Justiça e Direito em Nietzsche

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O que é Justiça e Direito em Nietzsche?

A justiça e o direito são abordados por Nietzsche nas três fases de seu pensamento. Enquanto professor de filologia clássica, conheceu a origem do direito, momento anterior à cisão entre direito natural e direito positivo, bem como a sua posterior evolução onde ocorre a dissensão entre essas duas correntes que se encontram na base do ordenamento jurídico da cultura ocidental (FERNANDES, 2005, passim).

Contudo, ainda segundo Fernandes, o direito que Nietzsche conheceu na Alemanha do século XIX foi justamente esse direito em transição, direito que ainda estava dividido entre posições jusnaturalistas e juspositivistas. Contrário, portanto, ao direito atual que tende a se resumir no positivismo jurídico radical segundo a máxima de que “lei é lei” estando, portanto decadente a ideia de direito natural (p.27).

Justiça e Direito em Nietzsche

Segundo Fernandes (2005, p. 128), 25 anos antes de Hans Kelsen efetuar a desconstrução do direito natural em O problema da justiça, Nietzsche já descontruíra os quatro pressupostos que o embasam: universalidade, imutabilidade, atemporalidade e não postulação humana. Todavia, ainda segundo Fernandes, antes de levar a cabo a desconstrução do direito natural Nietzsche introduz um elemento anterior não posto por Kelsen o direito natural mitológico detectado na Antígona de Sófocles.

Nessa tragédia grega percebe-se a contraposição entre o direito natural,representado por Antígona, e o direito positivo o Rei de Tebas Creonte.  A luta entre o jusnaturalismo mítico contra o juspositivismo. O primeiro sobrepõe os costumes sagrados às normas do direito positivo enquanto o segundo, fiel à autoridade jurídica, sucumbe toda lei natural ao poder ordenador da tradição.

Percebe-se ainda no desenrolar da trama que os gregos simbolizados nos personagens não costumavam questionar pela genealogia de seus costumes sagrados, bem como pela viabilidade ou não de suas práticas religiosas, apenas as cumpriam.

Nesse sentido, numa leitura de Antígona, Nietzsche empreende uma crítica ao direito natural, pois as normas e valores existentes são todos frutos da práxis humana, sendo o humano um constante devir negar-se-á também a universalidade, a imutabilidade características a priori do direito natural.

Desse modo, os costumes que Antígona remetia aos ordenamentos divinos não passavam, segundo Nietzsche, de criações humanas e que enquanto criação poderiam ser destruídos a depender unicamente dos seus criadores. Com isso, Nietzsche desestrutura a estrutura que outrora fundamentava o direito natural mitológico.

Para Nietzsche, o direito natural não pode ser associado à natureza, nem ao divino, nem à razão como fora realizado ao longo do processo histórico humano. Do contrário, afirmar-se-ia a existência de fatos, mas esses não existem.

Segundo Nietzsche, o direito surgiu na pré-história da humanidade. Nesse sentido, localizado nos primórdios da civilização, inviabilizar-se-á a existência dum direito atemporal, anterior e independente do indivíduo.

Esse é um dos pontos cruciais da filosofia do direito nietzschiana, a efetividade de se pensar o direito como fenômeno antinatural, uma criação humana. Daí a desconstrução realizada por Nietzsche e, posteriormente por Hans Kelsen da inviabilidade dum direito natural.

[…] foi apenas a partir da forma mais rudimentar de direito pessoal que o germinante sentimento de troca, contrato, débito [Schuld], direito, obrigação, compensação, foi transposto para os mais toscos e incipientes complexos sociais (em sua relação com complexos semelhantes), simultaneamente ao hábito de comprar, medir, calcular um poder e outro. […], logo chegou à grande generalização: ‘cada coisa tem seu preço; tudo pode ser pago”(NIETZSCHE: GM II §8).

As relações contratuais entre credor-devedor e comprador-vendedor são consideradas pelo filósofo alemão como precedentes a qualquer organização social. Acredita-se que surgiu aqui, pela primeira vez, o homem como aquele que valora, mede e estipula valor (NIETZSCHE: GM II §8). Um verdadeiro “animal avaliador” (NIETZSCHE: ZA I De mil e um fitos). Daqui, depreende-se a valoração e a troca, que por sinal, acabam por definir e distinguir o homem dos animais irracionais.

Na troca, encontramos o caráter inicial da justiça, marcado pela obtenção recíproca do estimado (NIETZSCHE: HHI §92), uma verdadeira balança cujos pratos pendem de acordo com as referidas potências de culpa e castigo (NIETZSCHE: Co. Ext. II §8). Com isso, Nietzsche se afasta da juridicidade distributiva meritocrático-aristotélica pautada pela consentaneidade dos méritos.Pois, para Nietzsche, ao contrário de Aristóteles, a juridicidade de uma ação dependerá das forças, impulsos e vontades de poder que atuem sobre ela no momento da ação.

Entretanto, como ressalta (BENOIT, 2010), na Gaia Ciência §377, o filósofo alemão rejeita veementemente a instauração da justiça sobre a terra; sugerindo anteriormente em Humano, demasiado humano §6 a necessidade da injustiça como marca indelével da vida e seu perspectivismo.

Similar à justiça e ao direito, na relação credor-devedor o rompimento do contrato é reparado sob a máxima de que “o criminoso merece ser punido”. Isso, faz com que o devedor adquira a consciência culpada devido ao rompimento do contrato.

Aqui, surge a velha questão: até que ponto a justiça exigida pelo credor é justa e não vingativa? Contrário a E. Dühring, Nietzsche rejeita buscar a origem da justiça no terreno do ressentimento, evitando “sacralizar a vingança sob o nome de justiça” (NIETZSCHE: GM II §11).

Segundo Nietzsche, o problema residente nessa sacralização é que a primeira, ao contrário da segunda, em uma avaliação moral, põe em questão e faz valer apenas o ponto de vista do prejudicado não levando em conta as razões do prejudicador. Enquanto na Justiça, “o olho é treinado para uma avaliação sempre mais impessoal do ato, até mesmo o olhar do prejudicado” (NIETZSCHE: GM II §11).

Com isso, percebe-se a díspar diferença entre vingança e justiça e a consequente impossibilidade de a justiça ter sido evolução do sentimento de estar ferido. A vingança, sim, nasce do ressentimento, criador do ódio, da inveja e do rancor.

Os indivíduos, providos da má-consciência, do ressentimento, interiorização e moralização da responsabilidade, são potencialmente incapazes de advogar, legislar causas alheias, pois, ao contrário do que prevê a justiça e o direito, isto é, a impessoalidade na aferição da perda e/ou ganho entre as partes litigantes, o homem ressentido, dotado de afetos reativos (vingança, ódio, raiva), pensará tanto o direito quanto a justiça a partir de si, do sofredor, sem levar em conta as razões do suposto causador do dano.

Dessa forma, na perspectiva nietzschiana, a justiça e o direito se difere do instinto reativo pelo caráter intrínseco da impessoalidade e neutralidade valorativa a buscar o meio-termo, isto é, o considerado justo para as partes julgadora e julgada.

Essa moderação também é percebida nas relações credor-devedor nas quais ambos não querem sair com prejuízo em comparação ao que tinham anterior a essa relação contratual. Daí visar: tanto na justiça e direito quanto na relação credor-devedor, como afirmara Epicuro, “um pacto de não produzir nem sofrer danos”. Nesse pacto, somos conduzidos à própria genealogia do direito, enfaticamente, empreendida por Nietzsche:

Historicamente considerado, o direito representa – seja dito para desgosto do já mencionado agitador (o qual faz ele mesmo esta confissão: ‘a doutrina da vingança atravessa, como um fio vermelho da justiça, todos os meus trabalhos e meus esforços’) – justamente a luta contra os sentimentos reativos, a guerra que lhes fazem os poderes ativos e agressivos, que utilizam parte de sua força para conter os desregramentos do pathos reativo e impor um acordo (NIETZSCHE: GM II §11).

Depreende-se que o direito penal, desde o alvorecer da humanidade, antagônico às preleções de Karl EugenDühring (1833 – 1921), tem como função controlar o pathos reativo, conter seus desregramentos e, no limite impor um acordo. É nesse acordo tácito que, segundo Nietzsche, fundamentar-se-á a própria relação credor-devedor, estabelecendo, legalmente, para o caso da inadimplência, o castigo como cálculo reparador da infração.

Entretanto, ainda que respaldado pela ideia de justiça, esse castigo deverá ser equipolente ao dano sofrido, isto é, o credor traído não poderá descarregar no traidor toda a sua revolta, nem devolver-lhe a mesma atitude, pois se tornaria também um infrator e portanto outro fragmento irresponsável do destino, digno de castigo.

Desse modo, o direito e justiça, utilizando-se de meios legais, defendem e/ou julgam o traidor e traído sempre de modo impessoal, isto é, sem estabelecer juízos de valor a priori. Do contrário, tanto a justiça quanto o direito, tornar-se-iam vingança e fugiriam aos seus propósitos jurídico-penais.

Na perspectiva nietzschiana, a relação do direito penale da justiçacom a comunidade se dá consentâneo ao nível de soberania social. Nesse sentido, quanto menor for o poder de uma comunidade, maior será a importância que a mesma atribuirá às violações das regras.

Isso ocorre, porque em uma comunidade enfraquecida social e juridicamente, qualquer revolta às leis pode significar o solapar das estruturas que regem a sociedade.

Todavia, caso a mesma violação à lei ocorra em uma comunidade solidificada em bases concretas, os desvios do infrator passam a não mais oferecer o mesmo perigo que outrora oferecia para a estrutura social. Pois, nessa comunidade, tais ações poderão ser ressarcidas por meio da pena ao infrator, conduzindo-o à consciência de sua culpa e posterior arrependimento devido ao dano causado à estrutura social.

O que justifica o fato deambos terem começado com um elevado critério de culpabilidade do criminoso pelo seu ato, mas, com o passar do tempo e o consequente fortalecimento jurídico-social da comunidade, tanto o direito quanto a justiça passaram a diminuir seus critérios jurídico-penais, sendo, nas sociedades soberanas, capazes de agir sem a premente necessidade da tutela da lei e/ou da moral, a prescindir da justiça e do direito.

Todavia, caso a comunidade regrida de sua soberania e torne-se frágil e suscetível a ataques, guerras, conflitos e depravações morais e/ou jurídicas, ambos retornam a agir, aumentando os graus de juridicidade em suas ações (NIETZSCHE: GM II §10).

Dessa forma, como precisa o jurista Melo: “o direito – e por extensão a justiça -, na medida em que repousa sobre contratos entre iguais, dura tanto quanto a potência dos contraentes é igual ou comparável” (MELO, 2010, p. 54-55). O que, de certa forma, legitima a supressão da justiça e do direito concernentes ao grau de soberania atingido na relação entre o dominante (lei) e os dominados (cidadãos), ou numa outra leitura entre credor e devedor.

Por fim, breve análise do corpus nietzschiano revelou a pluralidade axiológica que o tema da justiça assume no pensamento do autor do Zaratustra. Com isso, não só inviabiliza qualquer sistematização conceitual bem como insere a justiça no âmbito das interpretações perspectivas. Desse modo, Nietzsche “não oferece, portanto, uma resposta do que seja o justo, mas mantém o homem na incomensurabilidade trágica”. MELLO (2010, Introd.).

Nesse intento, o leitor que esperava uma definição ao conceito de justiça no pensamento de Nietzsche irá, sem dúvida frustrar-se. Pois Nietzsche apenas oferece perspectivas para a análise desse fenômeno primordialmente humano. Daí a impossibilidade presente de definirmos esse conceito ainda que seja possível pensarmos uma justiça nietzschiana.

Fábio Guimarães de Castro

Referências Bibliográficas

BENOIT, BLAISE. A justiça como problema. Cadernos Nietzsche, nº 26, 2010.

FERNANDES, R. Rosas. Nietzsche e o direito. 2005, 239 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Pontifícia universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.

MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a justiça. São Paulo: Perspectiva, 2010.

NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César Souza, São Paulo: Brasiliense, 1987.

____________ Nietzsche. Obras Incompletas. Coleção “Os Pensadores”. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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