aos ministros. Felizmente
a memoria do senhor Kerlog funcionou a tempo e fe-lo recordar-se das palavras
do convencional Dudley ao despedir-se.
— "A dor de cabeça mata-me", radiou ele para o homem
das 72 invenções. "Acuda-me com o remedio, caro Dudley!"
Naquele mesmo dia, á noite, reapareceu John Dudley na Casa Branca,
sendo logo introduzido nos aposentos particulares do Presidente.
— "Benvindo seja!" disse este com a mão na testa.
"A cabeça estala-me e a dor não cede a sedativo nenhum.
Acuda-me com a sua ultra-aspirina." John Dudley sorriu com malicia.
— "Ouça-me", disse ele, "ouça-me com
atenção que sarará dentro de cinco minutos. O seu mal
cura-se com um topico que só eu possuo." E Dudley começou
a falar. Ao cabo do segundo minuto, o Presidente Kerlog tirava a mão
da testa. Ao fim do terceiro sorria. Ao quinto, saltava da poltrona e vinha
apertar nos braços o terrível velhinho.
— "Maravilhoso!… Mas então é assim absoluto o
efeito?" — "Fiz todas as experiencias e tirei todas as contra
provas," respondeu Dudley. "O efeito é absoluto!" —
"Sem dor, sem lesão, sem que o paciente sequer o suspeite?"
— "Exatamente!" Kerlog sorria, com o olhar distante. O problema
que em vão a política tentara solver, a ciencia resolvia por
um processo magico.
— "Efeito duplo, então?" insistiu o Presidente.
— "Triplo, aliás", retrucou o malicioso sabio.
O presidente fez cara de surpresa.
— "Sim, pois cura tambem as dores de cabeça historicas…"
Kerlog sorriu e novamente abraçou o homem das 73 invenções,
— Miss Jane, disse eu interrompendo: está a senhora a judiar
comigo! Macacos me lambam se percebo qualquer coisa…
— Uma pontinha de mistério é indispensavel no tempero
dos romances, respondeu a linda criatura. O senhor Ayrton vai ser romancista;
deve pois ir aprendendo o sutil segredo da dosagem dos ingredientes…
Miss Jane estava a brincar comigo, não havia duvida. Punha fogo ao
estopim de minha curiosidade e deixava-o a arder…
No dia seguinte, continuou ela, reapareceu na Casa Branca o senhor John
Dudley, desta vez sobraçando um esquisito embrulho — um embrulho
fôfo, como se contivesse cabelos humanos.
Entrou e passou uma boa hora em conferencia com o Presidente e mais os seus
ministros.
O que lá houve ninguem conseguiu saber. Só se soube que, finda
a reunião, ao descerem a escadaria, disse o ministro da Paz ao da Equidade:
— "O eterno ovo de Colombo! Bem dizia o Presidente que era necessario
teimar…" — "E que lindos ficam os cabelos!" comentou
o da Equidade.
"Não só se alisam, como afinam e se tornam sedosos. O
peixe morrerá pela carapinha, não ha que ver…" —
Miss Jane… comecei eu, interrompendo-a nesse ponto.
A moça, porém, tapou-me a boca e deu o sinal do chá.
Fiz a cara de compunção com que sempre recebia o tal ponto
e vírgula. Mas errei.
— Não faça esse bico de criança, disse miss Jane
com a sua finura habitual. O chá é apenas virgula. O senhor
Ayrton está convidado a jantar aqui.
Meu coração deu cabriolas dentro do peito, e arrastado por
um impulso incoercível tomei… a mão da minha amiga e beijei-a.
A mão! Apenas a mão! Timidez — teu nome era Ayrton Lobo!…
— Mas o enigma dos cabelos, miss Jane? Decifre-mo logo, que estou
a arder de curiosidade, pedi-lhe logo depois do chá.
— Uma historia muito simples, senhor Ayrton. John Dudley dedicava-se,
havia longo tempo, ao estudo do cabelo negro, esperançado em descobrir
o meio de alisa-lo e torna-lo sedoso e absolutamente igual ao da raça
branca — e muito se falou na America, alguns anos antes, nos admiraveis
resultados das suas experiencias. Até 2228, porém, o sabio não
havia tornado publica essa invenção, que seria a 73.a. E ninguem
mais pensava no caso quando, dois dias depois da sua conferencia particular
com o Presidente Kerlog, esvoaçou pelos Estados Unidos uma noticia
de sensação: John Dudley havia enfim resolvido o difícil
problema capilar.
Os raios Omega, de sua descoberta, tinham a propriedade miraculosa de modificar
o cabelo africano. Com tres aplicações apenas o mais rebelde
pixaim tornava-se não só liso, como ainda fino e sedoso como
o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influíam no
foliculo e destruíam nele a tendencia de dar forma elíptica
ao filamento capilar. Vencido este pendor para a forma elíptica, cessava
o encarapinhamento, que não passa de mera consequencia mecanica.
Como é de supor, imensa foi a repercussão da noticia. Cem
milhões de criaturas reviravam para o ceu os olhos agradecidos. Os
negros chegaram a tomar-se de puro extase, convictos de que das Alturas descera
a pugnar por eles alguma alta divindade, como outrora os bons deuses do Olimpo.
Mal repostos ainda da emoção consequente á vitoria de
Jim Roy, outra os empolgava agora — e esta mais fecunda, pois redundaria
num aperfeiçoamento físico da raça.
Já o pigmento fôra destruido e, embora o esbranquiçado
da pele não se revelasse côr agradavel á vista, tinham
esperança de obter com o tempo a perfeita equiparação
cutanea. Vir agora, e assim de chofre, o resto, o cabelo liso e sedoso, a
supressão do teimoso estigma de Cam, era, não havia duvida,
sinal de um fim de estagio. Reduzidas desse modo as duas características
estigmatizantes da raça, o tipo africano melhorava a ponto de em numerosos
casos provocar confusão com o ariano. Entre a miss naturalmente branca
e loura e a negra despigmentada e omegada pelo processo Dudley, era quasi
nula a diferença.
— Mas a côr dos cabelos? perguntei eu, sempre curioso de minucias.
— Côr de cabelo bem sabe o senhor Ayrton que não é
coisa que dependa da natureza e sim da moda. Hoje, por exemplo, é moda
o louro, e nas ruas só vemos louras — louras que amanhã
aparecerão de cabelos negros como asas de corvo, se assim o determinar
a moda.
Logo em seguida á noticia, estupefaciente como pitada de cocaína,
incorporou-se a Dudley Uncurling Company, que estabeleceu em todas as cidades,
e nestas em todos os bairros, Postos Desencarapinhantes, como hoje vemos surgir
Postos de Vacinação nos anos em que irrompe a varíola.
Esses postos multiplicaram-se ao infinito e de um modo magico, como se uma
força oculta empurrasse a Dudley Uncurling Company ao desencarapinhamento
da America negra ao menor espaço de tempo possível.
Era dos mais simples o processo. Tres aplicações apenas, de
tres minutos cada uma. Tais facilidades juntas ao custo mínimo —
dez centavos por cabeça — fizeram que os negros acorressem aos
postos como cães famintos a bofes fumegantes. A vida americana chegou
a sofrer um colapso. Só se falava em raio Omega, em foliculo, em seção
elipsiforme e mais capilotecnicas. A principio irritaram-se os brancos com
o que chamavam a segunda camouflage do negro, por fim passaram a divertir-se
com o espetáculo deveras curioso da subita transformação
capilar de cem milhões de criaturas. As fabricas de pentes, grampos,
loções, shampoos, brilhantinas, tinturas, etc, trabalhavam dia
e noite sem conseguirem atender á subitanea procura de tais produtos.
Cabelereiros novos surgiam em todos os cantos e por mais que trabalhassem
não davam conta do recado. As negras, sobretudo, viviam num perpetuo
sorrir-se a si proprias, metidas dentro de um céu aberto. Passavam
os dias ao espelho, muito derretidas, penteando-se e despenteando-se gozosamente.
O seu envelo ao correrem as mãos pelas macias comas omegadas levava-as
a esquecer o longuíssimo passado da humilhante carapinha. Brancas,
afinal! Libertas afinal do odioso estigma! Neste ponto da narrativa um raio
de luz chofrou-me o cerebro.
— Adivinho tudo agora, miss Jane! gritei batendo na testa.
Adivinho a verdadeira solução do problema negro na America!
Nem expatriação, nem divisão do país. Apenas branqueamento
do negro, igualificação com o branco! decifrei eu, contentíssimo
com a minha tacada.
Mas vi logo que errara de novo. No sorriso com que ela esfriou o meu entusiasmo
percebi uma pontinha de piedade pela minha argucia — pela minha pobre
argucia… Mas era tão boa miss Jane que não teve animo de humilhar-me,
como devia. Disse apenas, delicadamente: — Quasi, quasi adivinhou! Está
pertinho…
Como um caramujo cutucado, encolhi-me na poltrona donde me erguera no assomo
de ardor divinatorio, e para disfarçar a rata estranhei aquele desvio
do assunto principal: — Mas a que vem esse incidente dos raios Omega
no nosso romance, miss Jane? A moça respondeu de lado: — Joga
xadrez, senhor Ayrton? Eu só jogava no bicho, mas menti, corando de
leve: — Assim, assim.
Pois nesse caso deve saber que nas partidas bem jogadas um humilde movimento
de peão tem tanta importancia para o xeque-mate como um espetaculoso
movimento de rainha. Considere este capitulo capilar um movimento de peão
e ouça agora o que vou dizer de miss Astor.
— Movimento de rainha… rosnei.
Miss Jane aprovou com um olhar a minha agudeza.
— E de rainha amorosa!completou.
— Amor em 2228? Ainda haverá semelhante coisa em tempo tão
recuado? — O amor é eterno, senhor Ayrton e além de eterno
invariavel.
O que Dafnis sussurrou ao ouvido de Cloé lá nos fundos da
Grecia de Longus, sussurraria miss Elvin a um "gorila pelado" de
2228, se porventura descresse do sabino e aderisse ao Homo, como suas companheiras
o fizeram.
Pus em miss Jane os meus olhos de carneiro flechado e suspirei. Seria capaz
de "sussurrar" ao meu ouvido uma criatura que assim tão cientificamente
falava do amor?
CAPITULO XXII – Amor! Amor!
Miss Jane continuou: — Depois de sua espaventosa adesão ao Homo,
a líder do partido feminino caiu em si. Percebeu que o desvairamento
no dia da vitoria negra lhe quebrara a soberba linha das belas atitudes e
a transformara numa perfeita louca á moda das velhas sufragistas britanicas.
E envergonhou-se. Que pensaria dela o Presidente Kerlog? Como teria o lider
branco, lá no intimo, recebido aquele arroubo de sinceridade explosiva?
Miss Astor amava a Kerlog. A nobre figura do Presidente, sua firmeza no governo,
sua agilidade de espirito e sua serenidade de força construtiva, seduziam-na
de modo incoercível. E talvez até que no fundo toda a atuação
política de miss Astor não visasse outro fim além de
aproxima-la do lider branco, por emparelhamento num mesmo nivel de prestigio
social.
— Por que então contrapos-se a ele nas eleições?
perguntei sapatescamente.
— Porque a linha reta da mulher é sempre torta. Elvinismo,
senhor Ayrton!… Matematica, ciencia elvinista! Dois mais dois igual…
ao que convem. Mas miss Astor errava, se acaso se supunha diminuída
na opinião de Kerlog. O presidente era Homo e, apesar de todos os progressos
da eugenia, um Homo tão sensível ao contacto feminino como…
como o senhor Ayrton, por exemplo.
Corei forte. Momentos antes havia eu, sem o querer, está visto, tocado
com o meu pé o mimoso pé de miss Jane, e não pude esconder
a corrente eletrica que me percorreu o corpo. Seria que miss Jane, sempre
tão desentendida, aludia a esse fato? Estava a minha amiga um tanto
diferente naquela tarde. Menos impassível que de costume e assim como
quem quer e não quer, como quem vai e não vai, como quem diz
e não diz. Apesar de toda a minha pouca penetração feminina
eu sentia isso, adivinhando nela os primeiros estremecimentos da mulher.
— E já que era assim sensível, continuou a jovem, o
amplexo que no momento do perigo pôs miss Astor em contacto com Kerlog
calou fundo nas celulas presidenciais e impregnou-as disso que os homens chamam
desejo.
Tive vontade de perguntar a miss Jane como as mulheres chamavam isso que
os homens chamam desejo — mas me faltou a coragem.
— E daí por diante, sempre que a razão do senhor Kerlog
se punha a pesar os prós e contras relativos a miss Astor intervinham
as celulas abraçadas, colocando na concha dos prós a tara da
saudade — e lá se ia a frieza da razão do senhor Kerlog.
Pobre razão humana.
Pobre hoje, pobre em 2228!. . . E tanto era assim, que logo depois da invasão
da sala pelas elvinistas arrependidas o senhor Kerlog comentou o fato nestes
termos, dirigindo-se ao ministro da Equidade: — "Miss Astor sempre
se apresentou diante de mim envolvida em atitudes, belas, não resta
duvida, porque ha sempre beleza em todos os seus movimentos — mas atitudes
que me chocavam como falsas.
Nem uma só vez a vi ao natural. Foi preciso que o desastre sobre
viesse e o terror se apossasse de sua alma para que eu a conhecesse como sempre
desejei conhece-la: mulher." E lá consigo recordava a doçura
do seu abraço.
Esse abraço ficou. Os dias se foram passando. Veio a Convenção
Branca. Veio a dor de cabeça. Veio o omeguismo. Nada apagava das celulas
cervicais do senhor Kerlog a impressão do doce contacto.
Certa vez, reunido o ministerio, os ministros perceberam que o Presidente
olhava muito amiude para o relogio. O assunto em debate era o progresso do
desencarapinhamento dos negros, materia de especial atenção
para o chefe do estado. Especial e demorada — menos naquele dia. Naquele
dia o Presidente atropelava os seus auxiliares como que desejoso de encerrar
mais cedo a reunião.
As informações estatísticas apresentadas pela Dudley
Uncurling Company deviam ser bastante favoraveis, a avaliar-se pelo sorriso
com que o lider branco as recebera.
— "Estamos no fim," disse ele. A ciencia resolveu de fato
o grave problema etnico — e que magistral solução! Em
vez de expatriar o negro ou dividir o país…
— "Desencarapinha-lo!" completou, piscando o olho, o ministro
da Seleção.
Todos se entreolharam com certo ar de velhacaria. O da Equidade disse: —
"O binomio racial passa a monomio. Só o ariano é grande
e Dudley é o seu profeta." Eu cocei a cabeça num gesto
muito lá do escritorio.
— Mas, então, miss Jane, a solução é mesmo
a que eu adivinhei — a igualificação das raças!…
Miss Jane tossiu uma tossezinha de encomenda e desconversou: — O neologismo
está bom, senhor Ayrton. Por mais rica que seja uma lingua, a expressão
humana tem sempre necessidade de palavras novas. "Igualificação"
— muito bem! Encolhi-me no fundo da minha poltrona.
— Mas, continuou ela, o relogio do senhor Kerlog, consultado pela
decima vez, marcava tres horas. O Presidente ergueu-se e deu por finda a reunião.
Os ministros sairam. Na escada disse o da Paz ao da Equidade: — "Notou
a impaciencia de Kerlog?" — "Notei sim. Estava inquieto…"
— "Cherchez…" — "Não é necessario.
Se ninguem resiste á ação catalitica de miss Evelyn,
quem lhe resistirá ao contacto?" Riram-se, e lá se foram
cada qual para o seu lado.
Não erraram os dois ministros. Logo depois miss Evelyn Astor parava
em frente da Casa Branca e agil como as deusas — ou as amorosas —
subia as escadas.
Foi introduzida incontinenti.
— "Benvinha seja a minha formosa rival", disse com o mais
amavel dos seus sorrisos o Presidente flecha do.
— "Ex, aliás, Presidente Kerlog!" respondeu a encantadora
Circe com um sorriso que era outra flecha.
— "Abandona então a política? Não insiste
na sua candidatura?" — "Abandono. Perdi a confiança
nos meus nervos. Além disso, mudei de ideia a respeito de um homem…"
— "Fazia mau juizo dele?" — "Mau não. Erroneo,
apenas. Vejo hoje que esse homem está no seu lugar." — "Obrigado,
miss Astor", exclamou o Presidente. "Recebo a sua alta homenagem
como ao premio dos premios." — "Pague-me então com
outra. Líder que ainda sou de um partido, creio merecer a confiança
do lider branco. Não é justo que eu conheça o pensamento
intimo do governo relativo á questão negra?" O Presidente
Kerlog sorriu com afetada diplomacia.
— "Segredos de estado, miss Astor!…" — "E já
houve algum segredo de estado que não fosse conhecido das… mulheres
de estado?" retrucou a ex-sabina com vivacidade.
Kerlog, bom esgrimista, tinha fama de pronto nas replicas.
— "As rainhas, as favoritas de outrora, eram de fato cofres,
lindos cofres de segredos. Hoje, porém, que não ha mais rainhas
nem favoritas, só podem conhecer os segredos de estado as…"
Parou. Embebeu os olhos nos de miss Astor. Viu neles o que procurava e concluiu
numa gentil mesura: — "… as Presidentas!" Miss Astor fez
ar de desapontada e armou bico de criança a quem negam doce.
— "Quer dizer que só conhecerei tal segredo quando for
eleita Presidenta…" Os olhos de ambos encontraram-se de novo e meteram-se
pelas respectivas almas a dentro. Liam-se os dois amorosos como em livros
abertos.
— "Crê então, miss Astor, que só as eleições
fazem Presidentas?" Nova cara de desentendida, novo bico de criança.
A coitadinha não percebia coisa nenhuma e foi mister que o lider branco
dissesse tudo: — "Esposa do Presidente, Presidenta é…"
— Novo olhar… ia dizendo eu.
Miss Jane atalhou-me: — Não. Desta vez os olhos ficaram em
paz. As mãos de Kerlog é que se estenderam para miss Astor.
As de miss Astor foram-lhes ao encontro. Uniram-se no eterno gesto das mãos
amorosas que se unem — e… o silencio que diz tudo se fez entre aqueles
dois admiraveis tipos de gorilas evoluidos.
A minha amiga parou, a olhar-me muito firme nas mãos, como Kerlog,
mas não tive animo de declarar-me. A sua superioridade amedrontava-me
ainda.
Miss Jane fez uma pausa de alguns segundos — essa pausa de quem espera
e não vê chegar. Por fim disse, como que inconscientemente desapontada:
— Quer que continue ou prefere aqui uma linha de reticencias? Eu não
queria coisa nenhuma. Eu só queria estender as mãos como Kerlog
e embeber meus olhos nos de Jane e ficar assim a vida inteira. Mas os musculos
me traíram miseravelmente. "Qual!" pensei furioso comigo
mesmo. "Quem nasceu para empregado de Sá, Pato & Cia., não
chegará nunca a esposo da filha do professor Benson…" Miss Jane
(pareceu-me) deixou escapar um imperceptível suspiro de despeito e
rematou a historia do duo presidencial com desinteresse evidente.
— O mais o senhor Ayrton imaginará, disse ela. O ano 2228 em
materia de amor não se distinguia dos anteriores. O dialogo de Adão
e Eva é talvez a coisa unica que não sofre grande influencia
da evolução. Ás vezes até involue…
Tocou a campainha.
— Ponha o jantar, disse com certa secura ao criado que apareceu. E
traga uma aspirina.
— Sente alguma coisa? indaguei com timidez.
— Um fio de dor de cabeça apenas, foi a sua breve resposta.
Que jantar frio e desenxabido aquele! Quando me vi fora do castelo, desabafei.
— És um animal de rabo, senhor Ayrton, e bem mereces o desprezo
com que o senhor Sá te trata!…
E furioso dei varios beliscões nos musculos covardes que me falharam
o movimento de mãos talvez mais oportuno da minha vida.
— Asno, asno, asno!… fui-me repetindo pelo caminho todo.
Estupido eter que não age nem quando interferido por uma interferencia
tão clara…
A semana que se seguiu foi a mais desastrosa da minha vida. Na segunda-feira
briguei com varios amigos, atirei com uma xícara de café á
cara dum garçon e cheguei a ir parar na policia.
Terça-feira pela manhã bebi tres garrafas de cerveja e contra
todos os meus habitos fui assim para o escritorio. O senhor Sá olhoume
de esguelha por varias vezes. Por fim, notando a má vontade com que
eu fazia o serviço, piou: — Comeu cobra? Tive ímpetos
de morde-lo. Mas era o patrão e recolhi os dentes.
Sá insistiu: — Comeu cobra, moço? — Não
comi coisa nenhuma. Eu lá como? Quem ama lá come? respondi de
mau modo.
— Hum! fez ele. Percebo agora. De ha muito venho notando que já
não me é o mesmo. Não me dá atenção
ao serviço, atropela-me tudo. O Pato me disse ontem…
Estourei a boiada.
— Importa-me lá o Pato! O Pato lá diz ontem! Patão
choco é o que ele é! Patíbulo… Patíbulo de fraque!…
O assombro do senhor Sá chegou ao auge. Um empregado tratar assim
ao comendador Manoel Pereira Pato, socio da firma, dono de cinco mil apolices,
irmão do Santíssimo Sacramento, provedor da Santa Casa. .. E
tamanho foi o seu assombro que o pobre homem engasgou Continuei no meu estouro:
— Estou farto sabe? Isto por cá não passa de uma burrada.
Mas a Lei Owen rompe aí qualquer dia e quero ver! E a lei espartana
tambem! E outras leis terríveis, leis de dar cabo do canastro, entende?
Seletivas! O senhor Sá continuava mudo, de boca aberta, num estarrecimento
de assustar um homem com menos cerveja no estomago.
Olhei para ele firme e senti uma impressão comica. Disparei na gargalhada.
— Parece o Presidente Kerlog quando soube da vitoria do Jim! Ah! Ah!
Ah!… Não sabe quem é Jim? Sabe nada… Era um lider! O lider
negro. Negro descascado. Despigmentado, entende? Omegado! Um bicho! Um…
Não pude continuar. Senti revolução no estomago e ignominiosamente
destripei um "mico" de marcar epoca no austero escritorio dos senhores
Sá, Pato & Cia.
Não me lembro de mais nada, a não ser que fui posto no olho
da rua violentamente.
Amor! Amor! Amor!
CAPITULO XXIII – A Derrocada de um Titã
Mas sarei, e o que me curou foi um filme que andava a empolgar as multidões
— A Fera do Mar, por John Barrymore. Havia nele um beijo como nunca
no mundo se dera outro igual. Um beijo shakespeariano, um beijo força-da-natureza.
Eu como de habito assistia á fita pensando em miss Jane e ligando
todas as cenas ao meu amor. No momento do beijo vi-me a beija-la e tal foi
o meu ímpeto que cravei as unhas numa coisa gorda que pousara no braço
da minha poltrona.
— Sêo bruto! berrou uma voz.
Olhei. Uma velha matrona de bigodes e verruga no nariz fulminava-me com
os olhos.
Ergui-me numa tontura e saí. O ar frio da noite serenou-me.
Errei longo tempo pelas ruas desertas, até que em certo ponto me
pilhei a monologar em voz alta: — Mas não me escapa! Agarro-a
e dou-lhe o beijo de John Barrymore! Quero ver onde vai parar aquela impassibilidade
de puro espirito. "Interfiro-a" e quero ver…
Quarta, quinta, sexta, sabado… Uf! como custou a chegar o domingo! Miss
Jane recebeu-me com a serenidade antiga, curada já da sua momentanea
fraqueza.
— Um pouco palido, senhor Ayrton! Esteve doente? — Um fiozinho
de nervoso, miss Jane, mas já passou.
— Aborrecimentos lá na firma com certeza…
— Talvez, miss Jane. Está-me envenenando este negocio de viver
os domingos no ano 2228. Não suporto mais a burrice, a cegueira, a
suficiencia destes "sapatões" que atravancam o mundo com
os seus horríveis fraques internos e externos.
Miss Jane consolou-me.
— Paciencia, senhor Ayrton. A vida é cheia de maus pedaços
— mas ha bons pedaços para os que sabem esperar…
Passei a lingua pelos beiços, já agitado.
— Jim Roy por exemplo… continuou ela.
— Ah, sim, o negro… gemi com displicencia, como quem se recorda
de uma coisa muito distante. Naquele momento eu estava muito longe de Jim
Roy.
Miss Jane, porém, conseguiu recolocar-me no ano 2228.
— Jim Roy, por exemplo, ia ter o seu bom pedaço. Embora não
compreendesse a calma dos brancos e ainda tivesse a tinir na cabeça
as crueis palavras de Kerlog ditas naquele encontro, passou a aceitar como
fato consumado o seu triunfo. O perigo passara. O perigo era o choque das
duas raças, uma embriagada com a vitoria, outra ofendida no seu orgulho.
Para isso contribuiu não só o vigor de Kerlog como tambem o
oportunismo da 73.ª invenção de John Dudley. Que maravilhoso
derivativo! A furia desencarapinhante dos negros fe-los se esquecerem completamente
da política. Datava de tres meses a entrada em cena dos abençoados
raios Omega, e pelas estatísticas oficiais 97% da população
negra estava já omegada. Mais uma semana, e os ultimos postos se fechariam
por falta de carapinha a alisar. Que magnifico dividendo iria distribuir a
Dudley Uncurling Company! Até Jim se omegara e o seu aspecto impressionava
agora mais do que nunca. Tornara-se um admiravel tipo de branco artificial,
diverso dos brancos nativos, apenas pela grossura dos labios, saliencia zigomatica
e chateza do nariz.
Jim entretanto não se sentia o mesmo. Diminuirá o seu vigor.
Aqueles impulsos ferozes, a violencia selvagem que tantas vezes deflagrava
em sua alma forçando-o a impor-se a mascara do self-control, estavam
morrendo nele. Já não era com ardor belicoso que, derramando
o olhar da imaginação sobre o rebanho dos cem milhões
de negros, sentia em si a possança de um novo Moisés. Cansaço,
talvez, No ardor da luta os musculos operam prodígios de resistencia.
O abatimento só vem depois da vitoria. Jim sentia o abatimento da vitoria
depois de haver gozado até á exasperação o delírio
do triunfo.
Ia realizar um ideal. O problema negro da America teria com ele no governo
a unica solução justa.
— "A America ê nossa" monologava. "O branco não
quer vida em comum? Dividamo-la. Jim dividirá a America!" Avaliava
muito bem os obstaculos tremendos que haviam de embaraçar a sua ação.
Mas com pulso forte saberia quebrar todas as resistencias. E que gloria para
a raça negra caber a ela o gesto decisivo na eterna questão!
E que vitoria o ve-la atestar ao mundo uma capacidade evolutiva e de realizações
igual á do branco! Moço ainda que era, havia de dar-se inteiro
á nova republica negra e encaminha-la aos mais gloriosos destinos.
E Jim sonhava o maior sonho que ainda se sonhou no continente.
Na vespera do dia da posse estava ele á noite em sua residencia particular,
solitario como sempre e imerso como sempre no seu grande sonho, quando alguem
bateu.
O lider negro despertou e franziu a testa. Não esperava ninguem,
não marcara encontro com pessoa alguma…
— "Está ai um homem branco natural", veio dizer-lhe
um criado.
— "Que entre", respondeu Jim, ainda com as rugas do "quem
será?" na testa.
Breve pausa. Subito, a porta do gabinete abre-se e…
— "O Presidente Kerlog!…" exclamou Jim, surpreso da inesperada
visita.
O lider branco, palido como no dia da Convenção, entrou.
Aproximou-se vagarosamente do lider negro e pos-lhe a mão sobre o
ombro num gesto de piedade comovida.
— "Sim, o Presidente Kerlog, o branco que vem assassinar-te,
Jim…" Aquelas estranhas palavras desnortearam o lider negro, cujos
sobrolhos se franziram interrogativamente. Por mais esforço que fizesse
não penetrava o sentido da estranha saudação. Mas sorriu
e disse: — "A raça branca não poderia prestar maior
homenagem á raça negra do que elegendo para carrasco de Jim
Roy tão nobre chefe.
Que arma escolhe para a missão que traz, Presidente Kerlog? Veneno
dos Borgias ou lamina de aço?" O tom faceto de Jim Roy não
desanuviou o ar sinistro do lider branco, antes o fez ainda mais doloroso.
— "Minha linguagem não é figurada, Jim. Venho de
fato assassinar-te, repito".
Jim continuou a sorrir.
— "E eu repito: com o punhal de Brutus ou com o veneno dos Borgias?"
Kerlog encarou-o com infinita piedade e disse: — "Arma peor, Jim.
Trago na boca a palavra que mata…" O sorriso que pairava nos labios
do negro começou a desaparecer.
— "Ninguem admira mais", prosseguiu Kerlog, "ninguem
respeita mais o lider negro do que eu. Ouso até afirmar que dentro
da America branca só eu o justifico e compreendo de maneira absoluta.
Vejo nele um avatar de Lincoln, o sonhador de um sonho imenso de justiça.
O homem que ha em Kerlog rende ao homem que ha em Jim todas as homenagens.
Mas o branco que ha em Kerlog vem friamente assassinar com a palavra que mata
o negro que ha em Jim Roy…" Tonto pelo imprevisto rumo que ia tomando
o duelo, o lider negro nada replicou. Limitou-se a verrumar com os olhos o
seu antagonista como para extorquir–lhe o pensamento oculto. A pausa que
se fez foi lugubre. Mas Jim logo readquiriu a sua habitual firmeza e disse
com ironia dolorosa: — "Não creio que o Presidente Kerlog
possua a palavra que mata.
O peito de Jim tem couraças por dentro. Quatro seculos de martírio
nas torturas fisicas da escravidão e nas torturas morais do pária
enfibram a alma de quem resume cem milhões de irmãos. O peito
de Jim traz couraças de rinoceronte por dentro. Couraças á
prova das palavras que matam…" — "Trazia…" emendou
mansamente o lider louro. O Jim de hoje não é mais o titã
que o Presidente Kerlog recebeu na Casa Branca.
Quando o corisco fulmina a sequoia, a arvore solitaria continua de pé,
porém outra.
O negro pressentiu a verdade daquilo. Recordou-se de que já não
era o mesmo. Mas como Kerlog o adivinhava? Como penetrava assim no seu imo?
Ele não confessara a ninguem a subitanea queda da sua força
vital, e nada a definia melhor do que a imagem do lider branco: arvore siderada
onde a seiva já não circula…
Jim, entretanto, reagiu; retesou-se de todas as suas energias em declínio
e disse com glacial firmeza: — "Não importa, Presidente
Kerlog. A Casa Branca restituirá amanhã a Jim Roy a força
que o cansaço da vitoria lhe roubou." Kerlog pousou a mão
sobre o ombro do lider negro e disse com profunda piedade: — "Não
subirás os degraus da Casa Branca, Jim…" O negro deu um salto
de pantera acuada e explodiu: — "Por que? Acaso conspiram os brancos
contra a Constituição? Querem o crime?" Seu peito arfava.
— "Nada disso", retrucou suavemente Kerlog. "Não
penetrarás na Casa Branca porque lá não cabe Sansão
de cabelos cortados. Tua presidencia seria inutil. Tudo é inutil quando
o futuro já não existe.
O tom misterioso de Kerlog impacientava o negro, que sentia algo de terrível
prestes a revelar-se.
— "Diga tudo, Presidente Kerlog, diga essa palavra que mata!"
gritou ele irritado.
O lider branco deixou cair novas palavras de misterio e tortura, cortantes
como o fio das navalhas.
— "Tua raça foi vítima do que chamarás a
traição do branco e do que chamarei as razões do branco."
O negro esboçou um rictus de odio.
— "Traição!… E é o Presidente Kerlog quem
justifica a traição!…" — "Não justifico,
Jim, consigno-a. Não ha traição quando a senha é
Vencer." Jim sorriu com desprezo.
— "A moral branca…" — "Não ha moral
entre raças, como não ha moral entre povos.
Ha vitoria ou derrota. Tua raça morreu, Jim…" O negro imobilizou-se.
Suas narinas entraram a afiar. Suas feições se decompunham horrorosamente.
— "Tua raça morreu, Jim". — repetiu Kerlog.
"Com a frieza implacavel do Sangue que nada vê acima de si, o branco
pôs um ponto final no negro da America." Jim quedou-se um instante
imovel, como que adivinhando.
— "Os raios Omega!" exclamou afinal num clarão, agarrando
os braços de Kerlog com os dedos crisapdos.
— "Sim", confirmou Kerlog. "Os raios de John Dudley
possuem virtude dupla… Ao mesmo tempo que alisam os cabelos…" Os
olhos de Jim saltaram das orbitas. Seu transtorno de feições
era tamanho que o lider branco vacilou de piedade. A raça cruel, porém,
reagiu nele. E, surda, quasi imperceptível, aflorou em seus labios
a palavra fatal: — "… esterilizam o homem." Nem Shakespeare
descreveria o aspecto do lider negro no momento em que a palavra assassina
lhe despedaçou o coração. Um terremoto d’alma aluiu por
terra o titã. Fe-lo tombar sobre a poltrona, com esgares de idiota,
encolhido como a criança inerme que vê serpente. Breves crispações
de musculos passearam-lhes pelas faces. Dobrou o corpo sobre a secretária.
Imobilizou-se.
O lider branco aproximou-se daquela massa de titã extinto, afagou-lhe
a pobre cabeça omegada e disse com voz rompida de soluços: —
"Perdoa-me, Jim…"
CAPITULO XXIV – Crepusculo
O inesperado desenlace do drama negro da America deixou-me tonto por varios
minutos. Depois que voltei ao normal miss Jane prosseguiu: — No dia
seguinte a essa noite tragica devia realizar-se a posse do 88.° presidente
americano, James Roy Wilde, vulgarmente Jim Roy, negro de raça pura
nascido em Sonora aos 23 de abril de 2188, doutor em ciencias de governo pela
Escola Tecnica de Direção Social, despigmentado em 2201 e omegado
vinte dias depois da vitoria nas urnas.
Lider inconteste da raça negra, para a qual sonhava um destino altissimo,
merecia ainda dos brancos um respeito semelhante ao que na velha Roma o patriciado
conferia aos libertos de excepcional valor. Era Jim um liberto do pigmento.
O choque das raças fôra prevenido, o que valeu por nova vitoria
da eugenia. A sociedade, livre de tarados, viu-se no momento do embate isenta
dos perturbadores ao molde dos retoricos e fanaticos cujas palavras outrora
impeliam as multidões aos peores crimes coletivos. A exasperação
branca do primeiro momento breve desapareceu. O bom senso tomou pé
e o ariano pôde filosofar com a necessaria calma. A opinião corrente
admitia não passar a vitoria negra de um curioso incidente na vida
americana. Oriunda de cisão sexual do grupo ariano, fôra golpeada
de morte no proprio dia das eleições pela adesão das
sabinas ao Homo. O proximo pleito restabeleceria o ritmo quebrado e do incidente
nada restaria no futuro além de um pouco mais de pitoresco na historia
da America — qualquer coisa como na serie dos papas, o pontificado da
papisa Joana.
A serenidade dos brancos reforçava-se ainda na confiança que
todos depositavam em seus lideres reunidos em convenção. Embora
se ignorasse o que os chefes natos haviam decidido no concilio secreto, nem
por sombras ninguem admitia que a ideia lá vencedora não fosse
a mais eficiente e justa do ponto de vista racial.
Do outro lado os negros, passada a crise de entusiasmo do primeiro momento
e dada a fé que lhes merecia Jim Roy, entraram mais a gozar as delicias
do "omeguismo" do que a deslumbrar-se com uma vitoria política
evidentemente precaria. E assim a mais inesperada surpresa da vida americana
não trouxe nenhuma das calamidades publicas que fatalmente acarretaria
no passado — no tempo em que o desprezo da seleção humana
deixava a sociedade encher-se de perigosissimos bubões infecciosos.
Na vespera da posse de Jim, por precaução contra qualquer
violencia, Kerlog, de combinação com Abbot, fez irradiar a noticia
do novo brinquedo inventado por esse encantador das crianças. Tratava-se
de uma nova bonequinha que sabia dansar o tango da moda com perfeição
de maravilhar a gente grande e mergulhar em extases de sonhos a criançada.
A criança tinha na America de 2228 uma importancia capital.
Toda a vida do país girava-lhe em torno, Era a criança, além
do encanto do presente, o futuro plasmavel como a cera. Os maiores genios
da raça se consagravam a estuda-la, para com tão ductil materia
prima irem esculpindo a obra unica que apaixonava o americano — o Amanhã.
E a tal grau chegou a afinação da Puericultura Estetica, a sublime
arte definida por John Leland, que uma imaginativa de hoje, desta epoca em
que o homem, absorvido nos horrores da luta pelo pão, quasi ignora
a existencia da criança, nem de leve pode apreender o que significava
em 2228 a Realeza do Baby. Realeza sim, como foi na velha França a
dos ultimos Luises divinizados. Em vez, porém, de toda a vida da nação
revolutear em roda de um pachá como Luis 14, girava em torno da Aurora
Humana. Sua Majestade Baby era o Luis 14 do seculo.
Em virtude disso é que o governo americano combinou com o senhor
Abbot o lançamento da nova boneca nas vesperas da posse de Jim, como
o melhor meio de prevenir a explosão de qualquer resíduo anti-social
ainda subsistente na alma americana. E foi assim que o dia da posse chegou
sem prenuncios da menor tormenta.
Subito, porém, ás primeiras horas da manhã, o radio
encheu a America de uma nova sensacional: Jim Roy amanhecera morto em seu
gabinete de trabalho! Violentissimo foi o abalo publico, dada a coincidencia
de sobrevir essa morte justamente no dia da posse do Presidente eleito.
Os negros viram nisso um golpe de força dos brancos, e estes ficaram
em suspenso, na duvida se seria um deliberado ato de violencia resolvido pelos
convencionais ou uma das muitas surpresas de que é fertil o acaso.
Chegou a haver por parte dos negros um instintivo movimento de revolta. Implantou-se-lhes
nos cerebros a convicção do crime, e a velha selvageria racial
rajou de sangue os olhos da pantera.
Foi passageiro, entretanto, o assomo. Aquela quebreira vital que Roy havia
percebido em si ganhara tambem toda a massa negra. O fatalismo ancestral sobrepairou
á raiva e o imenso corpo sem cabeça, num recuo de instinto,
repos-se no lugar humilde donde o tirara a vitoria de Roy.
A rã a que o vivisseccionista extrai o cerebro passa a viver uma
vida muscular cujos movimentos são apenas reflexos. Assim a população
negra americana a partir do momento em que a morte de Jim Roy lhe arrancou
o encefalo. Agitava-se ainda, viva — mas perdera o orgão coordenador
de movimentos para fins definidos.
O segredo quanto á ação esterilizadora dos raios Omega
conservava-se absoluto. Além do ministerio, dos tecnicos do estado,
de John Dudley e de miss Astor, já esposa do Presidente Kerlog, ninguem
mais o conhecia. Dos negros um só tivera a sua revelação,
Jim Roy — mas levara-o consigo para o forno crematorio.
Procederam-se a novas eleições e foi reeleito Kerlog por 100
milhões de votos. Normalizou-se a vida da America. Sua Majestade Baby
reentrou no monopolio de toda a atenção, por um instante desviada
pelo choque das raças.
Um fato entretanto fez-se notado. Meses depois do aparecimento dos raios
Omega o indice da natalidade negra caiu de chofre. Março, precisamente
o nono mês a datar da abertura dos primeiros postos desencarapinhantes,
acusa uma queda de 30%. Esta porcentagem subiu ao dobro em abril e chegou
a 97% em maio. Em junho as estatísticas só registravam 122 negrinhos
novos.
Em agosto fechavam-se os postes e a Dudley Uncurling Company distribuía
o seu dividendo.
Tornou-se impossível guardar por mais tempo aquele segredo de estado
— e nem havia razões para isso. O fato caiu no domínio
publico por meio de uma mensagem irradiada pelo Presidente Kerlog, o documento
que até hoje, na vida da humanidade, mais fundo calou na alma do homem.
Dizia essa peça, para sempre memoravel: "O governo americano vem
dar conta ao povo do golpe de força a que foi arrastado em cumprimento
da suprema deliberação dos chefes da raça branca, reunidos
em palacio no dia 7 de maio de 2228. Foi aprovada nessa assembleia a moção
Leland, resumida nestas palavras: "A convenção da raça
branca decide alterar a Lei Owen no sentido de incluir entre as taras que
implicam a esterilização o pigmento negro camuflado… A raça
branca autoriza o governo americano a lançar mãos dos recursos
que julgar convenientes para a execução desta sentença
suprema e inapelavel." Assim autorizado, o governo procurou agir de modo
a evitar perturbações na vida nacional: estava em estudos da
materia quando John Dudley apareceu com a revelação da virtude
dupla dos raios Omega. Adotado esse maravilhoso processo, operou-se a esterilização
dos homens pigmentados pelo unico meio talvez em condições de
não acarretar para o país um desastre. O problema negro da America
está pois resolvido da melhor forma para a raça superior, detentora
do cetro supremo da realeza humana".
Nem a noticia da vitoria eleitoral de Roy, nem a revelação
dos raios Omega, nem a nova da morte do negro causaram tão profunda
impressão como a fria mensagem do presidente reeleito.
Brancos e pretos a receberam com igual asombro — seguido logo de uma
sensação de alivio por parte dos primeiros e de uma sensação
nova na terra por parte dos segundos.
Pela primeira vez na vida dos povos realizava-se uma operação
cirurgica de tamanha envergadura. O frio bisturi de um grupo humano fizera
a ablação do futuro de um outro grupo de cento e oito milhões
sem que o paciente nada percebesse. A raça branca, afeita á
guerra como a ultima ratio da sua majestade, desviava-se da velha trilha e
impunha um manso ponto final etnico ao grupo que a ajudara a criar a America,
mas com o qual não mais podia viver em comum.
Tinha-o como obstaculo ao ideal da Super-Civilização ariana
que naquele territorio começava a desabrochar, e pois não iria
render-se a fraquezas de sentimento, nocivas á esplendorosa florescencia
do homem branco.
A raça ferida na fonte vital pendeu sobre o peito a cabeça
como a planta a que o podador estrangula a circulação da seiva.
Ia passar. Esteril como a pedra, iria extinguir-se num crepusculo indolor,
mas de tragica melancolia.
E passou…
Decenios mais tarde, no maravilhoso jardim americano onde só abrolhavam
camelias de petalas levemente acobreadas pela força misteriosa do geo-ambiente,
erguia-se, ao alto do monumento de gratidão erigido pelo socio branco
em homenagem ao socio negro, o busto do velhinho magico que em 2228 curara
a dor de cabeça historica do 87.° Presidente…
CAPITULO XXV – O Beijo de Barrymore
O desfecho do drama racial da America comoveu-me profundamente.
Não ter futuro, acabar… Que torturante a sensação
dessa massa de cem milhões de criaturas assim amputadas do seu porvir!
Por outro lado, que maravilhoso surto não ia ter na America o homem
branco, a expandir-se liberrimo na sua Canãa prodigiosa! Se somos,
se existimos, se apesar de todos os males da vida tanto a ela nos apegamos,
é que no intimo do nosso ser a voz da persistencia da especie nos ampara.
A meio da vida de cada criatura já é a prole o que lhe dá
coragem de a viver até o fim. O celibatario, ser que vale por triste
ponto final, sente-se um corpo estranho no tumulto biologico — quasi
um amaldiçoado. Que dizer de um povo inteiro assim amputado da sua
descendencia? A ver-se envelhecer sem um choro de criança que o faça
pensar no amanhã? Dia final.
Dia já em crepusculo rapido para uma noite eterna…
Fosse eu um filosofo e teria ali materia para esmoer o cerebro no imaginar
e re-imaginar a infinita maravilha do formidando quadro.
Mas não era filosofo. Quem ama não filosofa, apenas suspira
— e eu suspirava de comover penedos.
— Jane, Jane, Jane!… como se repetia em minha boca febrenta essa
palavra e com que extase meus ouvidos a ouviam! Lembrei-me do romance. Senti
que era talvez o caminho mais curto para alcançar o coração
da filha do professor Benson. Lanceime a ele. Comprei uma resma de papel e
com furiosa sofreguidão fiz e refiz o primeiro capitulo, entusiasmado
com os períodos redondos e cantantes que me saiam da pena. Burilei-o
qual um soneto, aprimorei-o de todos os arrebiques da forma, orientado por
modelos que me pareceram os melhores. E nunca me hei de esquecer da ansia
com que corri ao castelo com a minha obra em punho! Ia pelo caminho prelibando
a surpresa de miss Jane ante aquela forte revelação dum genio
literario que morreria latente se esse meu anjo bom lhe não provocasse
o surto.
Encontrei-a na varanda, radiosa na formosura avivada pelo ar fino da manhã.
Sem sauda-la, fui logo gritando de longe, com infantil alegria: — Já
fiz o primeiro, miss Jane! O primeiro capitulo! E estou ansioso por ouvir
a sua opinião…
— Bravos! exclamou ela. Não esperei que tão rapidamente
pusesse mãos á obra.
Abri o meu pacote de tiras em belo cursivo e entreguei-lhas com quem á
sua dama entrega a mais preciosa das gemas. Impossível que após
sua leitura miss Jane não me desse o seu amor.
Vendo a minha sofreguidão, ali mesmo a jovem as leu, enquanto meus
olhos avidos acompanhavam em seu rosto o efeito da narrativa.
Mas, ai de mim, tudo saiu bem ao contrario do esperado… Miss Jane atenuou
quanto pôde a sua critica, delicada e gentil que era; mas não
logrou impedir que de volta á cidade eu rasgasse em mil pedaços
a minha obra prima e pela janelinha do vagão, melancolicamente, os
lançasse ao vento. Azedei a semana inteira e no proximo domingo reapareci
no castelo de mãos vazias.
— Não refez então o capitulo? indagou ela logo que entrei.
— Oh, não, miss Jane. Suas palavras abriram-me os olhos.
Convenci-me de que não possuo qualidades literarias e não
quero insistir, retruquei com ar ressentido.
— Pois tem que insistir, foi a sua resposta. Em nome da nossa amizade
o exijo, e pelas qualidades que vi em germe no seu primeiro escrito tenho
a certeza de que fará a obra como é mister.
— Confesso, miss Jane, que a sua apreciação do ultimo
domingo me desalentou, e ainda permaneço sob essa impressão…
— Que vaidosos os moços! Lembre-se de meu pai. Quantas vezes
fazia e refazia a mesma experiencia, com uma paciencia de beneditino! Por
isso venceu. Lembre-se do esforço incessante de Flaubert para atingir
a luminosa clareza que só a sábia simplicidade dá. A
enfase, o empolado, o enfeite, o contorcido, o rebuscamento de expressões,
tudo isso nada tem com a arte de escrever, porque é artificio e o artificio
é a cuscuta da arte. Puros maneirismos que em nada contribuem para
o fim supremo: a clara e facil expressão da ideia.
— Sim, miss Jane, mas sem isso fico sem estilo…
Que finura de sorriso temperado de meiguice aflorou nos labios da minha
amiga! — Estilo o senhor Ayrton só o terá quando perder
em absoluto a preocupação de ter estilo. Que é estilo,
afinal? — Estilo é… ia eu responder de pronto, mas logo engasguei,
e assim ficaria se ela muito naturalmente não mo definisse de gentil
maneira.
— … é o modo de ser de cada um. Estilo é como o rosto:
cada qual possue o que Deus lhe deu. Procurar ter um certo estilo vale tanto
como procurar ter uma certa cara. Sai mascara fatalmente — essa horrível
coisa que é a mascara…
— Mas o meu modo natural de ser não tem encantos, miss Jane,
é bruto, grosseiro, inhabil, ingenuo. Quer então que escreva
desta maneira? — Pois certamente! Seja como é, e tudo quanto
lhe parece defeito surgirá como qualidades, visto que será reflexo
da coisa unica que tem valor num artista — a personalidade.
Refleti comigo uns instantes e disse por fim: — Está bem, miss
Jane. Vou tentar mais uma vez. Vou escrever como sair, sem preocupação
de especie nenhuma — nem de gramatica, e verá que horror…
— Isso! exclamou ela encantada. Acertou. Isso é que é
escrever bem. Refaça o primeiro capitulo com esse criterio e traga-mo
no proximo domingo. Serei franca como o fui na tentativa anterior, e se me
parecer que de fato não tem as qualidades precisas, di-lo-ei francamente
e não pensaremos mais nisso.
De regresso ao meu quartinho humilde, nessa mesma noite dei começo
á obra. O meu amuo, consequente á vaidade literaria ofendida,
ainda não passara de todo, e resolvi escrever mal, de um jacto, com
a intenção deliberada de desapontar miss Jane. Ela me condenaria
a segunda tentativa, punhamos um ponto final na literatura e passaríamos
a cuidar de outra coisa. Escrevi até madrugada, sem rasuras, sem escolha
de palavras, como se estivesse a correr no meu saudoso Ford ao acaso das estradas
sem fim. Ao soarem tres horas atirei com a caneta e fui dormir o sono mais
pesado da minha vida. No dia seguinte fui ve-la.
— Aqui está, miss Jane, o horror que me saiu da pena.
Escrevi de acordo com a sua receita e nem coragem tive de reler.
Condene-me de uma vez e passemos a cuidar de outra coisa.
Miss Jane tomou as tiras e logo ao fim da primeira abriu a expressão
que na tentativa anterior eu tanto ansiava por ver. E nesse estado de extase
sofrego permaneceu até o fim.
— Ótimo! exclamou. O senhor Ayrton acaba de revelar-se um verdadeiro
escritor — impetuoso, irregular, incorreto, ingenuo, mas expressivo,
original e forte. Ha aqui verdadeiros achados de expressão.
Faça o livro inteiro neste tom que eu lhe garanto a vitoria.
Olhei para a minha amiga quasi com rancor, tão certo estava eu da
ironia de suas palavras.
— Tem coragem de ser assim impiedosa com o pobre Ayrton? murmurei
em tom magoado.
Ela olhou-me nos olhos fixamente, sem dizer palavra, e nos seus lindos olhos
azues vi refletida com tamanha nitidez a pureza de sua alma que logo me envergonhei
do meu ímpeto, filho exclusivo da ignorancia.
— Não, meu amigo! disse-me por fim. Sou incapaz de ironia.
O que acabo de dizer é a fiel expressão do meu pensamento. Estas
paginas estão cheias de defeitos, mas dos defeitos naturais ao primeiro
jacto de toda obra sincera e espontanea. São as rebarbas que com a
lima o fundidor suprime. Mas se noto defeitos que a lima tira, não
noto nenhum vicio literario, e por isso considero otimo o começo do
seu romance. Faça-o todo nesse tom e fará a obra que imagino.
O trabalho de rebarba deixe-o comigo. Sou mulher e paciente. Deixe-me o menos
e faça o mais. Seja o fundidor apenas, o obreiro que cria o grande
bloco e não perde tempo com detalhes subalternos.
Calaram fundo no meu coração aquelas palavras. Vi nelas um
interesse mais de amorosa do que de simples amiga — de amorosa que o
é sem o saber. Imergida que sempre vivera em suas visões do
futuro, e sempre presa da mais intensa atividade cerebral, miss Jane ignorava-se.
Olhei-a com o coração nos olhos. O "puro espirito"
viu em mim a taça cheia em excesso, cuja espuma se derrama —
e perturbou-se. Seus olhos baixaram-se. Seu peito ofegou.
Era o ceu. Atirei-me como quem se atira á vida, e esmagueilhe nos
labios o beijo sem fim de John Barrymore. E qual o raio que acende em chamas
o tronco impassível, meu beijo arrancou da gelada filha do professor
Benson a ardente mulher que eu sonhara.
— Minha, afinal!…
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