Mãe – José de Alencar

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José de Alencar

Mãe,

Em todos os meus livros há uma página que me foi inspirada
por ti. É aquela em que fala esse amor sublime que se reparte sem dividir-se
e remoça quando todas as afeições caducam.

Desta vez não foi uma página, mas o livro todo.

Escrevi-o com o pensamento em ti, cheio de tua imagem, bebendo em tua alma
perfumes que nos vêm do céu pelos lábios maternos. Se,
pois, encontrares ai uma dessas palavras que dizendo nada exprimem tanto,
deves sorrir-te; porque foste tu, sem o querer e sem o saber quem me ensinou
a compreender essa linguagem.

Acharás neste livro uma história simples; simples quanto pode
ser.

É um coração de mãe como o teu. A diferença
está em que a Providência o colocou o mais baixo que era possível
na escala social, para que o amor estreme e a abnegação sublime
o elevassem tão alto, que ante ele se curvassem a virtude e a inteligência;
isto é, quanto se apura de melhor na lia humana.

A outra que não a ti causaria reparo que eu fosse procurar a maternidade
entre a ignorância e a rudeza do cativeiro, podendo encontrá-la
nas salas trajando sedas. Mas sentes que se há diamante inalterável
é o coração materno, que mais brilha quanto mais espessa
é a treva. Rainha ou escrava, a mãe é sempre mãe.

Tu me deste a vida e a imaginação ardente que faz que eu me
veja tantas vezes viver em ti, como vives em mim; embora mil circunstâncias
tenham modificado a obra primitiva. Me deste o coração que o
mundo não gastou, não; mas cerrou-o tanto e tão forte,
que só, como agora, no silêncio da vigília, na solidão
da noite, posso abri-lo e vazá-lo nestas páginas que te envio.

Recebe, pois, Mãe, do filho a quem deste tanto, esta pequena parcela
da alma que bafejaste.

J. DE ALENCAR

Rio de Janeiro, 1859

PERSONAGENS

DR. LIMA
JORGE
GOMES
PEIXOTO
VICENTE
ELISA
JOANA

A cena é no Rio de Janeiro
A época 1855.

ATO PRIMEIRO

Em casa de GOMES. Sala de visitas.

CENA PRIMEIRA

ELISA e GOMES

GOMES – Já estás cosendo, minha filha?

ELISA – Acordei tão cedo… Não tinha que fazer.

GOMES – Por que me ocultas o teu generoso sacrifício? Cuidas que não
adivinhei?

ELISA – O que, meu pai?… Que fiz eu?…

GOMES – São as tuas costuras que têm suprido esta semana as
nossas despesas. Conheceste que eu não tinha dinheiro para os gastos
da casa e não me pediste… trabalhaste!

ELISA – Não era a minha obrigação, meu pai?

GOMES – Oh! E preciso que isto tenha um termo!

ELISA – Também hoje é 3 do mês… Vm. receberá
o seu ordenado.

GOMES – Meu ordenado?… Já o recebi.

ELISA – Ah! Precisou dele para pagar a casa?

GOMES – Depois que morreu tua mãe, Elisa, tenho sofrido muito. Além
dessa perda irreparável, as despesas da moléstia me atrasaram
de modo, que não sei quando poderei pagar as dívidas que pesam
sobre mim.

ELISA – E são muitas?

GOMES – Nem eu sei… Já perdi a cabeça! Mas isto vai acabar…
Não é possível viver assim.

ELISA – Que diz, meu pai!

GOMES – Perdoa, Elisa. Foi um grito de desespero… Às vezes, confesso-te,
tenho medo de enlouquecer! Até logo.

CENA II

ELISA e JOANA

JOANA – Bom dia, iaiá.

ELISA – Adeus, Joana.

JOANA – Iaiá está boa?

ELISA – Boa, obrigada.

JOANA – Sr. Gomes já foi para a repartição…

ELISA – Saiu agora mesmo.

JOANA – Encontrei ele na escada. Hoje não é dia de lição
de nhonhô Jorge?

ELISA – Segunda-feira…. É, e ainda nem tive tempo de passar os olhos
por ela.

JOANA – Então como há de ser?

ELISA – Estou acabando esta costura. Já vou estudar.

JOANA – Pois enquanto iaiá cose, eu vou arrumando a sala: pode vir
gente.

ELISA – Mas, Joana… Teu senhor não há de gostar disto!

JOANA – De que, iaiá?

ELISA – Tu nos serves, como se fosses nossa escrava. Todas as manhãs
vens arranjar-nos a casa. Varres tudo, espanas os trastes, lavas a louça
e até cozinhas o nosso jantar.

JOANA – Ora, iaiá! que me custa a fazer isso?… Nhonhô sai
muito cedinho, logo às 7 horas; eu endireito tudo lá por cima,
num momento, porque também tem pouco que fazer; e depois venho ajudar
a iaiá que se mata com tanto trabalho.

ELISA – E o Sr. Jorge sabe disto?

JOANA – Que tem que saiba?… Não é nada de mal!

ELISA – Muitos senhores não gostam que seus escravos sirvam a pessoas
estranhas.

JOANA – Iaiá não é nenhuma pessoa estranha… Depois,
Vm. não conhece meu nhonhô? Não sabe como ele é
bom?…

ELISA – Oh! sei!… Há um ano que é nosso vizinho, e nesse
pouco tempo quanto lhe devemos!

JOANA – Mas iaiá é uma moça bonita!… E eu que sou
sua mulata velha… desde que nhonhô Jorge nasceu que o sirvo, e nunca
brigou comigo! Se ele não sabe ralhar… Olhe, iaiá! Todas as
festas me dá um vestido bonito… E não dá mais porque
é pobre!

ELISA – Foste tu que o criaste?

JOANA – Foi, iaiá. Nunca mamou outro leite senão o meu…

ELISA – E por que ele não te chama – mamãe Joana?

JOANA – Mamãe!… Não diga isto, iaiá!

ELISA – De que te espantas? Uma coisa tão natural!

JOANA – Nhonhô não deve me chamar assim!… Eu sou escrava,
e ele é meu senhor.

ELISA – Mas é teu filho de leite.

JOANA – Meu filho morreu!

ELISA – Ah! Agora compreendo!… Esse nome de mãe te lembra a perda
que sofreste!… Perdoa, Joana.

JOANA – Não tem de que, iaiá. Mas Joana lhe pede… Se não
quer ver ela triste, não fale mais nisto.

ELISA – Eu te prometo.

JOANA – Obrigada, iaiá. (Pausa.)

ELISA – Devem ser perto de nove horas… O Sr. Jorge não tarda.

JOANA – É mesmo!… Ele que vem sempre à hora certa.

ELISA – Nem tenho vontade de estudar.

JOANA – Estão batendo.

CENA III

ELISA, JOANA e PFIXOTO

PEIXOTO – Viva, minha senhora! O Sr. Gomes?

ELISA – Há pouco saiu.

PEIXOTO – Já saiu! Tão cedo!… Ainda não são
nove horas.

JOANA – Meu senhor, ele teve que fazer.

PEIXOTO – Nem de propósito! Sempre que o procuro, o Sr. Gomes não
está em casa.

ELISA – O senhor não quer sentar-se?

PEIXOTO – Obrigado; tenho pressa.

ELISA – Por que não o procura na repartição?

PEIXOTO – Não estou para isso. Queria dizer-lhe que o Peixoto aqui
veio e voltará dentro de meia hora.

ELISA – Sim, senhor.

PEIXOTO – Sem mais!

CENA IV

JOANA e ELISA

JOANA – Cruzes!… Que homem grosseiro, minha Virgem Santíssima!…
Um senhor assim era um purgatório.

ELISA – Coitado! A culpa não é dele!

JOANA – De quem é então?

ELISA – Dos pais, que não lhe souberam dar educação.

JOANA – Que bom coração tem iaiá!… Desculpa tudo.

ELISA – Para que me desculpem também os meus defeitos, Joana.

JOANA – É o que iaiá não tem. Oh! Joana sabe conhecer
gente! E então iaiá que está mesmo mostrando o que é,
nesse rostinho de prata!

ELISA – Deixa-te disso, Joana.

JOANA – Ah! se iaiá soubesse como eu lhe quero bem!…

ELISA – Assim te pudesse eu agradecer como desejava!

JOANA – Inda mais, iaiá?

ELISA – Estás brincando!… Nunca te dei nada.

JOANA – Então iaiá!… Cuida que é pouco ver meu nhonhô
feliz?

ELISA – Joana!…

JOANA – Não se zangue, não, iaiá, com sua mulata velha.

ELISA – Para que falas dessas coisas? Não gosto.

JOANA – Está bom! Eu calo a boca. Então ele não merece?

ELISA – Merece muito mais; porém…

JOANA – Ora, iaiá!… Não disfarce!…

ELISA – Outra vez?

JOANA – Eu só peço uma coisa. Nosso Senhor não me mate
sem que eu veja isso. Há de ser uma festa!..

ELISA – Queres que eu me agaste deveras, hein?

JOANA – Não, iaiá, não! Mas que noivo bonito, e a noiva,
hi!… Feitinhos um para o outro!

ELISA – Eu te peço, Joana…

JOANA – Nesse dia… Olhe, iaiá! Hei de pôr meu cabeção
novo, como as mulatinhas da Bahia… Que pensa! Não faça pouco
na sua escrava, iaiá! Joana também já foi moça…
sabia riçar o pixaim e bater com o tacão da chinelinha na calçada;
só – taco, taco, tataco! Oh! hei de me lembrar do meu tempo… Se eu
já estou chorando de contente!… E meu nhonhô como não
há de ficar alegre!

ELISA – Não gosto destas graças, já te disse.

JOANA – Que mal faz? É uma coisa que há de acontecer.

ELISA – Estás bem livre!

JOANA – Se iaiá não pagasse a meu nhonhô todo o bem que
lhe quer…

ELISA – Que farias?

JOANA – Eu, iaiá?… Nada! Que pode fazer uma escrava?… Mas iaiá
era ingrata!

ELISA Pois serei.

JOANA – Iaiá jura?… Não é capaz!… Nem que esse coração
não estivesse aí saltando!

ELISA – Se continuas… Vou-me embora! (Batem.)

JOANA – Querem ver que é nhonhô!

ELISA – Bico!… Ouviste?

JOANA – Joana sabe guardar um segredo, iaiá.

CENA V

As mesmas e JORGE

JORGE – Como passou, D. Elisa?… Ah! Joana está lhe fazendo companhia!

ELISA – Veio conversar comigo.

JORGE – Quando precise de mandar por ela fazer alguma coisa, não tenha
acanhamento, D. Elisa.

ELISA – Já lhe sou tão obrigada, Sr. Jorge!

JOANA – Eu não lhe disse, iaiá?

JORGE – O quê?

JOANA – Não vê, nhonhô, que estes dias, desde que o escravo
do Sr. Gomes foi doente para a Misericórdia, eu venho fazer algum serviço,
pouco…

JORGE – Tu és sempre boa, Joana!

JOANA – Não digas isso, nhonhô!

JORGE – Digo, sim! – D. Elisa, creio que minha mãe, a quem não
conheci, não me teria mais amor do que esta segunda mãe, que
me criou.

JOANA – Hô gente, nhonhô! Isso são modos de tratar sua
escrava.

ELISA – O Sr. tem razão, Sr. Jorge.

JOANA – Não tem! Não tem!

ELISA – Basta ouvi-la falar do senhor.

JORGE – Ah! Ela falou-lhe de mim?… Que disse?…

JOANA – Nada, nhonhô.

ELISA – Em outras palavras, o que o senhor acaba de repetir.

JOANA – Iaiá… Eu disse que queria bem a meu senhor, como uma escrava
pode querer… só!

JORGE – Como uma escrava!… Sentes ser cativa, não é? JOANA
– Eu!… Não, nhonhô! Joana é mais feliz em servir seu
senhor, do que se estivesse forra.

JORGE – Bem sabes! Hoje é o dia de meus anos. Tenho um presente para
ti.

JOANA – Nhonhô já me deu um este mês.

JORGE – Não faz mal. Pudesse eu dar-te quantos desejo. – Vamos à
nossa lição, D. Elisa?

ELISA – Quando o senhor quiser.

JOANA – E eu vou cuidar da minha cozinha.

CENA VI

JORGE e ELISA

JORGE – Acho-a triste hoje.

ELISA – É engano seu. Nunca fui alegre.

JORGE – Perdão! Quando a conheci, a senhora tinha mais vivacidade
do que tem hoje. Também não se diverte, não passeia.

ELISA – Sou pouco amiga de passear.

JORGE – Mas é necessário ter uma distração.

ELISA – Tinha uma de que muito gostava.

JORGE – Qual?

ELISA – A música, mas…

JORGE – Mas também enfastia. Não é?

ELISA – A mim, nunca.

JORGE – Pois está em suas mãos cultivá-la.

ELISA – Se estivesse!…

JORGE – Não a compreendo.

ELISA – Escute, Sr. Jorge. Há dias que tenciono dizer-lhe… porém
falta-me o ânimo.

JORGE – O quê?… Diga, D. Elisa.

ELISA – Não posso continuar com as lições.

JORGE – Ah!… Tem outro mestre?

ELISA – Não seja injusto! Que melhor mestre podia achar do que O senhor?
Eu é que não quero mais estudar.

JORGE – Por que, minha senhora?

ELISA – Não lhe posso dizer.

JORGE – Desculpe, se cometi uma indiscrição.

ELISA – Nenhuma… E demais, é preciso que o senhor saiba… Meu pai
não pode… pagar-lhe…

JORGE – A senhora me ofende, D. Elisa!… Exigi alguma coisa?

ELISA – Oh! não!… E é por isso que lho disse… Já
lhe devemos seis meses.

JORGE – Não fale nisto! Nunca foi minha intenção receber
paga de tão pequeno serviço. Ao contrário, tinha-me por
feliz em poder prestá-lo.

ELISA – Mas eu é que não devo.

JORGE – Por que me recusaria isto? Assim, fique tranqüila. Continuaremos
com as nossas lições.

ELISA – Como?… Não tenho piano.

JORGE – E este?

ELISA – Meu pai quer vendê-lo… Precisa…

JORGE – É só esse o motivo?… Eu lhe emprestarei o meu. Nunca
toco.

ELISA – Ainda quando aceitasse, o que não devia, o seu delicado oferecimento,
Sr. Jorge, era impossível continuar.

JORGE – Entendo D. Elisa. A senhora procura um pretexto para despedir-me;
e eu estou torturando-a com a minha insistência.

ELISA – Sr. Jorge!…

JORGE – Desculpe. Se tivesse percebido, há muito que me teria retirado.

ELISA – Meu Deus! Não me obrigue a confessar-lhe tudo!

JORGE – Adeus, minha senhora!

ELISA – Mas, Sr. Jorge…

JORGE – Tenho a consciência de que nunca lhe faltei ao respeito que
devia…

ELISA – Pois bem… O senhor quer. Eu preciso trabalhar!… Preciso ganhar
para viver!

JORGE – A senhora, D. Elisa?

ELISA – Bem vê que não tenho nem tempo, nem vontade para estudar!

JORGE – Perdoe-me! Estava tão longe de suspeitar!

ELISA – Ainda supõe que seja um pretexto?

JORGE – Esqueça o que lhe disse.

ELISA – Só me lembro do que lhe devemos. (Pausa.)

JORGE – Ouça-me, D. Elisa, e sirvam-me as suas lágrimas de
testemunhas perante Deus. Há muito tempo que trabalho para conseguir
um posição digna de lhe ser oferecida. Quer dar-me o direito
de partilhar a sua sorte?… Responda-me! Eu lhe suplico!

ELISA – Não!… Não posso responder-lhe!… Nem aceitar. JORGE
– Porque é pobre?… Também eu o sou! Seremos dois a lutar.

ELISA – Meu pai… lhe dirá… Eu não!

JORGE – Era minha intenção falar-lhe; mas antes quero o seu
consentimento. Recusa-me?

ELISA – Não sei!

JORGE – Elisa!…

ELISA – Fale!…

JORGE – Obrigado, minha mulher!…

ELISA – Não me chame assim!

JORGE – Esse título me impõe o dever de fazer a sua felicidade,
e me dá o direito de velar sobre a sua existência.

ELISA – Se meu pai não se opuser.

JORGE – Ainda quando ele se oponha, Elisa. Não contrariaremos a sua
vontade, não esqueceremos os nossos deveres; mas a aliança pura
de duas almas que se compreendem tem a sua religião.

ELISA – É meu pai!

JORGE – Vem a propósito.

ELISA – Mas não lhe fale agora, não.

CENA VII

Os mesmos e GOMES

JORGE – Bom dia, Sr. Gomes!…

GOMES – Ah!… Como passou, Sr. Jorge?… Desculpe!… Não tinha visto.
(Senta-se distante.)

JORGE – Permite que continuemos?

GOMES – Pois não!

JORGE – (a ELISA) – Não quer dar a sua lição?

ELISA – (a meia voz) – Não posso cantar agora!… Não vê
como estou toda trêmula!

JORGE – Pois toque um pouco.

GOMES (sentindo a falta do relógio) – Ah!… Que horas são?…
Deixei o meu relógio a consertar.

JORGE – Nove e vinte.

GOMES – Já?… Não chega!… Que martírio!…

ELISA – Que tem, meu pai?

GOMES – Nada! Deixa-me! Estou aflito!… Espero uma resposta.

ELISA – Vm. está tão descorado!

GOMES – É o calor… O cansaço, talvez! Não te inquietes.

JORGE (a Elisa) – Seu pai está incomodado. Naturalmente deseja ficar
só. Até logo.

ELISA – Sim! Até logo.

JORGE – Não se esqueça que me deu o direito de viver para a
sua felicidade.

ELISA É coisa que se esqueça nunca?

JORGE – Se houver alguma novidade, mande-me chamar.

ELISA – Imediatamente.

JORGE – Sr. Gomes!…

GOMES – Já vai?

JORGE – Quando poderei falar-lhe hoje, que menos o incomode?

GOMES – À tarde… ou à noite.

JORGE – Eu passarei à noite. (Volta) Uma carta que acabam de entregar.

GOMES – Ah!…

CENA VIII

GOMES e ELISA

GOMES (lendo) – "Sinto muito… porém… as minhas circunstâncias…"
É o que todos respondem!… Infames! Não se lembram que se hoje
lhes peço as migalhas, já lhes dei a abastança.

ELISA – Que diz essa carta que o agonia tanto, meu pai? GOMES – O que há
de ser, minha filha?!… Mais um ingrato a quem estendo a mão e que
me repele com o pé.

ELISA – Não lhes peça nada!… Olhe: o nosso trabalho bastará
para vivermos! Guarde o seu ordenado para pagar casa e vestirmos. Eu não
preciso de nada. Das minhas costuras tirarei o necessário para os gastos
diários.

GOMES – Não te iludas, Elisa! Podes te matar, mas não farás
impossíveis.

ELISA – Há de ver.

CENA IX

Os mesmos e VICENTE

VICENTE – O Sr. Gomes, empregado público…

GOMES – Que deseja?

VICENTE – É V. Sa.?

GOMES – Um seu criado.

VICENTE – Então permita… Cito-o pela petição supra
e seu despacho, do teor seguinte: – "Ilmo. Sr. Dr. Juiz Municipal da
3a Vara. Diz…"

GOMES – Peço-lhe que me dispense dessa formalidade.

VICENTE – Prescinde da leitura, neste caso?

GOMES – Sei de que se trata. É do meu senhorio?

VICENTE – Justamente! Mandado de despejo, dentro de 24 horas, por não
pagamento de aluguéis.

ELISA – Meu Deus!

GOMES – Estou ciente, senhor.

ELISA – Mas então, meu pai?

GOMES – Tudo nos persegue, minha filha.

VICENTE – V. Sa. tem à mão papel e tinta para passar a contra-fé…
senão dou um pulo à venda defronte.

ELISA – Aqui tem, senhor.

VICENTE – Qualquer pena serve.

ELISA – O senhor não poderá fazer alguma coisa a favor de meu
pai?

VICENTE – Sou suspeito, Sra. Dona… Oficial do juízo!

ELISÁ – Então amanhã vêm deitar-nos fora de casa?

VICENTE – Qual!… O senhor seu pai não tem advogado? É pedir
vista… embargos… agravo… Lá o doutor sabe bem disso! Tem chicana
para um ano!

ELISA – Ouve, meu pai? – Ainda há remédio.

GOMES – Se eu tivesse dinheiro para pagar a advogados… Mas nesse caso pagaria
antes ao meu credor, cuja dívida é justa.

VICENTE – É V. Sa. o primeiro réu que o confessa!

CENA X

Os mesmos e PEIXOTO

PEIXOTO – Com licença!

GOMES – Quem é?

ELISA – Ah! É o senhor que há pouco o procurou, meu pai.

PEIXOTO – Finalmente achei-o em casa.

GOMES – Sr. Peixoto, não me nego a pessoa alguma.

PEIXOTO – Não digo o contrário mas é difícil
de o encontrar.

VICENTE – V. Sa. paga a contra-fé?

ELISA – Quanto é?

GOMES – Não tenho com que pagar, senhor.

VICENTE – Bem. É só para declarar.

PEIXOTO – Hum!… Já lhe anda esta gente por casa… Mau sinal!

VICENTE – Viva, Sr. Peixoto! (A GOMES) Aqui tem!

GOMES – Não preciso deste papel.

VICENTE – Em todo o caso aí fica. As ordens! Queira desculpar!

PEIXOTO (a meia voz) – Que foi isso?

VICENTE (idem) – Despejo!

PEIXOTO – Mau!

GOMES – Elisa, vai para dentro. Deixa-me conversar com o senhor.

CENA XI

GOMES e PEIXOTO

PEIXOTO – Sabe o que me traz aqui?

GOMES – Sim, senhor. Não lhe posso pagar.

PEIXOTO – Essa é boa! Por quê?

GOMES – Porque não tenho dinheiro.

PEIXOTO – Veremos.

GOMES – Enquanto conservei uma esperança, pedi-lhe que tivesse paciência.
Hoje nada espero; nada peço.

PEIXOTO – Que fez do ordenado?

GOMES – Descontei-o seis meses adiantados para viver.

PEIXOTO – A sua mobília?

GOMES – Já não é minha. A pessoa que a comprou deixou-me
alugada; e como não lhe tenho pago os aluguéis, vem buscá-la
amanhã.

PEIXOTO – E os escravos que possuía?

GOMES – O último saiu desta casa sob o pretexto de ir para a Misericórdia,
a fim de que minha filha ignorasse… Foi penhorado!

PEIXOTO – Mas há pouco, vi aqui uma mulata.

GOMES – Era talvez a escrava do meu vizinho do segundo andar.

PEIXOTO – Ah! É verdade. Conheço-a! Do Sr. Jorge?

GOMES – Sim, senhor.

PEIXOTO – Assim, nada lhe resta?

GOMES – Nada absolutamente! Estou na miséria!

PEIXOTO Pois não sei como há de ser. Não estou disposto
a perder o meu dinheiro.

GOMES – Se eu pudesse vender-me para pagar-lhe, creia que não hesitaria.
Não posso. Que hei de fazer?

PEIXOTO – O senhor não sabe?

GOMES – Sei!…

PEIXOTO – É arranjar dinheiro, se não quer ir parar à
cadeia.

GOMES – O senhor insulta-me!

PEIXOTO – Se acha que isto é um insulto, nesse caso é a lei,
não sou eu quem o insulta.

GOMES – Cometi algum crime?… É culpa minha se não tenho com
que pagar-lhe?

PEIXOTO – Se fosse só isso!

GOMES – Explique-se!

PEIXOTO – É muito simples. O senhor negociou comigo uma letra de quinhentos
mil-réis. Tinha o seu aceite; mas estava sacada e endossada pelo Sr.
Francisco de Faria, negociante desta praça.

GOMES – O senhor deu-me por ela quatrocentos mil-réis, dos quais ainda
tive de pagar cinqüenta ao Sr. Faria.

PEIXOTO – Esta não é a questão. O saque e o endosso
são falsos.

GOMES – Falsos!…

PEIXOTO – Faria nunca sacou letras.

GOMES – Mas então quem era a pessoa com quem tratei?

PEIXOTO – É coisa que não me interessa. O senhor responderá
à polícia.

GOMES – A policia?… Eu!

PEIXOTO – Está bem visto!… A letra foi negociada com o senhor. Tenho
testemunhas. Que me importa essa pessoa?

GOMES – Mas, senhor, não &eaceacute; possível!… Não se
condena assim um homem que não tem notas na sua vida.

PEIXOTO – Sr. Gomes, acabemos com isto!… Não lhe quero fazer mal;
porém, se às cinco horas da tarde o senhor não tiver
o dinheiro para pagar-me, às seis apresento a letra na polícia.

GOMES – Dê-me tempo ao menos para procurar o homem com quem tratei.

PEIXOTO – E o senhor tratou com alguém?

GOMES – Infame!… Duvida de minha palavra!

PEIXOTO – Ah! Quer brigar? Não estou disposto. Até às
cinco horas.

GOMES – Meu Deus! Condenado como um falsário!… Não! Já
resisti por muito tempo!

CENA XII

GOMES e ELISA

ELISA – Meu pai!…

GOMES – Tu ouviste, minha filha?

ELISA – Ouvi tudo.

GOMES – Pois então ouve o resto.

ELISA – Sossegue primeiro.

GOMES – Não há sossego nestes transes. Acabas de saber que
estamos na miséria; nada temos, nada devemos esperar. Mas isto não
era bastante; aí vem a desonra coroar a miséria.

ELISA — Mas o que disse aquele homem é uma mentira, não é?

GOMES – Tu duvidaste um momento da probidade de teu pai?

ELISA – Oh! Não, não!

GOMES – Se eu quisesse, já não digo roubar, mas transigir com
a minha consciência, os que agora nos desprezam, aí estariam
ainda nos importunando com a sua amizade fingida e hipócrita.

ELISA – Não se defenda, meu pai. Eu creio na sua honra, como creio
em Deus. Se lho perguntei é porque desejava ouvir de sua boca o desmentido
de semelhante calúnia. (Pausa.)

GOMES – Elisa, minha filha!.. Este último golpe é mais forte
que minha razão. Muitas vezes já a minha coragem vacilou encarando
a miséria: um projeto louco me passou pelo espírito, e esteve
bem prestes a realizar-se. Resisti, lembrando-me de ti. À vergonha,
à infâmia, minha filha, não posso… não sei resistir!

ELISA – Não pense nisto, meu pai.

GOMES – Quando não se pode viver honrado, morre-se.

ELISA – Quer-se matar!

GOMES – Isto é vida?

ELISA – Meu Deus!… Por piedade!

GOMES – É necessário!

ELISA – E eu, e sua filha? Deixa-a ao desamparo?

GOMES – Preferes que a arraste à vergonha?… Não sentes que
vais perder teu pai?… Escolhe! Vê-lo infame nas galés, ou chorá-lo
morto, porém honrado.

ELISA – Mas ainda pode salvar-se!… Não há de ser condenado,
não!

GOM ES – Refleti, Elisa. Que defesa tenho eu?… A minha palavra. E isto
basta? Sem dinheiro, sem amigos?… Só me resta uma esperança;
e é que esse homem não cumpra o que disse. Mas essa… não
acredito nela.

ELISA – Por quê?… Esse homem deve ter um coração! Eu
lhe suplicarei de joelhos.

GOMES – Tu sabes se te quero, Elisa, e com que extremos te amo. A única
dor que levo desta vida é deixar-te!… Uma menina de 18 anos, sem
pai, sem mãe, ao desamparo, é um anjo perdido neste mundo torpe.
Toda a sua virtude não basta às vezes para defendê-la.
Sucumbe à necessidade implacável..

ELISA – E quer me abandonar!

GOMES – Sou eu que te abandono, Elisa, ou é a fatalidade que me arranca
de teus braços?

ELISA – Deus se há de condoer de nós!

GOMES – Se te sentes com força de lutar, minha filha, talvez a felicidade
te depare um homem que te ame, e proteja a tua orfandade.

ELISA – E por que não nos protegerá a ambos?

GOMES – Eu já não preciso senão do perdão do
Senhor e do teu. – Se, porém, te sentes fraca… Não te aconselho…
Não digo que o faças… Segue o impulso de tua alma…

ELISA – Acabe, meu pai!

GOMES – O que ficar deste vidro…

ELISA – Ah!

GOMES – É a única herança de teu pai, Elisa.

ELISA – Oh! Sim! Morremos juntos!

GOMES – Não! Foi uma loucura!… Esquece o que te disse! Tu ainda
podes ser feliz, minha filha!…

ATO SEGUNDO

Em casa de JORGE. Sala simples, mas elegante.

CENA PRIMEIRA

JOANA e VICENTE

VICENTE – Como vai isto por cá?

JOANA – Oh! Bilro!… Vamos indo, como Deus é servido!

VICENTE – Há saúde e patacos, é o que se quer.

JOANA – Saúde não falta, não, Bilro! No mais vai-se
vivendo, como se pode.

VICENTE – Olhe, Sra. Joana… Há muito que estou para lhe pedir uma
coisa.

JOANA – Sra. Joana!… Estás doido, Bilro?

VICENTE – Não, mas é que… Sim… Bem vê que tenho hoje
uma posição… E este modo de chamar a gente de Bilro…

JOANA (rindo) – Ah! ah! ah!… Então porque és pedestre, ou
meirinho… Não sei o quê!

VICENTE – Menos isso!… Oficial de justiça!

JOANA – Pois que seja… Oficial da justiça, ou da injustiça…
Porque és isto, julgas que ficas desonrado se eu te chamar de Bilro?…
Ora, não vejam só este meu senhor! Que figurão!… V.
Sa. faz obséquio… ou V. Exa.?… Queira ter a bondade… Por quem
é… Sr. Vicente…

VICENTE – Romão… Romão…

JOANA – Sr. Vicente Romão. Queira desculpar!… sem mais aquela.

VICENTE – Está zombando.

JOANA – ~ Não é assim que deve tratá-lo?

VICENTE – Toma o recado na escada… Eu por mim não me importava;
mas falam.

JOANA – Pois olha! Cá comigo está se ninando!… Eu te conheci
assim tamaninho, já era rapariga, mucama de minha senhora moça,
que Deus tem, e foi sempre Bilro para lá, tia Joana para cá.
Se quiseres há de ser o mesmo… senão, passar bem. Ninguém
há de morrer por isso.

VICENTE – Mas, Joana…

JOANA – Tia Joana!

VICENTE – Está bom, para fazer-lhe a vontade… Tia Joana! Não
era melhor que a gente se tratasse como os outros?…

JOANA – Não sei se é melhor, se não… Quando te vir
hei de chimpar-te com o Bilro na venta.

VICENTE – Não tem graça nenhuma.

JOANA – Se te parecer, não responde: é o mesmo.

VICENTE – Em teima ninguém lhe ganha!… Não vê que é
preciso a gente dar-se a respeito.

JOANA – Dá-te a respeito lá com as outras. Comigo estás
bem aviado.

VICENTE – Pois é isto que eu quero! Não me entendeu… Diante
dos outros a senhora… a tia Joana que lhe custa me chamar de Vicente?

JOANA – Diante dos outros?… Pois sim! Mas olha que é Vicente só!

VICENTE – Vicente Romão… É mais cheio.

JOANA – Uma figa!… Nem Romão, nem senhor! Vicente.

VICENTE – Enfim! Era melhor o nome todo… Não quer! Que se lhe há
de fazer!

JOANA – Então não perguntas por nhonhô Jorge?

VICENTE – Ia perguntar; mas Vm….

JOANA – Vm…. Hein… Bilro…

VICENTE – Você me atrapalhou, tia Joana. Como está ele, o Sr.
Jorge? Está bom?

JOANA – Bom e crescido que faz gosto… Se tu o vires!

VICENTE – Não há quinze dias que estive com ele.

JOANA – Pois faz sua diferença!. .. Todos os dias parece que fica
mais alto e mais sério… Eu acho ele tão bonito, meu Deus!

VICENTE – Pudera não! Você o criou!

JOANA – E tu não achas?

VICENTE- Eu não! E é preciso que diga.

JOANA – Já lhe saiu todo o buço.

VICENTE – Também ele já anda rastejando pelos vinte e um.

JOANA – Completou hoje, Bilro.

VICENTE – É verdade. – Ora tia Joana! Já estamos ficando velhos.
Inda me parece. que foi outro dia que você dava de mamar a ele.

JOANA – Como me lembra!… Eu tinha dezessete anos, e tu eras um pirralho
de oito. Vinhas bulir com ele no meu colo; e como eras muito travesso, nós
te começamos a chamar de Bilro. Nunca estavas quieto!

VICENTE – E aquela vez que um sujeito fez-me por força levar-lhe um
recado… Quando a gente é criança faz cada uma!

JOANA – Doeu-te o puxão de orelha que te dei?

VICENTE – Oh! se doeu!… Também nunca mais!

JOANA – E perdias teu tempo!

VICENTE – Lá isso eu sempre disse… Nunca houve mulatinha que se
desse mais a respeito do que tia Joana. Pois em casa punham a boca em todos;
mas dela não tinham que mexericar.

JOANA – Não fala mais nisso, Bilro. A gente tem vontade de chorar.

VICENTE – É mesmo, tia Joana. Bom tempo! Sr. doutor só fazia
ralhar. Tirante disso, era bom amo.

JOANA – Tens tido notícias dele?

VICENTE – Depois que foi viajar, nunca mais soube por onde anda.

JOANA – E a comadre Rosa que ele vendeu a um homem da Rua da Alfândega?

VICENTE – Essa morreu… O André está cocheiro na praça.

JOANA – Cada um para sua banda.

VICENTE – Vou indo também para a minha. Adeus, tia Joana.

JOANA – Agora até quando?

VICENTE – Não sei! Hoje como tive que fazer por aqui, então
disse cá com os meus botões: – Deixa-me ver a tia Joana. – Já
vi… Estão batendo.

JOANA – Vê quem é.

VICENTE – Pode entrar.

CENA II

Os mesmos e DR. LIMA

DR. LIMA – Ainda se lembram aqui do amigo velho?

JOANA – Ah! Meu senhor Dr. Lima. Há que anos!…

VICENTE – Sr. doutor!…

DR. LIMA – Esqueceste que parti para Europa.

JOANA – Não esqueci, não… meu senhor. Ainda há pouco
estava falando nisso.

DR. LIMA – Cheguei hoje pelo paquete. Acabo de desembarcar. Que de Jorge?

JOANA – Saiu. Que alegria ele vai ter!… Mas como meu senhor acertou com
a casa?

DR. LIMA – Custou-me!… Já andei por ai à matroca. Na Rua
do Conde é que me ensinaram.

VICENTE – O vizinho de defronte?

DR. LIMA – Justamente! Mas eu estou reconhecendo esta figura…

JOANA – O ciganinho, pajem de meu senhor…

DR. LIMA – Ah! O grande Bilro!

VICENTE – Vicente Romão, Sr. doutor.

DR. LIMA – Como vais?… Que fazes?… Estás mais bem comportado?

JOANA – É oficial de justiça.

DR. LIMA – Escolheste um bom emprego, Bilro.

VICENTE – Vicente Romão, Sr. doutor. Mas então V. Sa. acha?

DR. LIMA – O que, homem?…

VICENTE – Bom o meu emprego?

DR. LIMA – Decerto! Precisavas viver bem com a justiça.

VICENTE – Peço vista para embargos, Sr. doutor; não tenho culpas
no cartório.

DR. LIMA – Bem mostras que és do ofício!

VICENTE, (à Joana.) – É preciso perder esse mau costume de
chamar a gente de ciganinho. Ouviu?!

JOANA – Ai!… Começas outra vez com as tuas empáfias. VICENTE
– Que embirrância!…

DR. LIMA – Que é isso lá? Assim é que festejam a minha
chegada?

JOANA – É Bilro que…

VICENTE – Não é nada, Sr. doutor; V. Sa. me dê as suas
ordens.

DR. LIMA – Vai me ver. Estou no Hotel da Europa.

VICENTE – Obrigado, Sr. doutor. Até mais ver, tia Joana.

CENA III

DR. LIMA e JOANA

JOANA – Meu senhor não quer descansar?…

DR. LIMA – Recosto-me aqui mesmo, neste sofá.

JOANA – Já almoçou, meu senhor? Aí tem café e
leite.

DR. LIMA – Ainda conservo os meus antigos hábitos. Às oito
horas já estava almoçado.

JOANA – Quem sabe se meu senhor não quer tomar o seu banho?

DR. LIMA – Não! Vem cá. Senta-te aí.

JOANA – Eu converso mesmo de pé com meu senhor.

DR. LIMA – Como vai teu filho?… Já está um homem?

JOANA – Meu senhor!… Eu lhe peço de joelhos… Não diga este
nome!

DR. LIMA – Pelo que vejo o mistério dura ainda!

JOANA – E há de durar sempre! Meu senhor me prometeu.

DR. LIMA – Prometi.

JOANA – Meu senhor jurou!

DR. LIMA – É verdade! Mas julgava que na minha ausência tudo
se havia de se revelar.

JOANA – Ele não sabe nada, e eu peço todos os dias a Deus que
não lhe deixe nem suspeitar.

DR. LIMA – Assim tu ainda passas por sua escrava?

JOANA – Não passo, não! Sou escrava dele.

DR. LIMA – Mas Joana! Isto não é possível!

JOANA – Meu senhor… Eu já lhe disse!… E não cuide que por
ter esta cor não hei de cumprir… No dia em que ele souber que eu
sou… que eu sou… Nesse dia Joana vai rezar ao céu por seu nhonhô.

DR. LIMA – E por que razão hás de fazer uma tal loucura?

JOANA – Por quê?… Desde que nasceu ainda está para ser a primeira
vez que se zangue comigo. E Vm. quer que se envergonhe… Que me aborreça
talvez!… Meu Deus! Matai-me antes que eu veja essa desgraça!

DR. LIMA – És tu a culpada?

JOANA – Não sei, meu senhor, não sei. Às vezes penso…
Quando fazem vinte e um anos eu senti o primeiro movimento dele… de meu…

DR. LIMA – De teu filho. Fala! Que receio é esse?… Estamos sós.

JOANA – Vm. não sabe que medo tenho de dizer este nome!… Até
à noite quando rezo por ele baixinho… não me atrevo… Ele
pode ouvir… Eu posso me acostumar…

DR. LIMA – Mas dizias?

JOANA – Ah! Quando senti o primeiro movimento que ele fez no meu seio, tive
uma alegria grande, como nunca pensei que uma escrava pudesse ter. Depois
uma dor que só tornarei a ter se ele souber. Pois meu filho havia de
ser escravo como eu? Eu havia de lhe dar a vida para que um dia quisesse mal
à sua mãe? Deu-me vontade de morrer para que ele não
nascesse… Mas isso era possível?… Não, Joana devia viver!

DR. LIMA – Foi então que Soares te comprou…

JOANA – Ele me queria tanto bem! Deu por mim tudo quanto tinha… Dois contos
de réis! Eu fui para sua casa. Aí meu nhonhô nasceu, e
foi logo batizado como filho dele, sem que ninguém soubesse quem era
sua mãe.

DR. LIMA – Desgraçadamente morreu poucos dias depois… Se eu soubesse
então!…

JOANA – Mas meu senhor não sabia nada. Fui eu que lhe confessei…

DR. LIMA – Porque já tinha suspeitado…

JOANA – E por isso só. Vm. era capaz de afirmar? Não! Quem
lhe contou fui eu, com a condição de não dizer nunca!…

DR. LIMA – Pois bem, Joana! Não direi uma palavra. Continuarás
a ser escrava de teu filho. Será para ele a dor mais cruel quando souber…

JOANA – Nunca!… Quem vai lhe dizer?… Além de Vm. e de mim, só
Deus sabe este segredo. Enquanto meu senhor estava fora eu vivia descansada…

DR. LIMA – E tinhas razão… Presente, vendo-te ao lado de Jorge,
não respondo por mim.

JOANA Meu senhor, Vm. teve sua mãe… Lembre-se que dor a pobre havia
de sentir se seu filho tivesse vergonha dela!… Não o faça
desgraçado! E por causa de quem?… De mim que morreria por ele.

DR. LIMA – Bem; prometo-lhe que hei de ter coragem! Virei raras vezes aqui.
Evitarei o mais que puder… com receio de me trair.

JOANA – É melhor. Até Vm. se habituar.

DR. LIMA – Nunca me habituarei!…. Tu não sabes como eu te admiro,
Joana; e como dói-me no coração ver esse martírio
sublime a que te condenas.

JOANA – Eu vivo tão feliz, meu senhor!

DR. LIMA – Mas que necessidade tinhas de ser escrava ainda? Não podias
estar forra?

JOANA – Eu, meu senhor?… Como?

DR. LIMA – Com o dinheiro que tiravas do teu trabalho, e gastavas na educação
de teu filho.

JOANA – Nunca pensei nisso, meu senhor!… Demais, forra, podiam-me deitar
fora de casa, e eu não estaria mais junto dele. A escrava não
se despede.

DR. LIMA – Mas… Estremeço só com esta idéia!

JOANA – Qual, meu senhor?

DR. LIMA – Supõe que… te vendiam.

JOANA – Joana morreria; porém ao menos deixaria a ele aquilo que custasse…
sempre era alguma coisa… Para um moço pobre!

DR. LIMA – E eu hei de estar condenado a ouvir Jorge agradecer-me a sua educação
que ele deve unicamente a ti; a chamar-me seu segundo pai, ignorando que sua…

JOANA – Mais baixo!… Não se zangue, meu senhor!

DR. LIMA – Sabes que mais! Vou-me embora. Voltarei logo para abraçar
Jorge, e não pisarei mais aqui. É uma tortura!

JOANA – Adeus, meu senhor! Não se agaste comigo.

DR. LIMA – Não. Quem sabe se tu não tens razão!

JOANA – Deus dê muita felicidade a meu senhor Dr. Lima.

(Abre a porta.)

CENA IV

Os mesmos e JORGE

JOANA – Ah!

DR. LIMA – É ele?

JOANA – Nhonhô não conhece, não!… Sr. Dr. Lima!

DR. LIMA – Jorge!

JORGE – Ah! doutor! Quando chegou?

DR. LIMA – Hoje mesmo. É a minha primeira visita.

JORGE – E devia ser pelo bem que lhe queremos, eu e Joana. Venha sentar-se.

DR. LIMA – Está um homem!

JOANA – Não é, meu senhor doutor?… E um moço bonito!
Hi! Faz andar à roda a cahecinha dessas moças todas.

JORGE – Se lhe der ouvidos, doutor, é um não acabar de elogios!…
Mas há cinco anos que está ausente!

JOANA – Há de fazer pela Páscoa.

DR. LIMA – É verdade. Deixei-o quase criança… Tinha dezesseis
anos. Acabou os seus estudos naturalmente!

JORGE – Ainda não.

JOANA – É o melhor estudante. Não sou eu que digo!… São
os mestres dele.

DR. LIMA – Sempre foi… Que profissão escolheu?

JORGE – Segui o seu conselho… Estudo medicina; estou no 5o ano.

DR. LIMA – E de fortuna… Como vamos?

JORGE – O necessário. As minhas lições..

DR. LIMA – Ah! Dá lições? De quê?

JORGE – De música e de francês.

DR. LIMA – Lembro-me que tinha muita disposição para o piano.
Cultivou essa arte?

JOANA – Toca que faz gosto!… Vm. há de ouvir.

DR. LIMA – Sem dúvida. E quanto lhe rendem as lições?

JORGE – Uns cem mil-réis por mês.

DR. LIMA – É pouco.

JORGE – Faço também algumas traduções que deixam
às vezes um extraordinário. Joana por seu lado ganha…

JOANA – Quase nada, nhonhô! Já estou velha. Não coso
mais de noite.

JORGE – Nem eu quero. Foi de passares as noites sobre costura que ias perdendo
a vista.

DR. LIMA – Faz bem em tratá-la com amizade, Jorge. É uma boa…

JOANA – Sou uma escrava como as outras.

JORGE – És uma amiga como poucas se encontram.

JOANA – Ora, nhonhô!…

JORGE – Sabe, doutor! Creio que foi Deus que o enviou a esta casa.

DR. LIMA – Por que razão, Jorge?

JORGE – Eu lhe digo… Vem cá, Joana!… Mais perto!… Quero contar-te
uma história.

JOANA – Mas… Eu vou dar uma vista d’olhos lá dentro.

JORGE – Espera. (Toma-lhe a mão.)

JOANA – Que é isso, nhonhô? Já se viu… Que modos?

JORGE – Olhe, doutor! Estou no meio de minha família. Meu segundo
pai, minha segunda mãe! Não conheci os outros.

DR. LIMA – Jorge, meu amigo!

JOANA – Para que falar nestas coisas num dia de se estar alegre… Meu senhor
doutor chegou… Nhonhô faz anos.

DR. LIMA – É verdade!… É hoje 3 de fevereiro…

JORGE – Escolhi justamente este dia para pagar-te uma dívida. Quem
foi testemunha da dedicação, doutor, verá o reconhecimento.

JOANA – Nhonhô, me dê licença!

JORGE – Toma, Joana. Eu escrevi-a esta manhã lembrando-me de minha
mãe.

DR. LIMA – Muito bem, Jorge. Deus o inspirou!

JOANA – Mas o quê… Que papel é este, nhonhô?

DR. LIMA – É a tua carta de liberdade, Joana!

JOANA – Não quero! Não preciso!

JORGE – Não é tua carta de liberdade, não, minha boa
Joana; porque eu nunca te considerei minha escrava. É apenas um título
para que não te envergonhes mais nunca da afeição que
me tens.

JOANA – Mas eu não deixarei a meu nhonhô?

JORGE – A menos que tu não o exijas.

JOANA – Eu!… Que lembrança!

DR. LIMA – Não faz idéia do quanto me comove esta cena.

JORGE – As nossas almas se compreendem, doutor. Guarda, Joana, este papel…

JOANA – Por que nhonhô mesmo não guarda?

JORGE – De modo algum. Ele te pertence, manda-o registrar em um tabelião.

DR. LIMA – É prudente.

JORGE – Há muito tempo, doutor, que tencionava realizar este pensamento.
Mas tinha tomado algum dinheiro com hipoteca…

DR. LIMA – Com hipoteca.!… Sobre Joana?

JOANA – Que mal fazia?

JORGE – Conheço que fui imprudente, mas a necessidade urgia.

DR. LIMA – Não o censuro, Jorge! O senhor não sabia…

JORGE – O que, doutor?

DR. LIMA – Não sabia… Quanto esses empréstimos são
perigosos!…

JORGE – Felizmente já não sou devedor… Nem ao homem que me
emprestou… Nem à minha consciência que me ordenava desse a
Joana essa pequena prova da estima que lhe tenho. Resta-me ainda uma divida…
Divida de amizade e gratidão que nunca poderei pagar.

DR. LIMA – A ela!… Por certo que nunca!

JOANA – A meu senhor!… A mim não. (Batem.)

CENA V

Os mesmos e GOMES

JOANA – Sr. Gomes!

JORGE – Tenha a bondade de entrar.

GOMES – Desculpe se o incomodo, meu vizinho!

JORGE – Ao contrário, dá-me muito prazer… Por que não
se senta?

DR. LIMA (a JOANA) – Agora podes ficar tranqüila! Terei forças
de calar-me.

JOANA – Meu senhor… Não toque nisto… agora.

DR. LIMA – Que tem?… Não nos ouvem.

JOANA – Fale mais baixo!… Pelo amor de Deus!

JORGE (a GOMES) – Hoje me pareceu incomodado?

GOMES – Estou bom!

JORGE – Mas ainda o acho pálido.

GOMES – Não é nada!

JORGE – Ainda bem! Quero apresentar-lhe a um amigo que chegou-nos hoje de
repente… Devo-lhe mais que a existência, devo-lhe a educação.

GOMES – Como?… Perdão! estava distraído!… Que dizia?

JORGE – Que desejava apresentar-lhe um amigo.

GOMES – Ah! Com muito gosto.

JORGE – Dr. Lima!… O senhor estimará fazer o conhecimento de uma
pessoa que todos respeitam pela sua honradez… O Sr. Gomes… Empregado público.

DR. LIMA – Estimo muito!… Um médico pobre, sem clínica, que
esteve cinco anos fora do seu país, de pouco presta, mas pode contar…

GOMES – Obrigado, Sr. doutor. (A JORGE) Porém eu desejava falar-lhe
em particular.

JORGE – Por que não disse?…

DR. LIMA – Neste caso eu me retiro.

GOMES – Não é preciso! Não! Eu voltarei depois.

JORGE – Para que ter esse trabalho?… O doutor pode entrar um momento.

DR. LIMA – Decerto! Vou ver a casa. Anda, Joana. Vem mostrar-me os teus arranjos.

CENA VI

GOMES e JORGE

GOMES – Não incomode seu amigo. Voltarei depois.

JORGE – Ora, Sr. Gomes, não é incômodo. Estou à
sua disposição.

GOMES – É verdade que o negócio de que lhe pretendia falar
é urgente… mas…

JORGE – Pois então, não há necessidade de adiá-lo.
GOMES – Talvez o senhor estranhe… O passo é impróprio, eu
conheço…

JORGE – Fale com franqueza.

GOMES – Não! Temo abusar… Agradeço-lhe a sua atenção…
Outra vez conversaremos. Hoje mesmo… Logo mais.

JORGE – O Sr. Gomes tem alguma coisa que o inquieta; creia que se estiver.
nas minhas mãos servi-lo…

GOMES – É engano seu!… Não tenho nada.

JORGE – Talvez algum embaraço… Sim! Isto não depende de nós…
Pode acontecer a qualquer… De repente precisamos de algum… dinheiro…

GOMES – Sr. Jorge! Não vim pedir-lhe dinheiro emprestado! Não
é meu costume.

JORGE – Perdão, Sr. Gomes! Não tive intenção
de ofendê-lo. Estimo-o e respeito-o muito…

GOMES – Faço justiça às suas intenções…
Mas creia… Se me visse reduzido a essas circunstâncias preferiria
morrer de fome a tirar esmolas.

JORGE – A palavra é dura! Recorrer a um amigo não é
mendigar.

GOMES – Não; mas pedir quando não se pode e não se espera
pagar… é mais que mendigar…. É abusar da confiança;
é roubar. Bem vê que não seria capaz.

JORGE – Mas o Sr. Gomes não está nessas circunstâncias.

GOMES – Não devo tomar-lhe o tempo com os meus negócios. O
objeto sobre que desejava falar-lhe… é muito diferente.

JORGE – Pois eu o escuto.

GOMES – Não! Preciso refletir ainda.

JORGE – Mas não poderei saber?…

GOMES – É escusado… Permita-me!

JORGE – Como quiser.

GOMES – Passe bem!

CENA VII

JORGE, DR. LIMA e JOANA

DR. LIMA – Já foi o seu amigo?

JORGE – Já, doutor.

DR. LIMA – Examinou-o bem?… Ele tem alguma coisa. Não está
no seu estado normal.

JORGE – Assim me pareceu.

DR. LIMA – Aconselhe-lhe que se trate.

JORGE – Hei de procurá-lo daqui a pouco. É nosso vizinho; mora
no primeiro andar… Julgo que tem sofrido desarranjos nos seus negócios.

JOANA – Iaiá D. Elisa me disse, nhonhô, que ele sempre foi assim
triste.

DR. ~ – Quem é iaiá D. Elisa?

JOANA – É a filha do Sr. Gomes.

DR. LIMA – Bonita?

JOANA Como nhonhô! Parece que nasceram um para o outro.

DR. LIMA – Ah! Temos romance?

JORGE – Qual, doutor!… São idéias de Joana.

DR. LIMA – Havemos de conversar a este respeito. Corri a casa. Está
bem acomodado…. Tem o que é preciso para um moço solteiro.

JOANA – Oh! Ainda falta muita coisa! Mas há de vir com o tempo.

DR. LIMA – E graças aos teus cuidados. Mas não te esqueças,
Joana! Vai aprontar o quarto do doutor.

JOANA – Sr. doutor fica morando aqui?

JORGE – Então!

DR. LIMA – Já tomei um quarto no Hotel da Europa.

JORGE – Como, doutor?… Não esperava.

DR. LIMA – Desculpe, meu amigo! Tenho os meus hábitos. Já estou
velho. Não quero nem incomodá-lo, nem incomodar-me.

JORGE – Ao menos há de jantar conosco…

DR. LIMA – Hoje não é possível.

JORGE – Ora! Não o deixo sair. Lembre-se que dia é hoje.

DR. LIMA – Já me disse. É o dia de seus anos.

JORGE – E o da sua chegada!… Mas pertence também a Joana.

DR. LIMA – É verdade.

JORGE (a JOANA) – Vai! Olha que o doutor chega da Europa onde se cozinha
perfeitamente. Hás de deitar três talheres.

JOANA – Nhonhô espera mais alguém?

JORGE – Quantos somos nós?

JOANA – Nhonhô!… Logo não vê!… Joana sentar-se na
mesa com seu senhor!… Credo!

JORGE – Já te disse, Joana!… Aqui não há nem senhor,
nem escrava… Se me tornas a falar assim, ralho contigo.

JOANA – Será a primeira vez.

JORGE – E quem terá a culpa?… Anda! Quem desembarca precisa jantar
cedo.

DR. LIMA – Mas, decididamente, Jorge, não posso.

JORGE – Sério, doutor?

DR. LIMA – Se lhe recuso isto, é que tenho motivo forte.

JORGE – Neste caso não insisto. (Escreve.)

DR. LIMA – Outro dia! Breve… Hoje deitarás apenas dois talheres,
Joana; um para Jorge e outro para ti.

JOANA – Não lembre mais isto, meu senhor!

JORGE – Não acha que deve ser assim?

DR. LIMA – Decerto. (Baixo a JOANA) Senão, fico.

JOANA – Está bom… Será como Vm. quiser.

DR. LIMA – E no jantar hão de beber duas saúdes.

JORGE – À sua, doutor.

DR. LIMA – À minha sim, mas em primeiro lugar à de sua mãe.

JORGE – E à de Joana.

DR. LIMA – Também!

JORGE – Joana, escuta. Permite, doutor?

DR. LIMA – Pois não!

JORGE – Leve esta carta a D. Elisa.

JOANA – A iaiá?… Dê cá, nhonhô.

JORGE N&atildatilde;o!… Melhor é que eu não lhe escreva.

JOANA – Que tem isso agora?

JORGE – Ela pode ofender-se!… Desce e procura saber que tem, seu pai.

JOANA – Sim, nhonhô!… Vou já.

JORGE – Não te demores!

JOANA – Meu senhor doutor ainda fica?

DR. LIMA – Não. Também vou.

JORGE – Espere um momento.

JOANA – Sr. doutor tem que fazer, nhonhô.

JORGE – Vai, Joana.

DR. LIMA – Adeus. Basta de maçada.

CENA VIII

DR. LIMA e JORGE

JORGE – Que pressa é essa, doutor? Sente-se.

DR. LIMA – Teremos muitas ocasiões de conversar.

JORGE – Sem dúvida; mas estou impaciente por saber de sua boca o nome
de minha mãe.

DR. LIMA – De… sua mãe?

JORGE – Sim, doutor.

DR. LIMA Também eu o ignoro, Jorge.

JORGE – Mas, doutor, eu fui criado em sua casa. Devo-lhe a educação..

DR. LIMA Pela última vez lhe digo, Jorge… Nada me deve… Nada absolutamente!

JORGE – Ora, doutor!…

DR. LIMA – Dou-lhe minha palavra, e sabe que nunca a dou debalde.

JORGE – Creio, doutor.

DR. LIMA – Pois dou-lhe minha palavra que nunca despendi um real com a sua
educação… Quando o quisesse, não podia… Sou pobre!

JORGE – Mas então quem pagava as despesas que eu fazia?

DR. LIMA – Sua mãe.

JORGE – E a ocultam de mim!

DR. LIMA – Não a conheci… Escute, Jorge. Todo o segredo do seu nascimento
é este.

JORGE – Fale, doutor.

DR. LIMA – Uma noite fui chamado a toda a pressa para ver meu amigo Soares…

JORGE – Meu pai!

DR. LIMA – Quando cheguei, seu pai já estava moribundo. Apenas me
viu, estendeu-me a mão, balbuciando estas palavras: "Meu filho…
sua mãe…" E expirou.

JORGE – E nada mais?

DR. LIMA – Nada mais. Trouxe-o para minha casa, onde Joana o criou.

JORGE – Joana; a única herança de meu pai!

DR. LIMA – A única!… É verdade.

JORGE – Também ela ignora!… Mas doutor, não me disse como
esses suprimentos se faziam.

DR. LIMA – De uma maneira muito simples. Quando o senhor precisava de roupa,
livros ou qualquer objeto, vinham trazê-lo à casa.

JORGE – Quem?

DR. LIMA – Caixeiros… alfaiates…

JORGE – E nunca lhe disseram?

DR. LIMA – Se eles não sabiam?

JORGE – Assim estou condenado a ignorar sempre o nome de minha mãe.

DR. LIMA – Não se ocupe com isto!… Algum dia, quando menos esperar,
há de saber. Continue a portar-se como homem de bem, e deixe o mais
à Providência.

JORGE – Mas é triste, doutor.

DR. LIMA – Quem sabe?… Quantas vezes esse mistério não é
uma felicidade.

JORGE – Não o percebo.

DR. LIMA – Quantas vezes a revelação não perturba as
relações de pessoas que se estimam, e não acarreta sobre
elas o opróbrio e a desonra…

JORGE – É possível?… Sacrificar-se o filho ao egoísmo.

DR. LIMA – Não acuse, Jorge.

JORGE – Tem razão, doutor.

DR. LIMA – Já se viram pais que se ocultaram para não envergonhar
os filhos do seu nascimento.

JORGE – Não diga isto, doutor!… Um filho nunca se pode envergonhar
de seu pai!

DR. LIMA – Mas suponha que ele teve a desgraça de sofrer uma condenação…
Que tornou-se indigno…

JORGE – Nem assim! Não há motivo que justifique semelhante
ingratidão.

DR. LIMA – Nem um?…

JORGE – Nem um, doutor! Se pois é essa a razão… –

DR. LIMA – Que lembrança!… Foi apenas uma suposição…
Já lhe disse quanto sabia.

JORGE – Dá-me a sua palavra?

DR. LIMA – Jorge, não se esteja a afligir com estas coisas, que no
fim de contas nenhuma influência têm sobre a vida… Adeus. É
tarde.

JORGE – Estou convencido agora de que sabe mais do que disse.

DR. LIMA – Engana-se.

JORGE – Por que não me dá a sua palavra?

DR. LIMA – Não vale a pena.

CENA IX

Os mesmos e JOANA

JOANA – Ainda está aqui, meu senhor?

DR. LIMA – Esperava que chegasses.

JORGE – Então, Joana?

JOANA – Já fui, nhonhô.

DR. LIMA – Meu amigo, o senhor tem que conversar com Joana. Deixo-o. Até
amanhã.

JORGE – Até amanhã, doutor. Hei de procurá-lo.

DR. LIMA – Já lhe disse onde estou… Hotel…

JORGE – Da Europa.

DR. LIMA – Justo! Mas não sei se ficarei lá. É caro
para os pobres.

JOANA – Ora, meu senhor andou viajando.

DR. LIMA – É o que tu pensas!… Gasta-se por lá metade do
que é necessário para viver aqui modestamente.

JORGE – Reflita no que lhe disse. Faz mal em ocultar-me.

DR. LIMA – Não pense mais nisso.

CENA X

JORGE e JOANA

JOANA – O que é que o Sr. doutor não quer dizer a nhonhô?

JORGE – Uma coisa que não te interessa.

JOANA – Nhonhô não quer que Joana saiba seus segredos… Não
pergunto mais.

JORGE – Não é por isso.

JOANA – Deve ser assim mesmo, nhonhô… Quem é esta pobre mulata
para que Vm. lhe conte sua vida!

JORGE – Está bom, Joana! Eu te digo… Perguntei ao doutor quem era
minha mãe.

JOANA – Ah! E ele?…

JORGE – Respondeu o mesmo que tu. Mas que soubeste de Elisa?

JOANA – De iaiá D. Elisa…

JORGE – Já não te lembras?

JOANA – Lembro, lembro, nhonhô!… Ela está muito triste; porém
não quis dizer porquê.

JORGE – E seu pai?

JOANA – Sr. Gomes saiu. Iaiá perguntou se Vm. estava em casa… Talvez
ela queira falar com nhonhô.

JORGE – Vou vê-la.

JOANA – Vá, nhonhô. Como ela há de ficar contente! JORGE
– Estás com as tuas idéias.

JOANA – Pois então, nhonhô!… Aonde é que se viu um
parzinho mais igual.

JORGE – Achas que sim?

JOANA – E não sou eu só!… Quando nhonhô descer, cerra
a porta. Eu vou enxaguar uma roupa lá dentro, pode alguém entrar.

CENA XI

JORGE e ELTSA

JORGE – Elisa!

ELISA – Não me leve a mal, Sr. Jorge.

JORGE – O que, Elisa?

ELISA – Este passo que dei… Se soubesse!

JORGE – Conte-me!… Que sucedeu a seu pai?

ELISA – Uma desgraça!… Ele não esteve aqui?

JORGE – Há pouco… bastante perturbado… E não me disse o
motivo por que me procurava.

ELISA – Faltou-lhe a coragem… Meu pobre pai!

JORGE – O que foi?… A que vinha ele?

ELISA – Vinha… Vinha pedir-lhe emprestado… Oh! como lhe custou!

JORGE – Mas… por que repeliu o oferecimento que lhe fiz…

ELISA – Teve vergonha de aceitá-lo… E, entretanto, era para salvar
a sua vida!…

JORGE – A vida de seu pai! Como, meu Deus!… Elisa! explique-me o que se
passa…

ELISA – Estou tão aflita… Nem posso falar… Desculpe, Sr. Jorge!…

JORGE – Descanse um pouco!

ELISA – Não! desço já. Não devo me demorar aqui!

JORGE – Tem receio… Não está em sua casa? Esqueceu-se!

ELISA – Se não tivesse tanta confiança no senhor, subiria aqui?…
morreria antes. Veria morrer meu pai! Mas não teria ânimo…

JORGE – Diga-me… O que houve?

ELISA – Meu pai vendeu tudo quanto tinha para pagar as suas dívidas…

JORGE – Sossegue! Não lhe faltará o necessário.

ELISA – Oh! se fosse isto!… Eu posso trabalhar… Mas uma coisa horrível,
uma calúnia… Dizem que meu pai falsificou uma letra!

JORGE – Ah!

ELISA – Meu pai, o homem mais honrado…

JORGE – Incapaz de semelhante ação.

ELISA – Teme ser condenado… Diz que não pode resistir à vergonha…
Quer matar-se!

JORGE – Que loucura!

ELISA – Mas ele o fará! Olhe!

JORGE – O que é isto, Elisa?

ELISA – Veneno, Sr. Jorge… Veneno que meu pai trazia consigo, porque há
muitos dias essa idéia o persegue.

JORGE – Dê-me este vidro. Eu falarei a seu pai.

ELISA – Não lhe fale, não!… Ele se irritaria… sem mudar
de tenção. Já supliquei de joelhos!

JORGE – Então confessou-lhe.

ELISA – Tudo… E disse-me que se não tivesse força para lutar
contra a desgraça, ainda aí ficaria bastante… para mim!

JORGE – Cale-se, Elisa.

ELISA – "É a única herança de teu pai" – me
disse ele chorando.

JORGE – Está louco!…

ELISA — Não, Sr. Jorge! Ele tem razão! Devemos morrer juntos!

JORGE – Havemos de viver juntos, Elisa. Porque juro que salvarei seu pai.
Mas preciso vê-lo.

ELISA – Não lhe diga que lhe contei…

JORGE – Como saberei as circunstâncias do fato que lhe imputam?

ELISA – Ele mesmo nada sabe… senão que um homem O procurou há
pouco e ameaçou-o de entregar a letra falsificada à polícia,
se lhe não pagasse hoje às cinco horas da tarde!

JORGE – Em quanto monta essa letra?

ELISA – Em 500$OOO.

JORGE – E paga ela, seu pai está salvo?

ELISA – Da desonra… e da morte… sim!

JORGE – Não tenho agora essa quantia… Mas prometo arranjá-la,
Elisa.

ELISA – Não, não consinto, Sr. Jorge! Não era isso que
lhe vinha pedir…

JORGE – Qualquer estranho o faria para salvar a vida de seu

ELISA – Eu não lhe devia ter dito!… Mas a idéia de ver morrer
meu pai!

JORGE – Elisa!… Repila essa idéia!… Confie em Deus!

ELISA – Em Deus e no senhor!… Quem tenho eu mais na terra, além
de meu pai?

JORGE – Preciso sair… Daqui a uma hora voltarei! Hei de salvá-lo!

ELISA – Vou com essa esperança!…

CENA XII

JORGE e JOANA

JORGE – Quinhentos mil-réis!…

JOANA – O que é, nhonhô?

JORGE – Deixa-me!…

JOANA – Meu Deus!… Perdão!… Que lhe fiz eu, nhonhô?

JORGE – Nada.

JOANA – Contaram-lhe alguma coisa!… Não acredite!…

JORGE – Em que?

JOANA – Não acredite no que lhe disseram.

JORGE – E tu sabes o que me disseram?

JOANA – Não!… não sei… Mas não é verdade!…
Eu lhe juro, nhonhô.

JORGE – Não te entendo, Joana! Perdeste a cabeça?

JOANA – Mas… Que tem nhonhô então?

JORGE – Estou desesperado!

JOANA – Por quê?

JORGE – Preciso de dinheiro… e não sei como hei de obtê-lo.
(Sai.)

JOANA – Ah!

ATO TERCEIRO

Em casa de JORGE. A mesma sala.

CENA PRIMEIRA

JORGE e JOANA

JORGE – O doutor não veio?…

JOANA – Depois que nhonhô saiu?… Não!

JORGE – Já não sei o que faça!

JOANA – Nhonhô não achou o dinheiro de que precisa?

JORGE – Qual!… Fui ao doutor, não estava… Deixei-lhe uma carta.
Procurei um homem que me costumava emprestar às vezes… Exige penhor…
Que posso eu dar?… Só tenho esta mobília!

JOANA – Mas a casa há de ficar sem trastes?

JORGE – Que remédio, Joana!… Prometeu vir daqui a pouco avaliar…
Quanto poderão valer essas cadeiras?… Uma bagatela… cem mil-réis?

JOANA – Valem muito mais!…

JORGE – O meu relógio deu-me apenas cinqüenta!

JOANA – Nhonhô foi empenhar o seu relógio?…

JORGE – Que havia de fazer?

JOANA – Jesus!… Que pena!… Mas Sr. doutor já há de ter
recebido a carta… Não deve tardar por aí.

JORGE – É a minha única esperança.

JOANA – Enquanto ele não chega, venha jantar, nhonhô; são
mais de três horas.

JORGE – Não quero jantar agora, Joana… Estou fatigado… inquieto…
Depois.

JOANA – Almoçou tão pouco!

JORGE – Almocei como de costume. Não tenho disposição.

JOANA – Nhonhô não se agasta se eu lhe perguntar uma coisa?…

JORGE – Podes perguntar.

JOANA – Não é só para saber, não… É
que talvez Joana possa remediar… Esse dinheiro de que nhonhô precisa
para que é?

JORGE – Se o segredo me pertencesse, eu to diria.

JOANA – Ah! É um segredo… Mas precisa mesmo?…

JORGE – Daria metade da minha vida para obtê-lo.

JOANA – Pois então, nhonhô, fique descansado! Tudo se há
de arranjar.

JORGE – Como, Joana?… Por que meio?

CENA II

Os mesmos e DR. LIMA

JORGE – Ah! É o doutor…

JOANA – Ele mesmo!…

DR. LIMA – Apenas recebi a sua carta, meti-me num tílburi e aqui estou.
Que temos?

JORGE – Creia, doutor, que só uma circunstância extraordinária
me obrigaria a recorrer à sua amizade.

DR. LIMA – Nada de preâmbulos, meu amigo. Eu o conheço. Em que
lhe posso servir?

JORGE – Preciso, doutor…

DR. LIMA – De quê? Não se vexe!

JORGE – Talvez repare…

DR. LIMA – Precisa de dinheiro… Não é?

JORGE – É verdade.

DR. LIMA – De quanto?

JORGE – De quinhentos mil-réis… Reconheço que é uma
quantia avultada.

DR. LIMA – Até aí chegam as minhas forças. Amanhã
lhos trarei.

JORGE – Amanhã?

DR. LIMA – Apenas tire o meu fato da alfândega.

JOANA – Ora, bravo… Está tudo arranjado. Eu bem sabia que meu senhor
Dr. Lima era um amigo de mão cheia.

JORGE – Mas eu preciso para hoje às quatro horas sem falta.

DR. LIMA – Eis o que é impossível. Três e dez… A alfândega
está fechada… os meus papéis estão na mala… A ninguém
conheço… Entretanto vou tentar.

JORGE – Inda mais incômodo!… Com efeito, o senhor deve fazer bem
triste idéia de mim!

DR. LIMA – Jorge!… Não me ofenda!

JORGE – Parece que o estava esperando para importuná-lo… Mas quando
souber o motivo me desculpará.

DR. LIMA – Não quero que mo declare; sei que é honroso, e isto
basta-me.

JORGE – Muito obrigado!

DR. LIMA – Não percamos tempo. Se não estiver aqui às
quatro horas, é que nada consegui.

CENA III

JORGE e JOANA

JORGE – Está acabado!… Morrerei também!

JOANA – Nhonhô! Não diga isso!… Há de ter esse dinheiro.

JORGE A última esperança foi-se!

JOANA – Ainda não, nhonhô! Não é de quinhentos
mil-réis que precisa?

JORGE – Onde irei eu achá-los?

JOANA – Mas… sua mulata assim mesmo velha, ainda vale mais do que isso.

JORGE – Que queres dizer, Joana?

JOANA – Nhonhô não me deu este papel?… Eu não careço
dele!

JORGE – A tua carta!… Estás louca?

JOANA – Ouça, nhonhô…

JORGE – Não quero ouvir nada.

JOANA – Mas nhonhô prometeu dar esse dinheiro.

JORGE – Prometi.

JOANA – Então! Há de faltar à sua palavra… E falar
em morrer…

JORGE – Queres que para evitar um mal, cometa um crime?… Que roube a liberdade
que te dei?…

JOANA – Nhonhô não rouba nada!… Eu é que não
quero… Não pedi!…

JORGE – Que importa?… O que dei não me pertence.

JOANA – Pois eu não aceito! Veja…

JORGE – Que vais fazer?

JOANA – Nhonhô não há de obrigar… Não sou forra!…
Não quero ser!… Não quero!… Sou escrava de meu senhor!…
E ele não há de padecer necessidades!… Tinha que ver agora
uma mulher em casa sem fazer nada, sem prestar para coisa alguma… E meu
nhonhô triste e agoniado.

JORGE – Não recebo o teu sacrifício. É escusado. Depois,
de que me serviria isto?

JOANA – Mas vem cá, nhonhô… Vm. não disse esta manhã
que há muito tempo me queria forrar?

JORGE – E disse a verdade.

JOANA – Quem duvida?… Mas não forrou porque tinha pedido um dinheiro
emprestado com… Não sei como se chama.

JORGE – Com hipoteca?

JOANA – Isso mesmo!… Pois que custa nhonhô pedir outra vez esse dinheiro
emprestado?

JORGE – Tu já não és minha escrava.

JOANA – O que sou eu então!… Nhonhô não me quer mais…
Não presto para nada… Paciência!

JORGE – Estás forra.

JOANA – Mas eu rasguei o papel.

JORGE – É indiferente. Eu o escrevi.

JOANA – Que tinha que fizesse isto? Amanhã, Sr. Dr. Lima trazia o
dinheiro, e estava tudo direito.

JORGE – Vê quem está batendo. Deve ser o Peixoto.

JOANA – Mas então, nhonhô?

JORGE – Abre a porta.

CENA IV

Os mesmos e ELISA

JOANA – Iaiá D. Elisa!

ELISA – Sr. Jorge. (JOANA afasta-se.)

JORGE – Nada obtive ainda, Elisa.

ELISA – Meu Deus!… Ele já me perguntou pelo vidro!… Eu lhe respondi…
Nem sei o que lhe respondi!… São mais de três horas…

JORGE – Não desespere, Elisa! Ainda temos tempo. Vá fazer-lhe
companhia. Não o deixe.

ELISA – Oh! se as minhas lágrimas o salvassem!

JORGE – Em último caso, se nada conseguir, irei ter com ele… Não
o deixarei realizar o projeto que medita.

ELISA – Mas ficará desonrado… Acusado de falsificador, será
demitido… Cuida que resistirá?

JORGE – Procuremos salvar-lhe a honra… Se não for possível,
de duas desgraças a menor… a que ainda pode ser reparada!

ELISA – Conto com o senhor!… Não nos abandone, Sr. Jorge.

JORGE – Vá descansada! Talvez mais cedo do que pensa eu possa levar-lhe
uma boa notícia!… Se houver alguma coisa de novo, venha me dizer!.

JOANA – Que tem iaiá que está tão triste?

ELISA – Logo te direi, Joana.

JOANA – Sua mulata de nada serve, mas…

ELISA – Sei quanto és boa! Porém não me podes valer.

JOANA – Quem sabe, iaiá?

CENA V

JORGE e JOANA

JORGE – Joana!… Aceito o sacrifício que me fazes!.

JOANA – Qual sacrifício!… Isso é o que nhonhô devia
ter feito logo. Já estava livre de cuidados.

JORGE – Não o aceitaria nunca se não fosse para o fim que é…
Para salvar a vida de um homem… de um pai!

JOANA – Do Sr. Gomes?

JORGE – Sim, do pai de Elisa.

JOANA – Por isso é que iaiá está com os olhos vermelhos
de chorar!… Pois nhonhô sabia e recusava!…

JORGE – Nem imaginas quanto me custa!… Há muito tempo não
tenho uma tão grande satisfação como a que senti hoje
dando-te a liberdade, Joana! Nunca o dinheiro ganho pelo trabalho honesto
me inspirou tão nobre e tão justo orgulho!… E destruir agora
a minha obra!… Ah! Elisa não sabe que fel me fazer tragar as suas
lágrimas!

JOANA – Está bom, nhonhô, não esteja triste!’… Tudo
vai se arranjar… daqui a uma semana, se tanto, que festa não há
de haver nesta casa!

JORGE – Se eu já tiver restituído o que hoje confias de mim
com tanta generosidade. Antes disso juro que não gastarei senão
o que for absolutamente necessário para viver.

JOANA – E por que agora nhonhô há de se privar do que precisar?

JORGE – O devedor que assim não procede, rouba ao seu credor. E se
houve dívida sagrada no mundo é esta que vou contrair contigo.

JOANA – Não, vejo nada de maior.

JORGE – Aumentas o sacrifício, diminuindo-lhe o valor.

JOANA – Nhonhô hoje não está bom, não! Tão
cheio de partes!…

JORGE – Será o doutor?

CENA VI

Os mesmos e PEIXOTO

PEIXOTO – Com licença!

JORGE – Ah!… Faz obséquio de sentar-se?

PEIXOTO – Tardei um pouco. Tive que fazer.

JOANA – É o homem dos trastes, nhonhô?

JORGE – E o doutor nada!

JOANA – Não achou.

PEIXOTO – Vamos a isso! Falou-me na sua mobília. É esta?

JORGE – Sim, senhor. Tenho também alguns trastes na varanda.

PEIXOTO – Jacarandá… Mais de meio uso.

JOANA – Quase nova, meu senhor…

PEIXOTO – Tem alguns dois anos de serviço.

JOANA – Jesus!… Nem dois meses!

PEIXOTO – Então foi comprada em leilão. Não há
que fiar agora. Imaginem trastes velhos por novos… Lixa e verniz… Não
custa.

JORGE – Mas quanto dá o senhor?

PEIXOTO – Por isto que aqui está… Último preço oitenta
mil-réis. Não vale mais.

JORGE – Oitenta só?

PEIXOTO – Só. E não é pouco.

JOANA – Ora, meu senhor! Mais do que isto custou o sofá.

PEIXOTO – Pode ser. Não dou mais.

JORGE – E pela minha cama?… É de mogno maciço.

PEIXOTO – Vejamos. (Entra na alcova.)

JOANA – Mas nhonhô há de ficar sem a sua cama? Isso não
tem jeito nenhum.

JORGE – Comprarei outra depois.

JOANA – Melhor é fazer o que lhe disse, nhonhô.

JORGE – Deixa ver… Talvez não seja preciso.

PEIXOTO – A cama e a mobília da sala… Fica tudo por cento e vinte
mil-réis. Tem mais alguma coisa?

JOANA – Tem, sim, meu senhor!… Tem esta escrava! Quanto acha Vm. que ela
vale?

PEIXOTO – Ah! Isto é outro caso!… (A JORGE) Quer renovar a hipoteca
sobre ela?

JOANA – Quer… Ele quer… Pois já não disse?…

PEIXOTO – Não ouvi! Então fica sem efeito o negócio
dos trastes?

JOANA – Fica, meu senhor!… Não é, nhonhô?

JORGE – Não sei.

PEIXOTO – Em que ficamos?

JOANA – Devem ser quatro horas!

JORGE – Quatro horas!?… Que decide, senhor?

PEIXOTO – Sobre a mulata?

JORGE – Sim!

PEIXOTO – Dou-lhe sobre ela trezentos mil-réis.

JORGE – Como, senhor?!… Não lhe estava hipotecada por seiscentos
mil-réis que acabei de pagar hoje?

PEIXOTO – Foi em outro tempo! Hoje está velha.

JOANA – Eu velha, meu senhor!… Mal tenho trinta e sete anos… Depois não
sou qualquer mulatinha como essas preguiçosas que não entendem
de outra coisa senão de estar na janela!… Eu sei pentear e vestir
uma moça que faz gosto. Melhor do que muita mucama de fama.

PEIXOTO – Não tenho filhas.

JOANA – Mas eu também sei coser, lavar, engomar. Que pensa meu senhor?…
Onde me vê, não é por me gabar… Dou conta do arranjo
de uma casa… Varro, arrumo tudo, cozinho, ponho a mesa; e ainda me fica
tempo para fazer as minhas costuras, remendar os panos de prato, arcar as
panelas… Pergunte a nhonhô!

JORGE – Joana, eu te peço!

JOANA – Olhe, meu senhor! Dê quinhentos mil-réis, que não
se há de arrepender!… Dê sem susto, porque o mais tarde, o
mais tarde, amanhã meu nhonhô vai lhe pagar.

PEIXOTO – Não posso. Tu não estás segura…

JOANA – Eu não preciso, meu senhor!… Prometo a Vm. que não
morro!… Não é capaz!… Tenho vida para cem anos. Vm. não
conhece esta mulata, não. Seguro… Isto é para a gente de hoje!…

JORGE – Escuta, Joana.

JOANA – Nhonhô espere… Então Vm. não dá os quinhentos
mil-réis?

PEIXOTO – Veremos: veremos! Conforme as condições que teu senhor
aceitar.

JOANA – Logo vi que Vm. havia de chegar… Porque olhe!… Também
por menos, estava bem livre!… – O que é, nhonhô?

JORGE (a meia voz) – Deixa-nos a sós Quero tratar com este homem.

JOANA – E que tem que eu esteja aqui, nhonhô?

JORGE – Em tua presença nunca poderei.

JOANA – Pois eu vou. Não se arrependa, nhonhô. D. Iaiá
Elisa está esperando… Coitadinha!…

CENA VII

JORGE e PEIXOTO

PEIXOTO – Está disposto a efetuar o negócio?

JORGE – Por quinhentos mil-réis dados imediatamente.

PEIXOTO – Já vejo que nada fazemos.

JORGE – O senhor supõe que estou, como certas pessoas com quem trata,
procurando rodeios para tirar-lhe a maior soma possível. Engana-se.

PEIXOTO – Não suponho tal.

JORGE – Tenho urgente necessidade de quinhentos mil-réis, hoje, dentro
de meia hora. Desde que não é possível obter esta quantia,
o negócio não me convém. E não sei, Sr. Peixoto,
se deva agradecer-lhe.

PEIXOTO – Então precisa de quinhentos mil-réis?

JORGE – Justos.

PEIXOTO – Pois não seja esta a dificuldade. Dou-lhe esse dinheiro
sobre a escrava.

JORGE – Já?

PEIXOTO – Não o trago aqui, mas vou buscá-lo… num instante…
Isto é, eu ainda não examinei a peça… mas podemos terminar
isto.

JORGE – Que é preciso fazer?… Ir a um tabelião…

PEIXOTO – Levaria muito tempo. Distribuir a escritura… pagar selo… Nem
amanhã se concluiria.

JORGE – Mas eu preciso hoje.

PEIXOTO – Há meio de remediar tudo. Faça um penhor!

JORGE – Para que o senhor a leve?

PEIXOTO – Um simples escrito, e está o negócio arranjado.

JORGE – Isso de maneira alguma! Pensei que era o contrato que já fizemos!
Joana hipotecada ao senhor, mas sempre em minha casa!.

PEIXOTO – Deste modo nem é possível, nem eu lhe daria os quinhentos
mil-réis. Devo lucrar os serviços.

JORGE – Por algumas horas… Pois amanhã…

PEIXOTO – Lá isso não sei… Pode ser por meses.

JORGE – Não tenho ânimo de separá-la de mim, de tirá-la
de casa!

PEIXOTO – Pois resolva-se!… Vou ao escritório buscar o dinheiro.
Daqui a cinco minutos venho saber a resposta.

JORGE – É escusado… Para que se incomodar?

PEIXOTO – Tenho um negócio para estas bandas. Até já.

CENA VIII

JORGE e JOANA

JOANA – Arranjou-se tudo, nhonhô! Não foi?

JORGE – Não fiz nada; estou na mesma.

JOANA – O homem teimou em não dar os quinhentos mil-réis?

JORGE – Dava: mas com uma condição que não quis… que
não devia aceitar.

JOANA – Qual, nhonhô?

JORGE – Não entendes de negócio. Tanto faz dizer-te como não.

JOANA – É verdade que Joana não estudou como os homens que
vão à escola! Mas… Nhonhô não faça pouco…
Eu sei muita coisa. Pode ser que lembre uma idéia boa.

JORGE – Não fazemos nada, Joana. O melhor é resignar-me.

JOANA – Então nhonhô deixa morrer o pai de iaiá D. Elisa?

JORGE – Ele há de atender-me!… É impossível que um
homem razoável persista em fazer semelhante loucura.

JOANA – Mas Vm. prometeu a iaiá… E quando ela vier que lhe há
de responder?

JORGE – O quê?… Que esta vida não vale as lágrimas
que custa!

JOANA – Nhonhô!… Não se lembre disso!

JORGE – Que hei de fazer, Joana?

JOANA – Se não tivesse deixado o homem sair.

JORGE – Ele ficou de voltar para saber a resposta.

JOANA – Que resposta?

JORGE – Da condição que me propôs… Queria que te desse
em penhor.

JOANA – Que eu fosse para a casa dele?

JORGE – Bem vês que não devia aceitar!

JOANA – Nhonhô precisa do dinheiro… Aceite!… Mas é por hoje
só, não é?

JORGE – Unicamente!… Amanhã, apenas o doutor chegasse, iria te buscar.

JOANA – Pois então!… Uma tarde depressa se passa!… Nhonhô
não faltará ao que prometeu.

JORGE – Elisa vai agradecer-me o que só deverá a til Assim
é este mundo.

JOANA – Eu não faço nada por iaiá D. Elisa… É
por meu senhor…

JORGE – O Peixoto está se demorando! Se não voltar!

JOANA – Eu vou chamá-lo.

JORGE – Espera!… Às vezes tenho vontade que ele não venha.

JOANA – Ah! se o Sr. doutor aparece por aí!

JORGE – Não ouves subir?

JOANA – Vou ver.

CENA IX

Os mesmos e PEIXOTO

PEIXOTO – Já sei que resolveu-se?

JORGE – As circunstâncias me forçaram.

PEIXOTO – Ora bem! Fechemos o negócio. Vem cá, mulata.

JOANA – Meu senhor!

PEIXOTO – Deixa lá ver os pés!

JOANA – Meu senhor está desconfiado comigo! Eu não tenho doença!…
Se nunca senti me doer a cabeça, até hoje, graças a Deus!

PEIXOTO – Tá, tá, tá, cantigas!… Vamos!… Não
te faças de boa!

JOANA – Ninguém ainda me tratou assim, meu senhor!

PEIXOTO – Anda lá!… Mostra os dentes!

JOANA – Todos sãos!

PEIXOTO – É o que esta gente tem que mete inveja! Se fosse possível
trocar!… E não tens marca?

JORGE – Senhor! Acabe com isto!… Não posso mais ver semelhante cena.

PEIXÓTO – Quem dá o seu dinheiro, Sr. Jorge, deve saber o que
compra… Se não lhe agrada…

JORGE – Está no seu direito; quem lhe contesta?… Mas terminemos
com isto de uma vez.

PEIXOTO – Não desejo outra coisa. Então tens as tais marcas,
hein?…

JOANA – Fui mucama de minha senhora moça, que me tratava como sua
irmã dela. Saí para o poder de nhonhô, que até
hoje nunca me disse "Joana, estou zangado contigo!"

PEIXOTO – Tens um bom senhor, já vejo!

JORGE – Perdoa, Joana, o por que te fiz passar!

JOANA – Não foi nada, nhonhô.

PEIXOTO – Muito bem! Aqui está o papel.

JORGE – O senhor enganou-se!… Seiscentos mil-réis?

PEIXOTO – É difícil enganar-me. São mesmo seiscentos
mil-réis.

JORGE – Mas eu pedi-lhe quinhentos mil-réis.

PEIXOTO – Justo! É o que há de receber. Os cem são de
juros.

JORGE – Por um dia?… Pois amanhã…

PEIXOTO – Não empresto por um dia! Se quiser pagar amanhã,
nada tenho com isso.

JORGE – Mas receberá.

PEIXOTO – Certamente!

JORGE – E ganhará em um só dia 20%.

PEIXOTO – São os riscos do negócio… Posso esperar anos sem
receber.

JORGE – Nesse caso os serviços.

PEIXOTO – Ainda não sei quais são. Demais, tenho alimentação,
vestuário, botica, médico, etc.

JORGE – Enfim!… Já não é tempo de recuar. (Vai à
mesa assinar o papel.)

JOANA – Meu senhor, não cuide que vou lhe fazer despesas. Como um
quase nada…

PEIXOTO – Que interesse tens tu no negócio! Parece que estás
morrendo por te ver livre de teu senhor.

JOANA – Está ouvindo, nhonhô?

JORGE – Mas, senhor!… Isto é um papel de venda.

JOANA – De venda?!… Nhonhô me vender!

PEIXOTO. – Questão de palavras!… Não vê que tem a condição
de retro?

JORGE – O senhor falou-me em penhor… Venda! Nunca teria consentido.

PEIXOTO – É uma e a mesma coisa. No penhor, se o senhor não
me pagar, a escrava é minha. Na venda a retro ela volta ao seu poder,
logo que me pague.

JORGE – Em todo o caso prefiro o penhor.

PEIXOTO – Meu caro senhor, tenho tido todas as condescendências possíveis;
mas V. Sa. não está habituado a tratar certos negócios,
de modo que nunca chegaremos a um acordo.

JORGE – Porque o senhor não diz francamente o que exige.

PEIXOTO – Essa é boa! Quer mais franqueza?… É aceitar ou
largar! Não obrigo!

JOANA – Mas se nhonhô lhe pagar amanhã, fica meu senhor outra
vez?

PEIXOTO – Que dúvida!… Tem um mês para pagar! JOANA – Então,
nhonhô… Vem dar no mesmo.

JORGE – Não!… não posso assinar semelhante papel! PEIXOTO
– Bem! o dito por não dito!… Outra vez fará o obséquio
de não me incomodar. Perdi com o senhor a manhã inteira… sem
o menor proveito. (ELISA aparece.)

CENA X

Os mesmos e ELISA

JORGE – Ah! (assina) Tome, senhor. O dinheiro? (Corre a Elisa.)

PEIXOTO – Ei-lo. – Oh! Quem é esta moça?

JOANA – É a filha do Sr. Gomes.

PEIXOTO – Hum!… Percebo!

JORGE – Não se importe que a vejam aqui! Se a caluniarem, eu farei
calar o infame!

ELISA – Nem sei já o que faço!…

JORGE (a PEIXOTO) – O dinheiro?

PEIXOTO – Aqui o tem. Faça o favor de contar.

ELISA – Este homem!…

JORGE – Que tem?

ELISA – É o que ameaçou meu pai!

JORGE – Devia ter adivinhado!

ELISA – Vendo-o entrar, julguei que já vinha… Fiquei fora de mim…
Subi! Há que tempo estou ali sem ânimo de entrar.

JORGE – Finalmente seu pai está salvo! Tome, Elisa!…

ELISA – Oh! não, Sr. Jorge!

JORGE – Tem vergonha de aceitá-los da mão de seu marido?…

ELISA – Não era melhor que o senhor mesmo entregasse a meu pai?

JORGÉ – Ele aceitaria mais facilmente de sua filha!

ELISA – Mas eu é que não posso!… Não devo…

JORGE – Espere!… (A PEIXOTO) O senhor tem eu seu poder uma letra do Sr.
Gomes?

PEIXOTO – Uma letra de quinhentos mil-réis? Sim, meu senhor!

JORGE – Está paga! Dê-me esta letra!

PEIXOTO – Então era esta a necessidade urgente? (Dá a letra.)
Muito podem uns bonitos olhos!

JORGE – Insolente!… Respeite nesta senhora minha mulher.

PEIXOTO – Perdão! Não sabia.

JORGE – (a ELISA) – Agora não deve ter escrúpulos. É
um papel sem valor.

ELISA – Sem valor, Jorge!… Vale a honra e a vida de meu pai; vale a nossa
felicidade.

JORGE – Vá depressa sossegar seu pai… Ah! Agradeça a Joana,
Elisa.

ELISA – Por quê? Ela também se interessou por mim?

JORGE – Depois lhe direi porquê.

JOANA Eu só peço a Deus que faça meu nhonhô e
iaiá D. Elisa muito, muito felizes!

(Durante a cena seguinte vêem-se JORGE e ELISA na porta.)

CENA XI

PEIXOTO e JOANA

PEIXOTO – Não tens alguma roupa?… Ou é só a do corpo?

JOANA – Tenho muita roupa, graças a Deus; é o que não
me falta. Nhonhô me dá mais do que eu preciso.

PEIXOTO – Pois então vai arrumar a trouxa. E anda com isso.

JOANA – Por uma noite?… Nhonhô amanhã vai me buscar.

PEIXOTO – Todos eles dizem o mesmo… Amanhã, amanhã… e o
tal amanhã dura um ano.

JOANA – Que diz, meu senhor?… Um ano!… Oh! meu nhonhô não
é como esses. Vm. há de ver… Ele quer bem à sua mulata.

PEIXOTO – Vamos. Despacha-te. Vai sempre ver a roupa. Não digas que
te engano.

JOANA – Não, meu senhor. Se eu ficar lá, o que Deus não
há de permitir, não… eu virei buscar os meus trapinhos. Agora!…
Se eu os levasse… Era como se não tivesse mais de voltar para o poder
de meu nhonhô!… E Joana não poderia!

PEIXOTO – Bem! Eu cá mandarei.

CENA XII

Os mesmos e JORGE

JORGE – Desculpe se os fiz esperar.

PEIXOTO – Não manda mais nada ao seu serviço?

JORGE – Tenho apenas uma súplica a fazer-lhe.

PEIXOTO – Que diremos?

JORGE – Durante o tempo que esta… que Joana vai estar em sua casa.

PEIXOTO – Que é minha escrava, quer o senhor dizer.

JORGE – Peço-lhe que a trate com doçura. Está habituada
a viver comigo, mais como uma companheira do que…

PEIXOTO – Escusa pedir-me isto. Sou bom senhor. O caso é saberem levar-me.
Anda, mulata! Vamos.

JOANA – Já?!… Me deixe dizer adeus a meu nhonhô.

PEIXOTO – Pois dize lá o teu adeus… E nada de choramingas.

JOANA – Meu nhonhô, adeus! Sua escrava vai-se embora!

JORGE – Joana!

JOANA – Não chore, nhonhô. É por hoje só. Não
é?

JORGE – Eu te juro.

JOANA – Oh! Se não fosse, nhonhô me deixava ir?

JORGE – Decerto que não!

JOANA – Mas se o Sr. doutor não vier amanhã?

JORGE – Se ele faltar, meu Deus!

JOANA – Não há de faltar, não. Sr. doutor é homem
de palavra…

JORGE – E quando por qualquer acaso sucedesse… Ainda tenho forças
para trabalhar.

JOANA – Oh! meu nhonhô! Não é por mim que tenho medo
de ficar lá. Deus é testemunha… Mas quem há de tratar
de meu nhonhô quando sua Joana não estiver aqui?… Quem há
de preparar tudo para que não lhe falte nada? E se nhonhô cair
doente?!… Meu Jesus!… Que dor de coração só de pensar
nisso!

JORGE – Consola-te, Joana. Algumas horas depressa se passam.

JOANA – É assim mesmo, nhonhô… Mas que saudades que Joana
vai ter… Ela que nunca saiu de junto de seu senhor… nem um dia… Que
nunca se deitou sem lhe tomar a bênção! Nhonhô também
há de ter saudades de sua escrava?…

JORGE – Perguntas, Joana.

JOANA – Oh! Eu sei que nhonhô há de ter!… Mas não fique
triste, não.

JORGE – Joana, não me faças perder a coragem… Deste modo
não terei ânimo.

JOANA – Está bom, nhonhô. Olhe: Joana não chora mais!
Está se rindo. Amanhã ela estará aqui outra vez, servindo
seu nhonhô… E iaiá D. Elisa, Sr. Gomes… todos contentes!

PEIXOTO – Se continuamos assim, não saio daqui hoje! É uma
choradeira que nunca mais se acaba.

JORGE – Não zombe destas lágrimas, senhor! Joana me criou!
Nunca nos separamos. É toda a minha família! Ela e um amigo
que tive hoje a felicidade de ver. Amor de mãe que não conheci,
amor de irmã que não tive, tudo concentrei nela!

PEIXOTO – Mas é preciso que terminemos com isto.

JORGE – É justo… Joana! Adeus! Até amanhã!

JOANA – Até amanhã!… Sim, meu nhonhô!… Mas se eu
lhe pedisse…

JORGE – O quê? Dize…

JOANA – Não… Para quê… Incomodar o nhonhô?

JORGE – Pode… O quê?

JOANA – Nhonhô à tardinha… Quando se recolhesses… Podia
passar…

JORGE – Compreendo… Eu irei ver-te, minha boa Joana.

JOANA – Que alegria que Joana terá!

PEIXOTO – Não posso mais. Psiu! Mulata! segue-me!

JORGE – Não lhe fale assim!

PEIXOTO – Ora, essa! É minha escrava. Posso fazer dela o que quiser.

JORGE – Usurário!… Não me obrigue a fazer uma loucura!

JOANA – Nhonhô, não se altere…. Vamos, meu senhor. Estou pronta.

PEIXOTO – Passa! Anda…

JOANA – Nhonhô!… Lembre-se de sua escrava.

JORGE – Meu Deus!

ATO QUARTO

Em casa de JORGE, a mesma sala.

CENA PRIMEIRA

JORGE e ELISA

ELISA – Sr. Jorge!…

JORGE – Ah! bom dia, Elisa!… Seu pai?

ELISA – Está inteiramente calmo. Saiu… Disse-me que daqui a pouco
lhe viria agradecer.

JORGE – Ele já sabe?

ELISA – Contei-lhe tudo!… Não devia?

JORGE – Fez bem. Que respondeu ele?

ELISA – Sorriu, Jorge!

JORGE – Aprovou portanto…

ELISA – Parece…

JORGE – Só nos falta para sermos felizes…

ELISA – O quê?… Não me responde?

JORGE – Não posso agora! Depois saberá, Elisa.

ELISA – Deve ser alguma coisa que lhe pesa! Está inquieto!

JORGE – É engano!… Não tenho motivo de inquietação.

ELISA – Quer ocultar de mim, que lhe contei todos os meus pesares?

JORGE – Nada oculto… São recordações… O espírito
humano é assim… Inquieta-se, possui-se de um vago temor, quando maior
razão tem de alegrar-se.

ELISA – Pois eu o deixo… Já que não posso desvanecer, não
quero perturbar essas recordações.

JORGE – É uma queixa injusta. Fique!

ELISA – Oh! Não… Não posso demorar-me… Não devo!
Quis unicamente agradecer-lhe… Na presença de meu pai não
teria ânimo.

JORGE – Por que, Elisa?

ELISA – Não sei!… Há certas coisas que… Não posso
explicar… Mas só ao senhor as diria!

JORGE – Tem razão, Elisa! Se há poder sublime é o da
alma.

ELISA – Será talvez por isso… Eu conheço que é impróprio
vir aqui! Porém ontem a desgraça me arrastou sem consciência
do que fazia! Hoje foi a gratidão que me trouxe.

JORGE – Uma vez por todas, Elisa. Não tem que me agradecer.

ELISA – Oh! Sr. Jorge!

JORGE – Não, Elisa. O que fiz foi por egoísmo. Não defendia
a minha felicidade? E se alguém deve ser grato, não sou eu?

ELISA – O que o senhor chama a sua felicidade, não é também
a minha? Fui eu que a dei ou que recebi?…

JORGE – Deu-a.

ELISA – Recebi-a com a honra e a vida de meu pai. Bem vê que a gratidão
me pertence e a mim só!

JORGE – De modo algum!

ELISA – Não ma roube!… É a minha única riqueza.

JORGE – E o amor, Elisa?

ELISA – Esse não me pertence! É seu!… Bem o sabe! Adeus.

JORGE – Até logo, então?

ELISA – Até logo, sim… Onde está Joana?

JORGE – Joana? Lá dentro… saiu… creio.

ELISA – Ainda hoje não a vi!… Desde ontem à tarde!…

JORGE – Esteve ocupada talvez.

ELISA – Ralhe com ela para não ser ingrata!… É verdade!.
O que ficou de me dizer ontem?…

JORGE – Depois, Elisa!

ELISA – Também o senhor hoje vai deixando tudo para depois. Quando
se realizarão todas as suas promessas?…

JORGE – No dia em que se realizarem as minhas esperanças.

ELISA – Ah!… Tem bem que esperar!

JORGE – Não há de ser tão má.

CENA II

Os mesmos e JOANA

ELISA – Aqui está ela!

JORGE – Joana!

JOANA – Meu nhonhô!… Como está?… Dormiu bem?… Não
teve nenhum incômodo, não?… Ai, que já não podia!…
Passar tanto tempo sem ver meu nhonhô! Adeus, iaiá.

ELISA – Estou muito agastada contigo!… Onde é que andaste?

JOANA – Eu! Aí mesmo, iaiá.

ELISA – Mas chegaste de fora… Ainda não tinhas visto Sr. Jorge hoje?

JORGE – Ainda não.

ELISA – O senhor ainda não saiu!…

JOANA – Não vê, iaiá… Sim! eu fui ontem de tarde…
Aproveitei, como o tempo estava bom… Fui lavar uma trouxa de roupa numa
chácara em Santa Teresa.

ELISA – Por isso é que não te vi mais ontem?

JOANA – Foi, iaiá… Foi por isso mesmo!… Mas nhonhô está
triste! não fala com sua mulata.

JORGE – Já te falei, Joana. Estou esperando pelo doutor!

JOANA – Não tarda, nhonhô… Vem sem falta. Não se agonie.

ELISA – E eu não quero que me encontre aqui!

JOANA – Iaiá já vai?… Então quando é o dia!

ELISA – Que dia?… Começas com as tuas graças!

JOANA – Ora, isso é uma coisa tratada. Não é, nhonhô?

JORGE – Só falta o que tu sabes, Joana!

ELISA – O quê?… Não me dizem?

JORGE – É um segredo!

JOANA – Iaiá quer saber?

ELISA – Quero, sim!… É a meu respeito?

JOANA – Escute, iaiá… No ouvido. É o vestido que está
se fazendo.

ELISA – Mentirosa!… Cuidas que eu acredito?

JOANA – Se eu é que hei de cosê-lo com estas mãos!

ELISA – Antes disso tens muito que coser.

JOANA – O enxoval! Não é, iaiá?

ELISA – Joana! Por tua causa não hei de vir mais aqui. (Sai.)

CENA III

JOANA e JORGE

JORGE – Como te tratou aquele homem, Joana? Não imaginas quanto me
arrependi… Entretanto se não o fizesse, quem sabe o que aconteceria!

JOANA – Não tenha cuidado, nhonhô! Joana vive em toda a parte…
O que tem é que sente um aperto de coração quando não
pode ver seu nhonhô!

JÓRGE – Também eu! Toda a noite não pude sossegar…
Faltava-me alguma coisa.

JOANA – Deveras!… Nhonhô sentiu que sua Joana se fosse embora!…
Como nhonhô é bom! Como quer bem à sua Joana!

JORGE – Pois duvidavas?

JOANA – Então eu não sei que nhonhô me estima!

JORGE – Muito!… E o doutor que não chega!

JOANA – Não pode tardar. Enquanto nhonhô espera, eu vou endireitar
isto… Como há de estar tudo numa desordem!

JORGE – Decerto!… não estando tu aqui…

JOANA Por isso eu hoje, logo que acordei, pedi a Nosso Senhor Jesus Cristo,
primeiro pela vida e saúde de meu nhonhô, de iaiá D. Elisa,
do Sr. Gomes, do Sr. doutor; depois prometi à Nossa Senhora uma camisinha
bordada para seu menino Jesus dela, o que está na igreja do Sacramento,
se não deixasse dar nove horas em S. Francisco de Paula sem que eu
viesse ver meu nhonhô, tomar a benção a ele e fazer seu
serviço para que não sentisse a falta de sua Joana.

JORGE – E sou eu que hei de cumprir a tua promessa.

JOANA – Não é nhonhô que me dá tudo?… Depois,
das mãos de nhonhô a Virgem Santa há de receber com mais
gosto.

JORGE – Ela a receberá do teu coração, Joana.

JOANA – Mas eu é que hei de bordar a camisinha!

JORGE – Faz-te mal aos olhos o bordar.

JOANA – Para Nossa Senhora… Para seu Menino Jesus dela! Qual!

JORGE – Só consinto com a condição de não trabalhares
à noite.

JOANA – Pois sim, nhonhô. Mas eu não disse como Nossa Senhora
se lembrou de mim!

JORGE – Como foi?

JOANA – Olhe, nhonhô!… Vê-se mesmo que foi coisa do Céu!
E há gente que zomba e não quer acreditar!… Pois eu estava
pensando no meu canto, que volta havia de dar para ver nhonhô, quando
o homem me chamou e disse: "Se alguém bater fala pela janela e
manda esperar. Eu costumo fechar a porta da rua e levar a chave."

JORGE – Deixou-te presa?

JOANA Não, nhonhô! Aí é que está o milagre
de Nossa Senhora! Eu fiquei fria quando ele disse aquilo!… De repente chega
uma carta! O homem lê, ataranta-se todo, e lá se vai, sem chave,
sem nada!

JORGE – E saíste?

JOANA – Fechei tudo direitinho, cerrei a porta da rua e corri até
aqui.

JORGE – Não se zangue ele quando voltar!

JOANA – Antes disso eu hei de estar lá… Deixe-me endireitar tudo…
Espanar a mobília.

JORGE – Talvez não voltes mais! Chegando o doutor…

JOANA – Quem dera, nhonhô!

JORGE – Não te há de alegrar mais do que a mim.

JOANA – Ora, nhonhô quer se privar de sua mobília tão
bonita!… Simples, mas bem feitinha!… Estas cadeiras tão direitinhas…
e leves!… Estes aparadores… Parece que se tomou a medida pela casa.

JORGE – Preferia perder tudo isto a ver-te sair de minha casa… E como?

JOANA – O melhor é a gente não se lembrar mais disto! Oh! nhonhô!
Que vidro é este que está aqui?

JORGE – Qual, Joana?

JOANA Este, nhonhô. Não vê?

JORGE – Cuidado, Joana. É veneno!

JOANA – Veneno!… Nhonhô!… Que quer fazer?… Mau…

JORGE – Ouve!…

JOANA – Mau, sim!… Nhonhô é um ingrato!… Meu Senhor Deus!…
E eu não tive uma pancada no coração que me dissesse!

JORGE – Que estás aí a inventar, Joana? Quem te disse que este
veneno era para mim?

JOANA – Ah! não era… Mas como veio parar aqui?

JORGE – Eu te explico. Ninguém mais do que tu deve saber. É
a prova da tua generosidade!… O pai de Elisa.

JOANA – Sr. Gomes?

JORGE – Queria matar-se!

JOANA – Por causa daquela letra?

JORGE – Justamente. Elisa tirou-lhe o veneno e me confessou tudo ontem!

JOANA – Que menina! ……. Não me disse nada! Foi dela que nhonhô
tomou o vidro?… Mas não devia deixar por aqui.

JORGE – Esqueci-me. Tenho tido tantas preocupações. Dá
cá.

JOANA – Eu guardo, nhonhô, para deitar fora.

JORGE – Vê se te descuidas!…

JOANA – Está no seio. Vou atirar ao mar… Pode algum malfazejo…

JORGE – Não o abras!

JOANA – Eu!… Nosso Senhor me defenda.

JORGE – Aí está o doutor!

JOANA – Ah!… Que ia fazendo?

JORGE – Hein?… Que foi?…

JOANA – Naquela aflição de ontem me esqueci!… Nhonhô
não diga nada a ele do que se passou!… Olhe lá!

JORGE – Por quê? Não queres que ele te admire?

JOANA – Nhonhô! Fora de graça!… Não diga nada! Por
tudo quanto há!

JORGE – Tens razão!…

CENA IV

Os mesmos e DR. LIMA

DR. LIMA – Então como se arranjou?

JORGE – Achei quem me emprestasse, mas com a condição de pagar
hoje sem falta.

DR. LIMA – Muito bem! Eu fiz o que pude. Ontem nada consegui.

JORGE – E hoje?…

DR. LIMA – Adeus, Joana.

JOANA – Meu senhor passou bem?

JORGE – Mas então, doutor?

DR. LIMA – O que lhe disse eu ontem?

JORGE – Que hoje às nove horas, se não pudesse antes.

DR. LIMA – Que horas são?

JORGE – Não sei! Empenhei o meu relógio!…

JOANA – Hão de ser nove, meu senhor.

DR. LIMA – Menos cinco minutos. Eu aqui estou e o dinheiro comigo.

JORGE – Ah!

JOANA – Eu sempre disse! Homem de palavra, como meu senhor!…

DR. LIMA – Espera! que temos uma conta a ajustar…

JOANA – Comigo?… Eu não fiz nada!

DR. LIMA – Já te falo. (A JORGE) Aqui tem. Está nesta carteira
um conto de réis. Tire o que precisar.

JORGE – Preciso de seiscentos mil-réis. Tenho oitenta, bastam-me quinhentos
e vinte.

DR. LIMA – Não se acanhe!… Esses oitenta mil-réis são
naturalmente o produto do seu relógio empenhado!… Vá desfazer
essa transação. Gaste o que for preciso para pôr em ordem
os seus negócios. Depois falaremos.

JORGE – Não lhe sei agradecer, doutor!… Se este dinheiro fosse para
matar-me a fome, eu não o receberia com tanta avidez.

DR. LIMA – Agora a nossa conta, Joana. Jorge não te deu ou tem um
papel?

JOANA – Meu senhor!…

JORGE – Como soube, doutor?

DR. LIMA – Eu não estava aqui?… Já se esqueceram?…

JORGE – Estava… mas…

DR. LIMA – Quando te deu esse papel, que te disse Jorge?

JOANA – A que vem isto agora, meu senhor?

DR. LIMA – Ainda!… Disse-te: "Joana, nesta casa não há
mais nem senhor nem escrava." (A JORGE) Não foi isto?

JORGE – Foi, doutor, e repito.

DR. LIMA – Ora bem! Se eu te ouvir daqui em diante alguma destas palavras,
meu senhor, sua escrava, saio por aquela porta e não ponho mais os
pés aqui!

JOANA – Meu… Sr. doutor!

JORGE – Ralhe! Ralhe com ela, doutor, para ver se emenda-se.

DR. LIMA – Não venho mais cá e escrevo uma carta a Jorge…
explicando-lhe o motivo?

JOANA – Ah! Vm. não há de fazer isto! Eu juro o que quiser.

DR. LIMA – Estamos entendidos.

JORGE – Dê-me licença, doutor. Vou sair um instante para saldar
essa dívida que me pesa.

DR. LIMA – Sem cerimônia! Vá. Enquanto espero, Joana, prepara
alguma coisa, que ainda não almocei.

JORGE – Ouves, Joana?!

JOANA – Já. Num momento!

DR. LIMA – Chá e pão, basta!… Quem toca por aqui?

JOANA – É Iaiá.

JORGE – É a minha vizinha do primeiro andar.

DR. LIMA – Que não tarda subir ao segundo?

JÓRGE – Talvez, doutor.

CENA V

DR. LIMA e JOANA

DR. LIMA – Dá-me o jornal!… Aquilo que eu te disse é sério,
ouviste, Joana?

JOANA – Ouvi, Sr. doutor. Quer que eu jure outra vez?

DR. LIMA – Não é necessário.

JOANA – Ai!… Iaiá D. Elisa vai cantar! Como ela está contente
hoje! Coitadinha! É uma pombinha sem fel!… E como canta bem!… Ora,
discípula de nhonhô!… Que bonita voz!… Não é,
Sr. doutor?

DR. LIMA – Muito; há outra que eu acharia mais bonita.

JOANA – Qual?… Não é capaz.

DR. LIMA – A tua, Joana…

JOANA – Gentes!… Que partes do Sr. doutor.

DR. LIMA – Se ouvisses o resto… É a tua quando me disseres que o
almoço está pronto.

JOANA – Santo Deus!… E eu a dar à taramela!… Perdão, Sr.
doutor.

DR. LIMA – Perdôo-te o julgares que com sessenta anos tinha tenções
de namorar-te.

CENA VI

DR. LIMA

(Cena muda. O doutor lê o jornal, interrompendo as vezes a leitura
para ouvir o romance francês – Aiguille – que ELISA canta; afinal adormece.
Pouco depois de acabar o romance, entra JORGE.)

CENA VII

DR. LIMA e JORGE

JORGE – Que maçada!

DR. LIMA – Hein!… Que é?… Que temos?

JORGE – Estou contrariado, doutor. Não achei o homem.

DR. LIMA – Não é culpa sua. Ele que o procure.

JORGE – Fiquei de ir levar-lhe o dinheiro, eu mesmo.

DR. LIMA – Voltará depois.

JORGE – Devo pagar-lhe hoje sem falta.

DR. LIMA – O dia apenas começou. Há tempo de sobra.

JORGE – Só o encontrarei de manhã.

DR. LIMA – Ora, se lhe parece!… Faça disso uma questão de
honra! Já o procurou; cumpriu o seu dever. Ele que apareça.

JORGE – Aqui?

DR. LIMA – Então!… Onde há de ser?

JORGE – Eu é que devo ir à sua casa.

DR. LIMA – Há de poupar-lhe esse incômodo. Não digo!

CENA VIII

Os mesmos, ELISA e GOMES

GOMES – Não é uma visita, Sr. Jorge, que viemos fazer-lhe,
minha filha e eu.

JORGE – Sente-se, D. Elisa… Sr. Gomes, doutor!… GOMES – Não é
uma visita, não. É uma romaria, como dizem que outrora faziam
aos lugares santos.

JORGE – Ora, Sr. Gomes.

GOMES – O Sr. doutor, a quem peço desculpa de minha distração
de ontem…

DR. LIMA – Não tem de quê. Vi que estava indisposto.

GOMES – Estava, como pode estar o homem a quem a honra ordena que morra e
sua filha órfã pede que viva.

ELISA – Meu pai!… Esqueça-se!.

GOMES – Ao contrário devo lembrar! Devo confessá-lo! Não
temos outro meio de reconhecer a dedicação daquele a quem tu
deves a vida do teu pai; e eu mais do que a vida.

JORGE – Para que voltar a um passado que nos aflige a todos?

GOMES – Eu não conheço egoísmo mais cruel do que o do
benfeitor que recusa o reconhecimento daqueles a quem recorreu. A gratidão,
Sr. Jorge, não é só um dever; é também
um direito.

DR. LIMA – E um direito sagrado!

JORGE – Porém, doutor, o Sr. Gomes nada me tem a agradecer. Ele o
sabe; e vou dar-lhe a prova. Estamos entre amigos, Elisa… seu pai e o meu…

DR. LIMA – Pela afeição unicamente! Nunca lhe fiz serviços…

JORGE – Doutor!… Não há meia hora!

GOMES – Vê, Sr. Jorge! O senhor mesmo me dá razão. JORGE
– Não, senhor! Ouça… Eu concebi, há meses, uma esperança
de cuja realização depende a ventura de minha vida. Amava…
Amo sua filha!

GOMES – Ela me confessou, Sr. Jorge.

JORGE – Confessou-lhe unicamente que eu a amava?

GOMES – E que era…

ELISA – Meu pai!…

GOMES – Não cores, minha filha. O amor puro, como o teu, é
a coroa de virgem de uma moça. Elisa também o ama, Sr. Jorge.

JORGE – Que fiz eu pois, Sr. Gomes, senão velar sobre a minha felicidade?…
Fui apenas egoísta!… Não tenho razão, doutor?…

DR. LIMA – Todos têm razão; mas é preciso que se entendam.
Definamos a situação, como dizem os estadistas quando a querem
embrulhar. Jorge pede-lhe a mão de sua filha, Sr. Gomes.

GOMES – Responde, Elisa.

ELISA – Não… Logo… meu pai!

GOMES – É de ti unicamente que ele deve receber a tua mão!

ELISA – Ele já não sabe?

JORGE – É verdade! Só esperamos pelo seu consentimento.

GOMES – Não tenho consentimento a dar… Faço um voto pela
felicidade de ambos.

DR. LIMA – Isto é mais claro. Marquemos o dia.

GOMES – O Sr. Jorge dirá.

ELISA – Já!… Que pressa!

JORGE – Elisa é quem deve marcar.

ELISA – Eu não!

DR. LIMA – Pois marco eu. E aposto que vão todos ficar satisfeitos.
Que dia é hoje?

JORGE – Terça-feira.

DR. LIMA – Em três dias faz-se um vestido… Sábado!

GOMES – Muito bem.

JORGE – Concordo.

ELISA – Tão cedo!…

DR. LIMA – Quanto à casa, esta tem as acomodações necessárias.

JORGE – Ainda não a viu, Sr. Gomes? Venha. Quero mostrar-lhe o gabinete
que lhe destino.

GOMES – A mim!…

JORGE – Desejo que Elisa tenha seu pai junto de si. Entremos. casa de estudante…
Não repare.

CENA IX

DR. LIMA e ELISA

DR. LIMA – Há pouco, sem o suspeitar, deu-me grande prazer, minha
senhora. Ouvi-a cantar.

ELISA – Ah! Estava aqui?

DR. LIMA – Era um romance francês!…

ELISA – Aprendi-o a cantar sentindo-o. Por isso gosto muito dele.

DR. LIMA – Tem uma linda voz!

ELISA – Qual!… Há muitos dias que não cantava! Hoje tive
umas saudades!

DR. LIMA – Da música ou do mestre?…

CENA X

Os mesmos e PEIXOTO

PEIXOTO – Viva, senhor!

DR. LIMA – Tire o chapéu!… Não vê que está diante
de uma senhora?

PEIXOTO – Não reparo nestas coisas… A minha escrava?…

DR. LIMA – Que escrava? O senhor sabe a quem fala?

PEIXOTO – A escrava que o tal Sr. Jorge me vendeu!… Fugiu-me esta manhã!…
Está acoitada aqui!

ELISA – Joana!

DR. LIMA – Tranqüilize-se, D. Elisa. Joana está forra. Jorge
deu-lhe ontem a carta à minha vista!

ELISA – Ela o merecia!

PEIXOTO – Que história está aí o senhor a contar?

DR. LIMA – Digo-lhe a verdade.

PEIXOTO – Pois enganou-se!… Quero já para aqui a minha escrava!…
Senão vou à polícia!… É uma velhacada!

DR. LIMA – Lembro-lhe que não está em sua casa! De que escrava
fala o senhor!

PEIXOTO – Quantas vezes quer que lhe diga?… Da mulata Joana, que comprei
ontem!

ELISA – Ah!

DR. LIMA – O senhor mente!

PEIXOTO – Veremos!… Eu lhe mostrarei para que serve este papel. (O doutor
lê o papel na mão de PEIXOTO. JOANA aparece no fundo.)

CENA XI

Os mesmos, JORGE e GOMES

JORGE – Cale-se.

GOMES – Este miserável aqui!

PEIXOTO – A minha escrava!

DR. LIMA – Desgraçado!…

JORGE – Doutor…

DR. LIMA – Tu vendeste tua mãe! (JOANA foge.)

JORGE – Minha mãe!… Ah!…

DR. LIMA – Tua mãe, sim!… Digo-o alto! porque te sei bastante nobre
para não renegares aquela que te deu o ser. (Pequena pausa.)

PEIXOTO – Em todo o caso… Eu não perco o meu dinheiro.

DR. LIMA – Quanto se lhe deve?

PEIXOTO – Seiscentos mil-réis! (JORGE tira o dinheiro.)

DR. LIMA – Dê-me este papel.

JORGE – Não o rasgue, doutor!

DR. LIMA – Para que conservar esse testemunho?

JORGE – Para exprobrar-lhe o que me obrigou a fazer!… Porque foi ela…
que tratou com esse homem.

PEIXOTO – Lá isso é a pura verdade.

JORGE – A carta rasgou-a!

DR. LIMA – Amor de mãe!…

JORGE – Ah! Meu pai!… Como deves sofrer neste momento!

DR. LIMA – Ele não teve tempo de declarar… A morte foi repentina.

JORGE – E ter vivido vinte anos com ela, recebendo todos os dias, a todo
o instante as efusões desse amor sublime!… E não adivinhar!…
Não pressentir!… Perdão, minha mãe!… Onde está
ela? (Sai.)

CENA XII

DR. LIMA, GOMES, ELISA, PEIXOTO e VICENTE

VICENTE (a PEIXOTO) – Alto lá, camarada! (Segura-o pela gola.)

PEIXOTO – Isto são modos!

VICENTE – Bom dia, Sr. doutor e companhia.

DR. LIMA – Adeus.

PEIXOTO – Largue-me, senhor!

VICENTE – Está seguro! Deixe-se de partes.

PEIXOTO – Com que direito me priva de sair?

VICENTE – Já lhe digo. (Lê) "Mandado de prisão passado
a requerimento do Dr. Promotor!…"

PEIXOTO – Eu preso!… Por quê?

VICENTE – Por causa de certas letras…

PEIXOTO – É falso!

VICENTE – São falsas mesmo as tais letras…

PEIXOTO – Sr. Vicente…

VICENTE – Romão, meu caro senhor, Romão… Tenha a bondade
de seguir-me.

GOMES – Deus é justo! (ELISA entra rapidamente na alcova.)

CENA XIII

DR. LIMA, GOMES e JORGE

JORGE – Viu-a, doutor?… Não a encontrei!… Procurei tudo!

DR. LIMA – Sossegue, Jorge! Deve ter saído… Ela nada sabe ainda!
Seja prudente… Não lhe anuncie de repente!… O choque pode ser terrível!.

JORGE – Não me sei conter!… Quero abraçá-la!… Minha
mãe!… Que prazer supremo que eu sinto em pronunciar este nome!…
Parece-me que aprendi-o há pouco!…

GOMES – Sr. Jorge.

JORGE – Ah! Desculpe… Esqueci-me que estava aqui… O que acabo de SABER!…

GOMES – Penaliza-me bastante, creia.

JORGE – Como, Sr. Gomes?

GOMES – Sinto muito, porém. O senhor compreende a minha posição…
As considerações sociais…

JORGE – Acabe, senhor!…

GOMES – Esse casamento não é mais possível!

JORGE – Ah!

DR. LIMA – Por que razão, Sr. Gomes?

JORGE – Porque não reneguei minha mãe!

GOMES – Sr. Jorge, eu o estimo… porém…

JORGE – Tem razão, Sr. Gomes!… O senhor me julga indigno de pertencer
à sua família porque eu sou filho daquela que se vendeu para
salvar essa mesma honra em nome da qual me repele!

GOMES – Que diz, senhor?…

ELISA (fora) – Jorge!… Sua mãe!…

JORGE – Elisa!… Aonde?… (Entra na alcova.)

GOMES – Nas minhas circunstâncias que faria, Sr. doutor?

DR. LIMA – Não há considerações nem prejuízos,
senhor, que me obriguem a cometer uma ingratidão.

CENA XIV

DR. LIMA, GOMES, JORGE e JOANA

JORGE – Doutor, acuda!… Depressa!…

DR. LIMA – O quê?

ELISA – Este vidro!…

GOMES – Envenenada!…

JOANA – Um ataque!…

JORGE – E o mesmo veneno que ela arrancou-lhe dos lábios… Sr. Gomes!

DR. LIMA – Que fizeste, Joana?

JOANA – Nada, meu… Sr. doutor.

JORGE – Salve-a, meu amigo!…

DR. LIMA – Só Deus!… A ciência nada pode!

JORGE – Minha mãe!…

JOANA – Não!… Eu não sou sua mãe, nhonhô…
O que ele disse, Sr. doutor, não é verdade… Ele não
sabe…

DR. LIMA – Joana!…

JOANA – Não é verdade, não!… Pois já se viu
isso?… Eu ser mãe de um moço como nhonhô!… Eu uma
escrava!… Não vê, nhonhô, que ele se engana?

JORGE – Me perdoa, minha mãe, não te haver conhecido!

JOANA – Sr. doutor quer dizer que eu fui ama de nhonhô!… Que nhonhô
era meu… meu… de leite… só… só de leite!…

JORGE – Chama-me teu filho!… Eu te suplico!…

JOANA – Mas não e… não!… Eu juro…

DR. LIMA – Joana!… Deus nos ouve!

JOANA – Por Deus mesmo… Ele sabe por que digo isto!… Por Deus mesmo…
Juro… que… Ah!…

JORGE – Morta!…

ELISA – Minha boa Joana!…

JOANA – Escute, iaiá Elisa… É a última coisa que lhe
peço… Iaiá há de fazer meu nhonhô muito feliz!…
Me promete?… Queira a ele tanto bem, como Joana queria… Mas, nem iaiá
nem ninguém pode… não!…

JORGE – Minha mãe!… Por que foges de teu filho, apenas ele te reconhece?

JOANA – Adeus, meu nhonhô… Lembre-se às vezes de Joana…
Sim?… Ela vai rezar no céu por seu nhonhô… Mas antes eu queria
pedir..

JORGE – O que, mãe? Pede-me!…

JOANA – Nhonhô não se zanga?

JORGE – Eu sou teu filho!… Dize!… Uma vez ao menos… este nome.

JOANA – Ah!… Não!… Não posso!

JORGE – Fala! Fala!

JOANA – É um atrevimento!… Mas eu queria antes de morrer… beijar
sua… sua testa, meu nhonhô!…

JORGE – Mãe!…

JOANA – Ah!… Joana morre feliz!

JORGE – Abandonando seu filho.

JOANA – Nhonhô!… Ele se enganou!… Eu não… Eu não
sou tua mãe, não… meu filho! (Morre.)

JORGE (de joelhos) – Minha mãe!…

ELISA – E minha, Jorge!…

GOMES – Ela abençoe tão santa união!…

DR. LIMA – E me perdoe o mal que lhe fiz!

FIM DE "MÃE"

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