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Perambulávamos ao sabor da fantasia, noite a dentro, pelas ruas feias do Brás, quando nos empolgou a silhueta escura duma pesada mole tijolácea, com aparência de usina vazia de maquinismo.
– Hospedaria dos imigrantes – informa o meu amigo.
– É aqui então…
Paramos a contemplá-la era ali a porta do Oeste Paulista, essa Canaã em que ouro espirra do solo, era ali a ante sala da Terra Roxa – essa Califórnia do rubídio, oásis dor de sangue coalhado onde cresce a árvore do Brasil de amanhã, uma coisa um pouco diferente do Brasil de ontem, luso e perro; era ali o ninho da nova raça, liga, amálgama, justaposição de elementos étnicos que temperam o neobandeirante industrial, antijeca, antimodorra, vencedor da vida à moda americana.
Onde pairam os nossos Walt Whitmans, que não vêem estes aspectos do país e os não põem em cantos? Que crônica, que poema não daria aquela casa da esperança e do Sonho! Por ela passaram milhares de criaturas humanas, de todos os países e de todas as raças miseráveis, sujas, com o estigma das privações impresso nas faces – mas refloridas de esperança ao calor do grande sonho da América. No fundo, heróis, porque só os heróis esperam e sonham.
Emigrar: não pode existir fortaleza maior. Só os fortes atrevem-se a tanto. A miséria do torrão natal cansa-os e eles se atiram à aventura do desconhecido, fiando na paciência dos músculos a vitória da vida. E vencem.
Ninguém ai vê-los na hospedaria, promíscuo, humildades, quase muçulmanos na surpresa da terra estranha, imagina o potencial da força neles acumulado, à espera de ambiente propício para explosões magníficas.
Cérebro e braço do progresso americano, gritam o Sésamo às nossas riquezas adormecidas. Estados Unidos, Argentina, São Paulo devem dois terços do que são a essa verredura humana, trazida a granel para aterrar os vazios demográficos das regiões novas. Mal cai no solo novo, transforma-se, floresce, dá de si a apojadura farta com que se aleita a civilização.
Aquela hospedaria… Casa do Amanhã, corredor do futuro…
Por ali desfilam, inconscientes, os formadores duma raça nova.
– Dei-me com um antigo diretor desta almanjarra – disse o meu companheiro -, ao qual ouvi muita coisa interessante acontecida cá dentro. Sempre que passo por esta rua, avivam-me na memória vários episódios sugestivos, e entre eles um, romântico, patético, que até parece arranjo para terceiro ato de dramalhão lacrimogêneo. O romantismo, meu caro, existe na natureza, não é invenção dos hugos; e agora que se faz cinema, posso assegurar-te que muitas vezes a vida plagia o cinema escandalosamente.
Foi em 1906, mais ou menos. Chegara do Ceará, então flagelado pela seca, uma leva de retirantes com destino à lavoura de café, na qual havia um cego, velho de mais de sessenta anos. Na sua categoria dolorosa de indesejável, por que cargas d’água dera com os costados aqui? Erro de expedição, evidentemente. Retirantes que emigram não merecem grande cuidado dos propostos ao serviço. Vêm a granel, como carga incômoda que entope o navio e cheira mal. Não são passageiros, mas fardos de couro vivo com carne magra por dentro, a triste carne de trabalho, irmã da carne de canhão.
Interpelado o cego por um funcionário da hospedaria, explicou sua presença por engano de despacho. Destinavam-no ao Asilo dos Inválidos da Pátria, no Rio, mas pregaram-lhe às costas a papeleta de “Para o eito” e lá veio. Não tinha olhar para guiar- se, nem teve olhos alheios que o guiassem. Triste destino o dos cacos de gente…
– Por que para o Asilo dos Inválidos? – perguntou o funcionário. – É voluntário da Pátria?
– Sim – respondeu o cego – , fiz cinco anos de guerra no Paraguai e lá apanhei a doença que me pôs a noite nos olhos. Depois que cheguei caí no desamparo. Para que presta um cego? Um gato sarnento vale mais.
Pausou uns instantes, revirando nas órbitas os olhos esbranquiçados. Depois:
– Só havia no mundo um homem capaz de me socorrer: o meu capitão. Mas, esse, perdi-o de vista. Se o encontrasse – tenho a certeza! – , até os olhos me era ele capaz de reviver. Que homem! Minhas desgraças todas vêm de se ter perdido me capitão…
– Não tem família?
– Tenho uma menina que não conheço. Quando veio ao mundo, já meus olhos eram trevas.
Baixou a cabeça branca, como tomada de súbita amargura.
– Daria o que me resta de vida para vê-la um instantinho só. Se o meu capitão…
Não concluiu. Percebera que o interlocutor já estava longe, atendendo ao serviço, e ali ficou, imerso na tristeza infinita da sua noite sem estrelas.
O incidente, entretanto, impressionara o funcionário, que levou ao conhecimento do diretor. O diretor da imigração era nesse tempo o major Carlos, nobre de paulista dos bons tempos, providência humanizada daquele departamento. Ao saber que o cego fora um soldado de 70, interessou-se e foi procurá-lo.
Encontrou-o imóvel, imerso no seu eterno cismar.
– Então, meu velho, é verdade que fez a campanha do Paraguai?
O cego ergueu a cabeça, tocado pela voz amiga.
– Verdade sim, patrão. Vim no 13, e logo depois de chegar ao império do Lopes entrei em fogo. Tivemos má sorte. Na batalha de tuiuti nosso batalhão foi dizimado como milharal em tempo de chuva de pedra. Salvamo-nos eu e mais um punhado de camaradas. Fomos incorporados ao 33 paulista para preenchimento dos claros, e neles fiz o resto da campanha.
O major Carlos também era veterano do Paraguai, e por coincidência servira no 33.
Interessou-se, pois, vivamente pela história de cego, pondo-se a interrogá-lo a fundo.
– Quem era o seu capitão?
O cego suspirou.
– Meu capitão era um homem que, se eu o encontrasse de novo, até a vista me era capaz de dar! Mas não sei dele, perdi-o – para mal meu…
– Como se chamava?
– Capitão Boucault.
Ao ouvir esse nome o major sentiu eletrizarem-se-lhe as carnes num arrepio intenso; dominou-se, porém, e prosseguiu:
– Conheci esse capitão, foi meu companheiro de regimento. Mau homem, por sinal, duro para com os soldados, grosseiro…
O cego, até ali vergado na atitude humilde do mendigo, ergueu o busto e, com indignação a fremir na voz, disse com firmeza:
– Pare aí! Não blasfeme! O capitão Boucalt era o mais leal dos homens, amigo, pai do soldado. Perto de mim ninguém o insulta. Conheci-o em todos os momentos, acompanhei- o durante anos como sua ordenança e nunca o vi praticar o menor ato de vileza.
O tom firme do cego comoveu estranhamente o major. A miséria não conseguira romper no velho soldado as fibras da lealdade, e não há espetáculo mais arrebatador do que o de uma lealdade assim vivedoura até os limites extremos da desgraça. O major, quase rendido, sobresteve-se por um instante. Depois, firmemente, prosseguiu na experiência.
– Engana-se, meu caro. O capitão Boucalt era um cobarde…
Um assomo de cólera transformou as feições do cego. Seus olhos anuviados pela catarata revolveram-se nas órbitas, num horrível esforço para ver a cara do infame detrator. Seus dedos crisparam-se; todo ele se retesou, como fera prestes a desferir o bote. Depois, sentindo pela primeira vez em toda plenitude a infinita fragilidade dos cegos, recaiu em si, esmagado.
A cólera transfez-se-lhe em dor, e a dor assomou-lhe aos olhos sob forma de lágrimas. E foi lacrimejado que murmurou em voz apagada:
– Não se insulta assim um cego…
Mal pronunciara estas palavras, sentiu-se apertado nos braços do major, também em lágrimas, que dizia:
– Abrace, meu amigo, abrace o seu velho capitão! Sou eu o antigo capitão Boucalt…
Na incerteza, aparvalhado ante o imprevisto desenlace e como receoso de insídia, o cego vacilava.
– Duvida? – exclamou o major. – Duvida de quem o salvou a nado na passagem do Tebiquari?
Àquela palavras mágicas a identificação se fez e, esvanecido de dúvidas, chorando como criança, o cego abraçou-se com os joelhos do major Carlos Boucalt, a exclamar num desvario:
– Achei meu capitão! Achei meu pai! Minhas desgraças se acabaram!…
E acabaram-se de fato.
Metido num hospital sob os auspícios do major, lá sofreu a operação da catarata e readquiriu a vista.
Que impressão a sua, quando lhe tiraram a venda dos olhos! Não se cansava de “ver”, de matar as saudades da retina. Foi a janela e sorriu para a luz que inundava a natureza. Sorriu para as árvores, para o céu, para as flores do jardim. Ressurreição!…
– Eu bem dizia! – exclamava a cada passo – , eu bem dizia que se encontrasse o meu capitão estava findo o meu martírio. Posso agora ver minha filha! Que felicidade, meu Deus!…
E lá voltou para a terra dos verdes mares bravios onde canta a jandaia. Voltou a nado – nadando em felicidade.
A filha, a filha!…
– Eu não dizia? Eu não dizia que se encontrasse o meu capitão até a luz dos olhos me havia de voltar?
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